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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA José Marcos Gomes de Luna UMA INTERPRETAÇÃO MULTIGRADE DA PRIMEIRA (E MELHOR) VERSÃO DA TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA Rio de Janeiro 2018

UMA INTERPRETAÇÃO MULTIGRADE DA PRIMEIRA (E MELHOR) … · Metafísica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA

José Marcos Gomes de Luna

UMA INTERPRETAÇÃO MULTIGRADE DA PRIMEIRA (E MELHOR)

VERSÃO DA TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA

Rio de Janeiro

2018

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José Marcos Gomes de Luna

UMA INTERPRETAÇÃO MULTIGRADE DA PRIMEIRA (E MELHOR)

VERSÃO DA TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA

Tese apresentada à Banca Examinadora do

Programa de Pós Graduação em Lógica e

Metafísica, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como exigência parcial para obtenção do

título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Guido Imaguire.

Rio de Janeiro, novembro de 2018

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“Every judgement is a relation of a mind to

several objects, one of which is a relation”.

(Bertand Russell, 1913, p. 181)

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Guido Imaguire, pela indispensável orientação, pelo incentivo

no aprimoramento da Pesquisa e pela disponibilização de textos, preciosos, para os trabalhos

de elaboração desta Tese, meus Sinceros Agradecimentos.

Aos Professores(as) e Secretárias do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica

(PPGLM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pela contribuição fundamental

nas Disciplinas cursadas, pelo apoio estrutural e pela convivência cordial, durante todo o

período da Pesquisa, meus Sinceros Agradecimentos.

Aos Profs. Drs. Dirk Greimann e Mário Augusto Queiroz Carvalho, que integraram a Banca

do Exame de Qualificação, pelas correções, observações e sugestões valiosas, meus Sinceros

Agradecimentos.

À Profa. Dra. Célia Cristina Patrício Teixeira e aos Profs. Drs. Fernando Raul de Assis Neto e

Marco Antônio Ruffino que, juntamente, com o Prof. Dr. Mário Augusto Queiroz Carvalho,

aceitaram participar da Banca Examinadora, meus Sinceros Agradecimentos.

A Dom Genival Saraiva de França (Bispo Emérito da Diocese de Palmares-PE), pela

liberação dos meus Ofícios canônicos a fim de que pudesse me dedicar à Pesquisa e pelo

generoso acompanhamento humano-afetivo durante todo o tempo da Pesquisa, meus Sinceros

Agradecimentos.

A Dom Nelson Francelino Ferreira (Bispo da Diocese de Valença-RJ), ao Pe. Gustavo Ribeiro

da Silva e ao Mons. Aroldo da Silva Ribeiro, bem como aos Padres amigos e Leigos da

Paróquia de N. Senhora de Copacabana e da Paróquia de São Judas Tadeu (em Anchieta),

pela acolhida fraterna, pela hospedagem e pelo incentivo nos anos de Pesquisa que passei no

Rio Janeiro, meus Sinceros Agradecimentos.

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DEDICATÓRIA

Dedico esta Tese ao meu orientador, Prof. Dr. Guido

Imaguire, e aos meus pais, Heleno Gomes de Luna e

Josefa Gomes da Silva (in memoriam).

Ao primeiro, por ser para mim exemplo impar de

Filósofo, Pesquisador, Professor e Amigo.

E aos segundos, por serem para mim exemplo impar

de Trabalho, Persistência e Vida Cristã.

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RESUMO

A Teoria do Juízo como Relação Múltipla, de Bertrand Russell, é uma promissora alternativa

ao Realismo Proposicional. Os ataques desferidos contra ela, desde que veio a público,

contudo, apoiaram-se em certos pressupostos metafísicos, bastante questionáveis, para

entender a relação acreditar e a relação subordinada, e enveredaram por um caminho

interpretativo que desemboca, sempre, de um jeito ou de outro, no Problema da Direção. O

objetivo desta Tese, porém, situa-se na direção oposta. Seu intuito é mostrar que, colocada em

bases metafísicas adequadas, a Teoria do Juízo como Relação Múltipla, é capaz de superar o

Problema da Direção, em seu tradicional desdobramento, como Problema da Direção Estreita

e Problema da Direção Larga e ainda pode responder a algumas dificuldades adjacentes ao

citado Problema da Direção, tais como as dificuldades da variação, as dificuldades na

identificação dos papéis lógicos dos termos na crença e as dificuldades para encontrar um

simbolismo formal pertinente para as ocorrências da relação acreditar. A Tese está dividida

em três Capítulos. No Primeiro deles, procuramos apresentar a Teoria russelliana do Juízo

como Relação Múltipla, destacando-se o rompimento de Russell com a Teoria do Juízo como

Relação Dual, as vantagens de sua primeira versão, os limites que impediram Russell de obter

sucesso com ela e a crítica de que ela esbarra, de modo intransponível, no Problema da

Direção. No Capítulo Segundo, apresentamos o Problema da Direção, considerando seu

tradicional desdobramento em Problema da Direção Estreita e Problema da Direção Larga e,

apresentamos também, duas linhas de dificuldades adjacentes ao Problema da Direção. A

primeira delas é alinha das dificuldades para lidar com a variação de aridade, do número de

lugares dos termos e da ordem lógica nas ocorrências da relação acreditar e, a segunda, é a

linha das dificuldades para relativas aos papéis lógicos dos termos na crença, quando a relação

subordinada é uma relação assimétrica, e também as dificuldades relativas a um simbolismo

formal bem sucedido para as ocorrências da relação acreditar. E, finalmente, no Capítulo

Terceiro, apresentamos uma base metafísica nova para pensar a Teoria do Juízo como

Relação Múltipla e para entender a operação da relação acreditar e da relação subordinada de

um jeito novo, capaz de responder aos Problemas e dificuldades, levantados no Capítulo

anterior.

Palavras-chave: Acreditar. Relação Dual. Relação Múltipla. Relação Subordinada. Aridade.

Agente Movente. Agente Movido. Multigrade.

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ABSTRACT

The Judgement Theory as Multiple Relation by Bertrand Russell is a promissing alternative

for Propositional Realism. The attacks against the overmentioned Theory, since it has came to

public, however, supported upon certain metaphysical assumptions questionable enougthly, in

order to understand the believing relation and the subordinating relation, and have gone

trough an interpretative path that lands on, in a way or another, at the Dirction Problem. This

Thesis aim, however, in the opposite direction. Its aim is showing out that, on adequated

metaphical basis, the Judgement Theory as Multiple Relation is suitable to overcome the

Direction Problem, in its traditional unfolding, as Narrow Direction Problem and Wide

Direction Problem, and is still able to answer to some difficulties adjacent to the over

mentionenned Direction Problem, the difficulties regarding to the variation, the identification

of the logical roles of the terms in the believing and the difficulties to find out a formal

symbolism pertinent for the believing relation. The Thesis is divided into three Chapters. In

the First One, we have tried presenting the Russellian Theory of Judgement as Multiple

Relation, detaching Russell’s disruption in front of the Judgement Theory as Dual Relation,

Russell’s first version advantages, the limits that obstructed Russell from getting success from

that attempt and the criticism that it bumps in an untransposing way at the Direction Problem.

In the Second Chapter we have presented out the Direction Problem, taking into consideration

its traditional unrolling into strict Direction Problem and the Wide Direction Problem and we

have presented out two lines of difficulties, adjacent to the Direction Problem. The first one of

them is the difficulties line in order to deal with the arity variation, the terms places numbers,

the logical order in the believing relation occurrences, and the second one is the difficulties

line relative to logical roles of the terms in the believing, when the subordinate relation is an

asymmetrical relation as well as the difficulties referring to an well succeded formal

symbolism, regading to the believing relation occurrences. And, finaly, in the Third Chapter,

we have presented a new metaphysical basis for thinking out the Judgement Theoy as

Multiple Relation and in order to understand the operation of believing relation and the

subordinate relation in a new way, able for answering to the Problems and the difficulties

mentionned in the previous Chapter.

Key-words: To believe. Dual Relation. Multiple Relation. Subordinated Relation. Aridity.

Moving Agent. Moved Agent. Multigrade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 A TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA ......................................... 21

1.1 A PRIMEIRA (E A MELHOR) VERSÃO DA TEORIA RM ................................... 22

1.1.1 Ruptura com a Teoria do Juízo como Relação Dual ................................................... 23

1.1.2 A natureza lógica da relação acreditar........................................................................ 26

1.1.3 Os relata da relação acreditar ..................................................................................... 31

1.1.3.1 Os relata da relação acreditar são de tipos lógicos diferentes ................................... 32

1.1.3.2 Os relata da relação acreditar desempenham papeis lógicos diferentes ................... 34

1.1.4 A relação de correspondência entre crenças e fatos .................................................... 36

1.2 AUMENTANDO AS DIFICULDADES: AS VERSÕES DE 1912 E 1913 .............. 44

1.2.1 A versão de 1912: direção e classificação dos termos na relação acreditar ............... 44

1.2.1.1 O realismo operante da relação acreditar ................................................................... 45

1.2.1.2 A relação entre acreditar e a relação subordinada ...................................................... 47

1.2.2 A versão de 1913: a forma lógica e as posições dos termos na relação ...................... 51

1.2.2.1 A relação acreditar como relação múltipla ................................................................. 51

1.2.2.1.1 Crenças não-permutativas ............................................................................... 57

1.2.2.1.2 Crenças permutativas ....................................................................................... 58

1.2.2.1.3 Complexos associados não-ambíguos ............................................................. 60

1.2.2.2 Os relata da relação acreditar na terceira versão ...................................................... 64

1.2.2.2.1 A forma lógica geral da relação e a determinação da direção dos termos ...... 64

1.2.2.2.2 As posições dos termos nas crenças permutativas .......................................... 66

1.2.2.2.3 A Direção da relação a partir de sua natureza lógica ...................................... 70

1.2.2.2.4 A tentativa russelliana de encontrar um simbolismo formal para a relação

acreditar .......................................................................................................... 73

1.3 A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA VERSÃO E A CRÍTICA À TEORIA RM ...... 79

1.3.1 A vantagem da primeira versão da Teoria RM............................................................ 79

1.3.2 A lacuna que impediu o sucesso de Russell na primeira versão da Teoria RM........... 83

1.3.3 A crítica à Teoria RM .................................................................................................. 84

1.3.3.1 George Frederick Stout................................................................................................ 85

1.3.3.2 Nicholas Griffin............................................................................................................ 87

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1.3.3.3 Russell Wahl................................................................................................................ 91

1.3.3.4 Alexander Miller.......................................................................................................... 92

1.3.3.5 Samuel Lebens ............................................................................................................ 94

1.4 SUMARIZANDO ............................................................................................................. 97

2 O PROBLEMA DA DIREÇÃO DOS TERMOS E SUAS DIFICULDADES

ADJACENTES ............................................................................................................ 99

2.1 O PROBLEMA DA DIREÇÃO NOS RELATA DA RELAÇÃO ACREDITAR............. 100

2.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção ............................................ 101

2.1.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção em Russell ......................... 101

2.1.1.2 Divergências na apresentação do Problema da Direção nos críticos ........................ 104

2.1.1.3 Olhando além das divergências: a raiz do Problema ................................................. 106

2.1.2 O Problema da Direção Estreita ................................................................................ 107

2.1.2.1 A solução russelliana para o Problema da Direção Estreita na primeira versão da

Teoria RM ................................................................................................................ 108

2.1.2.2 A crítica de Griffin à solução russelliana do Problema da Direção Estreita na primeira

versão da Teoria RM ................................................................................................. 108

2.1.2.3 Insuficiência da solução russelliana e da crítica de Griffin à solução russelliana do

Problema da Direção Estreita .................................................................................... 110

2.1.3 O Problema da Direção Larga ................................................................................... 111

2.1.3.1 A tentativa de fundamentar o Problema da Direção Larga ....................................... 112

2.1.3.2 Pressupostos centrais na fundamentação do Problema da Direção Larga................. 114

2.2 DIFICULDADES ADJACENTES AO PROBLEMA DA DIREÇÃO .................... 117

2.2.1 Dificuldades com variações ...................................................................................... 117

2.2.1.1 Dificuldades explicativas na variação de aridade da relação acreditar .................... 118

2.2.1.2 Dificuldades explicativas na variação do número de lugares da relação acreditar... 125

2.2.1.3 Dificuldades explicativas na variação da ordem lógica na relação acreditar ........... 127

2.2.2 Dificuldades na identificação dos papéis lógicos dos termos e na construção de um

simbolismo formal para a acreditar .......................................................................... 128

2.2.2.1 Dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na crença..................... 128

2.2.2.2 Dificuldade na construção de um simbolismo lógico formal eficaz para as ocorrências

da relação acreditar .................................................................................................. 130

2.3 A DIFICULDADE CENTRAL DOS SIMPATIZANTES DO PROBLEMA DA

DIREÇÃO: ASSIMILAR O PAPEL RELACIONANTE DA RELAÇÃO

SUBORDINADA ...................................................................................................... 137

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2.4 SUMARIZANDO ..................................................................................................... 138

3 COISAS VELHAS E NOVAS DO TESOURO DA FILOSOFIA ........................... 140

3.1 PREENCHENDO A LACUNA DEIXADA PELA PRIMEIRA VERSÃO DA

TEORIA RM NA RELAÇÃO ENTRE AS DUAS RELAÇÕES ............................. 140

3.1.1 Afastando-se rota (i): O baú de antiguidades ............................................................ 142

3.1.1.1 O agente movente ...................................................................................................... 143

3.1.1.2 O agente movido ....................................................................................................... 145

3.1.1.3 Diversidade e cooperação nas operações de agentes diferentes ordenados entre si...147

3.1.1.4 Possíveis combinações de agentes diferentes ordenados entre si ............................. 149

3.1.1.4.1 Primeiro grupo: um agente movente e um ou vários agentes movidos .............. 149

a) Um agente movente e um agente movido ................................................................. 149

b) Um agente movente e dois agentes movidos ............................................................ 150

c) Um agente movente e três agentes movidos ............................................................. 150

3.1.1.4.2 Segundo grupo: dois agentes moventes (ou mais)e um ou vários agentes

movidos................................................................................................................ 151

a) Dois agentes moventes (ou mais) atuando individualmente com um agente movido (ou

mais de um do mesmo tipo) ........................................................................................... 151

b) Dois agentes moventes (ou mais) atuando coletivamente com um agente movido (ou

mais de um de diferentes tipos) ..................................................................................... 152

3.1.2 Afastando-se da rota (ii): o baú de ferramentas ........................................................ 153

3.1.2.1 A estrutura interna e a natureza lógica da relação na teoria das relações multigrade.153

3.1.2.1.1 As relações multigrade ........................................................................................ 154

3.1.2.1.2 A estratégia da mudança de sujeito e a estratégia multigrade ............................ 158

3.1.2.1.3 Distinguindo lugares e posições .......................................................................... 161

3.1.2.1.4 Um novo jeito de pensar a aridade ..................................................................... 163

3.1.2.1.5 Simetria global e simetria local ........................................................................... 165

3.1.2.2 A indicação da relevância na ordem dos termos ....................................................... 169

3.1.2.3 Evitando sinais com duas funções numa mesma ocorrência .................................... 173

3.2 VOLTANDO DO EXCURSO......................................................................................... 173

3.2.1 Relendo a natureza e a operação da relação acreditar na Teoria RM ...................... 174

3.2.1.1 A relação acreditar é um agente movente ................................................................ 174

3.2.1.2 A relação acreditar é um agente movente multigrade .............................................. 176

3.2.1.2.1 Acreditar é uma relação multi-aridade ................................................................ 177

3.2.1.2.2 Acreditar é uma relação multi-ordem ................................................................. 178

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3.2.1.2.3 Acreditar é uma relação multi-posição ............................................................... 178

3.2.1.2.4 Acreditar é uma relação multi-lugar ................................................................... 179

3.2.1.3 A relação acreditar é um agente movente multigrade criador.................................. 180

3.2.2 Relendo a natureza e a operação da relação subordinada na Teoria RM .................. 181

3.2.2.1 A relação subordinada em sua operação própria ...................................................... 182

3.2.2.2 A relação subordinada é um agente movido ............................................................. 182

3.2.2.3 A relação subordinada é um agente movido determinante e determinado................. 184

3.3 REVENDO O PROBLEMA DA DIREÇÃO E SUAS DIFICULDADES

ADJACENTES................................................................................................................ 186

3.3.1 Crítica à crítica da Teoria RM ................................................................................... 186

3.3.1.1 Respondendo à crítica de Stout ................................................................................. 187

3.3.1.2 Respondendo à crítica de Griffin .............................................................................. 190

3.3.1.3 Respondendo à crítica de Wahl ................................................................................. 192

3.3.1.4 Respondendo à crítica de Miller ............................................................................... 193

3.3.1.5 Dialogando com a defesa de Samuel Lebens ............................................................ 195

3.3.2 Revendo as dificuldades explicativas da variação na relação acreditar.................... 197

3.3.2.1 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação

da ordem lógica das duas relações ............................................................................ 198

3.3.2.2 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação

da aridade das duas relações ..................................................................................... 199

3.3.2.3 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação

do número de lugares das duas relações.................................................................... 200

3.3.3 Revendo o Problema da Direção da relação acreditar na Teoria RM ...................... 203

3.3.3.1 A verticalidade hierárquica entre acreditar, a relação subordinada e os demais termos

na determinação da Direção Larga............................................................................. 203

3.3.3.2 Força efetiva da relação acreditar e exigências lógicas da relação subordinada na

determinação da Direção Estreita.............................................................................. 205

3.3.4 Revendo a dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na relação

subordinada ............................................................................................................... 207

3.3.5 Revendo as dificuldades do simbolismo formal nas ocorrências da relação

acreditar..................................................................................................................... 210

4 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 215

5 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 217

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13

INTRODUÇÃO

A Teoria do Juízo como Relação Múltipla, assumida publicamente por Russell entre

os anos de 1910 e 1918, no cerne de sua proposta, sustenta três pontos fundamentais.

Primeiro, que proposições são complexos dependentes da mente e não entidades objetivas

subsistentes. Segundo, que o objeto do juízo é plural e não singular. E, terceiro, que acreditar

é uma relação múltipla que liga um sujeito não a uma proposição, enquanto entidade

previamente estruturada, mas, aos constituintes básicos da proposição, com os quais forma e

assere um conteúdo proposicional.

A Teoria do Juízo como Relação Múltipla (daqui em diante “Teoria RM”) tem sido,

desde o início, alvo de rejeição “com uma unanimidade rara entre os filósofos”.1 E, dentre as

falhas apontadas contra ela, a mais citada de todas é o chamado Problema do Sentido. O

Problema que, depois da célebre classificação feita por Nicholas Griffin, também ficou

conhecido como o “Problema da Direção”.2

Este Problema da Direção, no entanto, consolidou-se no meio filosófico de dois

modos, distintos e interligados, que também foram classificados por Griffin como “o

Problema da Direção Estreita” e “o Problema da Direção Larga”.3 O primeiro, está

relacionado com o risco de o sujeito da crença formar o complexo “Cássio ama Desdemona”

quando, na verdade, pretendia formar o complexo “Desdemona ama Cássio”. Ou seja, ele tem

a ver com a possibilidade de o sujeito da crença colocar os objetos nos lugares errados na

relação subordinada. Já o Problema da Direção Larga, tem a ver com o risco de o sujeito da

crença formar “complexos” do tipo “ama Desdemona Cássio”, ao invés de complexos como

“Desdemona ama Cássio”, isto é, ele tem a ver com o risco de o sujeito da crença colocar a

1 GRIFFIN, 1985, p.214. 2Idem., 1980, p. 135. 3 Preferimos manter as expressões “Problema da Direção Estreita” e “Problema da Direção Larga” porque

notamos que elas estão mais presentes nos textos dos críticos, do que as expressões “problema do sentido

estreito” e “problema do sentido largo”.

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14

própria relação subordinada no lugar errado e formar “complexos” sem nenhum sentido

lógico.

Este Problema da Direção, em seus dois aspectos tradicionais que acabamos de

indicar, voltamos a insistir, é o Problema mais citado dentre as críticas contra a Teoria RM.

Quando se começa a examinar as críticas contra a Teoria RM, logo se percebe, um crítico

acentua o Problema da Direção Estreita, outro crítico acentua o Problema da Direção Larga. E

a lista pode prosseguir indefinidamente. Ainda que um crítico ou outro aponte outros

problemas na Teoria RM, por primeiro, porém, ele aponta o Problema da Direção. De modo

que, dada sua abrangência no meio crítico e sua importância para testar o poder de fogo da

Teoria RM, desmascarar as inadequadas bases metafísicas e superar as acusações feitas pelo

Problema da Direção, em seu duplo aspecto já referido acima, será o alvo central de nossa

Tese.

Para atingir este objetivo a que nos propomos, vamos seguir um caminho de mão

dupla, composto de dois percursos, distintos e interligados. O primeiro percurso será voltado

para as bases metafísicas da relação subordinada. Em sua travessia, por uma mão, seguiremos

e analisaremos a posição de Russell e dos críticos da Teoria RM, no tocante á relação

subordinada e, na contramão, traremos bases metafísicas novas, capazes de superar os déficits

da Teoria RM proposta por Russell na primeira versão publicada e capazes de superar os

ataques dos críticos relativos à relação subordinada.

Nesse primeiro percurso, então, por uma mão, mostraremos que Russell e os críticos

da Teoria RM enveredaram por uma problemática maneira de tratar a natureza e o papel

lógico da relação subordinada num escopo crença. Decisão esta que os levou a abraçar um

tipo de Problema da Direção fundamentado precariamente. E, na contramão, procuraremos

mostrar que, se a maneira como eles tratam relação subordinada for mesmo levada a sério,

então, o Problema da Direção desperta duas linhas de dificuldades adjacentes a ele, que

indicaram o quanto seus pressupostos são inadequados. Trata-se da linha de dificuldades da

variação e da linha de dificuldades com a identificação dos papéis lógicos dos termos e com o

simbolismo formal. A primeira linha refere-se às dificuldades para explicar a variação de

aridade, de número de lugares e de ordem lógica nas ocorrências da relação acreditar. E a

segunda linha refere-se à dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na crença

e à dificuldade de encontrar um simbolismo formal que expresse a estrutura interna das

ocorrências da relação acreditar, com eficácia.

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O segundo percurso do nosso caminho, por sua vez, será feito para perseguir as bases

metafísicas da relação principal, a relação acreditar. Nele, nós também seguiremos a mesma

dinâmica. Por uma mão, analisaremos as posições de Russell e dos críticos da Teoria RM

sobre a relação acreditar e, pela contramão, traremos novas bases metafísicas para superar os

déficits da proposta de Russell na primeira versão da Teoria RM e para superar as críticas

relativas à relação acreditar.

Nesse segundo percurso, então, por uma mão, mostraremos que Russell trata a

relação acreditar como uma relação múltipla e que isso é compatível com uma leitura que

acomode a variação de aridade, de número de lugares dos termos e de ordem lógica em suas

ocorrências, enquanto que os críticos da Teoria RM procuram tratá-la, simplesmente, como

uma relação que posiciona, lado a lado, os termos. E, na contramão, mostraremos que a

posição de Russell na primeira versão da Teoria RM pode ser potencializada com uma base

metafísica “nova” que a torne capaz de superar as lacunas deixadas por Russell e mostraremos

também que as duas relações são relacionantes, porém, em campos diferentes, e que elas

operam de modo integrado. A relação subordinada determina logicamente os papéis lógicos

dos termos e determina como deve ser o posicionamento deles para que possam desempenhar

esses papéis, enquanto que a relação acreditar determina os termos que desempenharam os

papeis lógicos nas ocorrências efetivas.

Por conseguinte, chamamos a atenção para o fato de que nossa Tese trabalha numa

perspectiva sistemática, não histórica. O fato de considerarmos a primeira versão da Teoria

RM melhor que as outras pode sugerir que nossa abordagem seja histórica, mas não é. Ela é

de caráter sistemático. Nós consideramos a primeira versão superior às demais versões, não

porque ela seja a primeira cronologicamente ou porque permita uma integração considerável

com o conjunto da obra russelliana. Esses pontos não nos interessam no momento. O que nos

interessa é apenas o fato de que a primeira versão da Teoria RM se presta a uma leitura

melhorada tal que, sanando-se alguns déficits deixados por Russell, torna-se capaz de passar

vitoriosa pelo Problema da Direção, Estreita e Larga, bem como de superar as dificuldades

adjacentes a esse Problema, que apontamos acima.

A nossa abordagem, então, procura lançar um olhar sistemático sobre as

apresentações da Teoria RM proporcionadas por Russell, visando perscrutar não o lugar e o

funcionamento dela dentro do horizonte do pensamento russelliano. Mas, considerando o que

de melhor ele apresentou sobre a Teoria RM, nossa abordagem procura mostrar o que ele

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ainda deveria ter feito para que a Teoria RM pudesse funcionar e superar os ataques sofridos.

Para isso, analisamos as posições de Russell e dos vários críticos da Teoria RM e

conseguimos extrair um caminho novo, capaz de proporcionar uma interpretação da Teoria

RM apta a superar o Problema da Direção e as dificuldades adjacentes a ele.

Dito isso, a fim de expor nossa posição com a devida clareza, desejamos, antes de

tudo, traçar uma classificação geral das ocorrências da relação acreditar, isto é, fazer alguns

recortes que delimitem o tipo de ocorrências da relação acreditar para o qual estaremos

voltados e também estabelecer alguns usos técnicos que possibilitem uma exposição mais

concisa e favoreçam uma compreensão menos cansativa do texto.

Em primeiro lugar, à luz da Teoria RM, de modo geral, podemos classificar as

ocorrências da relação acreditar em dois grandes grupos, que podem ser ilustrados com as

seguintes frases:

(1) Otelo acredita que Desdemona é fiel.

(2) Otelo acredita que a fidelidade é um valor.

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

(4) Otelo acredita que o amor causa sofrimento.

As frases (1) e (2) exprimem duas crenças de Otelo que representam o grupo das

“crenças qualitativas”, isto é, as ocorrências da relação acreditar que atribuem uma qualidade

a um objeto ou a um conceito. E as frases (3) e (4), por sua vez, exprimem duas crenças de

Otelo que representam o grupo das “crenças relacionais”, isto é, as ocorrências da relação

acreditar que atribuem uma relação entre certos objetos ou entre certos conceitos.

Dentre esses dois grandes grupos de ocorrências da relação acreditar, nós vamos

concentrar nossa atenção apenas no segundo grupo, isto é, nas ocorrências que formam

crenças relacionais. E, visto que as ocorrências da relação acreditar que formam crenças

relacionais podem ser subdivididas em ocorrências que envolvem uma relação subordinada e

em ocorrências que envolvem mais de uma relação subordinada, vamos nos deter,

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exclusivamente, no primeiro subgrupo, a saber, aquele em que as ocorrências da relação

acreditar envolvem uma relação subordinada, apenas.

Depois, considerando que as ocorrências da relação acreditar que envolvem uma

relação subordinada podem ser expressas na linguagem ligando nomes ou descrições

definidas, vamos dedicar nossa atenção apenas àquelas ocorrências que, quando postas na

linguagem, envolvem apenas nomes. E assim, para resumir, nossa atenção vai dirigir-se

seletivamente para as ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação subordinada

que, por sua vez, envolvem apenas termos objetos nomeados na linguagem. Tais ocorrências

da relação acreditar, que Russell considerava como sendo as “mais simples”,4 serão

caracterizadas pelas seguintes restrições:

• elas não vão conter conectivos lógicos como, por exemplo, “e”, “ou”, “se, então” etc;

• elas não vão conter mais de uma relação subordinada, nem mais de uma ocorrência da

mesma relação subordinada, numa mesma instanciação;

• elas não vão conter termos que a linguagem expressa por meio de descrições

definidas.

Em segundo lugar, além destes recortes que delimitam o tipo de crença para o qual se

volta o nosso interesse, queremos fazer também duas escolhas técnicas. A primeira, consiste

em fixar como caso padrão para o nosso trabalho a ocorrência da relação acreditar expressa

pela frase (3), “Otelo acredita que Desdemona ama Cássio”. O que não significa que não

testaremos nossas posições, ao longo do texto, com instâncias da relação acreditar que

envolvam outras relações e outros relata, obedecendo aos limites assumidos acima. E a

segunda escolha, consiste em fixar um uso técnico para as seguintes expressões: “termos da

relação”, “relação principal”, “relata da relação principal”, “sujeito da relação”, “relação

subordinada” e “termos objetos da relação principal”. Essas expressões, portanto, serão

usadas com os seguintes significados técnicos:

4 “Assim, uma relação é ‘múltipla’ Se as proposições mais simples em que ela ocorre são proposições

envolvendo mais de dois termos (não contando a relação)” (RUSSELL, 1910a, p.180. Tradução e grifo nossos).

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- “termos da relação” – são todos os itens ligados por uma relação quando ela instancia-se.

São os elementos mesmos da ocorrência da relação e não itens lingüísticos. Por exemplo,

Otelo, Desdemona, a relação amar e Cássio são termos da relação acreditar em (3); por

conseguinte, insistimos, não entenda-se a expressão “termos” como referindo-se a itens

linguísticos;

- “relação principal” – é a relação que constitui um complexo ou unidade geral ao instanciar-

se, aquela que, numa ocorrência liga efetivamente todos os termos por sua própria natureza

como, por exemplo, a relação acreditar no caso expresso por (3);

- “relata da relação principal” – são os termos com os quais a relação acreditar liga o seu

sujeito numa ocorrência concreta. No caso que tomamos como modelo, por exemplo, os

relata da relação principal são Desdemona, a relação amar e Cássio;

- “sujeito da relação” – é o termo, objeto ou conceito, que desempenha o papel que Russell

chamou de referent numa relação assimétrica. Ele é o termo que instancia a propriedade

principal nas relações deste tipo. Por exemplo, Otelo é o sujeito da relação acreditar em (1)-

(4), Desdemona é o sujeito da relação amar em (3) e o amor é o sujeito da relação causar em

(4). Assim, enfatizamos de novo, a característica lógica principal do sujeito nessas e em todas

as relações assimétricas é que ele é o termo que instancia a propriedade central da relação que

age logicamente sobre ele numa ocorrência;

- “relação subordinada” – é a relação que ocorre dentro dos relata de uma relação principal e

age de modo subordinado a ela, como faz, por exemplo, a relação amar em (3).

- “termos objetos” – são aqueles termos sobre os quais o sujeito da relação principal aplica a

relação subordinada como, por exemplo, Desdemona e Cássio em (3) ou amor e sofrimento

em (4).

Tendo presente os parâmetros e recortes assumidos acima, então, estruturamos nossa

Tese em Três Capítulos configurados do seguinte modo. O Primeiro Capítulo está dividido

em três seções. Na primeira seção apresentamos a Teoria RM contida na primeira versão

publicada por Russell. Iniciamos destacando a ruptura de Russell com a Teoria do Juízo como

Relação Dual e depois acentuamos a originalidade e a natureza da relação acreditar,

entendida como relação múltipla, propostas naquela versão da Teoria RM. Depois,

apresentamos a classificação russelliana dos termos relata nas ocorrências da relação

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acreditar, destacando a diferença de tipos lógicos existente entre eles, bem como, a diferença

nos papeis lógicos que eles desempenham numa instancia da relação acreditar, quando a

relação subordinada é uma relação assimétrica. E terminamos a seção apresentando a teoria

russelliana da correspondência que, se existir, torna a crença verdadeira. Com a apresentação

desta teoria da correspondência, então, já construímos nosso primeiro argumento em favor da

superioridade da primeira versão da Teoria RM, mostrando que ela põe em relevo a

importância e o papel da relação subordinada, enquanto relação, nas ocorrências da relação

acreditar.

Na segunda seção, apresentamos em linhas gerais as outras duas versões da Teoria

RM e, como nosso segundo argumento em favor da reivindicação de que a primeira versão é

melhor, mostramos que essas versões posteriores caem num erro grave ao tratar da relação

subordinada. E a terceira versão, em particular, se enreda com a tarefa de identificar os

lugares e as posições dos termos, bem como com a tarefa de oferecer um simbolismo formal

para as ocorrências da relação acreditar. Por fim, encerramos esta segunda seção colocando

as bases para um terceiro argumento em favor da superioridade da primeira versão, que será

desenvolvido no Capítulo Terceiro. Trata-se da sofisticada teoria da simetria/assimetria

oferecida por Russell na terceira versão, e que também põe em relevo a importância e o papel

da relação subordinada nas ocorrências da relação acreditar.

A terceira seção contém três partes. A primeira parte desta seção apresenta uma

amostra da crítica à Teoria RM, destacando a atenção que os críticos dão ao Problema da

Direção e destacando a base comum, situada numa certa compreensão da relação subordinada,

usada por todos eles para entender esse Problema e para interpretar a Teoria RM. A segunda

parte desta seção desenvolve mais um argumento em favor da superioridade da primeira

versão da Teoria RM, salientando quatro razões a partir da ideia central de que a relação

subordinada deve ser tratada como uma relação relacionando. E, a terceira parte desta seção

salienta a lacuna deixada por Russell na compreensão da relação entre acreditar e a relação

subordinada, num juízo concreto, bem como, no entendimento de como as operações das duas

relações se harmonizam na formação do juízo.

O Segundo Capítulo, por sua vez, está estruturado em quatro seções que visam

apresentar o nosso Problema central e as dificuldades adjacentes a ele, para os quais, no

Capítulo Seguinte, pretendemos oferecer uma resposta. A primeira seção apresenta o

Problema da Direção. Ela começa tratando da tarefa, nada fácil, de dizer claramente em que

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consiste, realmente, esse Problema e constata que nem Russell nem os críticos da Teoria RM

oferecem uma definição para ele. Todos se limitam a ilustrá-lo com exemplos. Nós, porém,

enxergamos uma base comum presente em seus esforços ilustrativos, uma base comum que

permite assumi-lo como sendo a tarefa do sujeito da crença definir uma ordem precisa para os

termos no juízo quando a relação subordinada é assimétrica.

Em seguida, passamos a enfrentar o Problema da Direção em suas formas

tradicionais, a saber, como “Problema da Direção Estreita” e “Problema da Direção Larga”.

No primeiro caso nós assumimos o Problema da Direção Estreita, apoiados naquela base

comum tirada da maneira como Russell e os críticos da Teoria RM ilustram tal Problema,

como sendo a falta de um fundamento objetivo para que o sujeito da crença, num ato de juízo,

possa definir uma direção ou outra para os termos quando ele instancia a relação acreditar

envolvendo uma relação subordinada assimétrica. E, no segundo caso, nós consideramos o

Problema da Direção Larga como sendo o risco de o sujeito da crença colocar a relação

subordinada no lugar de um dos termos e questionamos a tentativa de fundamentar a acusação

de que a Teoria RM, além de não ter como evitar, resulta nessa consequência.

A segunda seção considera as duas linhas do que chamamos de “dificuldades

adjacentes” ao Problema da Direção. A primeira linha enfrenta as dificuldades da variação de

aridade, do número de lugares e do grau de ordem lógica da relação acreditar. Se a relação

subordinada for considerada um termo comum na crença, a dificuldade da variação assume

três aspectos muito inquietantes que agravam o Problema da Direção e inviabilizam toda e

qualquer instanciação da relação acreditar que envolva uma relação subordinada assimétrica.

A dificuldade da variação na aridade dos termos, por exemplo, consistirá numa

indeterminação insustentável, pois, a “ocorrência” da relação acreditar será apenas uma mera

lista de termos. Já a dificuldade da variação no número dos lugares dos termos nas

ocorrências da relação acreditar, desembocará numa sequência indefinida de lugares

desconexos, fazendo emergir a dificuldade da identificação dos papeis lógicos dos termos e

agravando ainda mais o desafio de encontra simbolismo formal para as ocorrências da relação

acreditar. E a dificuldade da variação de ordem lógica, além da dificuldade de reduzir a

ocorrência da relação acreditar a uma lista de termos numa única ordem lógica, causa uma

indefinição total para compreender em que ordem lógica a relação acreditar está ocorrendo.

Por sua vez, na segunda linha de dificuldades ao Problema da Direção, enfrentamos

as dificuldades relativas à identificação dos papeis lógicos dos termos e à construção de um

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simbolismo formal adequado para as ocorrências da relação acreditar. Desafios cruciais para

a Teoria RM. O primeiro deles consiste na tarefa de estabelecer uma caracterização segura e

um caminho lógico claro para a identificação dos papeis lógicos desempenhados pelos termos

numa ocorrência da relação acreditar. A superação desse desafio é de fundamental

importância porque, uma vez superado, ele deixa uma excelente base lógica para que o sujeito

da relação acreditar possa, num ato de crença, determinar a direção dos termos.

O segundo desafio dessa linha de dificuldades, por sua vez, enfrenta a tarefa de

encontrar um simbolismo formal eficaz para as ocorrências da relação acreditar. A

capacidade de variabilidade nas ocorrências da relação acreditar, tanto em número de termos

objetos quanto em número de termos universais, indica que ela não tem uma forma lógica

fixa. O que não quer dizer que não se possa alcançar um simbolismo adequado para entender

melhor a estrutura interna de suas ocorrências. Um simbolismo capaz de representar com

satisfatória clareza a configuração alcançada por ela a cada instância determinada.

A terceira seção apresenta a dificuldade que os simpatizantes do Problema da

Direção encontram para lidar com o papel relacionante da relação subordinada num ato de

crença. E, finalmente, a quarta seção fecha o Capítulo Segundo sumarizando os passos dados

nas seções anteriores. Seu objetivo central é destacar que tanto o Problema da Direção quanto

as dificuldades adjacentes a ele emergem da compreensão deficitária da natureza e da

operação lógica da relação subordinada. Este passo põe em evidência a necessidade de

chegarmos a uma compreensão justa da relação subordinada e da relação entre ela e a relação

acreditar num ato de crença, abrindo passagem para o trabalho do Capítulo Seguinte.

Por fim, o Terceiro e Último Capítulo da Tese está estruturado em três seções. A

primeira seção afasta-se do assunto da Teoria RM, a fim de considerar duas teorias do

patrimônio filosófico capazes de oferecer os suportes lógico-metafísicos necessários para uma

releitura bem sucedida da primeira versão da Teoria RM. Essas teorias são, respectivamente,

oferecidas pelas noções clássicas de agente movente e agente movido e pela interpretação das

relações multigrade de Alex Oliver e Timothy Smiley. A segunda seção retorna ao assunto da

Teoria RM e aplica as novas bases lógico-metafisicas, obtidas na seção anterior, à Teoria RM.

E, finalmente, na terceira seção deste Terceiro Capítulo, de posse da nova leitura, alcançada

com os recursos das seções anteriores, revisitamos os críticos da Teoria RM apresentados no

Capítulo Primeiro, bem como os Problemas e dificuldades apresentados no Capítulo Segundo

e mostramos que os resultados obtidos permitem responder a todos eles satisfatoriamente.

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1 A TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA

A Teoria RM apareceu de forma expressiva e foi defendida por Russell em três

valiosos textos.5 O primeiro deles foi On The Nature of Truth and Falsehood, de julho de

1910, publicado como capítulo VII de Philosophical Essays.6 O segundo foi Truth and

Falsehood, de 1912, publicado como capítulo XII de The Problems of Philosophy.7 E o

terceiro foi o manuscrito inacabado Theory of Knowledge, de 1913.8 Em cada um desses

textos, porém, Russell apresentou uma versão da Teoria RM na qual, mantendo a ideia central

de que acreditar é uma relação múltipla, apresentou novidades interessantes, muito embora,

nem sempre favoráveis.

Das três versões da Teoria RM, contrariando a crítica filosófica que, nivelando

demais a importância dessas três apresentações, tratou-as, de modo geral, como fracassadas

tentativas de encontrar uma saída para o Problema da Direção,9 nós entendemos que a

primeira é melhor e mais favorável a uma releitura bem sucedida, por três razões

fundamentais. Primeira, porque nela a relação subordinada pode ser tratada como um termo

especial em sua operação e no nível lógico que ocupa em comparação com os outros termos

da crença. Segunda, porque nela, tanto a relação acreditar quanto a relação subordinada,

podem ser vistas de modo operante, apesar de operarem em campos diferentes quando

ocorrem formando uma unidade de crença. E, a terceira razão, é porque nela tanto a operação

5Além desses textos, Russell ainda fez algumas sintéticas e importantes apresentações da teoria RM:

(i) Na introdução dos Principia Mathematica (RUSSELL, 1910b, p. 46);

(ii) em Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description, texto apresentado à Aristotelian

Society em 1911, e reimpresso em 1917 como capítulo X de Mysticism and Logic com o acréscimo de uma

nota de rodapé (RUSSELL, 1911, p. 159);

(iii) e, finalmente, numa das Conferências de 1918, publicadas em Logic and Kowledge (RUSSELL, 1918,

p. 216-227). 6 RUSSELL, 1910a, p. 170-185. 7 Idem., 1912, p. 186-203. 8 Idem., 1913, p. 105-155. 9 “As três versões restantes, como veremos, diferem no modo como Russell enfrenta a diferença entre ‘A

acredita que R(a, b)’ e ‘A acredita que R(b, a)’” (GRIFFIN, 1985, p. 214-215. Tradução nossa).

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da relação acreditar, quanto a operação da relação subordinada, são vistas de modo mais

complexo e mais rico do que pensaram os críticos.

Para justificar nossa posição, contudo, convém situar devidamente as três versões da

Teoria RM. Isso nos fará entender melhor as razões pelas quais assumimos que a primeira

delas é mais preferível que as outras, como também o que precisa ser feito para superar o

Problema da Direção, em seu duplo aspecto, e as dificuldades a ele adjacentes que constituem

nosso interesse geral aqui. De modo que, visando esses passos, dividiremos este Capítulo em

três seções. A primeira seção é dedicada à primeira versão da Teoria RM e estrutura-se em

subseções destinadas a tratar, respectivamente, da ruptura de Russell com a Teoria do Juízo

Dual, das características lógicas da relação acreditar, dos termos relata da relação acreditar e

da teoria da correspondência.

A segunda seção, por sua vez, é dedicada ás outras duas versões da Teoria RM. Cada

uma delas ainda estrutura-se em subseções que buscam capturar as novidades, as vantagens e

as desvantagens, respectivamente, da segunda e da terceira versão da Teoria RM. E,

finalmente, a terceira e última seção deste Capítulo é dedicada a considerar, respectivamente,

a crítica à Teoria RM, a justificativa do nosso apreço pela primeira versão da Teoria RM e a

constatação dos pontos que impediram o sucesso de Russell com ela. Pontos estes, que

procuraremos superar no Capítulo Terceiro, quando procuraremos desvencilhar a Teoria RM

dos obstáculos que, até então, impediram-na de vencer o Problema da Direção.

1.1 A PRIMEIRA (E MELHOR) VERSÃO DA TEORIA RM

Na primeira versão da Teoria RM, publicada em 1910,10 Russell procurou expor

cuidadosamente a natureza lógica da relação acreditar e as significativas mudanças ocorridas

no lugar do seu relatum, em comparação com a recém abandonada Teoria do Juízo Dual. A

relação acreditar passou a ser vista como uma relação múltipla, ligando um sujeito não a uma

proposição, mas aos vários termos da proposição. E onde antes havia uma entidade complexa

10 Vários comentadores destacam a existência de manuscritos que revelam Russell trabalhando na teoria da

relação múltipla já em 1906 (Cf. CONSUEGRA, 2005, p. 250. Confira ainda: GRIFFIN, 1985, p. 213). De modo

geral, porém, é consenso que a primeira versão publicada e cuidadosamente defendida é a de 1910. Assim sendo,

tomaremos ela como ponto de partida.

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como relatum passou a haver vários relata estruturados numa unidade pela operação da

relação acreditar.

Em vista de considerar bem a novidade dessa nova posição e as mudanças que ela

provocou na Teoria Russelliana do Juízo, vamos dividir esta seção em quatro subseções. A

primeira para tratar do rompimento de Russell com a Teoria do Juízo Dual, a segunda para

tratar da relação acreditar e suas principais propriedades lógicas, a terceira para tratar dos

relata da relação acreditar, seus tipos e funções, e a quarta para tratar da relação de

correspondência entre a unidade formada pelos relata da relação acreditar e o fato que (se

existir) torna aquela unidade verdadeira.

1.1.1 Ruptura com a Teoria do Juízo como Relação Dual

A Teoria RM surgiu da ruptura de Russell com a Teoria do Juízo como

Relação Dual. Uma ruptura muito significativa, porque é parte de uma mudança mais ampla e

mais importante no desenvolvimento do pensamento de Russell, que foi a mudança do

realismo radical para o realismo moderado ocorrida por volta de 1905. Desse modo, para

entender as raízes da sua ruptura com a Teoria Dual, bem como das novidades que a Nova

Teoria proporcionou, será valioso, de início, recordarmos as características gerais do seu

realismo radical e as dificuldades que ele encontrou durante o tempo que tentou defende-lo,

para tomar a decisão de superá-lo, pois, desse esforço para superá-lo surgiu a Teoria RM.

O realismo radical fora assumido por Russell a partir de 1889, após o seu

rompimento com o idealismo. Sua característica central reside na convicção de que toda

palavra que ocorre numa sentença, salvo as expressões lógicas, têm um significado. O

significado de um nome ou de um termo singular é o objeto que ele representa e o significado

de um verbo ou de um adjetivo é a propriedade ou a relação que ele representa.11 Foi à luz

desse princípio, então, e durante essa fase, que Russell aderiu a uma ontologia meinongiana,

aceitando a natureza não-existencial de certos objetos e estabelecendo uma distinção entre ser

e existir, a fim de poder falar sobre objetos não-existentes ou negar a existência deles sem cair

em contradição lógica.12

11 RUSSELL, 1903, §46. 12 Ibidem., §427.

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Tal como fizera Meinong, ele assumiu a ideia de que ser é uma propriedade que

pertence a todo termo que pode ser pensado, a tudo que pode ser contado como um ou tudo

que pode ocorrer numa proposição e, até mesmo, a toda proposição. Já existir é diferente de

ser, existir é uma propriedade que pertence a algumas entidades apenas. Nem tudo que há na

ordem do ser tem a propriedade existir. Algumas coisas, por exemplo, começam a existir em

determinado momento e outras deixam de existir, pois existir é uma propriedade das coisas

que estão relacionadas com um dado seguimento espaço-temporal.

Desse modo, Russell aceitou de bom grado a ideia de que não somente os termos

integrantes das proposições têm ser, mas, também que as proposições têm ser. Ou seja, que

proposições são entidades platônicas objetivas.13 Entidades não-mentais e não-linguísticas,

que servem como significado das sentenças e como objetos de crenças. E, além disso, elas

também são os legítimos portadores dos valores de verdade. Consideremos essas

características um pouco melhor.

Ao afirmar que proposições são entidades não-mentais, Russell queria dizer que elas

são entidades que pertencem à ordem do ser, não do existir. Ele queria dizer que elas não

precisam ser pensadas para existir, porque elas independem da mente. Elas são entidades

objetivas, compostas igualmente, de entidades objetivas, que são os objetos e os conceitos,

não de palavras ou pensamentos. Pode-se dizer mesmo que elas são pedaços da realidade,

aqueles pedaços da realidade que são os significados das sentenças. Russell chegou a dizer

que “algumas proposições são verdadeiras e algumas são falsas, exatamente, como algumas

rosas são vermelhas e algumas são brancas”.14

Ainda de acordo com o realismo radical assumido por Russell, proposições são

entidades não-linguísticas, isto é, elas são entidades compostas das próprias coisas e dos

conceitos objetivos, não de palavras. Os conceitos e as coisas são os significados das palavras

e as proposições são os significados das sentenças. E como proposições são compostas de

objetos do mundo, as proposições verdadeiras se identificam com os fatos, isto é, elas existem

no mundo, enquanto que as proposições falsas apenas subsistem, pois, elas são compostas de

objetos e coisas que não existem no mundo na maneira como estão estruturados nelas.

13 RUSSELL, 1903, §427. 14 Idem., 1973, p. 75.

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Além disso, para o idealismo radical, proposições existem como entidades

verdadeiras ou falsas, isto é, elas são os verdadeiros portadores dos valores de verdade. Uma

proposição, sustentava Russell naquela fase, é qualquer coisa que pode ser verdadeira ou

falsa.15 Uma proposição verdadeira liga os constituintes do mesmo modo em que eles estão

ligados no mundo e uma proposição falsa liga os constituintes de modo que eles não têm

correspondência no mundo. De modo que verdade e falsidade são propriedades das

proposições. Estas, são verdadeiras em si, porque relatam os termos adequadamente, isto é, de

modo correspondente a um fato do mundo, ou são falsas em si, porque relatam os termos

inadequadamente, isto é, de modo que não corresponde a nenhum fato do mundo.

Ao lado dessa concepção de proposição, ainda na fase do realismo radical, Russell

também assumiu a Teoria do Juízo que considera o ato de julgar ou acreditar como “uma

relação de dois lugares, mantida entre uma pessoa e uma proposição”.16 O que implicava dizer

também que, além de ser uma relação de dois lugares, a relação acreditar é uma relação de

aridade fixa, que liga o sujeito da crença a um objeto singular. De modo que, se quiséssemos

representar a estrutura de suas ocorrências num simbolismo formal, teríamos algo do tipo “B

(S, P)”, onde o elemento B representa a relação acreditar como relação que liga o sujeito S ao

objeto P, que é uma proposição.

Aconteceu, porém, que essa Teoria do Juízo Dual entrou em conflito com a teoria da

verdade como correspondência sustentada por Russell. De fato, como afirma Nicholas Griffin,

considerando que Russell admitiu haver ser nas proposições falsas, tanto quanto nas

proposições verdadeiras, “fica muito difícil ver como a verdade de uma proposição consiste

em sua correspondência com a realidade”.17 Haja vista que, naquela concepção de juízo e de

proposição, as crenças falsas também correspondem á realidade, pois, elas também são

entidades que existem objetivamente tanto quanto as proposições verdadeiras.

Realmente, se proposições falsas existem objetivamente tanto quanto proposições

verdadeiras, então, não há nenhuma diferença ontológica entre elas. Os dois tipos de

proposições têm ser igualmente. Acreditar numa proposição verdadeira ou acreditar numa

proposição falsa é estar relacionado com uma entidade existente objetivamente e a

correspondência existirá, infalivelmente, nos dois casos. Por que razão devemos preferir

15 RUSSELL, 1903, § 13. 16 WAHL, 1986, p. 383. 17 GRIFFIN, 1985, p. 214.

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acreditar nas proposições verdadeiras e não nas falsas? Que diferença faz acreditar numa

proposição verdadeira ou numa proposição falsa?

A resposta de Russell a questões desse tipo, naquela ocasião, foi algo bastante

próximo do relativismo e ele logo percebeu que teria de abandonar aquela Teoria do Juízo

Dual, bem como a sua concepção de proposição. De fato, a resposta de Russell consistiu em

assumir que, não havendo nenhuma diferença ontológica entre proposições falsas e

proposições verdadeiras, as pessoas escolhem as proposições verdadeiras por razões éticas

apenas, isto é, elas escolhem as proposições verdadeiras porque “é bom acreditar em

proposições verdadeiras e é mal acreditar em proposições falsas”.18

Esta decisão, claro, rapidamente incomodou Russell e ele procurou modificar tanto a

sua Teoria do Juízo, como a sua concepção de proposição. Esta deixou de ser considerada

uma entidade objetiva e passou a ser vista como uma construção da mente no ato de acreditar.

E a relação acreditar deixou de ser considerada “uma relação de dois lugares, mantida entre

uma pessoa e uma proposição, e passou a ser vista como uma relação de muitos lugares,

mantida entre uma pessoa e vários objetos”.19

Nesta Nova Teoria do Juízo, como veremos a partir de agora, a relação acreditar é

uma relação múltipla. Ela não somente tem vários lugares e envolve vários termos, mas,

também é uma relação de aridade variável. Quando um sujeito a instancia, por exemplo, ele

está em relação com vários termos e não com um. De modo que, no tocante ao pressuposto

central da antiga posição, que considerava a proposição como o objeto do juízo, Russell

declara o seu ultimato ao afirmar que, “no sentido em que é suposto ser o objeto do juízo,

‘proposição’ é uma falsa abstração, pois, o juízo tem vários objetos e não um”.20

1.1.2 A natureza lógica da relação acreditar

O epicentro das mudanças na Teoria do Juízo de Russell ao abandonar a Teoria

Diádica do juízo foi a mudança na concepção da relação acreditar ou julgar. Ela deixou de

18 “It is good to believe true proposition, and bad to believe false ones”. (RUSSELL, 1904, p. 474, itálicos

nossos). 19 WAHL, 1986, p.385. 20 RUSSELL 1910b, p. 46.

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28

ser considerada uma relação dual e passou a ser considerada uma relação múltipla.21 Enquanto

relação dual ela era vista como uma relação que ligava dois termos apenas, numa ocorrência

simples, mas como relação múltipla ela passou a ser vista como uma relação que liga um

sujeito a vários termos. Compreender a novidade sugerida por Russell nesta concepção de

relação acreditar e explorá-la adequadamente é de fundamental importância para entender a

Teoria RM apresentada na primeira versão.

Russell inicia sua apresentação do que consiste a relação múltipla julgar ou acreditar

afirmando:

A teoria do juízo que estou defendendo é que o juízo não é uma relação dual da

mente para um objeto singular, mas, uma relação múltipla da mente para vários

outros termos com os quais o juízo está relacionado.22

Aqui, nesta apresentação inicial do juízo como relação múltipla, já podemos perceber que,

para ocorrer em instâncias concretas, a relação acreditar conta com possibilidades e limites

bastante peculiares e interessantes. Alguns deles são compartilhados com outras relações

outros não. Entre suas possibilidades, de modo especial, destacam-se três: ela pode ligar um

sujeito a vários termos, ela pode ligar um sujeito a termos de tipos lógicos diferentes e ela

pode colar esses termos efetivamente criando uma unidade de crença. Vejamos isso melhor.

Em primeiro lugar, acreditar é uma relação capaz de ligar um sujeito a vários

termos. Ponto em que Russell é muito insistente:

Assim, se eu julgo que A ama B isto não é uma relação de mim para o “amor de A

por B”, mas, uma relação entre mim e A e amar e B.23

Nesta exemplificação dada por Russell, a relação acreditar ocorre como uma relação de

quatro termos, a saber, ele, que é sujeito do juízo, os objetos A e B e a relação amar. Mas ela

21 “A teoria do juízo que estou defendendo é que o julgar não é uma relação dual da mente para um objeto

singular, mas uma relação múltipla da mente para os vários outros termos com os quais o juízo está envolvido”

(RUSSELL, 1910a, p. 180, tradução nossa). 22 RUSSELL, 1910a, p. 180. 23 Ibidem., p. 180.

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29

pode variar na quantidade e ocorrer envolvendo mais termos. Quantos termos exatamente?

Russell não disse. Ele só determinou que devem ser mais de dois, mas, não estabeleceu um

limite máximo de aridade para ela.24 Ou seja, mesmo que Russell não tenha dito

expressamente, pela sua apresentação, podemos ver que uma das características centrais da

relação acreditar é que ela é uma relação de aridade variável. Ela pode tanto ocorrer, por

exemplo, como “Otelo acredita que Desdemona é fiel”, quanto como “Otelo acredita que

Desdemona luta com Cássio e Alexandre”, onde, na primeira situação ele envolve três termos

(Otelo, Desdemona e a propriedade ser fiel) e na segunda situação ela envolve cinco termos

(Otelo, Desdemona, a relação lutar com, Cássio e Alexandre). E a variação de aridade pode

prosseguir com instâncias ainda maiores.

Em segundo lugar, ela é capaz de ligar um sujeito a termos de tipos lógicos

diferentes. Na citação feita acima, por exemplo, a relação acreditar ocorre ligando o sujeito

aos objetos A e B e à relação amar. A e B são particulares e amar é um universal. E esta

capacidade que a relação acreditar tem de ligar um sujeito a objetos particulares por meio de

uma relação, estende-se a todas as suas ocorrências formando crenças relacionais. Com isso,

podemos identificar um dado constante na estrutura lógica de suas ocorrências, elas sempre

formam hierarquias lógicas que envolvem três níveis lógicos de termos. Dito de outro jeito,

ainda que a relação subordinada seja de segunda ordem ou de ordem superior, a ocorrência da

relação acreditar vai apresentar uma estrutura hierárquica que envolve três níveis lógicos, a

saber, o nível em que ela ocorre, o nível da relação subordinada e o nível dos termos ligados

por meio da relação subordinada.

E, em terceiro lugar, ao ligar seus termos, a relação acreditar pode criar fatos

bastante peculiares. Ao ligar seus termos, ela os unifica efetivamente numa unidade

complexa. Assim, como afirma Russell, quando alguém acredita que Carlos I morreu em sua

cama, a relação acreditar está de fato ligando esses termos. É um fato que aquele sujeito

acredita que Carlos I morreu em sua cama, ou seja, é um fato que esses termos estão ligados

na crença daquela pessoa. Mas esses termos não estão ligados assim fora daquela crença. E se

estivessem, ainda assim, estariam ligados na crença formando um complexo mental. Portanto,

quando a relação acreditar ocorre de fato, ela age efetivamente, ela cria um complexo

unificando os termos mentalmente e este complexo formado por ela pode ter uma

24 “Daremos o nome ‘relações múltiplas’ àquelas relações que requerem mais de dois termos”. (Ibidem., p.180.

Tradução nossa)

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30

correspondência no mundo ou não. Muitas vezes, os termos deste complexo podem estar

ligados assim apenas nela.

Em nossa pesquisa, porém, notamos que os críticos deram bastante atenção à

capacidade da relação acreditar proposta por Russell variar de aridade, mas, deram pouca

atenção à sua capacidade de ligar termos de tipos diferentes e, menos ainda, à sua capacidade

de colar, efetivamente, os termos numa ocorrência efetiva. Stout (1914-15), por exemplo,

assumiu que quando acreditar ocorre como uma relação múltipla, ela forma uma unidade

envolvendo sempre mais de dois termos. “A multiplicidade não está na relação, mas nos

termos”.25 A relação, propriamente falando, é uma relação singular. O que significa dizer que

ela é uma e a mesma relação sempre em suas ocorrências, os termos (múltiplos) é que variam.

Diferentemente de Stout, Nicholas Griffin (1985) achou que a variação de aridade

envolvida na relação acreditar proposta por Russell tem um sério problema. Segundo ele,

Russell teria que permitir diferentes relações para cada ocorrência da relação acreditar

envolvendo uma aridade diferente ou admitir que ela é uma relação de aridade variável. E, no

seu entender, Russell teria que rejeitar esta última possibilidade, “pois sua lógica não deixa

espaço para relações sem aridade definida”.26 Mas, com isso, Griffin apenas justifica sua

acusação de que Russell teria que rejeitar a possibilidade de tratar acreditar como uma

relação de aridade variável, pois, isso só justifica que a lógica de Russell não tem espaço para

relações sem aridade definida. Isso não nos impede de aceitar que a maneira como Russell

apresenta a relação acreditar permite compreendê-la como uma relação de aridade variável,

que pode ser devidamente interpretada numa lógica que comporte relações dessa natureza.

As posições de Stout e Griffin são valiosas porque elas põem em relevo a

importância do assunto da variação de aridade envolvida na relação acreditar, mas, elas

deixam intocada a questão da capacidade que a relação acreditar tem de acomodar essa

variação. E é fato que ela consegue acomodar a variação de aridade, formando uma unidade, a

cada ocorrência com aridade diferente. O que ela precisa é ser justificada nessa capacidade de

variar de aridade, não apenas constatada ou negada, e isso nós o faremos no capítulo terceiro

quando tratarmos da relação entre acreditar e a relação subordinada. Antes disso, porém,

precisamos notar que, até onde pudemos ver, ainda não foi dada a devida atenção à

25 STOUT, 1914-1915, p. 339. 26 GRIFFIN, 1985, p. 218.

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capacidade da relação acreditar ligar termos de tipos lógicos diferentes e de colar os termos,

de modo peculiar, quando os liga em instâncias efetivas.

A relação acreditar, como dissemos, tem a capacidade de ligar termos de tipos

lógicos diferentes, significa dizer que ela pode variar não somente de aridade, mas, também

de ordem lógica. Ela pode, por um lado, assumir uma ordem lógica igual ou superior a dois,

dependendo dos termos que ela envolve, haja vista que entre eles sempre há um termo de

primeira ordem lógica ou de ordem lógica superior. E, por outro lado, ela pode formar uma

hierarquia com os termos que ela envolve, aplicando um termo sobre outro, de acordo com a

natureza e a ordem lógica deles. O que mostra que acreditar não é uma relação caótica

logicamente em seu comportamento vertical, mas, que ela tem o mesmo comportamento

lógico de outras relações capazes de variar de ordem lógica em suas ocorrências.

Além da capacidade de ligar termos de tipos lógicos diferentes, percebemos também

que não se deu a devida atenção à capacidade que a relação acreditar tem de criar fatos ao

ligar e colar os termos. Esta capacidade revela a refinada força metafísica de sua operação,

muitas vezes, capaz até mesmo de ligar termos que não se encontram ligados no mundo. Ela

indica aquilo que mais interessava a Russell com a Teoria RM, a saber, que não há uma

entidade chamada “proposição”, previamente estruturada, mas, que a relação acreditar reúne

seus termos e cria a proposição, no ato de julgar, independentemente dos termos dessa

proposição estarem ou não unidos no mundo.

Em contrapartida a tudo isso, apesar da importância dessas possibilidades, a relação

acreditar também revela três limites que não podem passar despercebidos. Primeiro, a relação

acreditar liga um sujeito a vários termos, sendo um deles uma relação, juntando-os de uma só

vez num complexo de crença. Quando ela liga o sujeito aos vários objetos que se encontram

diante da mente do sujeito, separados e simultaneamente, ela os agrupa de uma só vez e forma

uma unidade de crença. Ela não pode ser várias instâncias de uma relação dual com cada um

dos termos, nem de uma relação com uma relação e seus termos já dados efetivamente.27

Se acreditar fosse várias instâncias de uma relação entre dois termos, ela não seria

uma relação com vários termos, mas sim um conjunto de várias ocorrências duais. E se a

relação acreditar fosse uma relação com uma relação já instanciada efetivamente, a crença de

Otelo que Desdemona ama Cássio, por exemplo, só seria possível se fosse verdadeira, isto é,

27 RUSSELL, 1910a, p. 174.

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se existisse de fato o amor de Desdemona por Cássio. Por conseguinte, a relação acreditar só

pode ser uma relação com uma relação universal e outros termos logicamente compatíveis

com a operação que o sujeito pode fazer por meio dela, enquanto relação subordinada.

Isso revela um terceiro limite fundamental da relação acreditar, a saber, que ela não

pode ligar seus termos sem o concurso lógico de outra relação. Ela precisa tomar a seu serviço

a operação lógica de outra relação e aplicá-la sobre os demais termos. O que nos remete de

volta à questão de fundo: qual é mesmo o vínculo entre a relação acreditar e a relação

subordinada, uma vez que esta é uma relação universal e necessária para que ela possa

instanciar-se? A resposta de Russell foi bastante evasiva. Para ele o sujeito tem diante da

mente uma relação universal e os demais termos, separadamente, e junta-os numa crença.

Mas, faltou ele dizer qual é, de fato, o ligame entre a relação acreditar e a relação

subordinada a fim de que isso possa acontecer.

Esta lacuna perdurou durante todo o tempo em que Russell manteve a Teoria RM e

se agravou ainda mais quando, a partir da segunda versão, ele assumiu que a relação

subordinada é um simples termo da crença. Mas, nós pretendemos superar tanto uma coisa

quanto a outra no Capítulo Terceiro. Agora, porém, precisamos considerar com atenção os

relata da relação acreditar.

1.1.3 Os relata da relação acreditar

Na primeira versão da Teoria RM, Russell deixou claro que os relata da relação

acreditar são de dois tipos lógicos diferentes. Ele reconheceu que a relação subordinada tem

um papel decisivo na determinação da direção dos termos, embora não tenha definido com

clareza em que consiste a sua interação com a relação acreditar no cumprimento deste papel,

e reconheceu também que os termos desempenham papeis lógicos diferentes na relação

subordinada, quando esta é uma relação assimétrica. Curiosamente, porém, Russell não

explorou a fundo estes pontos e seus críticos parecem ter seguido o mesmo caminho, pois, até

onde pudemos avançar na pesquisa, não encontramos nenhum esforço, dele ou dos críticos,

para extrair as devidas conseqüências, tanto da distinção de tipos lógicos nos relata, quanto da

diferença dos papéis lógicos dos termos impostos pela relação subordinada, quando é uma

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relação assimétrica. Consideremos, então, estes dois pontos separadamente, suas

conseqüências são valiosas para a Teoria RM.

1.1.3.1 Os relata da relação acreditar são de tipos lógicos diferentes

Segundo Russell, os termos com os quais o sujeito está em relação num ato de crença

são de dois tipos lógicos diferentes, a saber, particulares e universais. No caso das crenças

relacionais simples, que são as que nos interessam aqui, os particulares são os objetos do

mundo28 e os universais são as relações.29 O sujeito da crença pode entrar em contato com

eles de diferentes modos, na sensibilidade e na consciência, pode conhecer suas propriedades,

apreendê-los mentalmente e aplicar termos universais sobre termos objetos, conforme a

natureza deles permita que se combinem logicamente.

Um termo objeto pode ser ligado por uma relação a outro termo objeto ou a uma

qualidade. Mas ele tem limites ontológicos que precisam ser respeitados no ato da crença. Um

objeto não pode, por exemplo, instanciar outro objeto. Ele é único, individual, e com outro

objeto ele só pode manter algum tipo de relação.30 Ele também não pode ser instanciado por

um universal. Ele só pode instanciar um universal (se o universal for uma qualidade) ou ser

um termo na ocorrência de uma instância (se o universal for uma relação). Consequentemente,

não pode haver logicamente nenhuma crença que atribua um objeto a outro ou afirme que um

universal é instância de um objeto ou, simplesmente, que coloque um objeto ao lado de outro.

Quanto ao termo relação, ele é de um tipo lógico diferente daquele dos termos

objetos. Ele é, por natureza, uma entidade abstrata, que pode ser aplicada a termos objetos

diferentes e pode ocorrer, simultaneamente, em diferentes instâncias. Mas ele ainda pode ser

classificado em dois tipos lógicos diferentes. De acordo com sua natureza lógica, ele pode ser

uma relação simétrica ou assimétrica. As relações simétricas tanto podem separar seus termos

em lugares diferentes como, por exemplo, “João é irmão de Pedro”, como podem juntá-los

num único lugar sem nenhum prejuízo lógico, como “João e Pedro são irmãos”. As relações

assimétricas, porém, necessariamente precisam separar seus termos em lugares diferentes e só

podem instanciar-se ocorrendo entre eles. Mesmo que seus termos mudem de lugar e formem

um novo complexo lógico, elas ainda terão que continuar a ocorrer entre eles. Nunca podem

28 Russell não excluiu a possibilidade de crenças com relações envolvendo nomes vazios, mas elas constituem

um problema diferente do que nos ocupa aqui e por isso não trataremos delas. 29 RUSSELL, 1910b, p. 45. 30 IMAGUIRE, 207, p. 273.

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juntá-los num único lugar, porque elas impõem uma direção a eles e determinam papéis

lógicos diferentes, para serem desempenhados em cada um dos lugares a que eles forem

atribuídos.

Convém notar também que as relações, simétricas ou assimétricas, têm limites. Elas

são aplicáveis a alguns termos e a outros não. As relações assimétricas, por exemplo, impõem

uma direção por meio dos papéis lógicos dados aos termos e só podem se combinar,

logicamente, com termos capazes de suportar esses papéis. A relação amar pode ilustrar

perfeitamente isso com os objetos Desdemona e Cássio. Ela pode se combinar com

Desdemona e Cássio e formar o fato que descrevemos como “Desdemona ama Cássio”

porque Desdemona é um termo capaz de assumir o papel de sujeito da relação amar e Cássio

é um termo capaz de assumir o papel de relatum. Mas, amar, não pode se combinar, digamos,

com as relações ser pai de e estar ao norte de. Não há nenhum fato possível que possamos

descrever como “ser pai de ama estar ao norte de”. As relações ser pai de e estar ao norte de

não comportam os papéis lógicos impostos pela relação amar.

E a mesma coisa vale também para relações que ocorrem como termos de outra

relação. Com algumas relações pode haver combinação lógica, com outras não. As relações

causar e transformar, por exemplo, podem se combinar com a relação ser um modo de e

formar o complexo lógico “causar é um modo de transformar”, mas não podem se combinar

com a relação ser pai de. Não há nenhum complexo lógico possível que possamos descrever

como “causar é pai de transformar”. Na relação ser pai de as relações causar e transformar

não suportam, respectivamente, os papéis lógicos de sujeito e relatum.

Desse modo, a distinção dos tipos lógicos nos termos que compõem os relata da

relação acreditar, indica que não pode haver um juízo de crença relacional se as exigências

lógicas decorrentes da natureza lógica dos dois tipos de termos não forem devidamente

respeitadas. Sem aplicar corretamente o termo relação dentro de suas possibilidades e

exigências lógicas a termos logicamente possíveis não haverá juízo de crença. No máximo,

haverá uma lista de termos. Se a relação julgada for assimétrica acreditar, necessariamente,

terá que atribuí-la a termos que lhe permitam estruturar-se com um sentido, isto é, deverá

aplicar-lhe a termos compatíveis com sua natureza lógica. E, consequentemente, ela terá que

ocorrer entre os objetos, impondo-lhes os diferentes papéis que sua natureza exige. Limite

este extremamente importante para ser observado quando tratarmos do Problema da Direção

Larga.

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35

No caso descrito por (3), “Otelo acredita que Desdemona ama Cássio”, que tomamos

como exemplo padrão para trabalho, os termos que compõem os relata da relação acreditar

são os objetos denominados por “Desdemona” e “Cássio” e a relação subordinada amar.

Neste caso, Otelo está devidamente acquainted com cada um dos termos e reúne-os num juízo

de crença por meio da relação amar, que determina as suas condições de aplicação e os papéis

lógicos dos termos. Assim, a relação acreditar forma o complexo geral usando a relação amar

para ligar os termos numa direção lógica horizontal, de acordo com a natureza assimétrica da

relação amar e com os papéis lógicos que ela determina para os termos.

A constatação de que os termos que compõem o conteúdo da crença são de dois tipos

lógicos diferentes, portanto, deixa boas consequências para a Teoria RM. Ela revela que a

relação subordinada só pode ser aplicada aos termos objetos, nunca o contrário, e também

revela que, ao ser aplicada aos termos objetos, a relação subordinada é sempre de uma ordem

lógica superior a eles. Além disso, no caso da relação assimétrica, sua natureza também indica

que ela impõe papéis lógicos aos termos de maneira desigual. E, muito embora nem Russell

nem os seus críticos tenham explorado essas consequências, veremos, na terceira e última

seção deste Capítulo, que elas solapam as bases do Problema da Direção Larga e abrem

caminho para pensarmos como superar o Problema da Direção Estreita.

1.1.3.2 Os relata da relação acreditar desempenham papéis lógicos diferentes

Existem, pelo menos, duas maneiras básicas de distinguir os papéis lógicos, entre os

relata da relação acreditar, que não podem ficar despercebidas ou minimizadas. A primeira

delas é a distinção entre o papel lógico da relação subordinada e o papel lógico dos termos

ligados por essa relação subordinada, e a segunda é a distinção entre o papel lógico do termo

sujeito e o papel lógico do termo relatum, quando a relação subordinada é uma relação dual

assimétrica.

Para compreender bem a importância da primeira dessas duas modalidades de

distinções dos papéis lógicos entre os relata da relação acreditar na Teoria RM, convém levar

em conta a teoria das relações de Russell. Pois, a sua afirmação, ao tratar da relação

subordinada na primeira versão da Teoria RM, de que “podemos distinguir dois ‘sentidos’

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numa relação, conforme ela vá de A para B ou de B para A”31 é uma aplicação direta de sua

teoria das relações. E, de acordo com sua teoria, relações e objetos são entidades que

pertencem a tipos lógicos diferentes.

De acordo com sua teoria, se uma relação assimétrica envolver dois termos, por

exemplo, ela ocorrerá como relação de primeira ordem, o papel dela será o de relatar os

termos e o papel dos termos será o de serem relatados. Contudo, também nas ocorrências em

que a relação ocorre como relação de segunda ordem ou de ordem superior essa distinção de

papeis continua presente. O papel da relação será o de relatar e o papel dos termos, mesmo

sendo eles propriedades ou relações universais, será o de serem relatados. Por conseguinte, é

preciso levar isso em conta quando tratamos da relação acreditar, pois, o sujeito toma uma

relação como subordinada, numa instância efetiva da relação acreditar, será esta relação

subordinada quem determinará as condições para que a crença possa relatar os termos e a

primeira dessas condições é que os termos sobre os quais o sujeito da crença pretende aplicar

a relação subordinada suportem o papel de serem relatados por ela.

Por sua vez, a segunda maneira de distinguir os papéis lógicos dos relata numa

ocorrência da relação acreditar, a que nos referimos acima, a distinção entre os papéis lógicos

dos termos objetos, acontece quando a relação subordinada é assimétrica e dual. Neste caso, a

relação tem um sentido ou direção para os papéis lógicos que ela impõe aos termos. O termo

de onde a relação parte é o sujeito e o termo onde a relação termina é o relatum da

relação.32Os papéis lógicos de sujeito e relatum, portanto, são inerentes à relação assimétrica

dual e estão presentes em todas as suas ocorrências. Não há direção nas relações assimétricas

duais que não tenha termos desempenhando esses dois papéis.

Consequentemente, esses dois papéis lógicos impostos aos termos são um excelente

critério para que o sujeito da relação acreditar possa construir logicamente unidades de

crenças que envolvam uma relação assimétrica dual. Tudo que ele precisa é poder operar com

a relação subordinada e os termos capazes de suportar o papel de sujeito e de relatum, a fim

de aplicá-los aos lugares certos. E como acreditar é uma relação epistêmica, isso acontece

quando, estando acquainted com a relação e os objetos adequados, o sujeito pode reuni-los

naturalmente e formar crenças, atribuindo objetos aos papéis lógicos determinados por aquela

relação.

31 RUSSELL, 1910a, p. 184. 32 RUSSELL, 1903, p. 96.

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Um dos ganhos mais importantes dessa distinção dos papeis lógicos dos termos nas

relações assimétricas duais consiste em perceber que os termos têm lugares certos para

ocorrerem numa relação assimétrica dual e poderem desempenhar um papel lógico

determinado. E tanto o lugar do termo que desempenha o papel de sujeito como o lugar do

termo que desempenha o papel de relatum são determinados pela natureza da relação. Por

conseguinte, a relação acreditar, ao envolver uma relação assimétrica dual, terá que respeitar

isso e operar com essas exigências. Ela poderá escolher qual objeto ocorre num lugar ou

noutro na relação subordinada, mas não poderá mudar o papel que o termo deve desempenhar

num lugar e noutro.

Assim, se a relação subordinada for uma relação dual assimétrica e de primeira

ordem, então, ela só poderá envolver objetos e somente objetos poderão desempenhar nela o

papel de sujeito ou de relatum. O sujeito da relação acreditar só poderá escolher qual objeto

desempenhará um papel e qual desempenhará o outro. Os lugares para eles são determinados

pela relação subordinada. Caso ela inverta os lugares dos termos na relação subordinada,

saberá que inverteu os papéis desempenhados pelos termos também se estiver devidamente

acquainted com aquela relação. Com base nisso, como exemplo, podemos olhar para o caso

que tomamos como padrão no início e dizer que o juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio

é diferente do juízo de Otelo que Cássio ama Desdemona por dois motivos. No primeiro caso

Otelo põe Desdemona no lugar de sujeito da relação amar e põe Cássio no lugar do relatum

da relação amar. Enquanto que no segundo caso Otelo inverte a direção, põe ambos em

lugares opostos e, consequentemente, desempenhando os papéis opostos.

Lamentavelmente, porém, Russell também não explorou a fundo esta consequência

da distinção dos papéis lógicos dos termos na ocorrência das crenças que envolvem uma

relação assimétrica dual. Seria preciso, por exemplo, explicar como funcionam logicamente

os lugares dos termos quando numa ocorrência a relação contém um e quando ela contém

vários objetos desempenhando o mesmo papel lógico. Por isso, como veremos no Capítulo

Terceiro, nós devemos e iremos explorar esse caminho. Ele abre uma trilha promissora para

explicar o funcionamento da Teoria RM e para sair do Problema da Direção Estreita.

1.1.4 A relação de correspondência entre crenças e fatos

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De acordo com a Teoria RM, uma crença é verdadeira se ela corresponde a um fato e

é falsa se ela não corresponde a nenhum fato. Mas em que consiste exatamente essa relação de

correspondência? Russell a apresentou de dois modos básicos ao longo das três versões da

Teoria RM. Na primeira e na segunda versão ela foi apresentada como uma relação de

coincidência lógica dos termos e sua ordem na relação acreditar com os termos e sua ordem

no fato. Já na terceira versão ela foi apresentada como uma função dos termos da relação

acreditar e sua ordem, nos termos do fato correspondente e sua ordem. Consideremos melhor

uma apresentação e outra.

Na primeira versão da Teoria RM, a relação de correspondência foi apresentada do seguinte

modo:

O objeto complexo “correspondente” requerido para tornar o nosso juízo verdadeiro

consiste de A relatado a B pela relação que estava diante de nós no nosso juízo.

Nesta maneira de Russell apresentar a relação de correspondência entre a crença e o fato,

antes de tudo, devemos notar que a relação subordinada aparece no jogo da relação de

correspondência como um ponto de Arquimedes, isto é, como um ponto que equilibra os dois

lados da correspondência. Afinal de contas, a correspondência que torna a crença verdadeira

se dá quando o termo A está relatado ao termo B “pela relação que estava diante de nós no

juízo”.33

Ora, duas coisas muito importantes para a Teoria RM decorrem desse jeito de ver a

relação de correspondência. A primeira delas é que, tal qual um ponto arquimediano, que

indica equilíbrio entre dois corpos, para que haja correspondência entre a crença e o fato, os

termos e a ordem deles na crença devem corresponder aos termos e à ordem deles no fato.

Trata-se do caráter de coincidência geral, os termos e a ordem em que eles se encontram na

crença coincidem com os termos e a ordem deles no fato. Por este aspecto, a crença de Otelo

que Desdemona ama Cássio será verdadeira se existir o fato em que Desdemona e Cássio,

nesta ordem, estejam ligados pela relação amar.

33 RUSSELL, 1910a, p. 183.

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39

A segunda coisa importante na descrição que Russell faz da relação de

correspondência nesta primeira versão da Teoria RM é que, se a correspondência consiste nos

objetos A e B estarem relatados no fato pela relação que estava diante da mente no juízo,

então, essa relação está exercendo uma operação e desempenhando uma função no fato que a

relação que estava diante da mente precisa exercer e desempenhar logicamente na crença

também. Trata-se da operação relacionante e da função lógica de ligar exercidas sobre os

objetos na crença. Ou seja, a relação que estava diante da mente também teria que estar

exercendo logicamente a operação relacionante e cumprindo a função de ligar os objetos, caso

contrário não haveria uma correspondência completa. Russell não afirmou isso

explicitamente, contudo, podemos inferir isso tranquilamente da sua afirmação, segundo a

qual, a relação subordinada “não pode estar diante da mente abstratamente, mas, deve estar

indo de A para B, mais do que de B para A”.34 Pois, se ela deve estar diante da mente indo A

para B, por exemplo, então é porque ela está exercendo a operação relacionante e cumprindo

logicamente a função de ligar os objetos na crença.

Na segunda versão da Teoria RM, contudo, a relação de correspondência foi

apresentada por Russell do seguinte modo;

Quando a crença é verdadeira, há outra unidade complexa na qual a relação que era

um dos objetos da crença relaciona os outros objetos. Assim, por exemplo, se Otelo

acredita verdadeiramente que Desdemona ama Cássio, então, há a unidade

complexa, “o amor de Desdemona por Cássio” que é composta exclusivamente dos

objetos da crença, na mesma ordem que eles estavam na crença, com a relação que

era um dos objetos ocorrendo agora como o cimento que liga os objetos da crença.

Por outro lado, quando uma crença é falsa, não há tal unidade complexa composta

unicamente dos objetos da crença. Se Otelo acredita falsamente que Desdemona ama

Cássio, então, não há a unidade complexa consistindo “do amor de Desdemona por

Cássio”.35

Como podemos notar, nesta segunda apresentação da relação de correspondência

feita por Russell, aparece uma significativa mudança. A relação subordinada continua a ser o

centro da questão, mas ela não é mais vista como o ponto arquimediano da correspondência.

Os elementos destinados à correspondência já não encontram equilíbrio na relação

subordinada. Ela passa a ser vista como um objeto ao lado dos outros objetos da crença. Se

34 RUSSELL, 1910a, p. 180. 35 Idem., 1912, p. 199-201. (Itálicos do autor)

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houver um fato correspondente, de acordo com esse novo ponto de vista, a relação

subordinada vai aparecer no fato como relação exercendo a operação relacionante e

cumprindo a função de ligar os fatos, mas na crença ela será apenas um objeto e não exercerá

logicamente essa operação nem desempenhará essa função.

Ora, isso altera muita coisa na relação de correspondência proposta na primeira

versão da Teoria RM, pois a correspondência fica limitada a alguns elementos apenas, a saber,

ela passa a ser uma correspondência entre os termos e a ordem deles na crença, com os termos

e a ordem deles no fato, mas, a operação relacionante e a função de ligar sobre os termos da

relação subordinada no fato não têm correspondência na relação subordinada na crença. Por

conseguinte, podemos dizer que a relação de correspondência apresentada por Russell na

segunda versão da Teoria RM tem um sério problema de desequilíbrio, a operação e a função

da relação subordinada presentes no fato correspondente não encontram um paralelo na

operação e na função da relação subordinada na crença.

Dito de outra maneira, ao reduzir a relação subordinada a um objeto comum da

crença, Russell acabou fazendo uma imagem da crença que, simplesmente, pode ser vista

como uma justaposição dos termos. Mas, se os termos só estão justapostos na crença, a

correspondência com o fato fica reduzida a alguns elementos apenas. Na crença encontramos

os termos, a ordem dada a eles e a intenção de associá-los a um fato, enquanto que no fato nós

encontramos os termos, a ordem dada a eles pela relação que era um objeto da crença e essa

relação exercendo a operação relacionante e a função de ligar sobre os termos. Uma ilustração

simbólica desta maneira de ver a relação de correspondência na segunda versão com a

maneira de vê-la na primeira versão, agora, parece muito útil:

PRIMEIRA VERSÃO

SEGUNDA VERSÃO

Crença → Fato Crença → Fato

Termos → Termos Termos → Termos

Ordem → Ordem Ordem → Ordem

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41

Relação subordinada

[relacionando e ligando

logicamente os termos]

→ Relação subordinada

[relacionando e

ligando efetivamente

os termos]

Relação subordinada

[como um objeto ao

lado dos demais]

→ Relação subordinada

[relacionando e

ligando efetivamente

os termos]

Percebe-se que o modo como a relação subordinada é vista nas duas versões difere

profundamente. E, por conseguinte, se levarmos a sério as condições em que a segunda versão

põe a relação subordinada, a relação de correspondência ficará reduzida a uma (gratuita)

intenção de associar a ordem de termos formada na crença a um fato. Russell, inclusive, pode

ser entendido como aceitando essa perigosa consequência, ao concluir essa segunda

apresentação da teoria da correspondência afirmando que “a crença é verdadeira quando ela

corresponde a um complexo associado e é falsa quando ela não corresponde”.36 Pois,

corresponder a um complexo “associado” quando a crença pode ser considerada uma mera

justaposição de termos é bastante gratuito.

Na terceira versão da Teoria RM, por seu turno, Russell apresentou a relação de

correspondência do seguinte modo:

É óbvio que se uma crença é verdadeira depende apenas dos seus objetos. Se eu

acreditar que A é o pai de B, a verdade da minha crença depende da relação física de

A e B e não de mim. A crença é verdadeira quando os objetos estão relatados como

a crença assere que eles estão. Assim, a crença é verdadeira quando há um certo

complexo correspondente, que deve ser uma função definível da crença, o qual

chamamos de complexo correspondente ou fato correspondente.37

A relação de correspondência agora é apresentada como uma função do complexo formado na

crença sobre o fato correspondente no mundo. De acordo com Russell, nesta terceira versão,

ao formar uma crença, um sujeito cria um complexo mental e o assere, de modo que a crença

será verdadeira quando os objetos estão relatados “como a crença assere que eles estão”. Ora,

isso pode mesmo ser visto como uma função onde a crença é a imagem de um fato

correspondente tal qual o contradomínio é uma imagem correspondente ao domínio numa

função. A relação de correspondência entre a unidade da crença e o fato real resulta numa

função bijetora cujo domínio é uma n-upla ordenada dos termos no juízo e cujo

36 RUSSELL, 1812, p. 201. (Itálicos do autor). 37 Idem., 1913, p. 144. (Itálicos do autor).

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42

contradomínio é o fato formado pelos objetos correspondentes, na ordem que estão no juízo

quando este é verdadeiro.

Uma função, como se sabe, é um tipo particular de relação que pode ser representada

formalmente como “f(x) = y”, onde “x” é uma variável que representa os elementos que

constituem os argumentos da função e “y” é uma variável que representa os elementos que

correspondem aos argumentos da função, ou seja, os valores da função. Assim, no caso de um

par ordenado (x, y), “a cada elemento, x, do par, nós atribuímos o segundo elemento, y, do

par”.38Por exemplo, consideremos A e B dois conjuntos sobre os quais se pode aplicar a

função f(x) = y de A em B:

- o conjunto A será chamado “domínio” da função f(x) = y,

- o conjunto B será chamado “contradomínio” da função f(x) = y,

- os elementos de A serão chamados “argumentos” da função f(x) = y,

- os elementos de B são chamados de “valores” da função f(x) = y

- e cada elemento de B que é associado a um elemento de A pela função f(x) = y é chamado

de “imagem”.

Assim, consideremos, por exemplo, que a é um elemento do conjunto A e que b é um

elemento do conjunto B. E, consideremos ainda que b é de fato o elemento do conjunto B que

corresponde ao elemento a do conjunto A. Neste caso, se aplicarmos a função f(x) = y, nas

condições indicadas acima, atribuindo nela como argumento o elemento a do conjunto A,

obteremos exatamente o elemento b como valor e imagem de a, no contradomínio que é o

conjunto B. Haja vista que o específico da função bijetora é que cada argumento de A tem um

valor em B que é sua imagem.

E se agora aplicarmos isso à relação de correspondência que torna uma crença

verdadeira, teremos a função corresponde a, que podemos simbolizar com “C(x) = y”, do

38 MORTARI, 2001, p. 54.

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complexo do juízo verdadeiro (J), “Desdemona ama Cássio”, sobre o complexo

correspondente do fato (F), que consiste de Desdemona relacionada com Cássio pela relação

amar. Podemos representar a relação de correspondência dos elementos do complexo J no

complexo F na função “C(x) = y” do seguinte modo:

C(x) = y

C(“Desdemona”) = Desdemona

C(“ama”) = ama

C(“Cássio”) = Cássio

C(“Cássio ama Desdemona”) = Cássio ama Desdemona (fato).

E assim, podemos ver que cada argumento do domínio, que é o conjunto dos termos

do juízo (J), tem um valor, como imagem, no conjunto do contradomínio, que é o conjunto

dos elementos que compõem o fato (F). No caso acima, onde tomamos o juízo como sendo

verdadeiro, a função “C(x) = y” é sobrejetora, pois, “não há nenhum elemento do

contradomínio que não seja imagem de algum elemento do domínio”.39 Se, por exemplo, não

houvesse no fato que constitui o conjunto do contradomínio um valor correspondente para o

argumento “ama” na função “C(‘ama’)”, então, a crença seria falsa. Não haveria a relação de

correspondência nesse elemento.

A consideração das apresentações da relação de correspondência nas três versões da

Teoria RM, então, indica a importância e a centralidade da relação subordinada para que o ato

de crença seja representativo e a correspondência seja devidamente alcançada. Ela indica que

a relação subordinada precisa, de algum modo, exercer a operação relacionante e a função de

ligar sobre os objetos na crença. Se a crença verdadeira é aquela em que a relação, de fato,

liga os termos objetos na mesma ordem que eles tinham na crença, então, isso implica que a

relação subordinada tem que estar ligando nessa mesma ordem os termos no juízo. Ela não

pode ser um termo no mesmo nível lógico dos demais. E isso é possível como veremos

39 MORTARI, 2001, p. 54.

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melhor no Capítulo Terceiro, porque ela é um instrumento ativo, que pode ser acionado pelo

sujeito da relação acreditar, que posiciona e liga logicamente os termos da crença.

A centralidade da relação subordinada para a relação de correspondência também

aponta para uma coisa importante na relação acreditar. Ele indica que a relação acreditar tem

uma dimensão finalista, isto é, que ela sempre visa um alvo e este alvo lhe dá um referencial

para posicionar os termos. Tal referencial é o fato pretendido correspondente cuja ordem dos

termos é perseguida pela relação acreditar que, por meio da relação subordinada liga os

termos objetos visando construir logicamente aquela ordem. Consequentemente, isso indica

que acreditar toma a relação subordinada com uma (e somente uma) intenção, a de atingir um

(e somente um) alvo correspondente, a cada vez. Por isso, como insistiu Russell, o fato

correspondente é “a condição necessária e suficiente da verdade da relação acreditar”.40 E

como a relação acreditar visa sempre a verdade, embora nem sempre a alcance, o fato

correspondente na intenção do sujeito lhe dá uma (e somente uma) direção para os termos,

que deve ser alcançada no juízo, a fim de que a relação acreditar possa atingir a instanciação

devida e formar a representação lógica do fato a ponto da relação de correspondência poder

ser verificada.

A importância da relação subordinada para que haja a relação de correspondência,

indica ainda que ela é um termo determinante tanto para a formação da crença quanto para a

relação de correspondência. Se ela não for operante no juízo, isto é, se ela não determinar as

suas condições lógicas de funcionamento e não exercer a operação relacionante sobre os

objetos no juízo, a crença se reduz a uma mera justaposição dos termos. E se ela não tem a

função de ligar logicamente os objetos no juízo, a relação de correspondência fica

comprometida, pois no fato correspondente ela tem essa função efetivamente. Ora, se ela for

uma relação assimétrica, isso implica que ela tem que relacionar logicamente e exercer a

função de ligar sobre os termos, determinando, na crença, os lugares e os papéis lógicos que

os termos ocupam e exercem visando alcançar sua correspondência no fato asserido. Caso

contrário, a relação de correspondência também ficará comprometida.

Por fim, salientamos também que os detalhes encontrados nas apresentações da

relação de correspondência feitas pelas três versões da Teoria RM, nos permitem ver porque a

primeira delas se destaca favoravelmente das demais. Nela, como vimos, a relação

40 RUSSELL, 1910a, p. 183.

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45

subordinada foi apresentada de tal modo que, ainda Russell que não tenha afirmado

explicitamente, podemos entendê-la como exercendo a operação relacionante e a função de

ligar logicamente sobre os termos. Como entender o seu modo de ser relacionante e de

cumprir essa função de ligar sobre os termos, contudo, será um passo que daremos apenas no

Terceiro Capítulo. A apresentação que a segunda versão da Teoria RM fez da relação de

correspondência reduziu a relação subordinada a um objeto comum no juízo e comprometeu

seriamente tanto a relação de correspondência quanto a unidade da crença. E, na apresentação

da relação de correspondência da terceira versão, encontramos de novo uma ótima

aproximação da proposta feita pela primeira versão, pois Russell voltou a assumir que a

crença verdadeira é aquela em que os objetos estão como a crença assere que eles estão, ou

seja, de novo podemos entender que a relação subordinada exerce a operação relacionante e a

função de ligar sobre os objetos na crença e, por isso mesmo, ela é verdadeira quando faz isso

do mesmo modo que a relação opera no fato correspondente.

1.2 AUMENTANDO AS DIFICULDADES: AS VERSÕES DE 1912 E 1913

Após a publicação de 1910, Russell ainda apresentou e defendeu cuidadosamente a

Teoria RM mais duas vezes, uma em 1912 e outra em 1913. Nessas duas versões, ele tentou

dar uma resposta à questão da natureza da relação subordinada na constituição da unidade de

crença e fez, pelo menos, quatro novas tentativas de superar o Problema da Direção. Na

versão de 1912 ele procurou explicitar um pouco mais a tarefa da relação acreditar na

determinação da direção dos termos e na versão de 1913 ele dedicou-se ao uso de complexos

associados para descrever crenças permutativas, ao assunto da forma lógica e à teoria das

posições dos termos na relação. Para facilitar a exposição das duas versões, vamos dividir esta

seção em duas subseções, a primeira para examinar a versão de 1912 e a segunda para

examinar a versão de 1913.

1.2.1 A versão de 1912: direção e classificação dos termos na relação acreditar

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A segunda versão da Teoria RM foi publicada em The Problems of Philosophy,

1912, sob o título Truth and Falsehood. Nela, Russell continuou seu esforço de explicitação

da natureza da relação múltipla acreditar e tentou classificar melhor os seus relata apesar de

continuar sem conseguir definir adequadamente a relação entre acreditar e a relação

subordinada na constituição da unidade de crença. Visando uma boa apreciação dos resultados

desta versão, vamos dividir esta subseção ainda em dois pontos, o primeiro para tratar da

relação acreditar e o segundo para tratar da relação entre acreditar e a relação subordinada.

1.2.1.1 O realismo operante da relação acreditar

Nesta versão, Russell procurou explicitar o modo como a relação acreditar posiciona

e liga os seus termos. Segundo ele, a mente cria a crença41 posicionando os termos numa

determinada ordem, ligando-os numa unidade lógico complexa. Mas, como foi visto acima,

essa já era praticamente a posição da primeira versão. Ali, Russell também admitia que a

relação acreditar posiciona os termos numa ordem e que esta ordem deve coincidir com a

ordem dos termos no fato correspondente para que a crença seja verdadeira. A novidade é que

agora acreditar é considerada a única responsável pelo sentido dos termos, enquanto que na

primeira versão o sentido era da responsabilidade da relação subordinada. Agora, este

trabalho passa a ser feito exclusivamente pela relação acreditar que posiciona e liga os

termos. O problema, já se pode entrever, é que Russell não chegou a dizer como é que ela,

sozinha, faz efetivamente essas duas coisas.

Como ela posiciona seus termos? A resposta de Russell, bastante evasiva, foi posta

nos seguintes termos:

Observe-se que a relação julgar tem o que é chamado de “sentido” ou “direção”. Nós

podemos dizer, metaforicamente, que ela põe seus objetos numa certa ordem, que

pode ser indicada pela ordem das palavras na sentença.42

A resposta de Russell para a pergunta acima não diz como a relação acreditar posiciona os

termos, mas apresenta uma novidade interessante, se a compararmos com a primeira versão.

41 RUSSELL, 1912, p. 202. 42 Ibidem., p. 198.

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Ela assume que a relação acreditar é portadora de “um sentido ou direção” que lhe permite

posicionar os termos na ordem correta.43 Desse modo, a tarefa de posicionar os termos na

ordem certa, passa a ser responsabilidade exclusiva da relação acreditar e, uma vez que a

ordem dos termos é constituída no juízo, o sujeito da crença pode expressá-la na linguagem

pela ordem dada aos termos linguísticos. Mas, devemos insistir, nada disso diz como a relação

acreditar realiza o trabalho de impor uma ordem aos termos. Afinal de contas, para posicionar

os termos numa ordem ela tem que ter as condições lógicas determinadas, porque ela precisa

de uma razão para colocar um termo numa posição e o outro noutra e Russell não diz quais

são essas condições lógicas que justifiquem a tarefa da relação acreditar impor as posições

aos termos.

O que caracterizaria as posições em que o sujeito da relação acreditar deve pôr os

termos e com que determinações lógicas ele os posiciona numa direção e não noutra? Ao

invés de tentar esclarecer esses pontos, Russell se limitou a constatar, mais uma vez, que a

diferença nas crenças formadas com os mesmos relata reside nas posições dadas a eles na

relação acreditar. Isso é verdadeiro, mas, sobre como o sujeito da crença faz isso, exatamente,

ele não disse nada.

Ainda sobre a questão das posições dos termos, devemos notar que na primeira

versão da Teoria RM Russell trabalhou com sua teoria das relações, que usava a noção de

“lugares” dos termos. E nesta segunda versão, ele trabalha com a noção de “posições dos

termos”. Contudo, ele não apresentou nenhuma razão para a mudança, nem tão pouco discutiu

a diferença entre uma noção e outra. O que parece indicar que ele não tinha a devida clareza

sobre como conciliar a noção de “posições” com a de “lugares” dos termos no jogo dinâmico

da operação da relação acreditar com a relação subordinada. O fato é que ele nem conseguiu

justificar adequadamente a operação de posicionar os termos por parte da relação acreditar,

nem conseguiu conciliar as ideias de lugares e posições ocupados pelos termos com a

operação da relação subordinada, e essas duas lacunas, como veremos na próxima subseção,

repercutiram de maneira devastadora na sua teoria das posições e na sua tentativa de encontrar

um simbolismo formal capaz de capturar com sucesso a estrutura das ocorrências da relação

acreditar.

43 Ibidem., p. 198.

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Além disso, a afirmação de que a relação acreditar liga os termos também não ficou

devidamente justificada por Russell na segunda versão. Como ela liga os termos? A resposta

de Russell foi que ela é o cimento da construção, isto é, ela cola os termos formando com eles

um complexo lógico. Mas a relação acreditar não pode simplesmente colar os termos sozinha,

ela precisa da operação lógica da relação subordinada também. Consideremos a situação

expressa por (5):

(5) Otelo acredita que Desdemona, Cássio, Alexandre, Hypatia.

O que a “frase” (5) expressa não é uma unidade de crença. Não existe um complexo

geral formando uma unidade em (5) e, muito menos, um complexo subordinado. A relação

acreditar não pode colar os termos sem a cooperação de um termo relação auxiliar. Seus

poderes são radicalmente limitados para que ela possa, sem o auxílio de outra relação, formar

uma unidade lógica com uma sequência de objetos apenas.

Para justificar devidamente como a relação acreditar liga os termos, Russell

precisaria aceitar a colaboração lógica do termo relação que ocorre dentro da crença. Mas a

falta de clareza sobre a relação entre acreditar e a relação subordinada o impediu de dar esse

passo. O resultado foi trágico, como veremos a seguir, pois ele passou a tratar de modo

inadequado a relação subordinada.

1.2.1.2 A relação entre acreditar e a relação subordinada

Na segunda versão da Teoria RM, Russell tratou os termos que constituem os relata

da relação acreditar numa determinada ocorrência como objetos. E a aplicação dessa posição

à relação subordinada foi bastante desastrosa para a Teoria RM:

Quando ocorre um ato de crença, há um complexo em que “acreditar” é a relação

unindo, e o sujeito e os objetos são arranjados numa certa ordem pelo “sentido” da

relação acreditar. Entre os objetos, como vimos ao considerar “Otelo acredita que

Desdemona ama Cássio”, um deve ser uma relação, que nesta instância é a relação

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“amar”. Mas, esta relação, como ela ocorre no ato de acreditar, não é a relação que

cria a unidade do complexo geral constituído do sujeito e dos objetos. A relação

“amar”, como ela ocorre no ato de acreditar, é um tijolo na estrutura e não o

cimento.44

Como podemos ver, ao considerar os relata da crença como objetos, Russell nivela todos eles

num único nível lógico. E, ao fazer isso, ele reduz a relação subordinada à condição de objeto

da crença, como os demais objetos, e lhe nega toda e qualquer função relacionante na

formação da crença. Sim, podemos concordar com ele que quem forma o “complexo geral”,

ligando o sujeito aos relata, é a relação acreditar. Mas, não podemos concordar com ele em

afirmar que a relação subordinada, como ela ocorre na crença, seja apenas um “tijolo na

estrutura”, sem nenhuma função de ligar os objetos.

Parece interessante, ainda, notarmos que Russell demonstra certa insegurança ao

assumir essa posição e isso nos encoraja a buscar uma alternativa para ela. Por um lado, ele

diz que entre os relata um termo deve ser uma relação e, por outro lado, ele nega que esse

termo relação participe da formação do complexo geral, de algum modo, relacionando

também. A confissão do engano, ainda mesclada de certa vaidade, e de que esse não pode ser

o caminho certo para a Teoria RM, contudo, só veio alguns anos depois:

Este é um ponto no qual penso que a teoria do juízo que formulei há alguns anos era

um pouco simples demais, porque tratei então do objeto verbo como se se pudesse

colocá-lo como um objeto exatamente como os termos, como se se pudesse colocar

“ama” no mesmo nível de Desdemona e Cássio, como um termo para a relação

“acredita”.45

Realmente, tratar aquilo que o verbo representa na linguagem como algo que pode ser

colocado ao lado dos outros termos não é “um pouco simples demais”. Ao contrário, é muito

“simples demais”, pois, resulta num caráter duplamente conflitante e inconciliável para a

relação subordinada. De fato, quando Otelo acredita que Desdemona ama Cássio, sua crença

envolve três objetos, a saber, Desdemona, Cássio e a relação amar. Se a crença for verdadeira,

então haverá “outra unidade complexa, composta exclusivamente dos objetos da crença, na

44 RUSSELL, 1912, p. 199-200. 45 RUSSELL, 1918, p. 226.

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mesma ordem que eles tinham na crença, com a relação, que era um dos objetos, ocorrendo

agora como o cimento que liga os outros objetos da crença”.46 Mas, se o juízo fosse falso, por

exemplo, não haverá outro complexo onde a relação amar ocorra como “cimento”, ou seja, ela

permanece apenas um objeto na crença, onde não tem nenhuma função de ligar os outros

objetos. E esse é o ponto mais lamentável da segunda versão da Teoria RM, Russell não notou

que “ligar” os termos na crença é diferente de “ligar” os termos efetivamente no fato, talvez,

por ter ficado preso à ideia de que os relata estão todos no mesmo nível.

É importante ainda conjecturar um pouco aqui. O que teria levado Russell a nivelar

os relata da relação acreditar desse modo? Ao tratarmos da primeira versão da Teoria RM já

assumimos que ele não conseguiu determinar com clareza a relação entre acreditar e a relação

subordinada. Mas, além disso, também parece pertinente pensarmos que contribuiu muito

para isso o seu desejo de acentuar o realismo ontológico das relações e não ter distinguido

bem a relação ocorrendo efetivamente num fato da relação ocorrendo logicamente no juízo.

Primeiro, ao que parece, Russell queria acentuar que quando o sujeito da crença

forma um juízo, ele está em relação com uma entidade abstrata, universal, extra-mental, quer

esta entidade esteja instanciada ou não. E se esta era mesmo sua motivação, então ela não é

tão censurável. O que ele fez a partir dela, sim, ela não. Haja vista que o que ela quer destacar

é mesmo muito importante. Ela está realçando a distinção de tipos lógicos entre os termos e

está sugerindo que se pense melhor sobre o modo como a relação acreditar pode lidar com

aquela entidade abstrata universal de modo subordinado combinando-a com objetos ou

combinando objetos por meio da sua mediação.

Segundo, também parece que Russell não percebeu a necessidade de distinguir entre

ligar os objetos efetivamente no mundo e ligar os objetos logicamente na crença. O fato de

não existir um complexo correspondendo à crença, isto é, o fato da relação amar não ser

instanciada por Desdemona e Cássio efetivamente, não significa que ela não esteja ligando os

objetos logicamente no pensamento de Otelo. Seria como dizer que a propriedade estar afiado

qualifica efetivamente o bisturi no momento em que o médico corta o paciente e não o

qualifica logicamente no momento em que a assistente, falsamente, adverte o médico dizendo:

“está afiado”. E isto não é o caso. Tanto é verdade que a mesma propriedade qualifica

logicamente o bisturi na afirmação falsa feita pela assistente que o médico vai tomá-lo com

46 Idem., 1912, p. 200.

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cuidado. De modo análogo acontece com a relação amar no contexto de acreditar. Ela é uma

relação relacionando efetivamente quando liga efetivamente Desdemona e Cássio e ela é uma

relação relacionando logicamente quando liga logicamente Desdemona e Cássio na crença de

Otelo.

Como é que a relação subordinada contribui para relacionar os termos na crença se a

relação acreditar é quem forma o complexo da crença, porém, é um ponto que pretendemos

trabalhar devidamente apenas no Capítulo Terceiro. Mas podemos aproveitar aqui o uso

(inadequado) que Russell fez da metáfora do cimento e dos tijolos nesta segunda versão da

Teoria RM e antecipar parcialmente a resposta a essa inquietação. Isso ilustrará um pouco

mais a falha de Russell e desses críticos no entendimento da operação das duas relações e

também permitirá sugerir um ajuste que torne sua metáfora adequada.

Segundo Russell, uma instância da relação acreditar envolve dois tipos de

constituintes. Curiosamente, porém, nesta versão de 1912 ele entendeu que esses constituintes

são a relação acreditar e os seus objetos. Eles são como o cimento e os tijolos. A relação

acreditar é o cimento e os objetos são os tijolos. Na prática, porém, isto não é o caso. Os

constituintes de uma ocorrência da relação acreditar são de dois tipos lógicos sim, universais

e particulares, mas eles estão estruturados em mais de dois níveis lógicos. Portanto, uma

metáfora de dois elementos não conseguirá ilustrá-los adequadamente.

Visto que a relação acreditar, em qualquer instância que contenha uma relação

subordinada, sempre envolve, pelo menos, três níveis lógicos, ela só pode ser representada

adequadamente por uma metáfora com, ao menos, três tipos de elementos, não com dois.

Haja vista que ela sempre tem um nível lógico acima da relação subordinada, e esta, por sua

vez sempre tem um nível lógico acima dos seus termos. Ao passo que, os termos objetos

sempre têm um nível lógico abaixo da relação subordinada (se forem universais) ou serão de

outro tipo lógico (se forem objetos). Desse modo, tanto a relação acreditar quanto a relação

subordinada compartilham a tarefa de ligar os termos. O que precisa ser feito é classificar em

que consiste a colaboração de cada uma. No caso da metáfora escolhida por Russell, por

exemplo, ela teria que ser feita usando três elementos como, por exemplo, o cimento, os

tijolos e a abraçadeira (clamp).

Se tomarmos essa metáfora ampliada, podemos considerar a relação acreditar como

aquela que liga os termos da crença numa unidade geral, tal qual faz a abraçadeira que o

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pedreiro usa para ligar os tijolos e o cimento na construção de um pilar, formando com eles

uma unidade subordinada. E podemos considerar a relação subordinada como aquele termo

que liga logicamente os termos objetos numa unidade subordinada, tal qual o cimento que liga

os tijolos na construção de um pilar. Quando os tijolos e o cimento são postos na ordem

correta e ligados pela abraçadeira o pilar é formado corretamente. E ao retirarmos a

abraçadeira, a construção fica consistente. Assim, também com a relação acreditar, se o

sujeito põe os objetos e a relação subordinada no sentido certo, depois que a crença é

formada, podemos abstrair a relação acreditar e examinar a consistência do juízo que foi

formado. Se ele representa um fato, então, será logicamente bem formado. E se esse fato

existir ele será um juízo verdadeiro, caso o fato não exista, ele será um juízo falso.

Devemos notar, porém, que Russell não deu esse passo e a metáfora que ele usou não

foi capaz de fazê-lo perceber a raiz do problema. Ele fechou a segunda versão sem apresentar

uma compreensão adequada da natureza lógica da relação subordinada na crença e da sua

operação na constituição do juízo. Este déficit, provavelmente, justifica suas duas tentativas

de afastar-se da análise da natureza da relação subordinada para tentar resolver o Problema da

Direção pela via da forma lógica e da sua heterodoxa teoria das posições na terceira versão.

Para a qual nos voltaremos agora.

1.2.2 A versão de 1913: a forma lógica e as posições dos termos na relação

A terceira versão da Teoria RM foi apresentada por Russell em Theory of

Knowledge, o chamado “manuscrito inacabado de 1913”. Nela Russell escolheu dar uma

atenção maior à relação múltipla que ele chamou de “entender uma proposição”, mas também

considerou a relação acreditar. De acordo com ele, essas duas relações têm a mesma forma

lógica e levantam os mesmos problemas lógicos, por isso o mesmo tipo de análise lógica pode

ser aplicado às duas sem prejuízo para nenhuma delas. Haja vista que, manteve Russell, a

única diferença entre elas “é que acreditar é uma relação e entender é outra”.47

47 “A análise da crença, como dissemos antes, deve ser precisamente análoga à análise de entender uma

proposição. Os mesmos constituintes entram no complexo da mesma forma quando uma proposição é acreditada

entendida. A única diferença é que acreditar é uma relação e entender é outra” (RUSSELL, 1913, p. 142.

Tradução nossa).

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53

Visando uma melhor consideração do conteúdo proposto nesta terceira versão,

vamos dividir esta subseção em dois grandes subgrupos. O primeiro tratará da relação

acreditar e das propriedades de simetria e assimetria. Ele ainda será subdividido em três

partes que tratarão, respectivamente, das crenças não-permutativas, das crenças permutativas

e dos complexos associados. E o segundo subgrupo tratará dos relata da relação acreditar,

sendo também subdividido em quatro partes que tratarão, respectivamente, da forma lógica

como um constituinte a mais nas ocorrências da relação acreditar, da teoria das posições dos

termos, da direção dos termos na relação a partir da natureza lógica da relação e do esforço

russelliano para oferecer um simbolismo formal adequado para as ocorrências da relação

acreditar.

1.2.2.1 A relação acreditar como relação múltipla

Na terceira versão da Teoria RM, Russell fez uma defesa muito breve da noção de

acreditar, como relação múltipla, frente às posições de Hume e William James e depois

empreendeu uma vigorosa análise das propriedades de simetria e assimetria das relações. Com

base nessas propriedades ele pôde classificar os complexos formados pela relação acreditar

em complexos não-permutativos e permutativos. Isso o permitiu situar o Problema da Direção

de um jeito novo e oferecer uma argumentação nova para a explicação da permutatividade dos

termos nas relações assimétricas. Os resultados obtidos, apesar de questionáveis em alguns

pontos, como veremos abaixo, trouxeram significativos avanços para a Teoria RM. Façamos o

percurso com ele.

Inicialmente, Russell procurou defender a noção de relação acreditar proposta pela

Teoria RM, distinguindo-a da noção de crença presente nas Teorias do Juízo de David Hume

e de William James. Segundo ele, Hume considerava a ideia produzida pelo sujeito como

sendo o objeto da crença e considerava acreditar como sendo uma força ou vivacidade

atrelada a uma ideia “associada a uma impressão”.48 Mas, discordou Russell, uma crença não

tem uma ideia como objeto e sim “uma pluralidade de objetos unidos com o sujeito numa

relação múltipla”.49 Para ele, há, sem dúvida, um estado mental envolvido num ato de crença,

mas tal estado mental não consiste em ter “a ideia de um objeto”. Não existe a ideia como

48 RUSSELL, 1913, p. 137. 49 Ibidem., p. 137. (Grifo do autor)

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54

algo distinto do objeto, como um tertio quid, entre sujeito e objeto”.50 Quando o sujeito julga,

por exemplo, que o mercúrio é mais pesado do que o ouro, mercúrio e ouro mesmo são os

constituintes do juízo, não é a ideia de mercúrio que está em relação com a ideia de ouro, mas

mercúrio e ouro mesmo. As ideias de mercúrio e ouro não são pesadas e a crença não é numa

relação entre ideias, mas numa relação entre objetos.51

Disso também se segue que a crença não é uma força atrelada a uma ideia associada

a uma impressão, mas uma relação do sujeito para com os vários objetos envolvidos na

crença. A força atrelada a uma crença não é uma relação para com os objetos da crença, mas

sim uma emoção causada pela crença e deve ser distinguida dela.52 Para William James, que

também aproximava-se da posição de Hume na concepção de crença, acreditar é “um tipo de

sentimento mais aliado à emoção do que a qualquer outra coisa”53 E a resposta de Russell é

que qualquer emoção ou sentimento que se atrele a uma crença é assunto da psicologia e não

da epistemologia. Segundo ele há, sim, uma emoção atrelada à crença, capaz de muitos graus,

inclusive, mas ela não acompanha a crença como parte da crença e sim como um fato distinto

da crença. Ela é proporcional à intensidade ou energia com que o sujeito repele a dúvida, não

à certeza que ele tem da crença.54

Depois que rejeitou as Teorias do Juízo de Hume e James, Russell passou à análise

das propriedades de simetria e assimetria das relações, visando fazer uma nova aplicação

delas aos complexos de crença. Segundo ele, por um lado, numa relação simétrica a direção

dos termos é irrelevante. Nessas relações, o intercâmbio dos termos não gera um conteúdo

lógico novo e não demanda um estado de coisas novo para tornar verdadeiro o complexo

lógico formado na crença. Por exemplo:

(6) João é irmão de Pedro.

(7) Pedro é irmão de João.

50 Ibidem., p. 137. (Grifo do autor) 51 Ibidem., p. 140. 52 Ibidem., p. 141. 53 Ibidem., 1913, p. 140. 54 RUSSELL, 1913, p. 141.

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55

O intercâmbio de posições dos termos João e Pedro na relação ser irmão de na sentença (6),

não gerou nenhum complexo novo em (7). O mesmo complexo lógico expresso em (6) com

“João” e “Pedro” (nesta ordem) é o mesmo complexo lógico expresso em (7) com “Pedro” e

“João” (nesta ordem). E, igualmente, nenhum estado de coisas diferente é exigido para tornar

(6) e (7) verdadeiras. Em razão disto, Russell chamou as relações simétricas de “relações não-

permutativas”, pois nelas o intercâmbio de posições dos termos não muda nada no conteúdo

lógico do complexo.

A causa principal disto é a própria natureza das relações simétricas, que faz delas um

tipo específico de relações. Elas impõem um papel lógico único aos termos e não consideram

relevante a ordem deles. Por conseguinte, elas não contêm, por natureza, nenhuma restrição a

mudanças de lugares ou posições dos seus termos e elas mesmas podem trocar de lugar com

seus termos sem alterar o complexo lógico. Retomemos, por exemplo, o complexo lógico

expresso por (6) e façamos o intercâmbio de posições entre a relação e os termos:

(8) João e Pedro são irmãos.

(9) São irmãos João e Pedro.

O complexo lógico expresso em (8) e (9) continua o mesmo, apesar de (9) não ser

muito usual na língua portuguesa, e o estado de coisas requerido para que os dois juízos sejam

verdadeiros também continua o mesmo. Os termos continuam a desempenhar o mesmo papel

lógico na relação e a ordem deles continua irrelevante.

Por outro lado, uma relação assimétrica pode ser de dois tipos, a saber, ela pode ser

assimétrica e homogênea ou assimétrica heterogênea. Uma relação assimétrica homogênea é

aquela em que o intercâmbio dos termos gera um novo complexo lógico e demanda um novo

estado de coisas para a verdade do complexo gerado pelo intercambiamento. Por exemplo:

(10) Desdemona ama Cássio.

(11) Cássio ama Desdemona.

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56

O intercambiamento de posições dos termos “Desdemona” e “Cássio” na relação amar em

(10) gerou um complexo lógico diferente, expresso por (11), e tornou necessária a existência

de um estado de coisas diferente para que o novo complexo lógico seja verdadeiro. Em razão

disto, Russell chamou as relações assimétricas homogêneas de “relações permutativas”, pois

nelas o intercambiamento de posições dos termos muda o conteúdo lógico dos complexos

formados por elas.

De novo, devemos notar também que as relações assimétricas homogêneas também

têm uma natureza peculiar e constituem um tipo específico de relações. Elas diferem das

relações simétricas não somente porque ao permitirem a mudança de posições dos seus termos

geram um complexo lógico novo, mas também por não poderem, elas mesmas, trocar de lugar

com seus termos e continuar a formar um complexo lógico. Podemos visualizar isso se, por

exemplo, aplicarmos em (10) o intercambiamento das posições entre a relação amar e

Desdemona e depois entre a relação amar e Cássio. Os resultados não serão complexos

lógicos:

(12) Ama Desdemona Cássio.

(13) Desdemona Cássio ama.

O que (12) e (13) manifestam, na verdade, é o Problema da direção Larga, que será

devidamente enfrentado no Capítulo Segundo. Críticos como Stout e Griffin dizem que a

Teoria RM de Russell permite tais construções sem sentido lógico. Mas, como se pode ver, a

Teoria RM não é passível dessa crítica, ela não admite essas construções e não reconhece

nenhum valor lógico nelas.

A relação assimétrica heterogênea, por sua vez, é aquela em que o intercâmbio não é

possível logicamente, nem entre os termos da relação, nem entre a relação e seus termos. Ele

não gera nenhum complexo lógico válido. Por exemplo:

(14) Sabedoria é a principal virtude de Sócrates.

(15) Sócrates é a principal virtude da Sabedoria.

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57

Neste caso, o intercambiamento dos termos ligados pela relação ser a principal virtude de, em

(14), não gerou um complexo lógico novo, como mostra (15). Sabedoria é um termo

universal, que pode instanciar ser a principal virtude de com relação a Sócrates. Mas, pelo

tipo de assimetria existente entre os dois termos, o intercâmbio entre eles é impossível.

Sócrates é um objeto particular e não pode instanciar ser a principal virtude de em relação

com sabedoria. Trata-se de termos de tipos lógicos diferentes, cuja permuta de posições na

relação não é possível logicamente. Em razão disto, Russell também chamou as relações

assimétricas heterogêneas de “relações não-permutativas”, pois nelas o intercâmbio de

posições dos termos não gera nenhuma proposição que expresse um estado de coisas possível.

E, como já foi notado com as relações dos dois casos anteriores, devemos notar

também com as relações assimétricas heterogêneas, a saber, que elas constituem um tipo

peculiar de relações, distinto dos outros dois. Diferentemente das relações simétricas, elas não

podem trocar de posição com seus termos e, diferentemente das relações assimétricas

homogêneas, elas não permitem que seus termos mudem de posições. Elas e seus termos,

portanto, são irremovíveis de suas posições. Nenhum cambiamento de posições nelas resultará

num complexo lógico.

Desse modo, pra fixar melhor o percurso feito, transformemos num quadro geral toda

essa vigorosa classificação de simetria e assimetria dada por Russell às relações. Segundo ele,

as relações podem ser:

SIMÉTRICAS Não-Permutativas Embora permitido, o intercâmbio dos termos não

gera nada logicamente novo.

ASSIMÉTRICAS

Não-Permutativas Heterogêneas O intercâmbio dos termos não gera nada

logicamente válido, não é permitido.

Permutativas Homogêneas O intercâmbio dos termos gera

novos complexos lógicos.

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58

Curiosamente, porém, ao fazer uso dessas considerações sobre simetria e assimetria, Russell

deteve-se nos complexos formados por relações duais e deu pouca atenção aos complexos

formados por relações de aridades mais altas. Seguindo esse rumo, ele classificou os

complexos de crença como “crenças não-permutativas” e “crenças permutativas”.

Contudo, considerando atentamente a relação acreditar, percebemos que é possível ir

além desse passo dado por Russell e refinar ainda mais a aplicação de sua análise para mostrar

que ela é uma relação assimétrica que contém alguns elementos passíveis de assimetria

homogênea e outros de assimetria heterogênea. Quando ela envolve uma relação subordinada

de primeira ordem, por exemplo, alguns de seus termos podem ser passíveis de assimetria

homogênea, menos a relação subordinada. Esta nunca conta com a possibilidade de assimetria

homogênea diante dos outros termos, apenas com a possibilidade de assimetria heterogênea.

Por conseguinte, do ponto de vista assimétrico, a relação subordinada é um termo irremovível

na relação acreditar. E, assim como a relação acreditar exige que se considere em torno de si

a assimetria de todos os termos que ela envolve, a relação subordinada exige que se considere

em torno de si também a assimetria dos termos que ela envolve, mas, por razões de hierarquia

lógica, não oferece nenhuma possibilidade dela mesma trocar de lugar com os termos.

Consequentemente, tratando-se da relação acreditar, poderemos ir além de Russell e

fazer uma aplicação global e outra aplicação local das propriedades de assimetria homogênea

e assimetria heterogênea na própria relação acreditar. Uma aplicação em torno da relação

acreditar e outra em torno da relação subordinada. Mas esse trabalho só será feito no Capítulo

Terceiro, antes precisamos considerar a classificação russelliana das crenças em não-

permutativas e permutativas.

1.2.2.1.1 Crenças não-permutativas

As crenças não-permutativas podem ocorrer de dois modos, dependendo da relação

que ocorre nelas ser assimétrica heterogênea ou simétrica. Primeiro, ela é não-permutativa

quando o complexo da crença é completamente determinado por seus constituintes, isto é,

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59

quando o complexo da crença é assimétrico heterogêneo com respeito aos termos envolvidos

pela relação subordinada.55 Por exemplo:

(16) Otelo acredita que cinco é o número favorito de Desdemona.

(17) Otelo acredita que Desdemona é o número favorito de cinco.

Neste caso, a crença expressa em (16) é não-permutativa, porque o complexo lógico

formado pela relação subordinada ser o número favorito de, com o termo cinco como sujeito e

o termo Desdemona como relatum é um complexo assimétrico heterogêneo. Nesta crença, os

termos envolvidos pela relação ser o número favorito de pertencem a categorias ontológicas

diferentes e são, em sentido não-fregeano, de tipos lógicos diferentes. Eles não são

intercambiáveis logicamente e nenhum complexo lógico possível resulta do intercambiamento

das posições deles naquela relação, como mostra (17). E não resultará também se houver um

intercambiamento de posições entre a relação subordinada e os seus termos, pois, situações

como “Otelo acredita que é o número favorito de cinco Desdemona” ou “Otelo acredita que

cinco Desdemona é o número favorito de” não expressam crença num complexo lógico.

Segundo, uma crença também é não-permutativa quando ela envolve uma relação

simétrica. Por exemplo:

(18) Otelo acredita que João é irmão de Pedro.

(19) Otelo acredita que Pedro é irmão de João.

Neste caso, a crença é não-permutativa porque “nenhuma crença diferente resulta do

intercâmbio dos objetos”.56 O conteúdo do complexo lógico formado com a relação

subordinada ser irmão de e os termos João e Pedro em (18) ainda continua a ser o mesmo

conteúdo lógico em (19), após a mudança nas posições dos termos da relação subordinada. O

55 RUSSELL, p. 141. 56 RUSSELL, 1913, p. 144.

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60

intercambiamento nas posições dos termos não mudou o conteúdo lógico do complexo, ele

continuou a exigir o mesmo estado de coisas correspondente para ser verdadeiro. Além disso,

mesmo que a relação subordinada troque de posição com os termos, a crença continuará não

permutativa, pois o complexo lógico continuará o mesmo.

1.2.2.1.2 Crenças permutativas

As crenças permutativas, por sua vez, são aquelas que envolvem uma relação

assimétrica homogênea, isto é, uma relação que permite o intercambiamento de posições entre

seus termos, e este intercambiamento gera uma crença diferente que, por sua vez, demanda

um complexo correspondente diferente para ser verdadeira. O problema com essas crenças,

como se pode ver, é o Problema da Direção. Elas permitem que os termos da relação

subordinada sejam intercambiados, formem complexos com conteúdos lógicos diferentes e

demandem complexos correspondentes diferentes para cada ocorrência dos termos numa

ordem diferente.57 Por exemplo:

(20) Otelo acredita que Desdemona é mais alta do que Cássio.

(21) Otelo acredita que Cássio é mais alto do que Desdemona.

Como se pode ver, o conteúdo lógico da crença de Otelo em (20) é diferente da do

conteúdo lógico crença de Otelo em (21) e cada uma exige um complexo correspondente

diferente para ser verdadeira. Este é, na verdade, o Problema da Direção Estreita. As crenças

permutativas envolvem relações que permitem logicamente o intercambiamento dos termos

como faz, por exemplo, a relação ser mais alto do que descrita em (20) e (21). Se tais relações

ocorrem como relações subordinadas, então, haverá a possibilidade de formação de dois

complexos lógicos. Mas, somente dois, pois o intercâmbio de posições entre a relação

subordinada e os termos objetos, nestes casos, não é facultado. Contudo, ainda permanece a

questão de saber em que se apoia a relação acreditar para formar uma crença permutativa se,

57 Ibidem., p. 145.

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61

envolvendo uma relação subordinada assimétrica e dual, ela tem a possibilidade de formar

dois complexos lógicos?

Russell percebeu que nas crenças não-permutativas heterogêneas o Problema da

Direção não surge porque “nenhuma crença diferente resulta do intercâmbio dos objetos” e

procurou expandir sua definição “para crenças permutativas”.58 Considerando que duas

crenças diferentes podem ser formadas com os mesmo relata quando a relação subordinada é

dual e assimétrica homogênea, ele procurou uma maneira de fixar suas possíveis ocorrências

em complexos associados não-ambíguos.

O curioso é que para tentar usar a definição de crença não-permutativa heterogênea

na explicação das crenças permutativas, Russell situou o problema da permutatividade no

nível da linguagem e no nível lógico com uma significativa diferença. No nível da linguagem,

manteve ele, o problema com as crenças permutativas consiste em “encontrar um método”

que distinga as crenças possíveis “pelo significado das palavras”.59 E no nível lógico, o

problema consiste em “achar complexos associados não-ambíguos por meio dos seus

constituintes”, que “determinem completamente” suas possíveis ocorrências lógicas.60

Antes de apreciarmos seu esforço em identificar esses “complexos associados não-

ambíguos”, porém, convém levantar duas questões sobre esse caminho escolhido por ele.

Primeira: qual pode ser o método capaz de responder ao problema das crenças permutativas

no nível da linguagem, para o qual Russell acenou? Ele não disse nada a esse respeito,

diretamente, mas, deu uma pista valiosa ao afirmar que ele deve ser um método que distinga

as crenças possíveis “pelo significado das palavras”. Ora, um método que distinga as crenças

possíveis, num complexo permutativo, pelo significado das palavras pode muito bem ser o

método da análise do significado e das funções das palavras na linguagem, isto é, pode muito

bem ser o método analítico do próprio Russell. Basta lembrar seus passos bem sucedidos na

análise lógica da linguagem, bem como o cuidado com os enganos que a linguagem pode

causar, presentes na teoria das descrições definidas.

Com isso, então, temos a segunda questão: por que não buscar também um método

equivalente no caso do problema lógico, ao invés de enveredar por outro caminho buscando

“complexos associados não-ambíguos”? Ou seja, por que ele não considerou o problema no

58 RUSSELL, 1913, p. 144-145. 59 Ibidem., p. 145. 60 Ibidem., p. 145.

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62

nível lógico como sendo a tarefa de encontrar um método que distinga as crenças possíveis a

partir da natureza e das funções dos termos? Russell não levantou essa questão em seu texto,

mas ela parece bastante pertinente. Afinal de contas, o seu método de análise lógica do

significado das palavras permite também a análise lógica dos objetos e relações, suas funções

e capacidades combinatórias, num complexo efetivo ou num complexo lógico como, aliás, ele

fez na primeira versão da Teoria RM.

A consideração desse outro caminho, que se afasta da ideia de achar complexos

associados não-ambíguos, porém, será adiada para o Capítulo Terceiro. Consideremos ainda

um pouco mais do caminho que Russell tomou nesta terceira versão.

1.2.2.1.3 Complexos associados não-ambíguos

Segundo Russell, complexos associados não-ambíguos são “aqueles complexos que

existem apenas quando o complexo original existe”.61 Eles são complexos não-permutativos

formados pela relação assimétrica heterogênea de cada um dos termos objetos de um

complexo com o próprio complexo como um todo. Consideremos, por exemplo, o seguinte

complexo permutativo expresso pela frase:

(10) Desdemona ama Cássio.

Neste complexo, Desdemona mantém uma relação para com o complexo como um

todo e Cássio mantém outra. Se representarmos o complexo como um todo com ,

representarmos a relação de Desdemona para com C1 e representarmos a relação de Cássio

para com C2, poderemos chegar aos dois complexos associados não-ambíguos que permitem

descrever rigorosamente o complexo permutativo original como mostram (22) e (23):

(22) Desdemona mantém a relação C1 com .

61 RUSSELL, 1913, p. 145.

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(23) Cássio mantém a relação C2 com .

Assim, com esses complexos associados, que são formados com termos de tipos

lógicos diferentes, irremovíveis logicamente de suas posições, sustentou Russell, podemos

descrever de forma determinada o complexo permutativo . Para isto, basta juntar os dois

complexos associados (22) e (23) numa descrição complexa única, como mostra (24):

(24) Há um complexo no qual Desdemona mantém a relação C1 com e Cássio

mantém a relação C2 com .

A descrição62 rigorosa do complexo original permutativo (10) dada em (24), porém,

é uma sentença molecular. E alguns críticos, como Griffin,63 por exemplo, acham isso

problemático. Mas não entendemos assim. Descrever um complexo atômico por meio de dois

complexos atômicos parece bastante comum no dia a dia. Por exemplo, descrevemos o

complexo atômico “João é avô paterno de Pedro” com dois complexos atômicos formando um

complexo molecular “João é pai de José e José é pai de Pedro”. O que parece problemático

mesmo com a solução proposta por Russell é que, por um lado, quando a aplicamos a uma

relação no contexto de crença, ela apenas procura descrever um complexo já formado. Ela não

diz nada sobre como esse complexo é formado. E, por outro lado, quando se põe o acento na

intenção do sujeito da crença, ela parece alterar o conteúdo da crença, isto é, ela insere no

jogo relações subjacentes que não fazem parte diretamente da crença em questão. Uma crença

permutativa como, por exemplo, a que é dada acima no complexo , deve ser vista como um

complexo tal formado por uma relação ligando seus termos, onde também “x1 mantém a

relação C1 com e x2 mantém a relação C2 com ”.64

Se este é o caso, então, a crença de Otelo que Desdemona ama Cássio é, na verdade,

uma crença muito mais complexa, que podemos expressar como:

62 RUSSELL, 1913, p. 146. 63 GRIFFIN, 1985, p. 225. 64 RUSSELL, 1913, p. 148.

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(25) Otelo acredita que há um complexo , formado pela relação amar, em que

Desdemona mantém a relação C1 com e Cássio mantém a relação C2 com .

Por um lado, do ponto de vista da descrição do complexo formado pela crença de

Otelo, percebe-se que a proposta de Russell se sai bem. Ela é uma explicitação da estrutura

lógica do fato que Otelo acredita no complexo , formado pela relação amar, onde

Desdemona mantém a relação C1 com e Cássio mantém a relação C2 com . Por outro lado,

porém, do ponto de vista da formação do complexo de crença a questão não fica resolvida.

Haja vista que, por exemplo, o fato de descrever a estrutura lógica do complexo de crença

dizendo que Desdemona está na relação C1 não justifica por que ela foi posta em C1 na

formação desse complexo.

Em outras palavras, a descrição de um complexo de crença diz como ele está

configurado, não porque ele foi configurado de tal modo e não de outro. Tal lacuna continua a

deixar a Teoria RM a mercê dos ataques do Problema da Direção dos termos. Por

conseguinte, será preciso ir além de Russell a fim de oferecer uma razão para o fato de que

Otelo forma um complexo, o complexo ,com a relação amar, Desdemona e Cássio quando,

na verdade, ele poderia formar dois complexo, digamos e ˈ, com as possibilidades lógicas

que a relação amar lhe oferece para os dois termos em questão.

Ademais, do ponto de vista intencional, resta ainda certo desconforto pela maneira

como Russell descreve o complexo , que constitui o conteúdo da crença de Otelo.

Rigorosamente falando, Otelo acredita que há um complexo constituído por uma relação, a

relação amar, ligando Desdemona e Cássio. Mas, a descrição oferecida por Russell afirma

que Otelo acredita que há um complexo que contêm três relações, isto é, afirma que Otelo

acredita que há um complexo formado pela relação amar, com o termo Desdemona mantendo

a relação C1 e o termo Cássio mantendo a relação C2 com esse complexo. Ora, radicalizando

o aspecto intencional da crença de Otelo, alguém poderá dizer que não é esta a crença de

Otelo, que, intencionalmente, Otelo acredita que há um complexo onde a relação amar liga

Desdemona a Cássio e não que ele acredita que há um complexo que a relação amar liga

Desdemona a Cássio e que Desdemona mantém a relação C1 e que Cássio mantém a relação

C2 com tal complexo.

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De qualquer modo, o esforço descritivo deixou um ponto positivo para a Teoria RM,

que Russell mesmo parece não ter explorado devidamente. Trata-se do acento dado à

operação da relação subordinada na formação do complexo da crença. Russell demonstrou

admitir que o complexo acreditado por Otelo é formado pela relação subordinada amar. Ora

se a relação subordinada forma o complexo de , mesmo estando sob o domínio da operação

da relação acreditar, então, ela não é um objeto comum na crença, mas, sim, um termo

especial. Explorar esse ponto era vital para a Teoria RM e Russell, por alguma razão, não o

fez. De modo que, no Terceiro e Último Capítulo, retomaremos esse ponto e tentaremos

preencher tal lacuna.

Pra encerrar este tópico, então, olhando os passos dados até aqui, parece seguro

reconhecermos, pelo menos, três importantes avanços obtidos por Russell para sua Teoria

RM. Primeiro, a conquista de uma classificação mais rigorosa de assimetria, em assimetria

homogênea e assimetria heterogênea. Segundo, num complexo lógico formado por uma

relação que tenha qualquer um dos dois tipos de assimetria, existem algumas impossibilidades

lógicas de intercambiamento de lugares. Se a relação for assimétrica homogênea, não poderá

haver intercambiamento de lugares entre a relação e seus temos de forma alguma, e se a

relação for assimétrica heterogênea na poderá haver intercambiamento de lugares dela com os

termos, nem dos termos entre si. E, terceiro, que ele acentuou a importância da operação da

relação subordinada na formação do conteúdo da crença, apesar de não dizer claramente qual

é a relação entre a operação dela e a operação da relação acreditar. Todos esses ganhos vão

nos ajudar no Capítulo Terceiro a mostrar que numa relação de crença permutativa, a relação

subordinada ocupa uma posição especial e é assimetricamente irremovível dentro do escopo

da relação acreditar.

1.2.2.2 Os relata da relação acreditar na terceira versão

A versão da Teoria RM de 1913 trouxe, pelo menos, quatro importantes novidades

no tocante ao assunto dos relata da relação acreditar. A primeira foi a inserção da forma

lógica como um termo adicional entre os constituintes do juízo, a segunda foi a teoria das

posições dos termos no complexo, a terceira foi a tentativa de construir um simbolismo

formal capaz de explicitar a estrutura das ocorrências da relação acreditar e, finalmente, a

quarta foi a tentativa de considerar o Problema da Direção a partir da ideia de relações

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66

neutras. De modo que, vamos dividir essa subseção nestes quatro pontos e considerar

separadamente cada uma dessas inovações.

1.2.2.2.1 A forma lógica geral da relação e a determinação da direção dos termos

Nesta versão da Teoria RM Russell tentou dois caminhos novos para superar o

problema da Direção sem apelar para a natureza da relação acreditar ou da relação

subordinada. Um deles foi a sua teoria das posições, que será vista abaixo, e o outro foi a

inserção da forma lógica como um constituinte a mais nas ocorrências da relação acreditar.

Segundo ele, a forma lógica “é o modo em que os constituintes são combinados no

complexo”.65 O sujeito da relação acreditar a alcança abstraindo os componentes do

complexo até ficar só com a sua estrutura pura. A partir daí, ele poderá se relacionar com ela

como um termo em todos os seus atos de crença.

Segundo Russell, é necessário que o sujeito da relação acreditar esteja acquainted

com a forma lógica geral da relação e que ela seja um termo da relação acreditar por duas

importantes razões. A primeira tem a ver com a direção dos termos. Quando está na relação

acreditar para com os vários objetos, formando um complexo com o qual ainda não tem

acquaintance, o sujeito deve aplicar os termos “na forma geral da relação”, isto é, ele deve

preencher a forma lógica do complexo aplicando a ela os termos na direção certa. Uma vez

que ele está acquainted com os termos apenas, mas não com o complexo, a forma lógica

garantirá que ele aplique os termos na ordem certa que a forma determina.66 A segunda tem a

ver com as relações entender e acreditar. Para Russell, se o sujeito da relação acreditar ainda

não estiver acquainted com o complexo, ele não poderá entendê-lo e, portanto, não poderá

acreditar nele. Dito de outro modo, o sujeito da relação acreditar só pode formar uma crença

se estiver acquainted com a forma lógica geral do complexo envolvido nela. Um sujeito que

esteja acquainted com Sócrates e Platão e a relação preceder, por exemplo, mas, não com o

complexo “Sócrates precede Platão”, não entenderá o que significa que Sócrates precede

Platão quando alguém afirmar isso.67

65 RUSSELL, 1913, p. 98. 66 RUSSELL, 1913, p. 116. 67 Ibidem., p. 99.

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67

Essa posição de Russell, porém, suscitou muitas reações e com justiça. Ela conflita

bastante com a postura assumida nas duas primeiras versões da Teoria RM, onde a ocorrência

da relação acreditar era pensada a partir das propriedades e funções dos relata. Mas, com a

inserção da forma lógica como termo da relação acreditar, ele reduz drasticamente a

importância dos ganhos obtidos na acquaintance com relações. Nas versões anteriores, se o

sujeito da relação acreditar conhecesse uma relação por acquaintance, ele poderia apreendê-

la, reconhecê-la noutras instâncias e formar crenças com ela, aplicando-a a outros termos

logicamente possíveis. Por que razão agora tal sujeito não entenderia que Sócrates precede

Platão ou não formaria essa crença se ele estiver acquainted com a relação preceder e

Sócrates e Platão?68 E se o sujeito estiver acquainted com Sócrates, Platão e a relação

preceder, o que a forma lógica poderá acrescentar para que ele construa essa crença? A

ordem?

Inicialmente, Russell sustentou que a forma lógica resolveria o Problema da Direção

porque ela permitiria ao sujeito aplicar os objetos na ordem certa.69 Mas depois ele mesmo se

deu conta de que a forma lógica não garante a ordem dos termos. Nos complexos “a precede

b” e “b precede a”, por exemplo, a forma lógica é a mesma, mas a ordem é diferente. Por isso,

ele abandonou essa posição e passou a insistir apenas na ideia de que a forma lógica é

necessária para entender ou acreditar em complexos com os quais ainda não se tem um

conhecimento por acquaintance. O que também é insustentável.

Imaginemos uma situação em que Otelo está acquainted com Alexandre, Hypatia e a

relação amar, como termos apenas, mas não com o complexo Alexandre-ama-Hypatia, nem

com a forma geral da relação dual. Parece, nesse caso, totalmente cabível dizer que Otelo é

capaz de formar a crença “Alexandre ama Hypatia”, uma vez que ele conhece por

acquaintance a relação amar e os objetos Alexandre e Hypatia. Ainda que ele não conheça a

forma geral da relação dual e não tenha acquaintance com o complexo Alexandre-ama-

Hypatia, ele conhece a relação amar por acquaintance, saberá aplicá-la a esses termos

logicamente possíveis e formar esta crença naturalmente. Por outro lado, imaginemos uma

situação inversa. Cássio tem acquaintance com a forma lógica geral da relação dual e com

Alexandre e com Hypatia, mas não conhece a relação amar. Afinal de contas, conhecer a

forma geral da relação dual não implica conhecer todas as relações duais. Então, nesse caso,

68 Ibidem., p. 99. 69 Ibidem., 1913, p. 116.

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68

parece impossível dizer que Cássio pode formar a crença “Alexandre ama Hypatia” só porque

ele tem uma relação de acquaintance com a forma da relação dual e com os termos Alexandre

e Hypatia. Então, a acquaintance com a forma lógica geral da relação, como propôs Russell,

não garante que se possa acreditar num complexo com o qual ainda não se tem acquaintance

com a relação, mas a acquaintance com a relação garante. O que nos faz ver que é possível

dispensar a acquaintance com a forma lógica geral da relação, ela não é necessária, mas não

se pode dispensar a acquaintance com a relação, ela é indispensável.

A constatação de que a forma lógica, como um constituinte adicional da relação

acreditar, não garante a ordem dos termos no complexo e não é necessária para formar uma

crença nos leva à conclusão de que é preciso abandonar o uso que Russell tentou fazer dela na

Teoria RM e retornar à análise da natureza da relação subordinada e dos termos envolvidos

por meio dela. Mas, como ele ainda tentou outro recurso antes de voltar a atenção para a

natureza da relação e dos seus termos nesta versão, sugerindo um modo bastante incomum de

determinação das posições dos termos no complexo, vamos considerar primeiro essa sua

teoria das posições.

1.2.2.2.2 As posições dos termos nas crenças permutativas

A teoria das posições desenvolvida por Russell na terceira versão da Teoria RM tenta

abrir um novo caminho de explicação para as crenças permutativas sem apelar para a natureza

lógica da relação acreditar ou da relação subordinada. Com esta escolha, porém, Russell caiu

em grandes dificuldades para explicar a relação acreditar de modo funcional, bem como para

explicar as posições dos termos dentro e fora do contexto de crença. O que revela a ineficácia

deste caminho e a necessidade dele ser abandonado para retornar à via da natureza das

relações e pensar as posições dos termos a partir de suas exigências lógicas.

Na primeira versão da Teoria RM, Russell admitiu que as crenças permutativas

envolvendo uma relação dual podem formar dois complexos diferentes e que a diferença entre

eles reside na colocação dos termos na relação subordinada. Nesta terceira versão, porém, ele

procurou uma maneira de descrever tais complexos permutativos que pudessem identificar

suas diferentes ocorrências e para isso tentou definir as posições dos termos não a partir da

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relação e de suas exigências lógicas de combinação, mas a partir de relações subjacentes entre

os termos do complexo permutativo e o complexo como um todo.70

Acontece que, de acordo com ele, as posições são determinadas quando o complexo

é dado, não antes. E visto que as posições são determinadas por relações assimétricas

heterogêneas entre os termos e o complexo, elas não podem ser determinadas previamente,

mas somente quando o complexo está constituído. Quando isso acontece, então, é possível

construir uma descrição rigorosa do complexo. Por exemplo, “Desdemona lutou com Cássio”

constitui um complexo quando a relação relacionando lutar com é dada neste complexo.

Agora, chamemos este complexo de . Então, no complexo , Desdemona (d) ocupa a

primeira posição e Cássio (k) ocupa a segunda posição. Estas posições são constituídas,

respectivamente, pelas relações de Desdemona para com o complexo , chamemos ela de C1,

e pela relação de Cássio para com o complexo , chamemos ela de C2. Assim, pode-se

descrever o complexo original , “Desdemona lutou com Cássio”, como:

(26) O complexo consiste do termo d na relação C1 para com o complexo e do

termo k na relação C2 para com o complexo .

Lançando mão desses complexos associados formados pelas relações assimétricas

heterogêneas que chamamos de C1 e C2, portanto, torna-se possível descrever, rigorosamente,

o complexo original sem deixar margem para o problema da Direção dos termos.

A mudança de posição operada por Russell, como podemos ver, foi de grande

envergadura. As colocações dos termos no complexo passaram a ser vistas como posições e as

posições passaram a ser definidas pelas relações dos termos para com o complexo. O que

parece bastante grave nisso tudo, porém, é que Russell fez essa teoria das posições para

descrever complexos já dados e não disse nada sobre como a relação acreditar forma uma

crença permutativa colocando os termos nas posições certas. Será que o sujeito da relação

70 De início, ele assumiu que as posições dos termos têm a ver com a forma do complexo, depois ele assumiu

que elas são funções da relação relacionando e, finalmente, terminou por assumir que elas são relações

assimétricas e heterogêneas dos termos para com o complexo, não com a forma nem com a relação relacionando.

(Cf. RUSSELL, 1913, p. 122 e 146).

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70

acreditar terá que pensar essas relações subjacentes que determinam as posições antes de

formar o complexo da crença? E se ele não precisar pensá-las antes de formar a crença, em

que ele se apoia para determinar as posições dos termos? Além disso, Russell só considerou

complexos com um termo em cada posição, quando nos deparamos com complexos formados

por uma relação que tem aridade maior que dois a sua teoria encontra dificuldades ainda mais

sérias.

Se, por um lado, aplicarmos a sua teoria das posições a uma relação em sua ocorrência

direta e depois a aplicarmos numa ocorrência dentro do escopo da relação acreditar, teremos

o seguinte problema:

(10) Desdemona ama Cássio.

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

Em (10) temos um complexo permutativo fora do escopo da relação acreditar e em (3) temos

uma ocorrência da relação acreditar, onde o complexo expresso por (10) ocorre como um

complexo subordinado. Em (10) a posição de Desdemona será determinada pela relação de

Desdemona para com o complexo, chamemos ela de C1, e a posição de Cássio será

determinada pela relação de Cássio para com o complexo, chamemos ela de C2. Mas em (3) a

classificação fica bastante confusa. A posição de Desdemona é determinada por sua relação

para com o complexo geral, expresso por (3), ou em sua relação para com o complexo

subordinado, expresso por (10)?

Se a posição de Desdemona for determinada por sua relação para com o complexo

geral, expresso por (3), então, ela será a posição C2, pois C1 é a posição de Otelo em (3) e, se

a posição de Desdemona for determinada por sua relação para com o complexo subordinado,

aquele que é expresso em (10), então, ela será C1. Qual será, então, a posição exata de

Desdemona C2 ou C1? E com Cássio a confusão fica ainda maior. Se sua posição no

complexo for determinada por sua relação para como complexo geral, então, ela será a

posição C4, pois C1, C2 e C3 são, respectivamente, as posições de Otelo, Desdemona e a

relação amar no complexo geral e, se sua posição for determinada por sua relação para com o

complexo subordinado, então, ela será C2. Qual será, então, a posição exata de Cássio C4 ou

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C2? Parece que Russell não considerou essa dificuldade. Ele não falou nada sobre como

definir as posições dentro do escopo de crença usando sua teoria da posições.

E, por outro lado, se aplicarmos sua teoria das posições a um complexo formado por

uma relação com aridade superior a dois, mesmo fora do escopo de crença, teremos o seguinte

problema:

(27) Otelo derrubou Desdemona, Cássio e Alexandre.

(27a) () .oC1. dC2. kC3. aC4

(28) Otelo e Desdemona derrubaram Cássio e Alexandre.

(28a) () .oC1. dC2. kC3. aC4

Neste caso, (27) e (28) expressam complexos diferentes formados pela relação

derrubar, mas, ambos têm aridade quatro. No complexo expresso por (27) os termos Otelo,

Desdemona, Cássio e Alexandre têm, respectivamente as posições determinadas pelas

relações assimétricas heterogêneas C1, C2, C3 e C4 de cada um deles para com o complexo. E

no complexo expresso por (28) os termos Otelo, Desdemona, Cássio e Alexandre também

têm, respectivamente as posições determinadas pelas relações C1, C2, C3 e C4 de cada um

deles para com o complexo expresso por (28). Mas, dizer que Desdemona tem a posição

determinada pela relação C2 com o complexo expresso por (27) e também com o complexo

expresso por (28), não identifica que em (27) ela é derrubada por Otelo e em (28) ela derruba

os outros dois juntamente com Otelo.

Além disso, tudo fica ainda mais confuso se tentarmos fazer a formalização das

posições dos termos sugerida por Russell,71 como mostram (27a) e (28a). Os dois complexos

recebem o mesmo simbolismo lógico, mas, a formalização não permite identificar nada do

papel dos termos num complexo e noutro. Significa dizer que em complexos formados por

relações com aridade maior que dois, dizer qual é a posição dos termos no complexo não

basta. É preciso uma teoria que identifique também o lugar e o papel dos termos no complexo,

não apenas as posições deles no complexo.

A teoria das posições sugerida por Russell na terceira versão, então, revela-se frágil e

inaceitável em, pelo menos, três pontos. Ela traz implícita a necessidade do sujeito da relação

71 RUSSELL, 1913, p. 147.

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acreditar ter que pensar as relações subjacentes entre os termos e o complexo permutativo

para poder determinar as posições deles ao formar uma crença. Ela não consegue determinar

com exatidão as posições dos termos que ocorrem ligados por uma relação subordinada

assimétrica homogênea dentro do escopo de crença. E, por fim, ela revela sérias dificuldades

para indicar o lugar e o papel dos termos nas relações assimétricas homogêneas com aridade

acima de dois.

Apesar disso, é possível ajustarmos e ampliarmos sua teoria das posições, aliando-a à

solução proposta pela primeira versão da Teoria RM para repensarmos as colocações dos

termos, seus lugares e posições a partir da natureza das relações.72Por isso, no Capítulo

Terceiro, procuraremos superar suas dificuldades por meio de uma interpretação multigrade

da relação acreditar. Este passo, claro, exigirá o afastamento dessa tentativa de determinar as

posições por meio de relações subjacentes e complexos associados, e um retorno à posição

assumida na primeira versão da Teoria RM. A necessidade deste retorno à posição inicial,

aliás, parecia prevista por Russell, que não deixou de tratar da natureza da relação

subordinada, nem de pensar como resolver o Problema da Direção a partir dela na terceira

versão também.

1.2.2.2.3 A Direção da relação a partir de sua natureza lógica

Na terceira versão da Teoria RM, Russell também considerou a solução do Problema

da Direção pela via da análise lógica da natureza das relações. Em sintonia com as duas

primeiras versões, ele continuou a sustentar que as relações são itens que existem,

instanciados nas diversas ocorrências concretas, e que subsistem, mesmo quando não ocorrem

em nenhuma instância concreta. E também continuou a sustentar que elas são objetos de

acquaintance, isto é, que um sujeito pode manter com elas relações epistêmicas e conhecê-las,

tanto em suas ocorrências quanto em sua natureza universal.73

Diferentemente da primeira versão, porém, mas não opondo-se totalmente a ela,

Russell sustentou que as relações são neutras, elas não têm essencialmente um sentido.74 O

72 Possibilidade brevemente apontada por Russell também na versão de 1913, mas não aprofundada. Diz ele:

“Deve-se observar que as relações C1, C2, ..., Cn” não são determinadas pela forma, mas apenas pela relação R”

(Ibidem., p. 147. Grifo do autor, tradução nossa). 73 RUSSELL, 1913, p. 84-85. 74 Ibidem., p. 87.

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73

sentido ou direção é apenas um artifício da linguagem que a análise deve pôr às claras.

Contudo, apesar de assumir esta posição, ele fez uma exceção e continuou a sustentar que

algumas relações têm uma direção natural “que vai de um termo para o outro”.75 Exemplos

disso são as relações de seqüência temporal e as relações que têm “um termo ativo e outro

passivo”.76

Não discutiremos aqui as razões de Russell para considerar as relações como neutras

nem quais são essas relações porque não é do interesse do nosso objetivo. O que interessa

desse assunto para o objetivo de nossa Tese é notar duas coisas referentes a esse ponto de

vista. Primeiro, a classificação de relações em relações neutras e relações com sentido natural

pode ser entendida, grosso modo, como uma extravagante aplicação das propriedades de

simetria (relações sem uma direção relevante) e assimetria (relações com uma direção

relevante) que já eram aceitas na sua teoria das relações em 1910. Segundo, ele classificou a

direção ou sentido das relações (“que têm esta peculiaridade”) de diferentes modos como, por

exemplo, “ir de um termo para o outro” ou “ter um termo ativo e um termo passivo”.

Russell fez essas classificações da direção das relações e não tirou nenhuma

consequência significativa delas para a Teoria RM no texto de 1913. Mas, no nosso entender,

elas deixam pelo menos três importantes consequências para a Teoria RM, a saber, que

algumas relações impõem sim uma direção aos seus termos, naturalmente, que a operação

desse tipo de relação sobre os seus termos precisa ser levada em conta quando elas ocorrem

no juízo e que a distinção dos lugares adequados para que os termos possam desempenhar os

papéis impostos a eles pela relação também deve ser levada em conta quando a relação ocorre

subordinada à relação acreditar. Coloquemos isso numa situação concreta:

(29) Desdemona quebrou a taça.

No tocante ao conteúdo expresso pela frase (29), podemos perceber três coisas.

Primeiro, a relação quebrar impõe papéis lógicos diferentes aos termos. “Desdemona”

representa o termo que instancia a propriedade principal da relação quebrar, isto é, o termo

75 Ibidem., p. 87. (Grifos do autor). 76 Ibidem., p. 87.

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74

que desempenha o papel de sujeito da relação e “taça” representa o termo ao qual a relação

liga o sujeito da relação. Segundo, os termos ficam caracterizados pelos papéis que recebem

da relação. E, terceiro, os lugares dos termos se tornam diferentes, um do outro, pelos papéis

que os termos desempenham em cada um deles.

No que concerne à justificativa dos lugares dos termos na relação, Russell tentou

avançar usando a metáfora do gancho e da argola que os caminhões de transporte têm na

frente e atrás. Ganchos e argolas recebem objetos diferentes e estes exercem sobre eles forças

diferentes também. Trata-se de imagens físicas bastante grosseiras, claro, mas são metáforas77

e como metáforas elas forçam o pensamento a aplicá-las à realidade. Se saltarmos fora delas,

veremos que elas querem dizer que as relações com direção têm lugares adequados para seus

termos na frente e atrás, que eles são lugares diferentes e podem envolver termos de modos e

em quantidades diferentes. Russell mesmo admite isso quando confessa que se trata de

imagens simbólicas, mas que o importante é que elas representam o fato de que as relações

têm “alguma coisa em sua natureza que exige termos, algum tipo de aparelhamento de agarrar

objetos que está sempre procurando por coisas para agarrar”.78

Apesar de Russell ter abandonado essas metáforas e ter se voltado mais para a ideia

de que as relações são neutras, achamos que elas são ótimas e nos levam a pensar sobre como

devemos entender os lugares dos termos nas relações que têm sentido. O lugar do termo de

onde elas partem e no qual elas caracterizam o sujeito da sua operação é diferente do lugar do

termo para o qual elas vão e no qual elas caracterizam o destinatário da sua operação. Além

do mais, esses lugares não precisam ser pensados fisicamente, mas, sim, como lugares

lógicos, exigidos pela natureza da relação ao impor aos termos os devidos papéis lógicos. E,

neste modo de ver, o que as metáforas do gancho e da argola representam reforça a posição da

primeira versão da Teoria RM, pois, ela também coloca a responsabilidade da direção dos

termos e da classificação dos seus lugares na natureza da relação subordinada.

Essas novas perspectivas deveriam ser indicadas também por meio de um

simbolismo formal eficiente. A confirmação de que havia tomado o rumo certo para a Teoria

RM deveria vir também por meio de um simbolismo lógico capaz de expressar a estrutura das

instâncias da relação acreditar. Um simbolismo que indicasse devidamente os lugares dos

77 RUSSELL, 1913, p. 86. 78 “Contudo, elas têm o mérito de ilustrar um importante fato sobre as relações, a saber, que há alguma coisa na

natureza delas que grita por termos, algum tipo de aparato de agarrar, que está sempre procurando por coisas

para agarrar e prender” (Ibidem., p. 86. Tradução nossa).

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termos, mas, como veremos agora, ao tentar fazê-lo, Russell abandonou a noção de lugares e

voltou-se para sua confusa noção de posições, baseada na ideia de complexos associados,

caindo em sérias dificuldades.

1.2.2.2.4 A tentativa russelliana de encontrar um simbolismo formal para a relação

acreditar

Russell não apresentou nenhum esforço para simbolizar formalmente a relação

acreditar nas duas primeiras versões da Teoria RM. Na versão de 1913, porém, ele tentou dar

esse passo, mas a falta de clareza sobre a relação entre acreditar e a relação subordinada, e

sobre como lidar com os lugares e as posições dos termos envolvidos nas duas relações, não o

deixaram obter sucesso. Seus modelos iniciais foram os seguintes:

(i) U (S, x, R, y, ).

(ii) U (S, A, B, similaridade, R(x, y)).

(iii) J (S, F, x1, x2, ..., xn)

Temos que considerar os detalhes desse simbolismo. As expressões simbólicas

oferecida por (i) e (ii) representam ocorrências da relação que Russell chamou de “entender

uma proposição”, mas, precisamos examiná-las aqui porque, segundo ele, essa relação tem a

mesma forma lógica da relação acreditar. Assim, em (i) “U” representa a relação “entender

uma proposição”, “S” representa o sujeito da relação U, “x” e “y” representam os termos

objetos que integram os relata da relação U, “R” representa a relação subordinada que

também integra o grupo dos relata e “” representa a forma lógica de R. Enquanto que em (ii)

“U” representa a relação “entender uma proposição”, “S” representa o sujeito da relação U,

“A” e “B” representam os termos objetos que integram os relata da relação U, e a forma

lógica da relação dual é representada como “R(x, y)” mesmo.

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Agora, visto que essa representação simbólica da relação entender uma proposição é

a mesma da relação julgar ou acreditar, pois elas têm a mesma forma lógica,79 no lugar de

entender uma proposição e no lugar de julgar podemos colocar a relação acreditar e teremos

as seguintes expressões simbólicas:

(iv) B (S, x, R, y, ).

(v) B (S, A, B, similaridade, R(x, y)).

(vi) B (S, F, x1, x2, ..., xn).

O primeiro problema com essas expressões simbólicas da relação acreditar é que em

(iv)-(vi) a relação subordinada é simbolizada de modos diferentes. Em (iv) ela é representada

pela letra maiúscula “R”, em (v) ela é nomeada diretamente como “similaridade” e em (vi) ela

é representada por uma variável minúscula, como os demais termos. Essa inconstância na

representação simbólica da relação subordinada parece ser reflexo daquela posição assumida

na segunda versão, que considera a relação subordinada como um termo da relação acreditar

no mesmo nível lógico dos demais termos.

O segundo problema com as representações simbólicas oferecidas por Russell

também consiste na irregularidade de representação, desta vez, porém, envolvendo os outros

termos. O termo sujeito é representado por uma letra latina maiúscula nos três casos, mas os

termos objetos ora são representados por uma letra ou variável minúscula ora são

representados por uma letra maiúscula. E a forma lógica dual que ocorre como um dos termos

da relação acreditar é representada de modo diferente em cada caso: em (iv) é representada

por uma letra grega minúscula, em (v) pela expressão formal “R (x, y)” e em (vi) por uma

letra latina maiúscula.

Toda essa inconstância para simbolizar formalmente os termos nas ocorrências da

relação acreditar, vale a pena insistir, parece ser reflexo da sua falta de clareza sobre o papel e

a natureza da relação subordinada dentro da crença. Por não ter claro se a relação subordinada

deve ser considerada como um termo no mesmo nível lógico dos outros termos ou como uma

79 RUSSELL, 1913, p. 108.

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relação num nível lógico acima dos demais termos é que Russell a representa ora como um

objeto (com uma letra minúscula) ora como uma relação (com uma letra maiúscula), e faz o

mesmo com os outros termos também.

O terceiro (e mais grave) problema com as representações simbólicas propostas por

Russell, porém, reside na presença da forma lógica da relação dual como um termo da relação

acreditar. Por que ela está ali? Segundo ele, é para garantir que a relação subordinada

mantenha dentro do contexto de crença as mesmas posições que ela mantinha fora dele, visto

que, para ele, “o processo de ‘unir’ que nós efetivamente podemos fazer no pensamento é o

processo de aplicar [os termos] na relação com a forma geral do complexo”.80

Russell não encontrou o jeito adequado para representar dentro do escopo da relação

acreditar os lugares e as posições que os termos da relação subordinada ocupam quando

ocorrem fora dela. E o remédio aplicado por ele, ao invés de sarar, tornou o ferimento ainda

maior. Haja vista que, ao invés de explicar os lugares e as posições dos termos da relação

subordinada dentro do escopo da relação acreditar, de modo que se harmonizem com os

lugares e as posições deles na relação fora dela, Russell agora terá que explicar também o

lugar e a posição da forma lógica (como termo adicional) dentro do escopo da relação

acreditar.

Em (iv) e (v), por exemplo, a forma lógica é o termo do quinto lugar da relação e em

(vi) ela é o termo do segundo lugar. Por que? Russell não deu nenhuma justificativa para isso

e nem reconheceu que assim a necessidade de explicar a ordem dos termos e dos seus lugares

fica ainda mais gritante. Além disso, a inserção dela como termo da crença para garantir as

posições dos termos da relação subordinada foi totalmente ineficaz. Deve-se entender que o

sujeito aplica a forma aos termos (abraçando eles com a forma) ou que o sujeito aplica os

objetos à forma (preenchendo ela com os objetos)? Mas como se faz uma coisa ou outra? E

ainda que se faça qualquer uma dessas coisas, a forma lógica não garantirá as posições dos

termos.81 E todos esses problemas, claro, ficam ainda mais graves se a relação subordinada

tiver aridade acima de dois.

Tentando remover esses obstáculos no simbolismo das ocorrências da relação

acreditar, a tradição posterior rejeitou a ideia de representar a forma lógica como um termo

80 RUSSELL, 1913, p. 116. 81 RUSSELL, 1913, p. 81.

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separado dos demais e procurou eliminar as inconstâncias na representação dos termos.

Manter a forma lógica como um termo adicional no ato de crença era extremamente

inoperante e não resolvia o problema da representação das posições dos termos. E as

inconstâncias na representação lógica dos termos causavam confusão no tocante à

identificação precisa do que representa um objeto e do que representa uma relação. A solução

veio com a padronização do uso de letras maiúsculas para representar as relações, tanto a que

gera o complexo quanto a subordinada, e o uso de letras minúsculas para representar os

termos particulares. Por exemplo:

(vii) B (s, R, x, y).

Aqui, “B” representa a relação acreditar, “s” representa o sujeito da relação B, “R”

representa a relação subordinada e “x” e “y” representam os termos objetos. Com isso ficou

claro o que representa objetos e o que representa relações, ou seja, o que está em um nível

lógico e o que está em outro. Mas isso não resolveu o problema central que impedira Russell

de chegar a um simbolismo formal eficaz da relação acreditar. Isso apenas resolveu o

problema da padronização na representação dos termos. O problema central para um

simbolismo eficaz da relação acreditar está na explicitação adequada da colocação dos termos

e dos papéis que eles desempenham na relação subordinada. Em (vii), por exemplo, tudo está

envolvido por B, mas os lugares dos termos são todos iguais. O que permite distinguir os

papéis dos termos nas duas relações é a regra sintática que se assumiu para determinar que o

termo do primeiro lugar no simbolismo representa o sujeito da relação B, o termo do segundo

lugar representa a relação subordinada, o termo do terceiro lugar representa o sujeito da

relação subordinada e o termo do quarto lugar representa o relatum da relação subordinada.

Contudo, isso só funciona se a relação subordinada for dual e assimétrica homogênea. Caso a

relação subordinada tenha aridade acima de dois, teremos situações como essa apresentada em

(viii):

(viii) B(s, R, x, y, z).

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79

Qual é o lugar que a relação R ocupa entre os termos x, y e z em (viii)? O simbolismo dado

não oferece nenhuma pista e a regra sintática que usamos antes também não tem como dizer.

A relação R poderá ocorrer logicamente tanto no lugar que fica depois de x quanto no lugar

que fica depois de y. Ou seja, este modelo continua sem responder ao desafio de representar

adequadamente dentro da relação acreditar os lugares do termo que a relação subordinada

determina dentro do escopo da relação acreditar.

Um passo muito importante para resolver essa dificuldade no simbolismo das

ocorrências da relação acreditar foi dado na teoria das relações multigrade. Ele será visto em

detalhe no Capítulo Terceiro, mas podemos concluir esta subseção antecipando sua ideia

central, que consiste em distinguir lugares de posições na ocorrência de uma relação. Os

lugares devem ser demarcados com ponto e vírgula, enquanto que as posições devem ser

demarcadas com vírgulas no simbolismo. Tomemos como exemplo as seguintes ocorrências

da relação lutar com, simbolizada por “F”:

(30) Desdemona lutou com Cássio e Romeu.

(30a) F (d; c, r)

(31) Desdemona e Cássio lutaram com Romeu.

(31a) F (d, c; r)

(32) Desdemona e Cássio lutaram com Romeu e Julieta.

(32a) F (d, c; r, j)

De acordo com a proposta da teoria multigrade a relação lutar com tem dois lugares

de termos e cada um deles pode ocorrer com um ou vários objetos ocupando posições

diferentes. Em (30), por exemplo, ela ocorre com um objeto no primeiro lugar e dois objetos

no segundo lugar, em (31) ela ocorre com dois objetos no primeiro lugar e um objeto no

terceiro lugar e em (32) ela ocorre com dois objetos no primeiro lugar e dois objetos no

segundo lugar. O ponto e vírgula separa os lugares e a vírgula separa as posições que os

objetos ocupam dentro de um lugar, como mostram (30a), (31a) e (32a).

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80

Agora, podemos aplicar a proposta da interpretação multigrade à relação acreditar82

e obter um importante ganho para simbolizar adequadamente a relação acreditar, situando

devidamente a relação subordinada. Tomemos como exemplo três ocorrências da relação

acreditar envolvendo, respectivamente, os juízos expressos em (30), (31) e (32):

(33) Otelo acredita que Desdemona lutou com Cássio e Romeu.

(33a) B (o; F, d; c, r)

(34) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Romeu.

(34a) B (o; F, d, c; r)

(35) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Romeu e Julieta.

(35a) B (o; F, d, c; r, j)

Nesses casos, a relação acreditar é considerada uma relação multigrade de quatro

lugares que, com a ajuda da regra sintática referida acima, podem ser devidamente

interpretados. No primeiro lugar fica o seu sujeito, no segundo lugar fica a relação

subordinada, no terceiro lugar fica o sujeito da relação subordinada e, sendo esta uma relação

assimétrica dual, no quarto ligar fica o relatum ou relata da relação subordinada. Isto

garantirá que os lugares do termo relação, fora do contexto de crença sejam representados

devidamente como posições dentro da crença. O problema, contudo, volta a aparecer quando

a relação subordinada tem mais de dois lugares, porque em tais ocorrências a regra sintática

de que o segundo lugar da relação subordinada pertence ao relatum não vai dar a conta da sua

situação. Nesses casos, porém, quando alcançarmos a resposta para a questão da relação entre

acreditar e a relação subordinada, abriremos caminho para alargar o uso da estratégia

multigrade e acomodar tais situações. Contudo, isso só acontecerá no Capítulo Terceiro. Por

ora, vamos encerrar este Capítulo Primeiro recolhendo os ganhos do percurso feito até aqui.

1.3 A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA VERSÃO E A CRÍTICA À TEORIA RM

82 Justificaremos porque a relação múltipla acreditar pode ser considerada uma relação multigrade na subseção

3.2.1 do Capítulo Terceiro.

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81

De certo ponto de vista, os passos dados nas seções anteriores nos permitem perceber

que, de modo geral, as peculiaridades centrais das três versões da Teoria RM favorecem a

identificação de algumas razões que permitem reconhecer a primeira delas como a melhor e a

mais pertinente para uma releitura bem sucedida. E, outro ponto de vista, os mesmos passos

dados nas seções anteriores também nos permitem perceber uma lacuna profundamente

problemática com alguns pontos cruciais a serem resolvidos e um erro grave, da parte de

Russell. Lacuna esta, que precisa ser devidamente superada para que a primeira versão da

Teoria RM possa funcionar bem.

Além disso, ainda pretendemos mostrar que a crítica à Teoria RM, de modo geral, foi

construída sobre a decisão, errada, que Russell tomou, a partir da segunda versão, de tratar a

relação subordinada como um objeto comum na crença. De modo que nesta última seção do

Capítulo Primeiro, vamos considerar mais detalhadamente as razões para sustentar que a

primeira versão leva vantagem sobre as demais, a lacuna que Russell não conseguiu preencher

na primeira versão e a crítica à Teoria RM.

Assim, para melhor viabilizar esses passos, dividiremos esta seção em quatro

subseções. A primeira tratará das vantagens da Teoria RM. A segunda tratará da lacuna que

impediu Russell de obter sucesso com a primeira versão da Teoria RM e tratará do erro de

Russell em considerar a relação subordinada um objeto comum na crença. A terceira tratará

da crítica á Teoria RM. E, finalmente, a quarta tentará sumarizar o caminho percorrido até o

momento, pondo em relevo os pontos mais importantes para nossa Tese.

1.3.1 A vantagem da primeira versão da Teoria RM

Um olhar global sobre as três versões da Teoria RM nos faz ver que a primeira delas

se destaca das demais por, pelo menos, quatro vantagens que as outras não oferecem e que, se

forem devidamente exploradas, permitirão superar o Problema da Direção e as dificuldades

adjacentes a ele, pontos estes que serão vistos detalhadamente somente no próximo Capítulo.

Em primeiro lugar, ela apresenta a relação acreditar de tal modo, que nos permite vê-la como

uma relação variável na aridade, no número de lugares dos termos e na ordem lógica. De fato,

Russell não afirma, explicitamente, na primeira versão que acreditar tem todas essas

propriedades lógicas, mas ele apresenta o que são relações múltiplas e como a relação

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82

subordinada tem que estar na crença, de tal modo, que nos permite considerá-la uma relação

variável nesses pontos.

De fato, na primeira versão da teoria RM, ele apresenta as relações múltiplas como

relações que podem ocorrer com diferentes números de termos. Sua ilustração lança mão da

relação “... tem ciúmes de ... com...”, mas, sua posição aplica-se a toda relação múltipla:

Nós consideramos [“... tem ciúmes de ... com...”] uma relação de três pessoas, isto é,

como tendo para sua unidade uma relação que podemos chamar de “triangular”.

Mas, se formos além e levarmos em conta a necessidade de uma data, a relação se

torna uma relação “quadrangular”, isto é, a proposição mais simples que envolver a

relação será de quatro termos, nomeadamente, três pessoas e uma data.83

Ora, afirmar que uma relação múltipla pode ocorrer como relação “triangular” e que pode se

tornar uma relação “quadrangular” equivale a dizer que ela pode ocorrer com diferentes

números de termos. E se ela pode ocorrer com diferentes números de termos, então, ela pode

ser vista como relação que varia na aridade e no número de lugares para os termos. Além do

mais, não somente podemos aplicar isso á relação acreditar, como também podemos

acrescentar que a primeira versão da Teoria RM insiste que um dos relata, em suas

ocorrências, “é uma relação”84 e, de certo modo olha pra essa relação como relação. O que

nos permite assumir também que a relação acreditar pode variar de ordem lógica, pois, pode

haver casos em que a relação subordinada seja uma relação de segunda ordem ou de ordem

lógica superior.

Além do mais, a maneira como a primeira versão da Teoria RM apresenta a relação

acreditar nos permite tratá-la como uma relação que opera sobre os termos e, de certo modo,

opera, por meio da relação subordinada, para obter a direção certa dos termos. De fato, afirma

Russell, no texto da primeira versão:

83 RUSSELL, 1910a, p. 181. 84 Ibidem., p. 181.

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83

O juízo que dois termos estão numa relação R é uma relação da mente para os dois

termos e a relação R como sentido apropriado.85

Observemos, porém, que para a relação R ocorrer na crença “com o sentido apropriado” como

sugere Russell, ela tem que ser posta nesse sentido pelo juízo. Afinal de contas, ela também

poderia ser posta com um sentido “inapropriado”. E isso nos faz pensar, mesmo que Russell

não tenha dito como, que, de algum modo, a relação acreditar exerce certo governo sobre a

relação subordinada para poder obter o sentido “apropriado” dos objetos.

Em segundo lugar, apesar da primeira versão da Teoria RM afirmar que os relata da

crença são objetos, ela trata a relação subordinada como uma relação que, de certo modo,

deve estar relacionando os termos envolvidos por ela dentro do escopo da relação acreditar.

De modo que, mesmo afirmando que a relação subordinada está entre os objetos crença,

Russell também diz que ela:

não deve estar abstratamente diante da mente, mas, sim, indo e A para B, mais do

que de B para A”.86

Ora, se a relação subordinada tem que estar diante da mente indo de A para B, então, ela tem

que estar, de algum modo, relacionando A e B. Mais ainda. Ela tem que estar, de algum

modo, determinando os lugares de A e B. Como ela pode fazer isso? Russell não ofereceu

uma resposta para essa questão, deixou a lacuna aberta, mas, nós podemos oferecer uma saída

que justifique como, sendo um objeto (não comum) da crença, a relação subordinada pode ser

posta diante da mente ligando os objetos e determinando as condições para suas posições.

Em terceiro lugar, a primeira versão da Teoria RM favorece a construção de uma

adequada explicação para os lugares e posições dos termos nas ocorrências da relação

acreditar envolvendo relações assimétricas. Ela assume a teoria robusta das relações de

Russell, segundo a qual relações têm um sentido que pode ser percebido pela colocação dos

85 RUSSELL, 1910a, p. 184. 86 Ibidem., p. 183.

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84

termos e seu sentido consiste em ir de um termo para outro. Por conseguinte, no entender da

primeira versão da Teoria RM:

Nós podemos distinguir “dois sentidos” de uma relação, conforme ela vai de A para

B ou vai de B para A.87

Ora, só podemos distinguir “dois sentidos”, se a relação vai de A para B ou de B para A,

quando a relação é assimétrica. E se a relação é assimétrica, então, devemos ter em conta que

assimetria é uma propriedade determinante para os papéis lógicos e os lugares que os termos

ocupam em suas ocorrências. Por isso, ainda que Russell não tenha estendido a reflexão até

esse ponto na primeira versão da Teoria RM, ela favorece que o façamos, inclusive, fazendo

uso também dos ganhos obtidos com a refinada consideração de assimetria feita na terceira

versão.

E, em quarto lugar, a primeira versão da Teoria RM localiza a base do tradicional

Problema da Direção dos termos, diretamente, na natureza da relação subordinada. Pois, se,

por meio da relação subordinada, a relação acreditar pode formar dois sentidos diferentes,

conforme a relação subordinada vai de A para B ou de B para A e, se a relação acreditar deve

pôr a relação subordinada na crença com um sentido apropriado, então, o Problema da

Direção reside nas possibilidades e exigências lógicas que a relação subordinada oferece á

relação acreditar. Mas, como fez Russell na segunda versão e como fizeram os críticos da

Teoria RM, se a relação subordinada for considerada um objeto comum na crença, então o

Problema da Direção está mais para uma construção forçada, fabricada a partir de um

pressuposto insustentável, do que para uma consequência lógica que decorre,

necessariamente, da Teoria RM.

1.3.2 A lacuna que impediu o sucesso de Russell na primeira versão da Teoria RM

A primeira versão da Teoria RM assume que, ao ocorrer numa instância, a relação

acreditar une os vários termos, entre os quais está a relação subordinada, e forma uma

87 RUSSELL, 1910a, p. 184.

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85

unidade, que constitui um juízo ou crença. Russell exemplifica isso com o juízo que Carlos I

morreu no cadafalso. Segundo ele:

Em vista de obter este juízo, nós devemos ter uma unidade singular da mente e

Carlos I e morrer e cadafalso.88

A ocorrência do juízo ou crença só se efetua quando a mente e os termos relata formam uma

unidade lógica. Se não houver tal unidade não haverá uma crença. Então, a grande questão

que essa demanda impõe é saber quem é responsável por esta unidade, a relação acreditar ou

a relação subordinada? A resposta de Russell deveria dizer que as duas relações causam esta

unidade, desempenhando papéis lógicos diferentes e operando em campos também diferentes.

Mas, ela não disse isso e deixou essa lacuna aberta. De fato, como vimos ao longo de todo

este Capítulo Primeiro, apesar de ter assumido na primeira versão que a relação subordinada

tem um papel determinante para a direção dos termos na crença, Russell não conseguiu

justificar como ela faz isso, nem conseguiu dizer qual é sua real participação na constituição

da unidade formada pela ocorrência da relação acreditar.

Além de não ter dado uma resposta às demandas dessa lacuna na primeira versão da

Teoria RM, Russell agravou a situação de sua Teoria, sobretudo, a partir da segunda versão,

quando passou a tratar a relação subordinada como um objeto comum na crença. De fato, ao

admitir que a relação subordinada é apenas um objeto, ao lado dos demais objetos, na crença,

Russell igualou o nível lógico dos termos relata e estabeleceu uma base bastante

questionável para o Problema da Direção. Essa decisão, apesar dele mesmo ter admitido anos

depois que foi um erro, arrastou a crítica à Teoria RM para uma desajustada concepção do

Problema da Direção, como veremos a partir da próxima subseção.

No nosso entender, porém, tanto aquela lacuna deixada por Russell na primeira

versão da Teoria RM, quanto o erro de ter escolhido tratar a relação subordinada como um

objeto comum na crença, podem e devem ser superados. Aquela lacuna demanda uma

justificativa adequada dos pontos que ficaram abertos, uma justificativa que permita explicar a

operação das duas relações, acreditar e a subordinada, quando uma instância da relação

88 RUSSELL, 1910a, p. 178.

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acreditar ocorre efetivamente, que permita explicar a operação específica de cada uma das

duas relações, acreditar e a subordinada, na ocorrência de cada instância e que permita

explicar qual é a relação entre as duas relações, visto que acreditar é a relação principal e a

outra é a relação subordinada, quando as duas formam uma unidade.

Já o erro de ter escolhido tratar a relação subordinada como um objeto comum na

crença, este demanda uma justificativa adequada para o tipo de operação relacionante que a

relação subordinada exerce, sob o comando da relação acreditar. Uma justificativa que

permita explicar como, sendo uma relação subordinada, ela também é uma relação

relacionante. Mas, todos esses passos, só serão dados no Capítulo Terceiro. Antes, ainda

precisamos expor o rumo que a crítica da Teoria RM tomou, ao aceitar, direta ou

indiretamente, o pressuposto russelliano de que a relação subordinada é um objeto comum na

crença.

1.3.3 A Crítica à Teoria RM

Tendo considerado as vantagens que a primeira versão da Teoria RM no oferece, os

pontos abertos para os quais aquela versão não ofereceu resposta e a decisão tomada por

Russell de tratar a relação subordinada como um objeto comum na crença, vamos considerar

agora, mais atentamente, a crítica à Teoria RM. Uma crítica que, de um modo ou de outro,

sempre privilegiou o Problema da Direção e tomou como base, para seus ataques, o

pressuposto russelliano de que a relação subordinada é um objeto comum na crença. Uma

crítica, portanto, que esteve o tempo todo empenhada em mostrar que a Teoria RM não

funciona porque não considera, e não pode considerar, a relação subordinada como uma

relação, mas, que não ofereceu nenhuma saída, nem para superar esse pressuposto, nem para

preencher aquela lacuna inquietante deixada pela primeira versão.

A fim de apreciarmos melhor as características básicas dessa crítica, então, vamos

considerar de modo exemplar a posição de cinco críticos da Teoria RM. Assim, dividiremos

esta subseção em cinco pontos destinados, respectivamente, a cada um deles. Os quatro

primeiros tecem uma crítica radical à Teoria RM e o quinto, apesar de fazer uma brilhante

defesa da Teoria RM, permanece oscilante entre o paradigma que trata a relação subordinada

como um objeto comum e a real necessidade de tratá-la como uma relação dentro da crença.

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87

1.3.3.1 George Frederick Stout

A crítica de Stout à Teoria RM mais contundente encontra-se no texto Mr. Russell’s

Theory of Judgement (1914-15). Nesse texto o seu alvo declarado era a posição de Russell

sobre a relação de correspondência, mas foram os seus golpes à noção de relação subordinada

e ao Problema da Direção dos termos no juízo que atingiram mais gravemente a Teoria de

Russell.

Sobre a relação de correspondência entre o juízo e o fato que, se existir, torna o juízo

verdadeiro, a principal acusação de Stout consistiu em reivindicar que a Teoria RM não tem

direito a falar em relação de correspondência, pois, só se pode falar de correspondência se

houver algo correspondendo a algo, isto é, se “houver alguma coisa que esteja diante da mente

que acredita” e que seja capaz de corresponder “a um fato real”.89 E, uma vez que a Teoria

RM rejeita tanto a ideia de que o sujeito tem um objeto complexo diante da mente quanto a

ideia de que ele precisa estar diante de um fato real para poder julgar, resulta que a relação de

correspondência proposta pela Teoria RM inexiste. Ou seja, aquilo que a Teoria RM postula é

uma relação “entre alguma coisa que a mente não pensa como tal com alguma outra coisa que

ela também não pensa como tal”.90

Se perguntado sobre o objeto complexo que o sujeito da crença deve ter diante da

mente para que a relação de correspondência seja possível, porém, Stout responde que ele

consiste num fato e que este fato “difere de um fato real não em sua natureza, mas no tipo de

ser que lhe pertence”.91 Uma posição, sem dúvida, muito misteriosa. Como é possível um fato

que tenha um tipo de ser diferente de um fato real e não tenha outra natureza? Além do que,

percebe-se que as críticas de Stout não atingem a relação de correspondência proposta por

Russell.

Em primeiro lugar, Russell não sustenta que a relação acreditar é uma relação entre

alguma coisa que o sujeito não tem diante da mente com alguma coisa fora dela que também

não está diante do sujeito. Ele admite que uma crença verdadeira é uma relação entre a

unidade complexa que o sujeito forma em sua mente, a partir da relação múltipla acreditar e

89 STOUT, 1914-1915, p. 335. 90 Ibidem., p. 335. 91 Ibidem., p. 336.

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dos constituintes de um fato possível, e um fato real. Ele assume que a crença é uma criação

do sujeito que, tendo diante da mente os termos de um fato possível, forma uma unidade

lógica complexa e esta unidade pode corresponder ou não a um fato real. E, em segundo

lugar, Russell não nega que o complexo formado na crença tenha outro tipo de ser, ao

contrário, ele defende isto. Só que para ele o complexo da crença tem outro tipo de ser e tem

outra natureza, uma vez que é um complexo mental, dependente do sujeito para existir.92

Outro alvo da crítica de Stout foi a posição de Russell sobre a relação subordinada

num ato de crença. Segundo ele, no caso da crença de Otelo, “‘amar’ não é um constituinte do

complexo real, o constituinte do complexo real é ama. Ama é uma relação relacionando que

liga os seus termos, amar é uma relação universal”.93 Por conseguinte, Otelo está em relação

com a relação universal amar na crença e não com a relação ama, isto é, com a relação

relacionando, e no fato correspondente o que ocorre é a relação amar relacionando, no fato

correspondente o que ocorre é ama.

Para isso, Stout argumentou afirmando que se a relação tomada como constituinte do

ato de crença for uma relação relacionando, não se poderá justificar porque acreditar é a

relação relacionando, uma vez que seria necessário admitir duas relações relacionando no

mesmo complexo. E, além disso, também não daria para justificar por que acreditar não

aparece no fato correspondente.94 Ou seja, visto que Russell admite que acreditar é uma

relação entre um sujeito e vários objetos e que a ocorrência dessa relação será verdadeira se

houver um fato correspondente, se as duas relações ocorrerem como relação relacionando,

fica injustificável o fato da relação subordinada aparecer no fato correspondente e a relação

acreditar não aparecer.

O terceiro e último alvo da crítica de Stout foi o Problema da Direção. Acentuando

predominantemente a segunda versão da Teoria RM, ele construiu uma concepção do

Problema da Direção a partir da decisão que Russell tomou de nivelar a relação subordinada e

os demais termos da crença num único nível lógico. Seguindo esse pressuposto, ele sustentou

uma concepção de Problema da Direção que considera os termos tão separados na crença que

fica quase impossível justificar uma combinação lógica para eles. Afirma ele:

92 RUSSELL, 1910a, p. 184. 93 STOUT, 1914-1915, p. 342. 94 Ibidem., p. 342.

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A crença ‘que A ama B’ é um complexo que inclui como seus constituintes a mente

e A e B e a relação amar. Estes quatro termos são unidos por uma relação singular

que pode ser chamada de julgar. Eles são unidos por ela numa certa ordem, a ordem

que passa de ‘A’ para ‘amar’ e de ‘amar’ para ‘B’, mais do que passa de ‘B’ para

‘amar’ e de ‘amar’ para ‘A’, ou de ‘amar’ para ‘A’ e de ‘A’ para ‘B’ ou de ‘amar’

para ‘B’ e de ‘B’ para ‘A’.95

No modo como Stout põe a tarefa da relação acreditar formar uma ordem lógica com

os termos envolvidos não há nada que indique que eles têm algum papel a desempenhar no

juízo. Eles, simplesmente, estão radicalmente separados e postos diante do sujeito como

objetos da crença. Determinar uma ordem para os termos na relação acreditar, como requer a

Teoria RM, revela-se, então, algo extremamente problemático na concepção de Stout. No

caso da crença “que A ama B”, por exemplo, a mente que julga tem diante de si três termos e

deve reuni-los numa ordem precisa. Acontece que as opções de posicionar os termos numa

direção são tantas que a relação acreditar pode formar não somente ordens adequadas

logicamente como, por exemplo, “A ama B” ou “B ama A”, mas, também “ordens”

inadequadas logicamente como, por exemplo, “ama A B” ou “ama B A”.

O que justificaria toda essa variedade de opções? A resposta de Stout é que a

justificativa para isto encontra-se no fato de que, no juízo “que A ama B” a relação

subordinada amar “não é uma ‘relação relacionando’, mas, apenas, um dos termos ligados

pela relação julgar”.96 Ou seja, a relação subordinada não é considerada como uma relação

ligando seus termos de forma alguma, mas, apenas como objeto da crença e, sendo ela um

objeto no mesmo nível lógico dos demais, a relação acreditar pode colocá-la em qualquer um

dos lugares dos termos no juízo.

1.3.3.2 Nicholas Griffin

A crítica de Griffin à Teoria RM aparece cuidadosamente exposta no seu texto

Russell’s Multiple Relation Theory of Judgement (1985). Seus ataques à teoria de Russell,

como veremos, se movem na mesma direção em que Stout apontou as críticas dele, a saber,

95 STOUT, 1914-1915, p. 341. 96 Ibidem., p. 341, nota de rodapé.

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elas vão de encontro à relação subordinada e ao Problema da Direção. Consideremos, pois,

suas posições numa frente e noutra separadamente.

De acordo com Griffin a relação subordinada exigida pela Teoria RM deve ser uma

relação universal, caso contrário, não seria possível a ocorrência de juízos falsos. Se a relação

entre Desdemona e Cássio, por exemplo, fosse uma relação “particularizada” a teoria da

correspondência não obteria sucesso, pois, como não há o amor de Desdemona por Cássio

também “não há tal relação particularizada de amor entre Desdemona e Cássio”.97 Acontece,

porém, que, no entender dele, sendo a relação subordinada um universal, pelas exigências da

Teoria RM, ela não pode ocorrer na crença como uma relação particularizada ou como uma

relação relacionando. Na crença, insiste ele, em total sintonia com Stout, a relação

subordinada é um mero objeto.

A consideração da relação subordinada como um objeto do juízo é uma marca

importante do pensamento de Griffin sobre a Teoria RM. No texto, Russell on the Nature of

Logic, de 1980, ele já classificava os constituintes de uma ocorrência da relação acreditar

destacando esse seu ponto de vista:

“Sujeito do juízo – /Otelo/;

Objetos do juízo – /Desdemona/, /amar/, /Cássio/;

Termos do juízo – /Otelo/, /Desdemona/, /amar/, /Cássio/;

Complexo subordinado – /Desdemona/, /amar/, /Cássio/;

Acreditar– é a relação principal;

Amar – é relação subordinada;

Constituintes do juízo – todos os termos mais a relação principal”.98

Como podemos notar, nessa sua listagem classificatória dos termos e de suas respectivas

funções no juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio, a relação subordinada é posta como

um dos objetos, ao lado e no mesmo nível dos demais objetos, do juízo. E isso, como veremos

logo mais, servirá de base para radicalizar sua compreensão do Problema da Direção.

O Problema da Direção dos termos nas ocorrências da relação acreditar, não recebeu

uma definição clara por parte de Griffin. Ao invés disso, o que ele fez foi tentar circundá-lo

por meio de três passos bastante curiosos. Primeiro ele desenvolveu uma imagem genérica do

97 GRIFFIN, 1985, p. 215. 98 Ibidem., p. 215.

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Problema da Direção, depois ele repetiu a posição de Stout e, por fim, ele fez uso de algumas

expressões novas para tentar lidar com o Problema.

A imagem genérica usada por ele para tentar apresentar o Problema da Direção é

muito vaga. De acordo com ela, o Problema da Direção consiste na impossibilidade da teoria

RM distinguir entre:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

(36) Otelo acredita que Cássio ama Desdemona.99

Notamos, contudo, que Griffin não define, em seu texto, o que entende por “distinguir”. O

que poderia, realmente, significar sua acusação de que a Teoria RM não distingue o juízo

expresso em (3) do juízo expresso em (36)? Significa que ela não determina os meios para

que Otelo distinga um juízo do outro? A expressão “distinguir” parece se referir à terceira

versão da Teoria RM, onde Russell tratou do Problema da Direção a partir da dificuldade de

encontrar complexos paralelos que fixem as posições dos termos no complexo e permitam

distinguir de modo não-ambíguo os complexos onde os termos ocorrem em posições trocadas.

Griffin, porém, não afirma que faz uso da expressão “distinguir” por estar de acordo

com a posição de Russell na versão de 1913. Ele apenas aponta essa incapacidade na Teoria

RM e passa a confessar, abertamente, sua adesão à posição de Stout. Tal como fez Stout, ele

também assume que em juízos como aqueles expressos por (3) e (36) a relação subordinada “é

um mero termo da relação principal”.100 O que sugere que compreendamos a alegada

impossibilidade de “distinguir” um juízo do outro como sendo a impossibilidade da relação

acreditar distinguir uma ordem da outra na organização dos termos. Haja vista que, se a

relação subordinada é “um mero termo da relação principal”, todos os termos estão no mesmo

nível lógico e o que nós encontramos em (3) e (36) são apenas duas sequências de termos

justapostos.

99 GRIFFIN, 1985, p. 219. 100 Ibidem., p. 219.

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Compreender dessa maneira a afirmação de Griffin sobre a impossibilidade da Teoria

RM “distinguir” os juízos expressos por (3) e (36), parece justificável, finalmente, pela sua

adesão à posição de Stout, pois segundo Stout a mente que julga pode colocar a relação

subordinada até mesmo no lugar dos objetos. Griffin assume isso também e com mais

veemência, a ponto de construir expressões novas para lidar com essas duas faces do

Problema da Direção. Segundo ele, o fato dos termos objetos poderem ser postos

aleatoriamente em qualquer lado da relação subordinada deve se chamar “Problema da

Direção Estreita”, e o fato da própria relação subordinada ser posta no lugar dos termos como,

por exemplo, em algo do tipo “B (Otelo, Desdemona, Cassio, amar”, deve se chamar de

“Problema da Direção Larga”.101

As expressões novas sugeridas por Griffin, contudo, não trouxeram nenhuma

novidade substancial para o Problema da Direção. O pressuposto básico para distinguir essas

duas formas de compreender o Problema da Direção já fora posto por Russell na segunda

versão da Teoria RM e fora, devidamente, acentuado por Stout em 1914. A saber, o

pressuposto de que a relação subordinada é um mero termo no juízo. As novas expressões

sugeridas por Griffin apenas exaltam as duas faces do Problema, mas não põem em discussão

a validade daquele pressuposto nem questionam a possibilidade de outro melhor ocupar o

lugar dele.

O Problema da Direção, no entender de Griffin, então, emerge da consideração de

que a relação subordinada é um objeto comum nas ocorrências da relação acreditar. Posição

esta que, como já vimos, Russell havia assumido na segunda versão da Teoria RM. Mas,

Griffin também dirige parte de sua crítica àquela solução oferecida por Russell na primeira

versão da teoria RM. Para ele, a solução dada por Russell naquela versão é problemática

porque ela afirma que a relação subordinada tem que estar diante da mente que julga como

uma relação particularizada ou como uma relação relacionando:

A sugestão de Russell de que a relação subordinada tem uma direção só faz sentido

se se supõe que a relação subordinada é ou uma relação particularizada ou uma

relação relacionando. E a teoria da relação múltipla não requer nem uma nem

outra.102

101 GRIFFIN, 1985, p. 219. 102 GRIFFIN, 1985, p. 220. (Itálico nosso).

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Como podemos ver nesta citação, Griffin é enfático com as condições para que a relação

subordinada ocorra no juízo com uma direção determinada. Ou ela é uma relação

particularizada, ou ela é uma relação relacionando seus termos. Mas, sem justificar porque

isso tem que ser assim, ele deixou o assunto por aí mesmo. A Teoria RM não poderia lidar

com a relação subordinada em nenhum desses dois modos e ponto final. Nossa posição,

contudo, insurge-se contra a proposta de Griffin e questiona: será mesmo que a Teoria RM

não requer e não comporta a relação subordinada como relação “relacionando”? Será que

Griffin não está lidando com uma compreensão reducionista do que vem a ser uma “relação

relacionando”?

1.3.3.3 Russell Wahl

Russell Wahl, no texto Bertrand Russell’s Theory of Judgement (1986), tenta

sintetizar as críticas à Teoria RM, visando pôr em evidência “as objeções mais fortes e aclarar

os pressupostos que estão por trás das rejeições à Teoria do Juízo como Relação Múltipla”.103

O pressuposto de onde brotam os problemas mais inquietantes para a Teoria RM, segundo ele,

é o que assume que a relação subordinada não desempenha a função de relatar quando ocorre

no interior de uma crença, isto é, que ela é apenas um objeto como os demais termos da

relação acreditar. E, como decorrência desse pressuposto, as objeções mais fortes contra a

Teoria RM são aquelas relativas à direção dos termos na relação subordinada.

Uma vez que a Teoria RM considera a relação subordinada um objeto comum e não

como uma relação relacionando seus termos, interpreta Wahl, “a diferença entre ‘A julga que

aRb’ e ‘A julga que bRa’ não pode ser contabilizada”.104 Haja vista que, os termos julgados

estão separados diante do sujeito que julga e a relação subordinada é um termo como os

outros, não uma relação relatando, segue-se que tanto faz o sujeito pensar uma seqüência ou

outra para os termos. O fato dele colocar o termo a antes ou depois da relação R fica

totalmente arbitrário. E o mesmo vale para o termo b.

Além disso, segundo Wahl, por considerar a relação subordinada um objeto no mesmo

nível dos demais termos da crença, a Teoria RM se envolve noutro problema ainda mais

103 WAHL, 1986, p. 383. 104 Ibidem., p. 389.

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grave. Trata-se do problema de que “o juízo tem que ser alguma coisa logicamente possível”

e, sendo a relação subordinada um termo comum na crença, o sujeito da relação acreditar

poderá combinar sequências de termos absurdas, sem nenhum sentido lógico. Nas palavras

dele, “ao considerar a relação subordinada um termo no mesmo nível lógico dos outros

objetos da crença, a Teoria RM demonstra uma rejeição impraticável a qualquer ordem lógica

de tipo superior”.105 E a consequência disso é devastadora para a Teoria, ela não tem como

excluir os chamados “juízos sem sentido”.

1.3.3.4 Alexander Miller

Em Russell, Multiple Relations, and the Correspondence Theory of Truhth, 2006,

Alexander Miller tece uma interessante crítica à Teoria RM. Ele toma como base para suas

posições a Teoria RM apresentada por Russell na segunda versão.106 E isso faz com que ele se

alinhe nos passos de Russell e dos demais críticos da Teoria RM na aceitação de que a relação

subordinada é um objeto da relação acreditar.107 De acordo com ele, a Teoria RM tem seu

problema mais radical na questão da ordem dos termos. Para ele, a ordem dos termos ou é

imposta pela relação acreditar ou é imposta pela relação subordinada. Em ambos os casos,

porém, o resultado é devastador:

Se, na crença de Otelo, a relação amar é que impõe uma ordem sobre Desdemona e

Cássio, a teoria colapsa numa relação dual e torna impossível haver crenças falsas;

por outro lado, se é a relação acreditar que impõe a ordem, então, em virtude do fato

de que uma relação de quatro lugares não impõe uma ordem sobre Desdemona e

Cássio, nós temos os problemas delineados nas seções acima.108

Falaremos desses problemas a que Miller se refere com a expressão “delineados nas seções

acima” logo mais. Antes, porém, precisamos examinar a primeira crítica aludida por ele nesta

citação que acabamos de fazer, isto é, examinar por que, no entender dele, a Teoria RM

colapsa numa teoria da relação dual e crenças falsas não serão permitidas se couber à relação

subordinada a tarefa de impor a ordem a Desdemona e Cássio no juízo de Otelo.

105 WAHL, 1986, p. 393. 106 Cf. MILLER, 2006, p. 85-86, 90. 107 “Nesta unidade complexa, Otelo é o sujeito e Desdemona, a relação amar e Cássio são os objetos”. (Ibidem.,

p. 89.) (Tradução nossa. Itálicos do autor). 108 Ibidem., p.98. (Tradução nossa. Itálicos do autor).

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A justificativa de Miller para este ataque é que, se a relação subordinada for

responsável pela ordem dos termos, então, a crença de Otelo que Desdemona ama Cássio será

uma relação dual entre Otelo e a unidade formada pela relação amar. E, nesse caso, se a

crença de Otelo for uma relação com a unidade formada pela relação amar ligando

Desdemona e Cássio, ela só poderá ocorrer se de fato existir o amor de Desdemona por

Cássio. Não há espaço para crenças falsas. Acreditar, então, só poderia ocorrer se o complexo

subordinado existisse de fato.

Em contrapartida, porém, se a ordem dos termos Desdemona e Cássio for imposta

pela relação acreditar, e não pela relação amar, então chegaremos aos problemas que Miller

diz ter abordado “nas seções anteriores” do seu artigo. Vejamos agora quais são esses

problemas.

De acordo com ele, se a relação acreditar for responsável pela ordem dos termos, a

Teoria RM tem dois graves problemas, a saber, o de indicar quais são de fato os termos sobre

os quais ela impõe uma ordem e o de justificar com que direito se pode dizer que ela impõe

uma ordem sobre Desdemona e Cássio. Consideremos melhor um e outro.

Em primeiro lugar, de acordo com Miller, Russell demonstra uma hesitação muito

significante no que diz respeito à indicação do que realmente sejam os objetos sobre os quais

a relação acreditar impõe a ordem. No entender dele, Russell deixa entrever três posições na

versão de 1912:

“A relação acreditar ordena os constituintes da crença: Otelo, Desdemona, a relação

amar e Cássio. (...)

A relação acreditar ordena os termos objetos da crença: Desdemona, a relação amar

e Cássio. (...)

A relação acreditar ordena os termos-objetos da crença: Desdemona e Cássio”.109

De acordo com Miller, dessas três possibilidades, Russell só pode contar com a terceira opção

se quiser preservar sua teoria da correspondência. Pois, como para Russel a correspondência

que torna a crença verdadeira consiste da ordem dos termos na crença ser a mesma ordem dos

termos que a relação subordinada impõe aos termos no fato correspondente, a relação

acreditar só pode impor aos termos a ordem que a relação subordinada tiver imposto a eles no

fato. Além disso, insiste Miller, como no caso da crença de Otelo é bastante claro que a ordem

sobre Desdemona e Cássio é imposta pela relação amar, o resultado seria lastimável, pois

somente crenças verdadeiras seriam permitidas.

109 MILLER, 2006, p. 90-91.

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Em segundo lugar, se os termos Desdemona e Cássio devem ter no juízo a mesma

ordem que tem no fato correspondente, temos um sério problema de violação da operação da

relação acreditar. Uma vez que, na ocorrência da crença de Otelo, acreditar é uma relação de

quatro lugares, não podemos afirmar que ela impõe a ordem sobre Desdemona e Cássio. De

fato, insiste Miller, uma relação de n-lugares não impõe uma ordem a m objetos, se m < n.

Para ele, por exemplo, não faz sentido dizer que a relação x tem ciúmes de y com z impõe uma

ordem sobre Abelardo e Heloisa. Portanto, “sendo acreditar uma relação de quatro lugares, ela

não impõe uma ordem sobre dois objetos. Não faz sentido. Assim como não faz sentido

afirmar que a relação x deseja que y promova o casamento de z com w impõe uma ordem

sobre John e Agnes”.110

1.3.3.5 Samuel Lebens

Diferentemente dos críticos acima, Samuel Lebens (2017) considera a Teoria RM

totalmente viável e capaz de superar todas as críticas que se levantaram contra ela, desde que

Russell a pôs em público. Segundo ele, foi um erro de Russel ter abandonado a Teoria RM,

pois, ela constitui uma alternativa sólida ao realismo proposicional e, no tocante aos grandes

problemas que uma Teoria do Juízo deve responder, ela é mais eficaz que a Teoria do Juízo

Dual.

Samuel também considera a relação subordinada o pivô das dificuldades e dos erros

de interpretação que marcaram as críticas levantadas contra a Teoria RM. Ele chama a relação

subordinada de “relação-objeto”. No seu entender, a relação-objeto não ocorre no juízo como

uma relação relacionando, mas também não ocorre “como um mero objeto”.111 E, posição

com a qual concordamos plenamente, as críticas até então conhecidas estão todas apoiadas

numa compreensão superficial e errada da posição de Russell sobre essa relação.

A raiz da questão, sem dúvida, está na versão de 1910, insiste Lebens, cujo epicentro

“foi a estipulação por parte de Russell, de que a relação-objeto, como ela entra no juízo, deve

ter um sentido”. Visto que Russell não queria que a relação objeto entrasse no juízo como

110 MILLER, 2006, p.91. 111 LEBENS, 2017, p. 186.

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uma relação relacionando, ele assumiu que ela entra como um objeto, mas, com um sentido

ou direção.

Acontece que essa posição de Russell, inclusive, com certa ajuda da linguagem que

ele empregou, foi interpretada pelos críticos de forma totalmente inaceitável. Eles entenderam

que a reivindicação de Russell consistia em afirmar que a relação-objeto tem uma direção

quando vai de A para B e tem outra direção quando vai de B para A. Esse erro foi tão

lamentável e generalizou-se de tal modo, que Samuel dedica a ele uma consideração

minuciosa e o ilustra com o seguinte esquema:

Acreditar (Otelo, Desdemona, amar, Cássio)

(Quando Otelo acredita que Desdemona ama Cássio)

Acreditar (Otelo, Desdemona, amar, Cássio)

(Quando Otelo acredita que Cássio ama Desdemona)

Esta interpretação da posição de Russell, porém, é inaceitável, insiste Lebens. E, em

seu entender, o chamado Problema da Direção Estreita surge, exatamente, a partir dela. Daí a

importância de sua confissão assumindo que pôde constatá-la “em toda apresentação da

história da teoria do juízo como relação múltipla” que chegou a examinar.112 Por isso, ele

insiste no quanto é importante reconhecermos que essa interpretação da posição de Russell é

superficial e incompleta. Ela é superficial, porque “Russell estava profundamente

comprometido com a certeza de que relações relatam numa direção”, desde a publicação de

The Principles.113 Seria bastante injustificável agora achar que Russell passou a admitir que

relações relatem em direções diferentes. Ao contrário, sustenta Lebens, Russell introduziu a

ideia de que a relação-objeto tem uma direção por razão mais profunda, que precisa ser

alcançada, caso contrário, ficamos apenas na superfície do problema. E ela é incompleta,

porque não chega ao problema de fundo e o problema de fundo que Russell queria superar,

112 LEBENS, 2017, p. 120. 113 Ibidem., p. 120.

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juntamente com o Problema da Direção, que era o problema da representatividade, ou seja, “o

problema de explicar porque o complexo proposicional é capaz de representar coisas”.114

Assim, Russell queria explicar porque, se proposições são compostas de

constituintes, os constituintes da proposição se colam um no outro de modo representacional.

Problema este de fundamental importância e para o qual estamos convencidos que a Teoria

RM tem uma resposta pertinente, mas que, para não fugir do nosso interesse central, não o

consideraremos em profundidade aqui. De modo que, nossa atenção a ele será apenas em vista

de colher o aspecto que mais nos interessa para nosso propósito, a saber, que Russell

reconhece um sentido ou direção na relação subordinada a fim de justificar por que a

proposição formada pelo juízo é capaz de representar. De fato, é porque a relação objeto tem

uma direção que se torna possível explicar porque juízos são capazes de representar. É

justamente porque a relação-objeto tem uma direção que podemos distinguir “A ama B” de

“B ama “A” como representações diferentes, mas não podemos distinguir nada de

significativo entre a lista “A, amar, B” e a lista “B, amar, A”, porque em tais listas a relação

não tem uma direção lógica.

Diante disso, a questão decisiva passa a ser a de saber como a relação-objeto pode

entrar no juízo com uma direção, se Russell a considera um objeto. E a curiosa resposta de

Lebens para isso é que “Russell não quis que a relação-objeto relacionasse, ele quis apenas

que ela parecesse como se estivesse relatando”,115 ou seja, ao fazer um juízo ou crença, o

sujeito está relacionado com os objetos e com a relação-objeto e ele os ordena formando uma

representação mental com eles. Para isso, o sujeito pensa a relação-objeto “como se” ela

estivesse relacionando, ele pensa a relação-objeto de modo que ela “pareça relacionar”. Pois,

insiste Samuel, estamos relacionados com os objetos e a relação-objeto separadamente e o que

os torna representacionais “é como eles aparecem para nós no ato da crença”.116

Este ponto é muito importante. O que Lebens está reivindicando é muito decisivo

para a Teoria RM. De acordo com ele, no ato de acreditar, o sujeito está numa relação direta

com os termos em sua mente. Ele não opera com representações; ele opera com os próprios

termos para formar representações. Por conseguinte, quando ele ordena os termos numa

114 LEBENS, 2017, p. 120. 115 Ibidem., p. 122. 116 Ibidem., p. 122.

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direção, ele cria uma representação deles no mundo. Representação que pode ser verdadeira

ou falsa.

Desse modo, quando o sujeito aplica uma qualidade a um objeto ou uma relação a

objetos, ele está predicando sobre eles, isto é, ele está atribuindo algo de algo ou ligando algo

a outro algo. Ora, para Lebens isso é exatamente dar as condições de verdade daquilo que está

sendo julgado. Ou seja, isso já é determinar como as coisas têm que estar para que o juízo seja

verdadeiro. Portanto, formar uma crença nunca é fazer um juízo sem uma direção lógica, pois

julgar já é determinar as condições de verdade. Julgar ou acreditar já é dar as condições de

verdade de uma representação ou combinação dos objetos. E uma lista de termos sem uma

direção lógica não tem condições de verdade.

A principal consequência disso, afirma Lebens, é que as ocorrências da relação

acreditar não consistem apenas em juntar objetos numa lista. Elas ligam os termos com a

relação-objeto apontando uma direção para eles e determinam as condições de verdade do

juízo asserindo que os termos estão assim e assim no fato. Ou seja, elas determinam as

condições de verdade do juízo ligando intencionalmente um objeto a outro.

1.4 SUMARIZANDO

Chegando ao final deste Capítulo Primeiro, parece cabível sumarizar, ainda que

brevemente, os principais pontos, no tocante ao nosso objetivo, que pretendemos realçar até

aqui. Em primeiro lugar, podemos destacar três pontos importantes para entendermos a Teoria

RM, a saber, que há boas razões para considerarmos a primeira versão publicada por Russell

melhor que as outras, que a relação subordinada deve ter um papel determinante na

constituição da crença e que, sendo a subordinada uma relação assimétrica, ela determina

papéis e lugares lógicos diferentes para os termos da crença.

Em segundo lugar, podemos destacar dois pontos importantes que ameaçam o sucesso

da Teoria RM, a saber, a lacuna explicativa da relação entre as duas relações, que a primeira

versão deixou sem resposta e o erro de Russell em decidir tratar a relação subordinada como

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um objeto comum na crença. E esses dois pontos acabaram por favorecer o surgimento de

uma crítica devastadora contra a Teoria RM.

Essa crítica, como vimos acima, apoiou-se totalmente no pressuposto russelliano de

que a relação subordinada é um objeto comum na crença. E com base nessa convicção,

ignorou o papel determinante da propriedade assimétrica da relação subordinada, aplainou os

níveis lógicos dos termos relata na relação acreditar e forjou uma concepção do Problema da

Direção, onde nada mais toca à relação acreditar, em suas ocorrências, senão o papel de

posicionar os termos relata lado a lado. Contudo, sem o pressuposto de que a relação

subordinada é um objeto comum na crença, essa crítica definha rapidamente.

Ainda mais. Devemos notar também que se esse pressuposto for levado a sério, essa

mesma crítica cai em embaraços desagradáveis. Primeiro, se a relação subordinada for um

objeto comum na crença, não haverá uma unidade de crença e sim uma justaposição de

objetos. Segundo, se a relação subordinada for um objeto comum na crença, não se pode nem

falar de crença, os relata ficam todos “iguais”, pois, não pode se falar em nada de

determinante da parte dos relata. E, neste último caso, se nem os objetos, nem a relação

subordinada, determinam nada, então, a única coisa que se pode fazer com eles é nomeá-los.

Em contrapartida, também devemos notar que a negação desse pressuposto tão caro à

crítica da Teoria RM nos impõe o dever de retomar a tarefa inacabada de Russell na primeira

versão e oferecer uma explicação adequada para a relação entre a acreditar e a relação

subordinada no ato da crença. De fato, ao decidirmos tratar a relação subordinada como uma

relação será preciso justificar em que consiste sua operação relacionante e como isso se

harmoniza com a operação relacionante da relação principal, que é a relação acreditar. Mas,

isso só será enfrentado no Capítulo Terceiro, onde também daremos uma resposta aos críticos

apresentados acima. Antes de chegarmos lá, porém, precisamos expor, cuidadosamente, o

Problema da Direção, em seu tradicional desdobramento e as dificuldades adjacentes a ele. E

essa será a tarefa do Capítulo Segundo.

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2 O PROBLEMA DA DIREÇÃO DOS TERMOS E SUAS DIFICULDADES

ADJACENTES

Tradicionalmente, os críticos da Teoria RM deram mais atenção ao Problema da

Direção dos termos na relação acreditar, do que a certas dificuldades relativas a ele. Mas, não

sem prejuízos, essa atenção demasiada ao Problema da Direção deixou em segundo plano tais

dificuldades que, por sinal, devem ser tratadas antes do Problema da Direção e que, em seu

conjunto, revelam que o verdadeiro Problema, a fonte de todos eles, é uma compreensão

inadequada da relação subordinada e uma grave falta de distinção do seu campo de operação

em comparação com o da relação acreditar. Dentre as dificuldades que ficaram em segundo

plano, pela importância que o enfrentamento delas representa para o funcionamento da Teoria

RM, destacamos a dificuldade na variação da aridade, no número de lugares e na ordem

lógica da relação acreditar, bem como a dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos

termos na crença e a dificuldade no simbolismo formal das ocorrências relação acreditar.

Em todas essas dificuldades, como veremos ao longo deste Capítulo, o pivô das

dificuldades é a relação subordinada e a falta de distinção entre o seu campo de operação e o

da relação acreditar. O Problema da Direção, por exemplo, está ligado à dificuldade de

conciliar a operação da relação subordinada com a operação da relação acreditar ou à

lamentável decisão de considerar a relação subordinada um mero objeto da relação acreditar.

Enquanto que a dificuldade na explicação da variação de aridade, do número de lugares e de

ordem lógica da relação acreditar está ligada à falta de clareza da relação que existe entre a

operação da relação acreditar e a operação da relação subordinada na determinação dessas

variações. E a dificuldade no simbolismo formal, por sua vez, está ligada ao desafio de

representar adequadamente os lugares impostos pela relação subordinada, preservando a

compreensão dos papéis lógicos que a relação acreditar atribui aos termos, por meio dela,

numa ocorrência efetiva.

Este Segundo Capítulo, então, será dedicado à apresentação do Problema da Direção

e às dificuldades explicativas da variação, da identificação dos papéis lógicos dos termos e do

simbolismo lógico nas ocorrências da relação acreditar. Ele será estruturado em quatro

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seções, sendo algumas delas ainda subdivididas em subseções. A primeira seção tratará do

Problema da Direção. Discutirá a falta de uma definição precisa deste Problema e o modo

bastante difundido de desmembrá-lo em Problema da Direção Estreita e Problema da

Direção Larga. A segunda seção considerará as dificuldades adjacentes ao Problema da

Direção, a saber, a dificuldades relativas à na variação da aridade, no número de lugares dos

termos e na ordem lógica, bem como as dificuldades relativas à identificação dos papéis

lógicos dos termos e ao simbolismo formal nas ocorrências da relação acreditar. A terceira

seção procurará pôr em relevo a dificuldade central que os defensores do Problema da

Direção encontram para tratar o papel relacionante da relação subordinada na Teoria RM. E,

finalmente, a quarta seção procurará sumarizar os passos dados ao longo do Capítulo,

destacando os ganhos obtidos e o ponto central de toda a problemática.

2.1 O PROBLEMA DA DIREÇÃO NOS RELATA DA RELAÇÃO ACREDITAR

Na primeira versão da Teoria RM, Russell apresentou o Problema da Direção

dizendo que, uma vez que não há mais uma entidade chamada “proposição”, o juízo “que A

ama B”, por exemplo, “consiste de uma relação da pessoa julgando para A e amar e B, isto é,

da pessoa julgando para A e B e a relação ‘amar’. Mas este juízo não é o mesmo que o juízo

‘B ama A’”.117 Ora, o juízo “que A ama B” não é o mesmo que o juízo “que B ama A”, o que

parece inquestionável, exatamente, porque os termos da relação estão em direções opostas. No

primeiro juízo nós temos os termos na posição A-amar-B e no segundo juízo nós temos os

temos na posição B-amar-A. Este é o Problema da Direção para a primeira versão da Teoria

RM. Contudo, é preciso se perguntar com muito cuidado, em que consiste realmente esse

Problema? Em explicar por que o primeiro juízo é diferente do segundo, mostrando como

distinguir um do outro, ou em explicar como o sujeito, estando na relação múltipla relação

acreditar com A e B e amar, forma um juízo e não o outro?

Russell se debateu exaustivamente com esse Problema, mas, ele mesmo não ofereceu

uma definição clara do que é o Problema da Direção. Ele limitou-se a ilustrar o Problema, e

mesmo assim o fez de modos diferentes, o que já é, sem dúvida, um sério problema. Entre os

críticos da Teoria RM que pudemos examinar a situação também não é muito diferente.

Podemos encontrar neles diferentes ilustrações do Problema da Direção na Teoria RM, mas,

117 RUSSELL 1910a, p. 183.

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nada de definição exata. De modo que, antes de avançar na consideração do Problema,

precisamos primeiro considerar as diferentes maneiras com que Russell e alguns de seus

críticos o ilustram, a fim de estabelecer, pelo menos, uma base segura para assumi-lo.

2.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção

No decurso das três versões da Teoria RM, Russell ofereceu três ilustrações

diferentes do Problema da Direção. Na primeira versão, ele ilustrou o Problema da Direção

situando-o na operação da relação subordinada. Na segunda versão, ele ilustrou o Problema da

Direção na operação da relação acreditar. E, na terceira versão, ele ilustrou o Problema da

Direção situando-o na relação que cada termo mantém com o complexo do qual faz parte.

Por sua vez, os críticos que consideramos, Stout, Griffin e Landini, também

ilustraram o Problema da Direção de modos diferentes. O primeiro deles explorou a ideia de

que a relação subordinada é um termo no mesmo nível lógico dos demais termos do juízo. O

segundo deles apresentou o Problema da Direção como sendo a impossibilidade de distinguir

ocorrências da relação acreditar envolvendo os mesmos relata em ordens diferentes. E o

terceiro deles assumiu o Problema da Direção como sendo a dificuldade de encontrar uma

descrição que capture a diferença nas estruturas dos complexos formados com os mesmos

relata em ordens diferentes.

Tanto em Russell, quanto nesses críticos, porém, a base para construir suas

respectivas ilustrações do Problema da Direção, de um modo ou de outro, está na má

compreensão da relação subordinada e da distinção entre o seu campo de operação e o campo

de operação da relação acreditar. Consideremos melhor, e separadamente, agora, essas

diferentes apresentações que Russell e os críticos citados fazem do Problema da Direção.

2.1.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção em Russell

Na primeira versão da Teoria RM Russell ilustrou o Problema da Direção, a partir da

relação subordinada. Segundo ele, o Problema da Direção surge do fato de que uma relação

subordinada, sendo dual e assimétrica, tem “dois sentidos”, conforme ela vai de A para B ou

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de B para A, dentro do escopo da crença.118 E, como essas duas possibilidades de ocorrências

são logicamente cabíveis, a relação acreditar tanto poderá concretizar uma quanto a outra. O

Problema, então, será o de decidir como o sujeito, estando na relação acreditar, aplica a

relação subordinada indo de A para B ou de B para A. Podemos expressá-lo com a seguinte

pergunta: com base em que o sujeito, estando na relação acreditar, posiciona a relação

subordinada indo de A para B ao invés de ir de B para A?

Na segunda versão da Teoria RM Russell também não deu uma definição do

Problema da Direção e, de novo, procurou ilustrá-lo fazendo uso de uma situação concreta.

Desta vez, porém, ele não situou o Problema da Direção nas possibilidades lógicas da relação

subordinada, mas, sim, na relação principal, a relação acreditar. Segundo ele, a relação

acreditar é que é responsável pela direção dos termos relata. Ela é que tem “um sentido ou

direção” e, portanto, ela é que põe os termos todos numa certa ordem. O juízo de Otelo que

Desdemona ama Cássio, por exemplo, difere do seu juízo que Cássio ama Desdemona, apesar

dos dois juízos serem formados pelos mesmos relata, porque a relação acreditar posiciona os

relata em ordens diferentes nos dois casos.119

A mudança de concepção do Problema da Direção operada por Russell, entre a

primeira e a segunda versão foi muito grande e é importante perceber suas consequências. Ele

retirou todo o peso da relação subordinada na constituição da direção dos relata e o pôs

totalmente na relação acreditar. O problema deixou de ser como a relação acreditar pode

aplicar uma relação subordinada R indo de A para B ao invés de ir de B para A, e passou a ser

como a relação acreditar põe ARB ou BRA numa ordem precisa.

A transferência da responsabilidade da direção dos termos relata, da relação

subordinada para a relação acreditar, contudo, não foi ainda o ponto mais significativo da

mudança de posição operada por Russell. O ponto mais significativo, porque foi também o

mais grave, foi ele ter retirado toda e qualquer participação da relação subordinada na

constituição da direção dos termos e ter “retirado” o status de relação da relação subordinada,

reduzindo-a a um mero objeto da crença. No fundo, isso foi mais grave do que o fato de ter

afirmado que somente a relação acreditar determina a direção dos termos, pois com isso

Russell deu azo para afirmar que o Problema da Direção consiste não apenas em explicar com

118RUSSELL 1910a, p. 183-184. 119 Idem., 1912, p. 198.

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base em que o sujeito, estando na relação acreditar, pode colocar os termos na ordem ARB ou

BRA, mas também na ordem RAB ou ABR.

Na terceira e última versão da Teoria RM, por seu turno, Russell mudou de posição

mais uma vez, no tocante ao Problema da Direção e passou a sustentar que ele não está nem

na relação relacionando os termos nem no complexo que ela forma com os termos. O

Problema da Direção está na relação dos constituintes do complexo para com o complexo.

Relações estas que constituem as posições dos termos no complexo.120 Por exemplo: a relação

dual assimétrica R permite formar dois complexos lógicos diferentes com os termos x e y,

conforme esses termos constituam os complexos xRy ou yRx.

A direção ou sentido, defendeu Russell nesta versão da Teoria RM, está exatamente

nas relações de x e y para com o complexo formado por R e esses termos. No complexo xRy,

por exemplo, o termo x mantém com o complexo uma “relação assimétrica heterogênea”. Esta

relação entre x e o complexo é única, ela determina a posição de x no complexo porque ela é

não-permutativa. Russell a simbolizou como “AR”. De outra parte, o termo y também mantém

uma relação assimétrica heterogênea única com o complexo, que determina a posição de y no

complexo. Russell a simbolizou como “BR”.

Desse modo, as posições dos termos num complexo dual são determinadas pelas

relações desses termos com o complexo que integram. Mas, para determinar as posições de

uma relação dual, a relação acreditar terá que determinar também que termo mantém a

relação AR e que termo mantém a relação BR nela própria, além de determinar que termo

mantém a relação CR e que termo mantém a relação DR quando o complexo geral for

quaternário, por exemplo. Haja vista que, na terceira versão, Russell continuou a tratar a

relação subordinada como um termo comum na crença. Assim, na ocorrência da relação

acreditar descrita pela frase (3), por exemplo, teríamos as seguintes relações, entre os termos

e o complexo, determinando as posições dos termos:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

AR BR CR DR

120 RUSSELL, 1913, p. 88

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106

A questão que esse jeito de ver as posições levanta é: o que determina a direção das

posições estabelecidas pelas relações assimétricas heterogêneas AR, BR, CR e DR? Que

diferença faz para a relação acreditar formar outra sequência com essas relações, se os termos

e posições estão todos no mesmo nível lógico?

O Problema da Direção agora passou a ser o problema das posições, definidas a

partir da relação de cada termo com o complexo. A relação acreditar terá que decidir que

termo põe numa posição e noutra. Mas, para fazer isso, primeiro será preciso decidir que

termo mantém a relação BR, CR e DR com o “complexo”. E, a tarefa de decidir que termo

ocupa a posição BR no “complexo”, por exemplo, já é um Problema da Direção. Haja vista

que, tanto Desdemona quanto amar e Cássio, podem manter a relação BR naquela ocorrência,

então, podemos expressar o Problema da Direção com a seguinte pergunta: com base em que

a relação acreditar atribui o termo x ou o termo y ou o termo z à posição que mantém a

relação BR com o complexo que ela forma envolvendo uma relação assimétrica dual, se tanto

o termo x quanto o termo y ou o termo z podem ser, igualmente, atribuídos àquela posição?

2.1.1.2 Divergências na apresentação do Problema da Direção nos críticos

Como vimos em 1.3.3.1, Stout, privilegiando a segunda versão da Teoria RM,

construiu sua concepção do Problema da Direção sustentando, como fez Russell, nessa

mesma versão, que a relação subordinada é um objeto no mesmo nível lógico dos demais

objetos da crença. Apesar dele dizer que estava preocupado, ao analisar a Teoria RM, com a

questão da correspondência entre juízo e fato, ele esboçou uma consideração da direção dos

termos na relação acreditar que influenciou muito a história da Teoria RM e, em particular, o

modo de conceber o Problema da Direção:

A crença ‘que A ama B’ é um complexo que inclui como seus constituintes a mente

e A e B e a relação amar. Estes quatro termos são unidos por uma relação singular

que pode ser chamada de julgar. Eles são unidos por ela numa certa ordem, a ordem

que passa de ‘A’ para ‘amar’ e de ‘amar’ para ‘B’, mais do que passa de ‘B’ para

‘amar’ e de ‘amar’ para ‘A’, ou de ‘amar’ para ‘A’ e de ‘A’ para ‘B’ ou de ‘amar’

para ‘B’ e de ‘B’ para ‘A’.121

121STOUT, 1914-1915, p. 341.

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107

Decidir-se por uma ordem para os termos na relação acreditar, como requer a Teoria

RM, passa a ser um grande problema na concepção de Stout. No caso da crença “que A ama

B”, por exemplo, a mente que julga tem diante de si três termos e deve dar a eles uma ordem

precisa. Mas, a fragmentação postulada por Stout é tão radical que a relação acreditar tanto

pode ordens que tenham um sentido lógico, quanto pode formar seqüências que não tenham

um sentido lógico.

Gregory Landini (1990), por sua vez, deixou claro que compreende o Problema da

Direção a partir da terceira versão da Teoria RM.122 Ele aceitou a distinção terminológica

dada por Griffin ao Problema da Direção e também procurou tratá-lo como “Problema da

Direção Estreita” e “Problema da Direção Larga”.123 Segundo ele, o Problema da Direção

Estreita foi, até então, tratado de modo errado. A consideração que se deu a esse Problema,

até o presente, foi tentar explicar como, por exemplo, a crença de Otelo que Desdemona ama

Cássio difere da sua crença que Cássio ama Desdemona. Os interpretes anteriores teriam

considerado isso como sendo o Problema da Direção porque, uma vez que a Teoria RM

quebra os relata do juízo e os coloca separados diante da mente que julga, precisam manter

que Otelo teria que arrumar os relata numa ordem apropriada.

Landini insiste que esse não é o caminho certo porque, desde o início, Russell já

admitiu que a-ama-b e b-ama-a são complexos diferentes. E isso vale também para os

complexos de crença. A crença de Otelo que a-ama-b é um complexo diferente da sua crença

que b-ama-a. O Problema está na correspondência dessas crenças com o mundo. É preciso

achar “uma descrição que capture a singularidade da estrutura de cada um desses complexos,

isto é, que individue os complexos”.124 Esse é o Problema da Direção Estreita para ele.

Uma vez mais, porém, nos deparamos com outra apresentação truncada do Problema

da Direção. Em que consiste mesmo essa dificuldade em formar uma descrição que capture e

expresse a individualidade das estruturas daqueles complexos? E o que são essas “estruturas”?

Landini não justifica o que entende por essas duas coisas em seu texto. Mas elas estão longe

de corresponder ao Problema da Direção. Primeiro, essa estrutura terá que ser do complexo

existente e isso não ajuda nos casos dos juízos falsos. No caso dos juízos falsos o sujeito não

tem nenhuma “estrutura” para capturar, ele forma o complexo. Segundo, a descrição “a ama

122 LANDINI, 1990, p. 48. 123Ibidem., p. 48. 124 Ibidem., p. 48.

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b”, se formada corretamente, expressa o juízo “a ama b”. E a descrição “b ama a”, se formada

corretamente, expressa o juízo “b ama a”. Qual seria o Problema?

Se a dificuldade consistir em formar as descrições, como atividades linguísticas, isto

é, se o falante não perceber a diferença nas estruturas dos complexos linguísticos “a ama b” e

“b ama a”, então o Problema estará no domínio das funções lógicas dos termos da linguagem.

E se a dificuldade consistir em formar as descrições corretamente, porque elas são juízos,

então, o Problema está sendo protelado, claro, pois ao formar um juízo o sujeito da crença tem

que decidir se põe primeiro um termo ou o outro. Mas, isto é totalmente circular, o Problema

volta a ser a formação do juízo mesmo e não de uma descrição. E se este é o caso, o Problema

consiste mesmo em decidir que termo colocar no primeiro lugar e que termo colocar no

segundo lugar. E formar a descrição disso será um passo (segundo) na linguagem.

2.1.1.3 Olhando além das divergências: a raiz do Problema

As divergências no modo de ilustrar o Problema da Direção nos forçam a manter o

foco na questão de fundo, a saber, o que é mesmo o Problema da Direção. Quando

concentramos nossa atenção em Russell, percebemos que ele esboçou três modos diferentes

de ilustrar o Problema. Na primeira versão da Teoria RM ele viu o Problema da Direção

brotando da relação subordinada. Mais precisamente, no fato da relação subordinada

assimétrica poder ocorrer com dois sentidos, indo de A para B ou de B para A. Na segunda

versão, ele viu o Problema da Direção brotando da relação acreditar. A relação acreditar põe

uma ordem nos termos relata que, aliás, estão todos no mesmo nível lógico e, por conseguinte

ela não tem um parâmetro para determinar uma ordem mais do que outra para esses termos. E

na terceira versão, ele viu o Problema da Direção como sendo a tarefa de encontrar complexos

paralelos determinados, de modo não-ambíguo, que constituam as posições dos termos no

complexo da crença.

Quando voltamos nossa atenção para os críticos da Teoria RM, percebemos que a

situação também não foi diferente. Stout acentuou a segunda versão da Teoria RM e assumiu

que o Problema da Direção é a total falta de parâmetro para que o sujeito, estando na relação

acreditar, possa impor aos termos uma ordem mais que outra. Haja vista que os termos relata

estão todos no mesmo nível lógico. Griffim assumiu que o Problema da Direção consiste na

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impossibilidade de “distinguir” um juízo do outro quando eles são formados com os mesmos

relata em ordens diferentes. E Landini assumiu que o Problema da Direção consiste na

dificuldade em formar descrições que capturem a singularidade da estrutura dos complexos

formados com os mesmos relata em ordens diversas.

Tantas divergências assim indicam que nem Russell nem os críticos que citamos

enxergaram claramente a raiz do Problema da Direção. E, por conseguinte, não parece ser um

bom empreendimento tentar justificar uma ilustração ou outra antes de explicitar com clareza

o que vem a ser a raiz do Problema. Dito de outro modo, antes de tudo, convém primeiro

tentar fazer o que eles não fizeram: extrair claramente a raiz do Problema.

E qual seria a raiz do Problema da Direção? Há uma raiz comum às diversas

concepções do Problema da Direção expostas acima? Sim, há uma raiz comum a todas

aquelas concepções de Problema da Direção e ela ainda não foi devidamente levada em conta.

Trata-se da concepção errada da relação subordinada e da falta de distinção entre o seu campo

de operação e o campo de operação da relação acreditar. No momento em que alcançarmos a

concepção adequada para o seu modo de operar, sob o comando da relação acreditar, o

Problema vai se dissolver como um nó que tem o seu fio de sustentação puxado.

2.1.2 O Problema da Direção Estreita125

Considerando que a má compreensão da relação subordinada, devida à falta de

clareza na distinção entre a sua operação e a operação da relação acreditar, é a fonte do

Problema da Direção, podemos agora assumir o Problema da Direção Estreita como sendo o

fato de que, sendo a subordinada uma relação dual e assimétrica, é possível formar dois

complexos lógicos diferentes com a sua operação. Exatamente como Russell assumiu na

primeira versão da Teoria RM, porém, acrescentando que ela põe os termos numa direção ou

noutra operando logicamente sob o governo da relação acreditar. E com isso, a questão de

fundo do Problema da Direção Estreita passa a ser a de explicar por que a relação acreditar

põe os termos numa direção mais do que em outra, se as duas direções são logicamente

possíveis.

125 Nicholas Griffin usou as expressões “problema da direção estreita” e “problema da direção larga”, Gregory

Landini usou a expressões “problema da forma estreita” e “problema da forma larga”, contudo, preferimos

manter a palavra “direção” (direction) no lugar da palavra “sentido” (sense), usada por Russell, e da palavra

“forma” (shape) usada por Landini, por entender que ela expressa melhor a natureza do problema.

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110

2.1.2.1 A solução russelliana para o Problema da Direção Estreita na primeira versão da

Teoria RM

O grande dilema de Russell diante do Problema da Direção Estreita, na primeira

versão da Teoria RM, foi justificar como é possível que a relação subordinada esteja diante da

mente que julga indo de A para B, mais do que de B para A. Ao que parece, ele deve ter

achado que isso teria que acontecer ou pela natureza da própria relação subordinada ou pela

operação da relação acreditar sobre ela.

O texto da versão de 1910 mostra que Russell escolheu a primeira opção, isto é, que

a relação subordinada tem uma direção por natureza. Como ele mesmo assumiu, a relação

subordinada diante da mente teria que ser a relação universal e, na ocorrência da crença,

deveria estar indo de A para B, mais do que de B para A, porque ela tem, naturalmente, um

sentido ou direção. Essas duas características exigidas da relação subordinada, ser uma

relação universal e estar indo de um termo para outro dentro do escopo da crença, porém,

revelaram-se muito conflitantes para Russell. Como conciliar o fato do sujeito da crença estar

em relação com como relação universal e aplicá-la na crença como relação indo de A para B

mais do que de B para A?

Russell não ofereceu uma resposta para essa questão e, lamentavelmente, ao

reapresentar a Teoria RM, em 1912, abandonou a hipótese de que a relação subordinada tem

um papel determinante na direção dos termos. Mas, como veremos no Capítulo Terceiro, ele

não devia ter saído dessa rota. A saída para o Problema da Direção Estreita exige que se

justifique por que, sendo universal, a relação subordinada pode ser posta na crença ligando

logicamente os demais termos. Uma justificativa que esclareça a distinção e a unidade entre a

natureza universal e o modo de operar logicamente da relação subordinada na crença. Ele

deveria ter insistido mais neste ponto.

2.1.2.2 A crítica de Griffin à solução russelliana do Problema da Direção Estreita na primeira

versão da Teoria RM

Boa parte das críticas dirigidas a Russell, críticas relativas à sua tentativa de

solucionar o Problema da Direção Estreita, refere-se à segunda ou à terceira versão da Teoria

RM. Nicolas Griffin, porém, mesmo pensando o Problema da Direção Estreita a partir da

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segunda versão da Teoria RM, dirige parte de sua crítica àquela solução oferecida por Russell

na primeira versão da Teoria RM. Para ele, a solução dada por Russell naquela versão é

problemática porque ela afirma que a relação subordinada tem que estar diante da mente que

julga como uma relação particularizada ou como uma relação relacionando:

A sugestão de Russell de que a relação subordinada tem uma direção só faz sentido

se se supõe que a relação subordinada é ou uma relação particularizada ou uma

relação relacionando. E a teoria da relação múltipla não requer nem uma nem

outra.126

Griffin é enfático com as condições para que a relação subordinada ocorra no juízo

com uma direção determinada. Ou ela é uma relação particularizada, ou ela é uma relação

relacionando seus termos. Mas, ele deixou o assunto por aí mesmo. A Teoria RM não poderia

lidar com a relação subordinada em nenhum desses dois modos e pronto.

Convém, portanto, levantar dois questionamentos a essa posição de Griffin. Primeiro,

o que é mesmo uma relação “particularizada”? É uma “parte” de uma relação? Ora, não se

pode abandonar a arena sem avisar ao oponente. Griffin usa uma expressão nova para lidar

com o universo ontológico russelliano, sem oferecer a devida justificativa para ela, e no

universo ontológico russelliano uma relação é um universal. Ela ocorre numa instância

particular, ou em várias instâncias ao mesmo tempo, mas ela é um universal. Se uma relação

“particularizada” for uma relação ocorrendo numa instância particular, então, ele deveria dizer

isso diretamente. E se isso não for o caso, ele teria que dizer também.

Segundo, quando uma relação ocorre numa instância particular da relação acreditar,

ela pode ocorrer relacionando sim. Então, por que a Teoria RM não requer que a relação

subordinada ocorra como “relação relacionando”? Claro, Russell usou a expressão “relação

relacionando” para designar a relação principal, aquela que forma uma unidade com todos os

seus termos numa ocorrência e a literatura filosófica posterior acentuou muito essa posição.

Mas, esse não é o único modo de uma relação ocorrer relacionando. Ela também pode, por

exemplo, ocorrer relacionando logicamente, no juízo, ou verbalmente, na linguagem.

Contudo, antes de voltar nossa atenção para examinar melhor a abrangência da expressão

126 GRIFFIN, 1985, p. 220. (Itálico nosso).

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112

“relação relacionando”, vamos considerar mais atentamente o quanto a posição de Griffin e a

de Russell são insuficientes no tocante ao Problema da Direção.

2.1.2.3 Insuficiência da solução russelliana e da crítica de Griffin à solução russelliana do

Problema da Direção Estreita

A proposta de superação do Problema da Direção Estreita oferecida por Russell na

primeira versão da Teoria RM foi um bom passo na direção certa. O que se lamenta é ele não

ter prosseguido no caminho tomado e, talvez ele não tenha percebido, não ter justificado ela

devidamente. Segundo Russell, a superação do Problema da Direção Estreita está no fato de

que a relação subordinada tem que estar no juízo indo de A para B, mais do que de B para A.

E de fato é isso mesmo. Se o sujeito da crença quer julgar que A ama B, então, de fato, a

relação amar tem que lhe oferecer essa possibilidade e ela tem que ser posta na crença indo de

A para B mesmo.

A questão, que Russell parece não ter dado a devida atenção, é justificar como a

relação subordinada pode ser posta na crença indo de A para B, quando o sujeito da crença

quer mesmo julgar que A ama B. Este é de fato o ponto chave para sair do Problema da

Direção Estreita. A relação subordinada tem que estar na crença indo de A para B e, também,

ela tem que ser posta na crença indo de A para B. Dito de outro modo, ela tanto tem que estar

na crença relacionando quanto tem que ser posta na crença como relação relacionando

logicamente.

Ora, a teoria das relações de Russell permite assumir essa posição. A relação

subordinada é, ontologicamente, uma relação universal, mas, ela é uma entidade aplicável

logicamente. A relação acreditar pode aplicá-la logicamente infinitas vezes. O que precisa ser

feito, e esse será um passo que daremos no capítulo seguinte, é justificar como isso pode ser

feito. Antes, porém, consideremos também a insuficiência da posição que Griffin assumiu em

sua crítica a Russell.

A crítica de Griffin à posição de Russell também não foi devidamente justificada. Ela

padece, pelo menos, de dois problemas graves. Ela considera a relação subordinada como um

“mero” termo da relação acreditar e, com base nisso, rapidamente decreta que a relação

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113

subordinada não pode ocorrer relacionando, uma vez que a Teoria RM não requer a relação

subordinada ocorrendo como relação relacionando, mas como relação universal apenas.

Ora, a relação subordinada é sim um termo da relação acreditar, mas, não é um mero

termo. Ela é um termo especial, diferente dos demais termos da crença no tipo e na ordem

lógica. Além disso, a relação subordinada é sim uma relação relacionando os termos sobre os

quais é aplicada como, por exemplo, no juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio. Ela é uma

relação e, como toda relação aplicada a termos logicamente adequados, ela está relacionando

seus termos. O problema de Griffin foi não ter conseguido explicar em que consiste a

operação da “relação relacionando subordinada” e em que consiste a operação da “relação

principal relacionando”. Ou seja, ele não soube mostrar que o papel relacionante da relação

subordinada, longe de se opor, harmoniza-se com o papel relacionante, principal, da relação

acreditar. E esse também será um passo que deixaremos para o Capítulo Seguinte, quando

tratarmos da superação do Problema da Direção Estreita. Consideremos agora o Problema da

Direção Larga.

2.1.3 O Problema da Direção Larga

A compreensão insuficiente da relação subordinada e a falta de distinção entre os

campos em que cada relação opera quando acreditar ocorre também constituem a fonte do

Problema da Direção Larga. De fato, como já percebemos acima, Stout e Griffin, os críticos

que apresentamos como defensores do Problema da Direção Larga, fazem uma apologia a

esse Problema com base na ideia de que a relação subordinada é um simples objeto nas

ocorrências da relação acreditar. Deixando, assim, de reconhecer sua operação relacionante

específica e sua verdadeira participação na ordenação dos termos.

Ora, realmente, se a relação subordinada estivesse no mesmo nível lógico dos outros

termos da relação acreditar, então, logicamente, ela poderia ser pensada em qualquer posição,

inclusive nos lugares próprios para os outros termos. Mas, claro, disso só resultaria uma

justaposição de termos isolados, nunca uma unidade de crença. O que nos permite ver que,

desde o início, é o Problema da Direção Larga que tem um grande problema pra resolver, a

saber, o problema de justificar seu pressuposto básico de que a relação subordinada é um

mero termo no mesmo nível lógico dos demais termos na crença.

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114

2.1.3.1 A tentativa de fundamentar o Problema da Direção Larga

O crítico que mais se esforçou para dar uma fundamentação ao Problema da Direção

Larga parece ter sido Nicolas Griffin. De acordo com ele a raiz do Problema da Direção Larga

está na relação subordinada, haja vista que ela é um “mero termo” da relação acreditar. No

seu entender, para que o Problema da Direção Larga não ocorresse, a relação subordinada

teria que ser uma relação particularizada ou uma relação relacionando. Mas, sustenta ele, a

teoria RM “não requer nem uma coisa, nem outra”.

Como vimos acima, as duas maneiras como Griffin classifica a relação subordinada,

bem como o modo como ele sentencia que a Teoria RM não suporta a relação subordinada

como relação particularizada ou relacionando, são bastante questionáveis. Ele não justifica o

que entende por relação “particularizada” e não considera se a única maneira de ser uma

relação relacionando é ocorrer como relação principal ou não numa instância. E, esse é um

ponto decisivo, não existe apenas uma única maneira para uma relação ocorrer como “relação

relacionando”.

O mais importante da posição de Griffin, porém, é que na própria maneira de colocar

o Problema da Direção Larga, ele já deixa entrever a pedra de apoio sobre a qual tenta

construir uma fundamentação para o Problema. E, lamentavelmente, como veremos agora,

essa pedra de apoio não suporta o edifício que ele pretende construir.

Griffin precisa justificar que a relação subordinada, como ela é pensada na Teoria

RM, está no mesmo nível lógico dos outros termos do juízo. Para isso, ele faz uma

interpretação de Russell sustentando duas ideias bastante questionáveis. A primeira é que a

Teoria RM mantida por Russell não comporta a relação subordinada como relação

relacionando. E a segunda é que a relação envolvida numa instância da relação acreditar é

uma relação universal e para Russell somente a relação universal tem ser.127

Acontece que, além de sua interpretação da posição de Russell não parecer correta,

nenhuma das duas ideias de Griffin serve de justificativa para dizer que a relação subordinada,

no escopo da relação acreditar, é um termo comum. Primeiro, a Teoria RM, especialmente

em sua primeira versão, requer e comporta a relação subordinada como uma relação

relacionando logicamente. Russell foi claro ao dizer na versão de 1910 que a relação

127 GRIFFIN, 1985, p. 216.

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115

subordinada liga os termos e determina a direção deles, porque ela tem, naturalmente, uma

direção.

O que Griffin não conseguiu distinguir, talvez por manter-se preso demais à segunda

versão da Teoria RM, foi que podemos distinguir uma relação relacionando efetivamente de

uma relação relacionando logicamente apenas. Quando uma relação ocorre relacionando

efetivamente, ela cria um fato no mundo. E quando uma relação ocorre relacionando

logicamente, ela cria uma possibilidade lógica do fato ocorrer no mundo.

Ora, na Teoria RM a relação subordinada ocorre como relação relacionando

logicamente, sob o comando da relação acreditar que ocorre relacionando efetivamente. Se a

relação subordinada não ocorresse relacionando logicamente os termos, a relação acreditar

também não poderia ocorrer relacionando efetivamente. Pois, quando isso é o caso, a relação

acreditar apenas liga um sujeito a uma sequência desconexa de termos, mas isso não é uma

ocorrência autêntica.

Russell não trabalhou essa distinção devidamente e isso fez com que ele também não

superasse o Problema da Direção Larga na Teoria RM, mas ele chegou bem perto. Segundo

ele, “uma relação relacionando difere de uma relação em si mesma pelo indefinível elemento

da asserção”.128 Ora, se o que difere uma relação relacionando de uma relação em si mesma é

a asserção, então, ela é de fato a mesma relação, numericamente a mesma, tomada em campos

diferentes. No primeiro caso ela é tomada operando logicamente sobre os termos, pois uma

asserção é uma operação lógica e, no segundo caso, ela é tomada como uma entidade objetiva,

que existe em si mesma e que pode manifestar-se concretamente em vários fatos.

Quanto à segunda afirmação de Griffin, a de que para Russell somente a relação

universal tem ser, parece não capturar devidamente o pensamento de Russell. Griffin faz

referência ao parágrafo 55 de The Principles, sem citar as palavras de Russell, mas, acontece

que o que Russell afirma naquele parágrafo é que “relações não têm instâncias, elas são

numericamente as mesmas em todas as proposições em que elas ocorrem”. E isso não quer

dizer que a relação instanciada não tem ser, mas, sim, que ela é a mesma relação universal,

“precisamente e numericamente a mesma relação” em todas as proposições que ela ocorre.

128 RUSSELL, 1903, p. 100.

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116

Ao que parece, Russell afirma exatamente o contrário do que Griffin está dizendo,

isto é, que a relação instanciada é a relação universal ocorrendo concretamente num fato. E,

ainda que aquela ocorrência venha a desaparecer da existência, a relação universal continua

na ordem do ser. Por conseguinte, não parece certo dizer que para Russell a relação

relacionando não tem ser, o certo seria dizer que para ele a relação relacionando

concretamente é a mesma e única relação, que tem ser, ocorrendo efetivamente num fato.

Agora o jogo parece empatado. Griffin acusa a posição russelliana de erro e a

posição russelliana acusa a interpretação dele de ser insustentável. Ele deve provar que a

relação subordinada é um mero objeto na crença e para isso apela para o fato de que a relação

subordinada não pode ocorrer como relação relacionando na Teoria RM porque ela é uma

relação universal e a relação universal só pode ocorrer como objeto na crença. Mas, como

vimos, isso não parece certo e a conclusão a que chegamos é que a afirmação de que a relação

subordinada não pode ocorrer relacionando na crença está apoiada numa interpretação

insustentável do pensamento de Russell.

De nossa parte, questionamos essa posição de Griffin e assumimos que a relação

subordinada não é um termo no mesmo nível lógico dos demais, mas, sim, um termo especial

que exerce a função lógica de ligar os termos sob o comando da relação acreditar. E assim

nos propomos o oposto, isto é, a defender que a relação subordinada é também uma relação

relacionando, não efetivamente, mas logicamente. Contudo, suspenderemos o assunto aqui,

nesse ponto de empate, e voltaremos a ele apenas no Terceiro Capítulo. Antes, ainda

precisamos notar e examinar atentamente os dois pressupostos centrais presentes no esforço

de Griffin para fundamentar o Problema da Direção Larga.

2.1.3.2 Pressupostos centrais na fundamentação do Problema da Direção Larga

Para afirmar o Problema da Direção Larga, Griffin (e quem quer que tenha essa

pretensão) deve assumir desde o início dois pressupostos básicos, a saber, o pressuposto do

nível lógico único nos termos e o pressuposto da operação simples na relação acreditar. O

primeiro deles afirma que os termos relata da relação acreditar estão todos no mesmo nível

lógico, e o segundo deles afirma que a operação realizada pela relação acreditar,

simplesmente, consiste em posicionar os termos. Consequentemente, com o apoio desses dois

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117

pressupostos, torna-se possível afirmar que a relação acreditar pode posicionar a relação

subordinada aleatoriamente em suas instâncias efetivas.

O pressuposto do nível lógico único nos termos da relação acreditar, porém, não é

sustentável. Ele está ligado a uma compreensão inadequada da teoria das relações de Russell.

Não obstante, e isso é desconcertante, o próprio Russell ter assumido essa compreensão

inadequada na segunda versão da Teoria RM. Haja vista que, considerada com atenção, a

teoria das relações mais robusta de Russell não deixa nenhum espaço que justifique assumir

essa concepção da relação subordinada como termo que está no mesmo nível lógico dos

demais termos da crença.

A teoria das relações de Russell distingue a relação universal da relação relacionando

efetivamente, isto é, da relação quando ocorre instanciada. A relação universal é um conceito

objetivo, mas, não é um conceito estático. Ela tem muitas possibilidades lógicas.

Especialmente, a possibilidade de ocorrer muitas vezes, ao mesmo tempo, em diferentes

lugares e a possibilidade de ocorrer ligando logicamente termos nos juízos. Em hipótese

alguma, porém, a relação instanciada efetivamente, ou ligando os termos no juízo ou como

relação universal, é uma relação ontologicamente diferente. A relação universal exemplifica-

se numa instância concreta ou numa ocorrência lógica e ela pode fazer isso inúmeras vezes

simultaneamente. É próprio de um universal ocorrer inúmeras vezes, simultaneamente, em

lugares diferentes, bem como, em momentos ou juízos diferentes. E a ocorrência de uma

relação no juízo é uma exemplificação lógica da única e mesma relação universal, assim como

uma instanciação efetiva de uma relação é uma exemplificação da única e mesma relação

universal que, como disse Russell, é “numericamente a mesma em todas as proposições em

que ocorre”.

Nada nessa dinâmica entre a relação como universal, a relação instanciada

efetivamente e a relação ocorrendo logicamente no juízo resulta em obstáculo ontológico para

que a relação acreditar possa operar com ela como relação subordinada. A relação tomada

como subordinada é a mesma entidade objetiva universal, pensada logicamente, ligando

alguns termos. A entidade ontológica universal que é a relação, por natureza, comporta ser

usada logicamente como objeto de crença, isto é, de ser objeto de outra relação, e comporta

ser usada para ligar logicamente termos compatíveis com sua operação. E o sujeito da relação

acreditar, por sua vez, pode operar logicamente com uma relação subordinada universal,

porque a conhece por acquaintance, isto é, porque ela não lhe é estranha em nenhuma de suas

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capacidades. Haja vista que, para ter tal acquaintance com a relação universal o sujeito da

relação acreditar teve que lidar com ela em várias ocorrências exemplificadas, até chegar a

ela como conceito objetivo e poder operar com ela logicamente.

Ao lado do pressuposto do mesmo nível lógico dos termos, Griffin, implicitamente,

assume também o pressuposto da operação simples da relação acreditar. Em que consiste esse

pressuposto? Ele consiste na pressuposição de que a relação acreditar simplesmente posiciona

os termos da crença e nada mais. Claro, isso não é assumido expressamente desse modo por

Griffin, nem por nenhum outro simpatizante do Problema da Direção Larga, mas não há como

negar que isso decorre da maneira como ele trata a relação acreditar ao propor o Problema da

Direção Larga.

Contudo, tal qual o pressuposto do nível lógico único dos termos da crença, o

pressuposto da operação simples da relação acreditar não se sustenta na realidade. Quando a

relação acreditar forma uma crença de modo algum ela realiza a operação simples de pôr um

termo ao lado do outro apenas. Ela não afirma, simplesmente, que este termo está no primeiro

lugar e aquele termo está no segundo lugar e aquele outro termo está no terceiro lugar. Ao

contrário, ela faz uma operação complexa organizando os termos numa hierarquia lógica,

posicionando-os numa direção lógica e atribuindo a eles papeis lógicos específicos por meio

da relação subordinada. Na prática, se a relação subordinada for dual e assimétrica, ela afirma

que o primeiro termo é o sujeito daquela relação subordinada e que o outro termo é o relatum.

Ou seja, ela faz uma operação complexa, aplicando a relação subordinada aos objetos

intencionados pelo seu sujeito, atendendo à exigências lógicas da relação subordinada e, por

meio desta, unindo os termos numa unidade complexa, com papéis lógicos específicos.

Como podemos ver, as inconsistências apontadas nos dois pressupostos básicos da

tentativa de fundamentação do Problema da Direção Larga, mostram que qualquer tentativa

de justificar esse Problema tem um alto preço a pagar. Elas revelam o quanto esses dois

pressupostos são frágeis e abrem caminho para assumir e justificar pressupostos diferentes e

mais consistentes, a saber, que os termos da relação acreditar nunca estão no mesmo nível

lógico e que a operação da relação acreditar é uma operação complexa, onde o seu sujeito

aplica uma relação subordinada sobre outros termos, atribuindo a estes últimos papeis lógicos

diferentes na unidade da crença que ele forma. A justificativa devida de tudo isso, porém, nós

faremos apenas no Capítulo Seguinte.

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2.2 DIFICULDADES ADJACENTES AO PROBLEMA DA DIREÇÃO

Se o pressuposto de que a relação subordinada é um objeto comum na crença é levado

a sério como, de modo geral, fazem os críticos da Teoria RM, então, além do Problema da

Direção, em seu duplo aspecto, surgem, também, algumas dificuldades ligadas a ele. De fato,

se a relação subordinada for tratada como um objeto comum na crença, então, não podemos

afirmar que a relação acreditar consiga alcançar uma instanciação completa e também não

podemos falar de uma unidade de crença. Consequentemente, fica difícil (e talvez impossível)

explicar a variação de aridade e da ordem lógica nas ocorrências da relação acreditar. E, fica

igualmente difícil (talvez impossível) explicar os papéis lógicos dos termos ou construir um

simbolismo formal capaz de expressá-los.

Essas dificuldades adjacentes ao Problema da Direção, apontadas no parágrafo

anterior, podem ser estruturadas em duas partes. A primeira parte é constituída das

dificuldades das variações e a segunda parte é constituído das dificuldades da identificação

dos papéis lógicos dos termos e da construção de um simbolismo formal eficaz para as

ocorrências da relação acreditar. A fim de considerá-los bem, vamos dividir esta seção em

duas subseções para tratar, respectivamente, de uma parte e da outra.

2.2.1 Dificuldades com variações

Considerar a relação subordinada como um termo que está no mesmo nível lógico dos

demais termos da relação acreditar não somente causa o Problema da Direção, Estreita e

Larga, mas, causa também várias dificuldades explicativas ligadas a certas variações que, na

relação acreditar proposta pela Teoria RM, ainda não foram devidamente consideradas. Por

um lado, a relação acreditar parece poder variar indefinidamente na aridade, isto é, na

quantidade de termos envolvidos por ela numa instanciação, o que também gera uma variação

no número de lugares dos termos. E, por outro lado, ela também parece poder variar de ordem

lógica, dependendo da ordem da relação que ela envolver numa ocorrência. Mas, se a relação

subordinada for considerada um termo comum, então, essas variações perdem todo

significado. Ao contrário, se a subordinada for tratada como uma relação, então, tais

dificuldades são superadas. Consideremos melhor e separadamente cada uma dessas

dificuldades relativas às variações que acabamos de mencionar.

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2.2.1.1 Dificuldades explicativas na variação de aridade da relação acreditar

Se a relação subordinada for tratada como um objeto comum na crença, pelo menos,

duas dificuldades adjacentes a esta decisão, relativas à aridade da relação acreditar, devem ser

levadas em conta. A primeira é que a relação acreditar, rigorosamente falando, não alcançará

uma instância válida como crença relacional. Ela, na melhor das considerações, nada mais

conseguiria do que formar uma sequência de termos. E, nesse caso, não poderíamos falar nem

de unidade de crença, nem de aridade da relação. Pois, a aridade da relação consiste,

exatamente, no número de termos que a relação envolve quando ela ocorre numa instância

determinada.

A segunda dificuldade, contudo, começa a surgir quando tomamos a decisão de

rejeitar o pressuposto de que a relação subordinada é um objeto comum na crença. Nesse

caso, a relação acreditar pode ser vista formando crenças relacionais que contêm diferentes

números de termos. Devemos considerá-la a mesma relação em todas as essas instâncias ou

devemos considerá-la uma relação diferente em cada instância com aridade diferente?

Trataremos primeiro dessa segunda hipótese, que é a mais descabida no nosso entender, e, em

seguida, consideraremos a primeira.

Apesar de envolver um número determinado de termos a cada instância, podemos

perceber na relação acreditar uma capacidade lógica numericamente indefinida de envolver

termos, isto é, de instanciar-se envolvendo um número cada vez maior de termos. Não há

nenhum critério que determine um limite máximo para a quantidade de termos que ela pode

envolver numa ocorrência. Contudo, apesar dessa variedade parecer tão patente, as opiniões

ainda se dividem. Alguns acham que ela deve ser entendida como uma relação de grau fixo e

outros que ela deve ser entendida como uma relação de grau variável. Neste último caso, ela

seria uma relação multigrade129(*) e, no primeiro caso, ela seria uma relação unigrade(*).

Os que defendem que acreditar é uma relação unigrade sustentam que ela só pode

ocorrer com um número determinado de termos e que a cada ocorrência com um número de

termos diferente ela é uma relação diferente. Já os que defendem que a relação acreditar é

multigrade sustentam que ela é a mesma relação em todas as ocorrências, seja qual for o

129 Adiante, na nota 169, justificaremos nossa escolha em manter o uso das palavras inglesas “multigrade”e

“unigrade”.

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número de termos por ela envolvido, e que ela tem a capacidade de envolver qualquer número

de termos acima de dois.

No caso da relação acreditar proposta pela Teoria RM, devemos notar que se ela for

considerada uma relação unigrade chegaremos a resultados tão incompatíveis com a proposta

de Russell que, ainda que ele não tenha dito expressamente, somos levados a inferir que a sua

Teoria RM supõe a relação acreditar como relação multigrade. De fato, é comum encontrar

ocorrências da relação acreditar envolvendo diferentes números de termos como, por

exemplo, nos seguintes casos:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

(37) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio mais que Glauco.

(38) Otelo acredita que Desdemona entregou Cássio a Glauco e Brutus.

A frase (3) expressa a relação acreditar envolvendo quatro termos, a saber, Otelo,

Desdemona, Cássio e a relação amar. A frase (37) expressa a relação acreditar envolvendo

cinco termos, isto é, Otelo, Desdemona, Cássio, Glauco e a relação amar mais que. E,

finalmente a frase (38) expressa a relação acreditar envolvendo seis termos: Otelo,

Desdemona, Cássio, Glauco, Brutus e a relação entregar.

Alguns críticos sustentam que a posição geral de Russell sobre universais o coloca do

lado dos que sustentam que relações são entidades unigrade e, consequentemente, que a

relação acreditar mantida pela Teoria RM seria uma relação unigrade também. Eles advogam

para a relação acreditar mantida por Russell características que, no nosso entender, não

representam a posição de Russell e resultam em dificuldades tais, que seria bastante duvidoso

imaginar que Russell não as tivesse percebido se tivesse adotado essa posição.

Peter Geach (1957) desencadeou sua crítica à Teoria do juízo de Russell assumindo

que ela realmente exige relações de crenças distintas, em ocorrências com aridades diferentes,

porque ela não é capaz de mostrar, digamos, como poderemos entender o juízo abreviado

“James julga que p” se nós entendemos a expressão “James julga (que) ...” e a sentença

abreviada “p”. Pois, segundo ele, se usarmos o simbolismo “B (j, a, R, b)”, onde “R”

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representa uma relação, poderemos analisar “James julga que p” em todos os casos em que

“p” é interpretada como uma declaração “aRb”. Mas, insiste Geach, isto não dá nenhuma pista

para analisarmos casos onde “p” contém outro tipo de interpretação, digamos, com três,

quatro ou mais objetos. Nesses casos, sustenta ele, a teoria de Russell precisaria de diferentes

relações de julgar (diferindo de acordo com o número e o tipo lógico dos termos entre os

quais ela é mantida) para cada sentença de forma lógica diferente expressando juízo.130

Com uma postura muito semelhante à de Geach, Artur Norman Prior (1971) também

sustenta que acreditar é um tipo de relação que só podemos dizer o que ela é dependendo

daquilo que é acreditado.131E bem próxima das posições de Geach e Prior, temos também a

crítica de Nicholas Griffin. Segundo ele, na teoria russelliana do juízo a relação julgar é uma

relação de grau fixo e que tratá-la como uma relação de aridade variável “está excluído para

Russell, cuja lógica não deixa espaço para relações sem aridade definida”.132

Próximo à posição de Griffin, também podemos colocar a posição de Fraser

MacBride. Ele não trata diretamente da aridade da relação acreditar, mas assume que Russell

considera universais como entidades que ocorrem com aridade fixa nos fatos atômicos em que

aparecem. Contudo, uma vez que acreditar é uma relação universal, fica valendo a

consequência de que ela também teria que ter grau fixo. Tal posição, porém, segundo

MacBride, não se sustenta, pois a existência de predicados coletivos revela a existência de

universais multigrade, que solapam a ideia de que só há relações com grau fixo.133

Em contrapartida, Alex Oliver e Timothy Smiley contestam que relações tenham

grau fixo e contestam que a posição de Russell na Teoria RM era de que acreditar fosse uma

relação de grau fixo. Segundo eles, predicados coletivos e predicados que contêm listas de

elementos representam relações de aridade variável, isto é, relações que são multigrade. O

predicado “.... prepararam o jantar”, por exemplo, expressa perfeitamente um predicado

multigrade e aponta para a existência de universais, propriedades e relações, que podem

instanciar-se com uma lista de tamanho indefinido de elementos.134 Mas, diferentemente do

que pensam os críticos acima, sustentam Oliver e Smiley, que essa também era a posição de

Russell no tocante à relação acreditar com a Teoria RM.

130 GEACH, 1957, p. 49. 131 PRIOR, 1971, p. 09. 132 GRIFFIN, 1985, p. 218. 133MACBRIDE, 2005, p. 571-72. 134OLIVER; SMILEY, 2004, p. 610.

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De nossa parte, concordamos com a posição de MacBride, segundo a qual é

insustentável a ideia de que todas as relações têm grau fixo, e também concordamos com a

posição de Alex e Timothy, segundo a qual há relações de predicação multigrade que revelam

a existência de relações multigrade, e que esta era, de fato, a posição de Russell para com a

relação acreditar, na Teoria RM. Por outro lado, nos afastamos dos que acusam Russell de

sustentar que a relação acreditar é uma relação unigrade ou que a sua teoria do juízo requer

isto ou resulta nisto como consequência.

Primeiro, com exceção de MacBride, seus defensores não apresentam uma base

textual clara para afirmar que segundo Russell acreditar é uma relação unigrade, que resulta

numa relação ontologicamente diferente cada vez que ocorre numa sentença com forma lógica

diferente ou que a lógica de Russell não deixa espaço para tratar de relações com variação de

aridade. Por exemplo, em que texto, durante a fase em que sustentou a teoria da relação

múltipla, Russel assume que a relação acreditar é unigrade ou que ela resulta numa relação

diferente a cada ocorrência com aridade n ≥ 2 + 1? MacBride parece ser o único a indicar uma

base textual, ele sustenta que Russell introduziu a concepção de que universais são entidades

unigrade na teoria dos universais da segunda edição do Principia, isto é, em 1925.135 Mas

naquele texto Russell não sustentava mais a Teoria RM.

Segundo, os críticos apontados acima desvirtuaram completamente a propriedade

lógica central da relação acreditar advogada por Russell, que é ser uma relação múltipla

capaz de ligar vários termos. Ao invés de tirar as consequências disso, eles procuram

estabelecer outra propriedade como característica central para a relação acreditar, a saber, ser

uma relação que só liga um número determinado de termos. Qual é, por exemplo, a razão

pela qual não podemos entender “James acredita que p”, quando “p” é da forma “aRb” e

também quando “p” é da forma “aRbc”? Qual é o mecanismo recursivo que Russell precisa

oferecer para isso, se ele já estabeleceu que acreditar é uma relação entre um sujeito e vários

objetos, e que o sujeito reúne esses objetos num juízo? Será que o fato de aumentar algum

elemento a mais entre os objetos ligados pela relação acreditar faria Russell sustentar que ela

já não é a mesma relação? Ora, apesar do motivo principal para ter adotado a Teoria RM ter

sido o reconhecimento de que proposições não são entidades objetivas, parece bastante claro

que também era desejo de Russell mostrar que a relação acreditar tem a capacidade de ligar

135MACBRIDE, 2005, p. 568.

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vários termos e que por “vários termos” ele entendia um numero indefinido maior do que

dois.

Terceiro, eles ainda postulam uma rigidez de aridade na relação acreditar, a partir de

uma influência externa, insustentável. Prior, por exemplo, é mais direto quanto a isso, mas

Geach segue a mesma trilha: o conteúdo formado pela relação acreditar determina o que é a

relação acreditar e não a sua natureza lógica. Mas é preciso que perguntemos: por que só é

possível dizer o que é a relação acreditar dependendo daquilo que é acreditado? A nosso ver,

parece que aquilo que podemos dizer a partir do que é acreditado é em que consiste o

conteúdo de uma crença, sua quantidade de elementos ou quais são seus elementos, mas não o

que é a relação acreditar. A partir do que é acreditado podemos dizer como a relação

acreditar aparece instanciada, mas não o que é ela em si. O que é ela só pode ser dito por

meio de suas propriedades lógicas, especialmente, a de ligar vários termos num juízo por

meio de uma relação subordinada.

Além disso, não obstante a posição de Griffin afirmar que para Russell é difícil lidar

com relações de aridade variável, porque sua lógica não deixa espaço para esse tipo de

relações, podemos afirmar que a filosofia de Russell permite pensá-las, razoavelmente bem

como relações de aridade variável. Em Fundamental Ideas and Axioms of Mathematics

(1899), texto não publicado em vida, por exemplo, Russell trata da predicação não-

distributiva, isto é, de relações de predicação que podem ser atribuídas a conjuntos ou

seqüências de objetos e este é, sem dúvida, um bom caminho para pensar as relações de

aridade variável. Outro caminho pode ser a maneira como ele apresenta algumas relações na

primeira versão da Teoria RM. A relação descrita como “...tem ciúmes de ... com ...”, por

exemplo, é apresentada por ele como uma relação de três termos, mas que “se formos além e

levarmos em conta a necessidade de uma data, a relação se torna uma relação de quatro

termos, nomeadamente, três pessoas e uma data”.136

Até onde podemos perceber, portanto, durante o tempo em que sustentou a Teoria

RM, Russell não assumiu que acreditar é uma relação unigrade ou que ela é uma relação

diferente em cada ocorrência com aridade diferente. Se por “diferente” entendermos “entidade

diferente” e não “instância diferente”. Em vez disso, o que ele faz é afirmar explicitamente

que acreditar é uma relação que envolve “vários outros termos”,137 uma relação que requer

136 RUSSELL, 1911, p.179-180. 137Ibidem., p.157.

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“mais de dois termos”138 e que “um ato de crença ou juízo é a ocorrência entre certos termos

num momento particular do tempo, da relação acreditar ou julgar”.139Ora isso sugere muito

mais que o número de seus termos é indeterminado do que determinado.

Claro, em Theory of Knowledge Russell disse que “relações diferem de acordo com o

número de termos que elas relatam em um complexo atômico”.140 Mas isso não justifica a

interpretação de que uma relação deixa de ser ela mesma pelo fato de que muda sua aridade

numa ocorrência. Ao contrário, parece que o que Russell está afirmando é exatamente que

relações podem ocorrer com diferentes números de termos em fatos atômicos. E é isso que as

difere, enquanto instâncias diferentes, pois a ocorrência de uma relação numa instância

ternária é diferente de sua ocorrência como instância quaternária. Assim, dizer que “relações

diferem de acordo com o número de termos que elas relatam num complexo atômico” sugere

muito mais ser entendido como “diferem nas instâncias”, do que ser entendido como “diferem

ontologicamente”.

Em contrapartida a tudo isso, aceitável mesmo é o ponto de vista de Alex Oliver e

Timothy Smiley segundo o qual a posição de Russell não somente não deve ser vista como

sustentando que acreditar é uma relação unigrade, mas, sobretudo, que ela pode e deve ser

lida como ele considerando acreditar uma relação multigrade. Até porque, considerar a

relação acreditar uma relação unigrade leva a dificuldades que, provavelmente, jamais

passariam despercebidas por Russell. No campo da linguagem, por exemplo, se acreditar

fosse uma relação diferente em cada ocorrência com aridade diferente, o verbo “acreditar”

seria vítima de uma ambiguidade impraticável. Imaginemos dois reportes de crença como os

que são expressos por (39) e (40):

(39) Otelo acredita que Desdemona acredita na informação de Cássio.

(40) Otelo acredita em tudo que Desdemona acredita.

138RUSSELL, 1911, p.156. 139 Idem., 1912, p. 186. 140Idem., 1913, p.90.

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Para o falante pronunciar (39) adequadamente ele teria que saber qual é a informação

que Desdemona acredita de Cássio, isto é, teria que saber a aridade do seu conteúdo de

crença, do contrário ele não saberia que verbo “acreditar” deveria ser usado. E, de modo

similar, podemos considerar a mesma dificuldade presente em (40). Como Desdemona pode

acreditar em várias coisas, suas crenças teriam diferentes aridades e não haveria um verbo

“acreditar” que pudesse ser usado para expressar “tudo que Desdemona acredita”. Assim, não

é cabível sustentar que “acreditar” seja um verbo diferente cada vez que ocorrer com aridade

diferente e isso dificilmente passaria despercebido por Russell que, por sinal, considerava

uma palavra como um universal, cujos “exemplos são ocasiões em que um exemplo da

palavra é falado, ouvido, escrito ou lido”, não como uma coisa totalmente diferente a cada

ocorrência.141

Além do mais, também aparecem problemas graves no campo da lógica que

dificilmente passariam despercebidos por Russell se acreditar fosse uma relação unigrade.

Seria impossível, por exemplo, fazer determinadas inferências lógicas, como comumente se

faz, a partir de suas ocorrências. Por exemplo:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

(41) Alexandre acredita que Desdemona ama Cássio mais que Glauco.

Considerando verdadeiras essas duas atribuições de crença, parece perfeitamente

lógico que as pessoas façam inferências como essa expressa por (42):

(42) Otelo mantém com “Desdemona ama Cássio” a mesma relação de juízo que

Alexandre mantém com “Desdemona ama Cássio mais que Glauco”.

Ora, se uma inferência como essa é possível, e é correto fazê-la, então a relação de

juízo que Otelo mantém com o conteúdo expresso por “Desdemona ama Cássio” e que

141 RUSSELL, 1959, p.124.

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Alexandre mantém com o conteúdo expresso por “Desdemona ama Cássio mais que Glauco”

é a mesma relação, instanciada em situações diferentes e com números de termos diferentes.

Se, contudo, acreditar fosse uma relação unigrade a inferência expressa por (42)

seria impossível. Não haveria nada em comum entre a relação de juízo de Otelo expressa por

(3) e a relação de juízo de Alexandre expressa por (41). Elas seriam relações absolutamente

diferentes. Mas, até onde podemos compreender, essa posição jamais se identificaria com a

posição de Russell, que reivindicava a experiência de acquaintance com relações como sendo

entidades subsistentes das quais cada ocorrência concreta é apenas “um exemplo”.142

Contudo, ao aceitarmos que a relação acreditar pode ser lida como sendo uma

relação de aridade variável, ainda teremos dificuldades a resolver, caso o padrão de leitura

que trata a relação subordinada como objeto comum na crença seja aceito. Pois, neste caso,

apesar da relação acreditar ligar um sujeito a uma seqüência desconexa de termos, nenhuma

unidade lógica que permita identificar uma aridade adequadamente é formada.

Percebemos, portanto, que a variação na aridade da relação acreditar também está

ligada à operação lógica da relação subordinada. Acreditar é uma relação multigrade sim,

mas, pelo menos um dos seus termos tem que ser uma relação, e tem que funcionar como

relação, para que ela possa ocorrer plenamente e formar uma crença relacional. Mas, se

acreditar for uma relação de aridade variável e a subordinada não for tratada como um termo

comum na crença, a variação de aridade será determinada pela relação acreditar ou pela

relação subordinada? Neste último caso, qual é mesmo o papel da relação subordinada na

determinação da aridade da relação acreditar? E, no primeiro caso, em que consiste o papel

da relação acreditar na determinação da aridade? Essas perguntas, porém, só serão

enfrentadas no Capítulo Terceiro.

2.2.1.2 Dificuldades explicativas na variação do número de lugares da relação acreditar

Russell assumiu que a relação acreditar é uma relação que sempre envolve mais de

dois termos em suas ocorrências. Contudo, voltado mais para o Problema da Direção, ele não

conseguiu oferecer um tratamento satisfatório ao tema dos lugares dos termos na relação

142 RUSSELL, 1912, 197.

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acreditar. Ele tinha em mãos uma boa base para fazer isso, que era sua teoria das relações,

mas, depois de dar os primeiros passos na direção certa, quando lançou a primeira versão,

afastou-se radicalmente. Em sua primeira versão da Teoria RM, ele tratou a relação

subordinada como relação, um termo de nível superior, cujo sentido vai de um termo para

outro quando ela é assimétrica e dual. O termo do primeiro lugar desempenha o papel de

sujeito da relação e o termo do segundo lugar desempenha o papel de relatum.

A relação acreditar, porém, não é uma relação dual, apesar de ser assimétrica, e

Russell não procurou aplicar essas considerações aos lugares que os termos ocupam nela. Ele

preferiu abandonar esse caminho e assumir que a relação subordinada está no mesmo nível

dos outros termos, a partir da segunda versão da Teoria RM. Essa mudança, claro, resultou

num sério problema para a Teoria RM porque nivelou os lugares dos termos entre os relata da

relação acreditar.

Por outro lado, reconhecer que a relação subordinada opera como relação dentro do

escopo da relação acreditar e que ela é um termo de nível superior elimina esses

inconvenientes. Mas, ao diferenciar a relação subordinada dos outros termos, resta a tarefa de

explicar a variação no número de lugares envolvidos nas ocorrências da relação acreditar. E,

essa tarefa tem pela frente, pelo menos, duas dificuldades muito importantes para a Teoria

RM. Primeiro, dependendo da relação subordinada, numa determinada instância da relação

acreditar, ser uma relação dual, ternária ou quaternária, por exemplo, a ocorrência da relação

acreditar terá número de lugares diferentes. Segundo, se a relação subordinada tiver aridade

acima de dois, torna-se perigoso dizer que cada termo ocupa um lugar na relação acreditar,

pois, muitas vezes, isso causará uma fragmentação descabível dos termos. Alguns críticos,143

por exemplo, procuraram entender a posição de Russell, no tocante aos lugares da relação

acreditar, como afirmação de que ela é uma relação de “muitos lugares” (many-places) e,

como se depreende do modo como eles simbolizam as ocorrências da relação acreditar, por

“muitos lugares” eles entenderam “um lugar para cada termo”, o que resultou em sérios

problemas, nas situações em que ocorrem relações subordinadas com aridade acima de dois.

Dessas dificuldades apontadas acima, então, emergem duas perguntas cujas respostas

serão de grande valia para entendermos o funcionamento da Teoria RM. A primeira é

referente à determinação da variação. A aridade da relação acreditar é determinada quando a

143GRIFFIN, 1985, p 213 e 216; WAHAL, 1986, p.385; MILLER, 2000, p. 88; PINCOCK, 2008, p.107.

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aridade da relação subordinada é dada e a aridade da relação subordinada é dada quando a

relação acreditar a aplica sobre os objetos. Nesse caso, quem determina exatamente a aridade

da relação acreditar, ela mesma ou a relação subordinada? E, a segunda dificuldade é

referente à fragmentação dos lugares dos termos. Se não é possível afirmarmos que cada

termo ocupa um lugar nas ocorrências da relação acreditar, quando a relação subordinada tem

aridade acima de dois, o que é mesmo que caracteriza “um lugar” na ocorrência de uma

relação?

2.2.1.3 Dificuldades explicativas da variação da ordem lógica na relação acreditar

A dificuldade explicativa na variação na ordem lógica da relação acreditar também

está enraizada na má compreensão do papel da relação subordinada na crença. Aqueles que

consideram a relação subordinada um termo no mesmo nível lógico dos demais termos da

relação acreditar, rigorosamente falando, terão que admitir que ela não alcança uma

instanciação completa e que, nesse caso, nem se pode falar que ela tenha uma ordem lógica

definida.

Por outro lado, se a relação subordinada for tratada como uma relação, então, ela terá

um nível lógico diferente dos objetos. Ela poderá ser de primeira ordem, de segunda ordem ou

de ordem superior, dependendo dos termos que ela relatar. E, nesse caso, acreditar será uma

relação de ordem variável, ou seja, acreditar será de segunda ordem se a subordinada for de

primeira ordem, será de terceira ordem se a subordinada for de segunda ordem, e assim por

diante. Por exemplo:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio. (obj) (2ª ordem) (obj) (1ª ordem) (obj)

(43) Otelo acredita que vermelho é a cor preferida de Desdemona. (obj) (3ª ordem) (1ª ordem) (2ª ordem) (obj)

(44) Otelo acredita que ser virtude vale mais que ser dom. (obj) (4ª ordem) (2ª ordem) (3ª ordem) (2ª ordem)

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Se considerarmos a relação subordinada uma relação por meio da qual a relação acreditar liga

logicamente os outros termos, então, a hierarquia das ordens lógicas envolvidas em suas

ocorrências torna-se patente. Nas ocorrências descritas por (3), (43) e (44), por exemplo, a

relação acreditar aparece, respectivamente, como relação de segunda, terceira e quarta ordem.

Enquanto que a relação subordinada aparece, respectivamente, como relação de primeira,

segunda e terceira ordem. Mas, como podemos ver nos exemplos acima, a ordem lógica da

relação acreditar é determinada quando a ordem lógica da relação subordinada é dada, e a

ordem lógica da relação subordinada é dada quando a relação acreditar a aplica sobre os

objetos. A questão de fundo, portanto, consiste em definir quem determina, exatamente, a

ordem lógica da relação acreditar, ela mesma ou a relação subordinada? Essa questão,

contudo, a exemplo da escolha feita com as outras variações apontadas acima, só será

enfrentada na última seção do Capítulo Terceiro.

2.2.2 Dificuldades na identificação dos papéis lógicos dos termos e na construção de um

simbolismo formal para a relação acreditar

Além das dificuldades adjacentes relativas às variações, mesmo que a relação

subordinada não seja tratada como um objeto comum na crença, ainda teremos alguns

obstáculos para compreender os papeis lógicos que os termos desempenham na relação

subordinada e para construir um simbolismo formal capaz de capturar e preservar a distinção

desses papéis lógicos que os termos desempenham na relação subordinada nas ocorrências da

relação acreditar. Nesta subseção, dividida em duas partes, trataremos, respectivamente,

dessas duas dificuldades.

2.2.2.1 Dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na crença

Quando a relação acreditar ocorre numa instância efetiva, ela cria uma unidade lógica

envolvendo os termos objetos e a relação subordinada. Esta unidade tem uma estrutura lógica,

no sentido de que suas partes se integram e, ao mesmo tempo, desempenham papéis lógicos

específicos e complementares. Conhecer a estrutura lógica que a ocorrência da relação

acreditar pode alcançar em suas variadas ocorrências e saber identificar os papéis lógicos que

os termos desempenham em tal estrutura é uma condição necessária para que o sujeito da

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relação acreditar possa formar crenças adequadamente. Dito de outro modo, o sujeito da

crença precisa saber como instanciar a relação acreditar e suas variadas ocorrências e precisa

saber o papel lógico que os termos desempenham na estrutura formada por ela numa

ocorrência concreta para poder aplicá-los corretamente.

Russell reconheceu isso quando, na primeira versão da teoria RM, assumiu que a

mente que julga deve distinguir o juízo “que A ama B” do juízo “que B ama A”. E para que

isso aconteça, claro, a relação subordinada tem que estar diante da mente que julga indo de A

para B, mais do que de B para A.144 Acontece que, ter uma relação assimétrica dual indo de

um termo para outro, na teoria das relações de Russel, impõe ao sujeito da crença a tarefa de

“distinguir o termo do qual a relação procede como referent e o termo para o qual a relação

procede como relatum”.145 Ora, distinguir o termo de onde uma relação assimétrica dual

procede e o termo para o qual ela procede impõe ao sujeito da crença a tarefa de saber o papel

lógico de um e de outro na crença. Ou seja, o sujeito que, numa ocorrência da relação

acreditar, atribui tanto o termo de onde a relação procede quanto o termo para o qual ela

procede precisa saber que papel lógico o termo desempenha estando num lugar ou noutro.

Para visualizar isto, retomemos o nosso exemplo padrão:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

No juízo descrito pela frase (3), Otelo é capaz de julgar que Desdemona ama Cássio,

porque ele pode distinguir os papéis lógicos dos termos ligados pela relação amar. Uma vez

que esses papéis são impostos aos termos pela relação amar, que Otelo aplica sobre eles, e

que Otelo tanto está acquainted com a relação amar, quanto com os outros termos, ele sabe

que a relação amar tanto impõe esses papéis, como sabe que termos pretende colocar para

desempenhar um papel e outro. Assim, estando ele acquainted com Desdemona, Cássio e

amar, ele sabe que a relação amar demanda um termo que seja o seu sujeito e outro que seja o

seu relatum e ele posiciona os termos com base nessas exigências.

144 RUSSELL, 1910a, p. 180. 145 Idem., 1903, p. 96

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Além disso, os lugares que a relação subordinada amar determina para cada papel

lógico também ajudam na tarefa do sujeito que instancia a relação acreditar. Pois, o lugar

para que cada termo possa desempenhar corretamente o papel lógico determinado na relação

amar também é determinado por ela mesma. No caso descrito por (3), por exemplo, o

primeiro lugar da relação amar pertence ao termo que vai desempenhar o papel de sujeito e o

segundo lugar pertence ao termo que vai desempenhar o papel de relatum, porque a relação é

tomada como sendo uma relação assimétrica. E somente termos que possam instanciar a

relação amar podem ocorrer no lugar de sujeito.

A esse ponto, porém, surgem duas dificuldades importantes para a Teoria RM e para

as quais Russell não deixou uma resposta, mas, que se forem respondidas devidamente,

desembaraçam em muito o funcionamento da Teoria RM. A primeira delas refere-se à

caracterização dos papéis lógicos dos termos. O que caracteriza o termo sujeito e o termo

relatum? É estar um no primeiro e outro no segundo lugar apenas? E a segunda delas refere-se

ao fato de que muitas relações assimétricas têm aridade acima de dois. Nestes casos, quando a

relação tiver aridade maior que dois, como identificar o papel lógico dos termos?

Além disso, precisamos notar, também, que existe um vínculo estreito entre os papéis

lógicos que os termos desempenham e os lugares que eles ocupam na relação. E isso

demanda, sem sombra de dúvida, uma boa classificação dos lugares dos termos na relação e

um bom simbolismo formal para lidar com eles. Contudo, deixaremos para tratar da

classificação dos lugares dos termos no Capítulo Terceiro, quando estivermos respondendo à

dificuldade da identificação dos papéis lógicos, e situaremos melhor a seguir, na próxima

parte desta subseção, a dificuldade para chegar a um simbolismo formal adequado das

ocorrências da relação acreditar.

2.2.2.2 Dificuldade na construção de um simbolismo formal eficaz para as ocorrências da

relação acreditar

Russell percebeu que a relação acreditar não tem uma forma lógica definida. Uma

forma lógica única que, como ocorre com muitas outras relações, possa ser alcançada e

representada apenas substituindo seus termos por variáveis lógicas numa ocorrência. Ele se

deu conta que ela não é, por exemplo, como uma relação dual ou ternária, de aridade fixa,

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para que possamos representá-la sempre com a forma lógica R(x, y) ou R(x, y, z,), mas, que,

ao contrário disso, ela “alcança diferentes formas lógicas conforme seja a natureza daquilo

que é acreditado”.146 Até por que, admitiu Russell, uma das coisas mais estranhas envolvidas

na relação acreditar é que “alguém pode acreditar em proposições de todos os tipos de forma

lógica”.147

O reconhecimento de que as ocorrências da relação acreditar podem alcançar

diferentes formas lógicas, porém, não impediu Russell de tentar construir um “mapa”, com o

intuito de simbolizar a complexidade de sua estrutura e nortear o entendimento, para ajudar na

compreensão de suas ocorrências. Depois da complexa tentativa feita na terceira versão da

Teoria RM,148 que não vai nos interessar aqui, por considerar a forma lógica como um termo

adicional nas ocorrências da relação acreditar, ele chegou ao seu melhor resultado nessa

empreitada, em 1918, com o seguinte “mapa”149:

Otelo

Acre dita

DESDEMONA CÁSSIO

ama

Um aspecto interessante deste “mapa” é que ele acentua os “percursos” das duas

relações envolvidas na presente instância da relação acreditar. Ele indica que há um percurso

relacional da relação acreditar e outro percurso relacional da relação amar, naquela situação.

Mas, ele não oferece nenhuma sugestão sobre como devemos entender as diferentes direções,

indicadas pelas setas, apontando os percursos das duas relações. Ele indica relações espaciais,

para “mapear” as operações das duas relações, que não ajudam em nada no entendimento da

estrutura da relação acreditar.

146 RUSSELL, 1918, p. 226. 147 Ibidem., p. 226. 148 Idem., 1913, p. 118. 149 O primeiro esforço de Russell para alcançar um “mapa” desse tipo foi feito na versão da Teoria RM de 1913,

envolvendo a relação entender uma proposição. Ele chegou a um resultado muito complexo, pouco intuitivo e

desinteressante, sobretudo, por adicionar a forma lógica da relação subordinada como um constituinte do juízo.

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O mais interessante nessa iniciativa de Russell, porém, é que ela nos ajuda a perceber

duas coisas. Primeiro, que Russell considerou seu esforço para chegar a esse mapa como um

trabalho que faz “parte da teoria geral do simbolismo” e, segundo, que ele considerou muito

“importante identificar onde e como um simbolismo como aquele seria errado”.150 Essas duas

afirmações que ele fez sobre o seu esforço para chegar a um “mapa” da relação acreditar,

então, são importantes para nós porque elas indicam dois caminhos promissores para

continuarmos a pensar um simbolismo formal mais adequado para expressar a estrutura das

ocorrências da relação acreditar. O primeiro caminho tem a ver com a convicção de Russell

de que oferecer um “mapa” para a relação acreditar é algo valioso, porque faz parte da tarefa

de construir um simbolismo eficaz que atenda à necessidade humana de expressar a realidade

em seus detalhes mais sutis. E, o segundo caminho tem a ver com o modo de Russell entender

“simbolismo” como algo que “inclui todo tipo de linguagem”, pois isso nos permite pensar

noutras possibilidades de simbolizar a relação acreditar e não apenas num “mapa”. Afinal de

contas, temos uma ampla possibilidade de construção e aplicação de símbolos, haja vista que,

como insiste o próprio Russell, “um símbolo é alguma coisa que significa alguma outra

coisa”.151

De fato, encontrar outros modos que traduzam simbolicamente os detalhes da

estrutura das ocorrências da relação acreditar é muito valioso e é possível, muito embora, um

simbolismo que faça isso com eficácia, atendendo à natureza da relação acreditar proposta

pela Teoria RM, ainda não tenha sido alcançado. Trata-se de uma tarefa de grande

importância porque, considerando que “há diferentes espécies de símbolos”,152 o sistema de

símbolos escolhido para representar um aspecto da realidade pode influenciar muito nos

resultados. Basta notar, como insiste um olhar atento à fecundidade encontrada na mudança

de simbolismo, que “a mera troca de sinais pode ter grande influência na nossa capacidade de

pensamento”.153

A tradição analítica, sem dúvida, levou isso muito a sério e, afastando-se da ideia

russelliana de construir um “mapa”, se esforçou para chegar a um simbolismo formal capaz de

expressar a estrutura lógica das ocorrências da relação acreditar. Esse esforço pode ser

150 RUSSELL, 1918, p. 225. 151 Ibidem., p. 186. 152 Ibidem., p. 185. 153 IMAGUIRE; BARROSO, 2006, p. 18.

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identificado nos dois modelos de simbolismo mais usados desde então. A fim de considerar

melhor cada um deles, porém, retomemos nosso exemplo padrão:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

Um primeiro tipo de simbolismo usado para representar a estrutura da relação

acreditar numa ocorrência como a descrita pela frase (3), que se tornou bastante comum,

ofereceu o seguinte modelo:

(3a) B < o, L < d, c >>

Neste jeito de simbolizar a relação acreditar, podemos notar dois usos interessantes

dos parênteses de ângulos. Primeiro, eles são usados para indicar que a ordem dos termos na

relação é relevante. Os dois parênteses de ângulos extremos indicam que a ordem dos quatro

termos é relevante em B e os dois parênteses de ângulos internos indicam que a ordem dos

termos envolvidos por L também é relevante em L. Segundo, os dois parênteses de ângulos

internos também desempenham a função de indicar um termo complexo. Eles ligam os termos

de L e indicam que a expressão “L < d, c >” representa um termo complexo da relação B, o

termo relatum de B.

Ora, sabe-se que esse modelo de simbolismo tem como pano de fundo a noção de par

ordenado, cujas exigências centrais são exatamente que a ordem dos termos na relação seja

levada em conta e que as relações sejam estruturadas em pares ordenados que permitam

identificar quais termos ocupam o primeiro lugar e quais termos ocupam o segundo lugar em

suas ocorrências. Dois problemas graves, pelo menos, neste jeito de simbolizar a relação

acreditar, sugerem seu abandono. O primeiro refere-se ao número de lugares na relação e o

segundo refere-se ao status ontológico dos termos complexos assumidos pelos adeptos dessa

interpretação.

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No tocante ao número de lugares, esse modo de simbolizar a relação acreditar tende

a reduzir as relações a uma estrutura dual. Em (3a), por exemplo, a relação B é representada

como uma relação dual. No primeiro lugar de B ocorre o termo representado por “o” e no

segundo lugar ocorre o termo complexo representado pela expressão “L <d, c>”. Portanto, de

acordo com o simbolismo dado em (3a), a relação B deve ser considerada uma relação de dois

termos. Consequência inaceitável para a Teoria RM, pois, o segundo termo da relação teria

que ser tratado como uma proposição, previamente estruturada.

E no tocante ao status ontológico do termo representado por “L < d, c >”, indicado

pelos parênteses de ângulos internos na relação B em (3a), sabemos que o simbolismo é

neutro ontologicamente, mas, pode influenciar e sugestionar na adoção de uma ontologia.

Qual poderia ser o status ontológico daquilo que está representado como um termo complexo?

É algo que existe previamente ao juízo ou é algo formado pelo juízo? Se for algo que existe

previamente ao juízo, então, ele é um termo que subsiste independentemente do sujeito que o

julga e o juízo consistirá, exatamente, em apreendê-lo e asserí-lo. Nesse caso, a Teoria do

Juízo como Relação Dual retorna e com ela todos os inconvenientes que já apresentamos no

Capítulo Primeiro.

Por outro lado, se aquele termo complexo representado por “L < d, c >” é formado

pelo sujeito no ato do juízo, então, ele não subsiste anteriormente ao sujeito, nesse caso, o

juízo é um trabalho de construção daquele termo complexo e não a apreensão de um termo

complexo já pronto. Por conseguinte, neste ponto de vista, a Teoria RM continua válida e o

modelo de simbolismo que gerou (3a) deve ser abandonado no tocante à relação acreditar.

Outro tipo de simbolismo usado para capturar a estrutura da relação acreditar tem

sua origem no próprio Russell. Segundo este modelo, o simbolismo adequado para a

ocorrência da relação acreditar em (3) deve ser como mostra (3b):

(3b) B ( o, L, d, c )

Neste modelo os parênteses também indicam que a ordem dos termos é relevante em

B e nenhum outro sinal é dado para indicar a ordem interna dos termos na relação L. Os

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termos dentro do escopo da relação B são separados por vírgulas em lugares distintos e não há

nenhum termo complexo. Tal simbolismo apresenta duas vantagens que superam as

dificuldades encontrados no modelo anterior. Primeiro, ele não faz uma fusão dos lugares dos

termos envolvidos na relação subordinada, ele não estrutura os termos relata da relação

acreditar com base na noção de pares ordenados. E com isso ele tanto preserva o fato de que a

relação acreditar pode ocorrer com mais de dois lugares, quanto evita o esforço inconveniente

de forçar os termos a se estruturarem sempre num esquema dual. Segundo, ele não provoca

nenhum compromisso ontológico com termos complexos subsistentes.

Apesar dessas vantagens, porém, este modelo de inspiração russelliana ainda revela

um sério problema. Uma vez que ele não faz uso de um sinal que indique a ordem dos termos

na relação subordinada, ele precisa encontrar um meio de indicar como a relação subordinada

arranja seus termos dentro do escopo da relação principal. Em (3), por exemplo, é preciso

justificar como devemos entender porque a ordem dos termos em L é d-c e não c-d, mesmo

com a relação acreditar impondo d-c na ordem geral.

A resposta da primeira versão da Teoria RM para essa questão é interessantíssima e

ainda não foi devidamente explorada. Segundo ela, pode-se dispensar um sinal que indique a

ordem dos termos no simbolismo lógico, porque os papeis lógicos dos termos impostos pela

relação que age sobre eles permitem identificar os lugares certos para eles e,

consequentemente, permitem que o sujeito da crença determine a ordem em que eles devem

ocorrer. Por isso, basta que o simbolismo indique os lugares certos dos termos que, com a

ajuda de uma regra sintática, se pode assumir que o termo do primeiro lugar é o sujeito e o

termo do segundo lugar é o relatum da relação da relação subordinada. No simbolismo dado

em (3b), por exemplo, a relação subordinada envolve dois termos, em lugares distintos e com

papéis lógicos distintos. A relação acreditar posiciona os termos nesses lugares da relação

subordinada com base nesses papéis. Ela escolhe que termo deve desempenhar o papel lógico

próprio de cada um dos dois lugares.

Desse modo, a ausência de um indicador da ordem dos termos na relação

subordinada é superada com a ajuda de uma regra sintática que determina que o primeiro

lugar da relação pertence ao termo sujeito e o segundo lugar pertence ao termo relatum. A

relação representada por “B”, então, determina o lugar da relação subordinada e como a

relação subordinada determina os lugares dos seus termos e os papeis lógicos que cada termo

deve desempenhar em seus respectivos lugares, B posiciona os termos, na ordem que a

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subordinada determina os papéis lógicos e os lugares dos termos, indicando que termo deve

ocorrer em cada lugar. Por isso, em (3b), podemos ler sem embaraços que o termo

representado por “o” é o sujeito da relação B, que L é a relação subordinada e que o termo

representado por “d” é o sujeito de L e o termo representado por “c” é o relatum de L. A

ordem d-c que B impõe aos termos em L não é arbitrária porque os papeis lógicos

determinados por L impõem uma direção e os lugares certos para que os termos funcionem

com suas respectivas funções lógicas. O que é arbitrário, ou seja, o que B decide por si

mesma, é que o termo “d” seja posto no primeiro lugar e que o termo “c” seja posto no

segundo lugar.

Contudo, apesar dos ganhos que oferece, esse simbolismo começa a se embaraçar

quando vários termos desempenham a mesma função na relação subordinada, isto é, quando a

relação subordinada não é dual. Por exemplo:

(45) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Romeu, Julieta e Hypatia.

(45a) B (o, F, d, c, r, j, h ).

Neste caso, a relação acreditar envolve a relação subordinada lutar com, que tem

dois termos ocorrendo com o papel de sujeito e três termos ocorrendo com o papel de relatum.

O simbolismo lógico, porém, separa os termos em lugares diferentes e não tem nenhum sinal

que indique os papéis que os termos desempenham nesses lugares. Uma vez que este

simbolismo identifica o lugar do termo com o papel lógico que o termo desempenha na

relação e associa cada termo a um lugar separado, ele termina por reproduzir os lugares de

forma ambígua, multiplicando-os, de modo incompatível com os papeis lógicos dos termos

que são, de fato, impostos pela ocorrência da relação subordinada.

De fato, no simbolismo de (48), dado em (48a), está totalmente ambíguo saber quais

termos desempenham o papel de sujeito e quais termos desempenham o papel de relatum na

relação F. Como também está errado formalizar F envolvendo cinco lugares quando, na

verdade, ela ocorre com termos desempenhando dois papeis lógicos e, consequentemente,

deve ter dois lugares apenas. A questão central para o simbolismo adequado da relação

acreditar está, pois, em indicar de modo bem-sucedido os lugares dos termos impostos pela

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relação subordinada, tornando possível identificar corretamente os papeis que a relação

acreditar atribui a eles por meio da relação subordinada. Este passo, porém, só será dado na

última seção do Capítulo Terceiro.

2.3 DIFICULDADE CENTRAL DOS SIMPATIZANTES DO PROBLEMA DA

DIREÇÃO: ASSIMILAR O PAPEL RELACIONANTE DA RELAÇÃO SUBORDINADA

Como temos visto, Russell assumiu que acreditar é uma relação múltipla entre um

sujeito e vários objetos, dentre os quais, um é uma relação universal. E, tratando esta relação

universal como um objeto comum na crença, a tradição crítica acentuou enfaticamente o

Problema da Direção, no qual encontramos envolvidas as várias dificuldades adjacentes

apontadas acima. Mas, como nós contestamos este caminho interpretativo, porque não

achamos correto tratar a relação subordinada como um objeto comum na crença, temos que

nos perguntar agora qual é a dificuldade encontrada quando se tenta tratar a relação

subordinada como uma relação universal, com a qual o sujeito está acquainted e posta

relacionando logicamente na crença.

Nicholas Griffin situa essa dificuldade de um jeito muito interessante. Primeiro, ele

insiste na importância de considerarmos a relação subordinada como uma relação universal,

pois, do contrário, crenças falsas não seriam permitidas e a teoria da correspondência abriria

falência. E, segundo, ele insiste na ideia de que relações que ocorrem como termos de outra

relação são relações universais e, elas mesmas, não necessitam de termos. Pois, insiste ele,

uma relação “só necessita de termos quando ela ocorre como ‘relação relacionando’”.154

No modo como Griffin situa a questão, podemos ver em que consiste a raiz da

dificuldade para que a Teoria RM possa tratar a relação subordinada como uma relação e não

como um objeto comum na crença. A raiz dessa dificuldade está em justificar de que modo a

relação subordinada pode ocorrer como termo da relação acreditar e como relação

relacionando outros termos no juízo. Pois, no entender de Griffin, enquanto termo da relação

acreditar, ela deve ser uma relação universal, e, enquanto relação relacionando outros termos,

154 GRIFFIN, 1985, p. 216.

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ela deve ser uma relação “particularizada”. O que, olhando do ponto de vista do sujeito da

crença, também pode ser dito do seguinte modo: como o sujeito da crença pode estar ligado à

relação subordinada como uma relação universal, por meio da relação acreditar, e formar a

crença com ela como relação relacionando?

A resposta a essa dificuldade, juntamente com a resposta ao Problema da Direção,

em seu duplo aspecto, e às dificuldades adjacentes a ele que foram apresentadas acima, serão

dadas nas seções 3.2 e 3.3 do Capítulo Terceiro.

2.4 SUMARIZANDO

Todos os Problemas e dificuldades apontados neste Capítulo contra a Teoria RM

repousam numa compreensão defasada da relação subordinada. Mais precisamente, na

compreensão da relação entre ela e a relação acreditar, bem como, na devida distinção dos

campos em que cada uma delas opera quando um juízo é formado. No caso do Problema da

Direção dos termos, isso desafia a Teoria RM a justificar porque e como a relação acreditar

pode aplicar a relação subordinada de A para B mais do que de B para A. Ou, no caso do

Problema da Direção Larga, a justificar porque ela não é um termo no mesmo nível lógico dos

demais termos da crença e, pelo papel que ela desempenha, se for de primeira ordem, porque

ela mantém com todos eles uma relação assimétrica heterogênea.

Já no caso das dificuldades explicativas na variação, a questão de fundo está em

tratar a relação subordinada como um termo comum ou não. Se ela for tratada como um termo

comum, as dificuldades relativas à variação na aridade, no número de lugares e na ordem

lógica da relação acreditar ficam totalmente carentes de uma base lógica consistente. Haja

vista que, em sentido estrito, não podemos falar de uma instanciação válida da relação

acreditar, porque tudo o que encontramos é uma simples sequência indeterminada de termos

num único nível lógico. Por outro lado, se a relação subordinada for tratada como uma relação

na crença (e ela é uma relação!), temos que enfrentar a tarefa de explicar o papel lógico dela e

da relação acreditar na unidade formada pela instanciação desta última.

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Tais constatações, sem dúvida, indicam que a saída para o Problema da Direção e

para as dificuldades explicativas relativas à variação, à identificação dos papéis lógicos dos

termos e ao simbolismo formal das ocorrências da relação acreditar deve começar por

estabelecer uma relação precisa entre acreditar e a relação subordinada e distinguir com

clareza o campo de operação, bem como o papel, das duas relações. Uma vez que esta base

for estabelecida, as dificuldades com a variação vão se esclarecer, abrindo caminho para

bloquear o Problema da Direção e para alcançar um simbolismo lógico adequado para as

ocorrências da relação acreditar. Este, porém, será o trabalho do Capítulo Terceiro, para o

qual nos voltaremos agora.

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3 COISAS VELHAS E NOVAS DO TESOURO DA FILOSOFIA

O Terceiro Capítulo de nossa Tese está estruturado em três grandes seções que, por

sua vez, ainda estão subdivididas em algumas subseções. Na primeira seção procuraremos um

meio de superar a lacuna, deixada por Russell na primeira versão da Teoria RM, referente aos

campos em que operam a relação acreditar e a relação subordinada na ocorrência de um

juízo, bem como na definição da relação entre as duas relações. Para isso, nos afastamos da

rota propriamente dita da Teoria RM e entramos no baú do patrimônio filosófico a fim de

apreciar algumas ferramentas antigas e novas.

Já na segunda seção, voltando do excurso empreendido fora da rota da Teoria RM,

faremos uma releitura da natureza e do papel da relação acreditar e da relação subordinada na

ocorrência efetiva de um juízo. Tal releitura, apoiada nas teorias apreciadas na primeira seção,

distingue cuidadosamente o campo de operação de cada uma das duas relações e esboça um

jeito novo de vê-las, tanto na operação própria de cada uma quanto na indissociável interação

das operações existente entre elas. E, por fim, na terceira seção, retomando as dificuldades

com a Teoria RM apontadas no Capítulo Segundo, indicaremos um caminho de superação

para o Problema da Direção e as dificuldades adjacentes a ele nas ocorrências da relação

acreditar, tomando como base a distinção dos campos de operação, a relação hierárquica e a

interação existente entre as duas relações. A distinção dos campos em que operam, revela os

diferentes papéis das duas relações, mostrando que a relação hierárquica entre elas determina

as condições para a construção de uma direção vertical lógica e a interação entre elas

determina as condições para a construção de uma direção horizontal lógica dos termos relata.

3.1 PREENCHENDO A LACUNA DEIXADA PELA PRIMEIRA VERSÃO DA

TEORIA RM

Como vimos no Capítulo Primeiro, Russell reconheceu a importância do papel que a

relação subordinada desempenha na determinação da direção dos termos relata em crenças

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relacionais simples em sua primeira versão da Teoria RM. Quando é uma relação dual

assimétrica, por exemplo, ela tem uma direção e impõe essa direção aos demais

relata.155Contudo, apesar de ter reconhecido a importância do papel da relação subordinada

nas crenças relacionais, aquela primeira versão da Teoria RM deixou uma lacuna em aberto

com, pelo menos, três pontos muito importantes envolvendo a relação subordinada.

Primeiro, Russell não disse o que faz com que a relação subordinada determine uma

direção, mais do que outra, para os termos que ela envolve. Segundo, ele não disse como a

operação que a relação subordinada desempenha determinando a direção dos relata se

harmoniza com a operação da relação acreditar, que une os termos num complexo geral. E,

terceiro, ele não disse, exatamente, em que consiste o papel da relação subordinada e o papel

da relação acreditar na formação dessa unidade geral.

Esses três pontos, até o presente momento, formam uma lacuna abissal na primeira

versão da Teoria RM e Russell, ao que parece, não encontrou resposta para eles. Pior ainda,

nas versões seguintes à de 1911, ele acabou deixando esses pontos de lado e passou a tratar a

relação subordinada como um termo comum, sem nenhum papel decisivo na formação da

unidade das crenças relacionais. Mas, como vimos no Capítulo Primeiro, essa mudança de

rumo não foi feliz. A primeira versão da Teoria RM é a melhor de todas e não deveria ter sido

abandonada. O caminho certo a seguir é tentar preencher aquela lacuna, responder às questões

presentes nela e abrir caminho para superar as demais dificuldades.

Visando essa meta, a partir de agora buscaremos preencher aquela lacuna,

oferecendo uma resposta a cada um dos pontos indicados acima para, em seguida, apontar

uma saída nova para as dificuldades relativas à variação, aos papéis lógicos dos termos e ao

simbolismo formal das ocorrências da relação acreditar, bem como ao Problema da Direção,

tratados no Capítulo Segundo. E, para tanto, tomaremos como objetivo geral desta seção sair

da rota em que vínhamos, por um momento, a fim de entrar no baú da filosofia e apreciar duas

teorias do patrimônio filosófico que nos darão o suporte adequado para responder àquelas

demandas constitutivas da lacuna que encontramos na primeira versão da Teoria RM. De

modo concreto, dividiremos a seção em duas subseções. A primeira será voltada para uma

teoria mais remota, uma pérola despercebida num canto do baú, que insere na discussão dois

conceitos novos, valiosíssimos, para a compreensão da relação acreditar e de seus termos,

155 RUSSELL, 1910a, p. 183-184.

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144

especialmente a relação subordinada. E, a segunda subseção é voltada para uma teoria mais

recente, a teoria das relações multigrade, da qual vamos extrair elementos fundamentais para

superar as dificuldades da variação e do simbolismo formal na terceira e última seção.

3.1.1 Afastando-se da rota (i): o baú de antiguidades

Antes de afrontarmos os problemas deixados naquela lacuna da primeira versão da

Teoria RM vamos suspender, por um instante, a preocupação com as questões envolvendo a

relação acreditar e a relação subordinada num ato de crença. Precisamos fazer um excurso e

entrar num dos mais importantes filósofos do período escolástico. Seu pensamento esconde

valiosos tesouros do patrimônio filosófico e, de modo especial, veremos que duas noções

metafísicas defendidas por ele são de fundamental importância para a Teoria RM, não

obstante, terem passado despercebidas por todos os críticos da teoria de Russell. Desse modo,

antes de avançar, vamos voltar ao baú da filosofia e apanhar esse instrumental teórico

“adormecido”.

O filósofo a que nos referimos é são Tomás de Aquino. Nossa excursão vai na

direção do seu pensamento exposto na Summa Theologiae. De modo mais preciso, ela visa

apreciar a solução oferecida por são Tomás aos problemas filosófico-teológicos decorrentes

da concepção de operações de agentes diferentes ordenados entre si. A empreitada não será de

forma alguma uma digressão infrutífera, devemos antecipar. Muito pelo contrário, ela será

como uma valiosa descida a um porão que guarda a herança de muitas gerações,

acompanhada da grata descoberta de uma joia que, até então, esteve ali despercebida até

mesmo aos olhos dos mais ilustres peritos.

A questão da integração das operações entre agentes diferentes ordenados entre si foi

tratada por são Tomás no artigo 1º da questão 19, na parte III da Summa Theologiae, ao

enfrentar o problema da unidade de operação em Cristo.156 Este último problema, claro, é de

grande importância para a teologia cristã e não nos interessa diretamente aqui, mas também há

nele uma importantíssima base filosófica, tanto na sua formulação quanto na solução proposta

por são Tomás, que nos interessa muito, e por isso teremos que considerá-lo atentamente.

156 AQUINO, 2002, p. 169-172.

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145

A face teológica desse problema, contra a qual são Tomás se insurgiu, repousava na

afirmação, considerada herética, de que em Cristo há uma única operação. Os partidários

desta posição admitiam que em Cristo havia duas naturezas, a divina e a humana, mas

negavam que houvesse duas vontades e duas operações e, desse modo, caiam numa confusão

das naturezas.157 E a face filosófica do problema baseava-se em duas afirmações bastante

significativas. A primeira dizia que quando duas naturezas formam um ser subsistente,

necessariamente, quem opera é o sujeito subsistente como tal. No homem, por exemplo, a

alma e o corpo formam um único indivíduo subsistente e, consequentemente, cada operação

do homem é operação do indivíduo subsistente. Não há uma operação do corpo separada de

uma operação da alma e vice-versa. A segunda dizia que a cada operação de um indivíduo

corresponde uma ação apenas.158 No homem, por exemplo, andar, falar ou tocar são operações

únicas de um indivíduo e não a soma de duas operações diferentes de naturezas diferentes.

A solução proposta por Tomás para essa questão consistiu em identificar com

precisão tanto a diferença quanto a cooperação dos agentes que atuam, de modo

hierarquicamente ordenado, formando uma unidade de operação. Sua posição revela que,

nesses casos, o nível hierárquico de cada agente deve ser devidamente identificado e

classificado, assim como o papel e a interação recíproca deles na constituição da unidade de

operação. De modo que, dada a importância dessas três coisas, vamos considerar cada uma

delas separadamente.

3.1.1.1 O agente movente

São Tomás reagiu aos que tentavam diluir as duas vontades e as duas operações das

naturezas, divina e humana, em Cristo numa única vontade e numa única operação. Ele

propôs uma explicação que preserva tanto a interação e a harmonia das duas vontades e das

duas operações, quanto a identidade da operação de cada uma das duas naturezas. Segundo

ele, quando uma unidade é constituída por vários agentes ordenados entre si é necessário

perceber que um agente inferior é movido por um agente superior ou principal, pois essa

distinção é indispensável para entender corretamente a complexidade de tal situação.

157 AQUINO, 2002, p. 162-163. 158 Ibidem., p. 171-172.

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146

O agente principal é aquele que move. Ele atua por sua própria natureza e não é

instrumento de nenhum outro agente. Enquanto agente movente, ele utiliza o agente

subordinado, faz dele seu instrumento e aplica-o sobre os objetos que pretende. Enquanto

agente movente, ele age com sua operação própria e visa um fim próprio, de modo que a

operação do agente movido é assimilada por ele e pode, legitimamente, ser dita sua também.

O papel e os poderes do agente movente, então, são muito importantes. Ele aciona o

agente subordinado, servindo-se das propriedades e possibilidades operacionais próprias

deste, para alcançar fins que, embora sejam possíveis a este, não lhes são necessários. Neste

sentido, podemos dizer que o agente movente, literalmente, apodera-se da operação do agente

movido, explora e usa suas possibilidades operacionais, numa situação concreta, para seus

próprios fins. Por isso, no dizer de são Tomás, podemos afirmar que as operações do agente

movido são efeitos da operação do agente movente sobre ele, enquanto que as operações do

agente movente são operações propriamente ditas.159

A extensão dos poderes do agente movente, como se pode ver, é formidável. Ela

mostra que ele estabelece uma relação hierárquica com o agente movido. Primeiro, os poderes

do agente movente indicam que ele pode envolver um ou vários agentes subordinados, como

veremos melhor mais abaixo. Segundo, os poderes do agente movente indicam que ele pode

tomar para si efetivamente as propriedades e as possibilidades operacionais formais do agente

movido, numa situação concreta. O agente movente pode tomar para seus próprios fins as

propriedades e os modos de afetar objetos que são próprios dos agentes subordinados. Ele faz

seus, por exemplo, a formas como tais agentes subordinados operam juntando ou separando

os objetos sob seu comando, tal como o lenhador faz sua a forma como o machado corta a

madeira em várias partes e o laçador faz sua a forma da corda ligar os vários pedaços de

madeira num feixe.

Os poderes do agente movente fazem dele a causa eficiente principal da operação. A

causa que produz seu efeito em virtude dos seus próprios poderes, para usarmos uma

terminologia escolástica.160 Mas os poderes do agente movente não fazem dele a causa

suficiente da operação, isto é, seus poderes também são limitados, eles não são suficientes

para realizar determinadas operações sem a cooperação do agente movido. Enquanto agente

movente, para realizar determinadas operações, ele necessita da cooperação da operação do

159 AQUINO, 2002, p. 170. 160 SESBOÜÉ, 2006, p. 444. Confira ainda: ALVIRA, 2014, p. 226-277.

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agente movido. O lenhador e o caçador, mais uma vez, não realizarão as operações de cortar e

laçar a madeira sem que, respectivamente, um instrumento cortante e outro capaz de laçar

cooperem com as operações deles oferecendo essas formas de operação.

Deste ponto de vista, portanto, há uma interdependência entre o agente movente e o

agente movido. O agente movente, por um lado, independe do agente movido e o influencia

direcionando-o para um fim determinado e, por outro lado, depende do agente movido para

determinadas operações e recebe sua influência. Ele depende das possibilidades oferecidas

pelo agente movido e deve se ater às exigências próprias da operação natural do agente

movido. Apesar de direcionar o agente movido, ele não pode afastar-se de sua natureza nem

ultrapassar suas possibilidades operar de operar quando faz dele seu instrumento. Por isso,

além da relação hierárquica, o agente movente mantém uma fecunda relação de interação com

o agente movido.

3.1.1.2 O agente movido

Consideremos agora a figura do agente movido ou subordinado. De acordo com são

Tomás, o agente movido tem sua forma própria de operar decorrente de sua natureza. Mas

quando movido por outro agente, ele torna-se subordinado e, apesar de operar dentro das

possibilidades de sua forma, ele passa a ser um agente movido ou governado por outro.

Consequentemente, insiste Tomás, ele pode ser visto como sendo possuidor de uma dupla

operação. Ele tem uma operação que é própria da sua natureza e outra quando recebe de fora

o seu movimento.161 O bisturi médico é um bom exemplo para indicar a dupla ação de um

agente movido. Ele tem uma operação própria de sua natureza, que é cortar e, como

instrumento médico, ele tem uma operação diferente, que é causar a saúde, na medida em que

recebe do médico o seu movimento.

A operação de um agente movido segundo sua natureza própria não pertence a

nenhum outro agente. Ela decorre da virtude própria de sua natureza e é intransferível. Mas se

outro agente se serve dele para sua própria ação, ele cede suas propriedades formalmente, seu

modo de atuar, numa ocorrência determinada, como instrumento de uso particular, para

aquele outro agente alcançar o fim que pretende. E cede transferindo, de modo bem

161 AQUINO, 2002, p. 170.

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específico, suas propriedades formais para o agente movente, de modo que será muito

importante distinguir num agente movido o que é intransferível e o que é transferível para o

agente movente em cada circunstância concreta.

Uma analogia com o argumento jurídico da lei dos direitos autorais pode ajudar

bastante no entendimento disso. Ela indica o que queremos dizer com “aquilo que é

intransferível e aquilo que é transferível” do agente movido para o agente movente. Segundo a

lei dos direitos autorais, com relação a uma obra publicada, deve-se distinguir direitos morais

de direitos patrimoniais. Os direitos morais sobre uma obra são direitos de autoria, eles são

intransferíveis. E os direitos patrimoniais são direitos de posse e de uso sobre uma expressão

concreta da obra, eles são transferíveis.

Um exemplo ilustrando essa distinção entre direitos morais e direitos patrimoniais de

posse e uso ajudará ainda mais a compreendê-la tal distinção. Guido Imaguire e Cícero

Barroso são autores do livro intitulado “lógica, os jogos da razão”, seus direitos sobre este

livro são morais, eles são direitos intransferíveis. Ninguém mais pode dizer que é seu este

livro. Só eles podem dizer “temos o livro ‘lógica, os jogos da razão’”, com significado

autoral, isto é, com direitos morais sobre o livro. Por outro lado, Marcos e Nei possuem um

exemplar do livro “lógica, os jogos da razão”. O que eles possuem, porém, é o direito de

posse e uso daquele livro. Eles só têm o direito (transferível) de possuir e usar aquele livro,

presente naquele exemplar, e só podem dizer “temos o livro ‘lógica, jogos da razão’”

significando direito de posse.

De modo análogo, assim como os autores Guido Imaguire e Cícero Barroso têm o

direito moral e patrimonial sobre o livro “lógica, os jogos da razão’” e só transferem o direito

patrimonial, de posse e de uso do seu livro, o agente movido tem suas propriedades “autorais”

e as transfere como direito de posse e uso para o agente movente. Transfere sua forma de

operar como instrumento de posse e uso, não como expropriação de sua natureza. Suas

propriedades operacionais e estruturais continuam pertencendo à sua natureza de modo

intransferível.

Ressalta-se com isso, mais uma vez, a dupla operação do agente movido. Ele opera

por sua própria natureza e essa operação é intransferível. E ele opera como instrumento de

outro agente que o move. Enquanto agente movido, isto é, enquanto instrumento de um

agente movente, porém, suas propriedades operacionais formais são cedidas ao agente

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movente na qualidade de posse e uso. Cada propriedade operacional do agente movido, no

momento em que é movido, torna-se propriedade instrumental do agente movente.

Desse modo, uma fecunda e indissociável interação se estabelece entre o agente

movido e o agente movente. Enquanto instrumento, o agente movido é influenciado pelo

agente movente. Ele tem suas propriedades operacionais instrumentalizadas pelo agente

movente. Mas, ao ser influenciado, ele transfere formalmente suas propriedades operacionais

para o agente movente e o influencia também, impondo-lhe as possibilidades e exigências

próprias da forma de operar da sua natureza.

3.1.1.3 Diversidade e cooperação nas operações de agentes diferentes ordenados entre si

O cerne da proposta de são Tomás é que quando vários agentes atuam ordenados

entre si, um deles é o agente movente, o outro é o agente movido e as operações de ambos,

embora em campos diferentes, influenciam-se reciprocamente e cooperam uma com a outra.

A operação própria de cada agente é a que ele realiza em virtude de sua própria natureza, não

pertencendo a nenhum outro agente que possa lhe tomar como instrumento. Contudo, se outro

agente se serve dele para sua própria ação, a operação dele, enquanto instrumento, não difere

da ação do agente que o move, mas integra-se a ela. O agente movente usa efetivamente a

operação do agente movido e o agente movido participa da operação efetiva do agente

movente.162

Os dois agentes influenciam-se reciprocamente, salvas as diferenças hierárquicas

estabelecidas entre eles, porque cada um interfere de certo modo na determinação do outro.

Tomemos como exemplo o caso do lenhador e do machado. O lenhador é o agente movente e

o machado é o agente movido. Por natureza, o machado pode cortar muitas coisas e de muitos

modos, mas muitas outras coisas ele não pode cortar. Ora, isso determina a operação do

lenhador que terá de respeitar as exigências operacionais próprias da natureza do machado

para poder tomá-lo como instrumento de modo bem-sucedido.

Desse modo, agente movido determina o agente movente antes que este o aplique,

porque ele tem natureza própria e condições de operação próprias que o agente movente deve

162AQUINO, 2002, p. 170.

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150

respeitar para que possa aplicá-lo de modo eficaz. Mais do que isso. Ele determina não

somente que o agente movente deve saber quando pode e quando não pode aplicar sua forma

de operar, mas, sobretudo, como aplicá-la corretamente.

No momento em que o lenhador aplica o machado para cortar o galho mais alto de

uma árvore, porém, ele determina o objeto específico da operação do machado num ato

operacional concreto. O agente movente, portanto, determina o objeto sobre o qual quer

aplicar o modo de operar do agente movido no momento em que seleciona dentre as inúmeras

possibilidades do agente movido um objeto determinado.

Além disso, o agente movido também determina o agente movente depois que este o

move porque, ao ser usado pelo agente movente, o agente movido transfere para ele suas

propriedades usadas por ele como instrumento. O agente movido faz com que o agente

movente seja visto como a causa principal das suas propriedades terem sido utilizadas

instrumentalmente. No caso do lenhador e do machado, por exemplo, ao ser utilizado por um

determinado lenhador com dois golpes de forte intensidade para cortar o galho mais baixo da

árvore, o machado também determina que aquele lenhador cortou o galho mais baixo da

árvore com apenas dois golpes, porque cedeu ao lenhador o seu poder cortante. Claro, essa

determinação é decorrente do uso da propriedade cortante, por parte do agente movente,

propriedade que pertence ao agente movido. O agente movente determina o agente movido

escolhendo uma das possibilidades formais de operação do agente movido. E o agente movido

determina o agente movente como decorrência do fato de que alguma de suas propriedades se

tornou posse e instrumento dele.

A influência recíproca dos dois agentes, cada um a seu modo e no seu campo

específico, portanto, revela uma cooperação recíproca entre eles. Haja vista que, sempre que o

agente movente e o agente movido têm virtudes operatórias diversas, uma é a operação do que

move e outra a do que é movido. O movido participa da operação do movente e o que move

se serve da operação do movido, pois um opera com a cooperação do outro.163 O agente

movido coopera com o agente movente, enquanto instrumento de sua ação, ajudando o agente

movente a agir sobre os objetos do seu interesse. Neste sentido, o agente movido completa a

ação do agente movente e o ajuda a realizar sua meta sobre os objetos pretendidos. E o agente

163 AQUINO, 2002, p. 172.

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151

movente, por sua vez, também coopera com o agente movido, na situação concreta em que faz

uso deste, porque determina e aplica, numa operação concreta, sua forma de operar.

3.1.1.4 Possíveis combinações de agentes diferentes ordenados entre si

Até aqui, falamos de agente movente e agente movido, no singular, mas é preciso

notar que a proposta de são Tomás de Aquino se refere também a situações em que “há

muitos agentes ordenados”. 164 Neste caso, a gama de situações possíveis revela-se muito

maior e, apesar de não termos nenhuma pretensão de apresentá-la aqui exaustivamente,

queremos destacar, pelo menos, as primeiras possibilidades de combinação numérica entre os

dois tipos de agentes.

Para isso, considerando a posição de são Tomás, segundo a qual, quando há muitos

agentes ordenados entre si “o inferior é movido pelo superior”, vamos classificar suas

possíveis combinações em dois grupos. O primeiro grupo é aquele em que há um agente

movente e um (ou mais de um) agente movido. E o segundo grupo é aquele em que há mais

de um agente movente e um (ou mais de um) agente movido.

3.1.1.4.1 Primeiro grupo: um agente movente e um ou vários agentes movidos

a) Um agente movente e um agente movido

A primeira combinação possível é aquela onde temos um agente movente e apenas

um agente movido como, por exemplo, o médico e o bisturi. O médico é o agente movente

principal e o bisturi é o agente movido subordinado. O agente movente usa a forma de operar

de um único agente movido e integra suas capacidades operacionais numa estrutura complexa

única para atingir seu alvo, que é fazer o corte cirúrgico com precisão e remover as células

doentes.

164 AQUINO, 2002, p. 170.

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152

b) Um agente movente e dois agentes movidos

A segunda combinação é aquela onde um agente movente utiliza dois agentes

movidos como, por exemplo, quando o médico usa a seringa e o liquido medicinal para

aplicar uma injeção no paciente. Nesse caso concreto, temos dois agentes movidos. A seringa

é o agente movido primeiro. Por um lado, ela está subordinada à ação do médico e, por outro

lado, ela também age sobre o liquido medicinal para que haja a operação de injeção. O liquido

medicinal, por sua vez, é o segundo agente movido. Ele está subordinado à operação do

médico, por meio da seringa e age sobre o corpo do paciente. Assim sendo, ele tem um grau

de subordinação maior do que a seringa, porque tanto o agente movente quanto a seringa

agem sobre ele. O grau de subordinação, portanto é uma propriedade transitiva. Se C é

subordinado a B e B é subordinado a A, então, C é subordinado a A.

A operação do médico, o agente movente, então, faz uso dos dois agentes movidos,

aplicando a operação de um sobre a operação do outro. Ele faz uso do primeiro agente

movido, a seringa, para mover o segundo agente movido, o liquido medicinal. Ele determina

os agentes movidos, no sentido de que aplica cada um deles a uma situação concreta que

constitui uma de suas possibilidades formais de operação. E também é determinado por eles

porque assume essas propriedades operacionais e liga-as efetivamente numa estrutura

complexa única, tornando-se o agente movente determinado da operação complexa total.

Assim, podemos identificar a unidade da operação complexa, a ação própria de cada agente

(movente, movido primeiro e movido segundo) e a interconexão deles no fato ocorrido.

c) Um agente movente e três agentes movidos

A terceira combinação envolvendo vários agentes ordenados entre si é aquela em que

um agente movente opera com três agentes movidos subordinados. Em tais ocorrências,

apesar da unidade geral da operação complexa, podemos distinguir a operação do agente

movente e a operação de cada um dos agentes movidos, identificando também os diversos

graus de subordinação existentes entre eles. Tomemos como exemplo o caso do operador que,

acionando corretamente o computador, põe em funcionamento a impressora e com ela faz uso

da folha de papel para imprimir a primeira página do jornal.

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153

Nesta situação concreta, temos o operador do computador como agente movente,

aquele de quem podemos afirmar “o Sr. x imprimiu a primeira página do jornal”. Em seguida

temos os agentes movidos, as causas instrumentais da operação denominada “imprimir a

primeira página do jornal”. O computador é o agente movido primeiro, por meio do qual o

agente movente faz uso da impressora, que é o agente movido segundo e, por meio da

impressora faz uso da folha de papel, que é o terceiro agente movido.

De novo podemos perceber que o processo se repete, mas com complexidade e

números maiores. O operador usa, formalmente, as propriedades dos agentes movidos para

atingir seu objetivo. Mas, ele só faz isso, usando a operação de um agente movido sobre a

operação de outro, sucessivamente, até alcançar o objetivo desejado. Para isso ele se apropria

instrumentalmente da forma de operar de cada um dos agentes movidos e liga todos eles,

integrando suas operações, numa única operação complexa hierarquicamente organizada.

3.1.1.4.2 Segundo grupo: dois agentes moventes (ou mais) e um ou vários agentes

movidos

a) Dois agentes moventes (ou mais) atuando individualmente com um agente movido (ou

mais de um do mesmo tipo)

Duas situações básicas exemplificam as ocorrências que caem sob esta classificação.

A primeira é quando dois (ou mais) agentes moventes atuam individualmente envolvendo um

único agente movido é possível perceber a operação de cada um dos agentes moventes na

realização da operação complexa geral. Um exemplo disso pode ser o seguinte fato: Pedro e

João, usando um único machado, alternando a cooperação, cortarem a árvore. Neste caso, os

dois agentes moventes se servem das propriedades operacionais do agente movido para atingir

um fim comum às suas pretensões. Claro, a quantidade de golpes desferidos por cada um pode

ser diferente e o modo como cada um opera, se com maior ou menor intensidade, também

pode ser diferente, mas a natureza da relação hierárquica e da interação entre os agentes

moventes e o agente movido não se altera. Cada um, individualmente, toma posse

instrumentalmente da forma de operar do agente movido para uma operação comum, que é

cortar a árvore, e cada um influencia e é influenciado pelo agente movido.

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154

A segunda situação de ocorrência dentro dessa classificação é aquela em que dois (ou

mais) agentes moventes envolvem dois (ou mais) agentes movidos do mesmo tipo. Cada

agente movente pode usar um agente movido (do mesmo tipo) como, por exemplo, no caso de

Pedro e João, cada um com um machado, cortam a árvore. De novo, a cooperação de cada

agente movente pode ser diferente na quantidade e no modo, mas a natureza da relação

hierárquica e da interação entre os agentes moventes e os agentes movidos continua a mesma.

Cada agente movente usa, instrumentalmente, as propriedades operacionais e estruturais dos

agentes movidos para uma operação comum e tanto influencia quanto é influenciado pelos

agentes movidos. Em resumo, quando dois (ou mais) agentes moventes atuam

individualmente para uma operação comum, cada agente movente coopera para a realização

da operação comum, mesmo que a quantidade e o modo da cooperação contenham diferenças,

sem nenhuma alteração na natureza lógica da relação hierárquica e da interação entre os

agentes moventes e os agentes movidos. E é exatamente essa constância na relação

hierárquica e na interação entre o agente movente e o agente movido, que permite individuar a

operação dos vários agentes moventes e seus respectivos agentes movidos.

b) Dois agentes moventes (ou mais) atuando coletivamente com um agente movido (ou

mais de um de diferentes tipos)

Esta caracterização também pode ser exemplificada com duas situações básicas. A

primeira delas é quando dois agentes moventes (ou mais) operam coletivamente com um

único agente movido. Um bom caso de ilustração dessa situação é a operação coletiva de

Pedro e João, com uma corda, para amarrar a fera. Neste caso, não é possível individuar a

cooperação de cada um dos agentes moventes, muito embora se possa admitir diferenças na

quantidade e no modo como cada um coopera em vista do objetivo comum. Mas, a exemplo

do que já identificamos nos casos acima, a natureza da relação hierárquica e da interação dos

agentes moventes com o agente movido não sofre nenhuma alteração.

A segunda exemplificação dessa caracterização é quando dois agentes moventes (ou

mais) envolvem dois agentes movidos (ou mais) de tipos diferentes. Uma boa ilustração dessa

situação é a operação coletiva de Pedro e João para içar a vítima com uma corda e uma

padiola. Também aqui podemos perceber que não há como separar a operação dos agentes

moventes, ela é coletiva, muito embora se possa admitir diferenças quantitativas e de modo na

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155

cooperação de um e de outro. Mas, tal qual aconteceu nos casos acima, a natureza da relação

hierárquica e da interação das operações entre agentes moventes e agentes movidos não sofre

alteração. Os agentes moventes tomam posse, coletiva e instrumentalmente, das propriedades

formais dos agentes movidos em vista de uma operação comum. Em resumo, também nas

situações que constituem esse grupo, quando a operação de dois (ou mais) agentes moventes é

uma operação coletiva, mesmo que seja admissível diferenças na quantidade e no modo da

cooperação de cada agente movente, a natureza da relação hierárquica e da interação entre

agentes moventes e agentes movidos permanece inalterada.

3.1.2 Afastando-se da rota (ii): o baú de ferramentas

Continuando a excursão que nos propomos fazer no baú do patrimônio filosófico,

vamos dirigir nossa atenção agora para a caixa de ferramentas e fazer uso de outra teoria que

também tem muito a cooperar na superação dos problemas da Teoria RM. Trata-se da teoria

das relações multigrade de Alex Oliver e Timothy Smiley, segundo a qual, apesar de algumas

relações poderem envolver um número variável de termos, há uma estratégia lógica eficaz

para lidar com elas e, inclusive, traduzi-las formalmente de modo adequado.

Para considerar bem a posição deles e identificar os ganhos que ela oferece para a

Teoria RM, então, vamos dividir esta subseção em duas partes. Na primeira parte veremos em

detalhe a proposta da teoria multigrade das relações proposta por eles e, na segunda parte,

veremos o assunto da indicação formal da relevância na ordem dos termos. Esta segunda parte

ajudará em muito a pôr em relevo a proposta da estratégia multigrade.

3.1.2.1 A estrutura interna e a natureza lógica da relação na teoria das relações multigrade

As relações capazes de ligar uma sequência indefinida de termos revelam

peculiaridades desafiadoras, tanto na compreensão de sua natureza lógica, como na sua

maneira de estruturar os termos, que suscitam um árduo trabalho explicativo. Nesse sentido, a

teoria multigrade desenvolvida por Alex Oliver e Timothy Smiley oferece uma estratégia

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inovadora no trato dessas relações. E, no nosso entender, ela pode ser aplicada, com pleno

sucesso e bons resultados, à relação acreditar proposta pela primeira versão da Teoria RM,

como veremos na segunda seção deste Capítulo.

A fim de apreciar cuidadosamente a teoria multigrade de Alex Oliver e Timothy

Smiley, vamos, então, dividir a presente parte em cinco pontos para examinar,

respectivamente, o que são relações multigrade, qual é a estratégia interpretativa proposta

pela teoria deles, em que consiste a distinção entre lugar e posição de termos sugerida por

eles, qual é sua concepção de aridade numa relação e, finalmente, em que consiste a

classificação de simetria global e simetria local oferecida por eles.

3.1.2.1.1 As relações multigrade

Como já foi indicado em 2.2.1, há duas maneiras de considerar as relações, no

tocante à sua aridade, uma se pode chamar multigrade a outra unigrade.165Os que consideram

relações como entidades unigrade assumem que elas só podem instanciar-se em fatos

atômicos com um número determinado de termos e, consequentemente, ou são monádicas ou

diádicas ou triádicas ... ou n-ádicas, mas não ocorrem ora como uma coisa, ora como outra.

Para ilustrar isso, tomemos como exemplo a frase (10) e acrescentemos as frases (46)-(48):

(10) Desdemona ama Cássio.

(46) Desdemona está entre Cássio e Glauco.

(47) Desdemona entrega Cássio a Glauco em T1.

(48) Desdemona entrega Cássio, Glauco e Romeu a Hypatia em T1.

Segundo o ponto de vista de que relações são entidades unigrade, as relações

expressas por (10) e (46)-(48) têm aridade fixa. A relação expressa por ...ama..., em (10),

165(*) Talvez se possa traduzir unigrade e multigrade para o português como “um grau” e “muitos graus”,

respectivamente, mas, como veremos melhor adiante, essas expressões indicam um campo de significado que

precisa ser expresso com mais clareza. Então, manteremos o uso dos dois temos no original inglês, até

justificarmos sua tradução com expressões mais técnicas.

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157

seria sempre diádica. A relação expressa por ...está entre... e ..., em (46), seria sempre

triádica. A relação expressa por ...entrega ...a ... em ..., como mostra (47), seria sempre

tetrádica. E a relação expressa por ... entrega ... a ... em ..., descrita em (48), seria sempre

pentádrica. Ou seja, de modo geral, podemos dizer que as relações unigrade são entidades n-

ádicas que só podem ocorrer em fatos atômicos contendo n + 1 termos.

Um problema grave com essa posição, porém, é que situações como as que são

expressas por (47) e (48) implicam em relações diferentes. Quando, na verdade, são apenas

instâncias da mesma relação.

Os que consideram relações como entidades multigrade, por sua vez, admitem que

elas podem ocorrer com um número variável de termos.166Desse modo, uma mesma relação

pode instanciar-se com aridade 2, 3, 4, 5 etc e, desse ponto de vista, a relação amar, expressa

na frase (10), por exemplo, deve ser considerada uma relação multigrade. De fato, naquela

ocorrência, a relação amar ocorre com aridade 2, mas, ela pode ocorrer com aridade 3, 4, 5

etc. Quando isso acontece, em situações como “Desdemona ama Huguinho, Zezinho e

Luizinho”, por exemplo, a clássica explicação de que a ocorrência da relação apenas oculta

várias conjunções lógicas tem um valor parcial, mas, tem o inconveniente de apelar para

formas lógicas ocultas e não atende aos casos em a relação ocorre do modo não distributivo.

Assim, a interpretação multigrade explica de modo mais econômico e mais abrangente a

variação de aridade da relação apelando apenas para a sua natureza lógica.

Quanto aos casos expressos por (46)-(48), a posição que considera relações como

entidades multigrade assume que ali se expressam instâncias, com diferentes aridades, da

mesma e única relação. A relação mesma pode compor sequências de termos, como ilustram

(47) e (48), que não se reduzem a um conjunto de conjunções ocultas.

Apesar de ser comum relações ocorrem assim, esse modo de considera-las como

relações de aridade variável despontou com força a partir de Russell e Susanne Langer.167

Mas, como observam Alex Oliver e Timothy Smiley, em linhas gerais, a bibliografia que trata

relações como entidades multigrade é muito escassa e carente para justificar devidamente essa

propriedade delas e descrever o seu funcionamento lógico.168Segundo eles, porém, não há

166 LANGER, 2014, p. 50; LEONARD & GOODMAN 1940, p. 50; MORTON, 1975, p. 309; OLIVER;

SMILEY, 2013, p. 610. 167 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 611. 168 Idem., 2013, p. 153.

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como negar essa propriedade multigrade nas relações. A grande prova disso é que, se algumas

relações fossem tratadas como relações unigrade a linguagem naufragaria numa ambiguidade

insuportável e outras não seriam devidamente capturadas em suas ocorrências concretas.169

De acordo com esses autores, porém, pode-se dizer que uma relação é multigrade em

três sentidos. Uma relação será multigrade se variar o número geral de termos envolvidos por

ela em suas várias instâncias. Uma relação será multigrade se variar o seu número de lugares

de termos envolvidos por ela em suas várias instâncias. E uma relação será multigrade se

variar o número de posições dos termos dentro de um lugar.

Essas distinções são muito valiosas para a compreensão da dinâmica do

funcionamento lógico das relações multigrade. Elas põem em evidência o caráter polivalente

da significação da palavra “multigrade” e sugerem a busca de termos mais precisos para

cobrir seu campo de significação. De fato, não seria mais acurado designar cada um desses

significados com uma expressão própria e direta? Usar “multigrade” para significar todos

esses aspectos é mais trabalhoso e arriscado do que expressar os seus respectivos aspectos

com termos diretos. É mais trabalhoso porque o tempo todo será necessário justificar quando

a palavra “multigrade” é usada com um significado ou com outro. E é mais arriscado porque

às vezes uma relação será multigrade por um aspecto e não será por outro e isso pode passar

despercebido ao leitor caso não esteja devidamente explicitado.

Além disso, a tradução da palavra “multigrade” para a língua portuguesa sugere um

campo de significação ainda mais amplo do que aquele sugerido por Alex e Smiley.A

tradução de “multigrade” para a língua portuguesa, ipsis litteris, deve ser “multi-grau” ou

“muitos graus”. Mas o que podemos entender com a afirmação de que uma relação tem

muitos graus? Via de regra, essa expressão tanto sugere que a relação tem muitas aridades

quanto sugere que ela tem muitos graus de ordens lógicas. Desse modo, além dos significados

referentes à aridade e ao número de lugares e posições, apontados por Alex e Smiley,

devemos acrescentar o significado da variação de ordem lógica à expressão “multigrade”. O

que nos indica que precisamos traduzir quatro significados de “multigrade” para o português e

não três.

Traduzir essa riqueza da palavra “multigrade” para a língua portuguesa, então, não é

uma tarefa simples. Não há uma palavra na língua portuguesa que, sozinha, consiga capturar

169 Friedericke Moltmann também compartilha com essa posição (Cf. MOLTIMANN, 2013, p. 4-5).

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159

toda essa significação. Por isso, nós sugerimos o uso de quatro expressões técnicas que

possam, individualmente, designar cada um desses significados. Assim, quando dissermos

que uma relação é multigrade poderemos especificar com esses termos se é porque ela é uma

relação “multi-aridade”, “multi-lugar”, “multi-posição” e/ou “multi-ordem”.

Para visualizar melhor o significado e a importância de cada uma dessas expressões,

consideremos o seguinte quadro de exemplos:

RELAÇÕES MULTI-

ARIDADE

RELAÇÕES MULTI-LUGAR RELAÇÕES MULTI-

POSIÇÃO

RELAÇÕES MULTI-

ORDEM

(49) Cássio lutou

com Otelo.

(50) Cássio lutou com

Otelo e Glauco.

(51) Cássio e Otelo

lutaram com Glauco,

Romeu e Alexandre.

(52) Cássio observa Desdemona.

(53) Cássio observa Desdemona

posicionando Romeu à esquerda

de Julieta.

(54) Cássio observa Desdemona

posicionando o livro sobre a mesa

ao lado da xícara e da caneta.

(49) Cássio lutou com

Otelo.

(50) Cássio lutou com

Otelo e Glauco.

(51) Cássio e Otelo

lutaram com Glauco,

Romeu e Alexandre.

(55) Desdemona prefere

Otelo.

(56) Desdemona prefere

ser bela.

(57) Desdemona prefere

instanciar beleza em vez

de fidelidade.

Na coluna das relações multi-aridade as frases (49)-(51) expressam instâncias da

relação lutar com que têm, respectivamente, aridade 2, aridade 3 e aridade 5. Sua variação de

aridade, porém, poderia continuar aumentando indefinidamente. É essa propriedade, presente

em várias relações, que designamos como “multi-aridade”.

Na coluna da relações multi-lugar, as frases (52)-(54), expressam instâncias das

relações observar que têm, respectivamente 2 lugares, 6 lugares e 8 lugares: A sentença (55)

afirma a relação observar com dois lugares que apesar de cada um conter apenas um termo,

podem ser considerados lugares multi-aridade, isto é, lugares que podem abrigar vários

termos. A sentença (56) afirma a relação observar ligando seis termos em seis lugares

separados. A sentença (57) afirma a relação observar ligando nove termos em oito lugares

separados, sendo o último lugar ocupado por dois termos, a saber, a xícara e a caneta. É essa

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capacidade de algumas relações terem mais de dois lugares de termos que designamos como

“multi-lugar”.

Na coluna das relações multi-posições, as frases (49)-(51) são retomadas de novo na

coluna das posições mostrando que aquelas instâncias da relação “...luta com...”têm,

respectivamente, um objeto ocupando uma posição em cada lugar em (49).Um objeto

ocupando a primeira posição no primeiro lugar e dois objetos ocupando duas posições no

segundo lugar em (50). E dois objetos ocupando duas posições no primeiro lugar e três

objetos ocupando três posições no segundo lugar em (51). E a variação de posições também

poderia continuar aumentando indefinidamente, ela é a propriedade que designamos como

“multi-posição”.

E, finalmente, na coluna das relações multi-ordem, as frases (55)-(57) expressam

instâncias da relação preferir que mostram essa relação, respectivamente, ocorrendo como

relação de primeira ordem, segunda ordem e terceira ordem. A hierarquia das ordens lógicas,

porém, pode continuar a crescer em ocorrências que envolvam termos de ordem lógica mais

alta. É essa propriedade da relação que designamos como “multi-ordem”.

3.1.2.1.2 A estratégia da mudança de sujeito e a estratégia multigrade

A posição que considera relações como entidades multigrade precisa, então,

enfrentar a questão da variação no número de termos que uma relação pode envolver ao

instanciar-se. Seriam esses “vários termos” um termo complexo ou uma pluralidade de

teremos ligados pela relação? Duas estratégias explicativas tentam responder essas perguntas.

Consideremos, em separado, cada uma delas.

A estratégia da mudança de sujeito, segundo Alex e Smiley, considera uma

sequência de termos como sendo um termo composto. Desse modo, seja na relação, seja no

predicado que representa a relação, a sequência mesmo é o termo ou argumento que ocupa um

lugar relevante na relação.170 Segundo esse ponto de vista, o “e” que ocorre na formação da

sequência é um sinal de função. Ele representa uma função criando uma expressão singular

que designa “um objeto complexo, um conjunto ou grupo ou agregado ou fusão”, podendo ser

170 OLIVER; SMILEY, 2013, p. 165.

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161

tanto sujeito quanto objeto de uma relação.171 Nesse caso, tanto a relação que envolve os

termos, quanto o predicado que a exprime na linguagem têm grau fixo.

Essa estratégia, apesar de ser bastante interessante, insere algumas demandas que

tornam a vida dos seus adeptos mais difícil. Sendo o “e” um sinal funcional, impõe a tarefa de

explicar como ele estrutura os vários termos num conjunto ou agregado. Se o “e” for uma

função binária, então, ele imporá grupos onde nem sempre parece haver grupos.172 Por

exemplo:

(58) Russell, Whitehead e Wittgenstein vão à festa

(58a) F (( _, _ ) e _)

(59) Frege e Russell e Whitehead e Wittgenstein vão à festa.

(59a) F (( _ e _ ) e ( _ e _))

(59b) F ( _ e ( _ e _ e _ ))

(59c) F (( _ e _ e _ ) e _ )

Como podemos ver, se o termo funcional “e” for considerado uma função diádica,

será necessário atribuir agrupamento de termos em seqüências com mais de dois elementos.

Mas, visto nem sempre haver tal agrupamento natural entre eles, essa tarefa termina recaindo

numa arbitrariedade incômoda. Em (59), por exemplo, nada indica que os termos estão

agrupados como qualquer uma das alternativas (59a)-(59c).

Além disso, se uma sequência de termos forma um conjunto e é tratada como tal será

preciso dar um status ontológico a esse conjunto. Ele é uma entidade objetiva ou uma

construção do falante? Se ele for uma construção do falante, a relação não parecerá mais ter

grau fixo e, nesse caso, será preciso considerá-la uma relação multigrade. E se ele for uma

entidade objetiva, então, quando aplicada à relação acreditar, a proposta se tornará uma

reedição da Teoria do Juízo Dual.

A solução dos defensores da estratégia da mudança de sujeito, então, rejeita

considerar o “e” como sendo uma função diádica e passa a considerá-lo como uma função

171 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 610. (Confira ainda: OLIVER; SMILEY, 2013, p. 154). 172 Idem., 2013, p. 156.

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162

multigrade.173 Sendo “e” uma função multigrade, ele pode combinar um número indefinido

de termos, todos no mesmo nível lógico. Mas, com esta manobra, uma decisão radical precisa

ser tomada pelos partidários da estratégia da mudança de sujeito: a relação deve ser

considerada de grau fixo ou variável? Se a sequência de termos contar como um conjunto,

então a relação continua sendo de grau fixo. Mas se ela é de grau fixo, então a sequência deve

ser fixa. Cada vez que ela aumentar ou diminuir terá que ser um objeto diferente. E é

exatamente isso o que acontece, uma vez que a sequência é formada por uma função

multigrade inúmeros conjuntos diferentes serão possíveis e a relação terá que ser diferente

com cada um deles ou ser de aridade variável também.

A segunda posição se impõe. A sequência de termos em (59), por exemplo, pode

continuar a aumentar e a relação será verdadeira se for verdade que cada elemento da lista vai

à festa com os demais. E se essa posição se impõe, então é melhor tratar a sequência como

uma fila de termos e considerar a relação, juntamente com o predicado que a exprime, como

sendo de aridade variável. Mas esta já não é a estratégia da mudança de sujeito e sim a

estratégia multigrade.

Segundo Alex Oliver e Timothy Smiley, a estratégia multigrade considera uma

sequência de termos como sendo uma fila de termos separados.174 A expressão “e” que ocorre

entre os termos da fila é apenas um sinal de pontuação, isto é, um sinal que separa os termos

em posições diferentes. Retomemos o exemplo de (59):

(59) Frege e Russell e Whitehead e Wittgenstein vão à festa.

(59a) G < f, r, w, t>

Neste caso, o predicado “vão à festa” expressa uma ação, realizada conjuntamente,

por Frege, Russell, Whitehead e Wittgenstein. A expressão “e” que separa um termo do outro

é apenas um sinal de pontuação, que a formalização representa com uma vírgula.

O segundo passo da estratégia multigrade consiste em distinguir lugares de posições

dos termos, quando a relação é instanciada por certo número de objetos cumprindo papéis

173 OLIVER; SMILEY, 2013, p. 155. 174 Ibidem., p. 165. (Confira ainda: OLIVER; SMILEY, 2004, p.610).

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163

lógicos diferentes. Esta distinção, como veremos melhor abaixo, permite considerar os vários

termos envolvidos numa relação como termos que estão, ao mesmo tempo, separados e numa

ordem determinada. Além disso, a estratégia também permitirá refinar ainda mais a

consideração das propriedades de simetria e assimetria das relações, considerando-as de modo

global e de modo local, isto é, considerando-a de um lugar para outro ou dentro de um único

lugar.

3.1.2.1.3 Distinguindo lugares e posições

A estratégia multigrade considera sequências de termos como filas, onde os termos

ocorrem, simultaneamente, separados e ordenados na relação. Para justificar essa posição, ela

distingue as posições, em que os termos ocorrem separados, dos lugares, em que eles são

agrupados na relação. No que diz respeito aos lugares dos termos, Alex e Smiley não

oferecem uma definição propriamente dita. Eles apenas assumem o ponto de vista de Adam

Morton, segundo o qual lugares correspondem a “grupos de argumentos”.175

A identificação de lugares com grupos de termos, a nosso ver, porém, não parece

adequada. Ela é pouco específica e implica, pelo menos, em duas dificuldades bastante

desagradáveis. Retomemos o caso de (52) e consideremos as outras seguintes ocorrências:

(49) Cássio lutou com Otelo.

(60) Cássio e Otelo lutaram com Romeu e Alexandre.

(61) Os brasileiros lutaram com os paraguaios.

(62) Os alemães e os italianos lutaram com os ingleses e os americanos.

A primeira dificuldade, ao identificar lugares com grupos de argumentos, como

podemos ver comparando (49) e (60), surge quando apenas um termo singular ocorre num

lugar. Em (60) parece mais aceitável dizer que um grupo (de dois membros) lutou com outro

grupo (de dois membros) e aí parece justificável dizer que um lugar equivale a um grupo de

termos. Mas em (49), de modo algum parece aceitável dizer que um lugar se identifica com

175 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 615. (Confira ainda: MORTON, 1975, p. 309-10).

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164

um grupo (de um elemento apenas). E a segunda dificuldade em indicar lugares com grupos

de termos, como podemos ver comparando (61) e (62), consiste no fato de que vários grupos,

expressos com termos coletivos, podem ocorrer num único lugar da relação. Em (61) é

pertinente dizer que um grupo (os brasileiros) corresponde a um lugar na relação lutar com,

mas em (62) não convém de modo algum dizer que dois grupos, os alemães e os italianos,

ocupam dois lugares na relação, pois eles apenas ocupam posições diferentes no mesmo lugar,

uma vez que a relação lutar é uma relação cujo número de lugares é fixo, como admitem os

autores.

No tocante à classificação de um lugar, então, nos parece que a visão de Russell é

mais adequada que a de Alex e Smiley. Como já indicamos em 1.1.2.2, no capítulo primeiro,

Russell mantinha em sua teoria das relações que os lugares dos termos nas relações

assimétricas estão estreitamente ligados ao papel lógico que os termos desempenham no juízo.

O primeiro lugar é do termo sujeito e o segundo lugar é do termo relatum.176

A opção que Russell fez de considerar o papel lógico dos termos como aquilo que

caracteriza os lugares na relação supera as lacunas deixadas pela qualificação geral dada por

Alex e Smiley. Um lugar não se define por abrigar um grupo de termos, mas por demarcar um

papel lógico que um termo ou uma fila de termos pode desempenhar. Em (49), por exemplo, a

relação lutar com tem dois lugares de termos. No primeiro lugar ocorre um termo que

desempenha o papel de sujeito e no segundo lugar ocorre um termo que desempenha o papel

de relatum. Já em (60) temos outra ocorrência da mesma relação, que tem os lugares fixos

como lembram Alex e Smiley, onde o primeiro lugar abriga dois termos que desempenham o

papel de sujeito e o segundo lugar abriga dois termos que desempenham o papel de relatum.

Em (61) temos outra ocorrência da mesma relação, onde o primeiro lugar abriga um grupo

numericamente indefinido de termos, representado por uma expressão plural, que corresponde

aos sujeitos da relação e no segundo lugar outro grupo numericamente indefinido de termos,

representado por outro termo plural, que corresponde aos relata da relação. E, finalmente, em

(62) o primeiro lugar do predicado abriga dois termos plurais que representam dois grupos de

elementos numericamente indeterminados como sujeitos da relação. Enquanto que o segundo

lugar, igualmente, abriga dois termos plurais que representam dois grupos de elementos

numericamente indeterminados como relata da relação.

176 RUSSELL, 1903, p. 96.

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No tocante às posições dos termos num lugar multigrade, o ponto de vista de Alex e

Smiley é que elas são as colocações dos “termos individuais dentro de um lugar” da

relação.177 Ou seja, elas são individuais, cada uma abriga um termo, singular ou plural178, e

são relativas ao lugar em que ocorrem. Visto que assumimos que o que caracteriza um lugar é

o fato dele demarcar um papel lógico, desempenhado por um ou por vários termos, podemos

assumir esse ponto de vista com relação às posições e ainda enriquecê-lo dizendo que as

diversas posições dentro de um lugar, quando acontecer, separam termos enfileirados que

desempenham o mesmo papel lógico imposto pela relação que os envolve.

3.1.2.1.4 Um novo jeito de pensar a aridade

Tradicionalmente, costuma-se considerar a aridade de uma relação como sendo o

número de termos ligados por ela numa instância. Esse número pode variar de instância para

instância ou não, depende da relação ser multigrade ou ter grau fixo. Alex e Smiley, porém,

afastam-se dessa posição e, uma vez que se pode distinguir lugares e posições numa relação,

assumem que a aridade de uma relação é o número de lugares que ela comporta, mesmo que o

número geral de termos nesses lugares venha a variar de uma ocorrência para outra.

Consideremos as duas ocorrências da relação lutar com descritas em (49) e (60):

(49) Cássio lutou com Otelo.

(60) Cássio e Otelo lutaram com Romeu e Alexandre.

De modo geral, a aridade da relação lutar com é considerada 2 na ocorrência descrita

por (49) e é considerada 4 na ocorrência descrita por (60). Mas, em contrário, para Alex e

Smiley, a relação lutar com “tem dois lugares de argumentos” apenas. Eles são lugares fixos,

o que varia são as posições e o número geral dos termos. Desse modo, sustentam os dois

177 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 615. 178 Já está se consolidando um jeito próprio de representar o termo plural. (Cf. LINNEBO, 2003, p. 75), mas,

tratar disso aqui nos levaria a uma digressão desnecessária.

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autores, a aridade da relação não é o número geral de termos ligados pela relação, mas, sim, o

número de lugares da relação.179

A posição de Alex e Smiley de novo nos faz pensar no significado da palavra

“multigrade”. Autores anteriores, como Susanne Langer, Goodmann e Adam Morton, por

exemplo, consideram “multigrade” como significando aquelas relações que têm a aridade

variável e por “aridade” entendem o número geral dos termos envolvidos pela relação. Mas,

Alex e Smiley sugerem considerar a “aridade” da relação como sendo o seu número de

lugares. Devemos, então, abandonar o significado tradicional de “aridade”? Se a sugestão

desses dois autores fosse pertinente a resposta seria “sim”, mas, ao que parece, ela não é.

A tentativa de inovar o significado de “aridade”, por parte de Alex e Smiley gera

confusão para entender o caráter multigrade de uma relação. Eles mantêm que o número geral

de termos em algumas relações, como lutar com, por exemplo, pode variar e o número de

lugares permanecer fixo. Permanecendo fixo o número de lugares teremos, na concepção

deles, uma aridade fixa. Mas, visto que o número geral de termos pode variar mesmo com o

número de lugares sendo fixo, a relação é dita multigrade. Então, considerando que o que

caracteriza uma relação multigrade é não ter aridade fixa, fica muito confuso dizer que ela é

multigrade porque não tem um número fixo de termos gerais, mas tem aridade fixa porque

seu número de lugares é fixo. Melhor seria dizer as duas coisas separadamente, sem mexer no

significado de “aridade”, isto é, dizer que ela é multigrade multi-aridade, porque não tem o

número de termos fixo, e não é multi-lugar, porque sempre ocorre com dois lugares.

A nossa proposta, então, é manter a concepção tradicional de aridade e alargar a

tentativa de Alex e Smiley a fim de explicitar os aspectos significativos da expressão

multigrade com as expressões que assumimos em 3.1.2.1.1. Desse modo, fica mais simples e

correto manter o significado tradicional de que a aridade de uma relação é o número geral de

termos envolvidos por ela numa ocorrência e torna-se possível acolher a preocupação de Alex

e Smiley com as relações multigrade que têm o número de lugares fixo, apesar de ter o

número geral de termos variável. Contudo, como eles mesmos salientam, outras relações têm

o número de lugar e o número geral de termos variáveis, então será importante alargar essa

179 “No contexto da nossa distinção entre lugares e posições é conveniente reservar as palavras gregas –

monádica, diádica etc – para especificar o número de lugares que o predicado tem, ao que, nós chamamos

aridade (adicity)”. (OLIVER; SMILEY, 2004, p. 615. grifo do autor).

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167

posição e explicitar os vários aspectos que permitem classificar uma relação como multigrade,

como já assumimos acima.

3.1.2.1.5 Simetria global e simetria local

A teoria da predicação multigrade proposta por Alex e Smiley permite tratar com

bases novas a propriedade de simetria daquelas relações expressas por predicados multigrade.

Visto que relações expressas por predicados multigrade podem estruturar seus termos em

lugares e posições diferentes, a propriedade de simetria pode ser vista tanto com relação a

lugares diferentes, quanto com relação a posições diferentes dentro de um mesmo lugar.

Consideremos os seguintes casos:

(63) Tiago e João são irmãos de Pedro e André.180

(64) Tiago observa João, Pedro e André.

Na frase (63) o predicado expressa uma ocorrência da relação ser irmão de que tem

dois lugares multigrade. Neste caso, os termos podem ser intercambiados dentro do lugar em

que se encontram ou de um lugar para outro sem alterar o valor de verdade da frase. Quando o

intercambiamento de um lugar para o outro é possível, sem alterar o valor de verdade da frase

que expressa a relação, pode-se dizer que a relação é globalmente simétrica. E quando o

intercambiamento de termos dentro do mesmo lugar for possível, sem alterar o valor de

verdade da frase que expressa a relação, pode-se dizer que a relação é localmente simétrica.181

Na frase (64), por sua vez, o predicado representa uma ocorrência da relação

observar que também tem dois lugares de argumentos. Mas, diferentemente do que ocorreu

acima, os termos não podem ser intercambiados de um lugar para outro garantindo a

permanência do valor de verdade da frase. Neste caso, a simetria global não é possível.

Contudo, o segundo lugar da relação é um lugar multigrade e os termos que ocorrem dentro

180 Num contexto pragmático em que os quatro têm os mesmos pais. 181 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 618.

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168

dele, em posições diferentes, podem mudar de posição sem alterar o valor de verdade da frase.

Neste caso, a simetria local é perfeitamente possível. Em (64), portanto, a relação observar

não é globalmente simétrica, mas, apenas, localmente simétrica.

Alex e Smiley não tratam de casos assimétricos em seu texto. Uma pena, porque eles

reconhecem a importância e o impacto da assimetria nas relações multigrade. O que

justificaria essa falta, então? No nosso entender, o motivo está no critério adotado por eles

para classificar a simetria. Este critério tem alguns inconvenientes se for usado para classificar

relações com assimetria global ou local. De acordo com eles, uma relação é globalmente

simétrica se os termos puderem mudar de lugar sem alterar o valor de verdade da sentença

que exprime a relação. E, igualmente, ela é localmente simétrica se os termos puderem mudar

de posição dentro de um lugar sem alterar o valor de verdade da sentença.

A questão que se levanta é: se os termos puderem mudar de lugar e isso vier a alterar

o valor de verdade da frase a relação será globalmente assimétrica? Se a resposta for “sim”,

então, em (64), a relação observar será globalmente assimétrica caso nenhum dos três relata

(João, Pedro e André) observe Tiago e venha a mudar de lugar com ele na relação. E será

simétrica se, nos casos em que algum dos três (ou mesmo os três) observe Tiago e os outros

dois e mude de lugar com Tiago na relação. Na primeira situação o valor de verdade da

sentença mudaria e na segunda situação não mudaria. Mas isto é totalmente circunstancial. A

verdade é que se houver qualquer intercâmbio de lugar entre os termos em (64), como

assumiu Russell na terceira versão da teoria RM, o conteúdo lógico da frase será diferente e

poderá manter o mesmo valor de verdade ou não. O que nos faz ver que considerar a

preservação do conteúdo lógico da frase é um critério mais adequado para caracterizar as

relações em simétricas e assimétricas, como assumiu Russell, do que considerar a preservação

do valor de verdade da frase que exprime a relação.

Combinando o critério russelliano para classificar a relação em simétrica ou

assimétrica, como preservação ou não do conteúdo lógico na ocorrência da relação, com a

distinção de lugares e posições sugerida por Alex e Smiley, então, podemos ajustar a

definição de simetria, bem como de assimetria, global e local, envolvidas nas relações

multigrade do seguinte modo:

a) Uma relação é globalmente simétrica se os seus termos podem ser intercambiados de lugar

sem causar alteração no conteúdo lógico da sua ocorrência. E ela é globalmente assimétrica se

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os seus termos podem ser intercambiados de lugar e esse intercambiamento altera o conteúdo

lógico da sua ocorrência.

b) Uma relação é localmente simétrica se os seus termos podem ser intercambiados de

posição dentro de um lugar e isso não altera o conteúdo lógico da ocorrência da relação. E ela

é localmente assimétrica se os termos podem mudar de posição dentro de um lugar, mas isso

altera o seu conteúdo lógico.

Assim definidas, as propriedades de simetria e assimetria podem ser ilustradas do

seguinte modo:

(63) Tiago e João são irmãos de Pedro e André.

A relação ser irmão de, expressa em (63) é:

- Globalmente simétrica: os termos podem mudar de lugar sem alteração lógica no conteúdo

da ocorrência.

- Localmente simétrica: os termos podem mudar de posição sem alteração lógica no conteúdo

da ocorrência.

(64) Tiago observa João, Pedro e André.

A relação observar, expressa em (64) é:

- Globalmente assimétrica: os termos não podem mudar de lugar sem alteração lógica no

conteúdo da ocorrência.

- Localmente simétrica: os termos podem mudar de posição no 2º lugar sem alteração lógica

no conteúdo da ocorrência.

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170

(65) A bola tocou o braço do jogador e o solo.

A relação tocar em, expressa em (65), é:

- Globalmente assimétrica: os termos não podem mudar de lugar sem alteração lógica no

conteúdo da ocorrência.

- Localmente assimétrica: os termos não podem mudar de posição no 2º lugar sem alteração

lógica no conteúdo da ocorrência.

Essas situações, porém, não esgotam as possibilidades de simetria e assimetria nas

ocorrências atômicas, porque ainda pode haver situações em que nem a simetria nem a

assimetria global são possíveis, mas a simetria e a assimetria local são possíveis. Por

exemplo:

(66) Tiago gosta de laranja, maçã e pêra.

Na relação gostar de, expressa em (66), a simetria e a assimetria globais são impossíveis.

Contudo, a simetria local é possível: os termos podem mudar de posição no 2º lugar sem

alteração lógica no conteúdo da ocorrência.

(67) Tiago diz que percebe o gato.

Na relação dizer que, expressa em (67), tanto a simetria quanto a assimetria globais são

impossíveis. Mas, a assimetria local é possível:os termos podem mudar de posição no 2º lugar e se

isso acontecer ocorrerá uma alteração lógica no conteúdo da ocorrência.

Com isso, podemos perceber que a classificação de simetria e assimetria dada por

Russell na terceira versão da teoria RM harmoniza-se bem com a distinção entre lugares e

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171

posições proposta pela teoria multigrade de Alex e Smiley. E isso permitirá construir um

considerável argumento contra o problema do sentido largo, como veremos, na última seção

deste Capítulo.

3.1.2.2 A indicação da relevância na ordem dos termos

Nós assumimos a estratégia multigrade como caminho de explicação para o

funcionamento das relações que não têm aridade fixa. Assumimos também que a sequência de

termos formada por uma relação multigrade não é um termo complexo pré-definido, pois, a

relação é que os envolve e liga numa unidade, dando-lhes uma ordem lógica. Por conseguinte,

somos levados a considerar com atenção ainda qual deve ser a melhor maneira de

compreender e indicar formalmente a ordem dos termos dada por uma relação assimétrica.

Relações assimétricas, como se sabe, são relações ordenadas, isto é, relações onde a

ordem dos termos é relevante. Elas impõem uma determinada ordem aos termos, de modo que

o intercambiamento deles altera o conteúdo instanciado. As relações que as frases (68)-(70)

expressam ilustram bem esta propriedade:

(68) Romeu ama Julieta.

(69) Palmares fica entre Recife e Maceió.

(70) Otelo tem ciúmes de Desdemona com Cássio mais do que com Romeu.

A frase (68) expressa a relação amar envolvendo dois termos ordenados. A frase (69)

expressa a relação ficar entre ...e ...envolvendo três termos ordenados. E a frase (70) expressa

a relação ter ciúmes de ...com ... mais do que com ...envolvendo quatro termos. Em todas elas

a ordem dos termos tem que ser respeitada, se os termos forem intercambiados o conteúdo

instanciado será profundamente alterado.

Uma maneira clássica de formalizar a ordem lógica dos termos, em relações como

essas, consistiu em tratar relações sendo como pares ordenados, triplas e quádruplas

ordenadas, e assim por diante. Mas, se confrontada com a teoria multigrade, essa estratégia se

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revela problemática em, pelo menos, dois pontos, pois, nem toda relação em que a ordem dos

termos é relevante pode ser tratada como um conjunto de n-uplas ordenadas e, muitas vezes,

tentar formalizar uma relação como sendo um conjunto de n-uplas ordenadas força uma

estruturação lógica dos termos que conflita com a estruturação deles na ocorrência efetiva da

relação.

Neste modelo de formalização que trata as relações como conjuntos de n-uplas

ordenadas, uma relação dual assimétrica é o conjunto de dois pares ordenados, que pode ser

formalizado do seguinte modo:

(ix) R ˂ x, y ˃

No tocante à expressão da ordem dos termos, dois recursos formais são de suma

importância para este modelo de formalização. O uso dos parênteses de ângulos externos182e o

uso de vírgulas. O par de parênteses de ângulos externos indica que a ordem dos termos é

relevante e a vírgula separa um termo do outro dentro da ordem estabelecida pela relação.

Mas, como veremos agora, o uso desses sinais para expressar a ordem dos termos nas relações

ordenadas fica mais complexo a partir das relações que são triplas e quádruplas ordenadas,

resultando em sérias dificuldades para os defensores deste modelo de formalização.

Visto que nessa estratégia de formalização a noção de par ordenado é estendida para

explicar as relações ternárias e quaternárias onde a ordem dos termos for relevante, a relação

considerada uma tripla ordenada, por exemplo, passa a ser vista como o conjunto dos pares

ordenados que contém outro par ordenado como elemento.183 Mas, convém notar, as relações

que são triplas ordenadas não seguem um padrão único para agrupar os termos, como faziam

as relações que são pares ordenados. Uma tripla ordenada pode agrupar os termos de três

maneiras diferentes, como mostram as suas possíveis formulações em (x)-(xi):

182 Alguns autores trabalham com suportes de ângulos e outros trabalham com parênteses. As funções atribuídas

a eles, porém, são as mesmas. 183 IMAGUIRE; BARROSO, 2006, p. 45.

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(x) R ˂ x, y, z ˃

(xi) R ˂ x, ˂ y, z ˃ ˃

(xii) R ˂ ˂ x, y ˃, z ˃

Na formalização apresentada em (x), para indicar o modo como a relação agrupa os

termos numa ordem geral, essa teoria usa apenas um par de parênteses de ângulos e para

indicar que esses termos estão separados usa apenas vírgulas. Estes foram os mesmos recursos

de formalização usados com os pares ordenados. Mas as formalizações das triplas ordenadas

em (xi) e (xii) indicam um modo de agrupar os termos numa ordem geral que contém também

uma sub-ordem interna. A ordem geral é a mesma nas duas situações, mas a sub-ordem

interna é diferente. Em (xi) os dois últimos elementos estão sub-agrupados num par ordenado

e contam como um elemento. Já em (xii) são os dois primeiros elementos que estão sub-

agrupados num par ordenado e também contam como um elemento na formalização da

relação R. Portanto, em (xi) e em (xii) a relação é formalizada como um par ordenado que tem

um argumento que é outro par ordenado e este conta somente como um elemento na relação.

Desse modo, percebe-se que essa estratégia de formalização das relações ordenadas segue

uma tática similar à da estratégia da mudança de sujeito, vista acima. Ela força uma

estruturação dos termos, ao invés de tentar capturar sua verdadeira estruturação.

Uma questão muito importante deve ser levantada aqui: o par ordenado demarcado

com os parênteses de ângulos internos deve ser considerado como um elemento mesmo ou

como dois elementos no cômputo da aridade da relação? A resposta dessa estratégia é que em

tais situações os parênteses de ângulos internos indicam um elemento. O que faz com que a

relação R, naquelas circunstâncias apresentadas em (xi) e (xii), seja entendida como uma

relação de dois pares ordenados, onde um dos elementos é outro par ordenado.

Mas, e aqui está o problema, se os termos demarcados com os parênteses de ângulos

internos, em (xi) e (xii), devem contar como um único elemento, então, eles representam algo

objetivamente existente, a saber, um objeto com o qual o sujeito de um juízo envolvendo

aquela relação teria que estar relacionado. Nesse caso, a relação que inicialmente

consideramos uma tripla ordenada, passa a ser vista como um par ordenado, isto é, uma

relação de dois termos.

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Essa mesma dificuldade se repete, e fica mais acentuada ainda, nas relações que são

quádruplas ordenadas como mostram, por exemplo, (xiii)-(xvi):

(xiii) R ˂ x, y, z, w ˃

(xiv) R ˂ ˂ x, y ˃, ˂ z, w ˃ ˃

(xv) R ˂ x, ˂ y, z, w ˃ ˃

(xvi) R ˂ ˂ x, y, z ˃, w ˃

No caso da formalização expressa por (xiii), o uso dos parênteses de ângulos na

formalização é bastante claro e não sugere nenhuma duplicidade de função. Ali, a relação R é

representada ligando quatro termos, numa ordem geral indicada pelos parênteses de ângulos,

com os termos devidamente separados por vírgulas. Já nas formalizações expressas em (xiv)-

(xvi), temos o mesmo problema constado nas triplas ordenadas. Cada ocorrência tem uma

sub-ordem que precisa ser indicada na formalização e essa estratégia procura responder a isso

fazendo um uso novo dos parênteses de ângulos.

Em (xiv) a formalização indica que a relação R estrutura os termos em dois pares

ordenados e cada um desses pares deve ser considerado como um elemento apenas. E a

mesma questão se repete em (xv)-(xvi), com a diferença de que os suportes de ângulos

internos agora ligam três termos. Por conseguinte, o problema se torna ainda mais acentuado

se as ocorrências dos parênteses de ângulos internos forem lidas como representação de um

elemento numa relação quaternária, pois, no fundo, tal relação ficará reduzida a uma relação

dual.

A nosso ver, portanto, o problema dessa estratégia de formalização reside na

duplicidade de papéis dados aos parênteses de ângulos ao formalizar relações que contém uma

sub-ordem interna. Para notar isso, lembremos que no caso dos pares ordenados, no caso da

relação tripla formalizada em (x) e no caso da relação quádrupla formalizada em (xiii) os

parênteses de ângulos são usados apenas para representar a ordem dos termos na relação.

Nesses casos, eles não têm nada a ver com o número de elementos. Mas, com o surgimento da

necessidade de expressar uma sub-ordem, em (xi)-(xii) e (xiv)-(xvi), eles foram usados

também para ligar os termos, que com isso passaram a ser vistos como um termo composto

que, como tal, encontra-se separado do outros formando uma sub-ordem. Mas, com isso, os

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parênteses de ângulos passam a ser usados com um papel novo, a saber, o papel de reduzir a

um os termos da relação ligados por eles. Isso é problemático para a Teoria RM. Seria melhor

conservar os parênteses de ângulos com o papel constante de indicar a ordem geral dos termos

apenas, deixar o número de elementos ser indicado pelos próprios elementos e pensar noutra

estratégia para representar a ordem interna dos termos.

3.1.2.3 Evitando sinais com duas funções numa mesma ocorrência

A consideração atenta dos papéis dados aos parênteses de ângulos neste modelo de

formalização lógica nos permite perceber a importância e a pertinência do primeiro papel que

é atribuído a eles, o de indicar a relevância na ordem dos termos. Usados assim, eles indicam

a ordem geral dada aos termos pela relação. Mas, o segundo uso atribuído a eles, o de

demarcar uma sub-ordem no interior de uma relação, revela-se bastante problemático, porque

compromete a compreensão do número de termos da relação e sugere compromisso com

termos complexos objetivos.

Diante disso, desejamos assumir o uso dos parênteses de ângulos com aquele

primeiro papel, mas não com o segundo. Agora, ao rejeitarmos o segundo uso dos parênteses

de ângulos para expressar uma sub-ordem no interior da relação, não queremos nos furtar à

tarefa de pensar um modo mais adequado para fazer isso. De modo que, vamos usar os

parênteses de ângulos para indicar a ordem geral dos ternos na relação ordenada e para

expressar os detalhes da ordem dos termos dentro dos parênteses de ângulos vamos usar os

recursos da estratégia multigrade e uma sintaxe de inspiração russelliana que, juntas,

permitem cumprir de modo adequado essa tarefa.

3.2 VOLTANDO DO EXCURSO

Depois do longo excurso feito na seção anterior, retornemos agora ao assunto da

relação acreditar e dos seus termos e apliquemos a ele os ganhos adquiridos. Com tais

ganhos, como veremos melhor a seguir, chegaremos a um jeito novo de ver a natureza e a

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operação da relação acreditar e da relação subordinada que, como agente movente e agente

movido,operam de modo integrado. Para isso, dividiremos esta seção em duas subseções. A

primeira delas faz uma releitura da natureza e da estrutura lógicas da relação acreditar à luz

das teorias trabalhadas na primeira seção deste capítulo. E a segunda subseção, de modo

bastante análogo, procura fazer o mesmo com a relação subordinada.

3.2.1 Relendo a natureza e a operação da relação acreditar na Teoria RM

Nesta subseção, a relação acreditar será vista como um agente movente e também

como uma relação multigrade. Como agente movente, ela identifica-se plenamente com a

posição tomista, apreciada na seção anterior, e revela poderes e limites bastante interessantes

em sua operação que devemos levar em conta a partir de agora. E, como relação multigrade,

ela demonstra todos os significados dessa categoria, a saber, ela é uma relação multi-aridade,

multi-ordem, multi-posição e multi-lugar. Além disso, ao exercer toda essa riqueza de

operação numa ocorrência concreta, acreditar será vista também como uma relação criadora

de fatos especiais.

Cada um desses três pontos, porém, precisa ser tratado separadamente. De modo que,

para examiná-los bem, vamos dividir a subseção em três partes. A primeira delas vai

considerar acreditar como um agente movente, a segunda delas vai considerar acreditar como

uma relação multigrade e a terceira delas vai tratar acreditar como criadora de fatos especiais.

3.2.1.1 A relação acreditar é um agente movente

A relação acreditar proposta por Russell na primeira versão da Teoria RM pode ser

vista à luz da noção tomista de agente movente. A aproximação das duas noções indica que a

relação acreditar pode ser entendida como sendo o agente movente nas instâncias em que ela

ocorre como relação principal. Assim, tal qual um agente movente que se serve de um agente

instrumental para realizar sua operação, a relação acreditar se serve de uma relação

subordinada para formar uma crença.

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Enquanto agente movente, que toma uma relação subordinada como instrumento, a

relação acreditar também estabelece uma relação hierárquica e uma relação de interação com

a relação subordinada que não podem passar despercebidas pela análise. Primeiro, ela mantém

uma relação hierárquica com a relação subordinada porque ela age sobre a subordinada, ela

serve-se da subordinada para seus próprios fins. Ela faz sua efetivamente a operação lógica da

relação subordinada e aplica a subordinada sobre outros termos logicamente compatíveis.

Consequentemente, ela poderá formar hierarquias de termos com diversas ordens lógicas,

dependendo dos termos sobre os quais ela aplica a subordinada. Segundo, ao exercer seu

governo sobre a relação subordinada, a relação acreditar mantém uma relação de interação

com a subordinada que resulta numa série de influências recíprocas. Ao servir-se da relação

subordinada, como ainda veremos melhor na próxima subseção, a relação acreditar é

influenciada por ela e a influência de vários modos.

A capacidade da relação acreditar envolver relações instrumentalmente também se

assemelha à capacidade do agente movente sugerido por Tomás no tocante ao número de

agentes movidos. Assim como um agente movente pode servir-se de um ou mais de um

agente instrumental, a relação acreditar pode servir-se de uma ou mais de uma relação

subordinada. Por exemplo:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

(71) Otelo acredita que Desdemona pensa sobre Romeu amar Julieta.

A frase (3) expressa uma ocorrência da relação acreditar, servindo-se

instrumentalmente de uma relação subordinada amar, formando o juízo de Otelo “Desdemona

ama Cássio”. Já a frase (71) mostra a relação acreditar, servindo-se de duas relações

subordinadas, a relação pensar sobre e a relação amar, para formar o juízo de Otelo

“Desdemona pensa sobre Romeu amar Julieta”.

Ao servir-se instrumentalmente de uma relação subordinada, acreditar faz uso da

capacidade lógica dessa relação ser aplicada a objetos e constitui uma unidade

hierarquicamente estruturada. E ao servir-se de mais de uma relação subordinada, a relação

acreditar faz uso efetivo da capacidade lógica de uma relação poder ser aplicada sobre uma

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propriedade ou sobre outra relação e estabelece uma hierarquia lógica ainda mais alta. Cada

relação tomada como instrumento tem sua respectiva capacidade de ocorrer em primeira

ordem ou em ordem superior, dependendo dos termos que as instanciem. Mas, ao aplicar uma

sobre outra, impondo-lhes termos, a relação acreditar cria uma hierarquia lógica precisa, em

meio às possibilidades lógicas de ocorrências que elas oferecem.

As ocorrências da relação acreditar expressas em (3) e (71) ilustram perfeitamente o

que acabamos de afirmar. A relação amar pode ocorrer como relação de primeira ordem ou de

ordem superior. E a relação pensar sobre pode ocorrer como relação de primeira ordem ou de

ordem superior. Assim, em (3) a relação acreditar serve-se da relação amar para criar uma

hierarquia de dois níveis lógicos, ficando ela mesma no terceiro nível. Os objetos do primeiro

nível, Otelo, Desdemona e Cássio, são de ordem lógica zero. A relação amar é aplicada sobre

eles e ocupa o segundo nível, como relação de primeira ordem. E a relação acreditar, que fica

no terceiro nível, acima da relação tomada como seu instrumento, acaba ocorrendo como

relação de segunda ordem lógica. Ao determinar a ordem lógica da relação subordinada,

dando a ela termos precisos, dentre suas inúmeras possibilidades, acreditar termina por ter

sua própria ordem lógica determinada pela ordem lógica da relação subordinada.

Em (71), por sua vez, acreditar aplica a operação de uma relação subordinada para

ligar um objeto a uma operação de outra relação subordinada, esta última ligando dois

objetos, formando assim uma hierarquia lógica de quatro níveis e três ordens lógicas. No

primeiro nível estão os objetos Otelo, Desdemona, Romeu e Julieta, que têm ordem lógica

zero. No segundo nível está a relação amar, que ocorre como relação de primeira ordem

aplicada sobre os objetos Romeu e Julieta. No terceiro nível está a relação pensar sobre, que

ocorre como relação de segunda ordem, ligando um objeto a uma relação de primeira ordem.

E no quarto nível está a própria relação acreditar, que ocorre como relação de terceira ordem,

ligando o objeto Otelo a uma relação de segunda ordem.

A capacidade da relação acreditar, enquanto agente movente, formar hierarquias

lógicas cada vez mais altas, põe em relevo sua extraordinária capacidade de variar de ordem

lógica e de aridade, bem como de variar também no número de lugares e de posições dos seus

termos. Capacidades tais que, como vimos, caracterizam as relações multigrade. Desse modo,

acreditar não é apenas um agente movente como tantos, ela é um agente movente multigrade.

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3.2.1.2 A relação acreditar é um agente movente multigrade

A relação acreditar proposta por Russell na primeira versão da Teoria RM também

pode ser considerada uma relação multigrade. Alex e Smiley, por exemplo, reconhecem que é

legítimo identificar a relação múltipla sugerida por Russell em 1911 com uma relação

multigrade.184 Segundo eles, apesar de alguns autores insistirem que a Teoria RM mantém ou

implica numa concepção de acreditar como sendo uma relação de grau fixo, o certo é que a

Teoria RM toma a relação acreditar e o predicado que a representa com sendo ambos de

aridade variável. O que é próprio das relações multigrade.185

Desse modo, podemos considerar a relação acreditar não somente como agente

movente, nos moldes propostos por são Tomás, mas, também, como um agente movente

multigrade, nos moldes propostos por Alex e Smiley. De fato, a relação acreditar faz sua a

operação lógica da relação subordinada e, assimilando suas possibilidades operacionais

lógicas, assimila também a ordem lógica, a aridade e o número de lugares e de posições dos

termos que utiliza por meio da relação subordinada.

Aliás, podemos até mesmo dizer que a relação acreditar é um agente movente

multigrade em todos os campos de significação da expressão “multigrade” que explicitamos

em 3.1.2.1.1. De fato, mesmo nas expressões mais simples, a relação acreditar sempre ocorre

como uma relação multi-aridade, multi-ordem, multi-posição e multi-lugar. Ela sempre

ocorre em segunda ordem ou noutra ordem superior, sempre ocorre com mais de dois lugares,

com aridade acima de dois e com mais de duas posições de termos.Consideremos essas

características separadamente.

3.2.1.2.1 Acreditar é uma relação multi-aridade

Entendendo a aridade de uma relação como o número de termos que ela envolve

numa ocorrência, como assumimos acima, podemos dizer que a relação acreditar é uma

relação multi-aridade porque ela não tem um número geral fixo de termos. Ela pode ocorrer

com qualquer número de termos acima de 2. Nas frases (72)-(74), por exemplo, ela é descrita

ocorrendo, respectivamente, com aridade 4, 5 e 7:

184 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 627. 185Ibidem., p. 628.

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(72) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia.

(aridade4)

(73) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia e Julieta.

(aridade5)

(74) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Hypatia, Julieta e

Cleópatra.

(aridade 7)

3.2.1.2.2 Acreditar é uma relação multi-ordem

Considerando a ordem lógica de uma relação a partir dos níveis lógicos em que ela

posiciona seus termos dentro do escopo de sua operação, podemos dizer que a relação

acreditar também é uma relação multi-ordem porque ela pode ocorrer em várias ordens

lógicas diferentes, a partir da segunda ordem, conforme seja a ordem lógica em que ela aplica

a relação subordinada. Nas frases (75)-(77), por exemplo, ela é descrita ocorrendo,

respectivamente, como relação de 2ª, 3ª e4ª ordem lógica:

(75) Otelo acredita que Desdemona admira Cássio.

(2ª. Ordem) (1ª. Ordem)

(76) Otelo acredita que ser belo é uma qualidade.

(3ª. Ordem) (1ª. Ordem) (2ª. Ordem)

(77) Otelo acredita que ser qualidade é uma propriedade de 2ª ordem.

(4ª. Ordem) (2ª. Ordem) (3ª. Ordem)

3.2.1.2.3 Acreditar é uma relação multi-posição

Considerando que a posição de um termo é sua colocação dentro de um lugar na

relação, podemos dizer que a relação acreditar é uma relação multi-posições também porque

ela não tem um número fixo de posições para seus termos. Ela demanda sempre mais de três

posições de termos nas crenças relacionais e, tanto pode posicionar um termo em cada lugar,

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como pode posicionar vários termos num lugar, conforme sejam a sua intenção e as

possibilidades lógicas da relação subordinada. Haja vista que ela assimila os lugares e as

posições que faz uso por meio da relação subordinada. Como podemos ver abaixo, retomando

as frases (72)-(74), ela é descrita posicionando seus termos, respectivamente, em 4, 5 e 7

posições. Em (72) cada posição coincide com um lugar, em (73) o quarto lugar abriga duas

posições e em (74) o terceiro lugar abriga duas posições, enquanto o quarto lugar abriga três

posições.

(72) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia.

B < o; F; d; h>

(73) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia e Julieta.

B < o; F; d; h, j>

(74) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Hypatia, Julieta e

Cleópatra.

B < o; F; d, c; h, j, k>

3.2.1.2.4 Acreditar é uma relação multi-lugar

Considerando que um lugar de termo ou de termos numa relação se identifica com o

papel lógico que aquele termo ou aqueles termos desempenha(m) na relação, podemos dizer

que a relação acreditar é, finalmente, uma relação multi-lugar. Ela não tem um número fixo

de lugares de termos. Ela sempre pode ocorrer com mais de dois lugares, podendo abrigar um

termo ou vários num mesmo lugar, dependendo da relação subordinada que usar. Haja vista

que ela assimila os lugares que faz uso por meio da relação subordinada. Podemos ver isso

nos exemplos abaixo: na frase (78) ela é descrita ocorrendo com 4 lugares, e nas frases (79)-

(80), ela é descrita ocorrendo com cinco lugares. Em (78)-(79) cada lugar abriga um termo, já

em (80) o quarto e o quinto lugares, respectivamente, abrigam dois termos.

(78) Otelo acredita que Desdemona admira a virtude.

B ˂ o; A; d; v ˃

(79) Otelo acredita que Desdemona entrega uma carta a Romeu.

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B ˂ o; E; d; c; r ˃

(80) Otelo acredita que Desdemona gosta mais de Cássio e Romeu do que de Julieta

e Hypatia.

B ˂ o; L; d; c, r; j, h ˃

Assim, além de não ser uma relação com número fixo de lugares, devemos

acrescentar, a relação acreditar pode ocorrer contendo lugares que são multi-posições, isto é,

que podem ocorrer com vários termos.

3.2.1.3 A relação acreditar é um agente movente multigrade criador

A relação acreditar é uma relação criadora. Ela cria um fato novo cada vez que

ocorre efetivamente, cada vez que se serve de uma relação subordinada para ligar certo

número de termos, mesmo que esses termos se encontrem ligados no mundo. Ela cria um fato

novo, porque ela forma um complexo representativo daquele fato existente no mundo e o

complexo que ela forma, até então, não existia. Antes de sua ocorrência, os elementos do fato

estavam ligados efetivamente no mundo, mas agora eles também estão ligados efetivamente

na relação acreditar.

Além disso, ela também cria um fato novo quando liga termos que não estão ligados

no mundo. Quando o ciumento Otelo, por exemplo, julga que Desdemona ama Cássio, ele

está ligando, no juízo, duas coisas que não se encontram ligadas desse modo no mundo. E esta

crença de Otelo é um fato. O seu ato de juízo tem um caráter ontológico, isto é, a sua crença

existe ontologicamente. Ela é um modo de ser de coisas que não se encontram assim no

mundo naquele momento.

A crença de Otelo, bem como toda crença falsa, não representa algo existente no

mundo, mas ela é um ente mental. Ela reuniu os elementos, mesmo sem eles se encontrarem

reunidos assim no mundo, e fez dessa reunião um fato especial, existente na crença de Otelo

apenas. Salienta-se assim que acreditar é uma relação que tem o poder de ligar os elementos

no juízo e criar fatos mentais que representam ou não fatos do mundo. Tais fatos mentais, são

diferentes dos fatos extra-mentais em muitos aspectos, mas, sobretudo, no tocante a possuir

um valor de verdade. Pois, justamente porque pode criar esses fatos especiais, que

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representam o mundo existente ou outro mundo possível, que é que acreditar temum valor de

verdade, que ela pode ser verdadeira ou falsa.

Isso nos adverte que é preciso distinguir bem o campo de operação da relação

acreditar e o campo de operação da relação subordinada. A relação acreditar é quem cria o

fato novo, ligando mentalmente os termos da crença, operando efetivamente com eles por

meio da operação lógica da relação subordinada. Como Russell afirmou, na versão da Teoria

RM de 1912, a relação acreditar une todos os termos, os objetos e a relação subordinada, num

único juízo. Ela é a cola que, juntando os termos por meio da relação subordinada, forma uma

unidade diferente de qualquer outro fato extra mental. E a relação subordinada age no campo

lógico, ela é tomada logicamente, pela relação acreditar, para agir logicamente também.

Encontrá-la operando de forma correspondente ao uso que acreditar faz dela, isto é, operando

efetivamente também é totalmente circunstancial. Certo é que, enquanto termo da relação

acreditar, a relação subordinada só opera no campo lógico. Correta ou incorretamente,

verdadeira ou falsamente, enquanto termo da relação acreditar, ela só opera no campo lógico.

Agora, tendo bem clara a distinção dos campos em que operam as duas relações nas

instâncias da relação acreditar, vamos reler com mais cuidado a natureza e a operação da

relação subordinada.

3.2.2 Relendo a natureza e a operação da relação subordinada na Teoria RM

A exemplo do que fizemos acima com a relação acreditar, vamos agora dirigir a

atenção para a relação subordinada, à luz dos ganhos adquiridos ao longo da primeira seção

deste capítulo. Com isso, queremos notar que a relação subordinada se identifica com o

agente movido proposto na teoria de são Tomás de Aquino, mas, que também não deixa de ter

sua natureza própria. Por conseguinte, ela tanto ocorre na crença como um termo subordinado

e operante, ao mesmo tempo, determinando e sofrendo influência na relação acreditar.

Dada a importância desses três aspectos, vamos, mais uma vez, dividir a subseção

em três partes. A primeira, para considerar a relação subordinada em sua operação própria. A

segunda, para considerar a relação subordinada como agente movido. E a terceira, para

considerar a relação subordinada em seu aspecto dialético de determinar e sofrer certa

determinação dentro do escopo da relação acreditar.

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184

3.2.2.1 A relação subordinada em sua operação própria

A relação que ocorre dentro do escopo da relação acreditar é uma relação

subordinada, contudo, isso não deve ocultar o fato de que ela também é um agente próprio

quando age por si mesma. E, por isso mesmo, ela deve ser vista como uma coisa e outra.

Assim, antes de pensar a relação subordinada como agente movido, convém primeiro

entendê-la em sua operação própria, pois, ela tem uma natureza com possibilidades e

exigências próprias que a relação acreditar toma como instrumento lógico no seu agir efetivo.

Tendo uma natureza própria, a relação subordinada entra numa relação dinâmica

com a relação movente quando é tomada como instrumento desta última. A natureza própria

da subordinada obriga a relação movente a respeitar suas exigências operacionais, enquanto

dispõe para ela suas possibilidades lógicas. Ela pode ser, por exemplo, de natureza simétrica

ou assimétrica e de aridade fixa ou variável e a relação movente terá de respeitar isso e operar

com isso. Sendo de natureza assimétrica, para ilustrar mais concretamente, ela determina

lugares e posições diferentes para seus termos e impõe a eles papéis lógicos diferentes. E ao

fazer isso, estabelece entre eles um sentido que vai de um ou mais de um termo para algum

outro, ou alguns outros termos, e isso deve ser levado em conta pela relação movente, a

relação acreditar.

Além disso, a relação subordinada tem possibilidades próprias de ocorrer em ordens

lógicas diferentes. Ela envolve termos de tipo lógico diferente dela ou de ordem lógica

diferente da ordem lógica dela e constitui com eles uma hierarquia contituída de várias ordens

lógicas. Por conseguinte, se ela envolver termos objetos, então, ela será uma relação de

primeira ordem. Se ela for aplicada a termos de primeira ordem, então ela será uma relação de

segunda ordem. E assim por diante, dependendo das possibilidades de sua natureza. E a

ordem lógica que ela assume, por sua vez, determina a ordem lógica da relação movente, que

se coloca uma ordem lógica acima dela e coloca os termos objetos numa ordem lógica abaixo

dela quando a envolve instrumentalmente. Assim, a natureza lógica própria da relação

subordinada determina relação movente na formação de um sentido vertical hierárquico.

3.2.2.2 A relação subordinada é um agente movido

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185

Os críticos da Teoria RM criaram um falso dilema sobre a relação subordinada

dentro do contexto da relação acreditar. Para eles, a relação subordinada que o sujeito da

crença tem diante da mente quando julga deve ser uma relação universal sem vínculo nenhum

com termos ou uma relação instanciada. Se for uma relação universal, ela não terá nenhum

sentido, porque uma relação universal não demanda termos e se for uma relação instanciada a

Teoria RM fica desnecessária, porque já haverá um complexo pré-definido. Tal questão,

contudo, está apoiada numa confusão entre os níveis ontológicos e lógicos da relação

subordinada. Quando um sujeito forma uma crença, ele está em relação com a relação

subordinada, enquanto relação universal, isto é, como entidade objetiva. Mas, ao operar

mentalmente com aquela relação, ele realiza um trabalho lógico. Ele não manipula

ontologicamente a relação subordinada, ele opera com ela logicamente. Procedimento natural

comum aos seres humanos que, freqüentemente, se relacionam efetivamente com objetos,

relações e propriedades, depois pensam sobre tais coisas, logicamente, tanto como são como

quanto acreditam que poderiam ser.

A relação subordinada enquanto entidade objetiva, então, é tomada como relação e é

posta para funcionar logicamente como agente movido. Ela é tomada como agente lógico na

operação efetiva da relação acreditar, que é o agente principal ou movente. E assim, quando

usada logicamente como instrumento, a relação subordinada sofre o governo da relação

movente e “cede” a ela sua operação. Ela se torna um meio lógico para a relação acreditar

ligar os demais termos e coloca à disposição da relação acreditar as suas possibilidades

operacionais lógicas.

Assim, enquanto agente movido pela relação principal, a relação subordinada é usada

para fixar um fim pretendido pela relação principal. Ela participa ativamente da operação da

relação principal. É movida logicamente, mas é agente. Sua contribuição para a realização da

operação da relação acreditar é única e insubstituível frente aos demais termos da relação

movente. Primeiro, sem a sua atuação instrumental a relação acreditar não alcança uma

instanciação devida. De fato, sem o uso lógico instrumental da relação subordinada a relação

acreditar só poderá formar uma justaposição de termos, mas nunca conseguirá um juízo

relacional completo. Segundo, a relação instrumental subordinada é que permite à relação

acreditar formar logicamente uma unidade com os termos julgados, pois é por meio da

relação subordinada que a relação acreditar estabelece uma ligação lógica entre um termo e

outro. De modo que, caso a relação acreditar não disponha de uma relação instrumental, isto

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186

é, caso o sujeito da crença não tenha acquaintance com uma relação que lhe possa servir de

instrumento, não conseguirá formar um juízo com ela, não conseguirá aplicá-la a outros

termos.

3.2.2.3 A relação subordinada é um agente movido determinante e determinado

A relação subordinada, tomada como agente movido, então, pode ser vista como um

termo determinante e determinado em sua interação com a relação acreditar. Por conseguinte,

é importante ter um olhar dialético para perceber corretamente em que consistem estes dois

aspectos. Por um lado, a relação subordinada determina a relação acreditar, porque ela

determina todas as suas possibilidades de aplicação e a relação acreditar tem que operar

dentro dessas possibilidades. Ela tem sua natureza própria e impõe todas as suas exigências e

possibilidades de operação para que a relação acreditar possa tomá-la como instrumento.

Por outro lado, a relação acreditar escolhe uma possibilidade de ocorrência

específica da relação subordinada cada vez que opera com ela. E, ao fazer isso, a relação

acreditar determina a relação subordinada, participa ativamente da determinação lógica da

aridade e da ordem lógica da subordinada, bem como da determinação do sentido dos termos

envolvidos logicamente por meio da relação subordinada. Ou seja, ela determina a relação

subordinada numa ocorrência lógica específica, pois, a aplica a termos determinados

escolhidos intencionalmente por ela.

Essa influência recíproca das duas relações é tão importante para entender a

interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada que vale a pena ilustrá-la

com uma metáfora também. Trata-se da metáfora do atualizador de pressão e do posicionador

inteligente da válvula de passagem.

O posicionador inteligente da válvula de pressão é um dispositivo acoplado a uma

haste da válvula de controle de passagem de líquido para otimizar o seu funcionamento. O seu

objetivo é operar com o sinal que indica a pressão na saída de líquido. Se a saída de líquido

está fluindo bem a pressão na válvula de passagem diminui e ele emite uma ordem para que o

posicionador inteligente adote uma posição que faça a valvular abrir ainda mais a passagem.

Se o volume de saída aumenta, aumenta também a pressão sobre o atualizador e ele emite

outra ordem para que o posicionador inteligente adote uma nova posição e faça a válvula

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187

começar a fechar. Há, portanto, uma interação dinâmica entre o atualizador de pressão e o

posicionador inteligente da haste da válvula de passagem, conforme a pressão da passagem de

líquido no momento seja aceitável ou não. O posicionador inteligente determina todas as

possibilidades de ocorrência, isto é, todas as possibilidades de ser posto na posição x1, x2, x3,

..., xn, a fim de permitir a passagem de líquido adequada. E o atualizador determina uma

posição específica a cada momento para o posicionador inteligente, dentro das possibilidades

determinadas por este.

Desse modo, o atualizador de pressão autoriza que o posicionador inteligente comece

permitindo que a válvula libere uma passagem x de líquido, e continue abrindo a válvula e

permitindo um volume maior x1, x2, x3, ..., xn, até que o aumento do volume de líquido faça o

líquido represar e causar uma pressão oposta suficiente para causar uma pressão oposta no

atualizador e ele ordene uma mudança no comportamento do posicionador inteligente para

que este reposicione a haste da válvula e diminua a passagem de líquido. A mudança no

comportamento do posicionador inteligente, então, começa mover a haste da válvula para uma

nova posição ordenando que a válvula comece a fechar e redimensione o volume de líquido

permitido assumindo uma nova ordem de passagem xn,..., x3, x2, x1. Com isso, a diminuição

da pressão volta a alterar o atualizador e este volta a dar nova ordem de comportamento ao

posicionador inteligente, que por sua vez volta a mover a haste de controle da válvula para a

outra direção, reiniciando o processo de aumento de passagem de líquido, em busca de um

novo posicionamento adequado. Assim, o atualizador de pressão e o posicionador inteligente

se autorregulam no posicionamento do volume de líquido certo para a capacidade da

tubulação, cada um com sua operação específica e sua respectiva influência sobre o outro.

De modo análogo, a interação entre o atualizador de pressão e o posicionador

inteligente da haste de controle da válvula assemelha-se à interação da operação da relação

acreditar com a operação da relação subordinada. Assim como o atualizador de pressão ajusta

o posicionador inteligente numa posição específica, a relação acreditar determina a relação

subordinada numa ocorrência específica, aplicando-a sobre os termos e determinando por

meio dela a direção dos termos e os papéis lógicos que cada um deve desempenhar se ela for

assimétrica. E assim como o posicionador inteligente determina suas possibilidades de

operação, impondo ao atualizador suas condições de atuação, a relação subordinada determina

todas as suas possibilidades de aplicação e impõe à relação acreditar suas condições para ser

um agente instrumental movido. E assim, tal qual o atualizador de pressão e o posicionador

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188

inteligente na válvula de passagem, as duas relações se autorregulam com suas operações,

possibilidades e limites lógicos próprios. Cada uma determinando, a seu modo, o trabalho da

outra.

3.3 REVENDO O PROBLEMA DA DIREÇÃO E SUAS DIFICULDADES

ADJACENTES

Nesta terceira e última seção do Capítulo Terceiro, com os ganhos obtidos até aqui,

vamos revisitar as críticas à Teoria RM, que foram apresentadas no Primeiro Capítulo, bem

como as dificuldades adjacentes ao Problema da Direção e o próprio Problema da Direção,

que foram tratados no Segundo Capítulo. A relação hierárquica e a relação de interação

dinâmica estabelecida entre a relação acreditar, que opera no campo efetivo, e a relação

subordinada, que opera no campo lógico, trabalhadas nas seções anteriores, permitirão agora

uma nova e fecunda releitura daquelas dificuldades e desse Problema. Para isso, dividiremos a

presente seção em cinco subseções. A primeira subseção revê a crítica à Teoria RM e

responde a cada um dos críticos apresentados no Primeiro Capítulo.

A segunda subseção apresenta uma saída para a dificuldade da variação na ordem

lógica, na aridade e no número de lugares e de posições dos termos na relação acreditar. A

terceira subseção apresenta uma saída para o Problema da Direção Larga e o Problema da

Direção Estreita. A quarta subseção apresenta uma saída para as dificuldades explicativas

relativas à identificação dos papéis lógicos dos termos relata nas ocorrências da relação

acreditar. E, finalmente, a quinta subseção apresenta uma saída para a dificuldade com o

simbolismo formal nas ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação subordinada.

3.3.1 Crítica à crítica da Teoria RM

A constatação de que a relação acreditar é um agente movente multigrade e a

relação subordinada é um agente movido, nos permite agora reconsiderar a crítica da Teoria

RM exposta ao longo da subseção 1.3.3 do Primeiro Capítulo. Haja vista que, para

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189

infelicidade dos críticos apresentados, as posições alegadas sobre a relação entre acreditar e a

relação subordinada são todas inadequadas. Retornemos a elas, uma a uma, para deixar isso

mais claro.

3.3.1.1 Respondendo à crítica de Stout

Stout acusou defeitos na Teoria RM em três pontos: a relação de correspondência

inexiste, a relação subordinada é um mero termo na crença e o Problema da Direção é tão

grave que a relação subordinada pode ser posta no lugar dos objetos em um ato de crença.

Ora, antes de tudo, devemos notar que ele se deteve de modo predominante na segunda versão

da Teoria RM e, a partir dela, procurou assumir até às últimas consequências, a tentativa

russelliana de tratar a relação subordinada como um mero objeto na ocorrência da relação

acreditar, sendo essa pressuposição superada pelo tratamento que proporcionamos da relação

subordinada como um agente movido, todas as críticas de Stout desmoronam.

A crítica à relação de correspondência é a primeira a ruir, pois, Stout se apoiava na

ideia de que a relação subordinada tem que estar relacionando efetivamente os objetos diante

da mente que acredita, a fim de que haja correspondência com o fato, e como ela não está

relacionando efetivamente os objetos diante da mente, a correspondência, simplesmente, não

existe. Mas, como vimos, a relação subordinada não tem que estar relacionando efetivamente

os objetos diante da mente que acredita. Ela é posta relacionando logicamente os objetos na

crença, isto é, ela é posta representando uma situação logicamente possível. Se houver o fato

que ela representou nessa situação, então o juízo será verdadeiro. A correspondência

requerida pela Teoria RM não é entre a relação subordinada ocorrendo como relação

relacionado efetivamente na crença e ocorrendo efetivamente no fato. A correspondência,

quando houver, será entre a relação subordinada ocorrendo como relação relacionando

logicamente na crença, como representação, e ocorrendo efetivamente no fato apenas.

Quanto ao estranhamento de Stout, por que a relação acreditar não aparece no fato

correspondente, a resposta é que ela não precisa mesmo aparecer no fato correspondente que

torna o complexo de crença verdadeiro, porque ela é a relação principal que forma o fato geral

da crença. Ela só precisa aparecer no fato correspondente ao complexo formado por ela

envolvendo todos os constituintes em questão. Ao passo que, no complexo que corresponde

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ao conteúdo subordinado que ela gerou, só precisa aparecer a relação subordinada mesmo, se

o conteúdo lógico formado por ela for verdadeiro. Desse modo, percebemos que Stout não

distingue cuidadosamente os seguintes níveis na correspondência:

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

↓ ↓

Ocorrência efetiva . Ocorrência lógica.

↓ ↓

Fato correspondente: geral Fato correspondente: do conteúdo lógico subordinado.

O fato em que a relação acreditar deve aparecer (e aparece mesmo) é o fato geral, formado

pela instanciação da relação acreditar envolvendo todos os constituintes da crença. Ele é o

fato que corresponde á ocorrência efetiva da relação acreditar ou, se se preferir, ele é a

relação acreditar ocorrendo efetivamente com aqueles respectivos constituintes. Enquanto

que o fato requerido para tornar o complexo julgado verdadeiro só requer a ocorrência da

relação subordinada na crença. Ele é o fato pensado e acreditado como possível. Ele, se

existir, corresponde apenas ao conteúdo que a crença gerou com o uso da relação

subordinada, isto é, com o uso da relação que ocorre na crença relacionando logicamente

apenas.

Por conseguinte, a crítica de Stout afirmando que a relação subordinada é um mero

termo na ocorrência da relação acreditar e que só pode ocorrer assim, não se sustenta mais,

uma vez que a mudança que proporcionamos no quadro metafísico das duas relações permite

capturar corretamente a operação delas. A relação subordinada é um termo da crença, sim,

mas, ela é um termo especial. Sua função é única e indispensável. Ela é uma relação e é posta

na crença como relação relacionando logicamente. Se assim não for, a relação acreditar não

consegue formar uma unidade com os constituintes em questão. Se assim não for, a relação

acreditar só consegue gerar uma mera seqüência, sem sentido lógico, dos constituintes.

A acusação de Stout de que a Teoria RM postula um sujeito que, estando ligado à

relação universal, não pode asserir tal relação numa ocorrência da elação acreditar como

relação relacionando também está apoiada num pressuposto insustentável. Por trás dessa

acusação está o pressuposto de que a relação subordinada, enquanto relação universal, é um

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objeto comum para o sujeito do juízo, totalmente diferente do que seria como relação

relacionando. Pressuposição bastante questionável, pois, de fato, há diferenças a serem

notadas na relação do sujeito com uma relação universal e na relação de um sujeito com uma

relação relacionando. Com a relação universal ele mantém uma relação mental como, por

exemplo, a relação que alguém mantém com vermelhidão quando pensa a cor vermelha em si.

E com a relação relacionando efetivamente ele mantém uma relação que a considera

constituinte de um fato determinado no mundo.

Tais diferenças, porém, não implicam que a relação universal seja uma entidade

ontologicamente diferente da relação relacionando. Ela é a mesma relação nas duas

ocorrências. E porque ela é a mesma relação nas duas ocorrências, o sujeito pode conectar-se

com ela e pode pensar sobre ela nos dois modos. O sujeito pode pensá-la como relação em si e

pode pensá-la como constituinte de um fato específico possível, relacionando logicamente os

objetos, mesmo que ela não esteja ocorrendo efetivamente em tal fato. Até por que, como

Russell assumiu, “uma relação relacionando é distinguida da relação em si mesma pelo

indefinível elemento da asserção”.186 Ela é a mesma relação quando o sujeito a toma como

conceito em si ou quando ele a toma como asserção. Não está vedada ao sujeito a

possibilidade de apreendê-la e pensá-la de um jeito ou de outro se ele estiver acquainted com

ela.

E, finalmente, a crítica de Stout ao Problema da Direção também desmorona a partir

do momento que não consideramos mais a relação subordinada como um mero objeto da

crença. Enquanto agente movente multigrade, a relação acreditar aplica a relação subordinada

aos demais termos como um agente movido. E enquanto agente movido, a relação

subordinada determina as condições para que a relação acreditar opere com ela. Não existe

aquela fragmentação inconciliável dos termos da crença que foi pensada por Stout. Os termos

da crença estão separados, mas, eles são capazes de se combinarem. Eles são capazes de se

combinarem e eles têm condições lógicas para que isso aconteça. Condições essas, que são

determinadas logicamente pela relação subordinada. Pois, sendo uma relação assimétrica, a

subordinada tem uma direção, impõe papéis lógicos diferentes e determina lugares adequados

para os objetos, quando os envolve logicamente.

186 RUSSELL, 1903, p. 100.

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192

3.3.1.2 Respondendo à crítica de Griffin

Griffin está correto em dizer que a relação subordinada com a qual o sujeito está em

relação num ato de crença é a relação universal e não a relação particularizada. Uma vez que a

crença pode ser falsa, a relação subordinada não pode estar particularizada diante da mente da

mente do sujeito. Mas disto não se segue que o sujeito não pode estar em relação com uma

relação universal e acreditar nessa relação ligando dois objetos possíveis, nem que a teoria da

correspondência não obtém sucesso se ele acreditar nela ligando dois objetos.

Ao contrário, nós mostramos que a Teoria RM pode tratar a relação subordinada de

modo bem diferente, a saber, como um agente movido, que opera logicamente sob o comando

da relação acreditar. Assim, podemos dizer que o sujeito da crença está em relação com a

relação universal, porque ele está acquainted com ela, e se ele está acquainted com ela, então,

ele pode operar com ela logicamente ou reconhecê-la em qualquer instância efetiva, pois não

a tem como um objeto comum, mas, como uma relação com todas as suas possibilidades

lógicas. E é exatamente porque ele pode operar com ela em todas as suas possibilidades

lógicas, mesmo sem saber se ela se encontra particularizada num fato, que a crença pode ser

falsa, isto é, que o sujeito da crença pode julgá-la ocorrendo numa instância quando, de fato,

ela não ocorre. A noção de correspondência sugerida pela Teoria RM, de modo algum fica

comprometida.

Percebe-se, pois, que Griffin terminou caindo no mesmo engano de Stout porque, a

seu modo, ele também tratou a relação subordinada como um objeto comum na relação

acreditar. Também para ele, o fato de estar relacionado com uma relação universal, só dá ao

sujeito da crença o direito dele operar com ela como um objeto do juízo, isto é, de pensá-la ao

lado de outros objetos. Mas, isso parece bastante problemático e contra intuitivo. Não é assim

que percebemos as coisas acontecerem. Frequentemente, as pessoas que se mostram

familiarizadas com uma relação produzem crenças com tal relação ocorrendo como objeto ou

ocorrendo como relação relacionando. O olhar atento sobre esse uso natural de uma relação,

envolvida pela relação acreditar, logo percebe que aquela relação subordinada não é um

objeto comum da crença, mas, sim, um termo especial, cujo uso implica o domínio de suas

características identificadoras e de suas capacidades lógicas operacionais.

Convém, ainda, levantarmos dois questionamentos à crítica de Griffin. Primeiro, o

que é mesmo uma relação “particularizada”? É uma “parte” de uma relação? Ora, não se pode

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193

abandonar a arena sem avisar ao oponente. Griffin usa uma expressão nova para o universo

ontológico russelliano, sem oferecer a devida justificativa para ela, e no universo ontológico

russelliano uma relação é um universal. Ela ocorre numa instância particular, ou em várias

instâncias ao mesmo tempo, mas ela é um universal. Se uma relação “particularizada” for uma

relação ocorrendo numa instância particular, então, ele deveria dizer isso diretamente. E se

isso não for o caso, ele teria que dizer também.

Segundo, quando uma relação ocorre como relação numa instância particular ela

ocorre relacionando efetivamente. Mas, também pode acontecer que uma relação ocorra como

relação, numa instância particular, apenas relacionando logicamente. Se ela ocorrer

relacionando efetivamente será a relação principal da ocorrência, claro, mas isso não impede

que outra relação ocorra como sua subordinada relacionando logicamente apenas. E isso é

totalmente compatível com a Teoria RM.

Desse modo, devemos perguntar a Griffin, a Teoria RM não requer que a relação

subordinada ocorra no juízo como “relação relacionando” em que sentido, efetivamente ou

logicamente? Claro, Russell usou a expressão “relação relacionando” para designar a relação

principal, aquela que forma uma unidade com todos os termos numa ocorrência e a literatura

filosófica posterior acentuou muito essa posição. Mas, como temos observado, esse não é o

único modo de uma relação ocorrer “relacionado”. Ela também pode, por exemplo, ocorrer

relacionando logicamente, no juízo, ou verbalmente, na linguagem, subordinada à operação de

outra relação. Aqui reside a maior falha de Griffin, em não considerar que uma relação pode

ocorrer como relação relacionando de diferentes (e compatíveis) modos.

Por conseguinte, podemos responder à crítica de Griffin dizendo um “sim”, a Teoria

RM é capaz sim de distinguir o juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio, do juízo de Otelo

que Cássio ama Desdemona. Ela pode distinguir esses juízos um do outro, neste contexto,

exatamente porque a relação subordinada não é um mero termo no juízo. Ela é um agente

movido, sob o comando da relação acreditar, que determina as condições da direção, os

papéis lógicos e os lugares dos termos. O que faz com que Otelo opere com a operação lógica

dela para ligar os termos em diferentes direções. Ou, dito de outro modo, o que faz com que

Otelo relacione os termos por meio da operação relacionante dela e os posicione em direções

e com significados diferentes.

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194

3.3.1.3 Respondendo à crítica de Wahl

A análise de Wahl está correta em afirmar que o pressuposto mais pernicioso, usado

até então, para interpretar a Teoria RM é o pressuposto de que a relação subordinada é um

objeto no mesmo nível lógico dos demais termos nas ocorrências da relação acreditar. E ela

está certa, sobretudo, em afirmar que isso é um pressuposto. Acontece, porém, que todo

pressuposto deve ter razões sólidas para se sustentar este não tem. Este é totalmente

inadequado, ele não possibilita a formação de crenças relacionais e não captura

adequadamente as operações das duas relações envolvidas num ato de crença simples, a

operação da relação subordinada e a operação da relação principal. Por isso, outro pressuposto

melhor e mais condizente com a Teoria RM pode e deve suplantar esse que a sua análise

aponta.

Ora, como temos mostrado, a relação subordinada ocorre, nas instancias de crença,

como relação relacionando logicamente. Se assim não fosse, não haveria crença relacional

alguma. O que Wahl e os críticos não notam com clareza é o modo e a natureza dessa

operação relacionante da relação subordinada ocorrer dentro da crença, isto é, como ela opera

sem deixar de ser subordinada à relação acreditar. Para entender isso é preciso considerar a

relação subordinada tomada como objeto especial e levar em conta tanto o fato de que ela

ocorre como subordinada, quanto o fato de que ela ocorre como relação operante. Ou seja, o

pressuposto adequado para entender a Teoria RM é o que nós propomos, a saber, que ela é

uma agente movida. Ela é uma agente lógica, que determina as condições de sua aplicação, e

ela é movida, porque é operada por outro princípio, a relação acreditar, que age sobre ela.

Nesse pressuposto que propomos, então, a direção dos termos numa ocorrência da

relação acreditar não é algo gratuito. O sujeito da crença não posiciona os termos

aleatoriamente. Ele segue as determinações da relação subordinada para atribuir os termos nos

lugares e papeis lógicos corretos, conforme determina a relação subordinada com a qual a

crença opera. A diferença entre o juízo “A acredita que aRb” e o juízo “A acredita que bRa”

pode ser perfeitamente contabilizada pela análise e, o que é mais importante, ela pode ser

operacionalizada pelo sujeito da crença também. Este, escolhe que juízo quer formar,

conforme sua intenção e com base nas determinações lógicas da relação subordinada.

Por fim, ao admitirmos que a relação subordinada funciona como relação

relacionando logicamente sob a operação efetiva da relação acreditar, cai por terra também a

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acusação de Wahl de que a Teoria RM é insensível para acolher relações de ordem superior.

Como temos mostrado, para poder instanciar-se a relação acreditar deve respeitar as

condições e determinações lógicas da relação subordinada, caso contrário não poderá operar

com ela, e isso, claro, inclui respeitar tanto as possibilidades da relação subordinada ocorrer

como relação de primeira ordem quanto as possibilidades dela ocorrer como relação de ordem

superior, dependendo de sua natureza comportar graus de ordem superior. Por conseguinte, a

Teoria RM não somente comporta a relação subordinada como relação relacionando

logicamente, sem conflito nenhum com a operação principal da relação acreditar, como

também comporta a relação subordinada operando como relação de primeira ordem e/ou de

ordem superior.

3.3.1.4 Respondendo à crítica de Miller

Em sua interpretação da Teoria RM, Alexander Miller faz uma formidável separação

das operações da relação acreditar e da relação subordinada no tocante à determinação do

sentido dos termos. Ele considera que a ordem dos termos deve ser imposta ou pela relação

acreditar ou pela relação subordinada. Infelizmente, para ele, porém, essa não é a única e nem

a melhor maneira de pensar a Teoria RM.

Na primeira versão da Teoria RM, como temos mostrado, Russell não indicou em

que consiste, exatamente, a participação da relação acreditar na determinação da direção dos

termos. Ele admitiu que a relação subordinada, sendo assimétrica, tem uma direção conforme

vai de A para B e outra conforme vai de B para A e que a relação subordinada já deve ser

pensada com a direção apropriada. Ora, admitimos que Russell não foi totalmente feliz com

esse passo. Ao fazer isso, ele deixou a responsabilidade da direção toda com a relação

subordinada e sugeriu que a participação da relação acreditar consiste em já apanhar a relação

subordinada, “com a direção apropriada”.187Mas, não precisamos seguir Russell nessa escolha

infeliz e não temos motivo para seguir Miller em sua radicalização de que ou uma relação ou

a outra (sozinha) impõe a ordem aos termos.

No nosso entender, a relação subordinada opera logicamente de modo determinante

na imposição da ordem dos termos, na medida em que ela dá as condições lógicas para a

187 RUSSELL, 1910, p. 184.

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196

direção deles. E a relação acreditar também opera de modo determinante na imposição da

direção dos termos numa instancia determinada, na medida em que atribui os termos

efetivamente nas condições dadas pela relação subordinada. Portanto, a ordem dos termos na

crença de Otelo não é imposta pela relação amar sozinha nem pela relação acreditar sozinha,

como sugere Miller. A ordem dos termos resulta da operação integrada das duas relações.

Cada uma em seu campo específico. Por conseguinte, no nosso entender, Miller parece certo

em dizer que se a relação subordinada fora responsável (única) pela ordem dos termos, a

relação acreditar proposta pela Teoria RM colapsa numa relação dual. Mas, ele parece errado

em assumir que ou é assim ou acreditar deve impor a ordem dos termos sozinha. Não

precisamos assumir nem uma coisa nem outra para pensar a Teoria RM.

Além do mais, Miller parece certo em dizer que, se acreditar impõe a ordem

(sozinha) sobre Desdemona e Cássio apenas, fica sem sentido justificar que uma relação de

quatro lugares impõe uma ordem sobre dois termos. Mas ele está errado em dizer que essa é a

sugestão da Teoria RM. Pois a Teoria RM sugere que se entenda a operação da relação

acreditar de modo não-distributivo, isto é, ligando, simultaneamente, o sujeito da crença, a

relação subordinada e os termos objetos. Quando ela ocorre não está impondo uma ordem a

Desdemona e Cássio apenas. Quando ela ocorre forma um complexo que envolve Otelo,

Desdemona, a relação amar e Cássio. E, ligando os quatro termos, impõe uma ordem a eles

onde, por meio da relação amar impõe uma ordem a Dedesmona e Cássio, isto é, ela impõe

uma geral aos quatro termos e a ordem dada a Desdemona e Cássio é uma ordem subordinada

a essa ordem geral.

Por fim, convém notar que a compreensão da relação de correspondência

desenvolvida por Miller, faz uma inversão bastante sutil no tocante ao primado entre o campo

lógico e o campo efetivo envolvidos nas ocorrências de crença, dificilmente aceita por Russel.

De acordo com ele, a ordem efetiva dos termos julgados teria que ser dada primeira, caso a

Teoria RM estivesse certa, e só depois a crença poderia impor aquela ordem aos termos. Mas,

Russell não assumiu isso, ele assumiu que se a ordem dada aos termos no juízo corresponder

à ordem efetiva dos termos no fato, então, o juízo será verdadeiro. Caso contrário será falso.

Mas, a imposição da ordem na crença independe da ordem dada na crença está ou não

efetivada num fato. A correspondência é uma condição lógica, necessária e suficiente, para a

verdade da crença, não uma condição efetiva, dada fora juízo. Ela é uma exigência lógica para

a verdade do juízo. Para ele, a ordem dos objetos na crença deve ser a mesma dos termos no

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fato, sim e isso é uma condição que pode ocorrer ou não. Enquanto que para Miller a ordem

dos termos no fato deve ser a mesma dos termos na crença, mas, como uma determinação

efetiva da primeira sobre a segunda. Como uma lei reguladora imposta a partir do fato, a

ponto dele concluir que a crença só pode ocorrer se a relação subordinada já for dada de fato,

ou seja, a ponto de sustentar que a Teoria RM desemboca na teoria do juízo como relação

dual outra vez.

3.3.1.5 Dialogando com a defesa de Samuel Lebens

A defesa da Teoria RM feita por Samuel Lebens é sofisticada, pertinente e original.

Nelas nós encontramos, pelo menos, três importantes vantagens para a posição central de

nossa tese de que a Teoria RM apresentada na primeira versão é favorável a uma leitura bem-

sucedida e encontramos também uma importante limitação ou desvantagem, muito embora,

essa possa ser sanada facilmente. Consideremos primeiro as vantagens.

A primeira importante vantagem da interpretação que Samuel Lebens faz da Teoria

RM é que ela não trata a relação subordinada como um mero termo do juízo. Apesar de

Samuel, em parte, ainda acentuar bastante o fato da relação subordinada ser subordinada,

percebe-se que ele toma o cuidado de ressaltar que ela não é um objeto como os demais

objetos na crença.

A segunda vantagem da interpretação de Lebens é que ele procura não somente

constatar que todas as tentativas de interpretar a Teoria RM, anteriores a ele, partem do

pressuposto errado de considerar a relação subordinada um mero objeto da crença, mas,

sobretudo, constata as consequências desastrosas dessa posição gerando uma concepção de

problema do sentido estreito numa forma, praticamente, intransponível.

E, por fim, a terceira grande vantagem da posição de Lebens é que ele, muito

acertadamente, identifica de modo muito preciso o erro generalizado dos críticos da Teoria

RM no entendimento da sugestão de Russell, na versão de 1910, para que a relação

subordinada fosse aceita como estando diante da mente com um sentido. A saber, que todos

os críticos interpretaram a proposta de Russell como se ele estivesse assumindo que a relação

subordinada tem uma direção quando vai de A para B ( A → B), e

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tem outra direção quando vai de B para A (A ← B).

Em contraste com essas importantíssimas vantagens da interpretação que Lebens faz

da Teoria RM, porém, encontramos uma significativa desvantagem. Trata-se do seu esforço,

visando justificar a posição de Russell, para interpretar a concepção de relação subordinada da

primeira versão da Teoria RM “como se ela apenas parecesse estar relacionando” no juízo, a

fim de ter um sentido. Como podemos entender sua proposta (e aceitação) de que Russell não

quis que a relação subordinada entrasse no juízo como relação relacionando, mas, apenas

parecendo relacionar?

Primeiro que tudo, precisamos notar que essa posição de Lebens pode incorrer no

risco grave de fazer alguém pensar que, ao executar o trabalho de formar uma crença o sujeito

apenas constrói uma justaposição dos termos querendo, simplesmente, que a relação

subordinada pareça estar relacionando. O indivíduo que for por esse caminho, sem dúvida,

chegará a um resultado desastroso, que nada tem a ver com a proposta de Russell na Teoria

RM. De fato, Russell nunca disse que uma crença é uma justaposição dos termos, mas, sim,

que a relação acreditar, ao instanciar-se, liga todos os constituintes formando uma unidade. E

isso que só pode acontecer se os termos subordinados estiverem ligados logicamente, não

justapostos.

Lebens parece se dar conta desse risco e atenua sua sugestão, de que à relação

subordinada basta parecer relacionar, afirmando que ao constituir uma ordem para os termos,

num ato de crença, o sujeito cria uma representação de um fato possível. Nesse caso, porém,

temos que adverti-lo que, se o sujeito da crença cria uma representação com a relação

subordinada e os objetos, então, a relação subordinada não está sendo posta como se

parecesse relacionar, mas, sim, como relacionando logicamente os objetos. De fato, com o

avanço de sua exposição, Lebens se revela tão inclinado a aceitar o caráter relacionante da

relação subordinada, que assume a relação acreditar como sendo, russellianamente, a

operação de predicar algo de algo ou ligar algo e algo.

Por fim, continuando a afastar-se da imagem de que a relação subordinada

“simplesmente parece relacionar”, Lebens termina assumindo que julgar ou acreditar já é dar

as condições de verdade do que é asserido. Ora, se acreditar já é dar as condições de verdade

do que é asserido, não somente fica sem cabimento falar de “juízos sem sentido lógico”, como

afirmar Lebens, mas, também fica sem cabimento falar que a relação subordinada só parece

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relacionar. Pois, se o amor de A por B é a condição de verdade do juízo que A ama B, não

tem sentido afirmar que aquele juízo determina que essa seja sua condição de verdade se nele

a relação amar só estiver parecendo relacionar.

Por conseguinte, julgamos nossa proposta de que a relação subordinada é um agente

movido, que relaciona logicamente os termos sob o comando operacional da relação

acreditar, bem melhor do que a leitura de Lebens assumindo que à relação subordinada basta

parecer relacionar. E achamos que ela é melhor por duas importantes razões. A primeira delas

é porque ela corresponde melhor à exigência central feita por Russell de que, ao ligar ao ligar

os constituintes num ato de crença, a relação acreditar constitui uma unidade. E só haverá

uma unidade se os termos se integrarem, não se parecerem estar integrados.

A segunda razão é porque nossa proposta se harmoniza perfeitamente com as outras

posições de Lebens que consideram acreditar como sendo a operação de formar a

representação de um fato possível, isto é, como sendo a operação de ligar algo a algo,

constituindo assim as condições de verdade da representação formada, enquanto que a posição

dele assumindo que a relação subordinada só precisa parecer relacionar destoa totalmente

disso. De fato, se ele admite que acreditar é formar uma representação de um fato possível,

que liga algo a algo e já dá as condições de verdade do que é asserido, então, é porque a

relação subordinada não ocorre parecendo ligar os objetos, mas, ligando mesmo os objetos

sob o comando da relação acreditar.

3.3.2 Revendo as dificuldades explicativas da variação na relação acreditar

A solução para as dificuldades explicativas da variação, tanto na ordem lógica quanto

na aridade e no número de lugares, da relação acreditar se irradia a partir da relação

subordinada. Compreendida corretamente, como um agente movido, a relação subordinada,

por sua natureza, determina logicamente as suas possibilidades de ocorrências e,

consequentemente, obriga a relação acreditar a operar dentro dos seus limites e

determinações lógicas.

Assim, para aplicar devidamente isso aos três tipos de dificuldades relativas à

variação, vamos dividir essa subseção em três partes, a fim justificar como, nas possibilidades

da variação, se define a ordem lógica, a aridade e o número de lugares dos termos. Na

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primeira subseção, veremos como, dialeticamente, as duas relações interagem na

determinação da ordem lógica das duas relações numa ocorrência efetiva da relação acreditar.

Na segunda, veremos como isso acontece na determinação da aridade e, finalmente, na

terceira, veremos como isso ocorre na determinação do número de lugares das duas relações.

3.3.2.1 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação

da ordem lógica das duas relações

Como vimos na subseção 2.2.1.3, a dificuldade explicativa relativa à variação na

ordem lógica da relação acreditar também está ligada à relação subordinada. Se a relação

subordinada for tratada como um termo no mesmo nível lógico dos outros, a relação acreditar

não conseguirá instanciar-se e, consequentemente, não chegará a ter uma ordem lógica

definida. Haja vista que, neste caso, tudo que poderá fazer é formar uma sequência desconexa

de termos.

Em contrapartida, se a relação subordinada não for considerada um termo no mesmo

nível lógico dos outros relata, então, a ocorrência da relação acreditar constitui-se numa

hierarquia com diferentes ordens lógicas envolvidas. A relação acreditar age sobre a relação

subordinada e aplica a relação subordinada sobre termos que ficam numa ordem lógica ainda

mais baixa.

Nesta relação e interação hierárquica, as duas relações se influenciam na

determinação de suas respectivas ordens lógicas. Por um a lado, a relação acreditar move

logicamente a relação subordinada e influencia a concretização de uma lógica determinada

para ela, exercendo sobre ela papel de governo. Mas, por outro lado, a relação subordinada

tem suas possibilidades de ocorrer em ordens lógicas diferentes determinadas por sua própria

natureza, de modo que ela determina as possibilidades da relação acreditar usá-la numa

dentro de suas possibilidades.

A relação acreditar, servindo-se instrumentalmente da relação subordinada, liga dois

ou mais termos numa crença relacional. Ao fazer isso, porém, ela aplica logicamente a relação

subordinada sobre os outros termos e com isso dá a esta uma ordem lógica determinada. Mas,

visto que, a relação subordinada, por sua natureza própria, determina que termos pode

envolver ou não, a fim de que possa ser aplicada, determina também que grau de ordem lógica

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pode atingir ou não. Essas possibilidades e restrições, por sua vez, determinam a ordem lógica

que a relação acreditar pode alcançar com aquela subordinada. Haja vista que elas impõem

possibilidades e limites que obrigam a relação acreditar a colocar-se acima da subordinada,

para que possa utilizá-la adequadamente como seu instrumento.

Percebe-se, então, que a relação hierárquica e a interação entre as duas relações,

operando em campos distintos, impõem obrigações lógicas aos dois lados. A natureza da

relação subordinada determina que tipo ou tipos de termos ela pode envolver e em que ordem

ou ordens lógicas ela pode atuar, obrigando a relação acreditar a operar com ela dentro desses

limites e possibilidades. Enquanto que a relação acreditar, usando instrumentalmente a

relação subordinada, determina os termos sobre os quais esta será aplicada. E ao fazer isso, a

relação acreditar determina uma ordem lógica exata da relação subordinada na ocorrência.

Desse modo, podemos dizer mais formalmente que a ordem lógica da relação acreditar será 1

+ o número de ordem lógica em que a relação subordinada foi aplicada e, por sua vez, a

ordem lógica da relação subordinada será 1 + o número da ordem lógica mais elevado entre

seus termos.

A conclusão a que somos levados com essas considerações é que a relação acreditar

impõe, por meio da relação subordinada, uma direção hierárquica vertical sobre seus relata

numa ocorrência efetiva. E esta direção hierárquica vertical é determinada pelas

possibilidades que a relação subordinada oferece. A relação subordinada não pode deixar de

ser respeitada em suas condições lógicas, pois, suas condições lógicas são necessárias para

que a relação acreditar possa instanciar-se, aplicando adequadamente a relação subordinada.

E isso resultará também, como veremos melhor mais abaixo, num golpe mortal para o

Problema da Direção Larga.

3.3.2.2 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação

da aridade das duas relações

A dificuldade explicativa referente à variação da aridade na relação acreditar, como

vimos na subseção 2.2.1.1, também está presa ao tratamento dado à relação subordinada. Se

esta não for considerada um termo de nível lógico diferente dos outros relata, não será

possível considerar a relação acreditar numa instancia efetiva. E se ela não for considerada

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um termo no mesmo nível lógico dos demais relata, então, será preciso definir qual é o seu

papel na determinação da aridade da relação acreditar. Coisa que não foi feita pela Teoria

RM apresentada por Russell em nenhuma de suas versões.

Tendo visto que as duas relações operam em campos diferentes, formando uma

hierarquia e uma interdependência dos termos, porém, podemos agora justificar a variação na

aridade da relação acreditar e o modo como a relação subordinada participa dessa variação. A

relação subordinada, por sua natureza própria, tem suas possibilidades de aridade conforme

seja ela uma relação unigrade ou multigrade. Se ela for uma relação unigrade, a relação

acreditar terá como aridade 2 + o número (fixo) da aridade da relação subordinada. Mas se

ela for uma relação multigrade, a relação acreditar terá ao seu dispor um instrumento com

inúmeras possibilidades de aridade. A relação acreditar, então, determinará uma aridade

concreta na relação subordinada ao aplicar-lhe termos específicos e a subordinada, que

determina as possibilidades de sua aplicação para a relação acreditar, influencia de volta a

determinação da aridade da relação acreditar. Dito de modo mais formal, nos casos em que a

relação subordinada é de aridade variável, a aridade da relação acreditar será 2 + o número

de termos sobre os quais ela aplica a relação subordinada. Visualizemos isso no caso descrito

pela frase (81):

(81) Otelo acredita que Desdemona detesta Cássio.

O que a frase (81) descreve é uma ocorrência da relação acreditar com aridade 4,

pois ela aplica a relação subordinada sobre dois termos, que somados ao número da própria

relação subordinada e o sujeito da crença resultam na aridade da relação acreditar. Mas, nesse

caso, a relação subordinada é multigrade, ela poderia ocorrer com muitas outras aridades

diferentes, o que resultaria em aridades diferentes para a relação acreditar também.

3.3.2.3 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação

do número de lugares das duas relações

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A exemplo do que aconteceu com a variação na ordem lógica e na aridade da relação

acreditar, o tratamento dado à relação subordinada também é decisivo para entender os

lugares dos termos numa crença. Se a relação subordinada for considerada um termo no

mesmo nível lógico dos outros relata, então, os lugares adquirem um nivelamento tal, que os

papeis lógicos dos termos se perdem, como foi visto na subseção 2.2.1.2 acima. E se a relação

subordinada não for tratada como um termo no mesmo nível lógico dos demais, então,

teremos que definir o que identifica um lugar de termos na ocorrência de uma relação e como

computar adequadamente os lugares de relação acreditar e da relação subordinada numa

ocorrência determinada. Consideremos as dificuldades próprias de cada uma desses dois

pontos.

No tocante à definição dos lugares dos termos, podemos tomar dois caminhos. O

primeiro caminho consiste em tratar um lugar, na ocorrência de uma relação, como sendo o

ponto que aquele termo ocupa na estrutura lógica daquela relação instanciada. Mas, neste

caso, os papéis lógicos dos termos se perdem também quando a relação subordinada envolve

mais de dois termos. O que nos leva a abandonar este caminho, pois, ao invés de solucionar,

ele agrava ainda mais as dificuldades.

O segundo caminho, com o qual estamos de acordo, consiste em tratar um lugar

como sendo o “espaço” onde o termo desempenha um papel lógico na ocorrência de uma

relação. Assim entendido, um lugar pode conter um ou mais de um termo dividindo um

“espaço” lógico na relação, isto é, desempenhando mesmo papel lógico na ocorrência da

relação. Neste caminho, portanto, ao contrário do anterior, não há nenhum descompasso entre

os lugares e os papéis lógicos dos termos na relação. Claro, este modo de entender os lugares

dos termos ainda deixa dificuldades a serem resolvidas pela tarefa de simbolizar formalmente

as ocorrências da relação acreditar que envolverem uma relação subordinada que imponha

mais de dois papéis lógicos aos seus termos. Mas, como veremos na última seção deste

Capítulo, tomando por base a estratégia multigrade, conseguiremos superar essa dificuldade.

No tocante ao cômputo dos lugares dos termos nas duas relações envolvidas numa

ocorrência da relação acreditar, também podemos seguir duas direções. A primeira direção,

que não consideramos viável, propõe computar separadamente o número de lugares da relação

acreditar e o número de lugares da relação subordinada. Mas, indo nesta direção, as

dificuldades se agravam, porque a tentativa de separar os lugares das duas relações leva a

considerar a relação acreditar como uma relação dual, isto é, uma relação que tem o lugar do

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sujeito e o lugar dos relata. Enquanto que a relação subordinada, dentro do lugar dos relata,

tem seus lugares exclusivos.

A outra direção, contudo, nos parece bem-sucedida. Ela baseia-se nas posições que

assumimos nas duas primeiras seções deste Capítulo e considera a interação existente entre as

duas relações. De fato, a interação da relação acreditar com a relação subordinada, como

agente movente e agente movido, também repercute no cômputo do número de lugares das

duas relações. O número de lugares da relação acreditar depende do número de lugares

usados por ela na aplicação lógica da relação subordinada, uma vez que acreditar se apropria

logicamente da operação da relação subordinada. E, num movimento contrário, o número de

lugares da relação subordinada sofre a influência da relação acreditar, numa ocorrência

concreta, que escolhe aplicar um termo ou vários aos lugares impostos logicamente pela

relação subordinada.

Por conseguinte, visto que a relação acreditar, enquanto agente movente, se apropria

da operação lógica da relação subordinada, o cômputo do número de lugares não deve ser

feito isoladamente para cada relação, mas, ao contrário, ele deve ser feito de modo cumulativo

para a relação acreditar, pois a relação superior toma para si os lugares da relação inferior

usados por ela logicamente. Assim, a relação acreditar acumula o número de lugares da

relação subordinada dos quais ela faz uso e a relação subordinada cede à relação acreditar o

número de lugares usados instrumentalmente por ela. Por exemplo:

(82) Otelo acredita que Desdemona detesta o inverno.

Na frase (82) as relações são descritas de um modo que parece tentador dizer que a

relação detestar tem dois lugares e a relação acreditar tem dois lugares. Mas essa maneira de

computar os lugares das duas relações não é correta. O correto é dizer que, na ocorrência (82),

a relação detestar tem dois lugares e a relação acreditar tem quatro lugares, porque a relação

acreditar é superior e assimila os lugares utilizados por ela na relação subordinada. Por

conseguinte, em (82) acreditar ocorre como uma relação de quatro lugares, uma vez que ela

assume os lugares utilizados por ela na relação subordinada, fazendo-os seus para atribuir a

eles os termos da sua intenção. De modo que, a relação subordinada determina ONDE os

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termos devem ocorrer, ao determinar o papel lógico que eles devem desempenhar em cada

lugar, e a relação acreditar determina QUE termo ocorre num lugar ou noutro, conforme

pretenda que ele desempenhe um papel ou outro, e os posiciona nos lugares adequados que,

consequentemente, ficam pertencendo às duas relações.

3.3.3 Revendo os Problemas da Direção na relação acreditar da Teoria RM

Ao longo da primeira seção do Capítulo Segundo, foi possível perceber que nem

Russell nem os críticos examinados ofereceram uma definição clara do Problema da Direção.

Tudo que eles fizeram foi oferecer algumas ilustrações, inclusive, com diferenças bem

inquietantes. Examinando-as, porém, conseguimos identificar uma base de sustentação

comum a todas elas, que foi a falta de clareza sobre a relação entre as duas relações e o papel

de cada uma delas na formação da unidade constituída numa ocorrência da relação acreditar.

Veremos agora que, se a má compreensão daquele ponto serviu de base para a

construção do Problema da Direção, uma boa compreensão do mesmo ponto vai nos levar à

superação do Problema, tanto do considerado Problema da Direção Estreita como do

considerado Problema da Direção Larga. Mas, por razões argumentativas, vamos começar por

este último.

3.3.3.1 A verticalidade hierárquica entre acreditar, a relação subordinada e os demais termos

na determinação da Direção Larga

Como foi visto ao longo da seção 2.1.3, os acusadores de que a Teoria RM incorre no

Problema da Direção Larga se baseiam em dois pressupostos bastante duvidosos. A saber, que

os termos da relação acreditar estão todos no mesmo nível lógico e que a operação da relação

acreditar, simplesmente, consiste em pôr um termo ao lado do outro quando forma uma

ocorrência. Mas, quando examinados cuidadosamente, percebemos que aqueles pressupostos

decorrem de uma compreensão inadequada da natureza lógica e da operação tanto da relação

acreditar e da relação subordinada quanto dos outros termos envolvidos no juízo. E, tão logo

esse engano se desfaz, o Problema da Direção Larga ficar sem fundamentos aceitáveis.

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Realmente, como temos mostrado, numa ocorrência da relação acreditar, as duas

relações atuam em campos diferentes. A relação acreditar está no campo efetivo, ela está

ocorrendo efetivamente, e se sobrepõe à relação subordinada. Enquanto que a relação

subordinada está ocorrendo no campo lógico, ela é usada logicamente e fica sob a ordem

lógica da relação acreditar. Além disso, a interação entre as duas relações, cada uma em seu

respectivo campo, envolve os demais termos e cria um nível ainda mais inferior, o nível dos

termos que acreditar liga por intermédio da relação subordinada.

Ora, percebemos que essa estrutura hierárquica de três níveis lógicos se encontra

presente em todas as ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação subordinada.

Ela revela que a operação da relação acreditar não consiste, simplesmente, em colocar um

termo ao lado outro. Pelo contrário, ela indica que, antes de realizar uma operação horizontal

dando direção aos seus termos, a relação acreditar realiza uma operação vertical hierárquica,

aplicando termos de um nível lógico sobre outros de nível lógico inferior.

Por conseguinte, se toda ocorrência da relação acreditar, envolvendo uma relação

subordinada, gera uma hierarquia de três níveis, então, fica inconsistente assumir que seus

termos estão todos no mesmo nível lógico. E não resta mais nenhum cabimento para o

primeiro pressuposto dos partidários do Problema da Direção Larga. A relação acreditar

opera com a relação subordinada, ligando logicamente os outros termos. A relação

subordinada é usada instrumentalmente pela relação acreditar, como ferramenta lógica, sobre

os demais termos. E os termos são ligados por meio da relação subordinada, sob o comando

da relação acreditar.

Ainda mais. Uma vez que a falta de clareza sobre os níveis envolvidos nas

ocorrências da relação acreditar é superada, cai por terra também a ideia de que a operação da

relação acreditar se resume em posicionar os termos lado a lado. De fato, a verticalização

hierárquica na estrutura formada pela ocorrência da relação acreditar revela que sua operação

é muito mais complexa. Ela opera num nível vertical, aplicando a relação subordinada sobre

os demais termos, e opera num nível horizontal, aplicando os termos nos lugares

determinados pela relação subordinada e atribuindo a eles papéis lógicos próprios de cada

lugar, conforme as determinações lógicas da relação subordinada.

Por sua vez, essa operação horizontal da relação acreditar, baseada nas

determinações das condições lógicas da relação subordinada, já deixa entrever uma fissura na

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construção do Problema da Direção Estreita que vai fazer muito estrago na sua pretensão de

sustentabilidade. Consideremos ela mais detalhadamente.

3.3.3.2 Força efetiva da relação acreditar e exigências lógicas da relação subordinada na

determinação da Direção Estreito

O Problema da Direção Estreita, exposto na seção 2.1.2, também surge de uma má

compreensão da natureza da relação subordinada e da relação que ela mantém com a relação

acreditar. Russell assumiu, na primeira versão da teoria RM, que a relação subordinada é uma

relação universal e que ela tem que está no juízo indo de A para B, mais do que de B para A.

Contudo, ele não disse exatamente como se dá o movimento de formação do juízo, em que o

sujeito da relação acreditar, estando acquainted com uma relação universal, aplica

logicamente tal relação de A para B, mais do que de B para A. E não disse, exatamente,

porque lhe faltava clareza sobre a relação entre a relação acreditar e a relação subordinada.

Ao expor a Teoria RM, Russell não distinguiu devidamente o fato de que apesar da

relação subordinada ser universal, por sua própria natureza, ela pode ser posta como relação

ligando logicamente os termos numa ocorrência de crença. Não se trata de duas relações

diferentes, nem de duas ocorrências que se contrapõem. Enquanto objeto da relação acreditar,

isto é, tomada em sua própria natureza, a relação subordinada é universal. E, nesse caso,

estamos no campo ontológico. Mas, enquanto instrumento da relação acreditar, a relação

subordinada é posta, logicamente, numa situação concreta de crença. Neste caso, não estamos

mais no campo ontológico, mas, sim, no campo lógico. Não se trata mais do que é a relação e

sim de como ela é aplicada, logicamente, como instrumento da relação acreditar.

Ora, como já foi mostrado, a relação acreditar aplica a relação subordinada sobre os

demais termos do juízo formando com eles uma hierarquia lógica vertical e também dando a

eles uma direção horizontal. Essa direção horizontal, porém, apesar de ter um lado

obrigatório, que é o fato dos lugares e dos papéis lógicos dos termos serem determinados pela

relação subordinada, ainda pode ser formada de modos diferentes se a subordinada for uma

relação assimétrica. Haja vista que, se os papéis lógicos dos termos são diferentes, então, será

possível colocar um termo ou outro em cada papel.

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Russell teve dois elementos essenciais em sua primeira versão da teoria RM para

vencer o Problema da Direção Estreita. Faltou-lhe apenas mais um. O primeiro elemento que

ele teve em suas mãos foi a distinção de tipos lógicos, aliada à distinção de relação simétrica e

relação assimétrica. E o segundo elemento foi a distinção de papéis lógicos diferentes nos

termos das relações assimétricas. Faltou-lhe uma noção precisa da relação entre as duas

relações, acreditar e a relação subordinada, que permitisse distinguir adequadamente o campo

em que cada uma opera e permitisse explorar a interação entre ambas na determinação da

Direção Estreita dos termos.

A distinção russelliana de tipos e a classificação de simetria e assimetria nos

permitem ver que a relação subordinada é um termo irremovível, pelo tipo, pela operação e/ou

pela ordem lógica que ocupa dentro da ocorrência da relação acreditar. Retomemos o caso

expresso pela frase (3):

(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

De acordo com a classificação multigrade de assimetria global e de acordo com a

classificação russelliana de assimetria heterogênea, podemos perceber que em (3) a relação

subordinada amar é irremovível. Haja vista que a relação acreditar comporta assimetria

global para os termos Otelo, Desdemona e Cássio, mas não para o termo amar. E, de modo

bastante similar, mesmo entre os relata da relação acreditar, amar ainda é irremovível do seu

lugar, pois sua relação com os demais relata é de assimetria heterogênea.

E a relação entre as duas relações, por sua vez, mostra que em suas ocorrências como

relação principal, acreditar opera no campo ontológico. Ela é criativa, no sentido ontológico

mesmo, e põe os seus termos em relações lógicas uns com outros, sem depender do fato deles

estarem ou não nessas relações no mundo. Já a relação subordinada, apesar de ter sua natureza

universal própria, é tomada logicamente pela relação acreditar e posta para operar movida por

esta última. Enquanto relação subordinada, ela não cria efetivamente um fato, ela serve de

termo lógico para que a relação acreditar possa criar. O que ela faz é determinar os lugares e

os papéis lógicos dos termos sobre os quais ela for aplicada, mas ela não decide quais são

esses termos. Ela é determinante, porque dá as condições e possibilidades lógicas de sua

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aplicação, mas, não é criativa nesse momento. A relação acreditar é que é criativa, mas, ela

deve respeitar as condições determinada pela relação subordinada. Uma relação determina a

operação da outra, não fica espaço para nenhuma arbitrariedade ilógica por parte da relação

acreditar, porque ela opera dentro das possibilidades determinações dadas pela subordinada.

Desse modo, também a acusação de que na Teoria RM a relação acreditar pode

colocar os termos aleatoriamente na relação subordinada e não distinguir uma crença da forma

aRb de uma crença da forma bRa, fica inaceitável. A relação acreditar serve-se da relação

subordinada para formar um juízo. Ela posiciona os termos e atribui a eles papéis lógicos

específicos, mas, não faz isso arbitrariamente. Ela é condicionada pela relação subordinada a

formar o juízo dentro das condições lógicas impostas pela relação subordinada que ela toma

como instrumento. O que ela escolhe é que termo deve desempenha um papel ou outro.

3.3.4 Revendo a dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na relação

subordinada

Agora que dispomos da possibilidade de classificar a relação acreditar como um

agente movente multigrade e a relação subordinada como um agente movido, podemos

também dar um rumo novo à dificuldade da identificação dos papéis lógicos dos termos na

relação acreditar. Como vimos em 2.2.2.1, quando situamos esta dificuldade, ela levanta a

seguinte questão: o que permite ao sujeito da crença atribuir corretamente os papéis lógicos

aos termos envolvidos pela relação subordinada? A resposta é que: a relação subordinada

oferece as condições e possibilidades para que o sujeito da crença atribua termos concretos

aos papéis lógicos e o sujeito da crença escolhe os termos compatíveis para cada papel lógico

de acordo com sua intenção.

Para isso, claro, o sujeito da crença precisa identificar em cada relação subordinada

os papéis lógicos que ela impõe aos seus termos. O que, de acordo com Russell, pode ser feito

de duas maneiras quando a relação é dual e assimétrica. A primeira foi a maneira foi

apresentado em The Principles, onde ele classificou os termos como sujeito e relatum. O

termo sujeito é aquele termo de onde e o relatum é aquele termo para o qual a relação

procede. Mas, devemos notar, essa classificação esbarra em algumas dificuldades. Para

percebê-las, tomemos o seguinte exemplo:

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(83) Otelo acreditar que o gato foi morto pelo carro.

Neste caso, o sujeito da relação ser morto por é o gato e o relatum é o carro.

Contudo, parece bastante estranho dizer que tal relação procede do gato para o carro naquela

ocorrência. Ou seja, nem sempre a relação dual assimétrica perfaz o movimento de ir do

sujeito para o relatum.

A segunda tentativa de caracterizar os termos da relação dual oferecida por Russell,

na terceira versão da teoria RM, consistiu em classificar o sujeito como o termo ativo e o

relatum como o termo passivo. Mas, de novo, essa classificação tem algumas dificuldades.

Tomemos o exemplo (84):

(84) Otelo acredita que a mesa é maior que a cadeira.

Na situação descrita pela frase (84), a relação subordinada ser maior que ocorre

como relação dual e assimétrica e nela o sujeito é a mesa e o relatum é a cadeira. Mas,

também nesse caso, parece estranho dizer que a mesa é o termo ativo e a cadeira é o termo

passivo. A mesa e a cadeira, simplesmente, são o que são. E, contestação similar pode-se

dizer também da relação ser morto por, descrita na frase (83), pois ali o sujeito é o gato e o

relatum é o carro, mas não parece certo dizer que o gato é o termo ativo naquela ocorrência.

Ao contrário, ele é o termo paciente.

As duas classificações oferecidas por Russell para os papéis lógicos dos termos da

relação dual assimétrica, portanto, apesar de atenderem a um bom número de casos, não

garantem uma classificação geral, capaz de identificar os papéis lógicos que os termos

desempenham em relações deste tipo. Ao que tudo indica, parece que isso se deve ao fato de

Russell tentar classificar o papel dos termos tomando como base alguma influência que os

termos possam exercer sobre a relação. No primeiro caso, por exemplo, o papel dos termos

consiste em demarcar o ponto de procedência e o término da relação. E no segundo caso, o

papel deles consiste em executar e sofrer a operação da relação.

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Ora, isso tem lá suas verdades, mas, não dá uma caracterização geral. No nosso

entender, Russell deveria partir da ação da relação sobre os termos. O que ela “põe” sobre os

termos caracteriza muito mais o papel que eles desempenham nela do que o que eles oferecem

a ela para que ela possa instanciar-se.

Desse modo, podemos classificar o papel lógico do sujeito da relação dual

assimétrica como o de ser o termo que instancia a propriedade central da relação que age

logicamente sobre ele, e podemos classificar o relatum como o termo com o qual a relação

dual liga o sujeito. Tal classificação pode dar conta das situações exemplificadas em (83) e

(84) e ainda pode ser ajustada para dar conta de casos com aridade acima de dois. Em (83),

por exemplo, o gato é o termo sujeito da relação porque ele é o termo que instancia a

propriedade central da relação ser morto por. E em (84) a mesa é o termo sujeito da relação

ser maior que porque ela é que instancia a propriedade central daquela relação naquela

ocorrência.

Já os casos em que a relação tem aridade maior que dois, podemos considerá-los de

duas maneiras. Primeiro, pode acontecer que a relação contenha mais de um termo como

sujeito como, por exemplo, nos juízos do tipo “x, y, z, F, w”. Neste caso, os termos que

desempenham o papel de sujeito são todos classificados como aqueles termos que instanciam

a propriedade central da relação que os envolve. Segundo, pode acontecer que a relação

envolva não um, mas, vários termos com o papel de relatum como, por exemplo, nos juízos

do tipo “x, F, y, z, w”. Neste caso, ela terá vários relata e não um relatum, mas, eles poderão

ser caracterizados tranquilamente como os termos aos quais a relação liga o termo sujeito por

meio de sua propriedade central.

Além disso, essa nossa maneira de caracterizar o termo sujeito de uma relação ajuda

a entender melhor a operação da relação acreditar. Considerando que a relação subordinada

determina as condições para que o termo que venha a ocorrer como sujeito, isto é,

instanciando sua propriedade central, o sujeito da relação acreditar, acquainted com a relação

subordinada, opera com ela escolhendo o termo que deseja como sujeito e o termo ao qual

deseja que ela ligue o sujeito. Ela determina as condições para que o sujeito da crença, ao

instanciar a relação acreditar, determine a direção dos termos.

Quanto aos casos das relações com aridade maior que dois, basta ao sujeito da crença

está acquainted com a relação e os termos a serem aplicados e identificar o papel lógico do

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seu sujeito, com seu respectivo lugar, na relação subordinada, que, pelas próprias exigências

dela, saberá identificar os papéis lógicos e os lugares dos termos relata. Considerando que

cada relação assimétrica simples atribui um papel único de sujeito, basta que o sujeito da

crença identifique esse papel e o seu lugar nas ocorrências da relação, que ele saberá aplicá-la.

E isso ele faz pela natureza lógica da relação que, estando ele acquainted com ela, lhe dá as

condições e possibilidades lógicas para que um termo venha a desempenhar o papel lógico de

sujeito, isto é, para que ele possa ser o termo que instancia sua propriedade central.

3.3.5 Revendo as dificuldades do simbolismo nas ocorrências da relação acreditar

A dificuldade central da representação simbólica da relação acreditar na Teoria RM,

como foi visto em 2.2.2.2, reside no desafio de encontrar um meio que, ao simbolizar as

ocorrências da relação acreditar, garanta a compreensão certa dos papéis lógicos e do número

de lugares que os termos ocupam na relação subordinada. A teoria russelliana das relações

propôs como saída dessas dificuldades o uso de uma regra sintática determinando que, numa

relação assimétrica dual, o primeiro lugar da relação pertence aos termos que desempenha o

papel de sujeito e o segundo lugar pertence ao termo que desempenha o papel de relatum.

Mas, como foi visto, isso convém às relações assimétricas duais apenas e, tanto a relação

acreditar não é uma relação dual, quanto, em muitos casos, a relação subordinada pode não

ser uma relação dual.

Por conseguinte, a superação daquelas dificuldades continua a demandar dois passos

de capital importância. Primeiro, que haja sinais que distingam corretamente os lugares dos

termos e a maneira como eles estão preenchidos quando mais de um termo compartilhar o

mesmo lugar e exercer o mesmo papel lógico na relação. Sinais que capturem os detalhes da

maneira como os termos estão estruturados logicamente pela relação acreditar na relação

subordinada. E, segundo, estabelecer algumas regras sintáticas que interpretem com clareza os

sinais e os lugares dos termos, identificando os papéis lógicos dos termos em seus respectivos

lugares.

A teoria multigrade, como pudemos perceber, oferece uma saída adequada para o

primeiro desses dois passos, distinguindo os lugares dos termos com o sinal de ponto e vírgula

e as posições que os termos ocupam quando compartilham o mesmo lugar com o sinal de

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vírgula. À sua proposta, nós só acrescentamos que os lugares dos termos se caracterizam

pelos papéis lógicos que os termos desempenham na relação estando dentro deles, não,

simplesmente, por formarem um grupo. E, com um breve ajuste, a regra sintática de

inspiração russelliana apontada acima nos permite dar o segundo passo, pois, de fato, a regra

sintática para interpretar os sinais e os lugares no simbolismo, identificando os papéis lógicos

dos termos na relação, só precisa determinar que o primeiro lugar, com um termo ou com

vários, de uma relação assimétrica pertence ao(s) termo(s) sujeito(s)188 daquela relação e que

os papéis dos termos nos lugares a seguir, com um termo ou com vários, são determinados

pela natureza da relação que os têm sob seu domínio logicamente.

Tendo presente isso, propomos quatro regras sintáticas para concretizar esses dois

passos e chegar a um simbolismo eficaz para a relação acreditar:

1º. PASSO

I. Como sugere o primeiro modelo de simbolismo apresentado em

2.2.2.2, usaremos os parênteses de ângulos “˂ ˃” para indicar que a ordem

dos termos é relevante, mas, somente para isso.

II. Como sugere a estratégia multigrade de Alex Oliver e Timothy

Smiley, usaremos o sinal de ponto e vírgula “;” para separar um lugar de

outro na relação e usaremos o sinal de vírgula “,” para separar uma posição

da outra quando vários termos compartilham o mesmo lugar.

2º. PASSO

III. Assumiremos que o primeiro lugar, com um termo ou com vários,

numa relação assimétrica pertence ao(s) termo(s) sujeito(s) daquela relação.

IV. Assumiremos que o papel lógico do(s) termo(s) nos lugares seguintes

é determinado pela natureza da relação que os governa logicamente.

Agora, tendo em mãos esses recursos simbólicos e essas regras sintáticas de

interpretação, consideremos de novo a ocorrência da relação acreditar indicada pela frase (3)

e acrescentemos as ocorrências descritas pelas frases (85)-(86), a fim de verificar se seremos

bem-sucedidos com esses novos recursos:

188 Devemos recordar aqui a flexibilidade de significado que a noção de “sujeito” tem na linguagem, quanto ao

modo ativo e passivo. No primeiro modo o sujeito é o agente da operação da relação (se ela fora assimétrica) e

no segundo modo o sujeito sofre a operação da relação assimétrica (se ela for assimétrica). De nossa parte,

porém, preferimos assumir que o sujeito de uma relação assimétrica é o termo que instancia a propriedade

central da relação que o rege logicamente.

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(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.

(3b) B ˂ o; L; d; c ˃

(85) Otelo acredita que Desdemona e Cássio atacaram Romeu e Julieta.

(85a) B ˂ o; A; d, c; r, j ˃

(86) Otelo acredita que Desdemona tem ciúmes de Cássio e Hypatia com Romeu

Julieta e Tebaldo.

(86a) B ˂ o; G; d; c, h; r, j, t ˃

A frase (3) expressa a instância da relação acreditar que tomamos como caso modelo

desde o início. Sua representação simbólica, indicada por (3b), representa a relação acreditar

como “B” e representa os termos Otelo, amar, Desdemona e Cássio, nesta ordem, como “o”,

“L”, “d” e “c”. Os parênteses de ângulos indicam que a ordem dos termos é relevante na

relação “B”e o sinal de ponto e vírgula indica a separação dos lugares onde cada termo se

encontra e desempenha um papel diferente dos demais. O que indica também que “B” é uma

relação de quatro lugares, com apenas um termo em cada lugar, e que o papel lógico de cada

termo pode ser identificado com as regras sintáticas III e IV.

Pela regra sintática III podemos identificar o papel lógico do termo “o”, no primeiro

lugar de “B”, a saber, o de sujeito da relação “B” e, pela regra sintática IV, podemos

identificar os papéis lógicos de “L”, “d” e “c”, a saber, que “L” é a relação subordinada e

funciona como agente movido pela relação principal “B” para ligar, o termo “d” ao termo “c”.

O que faz também com que “L”, sendo uma relação assimétrica, determine papéis lógicos

diferentes para os termos “d” e “c”. Assim, de modo análogo, pela regra sintática III, podemos

identificar o papel lógico do termo “d”, no primeiro lugar de “L”, a saber, o de sujeito da

relação “L” e, também pela regra sintática IV, podemos identificar o papel lógico de “c”, a

saber, o de relatum da relação “L” que tem “d” como sujeito.

A frase (85) expressa uma instância da relação acreditar com um pouco mais de

complexidade. Sua representação simbólica, indicada por (86a), representa a relação acreditar

como “B” e representa os termos Otelo, atacar, Desdemona, Cássio, Romeu e Julieta, nesta

ordem, como “o”, “A”, “d”, “c”, “r” e “j”. Os parênteses de ângulos indicam que a ordem dos

termos é relevante na relação “B”, o sinal de ponto e vírgula indica a separação dos lugares

onde os termos se encontram e desempenham papéis lógicos diferentes dos demais, e o sinal

de vírgula separa as posições dos termos que compartilham o mesmo lugar e o mesmo papel

lógico na relação. O que indica que “B” é uma relação de quatro lugares, mas com

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significativas diferenças em comparação com a situação anterior, que as regras sintáticas III e

IV permitem realçar.

Pela regra sintática III é possível identificar no simbolismo que o papel lógico do

termo “o”, no primeiro lugar de “B”, é o de sujeito da relação “B”. Enquanto que, pela regra

sintática IV, é possível identificar que o papel lógico da relação “A” é o de agente movido

pela relação “B” para ligar os termos “d”, “c”,“r” e “j” com sua capacidade lógica. O que faz

também com que a relação “A” imponha os papéis lógicos que sua natureza assimétrica

demanda para os termos “d”, “c”, “r” e “j”. Assim, de modo similar, pode-se identificar que

“d” e “c” compartilham o papel lógico de sujeito, ocupando o primeiro lugar daquela relação,.

E, igualmente, pode-se identificar que os termos “r” e “j” compartilham o papel lógico de

relatum, ocupando o segundo lugar de “A”.

A frase (86), finalmente, expressa uma instância da relação acreditar com um grau

de complexidade ainda maior, se comparada com as situações anteriores. Ela tem um lugar a

mais e os relata são estruturados em dois grupos distintos. Sua representação simbólica,

indicada por (87a), representa a relação acreditar como “B” e representa os termos Otelo, ter

ciúmes de... com ..., Desdemona, Cássio, Hypatia, Romeu, Julieta e Tebaldo, nesta ordem,

como “o”, “G”, “d”, “c”, “h”, “r”, “j” e “t”. Os parênteses de ângulos indicam que a ordem

dos termos é relevante na relação “B”, o sinal de ponto e vírgula indica a separação dos

lugares onde os termos se encontram e desempenham papéis lógicos diferentes dos demais, e

o sinal de vírgula separa as posições dos termos que compartilham o mesmo lugar e o mesmo

papel lógico na relação. O que indica que “B” é uma relação de cinco lugares, também com

algumas diferenças significativas, se comparada com a situação anterior, que as regras

sintáticas III e IV permitem realçar.

Pela regra sintática III é possível identificar no simbolismo que o papel lógico do

termo “o”, no primeiro lugar de “B”, é o de sujeito da relação “B”. Enquanto que, pela regra

sintática IV, é possível identificar que o papel lógico da relação “G” é o de agente movido

pela relação “B” para ligar os termos “d”, “c”, “h”, “r”, “j” e “t” com sua capacidade lógica. O

que faz também com que a relação “G” imponha os papéis lógicos que sua natureza

assimétrica demanda para esses termos. Assim, de modo similar ao que foi feito antes, pode-

se identificar que “d” é o sujeito da relação “G”, ocupando nela o primeiro lugar. E,

igualmente, pode-se identificar que os termos “c” e “h” compartilham um papel lógico e um

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lugar diferente, entre os relata da relação “G”, daqueles que compartilham os termos “r”, “j” e

“t”, conforme determina a natureza lógica da relação “G”.

Este modo de simbolizar as ocorrências da relação acreditar, claro, tem um forte

caráter ad hoc. Ele não expressa uma forma lógica da relação acreditar que seja válida para

todas as suas ocorrências, mas, ele se ajusta a todas as diferentes ocorrências da relação

acreditar envolvendo uma relação subordinada assimétrica. Sua desvantagem é que, por não

oferecer uma forma lógica única, ele não se presta às exigências do cálculo de predicados,

nem pode ser traduzido no simbolismo das n-uplas ordenadas. Contudo, ele tem vantagens

muito importantes. Ele pode capturar a estrutura interna das ocorrências da relação acreditar

em suas variadas situações. Pode capturar essa estrutura e possibilitar uma melhor

compreensão dos lugares e dos papéis lógicos que a relação acreditar impõe aos seus termos

ao agrupá-los numa unidade. E mais ainda. Ele permite destacar a centralidade e o papel

lógico que a relação subordinada tem nas ocorrências da relação acreditar, exigindo que, com

o auxílio das regras sintáticas adequadas, levemos em conta o caráter lógico-operante que ela

desempenha dentro do escopo da crença.

Uma última palavra sobre este simbolismo que ora propomos. No nosso entender,

este modo de simbolizar as ocorrências da relação acreditar atende a todos os seus casos de

ocorrências simples, isto é, aos casos em que ela envolve apenas uma relação subordinada.

Casos em que acreditar envolve duas relações subordinadas têm um grau maior de

dificuldade, porque a relação de subordinação fica mais complexa e a tarefa de simbolizar os

lugares/posições e identificar os papéis lógicos dos termos nas relações subordinadas fica

maior. E, apesar de acharmos que as regras sintáticas assumidas acima podem ser expandidas

para atender essas situações, não as enfrentaremos por enquanto. Elas serão o alvo da

continuidade de nossa Pesquisa.

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4 CONCLUSÃO

Terminando nossa exposição, queremos salientar, com a devida discrição, que o

cerne do nosso esforço foi mostrar que enxergamos de um jeito novo e promissor três

aspectos, que pareciam velhos e estéreis, capazes de recolocar a Teoria RM no centro do

debate filosófico com plena força e vivo interesse.

Primeiro, desde cedo, a Teoria RM foi alvo, de rigorosas e radicais críticas. Mas, ao

que parece, nenhuma das investidas contra ela percebeu que a raiz das dificuldades aludidas,

contra ela, estava na carência de uma boa distinção na natureza e no papel das operações da

relação acreditar e da relação subordinada. E, igualmente, nenhuma delas propôs alguma

saída que levasse essa lacuna a sério, como nós fizemos. De fato, a Teoria RM é um poderoso

rival do Realismo Proposicional e tem potencial para recolocar em bases novas toda a

metafísica da proposição. Mas, historicamente, ela foi pouco apreciada e prematuramente

impugnada pela supervalorização do Problema da Direção. E, uma vez que alcançamos uma

resposta adequada para este Problema e suas dificuldades adjacentes, nós deixamos ela em

condições de virar a página e voltar-se para questões mais centrais relativas à natureza da

proposição.

Segundo, as tentativas de solução para as dificuldades, tradicionalmente, aludidas

contra a Teoria RM, especialmente, as dificuldades relativas ao Problema da Direção dos

termos na relação acreditar, buscaram encontrar alguma luz nas teorias novas ou, pelo menos,

posteriores à publicação da Teoria RM. Nenhuma delas parece ter dirigido o olhar para o

acervo filosófico do passado. E foi isso que fizemos, identificando uma saída pertinente e

eficaz com o uso das noções de agente movente e agente movido, na metafísica de santo

Tomás, para superar as lacunas na compreensão da natureza e dos papéis da relação acreditar

e da relação subordinada na Teoria RM. Mostrando, a partir daí, que a Teoria RM é um aliado

forte na luta para desembaraçar a metafísica do juízo.

Terceiro as dificuldades de funcionamento da Teoria RM, decorrentes da falta de

clareza na compreensão das operações e dos papéis das duas relações, refletiam-se nas

tentativas de simbolizar logicamente as ocorrências da relação acreditar. E, uma vez que

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superamos essas dificuldades de compreensão das operações e da interação das duas relações

com o caminho aberto pelas noções tomistas, percebemos que a teoria das relações multigrade

de Alex Oliver e Timothy Smiley permitem alcançar um simbolismo lógico eficaz para as

ocorrências da relação acreditar, tratando-a como relação de aridade, número de lugares e

ordem lógica variáveis, capaz de ligar diferentes números de termos acima de dois em suas

variadas instanciações.

Os resultados obtidos, acreditamos, indicam que, cem anos após ter sido abandonada

por Russell, em 1918, a Teoria RM mostra que ainda continua tão fecunda e inusitada como

foi em seu primeiro aparecimento e que merece estar, de pleno direito, no centro do debate

filosófico. Até porque, tendo se desvencilhado do Problema da Direção, ela se apresenta como

alternativa, bastante contundente, do Realismo Proposicional. Capaz de responder a

problemas como o da unidade e o da representatividade na proposição, que, até então, têm

sido extremamente problemáticos para a sua Teoria Rival.

Além disso, os resultados que alcançamos também mostram que nosso modelo

explicativo funciona bem com as ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação

subordinada entre seus relata. A aplicação bem-sucedida dos resultados alcançados a

ocorrências em que a relação acreditar envolva duas relações subordinadas entre seus relata,

certamente, encontrará consideráveis dificuldades, principalmente, no campo do simbolismo

lógico. E nós pretendemos, na continuidade da Pesquisa, avançar em sua direção.

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