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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÓGICA E METAFÍSICA
José Marcos Gomes de Luna
UMA INTERPRETAÇÃO MULTIGRADE DA PRIMEIRA (E MELHOR)
VERSÃO DA TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA
Rio de Janeiro
2018
José Marcos Gomes de Luna
UMA INTERPRETAÇÃO MULTIGRADE DA PRIMEIRA (E MELHOR)
VERSÃO DA TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA
Tese apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós Graduação em Lógica e
Metafísica, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Guido Imaguire.
Rio de Janeiro, novembro de 2018
“Every judgement is a relation of a mind to
several objects, one of which is a relation”.
(Bertand Russell, 1913, p. 181)
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Guido Imaguire, pela indispensável orientação, pelo incentivo
no aprimoramento da Pesquisa e pela disponibilização de textos, preciosos, para os trabalhos
de elaboração desta Tese, meus Sinceros Agradecimentos.
Aos Professores(as) e Secretárias do Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica
(PPGLM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pela contribuição fundamental
nas Disciplinas cursadas, pelo apoio estrutural e pela convivência cordial, durante todo o
período da Pesquisa, meus Sinceros Agradecimentos.
Aos Profs. Drs. Dirk Greimann e Mário Augusto Queiroz Carvalho, que integraram a Banca
do Exame de Qualificação, pelas correções, observações e sugestões valiosas, meus Sinceros
Agradecimentos.
À Profa. Dra. Célia Cristina Patrício Teixeira e aos Profs. Drs. Fernando Raul de Assis Neto e
Marco Antônio Ruffino que, juntamente, com o Prof. Dr. Mário Augusto Queiroz Carvalho,
aceitaram participar da Banca Examinadora, meus Sinceros Agradecimentos.
A Dom Genival Saraiva de França (Bispo Emérito da Diocese de Palmares-PE), pela
liberação dos meus Ofícios canônicos a fim de que pudesse me dedicar à Pesquisa e pelo
generoso acompanhamento humano-afetivo durante todo o tempo da Pesquisa, meus Sinceros
Agradecimentos.
A Dom Nelson Francelino Ferreira (Bispo da Diocese de Valença-RJ), ao Pe. Gustavo Ribeiro
da Silva e ao Mons. Aroldo da Silva Ribeiro, bem como aos Padres amigos e Leigos da
Paróquia de N. Senhora de Copacabana e da Paróquia de São Judas Tadeu (em Anchieta),
pela acolhida fraterna, pela hospedagem e pelo incentivo nos anos de Pesquisa que passei no
Rio Janeiro, meus Sinceros Agradecimentos.
DEDICATÓRIA
Dedico esta Tese ao meu orientador, Prof. Dr. Guido
Imaguire, e aos meus pais, Heleno Gomes de Luna e
Josefa Gomes da Silva (in memoriam).
Ao primeiro, por ser para mim exemplo impar de
Filósofo, Pesquisador, Professor e Amigo.
E aos segundos, por serem para mim exemplo impar
de Trabalho, Persistência e Vida Cristã.
RESUMO
A Teoria do Juízo como Relação Múltipla, de Bertrand Russell, é uma promissora alternativa
ao Realismo Proposicional. Os ataques desferidos contra ela, desde que veio a público,
contudo, apoiaram-se em certos pressupostos metafísicos, bastante questionáveis, para
entender a relação acreditar e a relação subordinada, e enveredaram por um caminho
interpretativo que desemboca, sempre, de um jeito ou de outro, no Problema da Direção. O
objetivo desta Tese, porém, situa-se na direção oposta. Seu intuito é mostrar que, colocada em
bases metafísicas adequadas, a Teoria do Juízo como Relação Múltipla, é capaz de superar o
Problema da Direção, em seu tradicional desdobramento, como Problema da Direção Estreita
e Problema da Direção Larga e ainda pode responder a algumas dificuldades adjacentes ao
citado Problema da Direção, tais como as dificuldades da variação, as dificuldades na
identificação dos papéis lógicos dos termos na crença e as dificuldades para encontrar um
simbolismo formal pertinente para as ocorrências da relação acreditar. A Tese está dividida
em três Capítulos. No Primeiro deles, procuramos apresentar a Teoria russelliana do Juízo
como Relação Múltipla, destacando-se o rompimento de Russell com a Teoria do Juízo como
Relação Dual, as vantagens de sua primeira versão, os limites que impediram Russell de obter
sucesso com ela e a crítica de que ela esbarra, de modo intransponível, no Problema da
Direção. No Capítulo Segundo, apresentamos o Problema da Direção, considerando seu
tradicional desdobramento em Problema da Direção Estreita e Problema da Direção Larga e,
apresentamos também, duas linhas de dificuldades adjacentes ao Problema da Direção. A
primeira delas é alinha das dificuldades para lidar com a variação de aridade, do número de
lugares dos termos e da ordem lógica nas ocorrências da relação acreditar e, a segunda, é a
linha das dificuldades para relativas aos papéis lógicos dos termos na crença, quando a relação
subordinada é uma relação assimétrica, e também as dificuldades relativas a um simbolismo
formal bem sucedido para as ocorrências da relação acreditar. E, finalmente, no Capítulo
Terceiro, apresentamos uma base metafísica nova para pensar a Teoria do Juízo como
Relação Múltipla e para entender a operação da relação acreditar e da relação subordinada de
um jeito novo, capaz de responder aos Problemas e dificuldades, levantados no Capítulo
anterior.
Palavras-chave: Acreditar. Relação Dual. Relação Múltipla. Relação Subordinada. Aridade.
Agente Movente. Agente Movido. Multigrade.
ABSTRACT
The Judgement Theory as Multiple Relation by Bertrand Russell is a promissing alternative
for Propositional Realism. The attacks against the overmentioned Theory, since it has came to
public, however, supported upon certain metaphysical assumptions questionable enougthly, in
order to understand the believing relation and the subordinating relation, and have gone
trough an interpretative path that lands on, in a way or another, at the Dirction Problem. This
Thesis aim, however, in the opposite direction. Its aim is showing out that, on adequated
metaphical basis, the Judgement Theory as Multiple Relation is suitable to overcome the
Direction Problem, in its traditional unfolding, as Narrow Direction Problem and Wide
Direction Problem, and is still able to answer to some difficulties adjacent to the over
mentionenned Direction Problem, the difficulties regarding to the variation, the identification
of the logical roles of the terms in the believing and the difficulties to find out a formal
symbolism pertinent for the believing relation. The Thesis is divided into three Chapters. In
the First One, we have tried presenting the Russellian Theory of Judgement as Multiple
Relation, detaching Russell’s disruption in front of the Judgement Theory as Dual Relation,
Russell’s first version advantages, the limits that obstructed Russell from getting success from
that attempt and the criticism that it bumps in an untransposing way at the Direction Problem.
In the Second Chapter we have presented out the Direction Problem, taking into consideration
its traditional unrolling into strict Direction Problem and the Wide Direction Problem and we
have presented out two lines of difficulties, adjacent to the Direction Problem. The first one of
them is the difficulties line in order to deal with the arity variation, the terms places numbers,
the logical order in the believing relation occurrences, and the second one is the difficulties
line relative to logical roles of the terms in the believing, when the subordinate relation is an
asymmetrical relation as well as the difficulties referring to an well succeded formal
symbolism, regading to the believing relation occurrences. And, finaly, in the Third Chapter,
we have presented a new metaphysical basis for thinking out the Judgement Theoy as
Multiple Relation and in order to understand the operation of believing relation and the
subordinate relation in a new way, able for answering to the Problems and the difficulties
mentionned in the previous Chapter.
Key-words: To believe. Dual Relation. Multiple Relation. Subordinated Relation. Aridity.
Moving Agent. Moved Agent. Multigrade.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 A TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA ......................................... 21
1.1 A PRIMEIRA (E A MELHOR) VERSÃO DA TEORIA RM ................................... 22
1.1.1 Ruptura com a Teoria do Juízo como Relação Dual ................................................... 23
1.1.2 A natureza lógica da relação acreditar........................................................................ 26
1.1.3 Os relata da relação acreditar ..................................................................................... 31
1.1.3.1 Os relata da relação acreditar são de tipos lógicos diferentes ................................... 32
1.1.3.2 Os relata da relação acreditar desempenham papeis lógicos diferentes ................... 34
1.1.4 A relação de correspondência entre crenças e fatos .................................................... 36
1.2 AUMENTANDO AS DIFICULDADES: AS VERSÕES DE 1912 E 1913 .............. 44
1.2.1 A versão de 1912: direção e classificação dos termos na relação acreditar ............... 44
1.2.1.1 O realismo operante da relação acreditar ................................................................... 45
1.2.1.2 A relação entre acreditar e a relação subordinada ...................................................... 47
1.2.2 A versão de 1913: a forma lógica e as posições dos termos na relação ...................... 51
1.2.2.1 A relação acreditar como relação múltipla ................................................................. 51
1.2.2.1.1 Crenças não-permutativas ............................................................................... 57
1.2.2.1.2 Crenças permutativas ....................................................................................... 58
1.2.2.1.3 Complexos associados não-ambíguos ............................................................. 60
1.2.2.2 Os relata da relação acreditar na terceira versão ...................................................... 64
1.2.2.2.1 A forma lógica geral da relação e a determinação da direção dos termos ...... 64
1.2.2.2.2 As posições dos termos nas crenças permutativas .......................................... 66
1.2.2.2.3 A Direção da relação a partir de sua natureza lógica ...................................... 70
1.2.2.2.4 A tentativa russelliana de encontrar um simbolismo formal para a relação
acreditar .......................................................................................................... 73
1.3 A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA VERSÃO E A CRÍTICA À TEORIA RM ...... 79
1.3.1 A vantagem da primeira versão da Teoria RM............................................................ 79
1.3.2 A lacuna que impediu o sucesso de Russell na primeira versão da Teoria RM........... 83
1.3.3 A crítica à Teoria RM .................................................................................................. 84
1.3.3.1 George Frederick Stout................................................................................................ 85
1.3.3.2 Nicholas Griffin............................................................................................................ 87
1.3.3.3 Russell Wahl................................................................................................................ 91
1.3.3.4 Alexander Miller.......................................................................................................... 92
1.3.3.5 Samuel Lebens ............................................................................................................ 94
1.4 SUMARIZANDO ............................................................................................................. 97
2 O PROBLEMA DA DIREÇÃO DOS TERMOS E SUAS DIFICULDADES
ADJACENTES ............................................................................................................ 99
2.1 O PROBLEMA DA DIREÇÃO NOS RELATA DA RELAÇÃO ACREDITAR............. 100
2.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção ............................................ 101
2.1.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção em Russell ......................... 101
2.1.1.2 Divergências na apresentação do Problema da Direção nos críticos ........................ 104
2.1.1.3 Olhando além das divergências: a raiz do Problema ................................................. 106
2.1.2 O Problema da Direção Estreita ................................................................................ 107
2.1.2.1 A solução russelliana para o Problema da Direção Estreita na primeira versão da
Teoria RM ................................................................................................................ 108
2.1.2.2 A crítica de Griffin à solução russelliana do Problema da Direção Estreita na primeira
versão da Teoria RM ................................................................................................. 108
2.1.2.3 Insuficiência da solução russelliana e da crítica de Griffin à solução russelliana do
Problema da Direção Estreita .................................................................................... 110
2.1.3 O Problema da Direção Larga ................................................................................... 111
2.1.3.1 A tentativa de fundamentar o Problema da Direção Larga ....................................... 112
2.1.3.2 Pressupostos centrais na fundamentação do Problema da Direção Larga................. 114
2.2 DIFICULDADES ADJACENTES AO PROBLEMA DA DIREÇÃO .................... 117
2.2.1 Dificuldades com variações ...................................................................................... 117
2.2.1.1 Dificuldades explicativas na variação de aridade da relação acreditar .................... 118
2.2.1.2 Dificuldades explicativas na variação do número de lugares da relação acreditar... 125
2.2.1.3 Dificuldades explicativas na variação da ordem lógica na relação acreditar ........... 127
2.2.2 Dificuldades na identificação dos papéis lógicos dos termos e na construção de um
simbolismo formal para a acreditar .......................................................................... 128
2.2.2.1 Dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na crença..................... 128
2.2.2.2 Dificuldade na construção de um simbolismo lógico formal eficaz para as ocorrências
da relação acreditar .................................................................................................. 130
2.3 A DIFICULDADE CENTRAL DOS SIMPATIZANTES DO PROBLEMA DA
DIREÇÃO: ASSIMILAR O PAPEL RELACIONANTE DA RELAÇÃO
SUBORDINADA ...................................................................................................... 137
2.4 SUMARIZANDO ..................................................................................................... 138
3 COISAS VELHAS E NOVAS DO TESOURO DA FILOSOFIA ........................... 140
3.1 PREENCHENDO A LACUNA DEIXADA PELA PRIMEIRA VERSÃO DA
TEORIA RM NA RELAÇÃO ENTRE AS DUAS RELAÇÕES ............................. 140
3.1.1 Afastando-se rota (i): O baú de antiguidades ............................................................ 142
3.1.1.1 O agente movente ...................................................................................................... 143
3.1.1.2 O agente movido ....................................................................................................... 145
3.1.1.3 Diversidade e cooperação nas operações de agentes diferentes ordenados entre si...147
3.1.1.4 Possíveis combinações de agentes diferentes ordenados entre si ............................. 149
3.1.1.4.1 Primeiro grupo: um agente movente e um ou vários agentes movidos .............. 149
a) Um agente movente e um agente movido ................................................................. 149
b) Um agente movente e dois agentes movidos ............................................................ 150
c) Um agente movente e três agentes movidos ............................................................. 150
3.1.1.4.2 Segundo grupo: dois agentes moventes (ou mais)e um ou vários agentes
movidos................................................................................................................ 151
a) Dois agentes moventes (ou mais) atuando individualmente com um agente movido (ou
mais de um do mesmo tipo) ........................................................................................... 151
b) Dois agentes moventes (ou mais) atuando coletivamente com um agente movido (ou
mais de um de diferentes tipos) ..................................................................................... 152
3.1.2 Afastando-se da rota (ii): o baú de ferramentas ........................................................ 153
3.1.2.1 A estrutura interna e a natureza lógica da relação na teoria das relações multigrade.153
3.1.2.1.1 As relações multigrade ........................................................................................ 154
3.1.2.1.2 A estratégia da mudança de sujeito e a estratégia multigrade ............................ 158
3.1.2.1.3 Distinguindo lugares e posições .......................................................................... 161
3.1.2.1.4 Um novo jeito de pensar a aridade ..................................................................... 163
3.1.2.1.5 Simetria global e simetria local ........................................................................... 165
3.1.2.2 A indicação da relevância na ordem dos termos ....................................................... 169
3.1.2.3 Evitando sinais com duas funções numa mesma ocorrência .................................... 173
3.2 VOLTANDO DO EXCURSO......................................................................................... 173
3.2.1 Relendo a natureza e a operação da relação acreditar na Teoria RM ...................... 174
3.2.1.1 A relação acreditar é um agente movente ................................................................ 174
3.2.1.2 A relação acreditar é um agente movente multigrade .............................................. 176
3.2.1.2.1 Acreditar é uma relação multi-aridade ................................................................ 177
3.2.1.2.2 Acreditar é uma relação multi-ordem ................................................................. 178
3.2.1.2.3 Acreditar é uma relação multi-posição ............................................................... 178
3.2.1.2.4 Acreditar é uma relação multi-lugar ................................................................... 179
3.2.1.3 A relação acreditar é um agente movente multigrade criador.................................. 180
3.2.2 Relendo a natureza e a operação da relação subordinada na Teoria RM .................. 181
3.2.2.1 A relação subordinada em sua operação própria ...................................................... 182
3.2.2.2 A relação subordinada é um agente movido ............................................................. 182
3.2.2.3 A relação subordinada é um agente movido determinante e determinado................. 184
3.3 REVENDO O PROBLEMA DA DIREÇÃO E SUAS DIFICULDADES
ADJACENTES................................................................................................................ 186
3.3.1 Crítica à crítica da Teoria RM ................................................................................... 186
3.3.1.1 Respondendo à crítica de Stout ................................................................................. 187
3.3.1.2 Respondendo à crítica de Griffin .............................................................................. 190
3.3.1.3 Respondendo à crítica de Wahl ................................................................................. 192
3.3.1.4 Respondendo à crítica de Miller ............................................................................... 193
3.3.1.5 Dialogando com a defesa de Samuel Lebens ............................................................ 195
3.3.2 Revendo as dificuldades explicativas da variação na relação acreditar.................... 197
3.3.2.1 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação
da ordem lógica das duas relações ............................................................................ 198
3.3.2.2 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação
da aridade das duas relações ..................................................................................... 199
3.3.2.3 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação
do número de lugares das duas relações.................................................................... 200
3.3.3 Revendo o Problema da Direção da relação acreditar na Teoria RM ...................... 203
3.3.3.1 A verticalidade hierárquica entre acreditar, a relação subordinada e os demais termos
na determinação da Direção Larga............................................................................. 203
3.3.3.2 Força efetiva da relação acreditar e exigências lógicas da relação subordinada na
determinação da Direção Estreita.............................................................................. 205
3.3.4 Revendo a dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na relação
subordinada ............................................................................................................... 207
3.3.5 Revendo as dificuldades do simbolismo formal nas ocorrências da relação
acreditar..................................................................................................................... 210
4 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 215
5 REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 217
13
INTRODUÇÃO
A Teoria do Juízo como Relação Múltipla, assumida publicamente por Russell entre
os anos de 1910 e 1918, no cerne de sua proposta, sustenta três pontos fundamentais.
Primeiro, que proposições são complexos dependentes da mente e não entidades objetivas
subsistentes. Segundo, que o objeto do juízo é plural e não singular. E, terceiro, que acreditar
é uma relação múltipla que liga um sujeito não a uma proposição, enquanto entidade
previamente estruturada, mas, aos constituintes básicos da proposição, com os quais forma e
assere um conteúdo proposicional.
A Teoria do Juízo como Relação Múltipla (daqui em diante “Teoria RM”) tem sido,
desde o início, alvo de rejeição “com uma unanimidade rara entre os filósofos”.1 E, dentre as
falhas apontadas contra ela, a mais citada de todas é o chamado Problema do Sentido. O
Problema que, depois da célebre classificação feita por Nicholas Griffin, também ficou
conhecido como o “Problema da Direção”.2
Este Problema da Direção, no entanto, consolidou-se no meio filosófico de dois
modos, distintos e interligados, que também foram classificados por Griffin como “o
Problema da Direção Estreita” e “o Problema da Direção Larga”.3 O primeiro, está
relacionado com o risco de o sujeito da crença formar o complexo “Cássio ama Desdemona”
quando, na verdade, pretendia formar o complexo “Desdemona ama Cássio”. Ou seja, ele tem
a ver com a possibilidade de o sujeito da crença colocar os objetos nos lugares errados na
relação subordinada. Já o Problema da Direção Larga, tem a ver com o risco de o sujeito da
crença formar “complexos” do tipo “ama Desdemona Cássio”, ao invés de complexos como
“Desdemona ama Cássio”, isto é, ele tem a ver com o risco de o sujeito da crença colocar a
1 GRIFFIN, 1985, p.214. 2Idem., 1980, p. 135. 3 Preferimos manter as expressões “Problema da Direção Estreita” e “Problema da Direção Larga” porque
notamos que elas estão mais presentes nos textos dos críticos, do que as expressões “problema do sentido
estreito” e “problema do sentido largo”.
14
própria relação subordinada no lugar errado e formar “complexos” sem nenhum sentido
lógico.
Este Problema da Direção, em seus dois aspectos tradicionais que acabamos de
indicar, voltamos a insistir, é o Problema mais citado dentre as críticas contra a Teoria RM.
Quando se começa a examinar as críticas contra a Teoria RM, logo se percebe, um crítico
acentua o Problema da Direção Estreita, outro crítico acentua o Problema da Direção Larga. E
a lista pode prosseguir indefinidamente. Ainda que um crítico ou outro aponte outros
problemas na Teoria RM, por primeiro, porém, ele aponta o Problema da Direção. De modo
que, dada sua abrangência no meio crítico e sua importância para testar o poder de fogo da
Teoria RM, desmascarar as inadequadas bases metafísicas e superar as acusações feitas pelo
Problema da Direção, em seu duplo aspecto já referido acima, será o alvo central de nossa
Tese.
Para atingir este objetivo a que nos propomos, vamos seguir um caminho de mão
dupla, composto de dois percursos, distintos e interligados. O primeiro percurso será voltado
para as bases metafísicas da relação subordinada. Em sua travessia, por uma mão, seguiremos
e analisaremos a posição de Russell e dos críticos da Teoria RM, no tocante á relação
subordinada e, na contramão, traremos bases metafísicas novas, capazes de superar os déficits
da Teoria RM proposta por Russell na primeira versão publicada e capazes de superar os
ataques dos críticos relativos à relação subordinada.
Nesse primeiro percurso, então, por uma mão, mostraremos que Russell e os críticos
da Teoria RM enveredaram por uma problemática maneira de tratar a natureza e o papel
lógico da relação subordinada num escopo crença. Decisão esta que os levou a abraçar um
tipo de Problema da Direção fundamentado precariamente. E, na contramão, procuraremos
mostrar que, se a maneira como eles tratam relação subordinada for mesmo levada a sério,
então, o Problema da Direção desperta duas linhas de dificuldades adjacentes a ele, que
indicaram o quanto seus pressupostos são inadequados. Trata-se da linha de dificuldades da
variação e da linha de dificuldades com a identificação dos papéis lógicos dos termos e com o
simbolismo formal. A primeira linha refere-se às dificuldades para explicar a variação de
aridade, de número de lugares e de ordem lógica nas ocorrências da relação acreditar. E a
segunda linha refere-se à dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na crença
e à dificuldade de encontrar um simbolismo formal que expresse a estrutura interna das
ocorrências da relação acreditar, com eficácia.
15
O segundo percurso do nosso caminho, por sua vez, será feito para perseguir as bases
metafísicas da relação principal, a relação acreditar. Nele, nós também seguiremos a mesma
dinâmica. Por uma mão, analisaremos as posições de Russell e dos críticos da Teoria RM
sobre a relação acreditar e, pela contramão, traremos novas bases metafísicas para superar os
déficits da proposta de Russell na primeira versão da Teoria RM e para superar as críticas
relativas à relação acreditar.
Nesse segundo percurso, então, por uma mão, mostraremos que Russell trata a
relação acreditar como uma relação múltipla e que isso é compatível com uma leitura que
acomode a variação de aridade, de número de lugares dos termos e de ordem lógica em suas
ocorrências, enquanto que os críticos da Teoria RM procuram tratá-la, simplesmente, como
uma relação que posiciona, lado a lado, os termos. E, na contramão, mostraremos que a
posição de Russell na primeira versão da Teoria RM pode ser potencializada com uma base
metafísica “nova” que a torne capaz de superar as lacunas deixadas por Russell e mostraremos
também que as duas relações são relacionantes, porém, em campos diferentes, e que elas
operam de modo integrado. A relação subordinada determina logicamente os papéis lógicos
dos termos e determina como deve ser o posicionamento deles para que possam desempenhar
esses papéis, enquanto que a relação acreditar determina os termos que desempenharam os
papeis lógicos nas ocorrências efetivas.
Por conseguinte, chamamos a atenção para o fato de que nossa Tese trabalha numa
perspectiva sistemática, não histórica. O fato de considerarmos a primeira versão da Teoria
RM melhor que as outras pode sugerir que nossa abordagem seja histórica, mas não é. Ela é
de caráter sistemático. Nós consideramos a primeira versão superior às demais versões, não
porque ela seja a primeira cronologicamente ou porque permita uma integração considerável
com o conjunto da obra russelliana. Esses pontos não nos interessam no momento. O que nos
interessa é apenas o fato de que a primeira versão da Teoria RM se presta a uma leitura
melhorada tal que, sanando-se alguns déficits deixados por Russell, torna-se capaz de passar
vitoriosa pelo Problema da Direção, Estreita e Larga, bem como de superar as dificuldades
adjacentes a esse Problema, que apontamos acima.
A nossa abordagem, então, procura lançar um olhar sistemático sobre as
apresentações da Teoria RM proporcionadas por Russell, visando perscrutar não o lugar e o
funcionamento dela dentro do horizonte do pensamento russelliano. Mas, considerando o que
de melhor ele apresentou sobre a Teoria RM, nossa abordagem procura mostrar o que ele
16
ainda deveria ter feito para que a Teoria RM pudesse funcionar e superar os ataques sofridos.
Para isso, analisamos as posições de Russell e dos vários críticos da Teoria RM e
conseguimos extrair um caminho novo, capaz de proporcionar uma interpretação da Teoria
RM apta a superar o Problema da Direção e as dificuldades adjacentes a ele.
Dito isso, a fim de expor nossa posição com a devida clareza, desejamos, antes de
tudo, traçar uma classificação geral das ocorrências da relação acreditar, isto é, fazer alguns
recortes que delimitem o tipo de ocorrências da relação acreditar para o qual estaremos
voltados e também estabelecer alguns usos técnicos que possibilitem uma exposição mais
concisa e favoreçam uma compreensão menos cansativa do texto.
Em primeiro lugar, à luz da Teoria RM, de modo geral, podemos classificar as
ocorrências da relação acreditar em dois grandes grupos, que podem ser ilustrados com as
seguintes frases:
(1) Otelo acredita que Desdemona é fiel.
(2) Otelo acredita que a fidelidade é um valor.
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
(4) Otelo acredita que o amor causa sofrimento.
As frases (1) e (2) exprimem duas crenças de Otelo que representam o grupo das
“crenças qualitativas”, isto é, as ocorrências da relação acreditar que atribuem uma qualidade
a um objeto ou a um conceito. E as frases (3) e (4), por sua vez, exprimem duas crenças de
Otelo que representam o grupo das “crenças relacionais”, isto é, as ocorrências da relação
acreditar que atribuem uma relação entre certos objetos ou entre certos conceitos.
Dentre esses dois grandes grupos de ocorrências da relação acreditar, nós vamos
concentrar nossa atenção apenas no segundo grupo, isto é, nas ocorrências que formam
crenças relacionais. E, visto que as ocorrências da relação acreditar que formam crenças
relacionais podem ser subdivididas em ocorrências que envolvem uma relação subordinada e
em ocorrências que envolvem mais de uma relação subordinada, vamos nos deter,
17
exclusivamente, no primeiro subgrupo, a saber, aquele em que as ocorrências da relação
acreditar envolvem uma relação subordinada, apenas.
Depois, considerando que as ocorrências da relação acreditar que envolvem uma
relação subordinada podem ser expressas na linguagem ligando nomes ou descrições
definidas, vamos dedicar nossa atenção apenas àquelas ocorrências que, quando postas na
linguagem, envolvem apenas nomes. E assim, para resumir, nossa atenção vai dirigir-se
seletivamente para as ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação subordinada
que, por sua vez, envolvem apenas termos objetos nomeados na linguagem. Tais ocorrências
da relação acreditar, que Russell considerava como sendo as “mais simples”,4 serão
caracterizadas pelas seguintes restrições:
• elas não vão conter conectivos lógicos como, por exemplo, “e”, “ou”, “se, então” etc;
• elas não vão conter mais de uma relação subordinada, nem mais de uma ocorrência da
mesma relação subordinada, numa mesma instanciação;
• elas não vão conter termos que a linguagem expressa por meio de descrições
definidas.
Em segundo lugar, além destes recortes que delimitam o tipo de crença para o qual se
volta o nosso interesse, queremos fazer também duas escolhas técnicas. A primeira, consiste
em fixar como caso padrão para o nosso trabalho a ocorrência da relação acreditar expressa
pela frase (3), “Otelo acredita que Desdemona ama Cássio”. O que não significa que não
testaremos nossas posições, ao longo do texto, com instâncias da relação acreditar que
envolvam outras relações e outros relata, obedecendo aos limites assumidos acima. E a
segunda escolha, consiste em fixar um uso técnico para as seguintes expressões: “termos da
relação”, “relação principal”, “relata da relação principal”, “sujeito da relação”, “relação
subordinada” e “termos objetos da relação principal”. Essas expressões, portanto, serão
usadas com os seguintes significados técnicos:
4 “Assim, uma relação é ‘múltipla’ Se as proposições mais simples em que ela ocorre são proposições
envolvendo mais de dois termos (não contando a relação)” (RUSSELL, 1910a, p.180. Tradução e grifo nossos).
18
- “termos da relação” – são todos os itens ligados por uma relação quando ela instancia-se.
São os elementos mesmos da ocorrência da relação e não itens lingüísticos. Por exemplo,
Otelo, Desdemona, a relação amar e Cássio são termos da relação acreditar em (3); por
conseguinte, insistimos, não entenda-se a expressão “termos” como referindo-se a itens
linguísticos;
- “relação principal” – é a relação que constitui um complexo ou unidade geral ao instanciar-
se, aquela que, numa ocorrência liga efetivamente todos os termos por sua própria natureza
como, por exemplo, a relação acreditar no caso expresso por (3);
- “relata da relação principal” – são os termos com os quais a relação acreditar liga o seu
sujeito numa ocorrência concreta. No caso que tomamos como modelo, por exemplo, os
relata da relação principal são Desdemona, a relação amar e Cássio;
- “sujeito da relação” – é o termo, objeto ou conceito, que desempenha o papel que Russell
chamou de referent numa relação assimétrica. Ele é o termo que instancia a propriedade
principal nas relações deste tipo. Por exemplo, Otelo é o sujeito da relação acreditar em (1)-
(4), Desdemona é o sujeito da relação amar em (3) e o amor é o sujeito da relação causar em
(4). Assim, enfatizamos de novo, a característica lógica principal do sujeito nessas e em todas
as relações assimétricas é que ele é o termo que instancia a propriedade central da relação que
age logicamente sobre ele numa ocorrência;
- “relação subordinada” – é a relação que ocorre dentro dos relata de uma relação principal e
age de modo subordinado a ela, como faz, por exemplo, a relação amar em (3).
- “termos objetos” – são aqueles termos sobre os quais o sujeito da relação principal aplica a
relação subordinada como, por exemplo, Desdemona e Cássio em (3) ou amor e sofrimento
em (4).
Tendo presente os parâmetros e recortes assumidos acima, então, estruturamos nossa
Tese em Três Capítulos configurados do seguinte modo. O Primeiro Capítulo está dividido
em três seções. Na primeira seção apresentamos a Teoria RM contida na primeira versão
publicada por Russell. Iniciamos destacando a ruptura de Russell com a Teoria do Juízo como
Relação Dual e depois acentuamos a originalidade e a natureza da relação acreditar,
entendida como relação múltipla, propostas naquela versão da Teoria RM. Depois,
apresentamos a classificação russelliana dos termos relata nas ocorrências da relação
19
acreditar, destacando a diferença de tipos lógicos existente entre eles, bem como, a diferença
nos papeis lógicos que eles desempenham numa instancia da relação acreditar, quando a
relação subordinada é uma relação assimétrica. E terminamos a seção apresentando a teoria
russelliana da correspondência que, se existir, torna a crença verdadeira. Com a apresentação
desta teoria da correspondência, então, já construímos nosso primeiro argumento em favor da
superioridade da primeira versão da Teoria RM, mostrando que ela põe em relevo a
importância e o papel da relação subordinada, enquanto relação, nas ocorrências da relação
acreditar.
Na segunda seção, apresentamos em linhas gerais as outras duas versões da Teoria
RM e, como nosso segundo argumento em favor da reivindicação de que a primeira versão é
melhor, mostramos que essas versões posteriores caem num erro grave ao tratar da relação
subordinada. E a terceira versão, em particular, se enreda com a tarefa de identificar os
lugares e as posições dos termos, bem como com a tarefa de oferecer um simbolismo formal
para as ocorrências da relação acreditar. Por fim, encerramos esta segunda seção colocando
as bases para um terceiro argumento em favor da superioridade da primeira versão, que será
desenvolvido no Capítulo Terceiro. Trata-se da sofisticada teoria da simetria/assimetria
oferecida por Russell na terceira versão, e que também põe em relevo a importância e o papel
da relação subordinada nas ocorrências da relação acreditar.
A terceira seção contém três partes. A primeira parte desta seção apresenta uma
amostra da crítica à Teoria RM, destacando a atenção que os críticos dão ao Problema da
Direção e destacando a base comum, situada numa certa compreensão da relação subordinada,
usada por todos eles para entender esse Problema e para interpretar a Teoria RM. A segunda
parte desta seção desenvolve mais um argumento em favor da superioridade da primeira
versão da Teoria RM, salientando quatro razões a partir da ideia central de que a relação
subordinada deve ser tratada como uma relação relacionando. E, a terceira parte desta seção
salienta a lacuna deixada por Russell na compreensão da relação entre acreditar e a relação
subordinada, num juízo concreto, bem como, no entendimento de como as operações das duas
relações se harmonizam na formação do juízo.
O Segundo Capítulo, por sua vez, está estruturado em quatro seções que visam
apresentar o nosso Problema central e as dificuldades adjacentes a ele, para os quais, no
Capítulo Seguinte, pretendemos oferecer uma resposta. A primeira seção apresenta o
Problema da Direção. Ela começa tratando da tarefa, nada fácil, de dizer claramente em que
20
consiste, realmente, esse Problema e constata que nem Russell nem os críticos da Teoria RM
oferecem uma definição para ele. Todos se limitam a ilustrá-lo com exemplos. Nós, porém,
enxergamos uma base comum presente em seus esforços ilustrativos, uma base comum que
permite assumi-lo como sendo a tarefa do sujeito da crença definir uma ordem precisa para os
termos no juízo quando a relação subordinada é assimétrica.
Em seguida, passamos a enfrentar o Problema da Direção em suas formas
tradicionais, a saber, como “Problema da Direção Estreita” e “Problema da Direção Larga”.
No primeiro caso nós assumimos o Problema da Direção Estreita, apoiados naquela base
comum tirada da maneira como Russell e os críticos da Teoria RM ilustram tal Problema,
como sendo a falta de um fundamento objetivo para que o sujeito da crença, num ato de juízo,
possa definir uma direção ou outra para os termos quando ele instancia a relação acreditar
envolvendo uma relação subordinada assimétrica. E, no segundo caso, nós consideramos o
Problema da Direção Larga como sendo o risco de o sujeito da crença colocar a relação
subordinada no lugar de um dos termos e questionamos a tentativa de fundamentar a acusação
de que a Teoria RM, além de não ter como evitar, resulta nessa consequência.
A segunda seção considera as duas linhas do que chamamos de “dificuldades
adjacentes” ao Problema da Direção. A primeira linha enfrenta as dificuldades da variação de
aridade, do número de lugares e do grau de ordem lógica da relação acreditar. Se a relação
subordinada for considerada um termo comum na crença, a dificuldade da variação assume
três aspectos muito inquietantes que agravam o Problema da Direção e inviabilizam toda e
qualquer instanciação da relação acreditar que envolva uma relação subordinada assimétrica.
A dificuldade da variação na aridade dos termos, por exemplo, consistirá numa
indeterminação insustentável, pois, a “ocorrência” da relação acreditar será apenas uma mera
lista de termos. Já a dificuldade da variação no número dos lugares dos termos nas
ocorrências da relação acreditar, desembocará numa sequência indefinida de lugares
desconexos, fazendo emergir a dificuldade da identificação dos papeis lógicos dos termos e
agravando ainda mais o desafio de encontra simbolismo formal para as ocorrências da relação
acreditar. E a dificuldade da variação de ordem lógica, além da dificuldade de reduzir a
ocorrência da relação acreditar a uma lista de termos numa única ordem lógica, causa uma
indefinição total para compreender em que ordem lógica a relação acreditar está ocorrendo.
Por sua vez, na segunda linha de dificuldades ao Problema da Direção, enfrentamos
as dificuldades relativas à identificação dos papeis lógicos dos termos e à construção de um
21
simbolismo formal adequado para as ocorrências da relação acreditar. Desafios cruciais para
a Teoria RM. O primeiro deles consiste na tarefa de estabelecer uma caracterização segura e
um caminho lógico claro para a identificação dos papeis lógicos desempenhados pelos termos
numa ocorrência da relação acreditar. A superação desse desafio é de fundamental
importância porque, uma vez superado, ele deixa uma excelente base lógica para que o sujeito
da relação acreditar possa, num ato de crença, determinar a direção dos termos.
O segundo desafio dessa linha de dificuldades, por sua vez, enfrenta a tarefa de
encontrar um simbolismo formal eficaz para as ocorrências da relação acreditar. A
capacidade de variabilidade nas ocorrências da relação acreditar, tanto em número de termos
objetos quanto em número de termos universais, indica que ela não tem uma forma lógica
fixa. O que não quer dizer que não se possa alcançar um simbolismo adequado para entender
melhor a estrutura interna de suas ocorrências. Um simbolismo capaz de representar com
satisfatória clareza a configuração alcançada por ela a cada instância determinada.
A terceira seção apresenta a dificuldade que os simpatizantes do Problema da
Direção encontram para lidar com o papel relacionante da relação subordinada num ato de
crença. E, finalmente, a quarta seção fecha o Capítulo Segundo sumarizando os passos dados
nas seções anteriores. Seu objetivo central é destacar que tanto o Problema da Direção quanto
as dificuldades adjacentes a ele emergem da compreensão deficitária da natureza e da
operação lógica da relação subordinada. Este passo põe em evidência a necessidade de
chegarmos a uma compreensão justa da relação subordinada e da relação entre ela e a relação
acreditar num ato de crença, abrindo passagem para o trabalho do Capítulo Seguinte.
Por fim, o Terceiro e Último Capítulo da Tese está estruturado em três seções. A
primeira seção afasta-se do assunto da Teoria RM, a fim de considerar duas teorias do
patrimônio filosófico capazes de oferecer os suportes lógico-metafísicos necessários para uma
releitura bem sucedida da primeira versão da Teoria RM. Essas teorias são, respectivamente,
oferecidas pelas noções clássicas de agente movente e agente movido e pela interpretação das
relações multigrade de Alex Oliver e Timothy Smiley. A segunda seção retorna ao assunto da
Teoria RM e aplica as novas bases lógico-metafisicas, obtidas na seção anterior, à Teoria RM.
E, finalmente, na terceira seção deste Terceiro Capítulo, de posse da nova leitura, alcançada
com os recursos das seções anteriores, revisitamos os críticos da Teoria RM apresentados no
Capítulo Primeiro, bem como os Problemas e dificuldades apresentados no Capítulo Segundo
e mostramos que os resultados obtidos permitem responder a todos eles satisfatoriamente.
22
1 A TEORIA DO JUÍZO COMO RELAÇÃO MÚLTIPLA
A Teoria RM apareceu de forma expressiva e foi defendida por Russell em três
valiosos textos.5 O primeiro deles foi On The Nature of Truth and Falsehood, de julho de
1910, publicado como capítulo VII de Philosophical Essays.6 O segundo foi Truth and
Falsehood, de 1912, publicado como capítulo XII de The Problems of Philosophy.7 E o
terceiro foi o manuscrito inacabado Theory of Knowledge, de 1913.8 Em cada um desses
textos, porém, Russell apresentou uma versão da Teoria RM na qual, mantendo a ideia central
de que acreditar é uma relação múltipla, apresentou novidades interessantes, muito embora,
nem sempre favoráveis.
Das três versões da Teoria RM, contrariando a crítica filosófica que, nivelando
demais a importância dessas três apresentações, tratou-as, de modo geral, como fracassadas
tentativas de encontrar uma saída para o Problema da Direção,9 nós entendemos que a
primeira é melhor e mais favorável a uma releitura bem sucedida, por três razões
fundamentais. Primeira, porque nela a relação subordinada pode ser tratada como um termo
especial em sua operação e no nível lógico que ocupa em comparação com os outros termos
da crença. Segunda, porque nela, tanto a relação acreditar quanto a relação subordinada,
podem ser vistas de modo operante, apesar de operarem em campos diferentes quando
ocorrem formando uma unidade de crença. E, a terceira razão, é porque nela tanto a operação
5Além desses textos, Russell ainda fez algumas sintéticas e importantes apresentações da teoria RM:
(i) Na introdução dos Principia Mathematica (RUSSELL, 1910b, p. 46);
(ii) em Knowledge by Acquaintance and Knowledge by Description, texto apresentado à Aristotelian
Society em 1911, e reimpresso em 1917 como capítulo X de Mysticism and Logic com o acréscimo de uma
nota de rodapé (RUSSELL, 1911, p. 159);
(iii) e, finalmente, numa das Conferências de 1918, publicadas em Logic and Kowledge (RUSSELL, 1918,
p. 216-227). 6 RUSSELL, 1910a, p. 170-185. 7 Idem., 1912, p. 186-203. 8 Idem., 1913, p. 105-155. 9 “As três versões restantes, como veremos, diferem no modo como Russell enfrenta a diferença entre ‘A
acredita que R(a, b)’ e ‘A acredita que R(b, a)’” (GRIFFIN, 1985, p. 214-215. Tradução nossa).
23
da relação acreditar, quanto a operação da relação subordinada, são vistas de modo mais
complexo e mais rico do que pensaram os críticos.
Para justificar nossa posição, contudo, convém situar devidamente as três versões da
Teoria RM. Isso nos fará entender melhor as razões pelas quais assumimos que a primeira
delas é mais preferível que as outras, como também o que precisa ser feito para superar o
Problema da Direção, em seu duplo aspecto, e as dificuldades a ele adjacentes que constituem
nosso interesse geral aqui. De modo que, visando esses passos, dividiremos este Capítulo em
três seções. A primeira seção é dedicada à primeira versão da Teoria RM e estrutura-se em
subseções destinadas a tratar, respectivamente, da ruptura de Russell com a Teoria do Juízo
Dual, das características lógicas da relação acreditar, dos termos relata da relação acreditar e
da teoria da correspondência.
A segunda seção, por sua vez, é dedicada ás outras duas versões da Teoria RM. Cada
uma delas ainda estrutura-se em subseções que buscam capturar as novidades, as vantagens e
as desvantagens, respectivamente, da segunda e da terceira versão da Teoria RM. E,
finalmente, a terceira e última seção deste Capítulo é dedicada a considerar, respectivamente,
a crítica à Teoria RM, a justificativa do nosso apreço pela primeira versão da Teoria RM e a
constatação dos pontos que impediram o sucesso de Russell com ela. Pontos estes, que
procuraremos superar no Capítulo Terceiro, quando procuraremos desvencilhar a Teoria RM
dos obstáculos que, até então, impediram-na de vencer o Problema da Direção.
1.1 A PRIMEIRA (E MELHOR) VERSÃO DA TEORIA RM
Na primeira versão da Teoria RM, publicada em 1910,10 Russell procurou expor
cuidadosamente a natureza lógica da relação acreditar e as significativas mudanças ocorridas
no lugar do seu relatum, em comparação com a recém abandonada Teoria do Juízo Dual. A
relação acreditar passou a ser vista como uma relação múltipla, ligando um sujeito não a uma
proposição, mas aos vários termos da proposição. E onde antes havia uma entidade complexa
10 Vários comentadores destacam a existência de manuscritos que revelam Russell trabalhando na teoria da
relação múltipla já em 1906 (Cf. CONSUEGRA, 2005, p. 250. Confira ainda: GRIFFIN, 1985, p. 213). De modo
geral, porém, é consenso que a primeira versão publicada e cuidadosamente defendida é a de 1910. Assim sendo,
tomaremos ela como ponto de partida.
24
como relatum passou a haver vários relata estruturados numa unidade pela operação da
relação acreditar.
Em vista de considerar bem a novidade dessa nova posição e as mudanças que ela
provocou na Teoria Russelliana do Juízo, vamos dividir esta seção em quatro subseções. A
primeira para tratar do rompimento de Russell com a Teoria do Juízo Dual, a segunda para
tratar da relação acreditar e suas principais propriedades lógicas, a terceira para tratar dos
relata da relação acreditar, seus tipos e funções, e a quarta para tratar da relação de
correspondência entre a unidade formada pelos relata da relação acreditar e o fato que (se
existir) torna aquela unidade verdadeira.
1.1.1 Ruptura com a Teoria do Juízo como Relação Dual
A Teoria RM surgiu da ruptura de Russell com a Teoria do Juízo como
Relação Dual. Uma ruptura muito significativa, porque é parte de uma mudança mais ampla e
mais importante no desenvolvimento do pensamento de Russell, que foi a mudança do
realismo radical para o realismo moderado ocorrida por volta de 1905. Desse modo, para
entender as raízes da sua ruptura com a Teoria Dual, bem como das novidades que a Nova
Teoria proporcionou, será valioso, de início, recordarmos as características gerais do seu
realismo radical e as dificuldades que ele encontrou durante o tempo que tentou defende-lo,
para tomar a decisão de superá-lo, pois, desse esforço para superá-lo surgiu a Teoria RM.
O realismo radical fora assumido por Russell a partir de 1889, após o seu
rompimento com o idealismo. Sua característica central reside na convicção de que toda
palavra que ocorre numa sentença, salvo as expressões lógicas, têm um significado. O
significado de um nome ou de um termo singular é o objeto que ele representa e o significado
de um verbo ou de um adjetivo é a propriedade ou a relação que ele representa.11 Foi à luz
desse princípio, então, e durante essa fase, que Russell aderiu a uma ontologia meinongiana,
aceitando a natureza não-existencial de certos objetos e estabelecendo uma distinção entre ser
e existir, a fim de poder falar sobre objetos não-existentes ou negar a existência deles sem cair
em contradição lógica.12
11 RUSSELL, 1903, §46. 12 Ibidem., §427.
25
Tal como fizera Meinong, ele assumiu a ideia de que ser é uma propriedade que
pertence a todo termo que pode ser pensado, a tudo que pode ser contado como um ou tudo
que pode ocorrer numa proposição e, até mesmo, a toda proposição. Já existir é diferente de
ser, existir é uma propriedade que pertence a algumas entidades apenas. Nem tudo que há na
ordem do ser tem a propriedade existir. Algumas coisas, por exemplo, começam a existir em
determinado momento e outras deixam de existir, pois existir é uma propriedade das coisas
que estão relacionadas com um dado seguimento espaço-temporal.
Desse modo, Russell aceitou de bom grado a ideia de que não somente os termos
integrantes das proposições têm ser, mas, também que as proposições têm ser. Ou seja, que
proposições são entidades platônicas objetivas.13 Entidades não-mentais e não-linguísticas,
que servem como significado das sentenças e como objetos de crenças. E, além disso, elas
também são os legítimos portadores dos valores de verdade. Consideremos essas
características um pouco melhor.
Ao afirmar que proposições são entidades não-mentais, Russell queria dizer que elas
são entidades que pertencem à ordem do ser, não do existir. Ele queria dizer que elas não
precisam ser pensadas para existir, porque elas independem da mente. Elas são entidades
objetivas, compostas igualmente, de entidades objetivas, que são os objetos e os conceitos,
não de palavras ou pensamentos. Pode-se dizer mesmo que elas são pedaços da realidade,
aqueles pedaços da realidade que são os significados das sentenças. Russell chegou a dizer
que “algumas proposições são verdadeiras e algumas são falsas, exatamente, como algumas
rosas são vermelhas e algumas são brancas”.14
Ainda de acordo com o realismo radical assumido por Russell, proposições são
entidades não-linguísticas, isto é, elas são entidades compostas das próprias coisas e dos
conceitos objetivos, não de palavras. Os conceitos e as coisas são os significados das palavras
e as proposições são os significados das sentenças. E como proposições são compostas de
objetos do mundo, as proposições verdadeiras se identificam com os fatos, isto é, elas existem
no mundo, enquanto que as proposições falsas apenas subsistem, pois, elas são compostas de
objetos e coisas que não existem no mundo na maneira como estão estruturados nelas.
13 RUSSELL, 1903, §427. 14 Idem., 1973, p. 75.
26
Além disso, para o idealismo radical, proposições existem como entidades
verdadeiras ou falsas, isto é, elas são os verdadeiros portadores dos valores de verdade. Uma
proposição, sustentava Russell naquela fase, é qualquer coisa que pode ser verdadeira ou
falsa.15 Uma proposição verdadeira liga os constituintes do mesmo modo em que eles estão
ligados no mundo e uma proposição falsa liga os constituintes de modo que eles não têm
correspondência no mundo. De modo que verdade e falsidade são propriedades das
proposições. Estas, são verdadeiras em si, porque relatam os termos adequadamente, isto é, de
modo correspondente a um fato do mundo, ou são falsas em si, porque relatam os termos
inadequadamente, isto é, de modo que não corresponde a nenhum fato do mundo.
Ao lado dessa concepção de proposição, ainda na fase do realismo radical, Russell
também assumiu a Teoria do Juízo que considera o ato de julgar ou acreditar como “uma
relação de dois lugares, mantida entre uma pessoa e uma proposição”.16 O que implicava dizer
também que, além de ser uma relação de dois lugares, a relação acreditar é uma relação de
aridade fixa, que liga o sujeito da crença a um objeto singular. De modo que, se quiséssemos
representar a estrutura de suas ocorrências num simbolismo formal, teríamos algo do tipo “B
(S, P)”, onde o elemento B representa a relação acreditar como relação que liga o sujeito S ao
objeto P, que é uma proposição.
Aconteceu, porém, que essa Teoria do Juízo Dual entrou em conflito com a teoria da
verdade como correspondência sustentada por Russell. De fato, como afirma Nicholas Griffin,
considerando que Russell admitiu haver ser nas proposições falsas, tanto quanto nas
proposições verdadeiras, “fica muito difícil ver como a verdade de uma proposição consiste
em sua correspondência com a realidade”.17 Haja vista que, naquela concepção de juízo e de
proposição, as crenças falsas também correspondem á realidade, pois, elas também são
entidades que existem objetivamente tanto quanto as proposições verdadeiras.
Realmente, se proposições falsas existem objetivamente tanto quanto proposições
verdadeiras, então, não há nenhuma diferença ontológica entre elas. Os dois tipos de
proposições têm ser igualmente. Acreditar numa proposição verdadeira ou acreditar numa
proposição falsa é estar relacionado com uma entidade existente objetivamente e a
correspondência existirá, infalivelmente, nos dois casos. Por que razão devemos preferir
15 RUSSELL, 1903, § 13. 16 WAHL, 1986, p. 383. 17 GRIFFIN, 1985, p. 214.
27
acreditar nas proposições verdadeiras e não nas falsas? Que diferença faz acreditar numa
proposição verdadeira ou numa proposição falsa?
A resposta de Russell a questões desse tipo, naquela ocasião, foi algo bastante
próximo do relativismo e ele logo percebeu que teria de abandonar aquela Teoria do Juízo
Dual, bem como a sua concepção de proposição. De fato, a resposta de Russell consistiu em
assumir que, não havendo nenhuma diferença ontológica entre proposições falsas e
proposições verdadeiras, as pessoas escolhem as proposições verdadeiras por razões éticas
apenas, isto é, elas escolhem as proposições verdadeiras porque “é bom acreditar em
proposições verdadeiras e é mal acreditar em proposições falsas”.18
Esta decisão, claro, rapidamente incomodou Russell e ele procurou modificar tanto a
sua Teoria do Juízo, como a sua concepção de proposição. Esta deixou de ser considerada
uma entidade objetiva e passou a ser vista como uma construção da mente no ato de acreditar.
E a relação acreditar deixou de ser considerada “uma relação de dois lugares, mantida entre
uma pessoa e uma proposição, e passou a ser vista como uma relação de muitos lugares,
mantida entre uma pessoa e vários objetos”.19
Nesta Nova Teoria do Juízo, como veremos a partir de agora, a relação acreditar é
uma relação múltipla. Ela não somente tem vários lugares e envolve vários termos, mas,
também é uma relação de aridade variável. Quando um sujeito a instancia, por exemplo, ele
está em relação com vários termos e não com um. De modo que, no tocante ao pressuposto
central da antiga posição, que considerava a proposição como o objeto do juízo, Russell
declara o seu ultimato ao afirmar que, “no sentido em que é suposto ser o objeto do juízo,
‘proposição’ é uma falsa abstração, pois, o juízo tem vários objetos e não um”.20
1.1.2 A natureza lógica da relação acreditar
O epicentro das mudanças na Teoria do Juízo de Russell ao abandonar a Teoria
Diádica do juízo foi a mudança na concepção da relação acreditar ou julgar. Ela deixou de
18 “It is good to believe true proposition, and bad to believe false ones”. (RUSSELL, 1904, p. 474, itálicos
nossos). 19 WAHL, 1986, p.385. 20 RUSSELL 1910b, p. 46.
28
ser considerada uma relação dual e passou a ser considerada uma relação múltipla.21 Enquanto
relação dual ela era vista como uma relação que ligava dois termos apenas, numa ocorrência
simples, mas como relação múltipla ela passou a ser vista como uma relação que liga um
sujeito a vários termos. Compreender a novidade sugerida por Russell nesta concepção de
relação acreditar e explorá-la adequadamente é de fundamental importância para entender a
Teoria RM apresentada na primeira versão.
Russell inicia sua apresentação do que consiste a relação múltipla julgar ou acreditar
afirmando:
A teoria do juízo que estou defendendo é que o juízo não é uma relação dual da
mente para um objeto singular, mas, uma relação múltipla da mente para vários
outros termos com os quais o juízo está relacionado.22
Aqui, nesta apresentação inicial do juízo como relação múltipla, já podemos perceber que,
para ocorrer em instâncias concretas, a relação acreditar conta com possibilidades e limites
bastante peculiares e interessantes. Alguns deles são compartilhados com outras relações
outros não. Entre suas possibilidades, de modo especial, destacam-se três: ela pode ligar um
sujeito a vários termos, ela pode ligar um sujeito a termos de tipos lógicos diferentes e ela
pode colar esses termos efetivamente criando uma unidade de crença. Vejamos isso melhor.
Em primeiro lugar, acreditar é uma relação capaz de ligar um sujeito a vários
termos. Ponto em que Russell é muito insistente:
Assim, se eu julgo que A ama B isto não é uma relação de mim para o “amor de A
por B”, mas, uma relação entre mim e A e amar e B.23
Nesta exemplificação dada por Russell, a relação acreditar ocorre como uma relação de
quatro termos, a saber, ele, que é sujeito do juízo, os objetos A e B e a relação amar. Mas ela
21 “A teoria do juízo que estou defendendo é que o julgar não é uma relação dual da mente para um objeto
singular, mas uma relação múltipla da mente para os vários outros termos com os quais o juízo está envolvido”
(RUSSELL, 1910a, p. 180, tradução nossa). 22 RUSSELL, 1910a, p. 180. 23 Ibidem., p. 180.
29
pode variar na quantidade e ocorrer envolvendo mais termos. Quantos termos exatamente?
Russell não disse. Ele só determinou que devem ser mais de dois, mas, não estabeleceu um
limite máximo de aridade para ela.24 Ou seja, mesmo que Russell não tenha dito
expressamente, pela sua apresentação, podemos ver que uma das características centrais da
relação acreditar é que ela é uma relação de aridade variável. Ela pode tanto ocorrer, por
exemplo, como “Otelo acredita que Desdemona é fiel”, quanto como “Otelo acredita que
Desdemona luta com Cássio e Alexandre”, onde, na primeira situação ele envolve três termos
(Otelo, Desdemona e a propriedade ser fiel) e na segunda situação ela envolve cinco termos
(Otelo, Desdemona, a relação lutar com, Cássio e Alexandre). E a variação de aridade pode
prosseguir com instâncias ainda maiores.
Em segundo lugar, ela é capaz de ligar um sujeito a termos de tipos lógicos
diferentes. Na citação feita acima, por exemplo, a relação acreditar ocorre ligando o sujeito
aos objetos A e B e à relação amar. A e B são particulares e amar é um universal. E esta
capacidade que a relação acreditar tem de ligar um sujeito a objetos particulares por meio de
uma relação, estende-se a todas as suas ocorrências formando crenças relacionais. Com isso,
podemos identificar um dado constante na estrutura lógica de suas ocorrências, elas sempre
formam hierarquias lógicas que envolvem três níveis lógicos de termos. Dito de outro jeito,
ainda que a relação subordinada seja de segunda ordem ou de ordem superior, a ocorrência da
relação acreditar vai apresentar uma estrutura hierárquica que envolve três níveis lógicos, a
saber, o nível em que ela ocorre, o nível da relação subordinada e o nível dos termos ligados
por meio da relação subordinada.
E, em terceiro lugar, ao ligar seus termos, a relação acreditar pode criar fatos
bastante peculiares. Ao ligar seus termos, ela os unifica efetivamente numa unidade
complexa. Assim, como afirma Russell, quando alguém acredita que Carlos I morreu em sua
cama, a relação acreditar está de fato ligando esses termos. É um fato que aquele sujeito
acredita que Carlos I morreu em sua cama, ou seja, é um fato que esses termos estão ligados
na crença daquela pessoa. Mas esses termos não estão ligados assim fora daquela crença. E se
estivessem, ainda assim, estariam ligados na crença formando um complexo mental. Portanto,
quando a relação acreditar ocorre de fato, ela age efetivamente, ela cria um complexo
unificando os termos mentalmente e este complexo formado por ela pode ter uma
24 “Daremos o nome ‘relações múltiplas’ àquelas relações que requerem mais de dois termos”. (Ibidem., p.180.
Tradução nossa)
30
correspondência no mundo ou não. Muitas vezes, os termos deste complexo podem estar
ligados assim apenas nela.
Em nossa pesquisa, porém, notamos que os críticos deram bastante atenção à
capacidade da relação acreditar proposta por Russell variar de aridade, mas, deram pouca
atenção à sua capacidade de ligar termos de tipos diferentes e, menos ainda, à sua capacidade
de colar, efetivamente, os termos numa ocorrência efetiva. Stout (1914-15), por exemplo,
assumiu que quando acreditar ocorre como uma relação múltipla, ela forma uma unidade
envolvendo sempre mais de dois termos. “A multiplicidade não está na relação, mas nos
termos”.25 A relação, propriamente falando, é uma relação singular. O que significa dizer que
ela é uma e a mesma relação sempre em suas ocorrências, os termos (múltiplos) é que variam.
Diferentemente de Stout, Nicholas Griffin (1985) achou que a variação de aridade
envolvida na relação acreditar proposta por Russell tem um sério problema. Segundo ele,
Russell teria que permitir diferentes relações para cada ocorrência da relação acreditar
envolvendo uma aridade diferente ou admitir que ela é uma relação de aridade variável. E, no
seu entender, Russell teria que rejeitar esta última possibilidade, “pois sua lógica não deixa
espaço para relações sem aridade definida”.26 Mas, com isso, Griffin apenas justifica sua
acusação de que Russell teria que rejeitar a possibilidade de tratar acreditar como uma
relação de aridade variável, pois, isso só justifica que a lógica de Russell não tem espaço para
relações sem aridade definida. Isso não nos impede de aceitar que a maneira como Russell
apresenta a relação acreditar permite compreendê-la como uma relação de aridade variável,
que pode ser devidamente interpretada numa lógica que comporte relações dessa natureza.
As posições de Stout e Griffin são valiosas porque elas põem em relevo a
importância do assunto da variação de aridade envolvida na relação acreditar, mas, elas
deixam intocada a questão da capacidade que a relação acreditar tem de acomodar essa
variação. E é fato que ela consegue acomodar a variação de aridade, formando uma unidade, a
cada ocorrência com aridade diferente. O que ela precisa é ser justificada nessa capacidade de
variar de aridade, não apenas constatada ou negada, e isso nós o faremos no capítulo terceiro
quando tratarmos da relação entre acreditar e a relação subordinada. Antes disso, porém,
precisamos notar que, até onde pudemos ver, ainda não foi dada a devida atenção à
25 STOUT, 1914-1915, p. 339. 26 GRIFFIN, 1985, p. 218.
31
capacidade da relação acreditar ligar termos de tipos lógicos diferentes e de colar os termos,
de modo peculiar, quando os liga em instâncias efetivas.
A relação acreditar, como dissemos, tem a capacidade de ligar termos de tipos
lógicos diferentes, significa dizer que ela pode variar não somente de aridade, mas, também
de ordem lógica. Ela pode, por um lado, assumir uma ordem lógica igual ou superior a dois,
dependendo dos termos que ela envolve, haja vista que entre eles sempre há um termo de
primeira ordem lógica ou de ordem lógica superior. E, por outro lado, ela pode formar uma
hierarquia com os termos que ela envolve, aplicando um termo sobre outro, de acordo com a
natureza e a ordem lógica deles. O que mostra que acreditar não é uma relação caótica
logicamente em seu comportamento vertical, mas, que ela tem o mesmo comportamento
lógico de outras relações capazes de variar de ordem lógica em suas ocorrências.
Além da capacidade de ligar termos de tipos lógicos diferentes, percebemos também
que não se deu a devida atenção à capacidade que a relação acreditar tem de criar fatos ao
ligar e colar os termos. Esta capacidade revela a refinada força metafísica de sua operação,
muitas vezes, capaz até mesmo de ligar termos que não se encontram ligados no mundo. Ela
indica aquilo que mais interessava a Russell com a Teoria RM, a saber, que não há uma
entidade chamada “proposição”, previamente estruturada, mas, que a relação acreditar reúne
seus termos e cria a proposição, no ato de julgar, independentemente dos termos dessa
proposição estarem ou não unidos no mundo.
Em contrapartida a tudo isso, apesar da importância dessas possibilidades, a relação
acreditar também revela três limites que não podem passar despercebidos. Primeiro, a relação
acreditar liga um sujeito a vários termos, sendo um deles uma relação, juntando-os de uma só
vez num complexo de crença. Quando ela liga o sujeito aos vários objetos que se encontram
diante da mente do sujeito, separados e simultaneamente, ela os agrupa de uma só vez e forma
uma unidade de crença. Ela não pode ser várias instâncias de uma relação dual com cada um
dos termos, nem de uma relação com uma relação e seus termos já dados efetivamente.27
Se acreditar fosse várias instâncias de uma relação entre dois termos, ela não seria
uma relação com vários termos, mas sim um conjunto de várias ocorrências duais. E se a
relação acreditar fosse uma relação com uma relação já instanciada efetivamente, a crença de
Otelo que Desdemona ama Cássio, por exemplo, só seria possível se fosse verdadeira, isto é,
27 RUSSELL, 1910a, p. 174.
32
se existisse de fato o amor de Desdemona por Cássio. Por conseguinte, a relação acreditar só
pode ser uma relação com uma relação universal e outros termos logicamente compatíveis
com a operação que o sujeito pode fazer por meio dela, enquanto relação subordinada.
Isso revela um terceiro limite fundamental da relação acreditar, a saber, que ela não
pode ligar seus termos sem o concurso lógico de outra relação. Ela precisa tomar a seu serviço
a operação lógica de outra relação e aplicá-la sobre os demais termos. O que nos remete de
volta à questão de fundo: qual é mesmo o vínculo entre a relação acreditar e a relação
subordinada, uma vez que esta é uma relação universal e necessária para que ela possa
instanciar-se? A resposta de Russell foi bastante evasiva. Para ele o sujeito tem diante da
mente uma relação universal e os demais termos, separadamente, e junta-os numa crença.
Mas, faltou ele dizer qual é, de fato, o ligame entre a relação acreditar e a relação
subordinada a fim de que isso possa acontecer.
Esta lacuna perdurou durante todo o tempo em que Russell manteve a Teoria RM e
se agravou ainda mais quando, a partir da segunda versão, ele assumiu que a relação
subordinada é um simples termo da crença. Mas, nós pretendemos superar tanto uma coisa
quanto a outra no Capítulo Terceiro. Agora, porém, precisamos considerar com atenção os
relata da relação acreditar.
1.1.3 Os relata da relação acreditar
Na primeira versão da Teoria RM, Russell deixou claro que os relata da relação
acreditar são de dois tipos lógicos diferentes. Ele reconheceu que a relação subordinada tem
um papel decisivo na determinação da direção dos termos, embora não tenha definido com
clareza em que consiste a sua interação com a relação acreditar no cumprimento deste papel,
e reconheceu também que os termos desempenham papeis lógicos diferentes na relação
subordinada, quando esta é uma relação assimétrica. Curiosamente, porém, Russell não
explorou a fundo estes pontos e seus críticos parecem ter seguido o mesmo caminho, pois, até
onde pudemos avançar na pesquisa, não encontramos nenhum esforço, dele ou dos críticos,
para extrair as devidas conseqüências, tanto da distinção de tipos lógicos nos relata, quanto da
diferença dos papéis lógicos dos termos impostos pela relação subordinada, quando é uma
33
relação assimétrica. Consideremos, então, estes dois pontos separadamente, suas
conseqüências são valiosas para a Teoria RM.
1.1.3.1 Os relata da relação acreditar são de tipos lógicos diferentes
Segundo Russell, os termos com os quais o sujeito está em relação num ato de crença
são de dois tipos lógicos diferentes, a saber, particulares e universais. No caso das crenças
relacionais simples, que são as que nos interessam aqui, os particulares são os objetos do
mundo28 e os universais são as relações.29 O sujeito da crença pode entrar em contato com
eles de diferentes modos, na sensibilidade e na consciência, pode conhecer suas propriedades,
apreendê-los mentalmente e aplicar termos universais sobre termos objetos, conforme a
natureza deles permita que se combinem logicamente.
Um termo objeto pode ser ligado por uma relação a outro termo objeto ou a uma
qualidade. Mas ele tem limites ontológicos que precisam ser respeitados no ato da crença. Um
objeto não pode, por exemplo, instanciar outro objeto. Ele é único, individual, e com outro
objeto ele só pode manter algum tipo de relação.30 Ele também não pode ser instanciado por
um universal. Ele só pode instanciar um universal (se o universal for uma qualidade) ou ser
um termo na ocorrência de uma instância (se o universal for uma relação). Consequentemente,
não pode haver logicamente nenhuma crença que atribua um objeto a outro ou afirme que um
universal é instância de um objeto ou, simplesmente, que coloque um objeto ao lado de outro.
Quanto ao termo relação, ele é de um tipo lógico diferente daquele dos termos
objetos. Ele é, por natureza, uma entidade abstrata, que pode ser aplicada a termos objetos
diferentes e pode ocorrer, simultaneamente, em diferentes instâncias. Mas ele ainda pode ser
classificado em dois tipos lógicos diferentes. De acordo com sua natureza lógica, ele pode ser
uma relação simétrica ou assimétrica. As relações simétricas tanto podem separar seus termos
em lugares diferentes como, por exemplo, “João é irmão de Pedro”, como podem juntá-los
num único lugar sem nenhum prejuízo lógico, como “João e Pedro são irmãos”. As relações
assimétricas, porém, necessariamente precisam separar seus termos em lugares diferentes e só
podem instanciar-se ocorrendo entre eles. Mesmo que seus termos mudem de lugar e formem
um novo complexo lógico, elas ainda terão que continuar a ocorrer entre eles. Nunca podem
28 Russell não excluiu a possibilidade de crenças com relações envolvendo nomes vazios, mas elas constituem
um problema diferente do que nos ocupa aqui e por isso não trataremos delas. 29 RUSSELL, 1910b, p. 45. 30 IMAGUIRE, 207, p. 273.
34
juntá-los num único lugar, porque elas impõem uma direção a eles e determinam papéis
lógicos diferentes, para serem desempenhados em cada um dos lugares a que eles forem
atribuídos.
Convém notar também que as relações, simétricas ou assimétricas, têm limites. Elas
são aplicáveis a alguns termos e a outros não. As relações assimétricas, por exemplo, impõem
uma direção por meio dos papéis lógicos dados aos termos e só podem se combinar,
logicamente, com termos capazes de suportar esses papéis. A relação amar pode ilustrar
perfeitamente isso com os objetos Desdemona e Cássio. Ela pode se combinar com
Desdemona e Cássio e formar o fato que descrevemos como “Desdemona ama Cássio”
porque Desdemona é um termo capaz de assumir o papel de sujeito da relação amar e Cássio
é um termo capaz de assumir o papel de relatum. Mas, amar, não pode se combinar, digamos,
com as relações ser pai de e estar ao norte de. Não há nenhum fato possível que possamos
descrever como “ser pai de ama estar ao norte de”. As relações ser pai de e estar ao norte de
não comportam os papéis lógicos impostos pela relação amar.
E a mesma coisa vale também para relações que ocorrem como termos de outra
relação. Com algumas relações pode haver combinação lógica, com outras não. As relações
causar e transformar, por exemplo, podem se combinar com a relação ser um modo de e
formar o complexo lógico “causar é um modo de transformar”, mas não podem se combinar
com a relação ser pai de. Não há nenhum complexo lógico possível que possamos descrever
como “causar é pai de transformar”. Na relação ser pai de as relações causar e transformar
não suportam, respectivamente, os papéis lógicos de sujeito e relatum.
Desse modo, a distinção dos tipos lógicos nos termos que compõem os relata da
relação acreditar, indica que não pode haver um juízo de crença relacional se as exigências
lógicas decorrentes da natureza lógica dos dois tipos de termos não forem devidamente
respeitadas. Sem aplicar corretamente o termo relação dentro de suas possibilidades e
exigências lógicas a termos logicamente possíveis não haverá juízo de crença. No máximo,
haverá uma lista de termos. Se a relação julgada for assimétrica acreditar, necessariamente,
terá que atribuí-la a termos que lhe permitam estruturar-se com um sentido, isto é, deverá
aplicar-lhe a termos compatíveis com sua natureza lógica. E, consequentemente, ela terá que
ocorrer entre os objetos, impondo-lhes os diferentes papéis que sua natureza exige. Limite
este extremamente importante para ser observado quando tratarmos do Problema da Direção
Larga.
35
No caso descrito por (3), “Otelo acredita que Desdemona ama Cássio”, que tomamos
como exemplo padrão para trabalho, os termos que compõem os relata da relação acreditar
são os objetos denominados por “Desdemona” e “Cássio” e a relação subordinada amar.
Neste caso, Otelo está devidamente acquainted com cada um dos termos e reúne-os num juízo
de crença por meio da relação amar, que determina as suas condições de aplicação e os papéis
lógicos dos termos. Assim, a relação acreditar forma o complexo geral usando a relação amar
para ligar os termos numa direção lógica horizontal, de acordo com a natureza assimétrica da
relação amar e com os papéis lógicos que ela determina para os termos.
A constatação de que os termos que compõem o conteúdo da crença são de dois tipos
lógicos diferentes, portanto, deixa boas consequências para a Teoria RM. Ela revela que a
relação subordinada só pode ser aplicada aos termos objetos, nunca o contrário, e também
revela que, ao ser aplicada aos termos objetos, a relação subordinada é sempre de uma ordem
lógica superior a eles. Além disso, no caso da relação assimétrica, sua natureza também indica
que ela impõe papéis lógicos aos termos de maneira desigual. E, muito embora nem Russell
nem os seus críticos tenham explorado essas consequências, veremos, na terceira e última
seção deste Capítulo, que elas solapam as bases do Problema da Direção Larga e abrem
caminho para pensarmos como superar o Problema da Direção Estreita.
1.1.3.2 Os relata da relação acreditar desempenham papéis lógicos diferentes
Existem, pelo menos, duas maneiras básicas de distinguir os papéis lógicos, entre os
relata da relação acreditar, que não podem ficar despercebidas ou minimizadas. A primeira
delas é a distinção entre o papel lógico da relação subordinada e o papel lógico dos termos
ligados por essa relação subordinada, e a segunda é a distinção entre o papel lógico do termo
sujeito e o papel lógico do termo relatum, quando a relação subordinada é uma relação dual
assimétrica.
Para compreender bem a importância da primeira dessas duas modalidades de
distinções dos papéis lógicos entre os relata da relação acreditar na Teoria RM, convém levar
em conta a teoria das relações de Russell. Pois, a sua afirmação, ao tratar da relação
subordinada na primeira versão da Teoria RM, de que “podemos distinguir dois ‘sentidos’
36
numa relação, conforme ela vá de A para B ou de B para A”31 é uma aplicação direta de sua
teoria das relações. E, de acordo com sua teoria, relações e objetos são entidades que
pertencem a tipos lógicos diferentes.
De acordo com sua teoria, se uma relação assimétrica envolver dois termos, por
exemplo, ela ocorrerá como relação de primeira ordem, o papel dela será o de relatar os
termos e o papel dos termos será o de serem relatados. Contudo, também nas ocorrências em
que a relação ocorre como relação de segunda ordem ou de ordem superior essa distinção de
papeis continua presente. O papel da relação será o de relatar e o papel dos termos, mesmo
sendo eles propriedades ou relações universais, será o de serem relatados. Por conseguinte, é
preciso levar isso em conta quando tratamos da relação acreditar, pois, o sujeito toma uma
relação como subordinada, numa instância efetiva da relação acreditar, será esta relação
subordinada quem determinará as condições para que a crença possa relatar os termos e a
primeira dessas condições é que os termos sobre os quais o sujeito da crença pretende aplicar
a relação subordinada suportem o papel de serem relatados por ela.
Por sua vez, a segunda maneira de distinguir os papéis lógicos dos relata numa
ocorrência da relação acreditar, a que nos referimos acima, a distinção entre os papéis lógicos
dos termos objetos, acontece quando a relação subordinada é assimétrica e dual. Neste caso, a
relação tem um sentido ou direção para os papéis lógicos que ela impõe aos termos. O termo
de onde a relação parte é o sujeito e o termo onde a relação termina é o relatum da
relação.32Os papéis lógicos de sujeito e relatum, portanto, são inerentes à relação assimétrica
dual e estão presentes em todas as suas ocorrências. Não há direção nas relações assimétricas
duais que não tenha termos desempenhando esses dois papéis.
Consequentemente, esses dois papéis lógicos impostos aos termos são um excelente
critério para que o sujeito da relação acreditar possa construir logicamente unidades de
crenças que envolvam uma relação assimétrica dual. Tudo que ele precisa é poder operar com
a relação subordinada e os termos capazes de suportar o papel de sujeito e de relatum, a fim
de aplicá-los aos lugares certos. E como acreditar é uma relação epistêmica, isso acontece
quando, estando acquainted com a relação e os objetos adequados, o sujeito pode reuni-los
naturalmente e formar crenças, atribuindo objetos aos papéis lógicos determinados por aquela
relação.
31 RUSSELL, 1910a, p. 184. 32 RUSSELL, 1903, p. 96.
37
Um dos ganhos mais importantes dessa distinção dos papeis lógicos dos termos nas
relações assimétricas duais consiste em perceber que os termos têm lugares certos para
ocorrerem numa relação assimétrica dual e poderem desempenhar um papel lógico
determinado. E tanto o lugar do termo que desempenha o papel de sujeito como o lugar do
termo que desempenha o papel de relatum são determinados pela natureza da relação. Por
conseguinte, a relação acreditar, ao envolver uma relação assimétrica dual, terá que respeitar
isso e operar com essas exigências. Ela poderá escolher qual objeto ocorre num lugar ou
noutro na relação subordinada, mas não poderá mudar o papel que o termo deve desempenhar
num lugar e noutro.
Assim, se a relação subordinada for uma relação dual assimétrica e de primeira
ordem, então, ela só poderá envolver objetos e somente objetos poderão desempenhar nela o
papel de sujeito ou de relatum. O sujeito da relação acreditar só poderá escolher qual objeto
desempenhará um papel e qual desempenhará o outro. Os lugares para eles são determinados
pela relação subordinada. Caso ela inverta os lugares dos termos na relação subordinada,
saberá que inverteu os papéis desempenhados pelos termos também se estiver devidamente
acquainted com aquela relação. Com base nisso, como exemplo, podemos olhar para o caso
que tomamos como padrão no início e dizer que o juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio
é diferente do juízo de Otelo que Cássio ama Desdemona por dois motivos. No primeiro caso
Otelo põe Desdemona no lugar de sujeito da relação amar e põe Cássio no lugar do relatum
da relação amar. Enquanto que no segundo caso Otelo inverte a direção, põe ambos em
lugares opostos e, consequentemente, desempenhando os papéis opostos.
Lamentavelmente, porém, Russell também não explorou a fundo esta consequência
da distinção dos papéis lógicos dos termos na ocorrência das crenças que envolvem uma
relação assimétrica dual. Seria preciso, por exemplo, explicar como funcionam logicamente
os lugares dos termos quando numa ocorrência a relação contém um e quando ela contém
vários objetos desempenhando o mesmo papel lógico. Por isso, como veremos no Capítulo
Terceiro, nós devemos e iremos explorar esse caminho. Ele abre uma trilha promissora para
explicar o funcionamento da Teoria RM e para sair do Problema da Direção Estreita.
1.1.4 A relação de correspondência entre crenças e fatos
38
De acordo com a Teoria RM, uma crença é verdadeira se ela corresponde a um fato e
é falsa se ela não corresponde a nenhum fato. Mas em que consiste exatamente essa relação de
correspondência? Russell a apresentou de dois modos básicos ao longo das três versões da
Teoria RM. Na primeira e na segunda versão ela foi apresentada como uma relação de
coincidência lógica dos termos e sua ordem na relação acreditar com os termos e sua ordem
no fato. Já na terceira versão ela foi apresentada como uma função dos termos da relação
acreditar e sua ordem, nos termos do fato correspondente e sua ordem. Consideremos melhor
uma apresentação e outra.
Na primeira versão da Teoria RM, a relação de correspondência foi apresentada do seguinte
modo:
O objeto complexo “correspondente” requerido para tornar o nosso juízo verdadeiro
consiste de A relatado a B pela relação que estava diante de nós no nosso juízo.
Nesta maneira de Russell apresentar a relação de correspondência entre a crença e o fato,
antes de tudo, devemos notar que a relação subordinada aparece no jogo da relação de
correspondência como um ponto de Arquimedes, isto é, como um ponto que equilibra os dois
lados da correspondência. Afinal de contas, a correspondência que torna a crença verdadeira
se dá quando o termo A está relatado ao termo B “pela relação que estava diante de nós no
juízo”.33
Ora, duas coisas muito importantes para a Teoria RM decorrem desse jeito de ver a
relação de correspondência. A primeira delas é que, tal qual um ponto arquimediano, que
indica equilíbrio entre dois corpos, para que haja correspondência entre a crença e o fato, os
termos e a ordem deles na crença devem corresponder aos termos e à ordem deles no fato.
Trata-se do caráter de coincidência geral, os termos e a ordem em que eles se encontram na
crença coincidem com os termos e a ordem deles no fato. Por este aspecto, a crença de Otelo
que Desdemona ama Cássio será verdadeira se existir o fato em que Desdemona e Cássio,
nesta ordem, estejam ligados pela relação amar.
33 RUSSELL, 1910a, p. 183.
39
A segunda coisa importante na descrição que Russell faz da relação de
correspondência nesta primeira versão da Teoria RM é que, se a correspondência consiste nos
objetos A e B estarem relatados no fato pela relação que estava diante da mente no juízo,
então, essa relação está exercendo uma operação e desempenhando uma função no fato que a
relação que estava diante da mente precisa exercer e desempenhar logicamente na crença
também. Trata-se da operação relacionante e da função lógica de ligar exercidas sobre os
objetos na crença. Ou seja, a relação que estava diante da mente também teria que estar
exercendo logicamente a operação relacionante e cumprindo a função de ligar os objetos, caso
contrário não haveria uma correspondência completa. Russell não afirmou isso
explicitamente, contudo, podemos inferir isso tranquilamente da sua afirmação, segundo a
qual, a relação subordinada “não pode estar diante da mente abstratamente, mas, deve estar
indo de A para B, mais do que de B para A”.34 Pois, se ela deve estar diante da mente indo A
para B, por exemplo, então é porque ela está exercendo a operação relacionante e cumprindo
logicamente a função de ligar os objetos na crença.
Na segunda versão da Teoria RM, contudo, a relação de correspondência foi
apresentada por Russell do seguinte modo;
Quando a crença é verdadeira, há outra unidade complexa na qual a relação que era
um dos objetos da crença relaciona os outros objetos. Assim, por exemplo, se Otelo
acredita verdadeiramente que Desdemona ama Cássio, então, há a unidade
complexa, “o amor de Desdemona por Cássio” que é composta exclusivamente dos
objetos da crença, na mesma ordem que eles estavam na crença, com a relação que
era um dos objetos ocorrendo agora como o cimento que liga os objetos da crença.
Por outro lado, quando uma crença é falsa, não há tal unidade complexa composta
unicamente dos objetos da crença. Se Otelo acredita falsamente que Desdemona ama
Cássio, então, não há a unidade complexa consistindo “do amor de Desdemona por
Cássio”.35
Como podemos notar, nesta segunda apresentação da relação de correspondência
feita por Russell, aparece uma significativa mudança. A relação subordinada continua a ser o
centro da questão, mas ela não é mais vista como o ponto arquimediano da correspondência.
Os elementos destinados à correspondência já não encontram equilíbrio na relação
subordinada. Ela passa a ser vista como um objeto ao lado dos outros objetos da crença. Se
34 RUSSELL, 1910a, p. 180. 35 Idem., 1912, p. 199-201. (Itálicos do autor)
40
houver um fato correspondente, de acordo com esse novo ponto de vista, a relação
subordinada vai aparecer no fato como relação exercendo a operação relacionante e
cumprindo a função de ligar os fatos, mas na crença ela será apenas um objeto e não exercerá
logicamente essa operação nem desempenhará essa função.
Ora, isso altera muita coisa na relação de correspondência proposta na primeira
versão da Teoria RM, pois a correspondência fica limitada a alguns elementos apenas, a saber,
ela passa a ser uma correspondência entre os termos e a ordem deles na crença, com os termos
e a ordem deles no fato, mas, a operação relacionante e a função de ligar sobre os termos da
relação subordinada no fato não têm correspondência na relação subordinada na crença. Por
conseguinte, podemos dizer que a relação de correspondência apresentada por Russell na
segunda versão da Teoria RM tem um sério problema de desequilíbrio, a operação e a função
da relação subordinada presentes no fato correspondente não encontram um paralelo na
operação e na função da relação subordinada na crença.
Dito de outra maneira, ao reduzir a relação subordinada a um objeto comum da
crença, Russell acabou fazendo uma imagem da crença que, simplesmente, pode ser vista
como uma justaposição dos termos. Mas, se os termos só estão justapostos na crença, a
correspondência com o fato fica reduzida a alguns elementos apenas. Na crença encontramos
os termos, a ordem dada a eles e a intenção de associá-los a um fato, enquanto que no fato nós
encontramos os termos, a ordem dada a eles pela relação que era um objeto da crença e essa
relação exercendo a operação relacionante e a função de ligar sobre os termos. Uma ilustração
simbólica desta maneira de ver a relação de correspondência na segunda versão com a
maneira de vê-la na primeira versão, agora, parece muito útil:
PRIMEIRA VERSÃO
↓
SEGUNDA VERSÃO
↓
Crença → Fato Crença → Fato
Termos → Termos Termos → Termos
Ordem → Ordem Ordem → Ordem
41
Relação subordinada
[relacionando e ligando
logicamente os termos]
→ Relação subordinada
[relacionando e
ligando efetivamente
os termos]
Relação subordinada
[como um objeto ao
lado dos demais]
→ Relação subordinada
[relacionando e
ligando efetivamente
os termos]
Percebe-se que o modo como a relação subordinada é vista nas duas versões difere
profundamente. E, por conseguinte, se levarmos a sério as condições em que a segunda versão
põe a relação subordinada, a relação de correspondência ficará reduzida a uma (gratuita)
intenção de associar a ordem de termos formada na crença a um fato. Russell, inclusive, pode
ser entendido como aceitando essa perigosa consequência, ao concluir essa segunda
apresentação da teoria da correspondência afirmando que “a crença é verdadeira quando ela
corresponde a um complexo associado e é falsa quando ela não corresponde”.36 Pois,
corresponder a um complexo “associado” quando a crença pode ser considerada uma mera
justaposição de termos é bastante gratuito.
Na terceira versão da Teoria RM, por seu turno, Russell apresentou a relação de
correspondência do seguinte modo:
É óbvio que se uma crença é verdadeira depende apenas dos seus objetos. Se eu
acreditar que A é o pai de B, a verdade da minha crença depende da relação física de
A e B e não de mim. A crença é verdadeira quando os objetos estão relatados como
a crença assere que eles estão. Assim, a crença é verdadeira quando há um certo
complexo correspondente, que deve ser uma função definível da crença, o qual
chamamos de complexo correspondente ou fato correspondente.37
A relação de correspondência agora é apresentada como uma função do complexo formado na
crença sobre o fato correspondente no mundo. De acordo com Russell, nesta terceira versão,
ao formar uma crença, um sujeito cria um complexo mental e o assere, de modo que a crença
será verdadeira quando os objetos estão relatados “como a crença assere que eles estão”. Ora,
isso pode mesmo ser visto como uma função onde a crença é a imagem de um fato
correspondente tal qual o contradomínio é uma imagem correspondente ao domínio numa
função. A relação de correspondência entre a unidade da crença e o fato real resulta numa
função bijetora cujo domínio é uma n-upla ordenada dos termos no juízo e cujo
36 RUSSELL, 1812, p. 201. (Itálicos do autor). 37 Idem., 1913, p. 144. (Itálicos do autor).
42
contradomínio é o fato formado pelos objetos correspondentes, na ordem que estão no juízo
quando este é verdadeiro.
Uma função, como se sabe, é um tipo particular de relação que pode ser representada
formalmente como “f(x) = y”, onde “x” é uma variável que representa os elementos que
constituem os argumentos da função e “y” é uma variável que representa os elementos que
correspondem aos argumentos da função, ou seja, os valores da função. Assim, no caso de um
par ordenado (x, y), “a cada elemento, x, do par, nós atribuímos o segundo elemento, y, do
par”.38Por exemplo, consideremos A e B dois conjuntos sobre os quais se pode aplicar a
função f(x) = y de A em B:
- o conjunto A será chamado “domínio” da função f(x) = y,
- o conjunto B será chamado “contradomínio” da função f(x) = y,
- os elementos de A serão chamados “argumentos” da função f(x) = y,
- os elementos de B são chamados de “valores” da função f(x) = y
- e cada elemento de B que é associado a um elemento de A pela função f(x) = y é chamado
de “imagem”.
Assim, consideremos, por exemplo, que a é um elemento do conjunto A e que b é um
elemento do conjunto B. E, consideremos ainda que b é de fato o elemento do conjunto B que
corresponde ao elemento a do conjunto A. Neste caso, se aplicarmos a função f(x) = y, nas
condições indicadas acima, atribuindo nela como argumento o elemento a do conjunto A,
obteremos exatamente o elemento b como valor e imagem de a, no contradomínio que é o
conjunto B. Haja vista que o específico da função bijetora é que cada argumento de A tem um
valor em B que é sua imagem.
E se agora aplicarmos isso à relação de correspondência que torna uma crença
verdadeira, teremos a função corresponde a, que podemos simbolizar com “C(x) = y”, do
38 MORTARI, 2001, p. 54.
43
complexo do juízo verdadeiro (J), “Desdemona ama Cássio”, sobre o complexo
correspondente do fato (F), que consiste de Desdemona relacionada com Cássio pela relação
amar. Podemos representar a relação de correspondência dos elementos do complexo J no
complexo F na função “C(x) = y” do seguinte modo:
C(x) = y
C(“Desdemona”) = Desdemona
C(“ama”) = ama
C(“Cássio”) = Cássio
C(“Cássio ama Desdemona”) = Cássio ama Desdemona (fato).
E assim, podemos ver que cada argumento do domínio, que é o conjunto dos termos
do juízo (J), tem um valor, como imagem, no conjunto do contradomínio, que é o conjunto
dos elementos que compõem o fato (F). No caso acima, onde tomamos o juízo como sendo
verdadeiro, a função “C(x) = y” é sobrejetora, pois, “não há nenhum elemento do
contradomínio que não seja imagem de algum elemento do domínio”.39 Se, por exemplo, não
houvesse no fato que constitui o conjunto do contradomínio um valor correspondente para o
argumento “ama” na função “C(‘ama’)”, então, a crença seria falsa. Não haveria a relação de
correspondência nesse elemento.
A consideração das apresentações da relação de correspondência nas três versões da
Teoria RM, então, indica a importância e a centralidade da relação subordinada para que o ato
de crença seja representativo e a correspondência seja devidamente alcançada. Ela indica que
a relação subordinada precisa, de algum modo, exercer a operação relacionante e a função de
ligar sobre os objetos na crença. Se a crença verdadeira é aquela em que a relação, de fato,
liga os termos objetos na mesma ordem que eles tinham na crença, então, isso implica que a
relação subordinada tem que estar ligando nessa mesma ordem os termos no juízo. Ela não
pode ser um termo no mesmo nível lógico dos demais. E isso é possível como veremos
39 MORTARI, 2001, p. 54.
44
melhor no Capítulo Terceiro, porque ela é um instrumento ativo, que pode ser acionado pelo
sujeito da relação acreditar, que posiciona e liga logicamente os termos da crença.
A centralidade da relação subordinada para a relação de correspondência também
aponta para uma coisa importante na relação acreditar. Ele indica que a relação acreditar tem
uma dimensão finalista, isto é, que ela sempre visa um alvo e este alvo lhe dá um referencial
para posicionar os termos. Tal referencial é o fato pretendido correspondente cuja ordem dos
termos é perseguida pela relação acreditar que, por meio da relação subordinada liga os
termos objetos visando construir logicamente aquela ordem. Consequentemente, isso indica
que acreditar toma a relação subordinada com uma (e somente uma) intenção, a de atingir um
(e somente um) alvo correspondente, a cada vez. Por isso, como insistiu Russell, o fato
correspondente é “a condição necessária e suficiente da verdade da relação acreditar”.40 E
como a relação acreditar visa sempre a verdade, embora nem sempre a alcance, o fato
correspondente na intenção do sujeito lhe dá uma (e somente uma) direção para os termos,
que deve ser alcançada no juízo, a fim de que a relação acreditar possa atingir a instanciação
devida e formar a representação lógica do fato a ponto da relação de correspondência poder
ser verificada.
A importância da relação subordinada para que haja a relação de correspondência,
indica ainda que ela é um termo determinante tanto para a formação da crença quanto para a
relação de correspondência. Se ela não for operante no juízo, isto é, se ela não determinar as
suas condições lógicas de funcionamento e não exercer a operação relacionante sobre os
objetos no juízo, a crença se reduz a uma mera justaposição dos termos. E se ela não tem a
função de ligar logicamente os objetos no juízo, a relação de correspondência fica
comprometida, pois no fato correspondente ela tem essa função efetivamente. Ora, se ela for
uma relação assimétrica, isso implica que ela tem que relacionar logicamente e exercer a
função de ligar sobre os termos, determinando, na crença, os lugares e os papéis lógicos que
os termos ocupam e exercem visando alcançar sua correspondência no fato asserido. Caso
contrário, a relação de correspondência também ficará comprometida.
Por fim, salientamos também que os detalhes encontrados nas apresentações da
relação de correspondência feitas pelas três versões da Teoria RM, nos permitem ver porque a
primeira delas se destaca favoravelmente das demais. Nela, como vimos, a relação
40 RUSSELL, 1910a, p. 183.
45
subordinada foi apresentada de tal modo que, ainda Russell que não tenha afirmado
explicitamente, podemos entendê-la como exercendo a operação relacionante e a função de
ligar logicamente sobre os termos. Como entender o seu modo de ser relacionante e de
cumprir essa função de ligar sobre os termos, contudo, será um passo que daremos apenas no
Terceiro Capítulo. A apresentação que a segunda versão da Teoria RM fez da relação de
correspondência reduziu a relação subordinada a um objeto comum no juízo e comprometeu
seriamente tanto a relação de correspondência quanto a unidade da crença. E, na apresentação
da relação de correspondência da terceira versão, encontramos de novo uma ótima
aproximação da proposta feita pela primeira versão, pois Russell voltou a assumir que a
crença verdadeira é aquela em que os objetos estão como a crença assere que eles estão, ou
seja, de novo podemos entender que a relação subordinada exerce a operação relacionante e a
função de ligar sobre os objetos na crença e, por isso mesmo, ela é verdadeira quando faz isso
do mesmo modo que a relação opera no fato correspondente.
1.2 AUMENTANDO AS DIFICULDADES: AS VERSÕES DE 1912 E 1913
Após a publicação de 1910, Russell ainda apresentou e defendeu cuidadosamente a
Teoria RM mais duas vezes, uma em 1912 e outra em 1913. Nessas duas versões, ele tentou
dar uma resposta à questão da natureza da relação subordinada na constituição da unidade de
crença e fez, pelo menos, quatro novas tentativas de superar o Problema da Direção. Na
versão de 1912 ele procurou explicitar um pouco mais a tarefa da relação acreditar na
determinação da direção dos termos e na versão de 1913 ele dedicou-se ao uso de complexos
associados para descrever crenças permutativas, ao assunto da forma lógica e à teoria das
posições dos termos na relação. Para facilitar a exposição das duas versões, vamos dividir esta
seção em duas subseções, a primeira para examinar a versão de 1912 e a segunda para
examinar a versão de 1913.
1.2.1 A versão de 1912: direção e classificação dos termos na relação acreditar
46
A segunda versão da Teoria RM foi publicada em The Problems of Philosophy,
1912, sob o título Truth and Falsehood. Nela, Russell continuou seu esforço de explicitação
da natureza da relação múltipla acreditar e tentou classificar melhor os seus relata apesar de
continuar sem conseguir definir adequadamente a relação entre acreditar e a relação
subordinada na constituição da unidade de crença. Visando uma boa apreciação dos resultados
desta versão, vamos dividir esta subseção ainda em dois pontos, o primeiro para tratar da
relação acreditar e o segundo para tratar da relação entre acreditar e a relação subordinada.
1.2.1.1 O realismo operante da relação acreditar
Nesta versão, Russell procurou explicitar o modo como a relação acreditar posiciona
e liga os seus termos. Segundo ele, a mente cria a crença41 posicionando os termos numa
determinada ordem, ligando-os numa unidade lógico complexa. Mas, como foi visto acima,
essa já era praticamente a posição da primeira versão. Ali, Russell também admitia que a
relação acreditar posiciona os termos numa ordem e que esta ordem deve coincidir com a
ordem dos termos no fato correspondente para que a crença seja verdadeira. A novidade é que
agora acreditar é considerada a única responsável pelo sentido dos termos, enquanto que na
primeira versão o sentido era da responsabilidade da relação subordinada. Agora, este
trabalho passa a ser feito exclusivamente pela relação acreditar que posiciona e liga os
termos. O problema, já se pode entrever, é que Russell não chegou a dizer como é que ela,
sozinha, faz efetivamente essas duas coisas.
Como ela posiciona seus termos? A resposta de Russell, bastante evasiva, foi posta
nos seguintes termos:
Observe-se que a relação julgar tem o que é chamado de “sentido” ou “direção”. Nós
podemos dizer, metaforicamente, que ela põe seus objetos numa certa ordem, que
pode ser indicada pela ordem das palavras na sentença.42
A resposta de Russell para a pergunta acima não diz como a relação acreditar posiciona os
termos, mas apresenta uma novidade interessante, se a compararmos com a primeira versão.
41 RUSSELL, 1912, p. 202. 42 Ibidem., p. 198.
47
Ela assume que a relação acreditar é portadora de “um sentido ou direção” que lhe permite
posicionar os termos na ordem correta.43 Desse modo, a tarefa de posicionar os termos na
ordem certa, passa a ser responsabilidade exclusiva da relação acreditar e, uma vez que a
ordem dos termos é constituída no juízo, o sujeito da crença pode expressá-la na linguagem
pela ordem dada aos termos linguísticos. Mas, devemos insistir, nada disso diz como a relação
acreditar realiza o trabalho de impor uma ordem aos termos. Afinal de contas, para posicionar
os termos numa ordem ela tem que ter as condições lógicas determinadas, porque ela precisa
de uma razão para colocar um termo numa posição e o outro noutra e Russell não diz quais
são essas condições lógicas que justifiquem a tarefa da relação acreditar impor as posições
aos termos.
O que caracterizaria as posições em que o sujeito da relação acreditar deve pôr os
termos e com que determinações lógicas ele os posiciona numa direção e não noutra? Ao
invés de tentar esclarecer esses pontos, Russell se limitou a constatar, mais uma vez, que a
diferença nas crenças formadas com os mesmos relata reside nas posições dadas a eles na
relação acreditar. Isso é verdadeiro, mas, sobre como o sujeito da crença faz isso, exatamente,
ele não disse nada.
Ainda sobre a questão das posições dos termos, devemos notar que na primeira
versão da Teoria RM Russell trabalhou com sua teoria das relações, que usava a noção de
“lugares” dos termos. E nesta segunda versão, ele trabalha com a noção de “posições dos
termos”. Contudo, ele não apresentou nenhuma razão para a mudança, nem tão pouco discutiu
a diferença entre uma noção e outra. O que parece indicar que ele não tinha a devida clareza
sobre como conciliar a noção de “posições” com a de “lugares” dos termos no jogo dinâmico
da operação da relação acreditar com a relação subordinada. O fato é que ele nem conseguiu
justificar adequadamente a operação de posicionar os termos por parte da relação acreditar,
nem conseguiu conciliar as ideias de lugares e posições ocupados pelos termos com a
operação da relação subordinada, e essas duas lacunas, como veremos na próxima subseção,
repercutiram de maneira devastadora na sua teoria das posições e na sua tentativa de encontrar
um simbolismo formal capaz de capturar com sucesso a estrutura das ocorrências da relação
acreditar.
43 Ibidem., p. 198.
48
Além disso, a afirmação de que a relação acreditar liga os termos também não ficou
devidamente justificada por Russell na segunda versão. Como ela liga os termos? A resposta
de Russell foi que ela é o cimento da construção, isto é, ela cola os termos formando com eles
um complexo lógico. Mas a relação acreditar não pode simplesmente colar os termos sozinha,
ela precisa da operação lógica da relação subordinada também. Consideremos a situação
expressa por (5):
(5) Otelo acredita que Desdemona, Cássio, Alexandre, Hypatia.
O que a “frase” (5) expressa não é uma unidade de crença. Não existe um complexo
geral formando uma unidade em (5) e, muito menos, um complexo subordinado. A relação
acreditar não pode colar os termos sem a cooperação de um termo relação auxiliar. Seus
poderes são radicalmente limitados para que ela possa, sem o auxílio de outra relação, formar
uma unidade lógica com uma sequência de objetos apenas.
Para justificar devidamente como a relação acreditar liga os termos, Russell
precisaria aceitar a colaboração lógica do termo relação que ocorre dentro da crença. Mas a
falta de clareza sobre a relação entre acreditar e a relação subordinada o impediu de dar esse
passo. O resultado foi trágico, como veremos a seguir, pois ele passou a tratar de modo
inadequado a relação subordinada.
1.2.1.2 A relação entre acreditar e a relação subordinada
Na segunda versão da Teoria RM, Russell tratou os termos que constituem os relata
da relação acreditar numa determinada ocorrência como objetos. E a aplicação dessa posição
à relação subordinada foi bastante desastrosa para a Teoria RM:
Quando ocorre um ato de crença, há um complexo em que “acreditar” é a relação
unindo, e o sujeito e os objetos são arranjados numa certa ordem pelo “sentido” da
relação acreditar. Entre os objetos, como vimos ao considerar “Otelo acredita que
Desdemona ama Cássio”, um deve ser uma relação, que nesta instância é a relação
49
“amar”. Mas, esta relação, como ela ocorre no ato de acreditar, não é a relação que
cria a unidade do complexo geral constituído do sujeito e dos objetos. A relação
“amar”, como ela ocorre no ato de acreditar, é um tijolo na estrutura e não o
cimento.44
Como podemos ver, ao considerar os relata da crença como objetos, Russell nivela todos eles
num único nível lógico. E, ao fazer isso, ele reduz a relação subordinada à condição de objeto
da crença, como os demais objetos, e lhe nega toda e qualquer função relacionante na
formação da crença. Sim, podemos concordar com ele que quem forma o “complexo geral”,
ligando o sujeito aos relata, é a relação acreditar. Mas, não podemos concordar com ele em
afirmar que a relação subordinada, como ela ocorre na crença, seja apenas um “tijolo na
estrutura”, sem nenhuma função de ligar os objetos.
Parece interessante, ainda, notarmos que Russell demonstra certa insegurança ao
assumir essa posição e isso nos encoraja a buscar uma alternativa para ela. Por um lado, ele
diz que entre os relata um termo deve ser uma relação e, por outro lado, ele nega que esse
termo relação participe da formação do complexo geral, de algum modo, relacionando
também. A confissão do engano, ainda mesclada de certa vaidade, e de que esse não pode ser
o caminho certo para a Teoria RM, contudo, só veio alguns anos depois:
Este é um ponto no qual penso que a teoria do juízo que formulei há alguns anos era
um pouco simples demais, porque tratei então do objeto verbo como se se pudesse
colocá-lo como um objeto exatamente como os termos, como se se pudesse colocar
“ama” no mesmo nível de Desdemona e Cássio, como um termo para a relação
“acredita”.45
Realmente, tratar aquilo que o verbo representa na linguagem como algo que pode ser
colocado ao lado dos outros termos não é “um pouco simples demais”. Ao contrário, é muito
“simples demais”, pois, resulta num caráter duplamente conflitante e inconciliável para a
relação subordinada. De fato, quando Otelo acredita que Desdemona ama Cássio, sua crença
envolve três objetos, a saber, Desdemona, Cássio e a relação amar. Se a crença for verdadeira,
então haverá “outra unidade complexa, composta exclusivamente dos objetos da crença, na
44 RUSSELL, 1912, p. 199-200. 45 RUSSELL, 1918, p. 226.
50
mesma ordem que eles tinham na crença, com a relação, que era um dos objetos, ocorrendo
agora como o cimento que liga os outros objetos da crença”.46 Mas, se o juízo fosse falso, por
exemplo, não haverá outro complexo onde a relação amar ocorra como “cimento”, ou seja, ela
permanece apenas um objeto na crença, onde não tem nenhuma função de ligar os outros
objetos. E esse é o ponto mais lamentável da segunda versão da Teoria RM, Russell não notou
que “ligar” os termos na crença é diferente de “ligar” os termos efetivamente no fato, talvez,
por ter ficado preso à ideia de que os relata estão todos no mesmo nível.
É importante ainda conjecturar um pouco aqui. O que teria levado Russell a nivelar
os relata da relação acreditar desse modo? Ao tratarmos da primeira versão da Teoria RM já
assumimos que ele não conseguiu determinar com clareza a relação entre acreditar e a relação
subordinada. Mas, além disso, também parece pertinente pensarmos que contribuiu muito
para isso o seu desejo de acentuar o realismo ontológico das relações e não ter distinguido
bem a relação ocorrendo efetivamente num fato da relação ocorrendo logicamente no juízo.
Primeiro, ao que parece, Russell queria acentuar que quando o sujeito da crença
forma um juízo, ele está em relação com uma entidade abstrata, universal, extra-mental, quer
esta entidade esteja instanciada ou não. E se esta era mesmo sua motivação, então ela não é
tão censurável. O que ele fez a partir dela, sim, ela não. Haja vista que o que ela quer destacar
é mesmo muito importante. Ela está realçando a distinção de tipos lógicos entre os termos e
está sugerindo que se pense melhor sobre o modo como a relação acreditar pode lidar com
aquela entidade abstrata universal de modo subordinado combinando-a com objetos ou
combinando objetos por meio da sua mediação.
Segundo, também parece que Russell não percebeu a necessidade de distinguir entre
ligar os objetos efetivamente no mundo e ligar os objetos logicamente na crença. O fato de
não existir um complexo correspondendo à crença, isto é, o fato da relação amar não ser
instanciada por Desdemona e Cássio efetivamente, não significa que ela não esteja ligando os
objetos logicamente no pensamento de Otelo. Seria como dizer que a propriedade estar afiado
qualifica efetivamente o bisturi no momento em que o médico corta o paciente e não o
qualifica logicamente no momento em que a assistente, falsamente, adverte o médico dizendo:
“está afiado”. E isto não é o caso. Tanto é verdade que a mesma propriedade qualifica
logicamente o bisturi na afirmação falsa feita pela assistente que o médico vai tomá-lo com
46 Idem., 1912, p. 200.
51
cuidado. De modo análogo acontece com a relação amar no contexto de acreditar. Ela é uma
relação relacionando efetivamente quando liga efetivamente Desdemona e Cássio e ela é uma
relação relacionando logicamente quando liga logicamente Desdemona e Cássio na crença de
Otelo.
Como é que a relação subordinada contribui para relacionar os termos na crença se a
relação acreditar é quem forma o complexo da crença, porém, é um ponto que pretendemos
trabalhar devidamente apenas no Capítulo Terceiro. Mas podemos aproveitar aqui o uso
(inadequado) que Russell fez da metáfora do cimento e dos tijolos nesta segunda versão da
Teoria RM e antecipar parcialmente a resposta a essa inquietação. Isso ilustrará um pouco
mais a falha de Russell e desses críticos no entendimento da operação das duas relações e
também permitirá sugerir um ajuste que torne sua metáfora adequada.
Segundo Russell, uma instância da relação acreditar envolve dois tipos de
constituintes. Curiosamente, porém, nesta versão de 1912 ele entendeu que esses constituintes
são a relação acreditar e os seus objetos. Eles são como o cimento e os tijolos. A relação
acreditar é o cimento e os objetos são os tijolos. Na prática, porém, isto não é o caso. Os
constituintes de uma ocorrência da relação acreditar são de dois tipos lógicos sim, universais
e particulares, mas eles estão estruturados em mais de dois níveis lógicos. Portanto, uma
metáfora de dois elementos não conseguirá ilustrá-los adequadamente.
Visto que a relação acreditar, em qualquer instância que contenha uma relação
subordinada, sempre envolve, pelo menos, três níveis lógicos, ela só pode ser representada
adequadamente por uma metáfora com, ao menos, três tipos de elementos, não com dois.
Haja vista que ela sempre tem um nível lógico acima da relação subordinada, e esta, por sua
vez sempre tem um nível lógico acima dos seus termos. Ao passo que, os termos objetos
sempre têm um nível lógico abaixo da relação subordinada (se forem universais) ou serão de
outro tipo lógico (se forem objetos). Desse modo, tanto a relação acreditar quanto a relação
subordinada compartilham a tarefa de ligar os termos. O que precisa ser feito é classificar em
que consiste a colaboração de cada uma. No caso da metáfora escolhida por Russell, por
exemplo, ela teria que ser feita usando três elementos como, por exemplo, o cimento, os
tijolos e a abraçadeira (clamp).
Se tomarmos essa metáfora ampliada, podemos considerar a relação acreditar como
aquela que liga os termos da crença numa unidade geral, tal qual faz a abraçadeira que o
52
pedreiro usa para ligar os tijolos e o cimento na construção de um pilar, formando com eles
uma unidade subordinada. E podemos considerar a relação subordinada como aquele termo
que liga logicamente os termos objetos numa unidade subordinada, tal qual o cimento que liga
os tijolos na construção de um pilar. Quando os tijolos e o cimento são postos na ordem
correta e ligados pela abraçadeira o pilar é formado corretamente. E ao retirarmos a
abraçadeira, a construção fica consistente. Assim, também com a relação acreditar, se o
sujeito põe os objetos e a relação subordinada no sentido certo, depois que a crença é
formada, podemos abstrair a relação acreditar e examinar a consistência do juízo que foi
formado. Se ele representa um fato, então, será logicamente bem formado. E se esse fato
existir ele será um juízo verdadeiro, caso o fato não exista, ele será um juízo falso.
Devemos notar, porém, que Russell não deu esse passo e a metáfora que ele usou não
foi capaz de fazê-lo perceber a raiz do problema. Ele fechou a segunda versão sem apresentar
uma compreensão adequada da natureza lógica da relação subordinada na crença e da sua
operação na constituição do juízo. Este déficit, provavelmente, justifica suas duas tentativas
de afastar-se da análise da natureza da relação subordinada para tentar resolver o Problema da
Direção pela via da forma lógica e da sua heterodoxa teoria das posições na terceira versão.
Para a qual nos voltaremos agora.
1.2.2 A versão de 1913: a forma lógica e as posições dos termos na relação
A terceira versão da Teoria RM foi apresentada por Russell em Theory of
Knowledge, o chamado “manuscrito inacabado de 1913”. Nela Russell escolheu dar uma
atenção maior à relação múltipla que ele chamou de “entender uma proposição”, mas também
considerou a relação acreditar. De acordo com ele, essas duas relações têm a mesma forma
lógica e levantam os mesmos problemas lógicos, por isso o mesmo tipo de análise lógica pode
ser aplicado às duas sem prejuízo para nenhuma delas. Haja vista que, manteve Russell, a
única diferença entre elas “é que acreditar é uma relação e entender é outra”.47
47 “A análise da crença, como dissemos antes, deve ser precisamente análoga à análise de entender uma
proposição. Os mesmos constituintes entram no complexo da mesma forma quando uma proposição é acreditada
entendida. A única diferença é que acreditar é uma relação e entender é outra” (RUSSELL, 1913, p. 142.
Tradução nossa).
53
Visando uma melhor consideração do conteúdo proposto nesta terceira versão,
vamos dividir esta subseção em dois grandes subgrupos. O primeiro tratará da relação
acreditar e das propriedades de simetria e assimetria. Ele ainda será subdividido em três
partes que tratarão, respectivamente, das crenças não-permutativas, das crenças permutativas
e dos complexos associados. E o segundo subgrupo tratará dos relata da relação acreditar,
sendo também subdividido em quatro partes que tratarão, respectivamente, da forma lógica
como um constituinte a mais nas ocorrências da relação acreditar, da teoria das posições dos
termos, da direção dos termos na relação a partir da natureza lógica da relação e do esforço
russelliano para oferecer um simbolismo formal adequado para as ocorrências da relação
acreditar.
1.2.2.1 A relação acreditar como relação múltipla
Na terceira versão da Teoria RM, Russell fez uma defesa muito breve da noção de
acreditar, como relação múltipla, frente às posições de Hume e William James e depois
empreendeu uma vigorosa análise das propriedades de simetria e assimetria das relações. Com
base nessas propriedades ele pôde classificar os complexos formados pela relação acreditar
em complexos não-permutativos e permutativos. Isso o permitiu situar o Problema da Direção
de um jeito novo e oferecer uma argumentação nova para a explicação da permutatividade dos
termos nas relações assimétricas. Os resultados obtidos, apesar de questionáveis em alguns
pontos, como veremos abaixo, trouxeram significativos avanços para a Teoria RM. Façamos o
percurso com ele.
Inicialmente, Russell procurou defender a noção de relação acreditar proposta pela
Teoria RM, distinguindo-a da noção de crença presente nas Teorias do Juízo de David Hume
e de William James. Segundo ele, Hume considerava a ideia produzida pelo sujeito como
sendo o objeto da crença e considerava acreditar como sendo uma força ou vivacidade
atrelada a uma ideia “associada a uma impressão”.48 Mas, discordou Russell, uma crença não
tem uma ideia como objeto e sim “uma pluralidade de objetos unidos com o sujeito numa
relação múltipla”.49 Para ele, há, sem dúvida, um estado mental envolvido num ato de crença,
mas tal estado mental não consiste em ter “a ideia de um objeto”. Não existe a ideia como
48 RUSSELL, 1913, p. 137. 49 Ibidem., p. 137. (Grifo do autor)
54
algo distinto do objeto, como um tertio quid, entre sujeito e objeto”.50 Quando o sujeito julga,
por exemplo, que o mercúrio é mais pesado do que o ouro, mercúrio e ouro mesmo são os
constituintes do juízo, não é a ideia de mercúrio que está em relação com a ideia de ouro, mas
mercúrio e ouro mesmo. As ideias de mercúrio e ouro não são pesadas e a crença não é numa
relação entre ideias, mas numa relação entre objetos.51
Disso também se segue que a crença não é uma força atrelada a uma ideia associada
a uma impressão, mas uma relação do sujeito para com os vários objetos envolvidos na
crença. A força atrelada a uma crença não é uma relação para com os objetos da crença, mas
sim uma emoção causada pela crença e deve ser distinguida dela.52 Para William James, que
também aproximava-se da posição de Hume na concepção de crença, acreditar é “um tipo de
sentimento mais aliado à emoção do que a qualquer outra coisa”53 E a resposta de Russell é
que qualquer emoção ou sentimento que se atrele a uma crença é assunto da psicologia e não
da epistemologia. Segundo ele há, sim, uma emoção atrelada à crença, capaz de muitos graus,
inclusive, mas ela não acompanha a crença como parte da crença e sim como um fato distinto
da crença. Ela é proporcional à intensidade ou energia com que o sujeito repele a dúvida, não
à certeza que ele tem da crença.54
Depois que rejeitou as Teorias do Juízo de Hume e James, Russell passou à análise
das propriedades de simetria e assimetria das relações, visando fazer uma nova aplicação
delas aos complexos de crença. Segundo ele, por um lado, numa relação simétrica a direção
dos termos é irrelevante. Nessas relações, o intercâmbio dos termos não gera um conteúdo
lógico novo e não demanda um estado de coisas novo para tornar verdadeiro o complexo
lógico formado na crença. Por exemplo:
(6) João é irmão de Pedro.
(7) Pedro é irmão de João.
50 Ibidem., p. 137. (Grifo do autor) 51 Ibidem., p. 140. 52 Ibidem., p. 141. 53 Ibidem., 1913, p. 140. 54 RUSSELL, 1913, p. 141.
55
O intercâmbio de posições dos termos João e Pedro na relação ser irmão de na sentença (6),
não gerou nenhum complexo novo em (7). O mesmo complexo lógico expresso em (6) com
“João” e “Pedro” (nesta ordem) é o mesmo complexo lógico expresso em (7) com “Pedro” e
“João” (nesta ordem). E, igualmente, nenhum estado de coisas diferente é exigido para tornar
(6) e (7) verdadeiras. Em razão disto, Russell chamou as relações simétricas de “relações não-
permutativas”, pois nelas o intercâmbio de posições dos termos não muda nada no conteúdo
lógico do complexo.
A causa principal disto é a própria natureza das relações simétricas, que faz delas um
tipo específico de relações. Elas impõem um papel lógico único aos termos e não consideram
relevante a ordem deles. Por conseguinte, elas não contêm, por natureza, nenhuma restrição a
mudanças de lugares ou posições dos seus termos e elas mesmas podem trocar de lugar com
seus termos sem alterar o complexo lógico. Retomemos, por exemplo, o complexo lógico
expresso por (6) e façamos o intercâmbio de posições entre a relação e os termos:
(8) João e Pedro são irmãos.
(9) São irmãos João e Pedro.
O complexo lógico expresso em (8) e (9) continua o mesmo, apesar de (9) não ser
muito usual na língua portuguesa, e o estado de coisas requerido para que os dois juízos sejam
verdadeiros também continua o mesmo. Os termos continuam a desempenhar o mesmo papel
lógico na relação e a ordem deles continua irrelevante.
Por outro lado, uma relação assimétrica pode ser de dois tipos, a saber, ela pode ser
assimétrica e homogênea ou assimétrica heterogênea. Uma relação assimétrica homogênea é
aquela em que o intercâmbio dos termos gera um novo complexo lógico e demanda um novo
estado de coisas para a verdade do complexo gerado pelo intercambiamento. Por exemplo:
(10) Desdemona ama Cássio.
(11) Cássio ama Desdemona.
56
O intercambiamento de posições dos termos “Desdemona” e “Cássio” na relação amar em
(10) gerou um complexo lógico diferente, expresso por (11), e tornou necessária a existência
de um estado de coisas diferente para que o novo complexo lógico seja verdadeiro. Em razão
disto, Russell chamou as relações assimétricas homogêneas de “relações permutativas”, pois
nelas o intercambiamento de posições dos termos muda o conteúdo lógico dos complexos
formados por elas.
De novo, devemos notar também que as relações assimétricas homogêneas também
têm uma natureza peculiar e constituem um tipo específico de relações. Elas diferem das
relações simétricas não somente porque ao permitirem a mudança de posições dos seus termos
geram um complexo lógico novo, mas também por não poderem, elas mesmas, trocar de lugar
com seus termos e continuar a formar um complexo lógico. Podemos visualizar isso se, por
exemplo, aplicarmos em (10) o intercambiamento das posições entre a relação amar e
Desdemona e depois entre a relação amar e Cássio. Os resultados não serão complexos
lógicos:
(12) Ama Desdemona Cássio.
(13) Desdemona Cássio ama.
O que (12) e (13) manifestam, na verdade, é o Problema da direção Larga, que será
devidamente enfrentado no Capítulo Segundo. Críticos como Stout e Griffin dizem que a
Teoria RM de Russell permite tais construções sem sentido lógico. Mas, como se pode ver, a
Teoria RM não é passível dessa crítica, ela não admite essas construções e não reconhece
nenhum valor lógico nelas.
A relação assimétrica heterogênea, por sua vez, é aquela em que o intercâmbio não é
possível logicamente, nem entre os termos da relação, nem entre a relação e seus termos. Ele
não gera nenhum complexo lógico válido. Por exemplo:
(14) Sabedoria é a principal virtude de Sócrates.
(15) Sócrates é a principal virtude da Sabedoria.
57
Neste caso, o intercambiamento dos termos ligados pela relação ser a principal virtude de, em
(14), não gerou um complexo lógico novo, como mostra (15). Sabedoria é um termo
universal, que pode instanciar ser a principal virtude de com relação a Sócrates. Mas, pelo
tipo de assimetria existente entre os dois termos, o intercâmbio entre eles é impossível.
Sócrates é um objeto particular e não pode instanciar ser a principal virtude de em relação
com sabedoria. Trata-se de termos de tipos lógicos diferentes, cuja permuta de posições na
relação não é possível logicamente. Em razão disto, Russell também chamou as relações
assimétricas heterogêneas de “relações não-permutativas”, pois nelas o intercâmbio de
posições dos termos não gera nenhuma proposição que expresse um estado de coisas possível.
E, como já foi notado com as relações dos dois casos anteriores, devemos notar
também com as relações assimétricas heterogêneas, a saber, que elas constituem um tipo
peculiar de relações, distinto dos outros dois. Diferentemente das relações simétricas, elas não
podem trocar de posição com seus termos e, diferentemente das relações assimétricas
homogêneas, elas não permitem que seus termos mudem de posições. Elas e seus termos,
portanto, são irremovíveis de suas posições. Nenhum cambiamento de posições nelas resultará
num complexo lógico.
Desse modo, pra fixar melhor o percurso feito, transformemos num quadro geral toda
essa vigorosa classificação de simetria e assimetria dada por Russell às relações. Segundo ele,
as relações podem ser:
SIMÉTRICAS Não-Permutativas Embora permitido, o intercâmbio dos termos não
gera nada logicamente novo.
ASSIMÉTRICAS
Não-Permutativas Heterogêneas O intercâmbio dos termos não gera nada
logicamente válido, não é permitido.
Permutativas Homogêneas O intercâmbio dos termos gera
novos complexos lógicos.
58
Curiosamente, porém, ao fazer uso dessas considerações sobre simetria e assimetria, Russell
deteve-se nos complexos formados por relações duais e deu pouca atenção aos complexos
formados por relações de aridades mais altas. Seguindo esse rumo, ele classificou os
complexos de crença como “crenças não-permutativas” e “crenças permutativas”.
Contudo, considerando atentamente a relação acreditar, percebemos que é possível ir
além desse passo dado por Russell e refinar ainda mais a aplicação de sua análise para mostrar
que ela é uma relação assimétrica que contém alguns elementos passíveis de assimetria
homogênea e outros de assimetria heterogênea. Quando ela envolve uma relação subordinada
de primeira ordem, por exemplo, alguns de seus termos podem ser passíveis de assimetria
homogênea, menos a relação subordinada. Esta nunca conta com a possibilidade de assimetria
homogênea diante dos outros termos, apenas com a possibilidade de assimetria heterogênea.
Por conseguinte, do ponto de vista assimétrico, a relação subordinada é um termo irremovível
na relação acreditar. E, assim como a relação acreditar exige que se considere em torno de si
a assimetria de todos os termos que ela envolve, a relação subordinada exige que se considere
em torno de si também a assimetria dos termos que ela envolve, mas, por razões de hierarquia
lógica, não oferece nenhuma possibilidade dela mesma trocar de lugar com os termos.
Consequentemente, tratando-se da relação acreditar, poderemos ir além de Russell e
fazer uma aplicação global e outra aplicação local das propriedades de assimetria homogênea
e assimetria heterogênea na própria relação acreditar. Uma aplicação em torno da relação
acreditar e outra em torno da relação subordinada. Mas esse trabalho só será feito no Capítulo
Terceiro, antes precisamos considerar a classificação russelliana das crenças em não-
permutativas e permutativas.
1.2.2.1.1 Crenças não-permutativas
As crenças não-permutativas podem ocorrer de dois modos, dependendo da relação
que ocorre nelas ser assimétrica heterogênea ou simétrica. Primeiro, ela é não-permutativa
quando o complexo da crença é completamente determinado por seus constituintes, isto é,
59
quando o complexo da crença é assimétrico heterogêneo com respeito aos termos envolvidos
pela relação subordinada.55 Por exemplo:
(16) Otelo acredita que cinco é o número favorito de Desdemona.
(17) Otelo acredita que Desdemona é o número favorito de cinco.
Neste caso, a crença expressa em (16) é não-permutativa, porque o complexo lógico
formado pela relação subordinada ser o número favorito de, com o termo cinco como sujeito e
o termo Desdemona como relatum é um complexo assimétrico heterogêneo. Nesta crença, os
termos envolvidos pela relação ser o número favorito de pertencem a categorias ontológicas
diferentes e são, em sentido não-fregeano, de tipos lógicos diferentes. Eles não são
intercambiáveis logicamente e nenhum complexo lógico possível resulta do intercambiamento
das posições deles naquela relação, como mostra (17). E não resultará também se houver um
intercambiamento de posições entre a relação subordinada e os seus termos, pois, situações
como “Otelo acredita que é o número favorito de cinco Desdemona” ou “Otelo acredita que
cinco Desdemona é o número favorito de” não expressam crença num complexo lógico.
Segundo, uma crença também é não-permutativa quando ela envolve uma relação
simétrica. Por exemplo:
(18) Otelo acredita que João é irmão de Pedro.
(19) Otelo acredita que Pedro é irmão de João.
Neste caso, a crença é não-permutativa porque “nenhuma crença diferente resulta do
intercâmbio dos objetos”.56 O conteúdo do complexo lógico formado com a relação
subordinada ser irmão de e os termos João e Pedro em (18) ainda continua a ser o mesmo
conteúdo lógico em (19), após a mudança nas posições dos termos da relação subordinada. O
55 RUSSELL, p. 141. 56 RUSSELL, 1913, p. 144.
60
intercambiamento nas posições dos termos não mudou o conteúdo lógico do complexo, ele
continuou a exigir o mesmo estado de coisas correspondente para ser verdadeiro. Além disso,
mesmo que a relação subordinada troque de posição com os termos, a crença continuará não
permutativa, pois o complexo lógico continuará o mesmo.
1.2.2.1.2 Crenças permutativas
As crenças permutativas, por sua vez, são aquelas que envolvem uma relação
assimétrica homogênea, isto é, uma relação que permite o intercambiamento de posições entre
seus termos, e este intercambiamento gera uma crença diferente que, por sua vez, demanda
um complexo correspondente diferente para ser verdadeira. O problema com essas crenças,
como se pode ver, é o Problema da Direção. Elas permitem que os termos da relação
subordinada sejam intercambiados, formem complexos com conteúdos lógicos diferentes e
demandem complexos correspondentes diferentes para cada ocorrência dos termos numa
ordem diferente.57 Por exemplo:
(20) Otelo acredita que Desdemona é mais alta do que Cássio.
(21) Otelo acredita que Cássio é mais alto do que Desdemona.
Como se pode ver, o conteúdo lógico da crença de Otelo em (20) é diferente da do
conteúdo lógico crença de Otelo em (21) e cada uma exige um complexo correspondente
diferente para ser verdadeira. Este é, na verdade, o Problema da Direção Estreita. As crenças
permutativas envolvem relações que permitem logicamente o intercambiamento dos termos
como faz, por exemplo, a relação ser mais alto do que descrita em (20) e (21). Se tais relações
ocorrem como relações subordinadas, então, haverá a possibilidade de formação de dois
complexos lógicos. Mas, somente dois, pois o intercâmbio de posições entre a relação
subordinada e os termos objetos, nestes casos, não é facultado. Contudo, ainda permanece a
questão de saber em que se apoia a relação acreditar para formar uma crença permutativa se,
57 Ibidem., p. 145.
61
envolvendo uma relação subordinada assimétrica e dual, ela tem a possibilidade de formar
dois complexos lógicos?
Russell percebeu que nas crenças não-permutativas heterogêneas o Problema da
Direção não surge porque “nenhuma crença diferente resulta do intercâmbio dos objetos” e
procurou expandir sua definição “para crenças permutativas”.58 Considerando que duas
crenças diferentes podem ser formadas com os mesmo relata quando a relação subordinada é
dual e assimétrica homogênea, ele procurou uma maneira de fixar suas possíveis ocorrências
em complexos associados não-ambíguos.
O curioso é que para tentar usar a definição de crença não-permutativa heterogênea
na explicação das crenças permutativas, Russell situou o problema da permutatividade no
nível da linguagem e no nível lógico com uma significativa diferença. No nível da linguagem,
manteve ele, o problema com as crenças permutativas consiste em “encontrar um método”
que distinga as crenças possíveis “pelo significado das palavras”.59 E no nível lógico, o
problema consiste em “achar complexos associados não-ambíguos por meio dos seus
constituintes”, que “determinem completamente” suas possíveis ocorrências lógicas.60
Antes de apreciarmos seu esforço em identificar esses “complexos associados não-
ambíguos”, porém, convém levantar duas questões sobre esse caminho escolhido por ele.
Primeira: qual pode ser o método capaz de responder ao problema das crenças permutativas
no nível da linguagem, para o qual Russell acenou? Ele não disse nada a esse respeito,
diretamente, mas, deu uma pista valiosa ao afirmar que ele deve ser um método que distinga
as crenças possíveis “pelo significado das palavras”. Ora, um método que distinga as crenças
possíveis, num complexo permutativo, pelo significado das palavras pode muito bem ser o
método da análise do significado e das funções das palavras na linguagem, isto é, pode muito
bem ser o método analítico do próprio Russell. Basta lembrar seus passos bem sucedidos na
análise lógica da linguagem, bem como o cuidado com os enganos que a linguagem pode
causar, presentes na teoria das descrições definidas.
Com isso, então, temos a segunda questão: por que não buscar também um método
equivalente no caso do problema lógico, ao invés de enveredar por outro caminho buscando
“complexos associados não-ambíguos”? Ou seja, por que ele não considerou o problema no
58 RUSSELL, 1913, p. 144-145. 59 Ibidem., p. 145. 60 Ibidem., p. 145.
62
nível lógico como sendo a tarefa de encontrar um método que distinga as crenças possíveis a
partir da natureza e das funções dos termos? Russell não levantou essa questão em seu texto,
mas ela parece bastante pertinente. Afinal de contas, o seu método de análise lógica do
significado das palavras permite também a análise lógica dos objetos e relações, suas funções
e capacidades combinatórias, num complexo efetivo ou num complexo lógico como, aliás, ele
fez na primeira versão da Teoria RM.
A consideração desse outro caminho, que se afasta da ideia de achar complexos
associados não-ambíguos, porém, será adiada para o Capítulo Terceiro. Consideremos ainda
um pouco mais do caminho que Russell tomou nesta terceira versão.
1.2.2.1.3 Complexos associados não-ambíguos
Segundo Russell, complexos associados não-ambíguos são “aqueles complexos que
existem apenas quando o complexo original existe”.61 Eles são complexos não-permutativos
formados pela relação assimétrica heterogênea de cada um dos termos objetos de um
complexo com o próprio complexo como um todo. Consideremos, por exemplo, o seguinte
complexo permutativo expresso pela frase:
(10) Desdemona ama Cássio.
Neste complexo, Desdemona mantém uma relação para com o complexo como um
todo e Cássio mantém outra. Se representarmos o complexo como um todo com ,
representarmos a relação de Desdemona para com C1 e representarmos a relação de Cássio
para com C2, poderemos chegar aos dois complexos associados não-ambíguos que permitem
descrever rigorosamente o complexo permutativo original como mostram (22) e (23):
(22) Desdemona mantém a relação C1 com .
61 RUSSELL, 1913, p. 145.
63
(23) Cássio mantém a relação C2 com .
Assim, com esses complexos associados, que são formados com termos de tipos
lógicos diferentes, irremovíveis logicamente de suas posições, sustentou Russell, podemos
descrever de forma determinada o complexo permutativo . Para isto, basta juntar os dois
complexos associados (22) e (23) numa descrição complexa única, como mostra (24):
(24) Há um complexo no qual Desdemona mantém a relação C1 com e Cássio
mantém a relação C2 com .
A descrição62 rigorosa do complexo original permutativo (10) dada em (24), porém,
é uma sentença molecular. E alguns críticos, como Griffin,63 por exemplo, acham isso
problemático. Mas não entendemos assim. Descrever um complexo atômico por meio de dois
complexos atômicos parece bastante comum no dia a dia. Por exemplo, descrevemos o
complexo atômico “João é avô paterno de Pedro” com dois complexos atômicos formando um
complexo molecular “João é pai de José e José é pai de Pedro”. O que parece problemático
mesmo com a solução proposta por Russell é que, por um lado, quando a aplicamos a uma
relação no contexto de crença, ela apenas procura descrever um complexo já formado. Ela não
diz nada sobre como esse complexo é formado. E, por outro lado, quando se põe o acento na
intenção do sujeito da crença, ela parece alterar o conteúdo da crença, isto é, ela insere no
jogo relações subjacentes que não fazem parte diretamente da crença em questão. Uma crença
permutativa como, por exemplo, a que é dada acima no complexo , deve ser vista como um
complexo tal formado por uma relação ligando seus termos, onde também “x1 mantém a
relação C1 com e x2 mantém a relação C2 com ”.64
Se este é o caso, então, a crença de Otelo que Desdemona ama Cássio é, na verdade,
uma crença muito mais complexa, que podemos expressar como:
62 RUSSELL, 1913, p. 146. 63 GRIFFIN, 1985, p. 225. 64 RUSSELL, 1913, p. 148.
64
(25) Otelo acredita que há um complexo , formado pela relação amar, em que
Desdemona mantém a relação C1 com e Cássio mantém a relação C2 com .
Por um lado, do ponto de vista da descrição do complexo formado pela crença de
Otelo, percebe-se que a proposta de Russell se sai bem. Ela é uma explicitação da estrutura
lógica do fato que Otelo acredita no complexo , formado pela relação amar, onde
Desdemona mantém a relação C1 com e Cássio mantém a relação C2 com . Por outro lado,
porém, do ponto de vista da formação do complexo de crença a questão não fica resolvida.
Haja vista que, por exemplo, o fato de descrever a estrutura lógica do complexo de crença
dizendo que Desdemona está na relação C1 não justifica por que ela foi posta em C1 na
formação desse complexo.
Em outras palavras, a descrição de um complexo de crença diz como ele está
configurado, não porque ele foi configurado de tal modo e não de outro. Tal lacuna continua a
deixar a Teoria RM a mercê dos ataques do Problema da Direção dos termos. Por
conseguinte, será preciso ir além de Russell a fim de oferecer uma razão para o fato de que
Otelo forma um complexo, o complexo ,com a relação amar, Desdemona e Cássio quando,
na verdade, ele poderia formar dois complexo, digamos e ˈ, com as possibilidades lógicas
que a relação amar lhe oferece para os dois termos em questão.
Ademais, do ponto de vista intencional, resta ainda certo desconforto pela maneira
como Russell descreve o complexo , que constitui o conteúdo da crença de Otelo.
Rigorosamente falando, Otelo acredita que há um complexo constituído por uma relação, a
relação amar, ligando Desdemona e Cássio. Mas, a descrição oferecida por Russell afirma
que Otelo acredita que há um complexo que contêm três relações, isto é, afirma que Otelo
acredita que há um complexo formado pela relação amar, com o termo Desdemona mantendo
a relação C1 e o termo Cássio mantendo a relação C2 com esse complexo. Ora, radicalizando
o aspecto intencional da crença de Otelo, alguém poderá dizer que não é esta a crença de
Otelo, que, intencionalmente, Otelo acredita que há um complexo onde a relação amar liga
Desdemona a Cássio e não que ele acredita que há um complexo que a relação amar liga
Desdemona a Cássio e que Desdemona mantém a relação C1 e que Cássio mantém a relação
C2 com tal complexo.
65
De qualquer modo, o esforço descritivo deixou um ponto positivo para a Teoria RM,
que Russell mesmo parece não ter explorado devidamente. Trata-se do acento dado à
operação da relação subordinada na formação do complexo da crença. Russell demonstrou
admitir que o complexo acreditado por Otelo é formado pela relação subordinada amar. Ora
se a relação subordinada forma o complexo de , mesmo estando sob o domínio da operação
da relação acreditar, então, ela não é um objeto comum na crença, mas, sim, um termo
especial. Explorar esse ponto era vital para a Teoria RM e Russell, por alguma razão, não o
fez. De modo que, no Terceiro e Último Capítulo, retomaremos esse ponto e tentaremos
preencher tal lacuna.
Pra encerrar este tópico, então, olhando os passos dados até aqui, parece seguro
reconhecermos, pelo menos, três importantes avanços obtidos por Russell para sua Teoria
RM. Primeiro, a conquista de uma classificação mais rigorosa de assimetria, em assimetria
homogênea e assimetria heterogênea. Segundo, num complexo lógico formado por uma
relação que tenha qualquer um dos dois tipos de assimetria, existem algumas impossibilidades
lógicas de intercambiamento de lugares. Se a relação for assimétrica homogênea, não poderá
haver intercambiamento de lugares entre a relação e seus temos de forma alguma, e se a
relação for assimétrica heterogênea na poderá haver intercambiamento de lugares dela com os
termos, nem dos termos entre si. E, terceiro, que ele acentuou a importância da operação da
relação subordinada na formação do conteúdo da crença, apesar de não dizer claramente qual
é a relação entre a operação dela e a operação da relação acreditar. Todos esses ganhos vão
nos ajudar no Capítulo Terceiro a mostrar que numa relação de crença permutativa, a relação
subordinada ocupa uma posição especial e é assimetricamente irremovível dentro do escopo
da relação acreditar.
1.2.2.2 Os relata da relação acreditar na terceira versão
A versão da Teoria RM de 1913 trouxe, pelo menos, quatro importantes novidades
no tocante ao assunto dos relata da relação acreditar. A primeira foi a inserção da forma
lógica como um termo adicional entre os constituintes do juízo, a segunda foi a teoria das
posições dos termos no complexo, a terceira foi a tentativa de construir um simbolismo
formal capaz de explicitar a estrutura das ocorrências da relação acreditar e, finalmente, a
quarta foi a tentativa de considerar o Problema da Direção a partir da ideia de relações
66
neutras. De modo que, vamos dividir essa subseção nestes quatro pontos e considerar
separadamente cada uma dessas inovações.
1.2.2.2.1 A forma lógica geral da relação e a determinação da direção dos termos
Nesta versão da Teoria RM Russell tentou dois caminhos novos para superar o
problema da Direção sem apelar para a natureza da relação acreditar ou da relação
subordinada. Um deles foi a sua teoria das posições, que será vista abaixo, e o outro foi a
inserção da forma lógica como um constituinte a mais nas ocorrências da relação acreditar.
Segundo ele, a forma lógica “é o modo em que os constituintes são combinados no
complexo”.65 O sujeito da relação acreditar a alcança abstraindo os componentes do
complexo até ficar só com a sua estrutura pura. A partir daí, ele poderá se relacionar com ela
como um termo em todos os seus atos de crença.
Segundo Russell, é necessário que o sujeito da relação acreditar esteja acquainted
com a forma lógica geral da relação e que ela seja um termo da relação acreditar por duas
importantes razões. A primeira tem a ver com a direção dos termos. Quando está na relação
acreditar para com os vários objetos, formando um complexo com o qual ainda não tem
acquaintance, o sujeito deve aplicar os termos “na forma geral da relação”, isto é, ele deve
preencher a forma lógica do complexo aplicando a ela os termos na direção certa. Uma vez
que ele está acquainted com os termos apenas, mas não com o complexo, a forma lógica
garantirá que ele aplique os termos na ordem certa que a forma determina.66 A segunda tem a
ver com as relações entender e acreditar. Para Russell, se o sujeito da relação acreditar ainda
não estiver acquainted com o complexo, ele não poderá entendê-lo e, portanto, não poderá
acreditar nele. Dito de outro modo, o sujeito da relação acreditar só pode formar uma crença
se estiver acquainted com a forma lógica geral do complexo envolvido nela. Um sujeito que
esteja acquainted com Sócrates e Platão e a relação preceder, por exemplo, mas, não com o
complexo “Sócrates precede Platão”, não entenderá o que significa que Sócrates precede
Platão quando alguém afirmar isso.67
65 RUSSELL, 1913, p. 98. 66 RUSSELL, 1913, p. 116. 67 Ibidem., p. 99.
67
Essa posição de Russell, porém, suscitou muitas reações e com justiça. Ela conflita
bastante com a postura assumida nas duas primeiras versões da Teoria RM, onde a ocorrência
da relação acreditar era pensada a partir das propriedades e funções dos relata. Mas, com a
inserção da forma lógica como termo da relação acreditar, ele reduz drasticamente a
importância dos ganhos obtidos na acquaintance com relações. Nas versões anteriores, se o
sujeito da relação acreditar conhecesse uma relação por acquaintance, ele poderia apreendê-
la, reconhecê-la noutras instâncias e formar crenças com ela, aplicando-a a outros termos
logicamente possíveis. Por que razão agora tal sujeito não entenderia que Sócrates precede
Platão ou não formaria essa crença se ele estiver acquainted com a relação preceder e
Sócrates e Platão?68 E se o sujeito estiver acquainted com Sócrates, Platão e a relação
preceder, o que a forma lógica poderá acrescentar para que ele construa essa crença? A
ordem?
Inicialmente, Russell sustentou que a forma lógica resolveria o Problema da Direção
porque ela permitiria ao sujeito aplicar os objetos na ordem certa.69 Mas depois ele mesmo se
deu conta de que a forma lógica não garante a ordem dos termos. Nos complexos “a precede
b” e “b precede a”, por exemplo, a forma lógica é a mesma, mas a ordem é diferente. Por isso,
ele abandonou essa posição e passou a insistir apenas na ideia de que a forma lógica é
necessária para entender ou acreditar em complexos com os quais ainda não se tem um
conhecimento por acquaintance. O que também é insustentável.
Imaginemos uma situação em que Otelo está acquainted com Alexandre, Hypatia e a
relação amar, como termos apenas, mas não com o complexo Alexandre-ama-Hypatia, nem
com a forma geral da relação dual. Parece, nesse caso, totalmente cabível dizer que Otelo é
capaz de formar a crença “Alexandre ama Hypatia”, uma vez que ele conhece por
acquaintance a relação amar e os objetos Alexandre e Hypatia. Ainda que ele não conheça a
forma geral da relação dual e não tenha acquaintance com o complexo Alexandre-ama-
Hypatia, ele conhece a relação amar por acquaintance, saberá aplicá-la a esses termos
logicamente possíveis e formar esta crença naturalmente. Por outro lado, imaginemos uma
situação inversa. Cássio tem acquaintance com a forma lógica geral da relação dual e com
Alexandre e com Hypatia, mas não conhece a relação amar. Afinal de contas, conhecer a
forma geral da relação dual não implica conhecer todas as relações duais. Então, nesse caso,
68 Ibidem., p. 99. 69 Ibidem., 1913, p. 116.
68
parece impossível dizer que Cássio pode formar a crença “Alexandre ama Hypatia” só porque
ele tem uma relação de acquaintance com a forma da relação dual e com os termos Alexandre
e Hypatia. Então, a acquaintance com a forma lógica geral da relação, como propôs Russell,
não garante que se possa acreditar num complexo com o qual ainda não se tem acquaintance
com a relação, mas a acquaintance com a relação garante. O que nos faz ver que é possível
dispensar a acquaintance com a forma lógica geral da relação, ela não é necessária, mas não
se pode dispensar a acquaintance com a relação, ela é indispensável.
A constatação de que a forma lógica, como um constituinte adicional da relação
acreditar, não garante a ordem dos termos no complexo e não é necessária para formar uma
crença nos leva à conclusão de que é preciso abandonar o uso que Russell tentou fazer dela na
Teoria RM e retornar à análise da natureza da relação subordinada e dos termos envolvidos
por meio dela. Mas, como ele ainda tentou outro recurso antes de voltar a atenção para a
natureza da relação e dos seus termos nesta versão, sugerindo um modo bastante incomum de
determinação das posições dos termos no complexo, vamos considerar primeiro essa sua
teoria das posições.
1.2.2.2.2 As posições dos termos nas crenças permutativas
A teoria das posições desenvolvida por Russell na terceira versão da Teoria RM tenta
abrir um novo caminho de explicação para as crenças permutativas sem apelar para a natureza
lógica da relação acreditar ou da relação subordinada. Com esta escolha, porém, Russell caiu
em grandes dificuldades para explicar a relação acreditar de modo funcional, bem como para
explicar as posições dos termos dentro e fora do contexto de crença. O que revela a ineficácia
deste caminho e a necessidade dele ser abandonado para retornar à via da natureza das
relações e pensar as posições dos termos a partir de suas exigências lógicas.
Na primeira versão da Teoria RM, Russell admitiu que as crenças permutativas
envolvendo uma relação dual podem formar dois complexos diferentes e que a diferença entre
eles reside na colocação dos termos na relação subordinada. Nesta terceira versão, porém, ele
procurou uma maneira de descrever tais complexos permutativos que pudessem identificar
suas diferentes ocorrências e para isso tentou definir as posições dos termos não a partir da
69
relação e de suas exigências lógicas de combinação, mas a partir de relações subjacentes entre
os termos do complexo permutativo e o complexo como um todo.70
Acontece que, de acordo com ele, as posições são determinadas quando o complexo
é dado, não antes. E visto que as posições são determinadas por relações assimétricas
heterogêneas entre os termos e o complexo, elas não podem ser determinadas previamente,
mas somente quando o complexo está constituído. Quando isso acontece, então, é possível
construir uma descrição rigorosa do complexo. Por exemplo, “Desdemona lutou com Cássio”
constitui um complexo quando a relação relacionando lutar com é dada neste complexo.
Agora, chamemos este complexo de . Então, no complexo , Desdemona (d) ocupa a
primeira posição e Cássio (k) ocupa a segunda posição. Estas posições são constituídas,
respectivamente, pelas relações de Desdemona para com o complexo , chamemos ela de C1,
e pela relação de Cássio para com o complexo , chamemos ela de C2. Assim, pode-se
descrever o complexo original , “Desdemona lutou com Cássio”, como:
(26) O complexo consiste do termo d na relação C1 para com o complexo e do
termo k na relação C2 para com o complexo .
Lançando mão desses complexos associados formados pelas relações assimétricas
heterogêneas que chamamos de C1 e C2, portanto, torna-se possível descrever, rigorosamente,
o complexo original sem deixar margem para o problema da Direção dos termos.
A mudança de posição operada por Russell, como podemos ver, foi de grande
envergadura. As colocações dos termos no complexo passaram a ser vistas como posições e as
posições passaram a ser definidas pelas relações dos termos para com o complexo. O que
parece bastante grave nisso tudo, porém, é que Russell fez essa teoria das posições para
descrever complexos já dados e não disse nada sobre como a relação acreditar forma uma
crença permutativa colocando os termos nas posições certas. Será que o sujeito da relação
70 De início, ele assumiu que as posições dos termos têm a ver com a forma do complexo, depois ele assumiu
que elas são funções da relação relacionando e, finalmente, terminou por assumir que elas são relações
assimétricas e heterogêneas dos termos para com o complexo, não com a forma nem com a relação relacionando.
(Cf. RUSSELL, 1913, p. 122 e 146).
70
acreditar terá que pensar essas relações subjacentes que determinam as posições antes de
formar o complexo da crença? E se ele não precisar pensá-las antes de formar a crença, em
que ele se apoia para determinar as posições dos termos? Além disso, Russell só considerou
complexos com um termo em cada posição, quando nos deparamos com complexos formados
por uma relação que tem aridade maior que dois a sua teoria encontra dificuldades ainda mais
sérias.
Se, por um lado, aplicarmos a sua teoria das posições a uma relação em sua ocorrência
direta e depois a aplicarmos numa ocorrência dentro do escopo da relação acreditar, teremos
o seguinte problema:
(10) Desdemona ama Cássio.
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
Em (10) temos um complexo permutativo fora do escopo da relação acreditar e em (3) temos
uma ocorrência da relação acreditar, onde o complexo expresso por (10) ocorre como um
complexo subordinado. Em (10) a posição de Desdemona será determinada pela relação de
Desdemona para com o complexo, chamemos ela de C1, e a posição de Cássio será
determinada pela relação de Cássio para com o complexo, chamemos ela de C2. Mas em (3) a
classificação fica bastante confusa. A posição de Desdemona é determinada por sua relação
para com o complexo geral, expresso por (3), ou em sua relação para com o complexo
subordinado, expresso por (10)?
Se a posição de Desdemona for determinada por sua relação para com o complexo
geral, expresso por (3), então, ela será a posição C2, pois C1 é a posição de Otelo em (3) e, se
a posição de Desdemona for determinada por sua relação para com o complexo subordinado,
aquele que é expresso em (10), então, ela será C1. Qual será, então, a posição exata de
Desdemona C2 ou C1? E com Cássio a confusão fica ainda maior. Se sua posição no
complexo for determinada por sua relação para como complexo geral, então, ela será a
posição C4, pois C1, C2 e C3 são, respectivamente, as posições de Otelo, Desdemona e a
relação amar no complexo geral e, se sua posição for determinada por sua relação para com o
complexo subordinado, então, ela será C2. Qual será, então, a posição exata de Cássio C4 ou
71
C2? Parece que Russell não considerou essa dificuldade. Ele não falou nada sobre como
definir as posições dentro do escopo de crença usando sua teoria da posições.
E, por outro lado, se aplicarmos sua teoria das posições a um complexo formado por
uma relação com aridade superior a dois, mesmo fora do escopo de crença, teremos o seguinte
problema:
(27) Otelo derrubou Desdemona, Cássio e Alexandre.
(27a) () .oC1. dC2. kC3. aC4
(28) Otelo e Desdemona derrubaram Cássio e Alexandre.
(28a) () .oC1. dC2. kC3. aC4
Neste caso, (27) e (28) expressam complexos diferentes formados pela relação
derrubar, mas, ambos têm aridade quatro. No complexo expresso por (27) os termos Otelo,
Desdemona, Cássio e Alexandre têm, respectivamente as posições determinadas pelas
relações assimétricas heterogêneas C1, C2, C3 e C4 de cada um deles para com o complexo. E
no complexo expresso por (28) os termos Otelo, Desdemona, Cássio e Alexandre também
têm, respectivamente as posições determinadas pelas relações C1, C2, C3 e C4 de cada um
deles para com o complexo expresso por (28). Mas, dizer que Desdemona tem a posição
determinada pela relação C2 com o complexo expresso por (27) e também com o complexo
expresso por (28), não identifica que em (27) ela é derrubada por Otelo e em (28) ela derruba
os outros dois juntamente com Otelo.
Além disso, tudo fica ainda mais confuso se tentarmos fazer a formalização das
posições dos termos sugerida por Russell,71 como mostram (27a) e (28a). Os dois complexos
recebem o mesmo simbolismo lógico, mas, a formalização não permite identificar nada do
papel dos termos num complexo e noutro. Significa dizer que em complexos formados por
relações com aridade maior que dois, dizer qual é a posição dos termos no complexo não
basta. É preciso uma teoria que identifique também o lugar e o papel dos termos no complexo,
não apenas as posições deles no complexo.
A teoria das posições sugerida por Russell na terceira versão, então, revela-se frágil e
inaceitável em, pelo menos, três pontos. Ela traz implícita a necessidade do sujeito da relação
71 RUSSELL, 1913, p. 147.
72
acreditar ter que pensar as relações subjacentes entre os termos e o complexo permutativo
para poder determinar as posições deles ao formar uma crença. Ela não consegue determinar
com exatidão as posições dos termos que ocorrem ligados por uma relação subordinada
assimétrica homogênea dentro do escopo de crença. E, por fim, ela revela sérias dificuldades
para indicar o lugar e o papel dos termos nas relações assimétricas homogêneas com aridade
acima de dois.
Apesar disso, é possível ajustarmos e ampliarmos sua teoria das posições, aliando-a à
solução proposta pela primeira versão da Teoria RM para repensarmos as colocações dos
termos, seus lugares e posições a partir da natureza das relações.72Por isso, no Capítulo
Terceiro, procuraremos superar suas dificuldades por meio de uma interpretação multigrade
da relação acreditar. Este passo, claro, exigirá o afastamento dessa tentativa de determinar as
posições por meio de relações subjacentes e complexos associados, e um retorno à posição
assumida na primeira versão da Teoria RM. A necessidade deste retorno à posição inicial,
aliás, parecia prevista por Russell, que não deixou de tratar da natureza da relação
subordinada, nem de pensar como resolver o Problema da Direção a partir dela na terceira
versão também.
1.2.2.2.3 A Direção da relação a partir de sua natureza lógica
Na terceira versão da Teoria RM, Russell também considerou a solução do Problema
da Direção pela via da análise lógica da natureza das relações. Em sintonia com as duas
primeiras versões, ele continuou a sustentar que as relações são itens que existem,
instanciados nas diversas ocorrências concretas, e que subsistem, mesmo quando não ocorrem
em nenhuma instância concreta. E também continuou a sustentar que elas são objetos de
acquaintance, isto é, que um sujeito pode manter com elas relações epistêmicas e conhecê-las,
tanto em suas ocorrências quanto em sua natureza universal.73
Diferentemente da primeira versão, porém, mas não opondo-se totalmente a ela,
Russell sustentou que as relações são neutras, elas não têm essencialmente um sentido.74 O
72 Possibilidade brevemente apontada por Russell também na versão de 1913, mas não aprofundada. Diz ele:
“Deve-se observar que as relações C1, C2, ..., Cn” não são determinadas pela forma, mas apenas pela relação R”
(Ibidem., p. 147. Grifo do autor, tradução nossa). 73 RUSSELL, 1913, p. 84-85. 74 Ibidem., p. 87.
73
sentido ou direção é apenas um artifício da linguagem que a análise deve pôr às claras.
Contudo, apesar de assumir esta posição, ele fez uma exceção e continuou a sustentar que
algumas relações têm uma direção natural “que vai de um termo para o outro”.75 Exemplos
disso são as relações de seqüência temporal e as relações que têm “um termo ativo e outro
passivo”.76
Não discutiremos aqui as razões de Russell para considerar as relações como neutras
nem quais são essas relações porque não é do interesse do nosso objetivo. O que interessa
desse assunto para o objetivo de nossa Tese é notar duas coisas referentes a esse ponto de
vista. Primeiro, a classificação de relações em relações neutras e relações com sentido natural
pode ser entendida, grosso modo, como uma extravagante aplicação das propriedades de
simetria (relações sem uma direção relevante) e assimetria (relações com uma direção
relevante) que já eram aceitas na sua teoria das relações em 1910. Segundo, ele classificou a
direção ou sentido das relações (“que têm esta peculiaridade”) de diferentes modos como, por
exemplo, “ir de um termo para o outro” ou “ter um termo ativo e um termo passivo”.
Russell fez essas classificações da direção das relações e não tirou nenhuma
consequência significativa delas para a Teoria RM no texto de 1913. Mas, no nosso entender,
elas deixam pelo menos três importantes consequências para a Teoria RM, a saber, que
algumas relações impõem sim uma direção aos seus termos, naturalmente, que a operação
desse tipo de relação sobre os seus termos precisa ser levada em conta quando elas ocorrem
no juízo e que a distinção dos lugares adequados para que os termos possam desempenhar os
papéis impostos a eles pela relação também deve ser levada em conta quando a relação ocorre
subordinada à relação acreditar. Coloquemos isso numa situação concreta:
(29) Desdemona quebrou a taça.
No tocante ao conteúdo expresso pela frase (29), podemos perceber três coisas.
Primeiro, a relação quebrar impõe papéis lógicos diferentes aos termos. “Desdemona”
representa o termo que instancia a propriedade principal da relação quebrar, isto é, o termo
75 Ibidem., p. 87. (Grifos do autor). 76 Ibidem., p. 87.
74
que desempenha o papel de sujeito da relação e “taça” representa o termo ao qual a relação
liga o sujeito da relação. Segundo, os termos ficam caracterizados pelos papéis que recebem
da relação. E, terceiro, os lugares dos termos se tornam diferentes, um do outro, pelos papéis
que os termos desempenham em cada um deles.
No que concerne à justificativa dos lugares dos termos na relação, Russell tentou
avançar usando a metáfora do gancho e da argola que os caminhões de transporte têm na
frente e atrás. Ganchos e argolas recebem objetos diferentes e estes exercem sobre eles forças
diferentes também. Trata-se de imagens físicas bastante grosseiras, claro, mas são metáforas77
e como metáforas elas forçam o pensamento a aplicá-las à realidade. Se saltarmos fora delas,
veremos que elas querem dizer que as relações com direção têm lugares adequados para seus
termos na frente e atrás, que eles são lugares diferentes e podem envolver termos de modos e
em quantidades diferentes. Russell mesmo admite isso quando confessa que se trata de
imagens simbólicas, mas que o importante é que elas representam o fato de que as relações
têm “alguma coisa em sua natureza que exige termos, algum tipo de aparelhamento de agarrar
objetos que está sempre procurando por coisas para agarrar”.78
Apesar de Russell ter abandonado essas metáforas e ter se voltado mais para a ideia
de que as relações são neutras, achamos que elas são ótimas e nos levam a pensar sobre como
devemos entender os lugares dos termos nas relações que têm sentido. O lugar do termo de
onde elas partem e no qual elas caracterizam o sujeito da sua operação é diferente do lugar do
termo para o qual elas vão e no qual elas caracterizam o destinatário da sua operação. Além
do mais, esses lugares não precisam ser pensados fisicamente, mas, sim, como lugares
lógicos, exigidos pela natureza da relação ao impor aos termos os devidos papéis lógicos. E,
neste modo de ver, o que as metáforas do gancho e da argola representam reforça a posição da
primeira versão da Teoria RM, pois, ela também coloca a responsabilidade da direção dos
termos e da classificação dos seus lugares na natureza da relação subordinada.
Essas novas perspectivas deveriam ser indicadas também por meio de um
simbolismo formal eficiente. A confirmação de que havia tomado o rumo certo para a Teoria
RM deveria vir também por meio de um simbolismo lógico capaz de expressar a estrutura das
instâncias da relação acreditar. Um simbolismo que indicasse devidamente os lugares dos
77 RUSSELL, 1913, p. 86. 78 “Contudo, elas têm o mérito de ilustrar um importante fato sobre as relações, a saber, que há alguma coisa na
natureza delas que grita por termos, algum tipo de aparato de agarrar, que está sempre procurando por coisas
para agarrar e prender” (Ibidem., p. 86. Tradução nossa).
75
termos, mas, como veremos agora, ao tentar fazê-lo, Russell abandonou a noção de lugares e
voltou-se para sua confusa noção de posições, baseada na ideia de complexos associados,
caindo em sérias dificuldades.
1.2.2.2.4 A tentativa russelliana de encontrar um simbolismo formal para a relação
acreditar
Russell não apresentou nenhum esforço para simbolizar formalmente a relação
acreditar nas duas primeiras versões da Teoria RM. Na versão de 1913, porém, ele tentou dar
esse passo, mas a falta de clareza sobre a relação entre acreditar e a relação subordinada, e
sobre como lidar com os lugares e as posições dos termos envolvidos nas duas relações, não o
deixaram obter sucesso. Seus modelos iniciais foram os seguintes:
(i) U (S, x, R, y, ).
(ii) U (S, A, B, similaridade, R(x, y)).
(iii) J (S, F, x1, x2, ..., xn)
Temos que considerar os detalhes desse simbolismo. As expressões simbólicas
oferecida por (i) e (ii) representam ocorrências da relação que Russell chamou de “entender
uma proposição”, mas, precisamos examiná-las aqui porque, segundo ele, essa relação tem a
mesma forma lógica da relação acreditar. Assim, em (i) “U” representa a relação “entender
uma proposição”, “S” representa o sujeito da relação U, “x” e “y” representam os termos
objetos que integram os relata da relação U, “R” representa a relação subordinada que
também integra o grupo dos relata e “” representa a forma lógica de R. Enquanto que em (ii)
“U” representa a relação “entender uma proposição”, “S” representa o sujeito da relação U,
“A” e “B” representam os termos objetos que integram os relata da relação U, e a forma
lógica da relação dual é representada como “R(x, y)” mesmo.
76
Agora, visto que essa representação simbólica da relação entender uma proposição é
a mesma da relação julgar ou acreditar, pois elas têm a mesma forma lógica,79 no lugar de
entender uma proposição e no lugar de julgar podemos colocar a relação acreditar e teremos
as seguintes expressões simbólicas:
(iv) B (S, x, R, y, ).
(v) B (S, A, B, similaridade, R(x, y)).
(vi) B (S, F, x1, x2, ..., xn).
O primeiro problema com essas expressões simbólicas da relação acreditar é que em
(iv)-(vi) a relação subordinada é simbolizada de modos diferentes. Em (iv) ela é representada
pela letra maiúscula “R”, em (v) ela é nomeada diretamente como “similaridade” e em (vi) ela
é representada por uma variável minúscula, como os demais termos. Essa inconstância na
representação simbólica da relação subordinada parece ser reflexo daquela posição assumida
na segunda versão, que considera a relação subordinada como um termo da relação acreditar
no mesmo nível lógico dos demais termos.
O segundo problema com as representações simbólicas oferecidas por Russell
também consiste na irregularidade de representação, desta vez, porém, envolvendo os outros
termos. O termo sujeito é representado por uma letra latina maiúscula nos três casos, mas os
termos objetos ora são representados por uma letra ou variável minúscula ora são
representados por uma letra maiúscula. E a forma lógica dual que ocorre como um dos termos
da relação acreditar é representada de modo diferente em cada caso: em (iv) é representada
por uma letra grega minúscula, em (v) pela expressão formal “R (x, y)” e em (vi) por uma
letra latina maiúscula.
Toda essa inconstância para simbolizar formalmente os termos nas ocorrências da
relação acreditar, vale a pena insistir, parece ser reflexo da sua falta de clareza sobre o papel e
a natureza da relação subordinada dentro da crença. Por não ter claro se a relação subordinada
deve ser considerada como um termo no mesmo nível lógico dos outros termos ou como uma
79 RUSSELL, 1913, p. 108.
77
relação num nível lógico acima dos demais termos é que Russell a representa ora como um
objeto (com uma letra minúscula) ora como uma relação (com uma letra maiúscula), e faz o
mesmo com os outros termos também.
O terceiro (e mais grave) problema com as representações simbólicas propostas por
Russell, porém, reside na presença da forma lógica da relação dual como um termo da relação
acreditar. Por que ela está ali? Segundo ele, é para garantir que a relação subordinada
mantenha dentro do contexto de crença as mesmas posições que ela mantinha fora dele, visto
que, para ele, “o processo de ‘unir’ que nós efetivamente podemos fazer no pensamento é o
processo de aplicar [os termos] na relação com a forma geral do complexo”.80
Russell não encontrou o jeito adequado para representar dentro do escopo da relação
acreditar os lugares e as posições que os termos da relação subordinada ocupam quando
ocorrem fora dela. E o remédio aplicado por ele, ao invés de sarar, tornou o ferimento ainda
maior. Haja vista que, ao invés de explicar os lugares e as posições dos termos da relação
subordinada dentro do escopo da relação acreditar, de modo que se harmonizem com os
lugares e as posições deles na relação fora dela, Russell agora terá que explicar também o
lugar e a posição da forma lógica (como termo adicional) dentro do escopo da relação
acreditar.
Em (iv) e (v), por exemplo, a forma lógica é o termo do quinto lugar da relação e em
(vi) ela é o termo do segundo lugar. Por que? Russell não deu nenhuma justificativa para isso
e nem reconheceu que assim a necessidade de explicar a ordem dos termos e dos seus lugares
fica ainda mais gritante. Além disso, a inserção dela como termo da crença para garantir as
posições dos termos da relação subordinada foi totalmente ineficaz. Deve-se entender que o
sujeito aplica a forma aos termos (abraçando eles com a forma) ou que o sujeito aplica os
objetos à forma (preenchendo ela com os objetos)? Mas como se faz uma coisa ou outra? E
ainda que se faça qualquer uma dessas coisas, a forma lógica não garantirá as posições dos
termos.81 E todos esses problemas, claro, ficam ainda mais graves se a relação subordinada
tiver aridade acima de dois.
Tentando remover esses obstáculos no simbolismo das ocorrências da relação
acreditar, a tradição posterior rejeitou a ideia de representar a forma lógica como um termo
80 RUSSELL, 1913, p. 116. 81 RUSSELL, 1913, p. 81.
78
separado dos demais e procurou eliminar as inconstâncias na representação dos termos.
Manter a forma lógica como um termo adicional no ato de crença era extremamente
inoperante e não resolvia o problema da representação das posições dos termos. E as
inconstâncias na representação lógica dos termos causavam confusão no tocante à
identificação precisa do que representa um objeto e do que representa uma relação. A solução
veio com a padronização do uso de letras maiúsculas para representar as relações, tanto a que
gera o complexo quanto a subordinada, e o uso de letras minúsculas para representar os
termos particulares. Por exemplo:
(vii) B (s, R, x, y).
Aqui, “B” representa a relação acreditar, “s” representa o sujeito da relação B, “R”
representa a relação subordinada e “x” e “y” representam os termos objetos. Com isso ficou
claro o que representa objetos e o que representa relações, ou seja, o que está em um nível
lógico e o que está em outro. Mas isso não resolveu o problema central que impedira Russell
de chegar a um simbolismo formal eficaz da relação acreditar. Isso apenas resolveu o
problema da padronização na representação dos termos. O problema central para um
simbolismo eficaz da relação acreditar está na explicitação adequada da colocação dos termos
e dos papéis que eles desempenham na relação subordinada. Em (vii), por exemplo, tudo está
envolvido por B, mas os lugares dos termos são todos iguais. O que permite distinguir os
papéis dos termos nas duas relações é a regra sintática que se assumiu para determinar que o
termo do primeiro lugar no simbolismo representa o sujeito da relação B, o termo do segundo
lugar representa a relação subordinada, o termo do terceiro lugar representa o sujeito da
relação subordinada e o termo do quarto lugar representa o relatum da relação subordinada.
Contudo, isso só funciona se a relação subordinada for dual e assimétrica homogênea. Caso a
relação subordinada tenha aridade acima de dois, teremos situações como essa apresentada em
(viii):
(viii) B(s, R, x, y, z).
79
Qual é o lugar que a relação R ocupa entre os termos x, y e z em (viii)? O simbolismo dado
não oferece nenhuma pista e a regra sintática que usamos antes também não tem como dizer.
A relação R poderá ocorrer logicamente tanto no lugar que fica depois de x quanto no lugar
que fica depois de y. Ou seja, este modelo continua sem responder ao desafio de representar
adequadamente dentro da relação acreditar os lugares do termo que a relação subordinada
determina dentro do escopo da relação acreditar.
Um passo muito importante para resolver essa dificuldade no simbolismo das
ocorrências da relação acreditar foi dado na teoria das relações multigrade. Ele será visto em
detalhe no Capítulo Terceiro, mas podemos concluir esta subseção antecipando sua ideia
central, que consiste em distinguir lugares de posições na ocorrência de uma relação. Os
lugares devem ser demarcados com ponto e vírgula, enquanto que as posições devem ser
demarcadas com vírgulas no simbolismo. Tomemos como exemplo as seguintes ocorrências
da relação lutar com, simbolizada por “F”:
(30) Desdemona lutou com Cássio e Romeu.
(30a) F (d; c, r)
(31) Desdemona e Cássio lutaram com Romeu.
(31a) F (d, c; r)
(32) Desdemona e Cássio lutaram com Romeu e Julieta.
(32a) F (d, c; r, j)
De acordo com a proposta da teoria multigrade a relação lutar com tem dois lugares
de termos e cada um deles pode ocorrer com um ou vários objetos ocupando posições
diferentes. Em (30), por exemplo, ela ocorre com um objeto no primeiro lugar e dois objetos
no segundo lugar, em (31) ela ocorre com dois objetos no primeiro lugar e um objeto no
terceiro lugar e em (32) ela ocorre com dois objetos no primeiro lugar e dois objetos no
segundo lugar. O ponto e vírgula separa os lugares e a vírgula separa as posições que os
objetos ocupam dentro de um lugar, como mostram (30a), (31a) e (32a).
80
Agora, podemos aplicar a proposta da interpretação multigrade à relação acreditar82
e obter um importante ganho para simbolizar adequadamente a relação acreditar, situando
devidamente a relação subordinada. Tomemos como exemplo três ocorrências da relação
acreditar envolvendo, respectivamente, os juízos expressos em (30), (31) e (32):
(33) Otelo acredita que Desdemona lutou com Cássio e Romeu.
(33a) B (o; F, d; c, r)
(34) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Romeu.
(34a) B (o; F, d, c; r)
(35) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Romeu e Julieta.
(35a) B (o; F, d, c; r, j)
Nesses casos, a relação acreditar é considerada uma relação multigrade de quatro
lugares que, com a ajuda da regra sintática referida acima, podem ser devidamente
interpretados. No primeiro lugar fica o seu sujeito, no segundo lugar fica a relação
subordinada, no terceiro lugar fica o sujeito da relação subordinada e, sendo esta uma relação
assimétrica dual, no quarto ligar fica o relatum ou relata da relação subordinada. Isto
garantirá que os lugares do termo relação, fora do contexto de crença sejam representados
devidamente como posições dentro da crença. O problema, contudo, volta a aparecer quando
a relação subordinada tem mais de dois lugares, porque em tais ocorrências a regra sintática
de que o segundo lugar da relação subordinada pertence ao relatum não vai dar a conta da sua
situação. Nesses casos, porém, quando alcançarmos a resposta para a questão da relação entre
acreditar e a relação subordinada, abriremos caminho para alargar o uso da estratégia
multigrade e acomodar tais situações. Contudo, isso só acontecerá no Capítulo Terceiro. Por
ora, vamos encerrar este Capítulo Primeiro recolhendo os ganhos do percurso feito até aqui.
1.3 A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA VERSÃO E A CRÍTICA À TEORIA RM
82 Justificaremos porque a relação múltipla acreditar pode ser considerada uma relação multigrade na subseção
3.2.1 do Capítulo Terceiro.
81
De certo ponto de vista, os passos dados nas seções anteriores nos permitem perceber
que, de modo geral, as peculiaridades centrais das três versões da Teoria RM favorecem a
identificação de algumas razões que permitem reconhecer a primeira delas como a melhor e a
mais pertinente para uma releitura bem sucedida. E, outro ponto de vista, os mesmos passos
dados nas seções anteriores também nos permitem perceber uma lacuna profundamente
problemática com alguns pontos cruciais a serem resolvidos e um erro grave, da parte de
Russell. Lacuna esta, que precisa ser devidamente superada para que a primeira versão da
Teoria RM possa funcionar bem.
Além disso, ainda pretendemos mostrar que a crítica à Teoria RM, de modo geral, foi
construída sobre a decisão, errada, que Russell tomou, a partir da segunda versão, de tratar a
relação subordinada como um objeto comum na crença. De modo que nesta última seção do
Capítulo Primeiro, vamos considerar mais detalhadamente as razões para sustentar que a
primeira versão leva vantagem sobre as demais, a lacuna que Russell não conseguiu preencher
na primeira versão e a crítica à Teoria RM.
Assim, para melhor viabilizar esses passos, dividiremos esta seção em quatro
subseções. A primeira tratará das vantagens da Teoria RM. A segunda tratará da lacuna que
impediu Russell de obter sucesso com a primeira versão da Teoria RM e tratará do erro de
Russell em considerar a relação subordinada um objeto comum na crença. A terceira tratará
da crítica á Teoria RM. E, finalmente, a quarta tentará sumarizar o caminho percorrido até o
momento, pondo em relevo os pontos mais importantes para nossa Tese.
1.3.1 A vantagem da primeira versão da Teoria RM
Um olhar global sobre as três versões da Teoria RM nos faz ver que a primeira delas
se destaca das demais por, pelo menos, quatro vantagens que as outras não oferecem e que, se
forem devidamente exploradas, permitirão superar o Problema da Direção e as dificuldades
adjacentes a ele, pontos estes que serão vistos detalhadamente somente no próximo Capítulo.
Em primeiro lugar, ela apresenta a relação acreditar de tal modo, que nos permite vê-la como
uma relação variável na aridade, no número de lugares dos termos e na ordem lógica. De fato,
Russell não afirma, explicitamente, na primeira versão que acreditar tem todas essas
propriedades lógicas, mas ele apresenta o que são relações múltiplas e como a relação
82
subordinada tem que estar na crença, de tal modo, que nos permite considerá-la uma relação
variável nesses pontos.
De fato, na primeira versão da teoria RM, ele apresenta as relações múltiplas como
relações que podem ocorrer com diferentes números de termos. Sua ilustração lança mão da
relação “... tem ciúmes de ... com...”, mas, sua posição aplica-se a toda relação múltipla:
Nós consideramos [“... tem ciúmes de ... com...”] uma relação de três pessoas, isto é,
como tendo para sua unidade uma relação que podemos chamar de “triangular”.
Mas, se formos além e levarmos em conta a necessidade de uma data, a relação se
torna uma relação “quadrangular”, isto é, a proposição mais simples que envolver a
relação será de quatro termos, nomeadamente, três pessoas e uma data.83
Ora, afirmar que uma relação múltipla pode ocorrer como relação “triangular” e que pode se
tornar uma relação “quadrangular” equivale a dizer que ela pode ocorrer com diferentes
números de termos. E se ela pode ocorrer com diferentes números de termos, então, ela pode
ser vista como relação que varia na aridade e no número de lugares para os termos. Além do
mais, não somente podemos aplicar isso á relação acreditar, como também podemos
acrescentar que a primeira versão da Teoria RM insiste que um dos relata, em suas
ocorrências, “é uma relação”84 e, de certo modo olha pra essa relação como relação. O que
nos permite assumir também que a relação acreditar pode variar de ordem lógica, pois, pode
haver casos em que a relação subordinada seja uma relação de segunda ordem ou de ordem
lógica superior.
Além do mais, a maneira como a primeira versão da Teoria RM apresenta a relação
acreditar nos permite tratá-la como uma relação que opera sobre os termos e, de certo modo,
opera, por meio da relação subordinada, para obter a direção certa dos termos. De fato, afirma
Russell, no texto da primeira versão:
83 RUSSELL, 1910a, p. 181. 84 Ibidem., p. 181.
83
O juízo que dois termos estão numa relação R é uma relação da mente para os dois
termos e a relação R como sentido apropriado.85
Observemos, porém, que para a relação R ocorrer na crença “com o sentido apropriado” como
sugere Russell, ela tem que ser posta nesse sentido pelo juízo. Afinal de contas, ela também
poderia ser posta com um sentido “inapropriado”. E isso nos faz pensar, mesmo que Russell
não tenha dito como, que, de algum modo, a relação acreditar exerce certo governo sobre a
relação subordinada para poder obter o sentido “apropriado” dos objetos.
Em segundo lugar, apesar da primeira versão da Teoria RM afirmar que os relata da
crença são objetos, ela trata a relação subordinada como uma relação que, de certo modo,
deve estar relacionando os termos envolvidos por ela dentro do escopo da relação acreditar.
De modo que, mesmo afirmando que a relação subordinada está entre os objetos crença,
Russell também diz que ela:
não deve estar abstratamente diante da mente, mas, sim, indo e A para B, mais do
que de B para A”.86
Ora, se a relação subordinada tem que estar diante da mente indo de A para B, então, ela tem
que estar, de algum modo, relacionando A e B. Mais ainda. Ela tem que estar, de algum
modo, determinando os lugares de A e B. Como ela pode fazer isso? Russell não ofereceu
uma resposta para essa questão, deixou a lacuna aberta, mas, nós podemos oferecer uma saída
que justifique como, sendo um objeto (não comum) da crença, a relação subordinada pode ser
posta diante da mente ligando os objetos e determinando as condições para suas posições.
Em terceiro lugar, a primeira versão da Teoria RM favorece a construção de uma
adequada explicação para os lugares e posições dos termos nas ocorrências da relação
acreditar envolvendo relações assimétricas. Ela assume a teoria robusta das relações de
Russell, segundo a qual relações têm um sentido que pode ser percebido pela colocação dos
85 RUSSELL, 1910a, p. 184. 86 Ibidem., p. 183.
84
termos e seu sentido consiste em ir de um termo para outro. Por conseguinte, no entender da
primeira versão da Teoria RM:
Nós podemos distinguir “dois sentidos” de uma relação, conforme ela vai de A para
B ou vai de B para A.87
Ora, só podemos distinguir “dois sentidos”, se a relação vai de A para B ou de B para A,
quando a relação é assimétrica. E se a relação é assimétrica, então, devemos ter em conta que
assimetria é uma propriedade determinante para os papéis lógicos e os lugares que os termos
ocupam em suas ocorrências. Por isso, ainda que Russell não tenha estendido a reflexão até
esse ponto na primeira versão da Teoria RM, ela favorece que o façamos, inclusive, fazendo
uso também dos ganhos obtidos com a refinada consideração de assimetria feita na terceira
versão.
E, em quarto lugar, a primeira versão da Teoria RM localiza a base do tradicional
Problema da Direção dos termos, diretamente, na natureza da relação subordinada. Pois, se,
por meio da relação subordinada, a relação acreditar pode formar dois sentidos diferentes,
conforme a relação subordinada vai de A para B ou de B para A e, se a relação acreditar deve
pôr a relação subordinada na crença com um sentido apropriado, então, o Problema da
Direção reside nas possibilidades e exigências lógicas que a relação subordinada oferece á
relação acreditar. Mas, como fez Russell na segunda versão e como fizeram os críticos da
Teoria RM, se a relação subordinada for considerada um objeto comum na crença, então o
Problema da Direção está mais para uma construção forçada, fabricada a partir de um
pressuposto insustentável, do que para uma consequência lógica que decorre,
necessariamente, da Teoria RM.
1.3.2 A lacuna que impediu o sucesso de Russell na primeira versão da Teoria RM
A primeira versão da Teoria RM assume que, ao ocorrer numa instância, a relação
acreditar une os vários termos, entre os quais está a relação subordinada, e forma uma
87 RUSSELL, 1910a, p. 184.
85
unidade, que constitui um juízo ou crença. Russell exemplifica isso com o juízo que Carlos I
morreu no cadafalso. Segundo ele:
Em vista de obter este juízo, nós devemos ter uma unidade singular da mente e
Carlos I e morrer e cadafalso.88
A ocorrência do juízo ou crença só se efetua quando a mente e os termos relata formam uma
unidade lógica. Se não houver tal unidade não haverá uma crença. Então, a grande questão
que essa demanda impõe é saber quem é responsável por esta unidade, a relação acreditar ou
a relação subordinada? A resposta de Russell deveria dizer que as duas relações causam esta
unidade, desempenhando papéis lógicos diferentes e operando em campos também diferentes.
Mas, ela não disse isso e deixou essa lacuna aberta. De fato, como vimos ao longo de todo
este Capítulo Primeiro, apesar de ter assumido na primeira versão que a relação subordinada
tem um papel determinante para a direção dos termos na crença, Russell não conseguiu
justificar como ela faz isso, nem conseguiu dizer qual é sua real participação na constituição
da unidade formada pela ocorrência da relação acreditar.
Além de não ter dado uma resposta às demandas dessa lacuna na primeira versão da
Teoria RM, Russell agravou a situação de sua Teoria, sobretudo, a partir da segunda versão,
quando passou a tratar a relação subordinada como um objeto comum na crença. De fato, ao
admitir que a relação subordinada é apenas um objeto, ao lado dos demais objetos, na crença,
Russell igualou o nível lógico dos termos relata e estabeleceu uma base bastante
questionável para o Problema da Direção. Essa decisão, apesar dele mesmo ter admitido anos
depois que foi um erro, arrastou a crítica à Teoria RM para uma desajustada concepção do
Problema da Direção, como veremos a partir da próxima subseção.
No nosso entender, porém, tanto aquela lacuna deixada por Russell na primeira
versão da Teoria RM, quanto o erro de ter escolhido tratar a relação subordinada como um
objeto comum na crença, podem e devem ser superados. Aquela lacuna demanda uma
justificativa adequada dos pontos que ficaram abertos, uma justificativa que permita explicar a
operação das duas relações, acreditar e a subordinada, quando uma instância da relação
88 RUSSELL, 1910a, p. 178.
86
acreditar ocorre efetivamente, que permita explicar a operação específica de cada uma das
duas relações, acreditar e a subordinada, na ocorrência de cada instância e que permita
explicar qual é a relação entre as duas relações, visto que acreditar é a relação principal e a
outra é a relação subordinada, quando as duas formam uma unidade.
Já o erro de ter escolhido tratar a relação subordinada como um objeto comum na
crença, este demanda uma justificativa adequada para o tipo de operação relacionante que a
relação subordinada exerce, sob o comando da relação acreditar. Uma justificativa que
permita explicar como, sendo uma relação subordinada, ela também é uma relação
relacionante. Mas, todos esses passos, só serão dados no Capítulo Terceiro. Antes, ainda
precisamos expor o rumo que a crítica da Teoria RM tomou, ao aceitar, direta ou
indiretamente, o pressuposto russelliano de que a relação subordinada é um objeto comum na
crença.
1.3.3 A Crítica à Teoria RM
Tendo considerado as vantagens que a primeira versão da Teoria RM no oferece, os
pontos abertos para os quais aquela versão não ofereceu resposta e a decisão tomada por
Russell de tratar a relação subordinada como um objeto comum na crença, vamos considerar
agora, mais atentamente, a crítica à Teoria RM. Uma crítica que, de um modo ou de outro,
sempre privilegiou o Problema da Direção e tomou como base, para seus ataques, o
pressuposto russelliano de que a relação subordinada é um objeto comum na crença. Uma
crítica, portanto, que esteve o tempo todo empenhada em mostrar que a Teoria RM não
funciona porque não considera, e não pode considerar, a relação subordinada como uma
relação, mas, que não ofereceu nenhuma saída, nem para superar esse pressuposto, nem para
preencher aquela lacuna inquietante deixada pela primeira versão.
A fim de apreciarmos melhor as características básicas dessa crítica, então, vamos
considerar de modo exemplar a posição de cinco críticos da Teoria RM. Assim, dividiremos
esta subseção em cinco pontos destinados, respectivamente, a cada um deles. Os quatro
primeiros tecem uma crítica radical à Teoria RM e o quinto, apesar de fazer uma brilhante
defesa da Teoria RM, permanece oscilante entre o paradigma que trata a relação subordinada
como um objeto comum e a real necessidade de tratá-la como uma relação dentro da crença.
87
1.3.3.1 George Frederick Stout
A crítica de Stout à Teoria RM mais contundente encontra-se no texto Mr. Russell’s
Theory of Judgement (1914-15). Nesse texto o seu alvo declarado era a posição de Russell
sobre a relação de correspondência, mas foram os seus golpes à noção de relação subordinada
e ao Problema da Direção dos termos no juízo que atingiram mais gravemente a Teoria de
Russell.
Sobre a relação de correspondência entre o juízo e o fato que, se existir, torna o juízo
verdadeiro, a principal acusação de Stout consistiu em reivindicar que a Teoria RM não tem
direito a falar em relação de correspondência, pois, só se pode falar de correspondência se
houver algo correspondendo a algo, isto é, se “houver alguma coisa que esteja diante da mente
que acredita” e que seja capaz de corresponder “a um fato real”.89 E, uma vez que a Teoria
RM rejeita tanto a ideia de que o sujeito tem um objeto complexo diante da mente quanto a
ideia de que ele precisa estar diante de um fato real para poder julgar, resulta que a relação de
correspondência proposta pela Teoria RM inexiste. Ou seja, aquilo que a Teoria RM postula é
uma relação “entre alguma coisa que a mente não pensa como tal com alguma outra coisa que
ela também não pensa como tal”.90
Se perguntado sobre o objeto complexo que o sujeito da crença deve ter diante da
mente para que a relação de correspondência seja possível, porém, Stout responde que ele
consiste num fato e que este fato “difere de um fato real não em sua natureza, mas no tipo de
ser que lhe pertence”.91 Uma posição, sem dúvida, muito misteriosa. Como é possível um fato
que tenha um tipo de ser diferente de um fato real e não tenha outra natureza? Além do que,
percebe-se que as críticas de Stout não atingem a relação de correspondência proposta por
Russell.
Em primeiro lugar, Russell não sustenta que a relação acreditar é uma relação entre
alguma coisa que o sujeito não tem diante da mente com alguma coisa fora dela que também
não está diante do sujeito. Ele admite que uma crença verdadeira é uma relação entre a
unidade complexa que o sujeito forma em sua mente, a partir da relação múltipla acreditar e
89 STOUT, 1914-1915, p. 335. 90 Ibidem., p. 335. 91 Ibidem., p. 336.
88
dos constituintes de um fato possível, e um fato real. Ele assume que a crença é uma criação
do sujeito que, tendo diante da mente os termos de um fato possível, forma uma unidade
lógica complexa e esta unidade pode corresponder ou não a um fato real. E, em segundo
lugar, Russell não nega que o complexo formado na crença tenha outro tipo de ser, ao
contrário, ele defende isto. Só que para ele o complexo da crença tem outro tipo de ser e tem
outra natureza, uma vez que é um complexo mental, dependente do sujeito para existir.92
Outro alvo da crítica de Stout foi a posição de Russell sobre a relação subordinada
num ato de crença. Segundo ele, no caso da crença de Otelo, “‘amar’ não é um constituinte do
complexo real, o constituinte do complexo real é ama. Ama é uma relação relacionando que
liga os seus termos, amar é uma relação universal”.93 Por conseguinte, Otelo está em relação
com a relação universal amar na crença e não com a relação ama, isto é, com a relação
relacionando, e no fato correspondente o que ocorre é a relação amar relacionando, no fato
correspondente o que ocorre é ama.
Para isso, Stout argumentou afirmando que se a relação tomada como constituinte do
ato de crença for uma relação relacionando, não se poderá justificar porque acreditar é a
relação relacionando, uma vez que seria necessário admitir duas relações relacionando no
mesmo complexo. E, além disso, também não daria para justificar por que acreditar não
aparece no fato correspondente.94 Ou seja, visto que Russell admite que acreditar é uma
relação entre um sujeito e vários objetos e que a ocorrência dessa relação será verdadeira se
houver um fato correspondente, se as duas relações ocorrerem como relação relacionando,
fica injustificável o fato da relação subordinada aparecer no fato correspondente e a relação
acreditar não aparecer.
O terceiro e último alvo da crítica de Stout foi o Problema da Direção. Acentuando
predominantemente a segunda versão da Teoria RM, ele construiu uma concepção do
Problema da Direção a partir da decisão que Russell tomou de nivelar a relação subordinada e
os demais termos da crença num único nível lógico. Seguindo esse pressuposto, ele sustentou
uma concepção de Problema da Direção que considera os termos tão separados na crença que
fica quase impossível justificar uma combinação lógica para eles. Afirma ele:
92 RUSSELL, 1910a, p. 184. 93 STOUT, 1914-1915, p. 342. 94 Ibidem., p. 342.
89
A crença ‘que A ama B’ é um complexo que inclui como seus constituintes a mente
e A e B e a relação amar. Estes quatro termos são unidos por uma relação singular
que pode ser chamada de julgar. Eles são unidos por ela numa certa ordem, a ordem
que passa de ‘A’ para ‘amar’ e de ‘amar’ para ‘B’, mais do que passa de ‘B’ para
‘amar’ e de ‘amar’ para ‘A’, ou de ‘amar’ para ‘A’ e de ‘A’ para ‘B’ ou de ‘amar’
para ‘B’ e de ‘B’ para ‘A’.95
No modo como Stout põe a tarefa da relação acreditar formar uma ordem lógica com
os termos envolvidos não há nada que indique que eles têm algum papel a desempenhar no
juízo. Eles, simplesmente, estão radicalmente separados e postos diante do sujeito como
objetos da crença. Determinar uma ordem para os termos na relação acreditar, como requer a
Teoria RM, revela-se, então, algo extremamente problemático na concepção de Stout. No
caso da crença “que A ama B”, por exemplo, a mente que julga tem diante de si três termos e
deve reuni-los numa ordem precisa. Acontece que as opções de posicionar os termos numa
direção são tantas que a relação acreditar pode formar não somente ordens adequadas
logicamente como, por exemplo, “A ama B” ou “B ama A”, mas, também “ordens”
inadequadas logicamente como, por exemplo, “ama A B” ou “ama B A”.
O que justificaria toda essa variedade de opções? A resposta de Stout é que a
justificativa para isto encontra-se no fato de que, no juízo “que A ama B” a relação
subordinada amar “não é uma ‘relação relacionando’, mas, apenas, um dos termos ligados
pela relação julgar”.96 Ou seja, a relação subordinada não é considerada como uma relação
ligando seus termos de forma alguma, mas, apenas como objeto da crença e, sendo ela um
objeto no mesmo nível lógico dos demais, a relação acreditar pode colocá-la em qualquer um
dos lugares dos termos no juízo.
1.3.3.2 Nicholas Griffin
A crítica de Griffin à Teoria RM aparece cuidadosamente exposta no seu texto
Russell’s Multiple Relation Theory of Judgement (1985). Seus ataques à teoria de Russell,
como veremos, se movem na mesma direção em que Stout apontou as críticas dele, a saber,
95 STOUT, 1914-1915, p. 341. 96 Ibidem., p. 341, nota de rodapé.
90
elas vão de encontro à relação subordinada e ao Problema da Direção. Consideremos, pois,
suas posições numa frente e noutra separadamente.
De acordo com Griffin a relação subordinada exigida pela Teoria RM deve ser uma
relação universal, caso contrário, não seria possível a ocorrência de juízos falsos. Se a relação
entre Desdemona e Cássio, por exemplo, fosse uma relação “particularizada” a teoria da
correspondência não obteria sucesso, pois, como não há o amor de Desdemona por Cássio
também “não há tal relação particularizada de amor entre Desdemona e Cássio”.97 Acontece,
porém, que, no entender dele, sendo a relação subordinada um universal, pelas exigências da
Teoria RM, ela não pode ocorrer na crença como uma relação particularizada ou como uma
relação relacionando. Na crença, insiste ele, em total sintonia com Stout, a relação
subordinada é um mero objeto.
A consideração da relação subordinada como um objeto do juízo é uma marca
importante do pensamento de Griffin sobre a Teoria RM. No texto, Russell on the Nature of
Logic, de 1980, ele já classificava os constituintes de uma ocorrência da relação acreditar
destacando esse seu ponto de vista:
“Sujeito do juízo – /Otelo/;
Objetos do juízo – /Desdemona/, /amar/, /Cássio/;
Termos do juízo – /Otelo/, /Desdemona/, /amar/, /Cássio/;
Complexo subordinado – /Desdemona/, /amar/, /Cássio/;
Acreditar– é a relação principal;
Amar – é relação subordinada;
Constituintes do juízo – todos os termos mais a relação principal”.98
Como podemos notar, nessa sua listagem classificatória dos termos e de suas respectivas
funções no juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio, a relação subordinada é posta como
um dos objetos, ao lado e no mesmo nível dos demais objetos, do juízo. E isso, como veremos
logo mais, servirá de base para radicalizar sua compreensão do Problema da Direção.
O Problema da Direção dos termos nas ocorrências da relação acreditar, não recebeu
uma definição clara por parte de Griffin. Ao invés disso, o que ele fez foi tentar circundá-lo
por meio de três passos bastante curiosos. Primeiro ele desenvolveu uma imagem genérica do
97 GRIFFIN, 1985, p. 215. 98 Ibidem., p. 215.
91
Problema da Direção, depois ele repetiu a posição de Stout e, por fim, ele fez uso de algumas
expressões novas para tentar lidar com o Problema.
A imagem genérica usada por ele para tentar apresentar o Problema da Direção é
muito vaga. De acordo com ela, o Problema da Direção consiste na impossibilidade da teoria
RM distinguir entre:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
(36) Otelo acredita que Cássio ama Desdemona.99
Notamos, contudo, que Griffin não define, em seu texto, o que entende por “distinguir”. O
que poderia, realmente, significar sua acusação de que a Teoria RM não distingue o juízo
expresso em (3) do juízo expresso em (36)? Significa que ela não determina os meios para
que Otelo distinga um juízo do outro? A expressão “distinguir” parece se referir à terceira
versão da Teoria RM, onde Russell tratou do Problema da Direção a partir da dificuldade de
encontrar complexos paralelos que fixem as posições dos termos no complexo e permitam
distinguir de modo não-ambíguo os complexos onde os termos ocorrem em posições trocadas.
Griffin, porém, não afirma que faz uso da expressão “distinguir” por estar de acordo
com a posição de Russell na versão de 1913. Ele apenas aponta essa incapacidade na Teoria
RM e passa a confessar, abertamente, sua adesão à posição de Stout. Tal como fez Stout, ele
também assume que em juízos como aqueles expressos por (3) e (36) a relação subordinada “é
um mero termo da relação principal”.100 O que sugere que compreendamos a alegada
impossibilidade de “distinguir” um juízo do outro como sendo a impossibilidade da relação
acreditar distinguir uma ordem da outra na organização dos termos. Haja vista que, se a
relação subordinada é “um mero termo da relação principal”, todos os termos estão no mesmo
nível lógico e o que nós encontramos em (3) e (36) são apenas duas sequências de termos
justapostos.
99 GRIFFIN, 1985, p. 219. 100 Ibidem., p. 219.
92
Compreender dessa maneira a afirmação de Griffin sobre a impossibilidade da Teoria
RM “distinguir” os juízos expressos por (3) e (36), parece justificável, finalmente, pela sua
adesão à posição de Stout, pois segundo Stout a mente que julga pode colocar a relação
subordinada até mesmo no lugar dos objetos. Griffin assume isso também e com mais
veemência, a ponto de construir expressões novas para lidar com essas duas faces do
Problema da Direção. Segundo ele, o fato dos termos objetos poderem ser postos
aleatoriamente em qualquer lado da relação subordinada deve se chamar “Problema da
Direção Estreita”, e o fato da própria relação subordinada ser posta no lugar dos termos como,
por exemplo, em algo do tipo “B (Otelo, Desdemona, Cassio, amar”, deve se chamar de
“Problema da Direção Larga”.101
As expressões novas sugeridas por Griffin, contudo, não trouxeram nenhuma
novidade substancial para o Problema da Direção. O pressuposto básico para distinguir essas
duas formas de compreender o Problema da Direção já fora posto por Russell na segunda
versão da Teoria RM e fora, devidamente, acentuado por Stout em 1914. A saber, o
pressuposto de que a relação subordinada é um mero termo no juízo. As novas expressões
sugeridas por Griffin apenas exaltam as duas faces do Problema, mas não põem em discussão
a validade daquele pressuposto nem questionam a possibilidade de outro melhor ocupar o
lugar dele.
O Problema da Direção, no entender de Griffin, então, emerge da consideração de
que a relação subordinada é um objeto comum nas ocorrências da relação acreditar. Posição
esta que, como já vimos, Russell havia assumido na segunda versão da Teoria RM. Mas,
Griffin também dirige parte de sua crítica àquela solução oferecida por Russell na primeira
versão da teoria RM. Para ele, a solução dada por Russell naquela versão é problemática
porque ela afirma que a relação subordinada tem que estar diante da mente que julga como
uma relação particularizada ou como uma relação relacionando:
A sugestão de Russell de que a relação subordinada tem uma direção só faz sentido
se se supõe que a relação subordinada é ou uma relação particularizada ou uma
relação relacionando. E a teoria da relação múltipla não requer nem uma nem
outra.102
101 GRIFFIN, 1985, p. 219. 102 GRIFFIN, 1985, p. 220. (Itálico nosso).
93
Como podemos ver nesta citação, Griffin é enfático com as condições para que a relação
subordinada ocorra no juízo com uma direção determinada. Ou ela é uma relação
particularizada, ou ela é uma relação relacionando seus termos. Mas, sem justificar porque
isso tem que ser assim, ele deixou o assunto por aí mesmo. A Teoria RM não poderia lidar
com a relação subordinada em nenhum desses dois modos e ponto final. Nossa posição,
contudo, insurge-se contra a proposta de Griffin e questiona: será mesmo que a Teoria RM
não requer e não comporta a relação subordinada como relação “relacionando”? Será que
Griffin não está lidando com uma compreensão reducionista do que vem a ser uma “relação
relacionando”?
1.3.3.3 Russell Wahl
Russell Wahl, no texto Bertrand Russell’s Theory of Judgement (1986), tenta
sintetizar as críticas à Teoria RM, visando pôr em evidência “as objeções mais fortes e aclarar
os pressupostos que estão por trás das rejeições à Teoria do Juízo como Relação Múltipla”.103
O pressuposto de onde brotam os problemas mais inquietantes para a Teoria RM, segundo ele,
é o que assume que a relação subordinada não desempenha a função de relatar quando ocorre
no interior de uma crença, isto é, que ela é apenas um objeto como os demais termos da
relação acreditar. E, como decorrência desse pressuposto, as objeções mais fortes contra a
Teoria RM são aquelas relativas à direção dos termos na relação subordinada.
Uma vez que a Teoria RM considera a relação subordinada um objeto comum e não
como uma relação relacionando seus termos, interpreta Wahl, “a diferença entre ‘A julga que
aRb’ e ‘A julga que bRa’ não pode ser contabilizada”.104 Haja vista que, os termos julgados
estão separados diante do sujeito que julga e a relação subordinada é um termo como os
outros, não uma relação relatando, segue-se que tanto faz o sujeito pensar uma seqüência ou
outra para os termos. O fato dele colocar o termo a antes ou depois da relação R fica
totalmente arbitrário. E o mesmo vale para o termo b.
Além disso, segundo Wahl, por considerar a relação subordinada um objeto no mesmo
nível dos demais termos da crença, a Teoria RM se envolve noutro problema ainda mais
103 WAHL, 1986, p. 383. 104 Ibidem., p. 389.
94
grave. Trata-se do problema de que “o juízo tem que ser alguma coisa logicamente possível”
e, sendo a relação subordinada um termo comum na crença, o sujeito da relação acreditar
poderá combinar sequências de termos absurdas, sem nenhum sentido lógico. Nas palavras
dele, “ao considerar a relação subordinada um termo no mesmo nível lógico dos outros
objetos da crença, a Teoria RM demonstra uma rejeição impraticável a qualquer ordem lógica
de tipo superior”.105 E a consequência disso é devastadora para a Teoria, ela não tem como
excluir os chamados “juízos sem sentido”.
1.3.3.4 Alexander Miller
Em Russell, Multiple Relations, and the Correspondence Theory of Truhth, 2006,
Alexander Miller tece uma interessante crítica à Teoria RM. Ele toma como base para suas
posições a Teoria RM apresentada por Russell na segunda versão.106 E isso faz com que ele se
alinhe nos passos de Russell e dos demais críticos da Teoria RM na aceitação de que a relação
subordinada é um objeto da relação acreditar.107 De acordo com ele, a Teoria RM tem seu
problema mais radical na questão da ordem dos termos. Para ele, a ordem dos termos ou é
imposta pela relação acreditar ou é imposta pela relação subordinada. Em ambos os casos,
porém, o resultado é devastador:
Se, na crença de Otelo, a relação amar é que impõe uma ordem sobre Desdemona e
Cássio, a teoria colapsa numa relação dual e torna impossível haver crenças falsas;
por outro lado, se é a relação acreditar que impõe a ordem, então, em virtude do fato
de que uma relação de quatro lugares não impõe uma ordem sobre Desdemona e
Cássio, nós temos os problemas delineados nas seções acima.108
Falaremos desses problemas a que Miller se refere com a expressão “delineados nas seções
acima” logo mais. Antes, porém, precisamos examinar a primeira crítica aludida por ele nesta
citação que acabamos de fazer, isto é, examinar por que, no entender dele, a Teoria RM
colapsa numa teoria da relação dual e crenças falsas não serão permitidas se couber à relação
subordinada a tarefa de impor a ordem a Desdemona e Cássio no juízo de Otelo.
105 WAHL, 1986, p. 393. 106 Cf. MILLER, 2006, p. 85-86, 90. 107 “Nesta unidade complexa, Otelo é o sujeito e Desdemona, a relação amar e Cássio são os objetos”. (Ibidem.,
p. 89.) (Tradução nossa. Itálicos do autor). 108 Ibidem., p.98. (Tradução nossa. Itálicos do autor).
95
A justificativa de Miller para este ataque é que, se a relação subordinada for
responsável pela ordem dos termos, então, a crença de Otelo que Desdemona ama Cássio será
uma relação dual entre Otelo e a unidade formada pela relação amar. E, nesse caso, se a
crença de Otelo for uma relação com a unidade formada pela relação amar ligando
Desdemona e Cássio, ela só poderá ocorrer se de fato existir o amor de Desdemona por
Cássio. Não há espaço para crenças falsas. Acreditar, então, só poderia ocorrer se o complexo
subordinado existisse de fato.
Em contrapartida, porém, se a ordem dos termos Desdemona e Cássio for imposta
pela relação acreditar, e não pela relação amar, então chegaremos aos problemas que Miller
diz ter abordado “nas seções anteriores” do seu artigo. Vejamos agora quais são esses
problemas.
De acordo com ele, se a relação acreditar for responsável pela ordem dos termos, a
Teoria RM tem dois graves problemas, a saber, o de indicar quais são de fato os termos sobre
os quais ela impõe uma ordem e o de justificar com que direito se pode dizer que ela impõe
uma ordem sobre Desdemona e Cássio. Consideremos melhor um e outro.
Em primeiro lugar, de acordo com Miller, Russell demonstra uma hesitação muito
significante no que diz respeito à indicação do que realmente sejam os objetos sobre os quais
a relação acreditar impõe a ordem. No entender dele, Russell deixa entrever três posições na
versão de 1912:
“A relação acreditar ordena os constituintes da crença: Otelo, Desdemona, a relação
amar e Cássio. (...)
A relação acreditar ordena os termos objetos da crença: Desdemona, a relação amar
e Cássio. (...)
A relação acreditar ordena os termos-objetos da crença: Desdemona e Cássio”.109
De acordo com Miller, dessas três possibilidades, Russell só pode contar com a terceira opção
se quiser preservar sua teoria da correspondência. Pois, como para Russel a correspondência
que torna a crença verdadeira consiste da ordem dos termos na crença ser a mesma ordem dos
termos que a relação subordinada impõe aos termos no fato correspondente, a relação
acreditar só pode impor aos termos a ordem que a relação subordinada tiver imposto a eles no
fato. Além disso, insiste Miller, como no caso da crença de Otelo é bastante claro que a ordem
sobre Desdemona e Cássio é imposta pela relação amar, o resultado seria lastimável, pois
somente crenças verdadeiras seriam permitidas.
109 MILLER, 2006, p. 90-91.
96
Em segundo lugar, se os termos Desdemona e Cássio devem ter no juízo a mesma
ordem que tem no fato correspondente, temos um sério problema de violação da operação da
relação acreditar. Uma vez que, na ocorrência da crença de Otelo, acreditar é uma relação de
quatro lugares, não podemos afirmar que ela impõe a ordem sobre Desdemona e Cássio. De
fato, insiste Miller, uma relação de n-lugares não impõe uma ordem a m objetos, se m < n.
Para ele, por exemplo, não faz sentido dizer que a relação x tem ciúmes de y com z impõe uma
ordem sobre Abelardo e Heloisa. Portanto, “sendo acreditar uma relação de quatro lugares, ela
não impõe uma ordem sobre dois objetos. Não faz sentido. Assim como não faz sentido
afirmar que a relação x deseja que y promova o casamento de z com w impõe uma ordem
sobre John e Agnes”.110
1.3.3.5 Samuel Lebens
Diferentemente dos críticos acima, Samuel Lebens (2017) considera a Teoria RM
totalmente viável e capaz de superar todas as críticas que se levantaram contra ela, desde que
Russell a pôs em público. Segundo ele, foi um erro de Russel ter abandonado a Teoria RM,
pois, ela constitui uma alternativa sólida ao realismo proposicional e, no tocante aos grandes
problemas que uma Teoria do Juízo deve responder, ela é mais eficaz que a Teoria do Juízo
Dual.
Samuel também considera a relação subordinada o pivô das dificuldades e dos erros
de interpretação que marcaram as críticas levantadas contra a Teoria RM. Ele chama a relação
subordinada de “relação-objeto”. No seu entender, a relação-objeto não ocorre no juízo como
uma relação relacionando, mas também não ocorre “como um mero objeto”.111 E, posição
com a qual concordamos plenamente, as críticas até então conhecidas estão todas apoiadas
numa compreensão superficial e errada da posição de Russell sobre essa relação.
A raiz da questão, sem dúvida, está na versão de 1910, insiste Lebens, cujo epicentro
“foi a estipulação por parte de Russell, de que a relação-objeto, como ela entra no juízo, deve
ter um sentido”. Visto que Russell não queria que a relação objeto entrasse no juízo como
110 MILLER, 2006, p.91. 111 LEBENS, 2017, p. 186.
97
uma relação relacionando, ele assumiu que ela entra como um objeto, mas, com um sentido
ou direção.
Acontece que essa posição de Russell, inclusive, com certa ajuda da linguagem que
ele empregou, foi interpretada pelos críticos de forma totalmente inaceitável. Eles entenderam
que a reivindicação de Russell consistia em afirmar que a relação-objeto tem uma direção
quando vai de A para B e tem outra direção quando vai de B para A. Esse erro foi tão
lamentável e generalizou-se de tal modo, que Samuel dedica a ele uma consideração
minuciosa e o ilustra com o seguinte esquema:
Acreditar (Otelo, Desdemona, amar, Cássio)
→
(Quando Otelo acredita que Desdemona ama Cássio)
Acreditar (Otelo, Desdemona, amar, Cássio)
←
(Quando Otelo acredita que Cássio ama Desdemona)
Esta interpretação da posição de Russell, porém, é inaceitável, insiste Lebens. E, em
seu entender, o chamado Problema da Direção Estreita surge, exatamente, a partir dela. Daí a
importância de sua confissão assumindo que pôde constatá-la “em toda apresentação da
história da teoria do juízo como relação múltipla” que chegou a examinar.112 Por isso, ele
insiste no quanto é importante reconhecermos que essa interpretação da posição de Russell é
superficial e incompleta. Ela é superficial, porque “Russell estava profundamente
comprometido com a certeza de que relações relatam numa direção”, desde a publicação de
The Principles.113 Seria bastante injustificável agora achar que Russell passou a admitir que
relações relatem em direções diferentes. Ao contrário, sustenta Lebens, Russell introduziu a
ideia de que a relação-objeto tem uma direção por razão mais profunda, que precisa ser
alcançada, caso contrário, ficamos apenas na superfície do problema. E ela é incompleta,
porque não chega ao problema de fundo e o problema de fundo que Russell queria superar,
112 LEBENS, 2017, p. 120. 113 Ibidem., p. 120.
98
juntamente com o Problema da Direção, que era o problema da representatividade, ou seja, “o
problema de explicar porque o complexo proposicional é capaz de representar coisas”.114
Assim, Russell queria explicar porque, se proposições são compostas de
constituintes, os constituintes da proposição se colam um no outro de modo representacional.
Problema este de fundamental importância e para o qual estamos convencidos que a Teoria
RM tem uma resposta pertinente, mas que, para não fugir do nosso interesse central, não o
consideraremos em profundidade aqui. De modo que, nossa atenção a ele será apenas em vista
de colher o aspecto que mais nos interessa para nosso propósito, a saber, que Russell
reconhece um sentido ou direção na relação subordinada a fim de justificar por que a
proposição formada pelo juízo é capaz de representar. De fato, é porque a relação objeto tem
uma direção que se torna possível explicar porque juízos são capazes de representar. É
justamente porque a relação-objeto tem uma direção que podemos distinguir “A ama B” de
“B ama “A” como representações diferentes, mas não podemos distinguir nada de
significativo entre a lista “A, amar, B” e a lista “B, amar, A”, porque em tais listas a relação
não tem uma direção lógica.
Diante disso, a questão decisiva passa a ser a de saber como a relação-objeto pode
entrar no juízo com uma direção, se Russell a considera um objeto. E a curiosa resposta de
Lebens para isso é que “Russell não quis que a relação-objeto relacionasse, ele quis apenas
que ela parecesse como se estivesse relatando”,115 ou seja, ao fazer um juízo ou crença, o
sujeito está relacionado com os objetos e com a relação-objeto e ele os ordena formando uma
representação mental com eles. Para isso, o sujeito pensa a relação-objeto “como se” ela
estivesse relacionando, ele pensa a relação-objeto de modo que ela “pareça relacionar”. Pois,
insiste Samuel, estamos relacionados com os objetos e a relação-objeto separadamente e o que
os torna representacionais “é como eles aparecem para nós no ato da crença”.116
Este ponto é muito importante. O que Lebens está reivindicando é muito decisivo
para a Teoria RM. De acordo com ele, no ato de acreditar, o sujeito está numa relação direta
com os termos em sua mente. Ele não opera com representações; ele opera com os próprios
termos para formar representações. Por conseguinte, quando ele ordena os termos numa
114 LEBENS, 2017, p. 120. 115 Ibidem., p. 122. 116 Ibidem., p. 122.
99
direção, ele cria uma representação deles no mundo. Representação que pode ser verdadeira
ou falsa.
Desse modo, quando o sujeito aplica uma qualidade a um objeto ou uma relação a
objetos, ele está predicando sobre eles, isto é, ele está atribuindo algo de algo ou ligando algo
a outro algo. Ora, para Lebens isso é exatamente dar as condições de verdade daquilo que está
sendo julgado. Ou seja, isso já é determinar como as coisas têm que estar para que o juízo seja
verdadeiro. Portanto, formar uma crença nunca é fazer um juízo sem uma direção lógica, pois
julgar já é determinar as condições de verdade. Julgar ou acreditar já é dar as condições de
verdade de uma representação ou combinação dos objetos. E uma lista de termos sem uma
direção lógica não tem condições de verdade.
A principal consequência disso, afirma Lebens, é que as ocorrências da relação
acreditar não consistem apenas em juntar objetos numa lista. Elas ligam os termos com a
relação-objeto apontando uma direção para eles e determinam as condições de verdade do
juízo asserindo que os termos estão assim e assim no fato. Ou seja, elas determinam as
condições de verdade do juízo ligando intencionalmente um objeto a outro.
1.4 SUMARIZANDO
Chegando ao final deste Capítulo Primeiro, parece cabível sumarizar, ainda que
brevemente, os principais pontos, no tocante ao nosso objetivo, que pretendemos realçar até
aqui. Em primeiro lugar, podemos destacar três pontos importantes para entendermos a Teoria
RM, a saber, que há boas razões para considerarmos a primeira versão publicada por Russell
melhor que as outras, que a relação subordinada deve ter um papel determinante na
constituição da crença e que, sendo a subordinada uma relação assimétrica, ela determina
papéis e lugares lógicos diferentes para os termos da crença.
Em segundo lugar, podemos destacar dois pontos importantes que ameaçam o sucesso
da Teoria RM, a saber, a lacuna explicativa da relação entre as duas relações, que a primeira
versão deixou sem resposta e o erro de Russell em decidir tratar a relação subordinada como
100
um objeto comum na crença. E esses dois pontos acabaram por favorecer o surgimento de
uma crítica devastadora contra a Teoria RM.
Essa crítica, como vimos acima, apoiou-se totalmente no pressuposto russelliano de
que a relação subordinada é um objeto comum na crença. E com base nessa convicção,
ignorou o papel determinante da propriedade assimétrica da relação subordinada, aplainou os
níveis lógicos dos termos relata na relação acreditar e forjou uma concepção do Problema da
Direção, onde nada mais toca à relação acreditar, em suas ocorrências, senão o papel de
posicionar os termos relata lado a lado. Contudo, sem o pressuposto de que a relação
subordinada é um objeto comum na crença, essa crítica definha rapidamente.
Ainda mais. Devemos notar também que se esse pressuposto for levado a sério, essa
mesma crítica cai em embaraços desagradáveis. Primeiro, se a relação subordinada for um
objeto comum na crença, não haverá uma unidade de crença e sim uma justaposição de
objetos. Segundo, se a relação subordinada for um objeto comum na crença, não se pode nem
falar de crença, os relata ficam todos “iguais”, pois, não pode se falar em nada de
determinante da parte dos relata. E, neste último caso, se nem os objetos, nem a relação
subordinada, determinam nada, então, a única coisa que se pode fazer com eles é nomeá-los.
Em contrapartida, também devemos notar que a negação desse pressuposto tão caro à
crítica da Teoria RM nos impõe o dever de retomar a tarefa inacabada de Russell na primeira
versão e oferecer uma explicação adequada para a relação entre a acreditar e a relação
subordinada no ato da crença. De fato, ao decidirmos tratar a relação subordinada como uma
relação será preciso justificar em que consiste sua operação relacionante e como isso se
harmoniza com a operação relacionante da relação principal, que é a relação acreditar. Mas,
isso só será enfrentado no Capítulo Terceiro, onde também daremos uma resposta aos críticos
apresentados acima. Antes de chegarmos lá, porém, precisamos expor, cuidadosamente, o
Problema da Direção, em seu tradicional desdobramento e as dificuldades adjacentes a ele. E
essa será a tarefa do Capítulo Segundo.
101
2 O PROBLEMA DA DIREÇÃO DOS TERMOS E SUAS DIFICULDADES
ADJACENTES
Tradicionalmente, os críticos da Teoria RM deram mais atenção ao Problema da
Direção dos termos na relação acreditar, do que a certas dificuldades relativas a ele. Mas, não
sem prejuízos, essa atenção demasiada ao Problema da Direção deixou em segundo plano tais
dificuldades que, por sinal, devem ser tratadas antes do Problema da Direção e que, em seu
conjunto, revelam que o verdadeiro Problema, a fonte de todos eles, é uma compreensão
inadequada da relação subordinada e uma grave falta de distinção do seu campo de operação
em comparação com o da relação acreditar. Dentre as dificuldades que ficaram em segundo
plano, pela importância que o enfrentamento delas representa para o funcionamento da Teoria
RM, destacamos a dificuldade na variação da aridade, no número de lugares e na ordem
lógica da relação acreditar, bem como a dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos
termos na crença e a dificuldade no simbolismo formal das ocorrências relação acreditar.
Em todas essas dificuldades, como veremos ao longo deste Capítulo, o pivô das
dificuldades é a relação subordinada e a falta de distinção entre o seu campo de operação e o
da relação acreditar. O Problema da Direção, por exemplo, está ligado à dificuldade de
conciliar a operação da relação subordinada com a operação da relação acreditar ou à
lamentável decisão de considerar a relação subordinada um mero objeto da relação acreditar.
Enquanto que a dificuldade na explicação da variação de aridade, do número de lugares e de
ordem lógica da relação acreditar está ligada à falta de clareza da relação que existe entre a
operação da relação acreditar e a operação da relação subordinada na determinação dessas
variações. E a dificuldade no simbolismo formal, por sua vez, está ligada ao desafio de
representar adequadamente os lugares impostos pela relação subordinada, preservando a
compreensão dos papéis lógicos que a relação acreditar atribui aos termos, por meio dela,
numa ocorrência efetiva.
Este Segundo Capítulo, então, será dedicado à apresentação do Problema da Direção
e às dificuldades explicativas da variação, da identificação dos papéis lógicos dos termos e do
simbolismo lógico nas ocorrências da relação acreditar. Ele será estruturado em quatro
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seções, sendo algumas delas ainda subdivididas em subseções. A primeira seção tratará do
Problema da Direção. Discutirá a falta de uma definição precisa deste Problema e o modo
bastante difundido de desmembrá-lo em Problema da Direção Estreita e Problema da
Direção Larga. A segunda seção considerará as dificuldades adjacentes ao Problema da
Direção, a saber, a dificuldades relativas à na variação da aridade, no número de lugares dos
termos e na ordem lógica, bem como as dificuldades relativas à identificação dos papéis
lógicos dos termos e ao simbolismo formal nas ocorrências da relação acreditar. A terceira
seção procurará pôr em relevo a dificuldade central que os defensores do Problema da
Direção encontram para tratar o papel relacionante da relação subordinada na Teoria RM. E,
finalmente, a quarta seção procurará sumarizar os passos dados ao longo do Capítulo,
destacando os ganhos obtidos e o ponto central de toda a problemática.
2.1 O PROBLEMA DA DIREÇÃO NOS RELATA DA RELAÇÃO ACREDITAR
Na primeira versão da Teoria RM, Russell apresentou o Problema da Direção
dizendo que, uma vez que não há mais uma entidade chamada “proposição”, o juízo “que A
ama B”, por exemplo, “consiste de uma relação da pessoa julgando para A e amar e B, isto é,
da pessoa julgando para A e B e a relação ‘amar’. Mas este juízo não é o mesmo que o juízo
‘B ama A’”.117 Ora, o juízo “que A ama B” não é o mesmo que o juízo “que B ama A”, o que
parece inquestionável, exatamente, porque os termos da relação estão em direções opostas. No
primeiro juízo nós temos os termos na posição A-amar-B e no segundo juízo nós temos os
temos na posição B-amar-A. Este é o Problema da Direção para a primeira versão da Teoria
RM. Contudo, é preciso se perguntar com muito cuidado, em que consiste realmente esse
Problema? Em explicar por que o primeiro juízo é diferente do segundo, mostrando como
distinguir um do outro, ou em explicar como o sujeito, estando na relação múltipla relação
acreditar com A e B e amar, forma um juízo e não o outro?
Russell se debateu exaustivamente com esse Problema, mas, ele mesmo não ofereceu
uma definição clara do que é o Problema da Direção. Ele limitou-se a ilustrar o Problema, e
mesmo assim o fez de modos diferentes, o que já é, sem dúvida, um sério problema. Entre os
críticos da Teoria RM que pudemos examinar a situação também não é muito diferente.
Podemos encontrar neles diferentes ilustrações do Problema da Direção na Teoria RM, mas,
117 RUSSELL 1910a, p. 183.
103
nada de definição exata. De modo que, antes de avançar na consideração do Problema,
precisamos primeiro considerar as diferentes maneiras com que Russell e alguns de seus
críticos o ilustram, a fim de estabelecer, pelo menos, uma base segura para assumi-lo.
2.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção
No decurso das três versões da Teoria RM, Russell ofereceu três ilustrações
diferentes do Problema da Direção. Na primeira versão, ele ilustrou o Problema da Direção
situando-o na operação da relação subordinada. Na segunda versão, ele ilustrou o Problema da
Direção na operação da relação acreditar. E, na terceira versão, ele ilustrou o Problema da
Direção situando-o na relação que cada termo mantém com o complexo do qual faz parte.
Por sua vez, os críticos que consideramos, Stout, Griffin e Landini, também
ilustraram o Problema da Direção de modos diferentes. O primeiro deles explorou a ideia de
que a relação subordinada é um termo no mesmo nível lógico dos demais termos do juízo. O
segundo deles apresentou o Problema da Direção como sendo a impossibilidade de distinguir
ocorrências da relação acreditar envolvendo os mesmos relata em ordens diferentes. E o
terceiro deles assumiu o Problema da Direção como sendo a dificuldade de encontrar uma
descrição que capture a diferença nas estruturas dos complexos formados com os mesmos
relata em ordens diferentes.
Tanto em Russell, quanto nesses críticos, porém, a base para construir suas
respectivas ilustrações do Problema da Direção, de um modo ou de outro, está na má
compreensão da relação subordinada e da distinção entre o seu campo de operação e o campo
de operação da relação acreditar. Consideremos melhor, e separadamente, agora, essas
diferentes apresentações que Russell e os críticos citados fazem do Problema da Direção.
2.1.1.1 Divergências na apresentação do Problema da Direção em Russell
Na primeira versão da Teoria RM Russell ilustrou o Problema da Direção, a partir da
relação subordinada. Segundo ele, o Problema da Direção surge do fato de que uma relação
subordinada, sendo dual e assimétrica, tem “dois sentidos”, conforme ela vai de A para B ou
104
de B para A, dentro do escopo da crença.118 E, como essas duas possibilidades de ocorrências
são logicamente cabíveis, a relação acreditar tanto poderá concretizar uma quanto a outra. O
Problema, então, será o de decidir como o sujeito, estando na relação acreditar, aplica a
relação subordinada indo de A para B ou de B para A. Podemos expressá-lo com a seguinte
pergunta: com base em que o sujeito, estando na relação acreditar, posiciona a relação
subordinada indo de A para B ao invés de ir de B para A?
Na segunda versão da Teoria RM Russell também não deu uma definição do
Problema da Direção e, de novo, procurou ilustrá-lo fazendo uso de uma situação concreta.
Desta vez, porém, ele não situou o Problema da Direção nas possibilidades lógicas da relação
subordinada, mas, sim, na relação principal, a relação acreditar. Segundo ele, a relação
acreditar é que é responsável pela direção dos termos relata. Ela é que tem “um sentido ou
direção” e, portanto, ela é que põe os termos todos numa certa ordem. O juízo de Otelo que
Desdemona ama Cássio, por exemplo, difere do seu juízo que Cássio ama Desdemona, apesar
dos dois juízos serem formados pelos mesmos relata, porque a relação acreditar posiciona os
relata em ordens diferentes nos dois casos.119
A mudança de concepção do Problema da Direção operada por Russell, entre a
primeira e a segunda versão foi muito grande e é importante perceber suas consequências. Ele
retirou todo o peso da relação subordinada na constituição da direção dos relata e o pôs
totalmente na relação acreditar. O problema deixou de ser como a relação acreditar pode
aplicar uma relação subordinada R indo de A para B ao invés de ir de B para A, e passou a ser
como a relação acreditar põe ARB ou BRA numa ordem precisa.
A transferência da responsabilidade da direção dos termos relata, da relação
subordinada para a relação acreditar, contudo, não foi ainda o ponto mais significativo da
mudança de posição operada por Russell. O ponto mais significativo, porque foi também o
mais grave, foi ele ter retirado toda e qualquer participação da relação subordinada na
constituição da direção dos termos e ter “retirado” o status de relação da relação subordinada,
reduzindo-a a um mero objeto da crença. No fundo, isso foi mais grave do que o fato de ter
afirmado que somente a relação acreditar determina a direção dos termos, pois com isso
Russell deu azo para afirmar que o Problema da Direção consiste não apenas em explicar com
118RUSSELL 1910a, p. 183-184. 119 Idem., 1912, p. 198.
105
base em que o sujeito, estando na relação acreditar, pode colocar os termos na ordem ARB ou
BRA, mas também na ordem RAB ou ABR.
Na terceira e última versão da Teoria RM, por seu turno, Russell mudou de posição
mais uma vez, no tocante ao Problema da Direção e passou a sustentar que ele não está nem
na relação relacionando os termos nem no complexo que ela forma com os termos. O
Problema da Direção está na relação dos constituintes do complexo para com o complexo.
Relações estas que constituem as posições dos termos no complexo.120 Por exemplo: a relação
dual assimétrica R permite formar dois complexos lógicos diferentes com os termos x e y,
conforme esses termos constituam os complexos xRy ou yRx.
A direção ou sentido, defendeu Russell nesta versão da Teoria RM, está exatamente
nas relações de x e y para com o complexo formado por R e esses termos. No complexo xRy,
por exemplo, o termo x mantém com o complexo uma “relação assimétrica heterogênea”. Esta
relação entre x e o complexo é única, ela determina a posição de x no complexo porque ela é
não-permutativa. Russell a simbolizou como “AR”. De outra parte, o termo y também mantém
uma relação assimétrica heterogênea única com o complexo, que determina a posição de y no
complexo. Russell a simbolizou como “BR”.
Desse modo, as posições dos termos num complexo dual são determinadas pelas
relações desses termos com o complexo que integram. Mas, para determinar as posições de
uma relação dual, a relação acreditar terá que determinar também que termo mantém a
relação AR e que termo mantém a relação BR nela própria, além de determinar que termo
mantém a relação CR e que termo mantém a relação DR quando o complexo geral for
quaternário, por exemplo. Haja vista que, na terceira versão, Russell continuou a tratar a
relação subordinada como um termo comum na crença. Assim, na ocorrência da relação
acreditar descrita pela frase (3), por exemplo, teríamos as seguintes relações, entre os termos
e o complexo, determinando as posições dos termos:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
AR BR CR DR
120 RUSSELL, 1913, p. 88
106
A questão que esse jeito de ver as posições levanta é: o que determina a direção das
posições estabelecidas pelas relações assimétricas heterogêneas AR, BR, CR e DR? Que
diferença faz para a relação acreditar formar outra sequência com essas relações, se os termos
e posições estão todos no mesmo nível lógico?
O Problema da Direção agora passou a ser o problema das posições, definidas a
partir da relação de cada termo com o complexo. A relação acreditar terá que decidir que
termo põe numa posição e noutra. Mas, para fazer isso, primeiro será preciso decidir que
termo mantém a relação BR, CR e DR com o “complexo”. E, a tarefa de decidir que termo
ocupa a posição BR no “complexo”, por exemplo, já é um Problema da Direção. Haja vista
que, tanto Desdemona quanto amar e Cássio, podem manter a relação BR naquela ocorrência,
então, podemos expressar o Problema da Direção com a seguinte pergunta: com base em que
a relação acreditar atribui o termo x ou o termo y ou o termo z à posição que mantém a
relação BR com o complexo que ela forma envolvendo uma relação assimétrica dual, se tanto
o termo x quanto o termo y ou o termo z podem ser, igualmente, atribuídos àquela posição?
2.1.1.2 Divergências na apresentação do Problema da Direção nos críticos
Como vimos em 1.3.3.1, Stout, privilegiando a segunda versão da Teoria RM,
construiu sua concepção do Problema da Direção sustentando, como fez Russell, nessa
mesma versão, que a relação subordinada é um objeto no mesmo nível lógico dos demais
objetos da crença. Apesar dele dizer que estava preocupado, ao analisar a Teoria RM, com a
questão da correspondência entre juízo e fato, ele esboçou uma consideração da direção dos
termos na relação acreditar que influenciou muito a história da Teoria RM e, em particular, o
modo de conceber o Problema da Direção:
A crença ‘que A ama B’ é um complexo que inclui como seus constituintes a mente
e A e B e a relação amar. Estes quatro termos são unidos por uma relação singular
que pode ser chamada de julgar. Eles são unidos por ela numa certa ordem, a ordem
que passa de ‘A’ para ‘amar’ e de ‘amar’ para ‘B’, mais do que passa de ‘B’ para
‘amar’ e de ‘amar’ para ‘A’, ou de ‘amar’ para ‘A’ e de ‘A’ para ‘B’ ou de ‘amar’
para ‘B’ e de ‘B’ para ‘A’.121
121STOUT, 1914-1915, p. 341.
107
Decidir-se por uma ordem para os termos na relação acreditar, como requer a Teoria
RM, passa a ser um grande problema na concepção de Stout. No caso da crença “que A ama
B”, por exemplo, a mente que julga tem diante de si três termos e deve dar a eles uma ordem
precisa. Mas, a fragmentação postulada por Stout é tão radical que a relação acreditar tanto
pode ordens que tenham um sentido lógico, quanto pode formar seqüências que não tenham
um sentido lógico.
Gregory Landini (1990), por sua vez, deixou claro que compreende o Problema da
Direção a partir da terceira versão da Teoria RM.122 Ele aceitou a distinção terminológica
dada por Griffin ao Problema da Direção e também procurou tratá-lo como “Problema da
Direção Estreita” e “Problema da Direção Larga”.123 Segundo ele, o Problema da Direção
Estreita foi, até então, tratado de modo errado. A consideração que se deu a esse Problema,
até o presente, foi tentar explicar como, por exemplo, a crença de Otelo que Desdemona ama
Cássio difere da sua crença que Cássio ama Desdemona. Os interpretes anteriores teriam
considerado isso como sendo o Problema da Direção porque, uma vez que a Teoria RM
quebra os relata do juízo e os coloca separados diante da mente que julga, precisam manter
que Otelo teria que arrumar os relata numa ordem apropriada.
Landini insiste que esse não é o caminho certo porque, desde o início, Russell já
admitiu que a-ama-b e b-ama-a são complexos diferentes. E isso vale também para os
complexos de crença. A crença de Otelo que a-ama-b é um complexo diferente da sua crença
que b-ama-a. O Problema está na correspondência dessas crenças com o mundo. É preciso
achar “uma descrição que capture a singularidade da estrutura de cada um desses complexos,
isto é, que individue os complexos”.124 Esse é o Problema da Direção Estreita para ele.
Uma vez mais, porém, nos deparamos com outra apresentação truncada do Problema
da Direção. Em que consiste mesmo essa dificuldade em formar uma descrição que capture e
expresse a individualidade das estruturas daqueles complexos? E o que são essas “estruturas”?
Landini não justifica o que entende por essas duas coisas em seu texto. Mas elas estão longe
de corresponder ao Problema da Direção. Primeiro, essa estrutura terá que ser do complexo
existente e isso não ajuda nos casos dos juízos falsos. No caso dos juízos falsos o sujeito não
tem nenhuma “estrutura” para capturar, ele forma o complexo. Segundo, a descrição “a ama
122 LANDINI, 1990, p. 48. 123Ibidem., p. 48. 124 Ibidem., p. 48.
108
b”, se formada corretamente, expressa o juízo “a ama b”. E a descrição “b ama a”, se formada
corretamente, expressa o juízo “b ama a”. Qual seria o Problema?
Se a dificuldade consistir em formar as descrições, como atividades linguísticas, isto
é, se o falante não perceber a diferença nas estruturas dos complexos linguísticos “a ama b” e
“b ama a”, então o Problema estará no domínio das funções lógicas dos termos da linguagem.
E se a dificuldade consistir em formar as descrições corretamente, porque elas são juízos,
então, o Problema está sendo protelado, claro, pois ao formar um juízo o sujeito da crença tem
que decidir se põe primeiro um termo ou o outro. Mas, isto é totalmente circular, o Problema
volta a ser a formação do juízo mesmo e não de uma descrição. E se este é o caso, o Problema
consiste mesmo em decidir que termo colocar no primeiro lugar e que termo colocar no
segundo lugar. E formar a descrição disso será um passo (segundo) na linguagem.
2.1.1.3 Olhando além das divergências: a raiz do Problema
As divergências no modo de ilustrar o Problema da Direção nos forçam a manter o
foco na questão de fundo, a saber, o que é mesmo o Problema da Direção. Quando
concentramos nossa atenção em Russell, percebemos que ele esboçou três modos diferentes
de ilustrar o Problema. Na primeira versão da Teoria RM ele viu o Problema da Direção
brotando da relação subordinada. Mais precisamente, no fato da relação subordinada
assimétrica poder ocorrer com dois sentidos, indo de A para B ou de B para A. Na segunda
versão, ele viu o Problema da Direção brotando da relação acreditar. A relação acreditar põe
uma ordem nos termos relata que, aliás, estão todos no mesmo nível lógico e, por conseguinte
ela não tem um parâmetro para determinar uma ordem mais do que outra para esses termos. E
na terceira versão, ele viu o Problema da Direção como sendo a tarefa de encontrar complexos
paralelos determinados, de modo não-ambíguo, que constituam as posições dos termos no
complexo da crença.
Quando voltamos nossa atenção para os críticos da Teoria RM, percebemos que a
situação também não foi diferente. Stout acentuou a segunda versão da Teoria RM e assumiu
que o Problema da Direção é a total falta de parâmetro para que o sujeito, estando na relação
acreditar, possa impor aos termos uma ordem mais que outra. Haja vista que os termos relata
estão todos no mesmo nível lógico. Griffim assumiu que o Problema da Direção consiste na
109
impossibilidade de “distinguir” um juízo do outro quando eles são formados com os mesmos
relata em ordens diferentes. E Landini assumiu que o Problema da Direção consiste na
dificuldade em formar descrições que capturem a singularidade da estrutura dos complexos
formados com os mesmos relata em ordens diversas.
Tantas divergências assim indicam que nem Russell nem os críticos que citamos
enxergaram claramente a raiz do Problema da Direção. E, por conseguinte, não parece ser um
bom empreendimento tentar justificar uma ilustração ou outra antes de explicitar com clareza
o que vem a ser a raiz do Problema. Dito de outro modo, antes de tudo, convém primeiro
tentar fazer o que eles não fizeram: extrair claramente a raiz do Problema.
E qual seria a raiz do Problema da Direção? Há uma raiz comum às diversas
concepções do Problema da Direção expostas acima? Sim, há uma raiz comum a todas
aquelas concepções de Problema da Direção e ela ainda não foi devidamente levada em conta.
Trata-se da concepção errada da relação subordinada e da falta de distinção entre o seu campo
de operação e o campo de operação da relação acreditar. No momento em que alcançarmos a
concepção adequada para o seu modo de operar, sob o comando da relação acreditar, o
Problema vai se dissolver como um nó que tem o seu fio de sustentação puxado.
2.1.2 O Problema da Direção Estreita125
Considerando que a má compreensão da relação subordinada, devida à falta de
clareza na distinção entre a sua operação e a operação da relação acreditar, é a fonte do
Problema da Direção, podemos agora assumir o Problema da Direção Estreita como sendo o
fato de que, sendo a subordinada uma relação dual e assimétrica, é possível formar dois
complexos lógicos diferentes com a sua operação. Exatamente como Russell assumiu na
primeira versão da Teoria RM, porém, acrescentando que ela põe os termos numa direção ou
noutra operando logicamente sob o governo da relação acreditar. E com isso, a questão de
fundo do Problema da Direção Estreita passa a ser a de explicar por que a relação acreditar
põe os termos numa direção mais do que em outra, se as duas direções são logicamente
possíveis.
125 Nicholas Griffin usou as expressões “problema da direção estreita” e “problema da direção larga”, Gregory
Landini usou a expressões “problema da forma estreita” e “problema da forma larga”, contudo, preferimos
manter a palavra “direção” (direction) no lugar da palavra “sentido” (sense), usada por Russell, e da palavra
“forma” (shape) usada por Landini, por entender que ela expressa melhor a natureza do problema.
110
2.1.2.1 A solução russelliana para o Problema da Direção Estreita na primeira versão da
Teoria RM
O grande dilema de Russell diante do Problema da Direção Estreita, na primeira
versão da Teoria RM, foi justificar como é possível que a relação subordinada esteja diante da
mente que julga indo de A para B, mais do que de B para A. Ao que parece, ele deve ter
achado que isso teria que acontecer ou pela natureza da própria relação subordinada ou pela
operação da relação acreditar sobre ela.
O texto da versão de 1910 mostra que Russell escolheu a primeira opção, isto é, que
a relação subordinada tem uma direção por natureza. Como ele mesmo assumiu, a relação
subordinada diante da mente teria que ser a relação universal e, na ocorrência da crença,
deveria estar indo de A para B, mais do que de B para A, porque ela tem, naturalmente, um
sentido ou direção. Essas duas características exigidas da relação subordinada, ser uma
relação universal e estar indo de um termo para outro dentro do escopo da crença, porém,
revelaram-se muito conflitantes para Russell. Como conciliar o fato do sujeito da crença estar
em relação com como relação universal e aplicá-la na crença como relação indo de A para B
mais do que de B para A?
Russell não ofereceu uma resposta para essa questão e, lamentavelmente, ao
reapresentar a Teoria RM, em 1912, abandonou a hipótese de que a relação subordinada tem
um papel determinante na direção dos termos. Mas, como veremos no Capítulo Terceiro, ele
não devia ter saído dessa rota. A saída para o Problema da Direção Estreita exige que se
justifique por que, sendo universal, a relação subordinada pode ser posta na crença ligando
logicamente os demais termos. Uma justificativa que esclareça a distinção e a unidade entre a
natureza universal e o modo de operar logicamente da relação subordinada na crença. Ele
deveria ter insistido mais neste ponto.
2.1.2.2 A crítica de Griffin à solução russelliana do Problema da Direção Estreita na primeira
versão da Teoria RM
Boa parte das críticas dirigidas a Russell, críticas relativas à sua tentativa de
solucionar o Problema da Direção Estreita, refere-se à segunda ou à terceira versão da Teoria
RM. Nicolas Griffin, porém, mesmo pensando o Problema da Direção Estreita a partir da
111
segunda versão da Teoria RM, dirige parte de sua crítica àquela solução oferecida por Russell
na primeira versão da Teoria RM. Para ele, a solução dada por Russell naquela versão é
problemática porque ela afirma que a relação subordinada tem que estar diante da mente que
julga como uma relação particularizada ou como uma relação relacionando:
A sugestão de Russell de que a relação subordinada tem uma direção só faz sentido
se se supõe que a relação subordinada é ou uma relação particularizada ou uma
relação relacionando. E a teoria da relação múltipla não requer nem uma nem
outra.126
Griffin é enfático com as condições para que a relação subordinada ocorra no juízo
com uma direção determinada. Ou ela é uma relação particularizada, ou ela é uma relação
relacionando seus termos. Mas, ele deixou o assunto por aí mesmo. A Teoria RM não poderia
lidar com a relação subordinada em nenhum desses dois modos e pronto.
Convém, portanto, levantar dois questionamentos a essa posição de Griffin. Primeiro,
o que é mesmo uma relação “particularizada”? É uma “parte” de uma relação? Ora, não se
pode abandonar a arena sem avisar ao oponente. Griffin usa uma expressão nova para lidar
com o universo ontológico russelliano, sem oferecer a devida justificativa para ela, e no
universo ontológico russelliano uma relação é um universal. Ela ocorre numa instância
particular, ou em várias instâncias ao mesmo tempo, mas ela é um universal. Se uma relação
“particularizada” for uma relação ocorrendo numa instância particular, então, ele deveria dizer
isso diretamente. E se isso não for o caso, ele teria que dizer também.
Segundo, quando uma relação ocorre numa instância particular da relação acreditar,
ela pode ocorrer relacionando sim. Então, por que a Teoria RM não requer que a relação
subordinada ocorra como “relação relacionando”? Claro, Russell usou a expressão “relação
relacionando” para designar a relação principal, aquela que forma uma unidade com todos os
seus termos numa ocorrência e a literatura filosófica posterior acentuou muito essa posição.
Mas, esse não é o único modo de uma relação ocorrer relacionando. Ela também pode, por
exemplo, ocorrer relacionando logicamente, no juízo, ou verbalmente, na linguagem.
Contudo, antes de voltar nossa atenção para examinar melhor a abrangência da expressão
126 GRIFFIN, 1985, p. 220. (Itálico nosso).
112
“relação relacionando”, vamos considerar mais atentamente o quanto a posição de Griffin e a
de Russell são insuficientes no tocante ao Problema da Direção.
2.1.2.3 Insuficiência da solução russelliana e da crítica de Griffin à solução russelliana do
Problema da Direção Estreita
A proposta de superação do Problema da Direção Estreita oferecida por Russell na
primeira versão da Teoria RM foi um bom passo na direção certa. O que se lamenta é ele não
ter prosseguido no caminho tomado e, talvez ele não tenha percebido, não ter justificado ela
devidamente. Segundo Russell, a superação do Problema da Direção Estreita está no fato de
que a relação subordinada tem que estar no juízo indo de A para B, mais do que de B para A.
E de fato é isso mesmo. Se o sujeito da crença quer julgar que A ama B, então, de fato, a
relação amar tem que lhe oferecer essa possibilidade e ela tem que ser posta na crença indo de
A para B mesmo.
A questão, que Russell parece não ter dado a devida atenção, é justificar como a
relação subordinada pode ser posta na crença indo de A para B, quando o sujeito da crença
quer mesmo julgar que A ama B. Este é de fato o ponto chave para sair do Problema da
Direção Estreita. A relação subordinada tem que estar na crença indo de A para B e, também,
ela tem que ser posta na crença indo de A para B. Dito de outro modo, ela tanto tem que estar
na crença relacionando quanto tem que ser posta na crença como relação relacionando
logicamente.
Ora, a teoria das relações de Russell permite assumir essa posição. A relação
subordinada é, ontologicamente, uma relação universal, mas, ela é uma entidade aplicável
logicamente. A relação acreditar pode aplicá-la logicamente infinitas vezes. O que precisa ser
feito, e esse será um passo que daremos no capítulo seguinte, é justificar como isso pode ser
feito. Antes, porém, consideremos também a insuficiência da posição que Griffin assumiu em
sua crítica a Russell.
A crítica de Griffin à posição de Russell também não foi devidamente justificada. Ela
padece, pelo menos, de dois problemas graves. Ela considera a relação subordinada como um
“mero” termo da relação acreditar e, com base nisso, rapidamente decreta que a relação
113
subordinada não pode ocorrer relacionando, uma vez que a Teoria RM não requer a relação
subordinada ocorrendo como relação relacionando, mas como relação universal apenas.
Ora, a relação subordinada é sim um termo da relação acreditar, mas, não é um mero
termo. Ela é um termo especial, diferente dos demais termos da crença no tipo e na ordem
lógica. Além disso, a relação subordinada é sim uma relação relacionando os termos sobre os
quais é aplicada como, por exemplo, no juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio. Ela é uma
relação e, como toda relação aplicada a termos logicamente adequados, ela está relacionando
seus termos. O problema de Griffin foi não ter conseguido explicar em que consiste a
operação da “relação relacionando subordinada” e em que consiste a operação da “relação
principal relacionando”. Ou seja, ele não soube mostrar que o papel relacionante da relação
subordinada, longe de se opor, harmoniza-se com o papel relacionante, principal, da relação
acreditar. E esse também será um passo que deixaremos para o Capítulo Seguinte, quando
tratarmos da superação do Problema da Direção Estreita. Consideremos agora o Problema da
Direção Larga.
2.1.3 O Problema da Direção Larga
A compreensão insuficiente da relação subordinada e a falta de distinção entre os
campos em que cada relação opera quando acreditar ocorre também constituem a fonte do
Problema da Direção Larga. De fato, como já percebemos acima, Stout e Griffin, os críticos
que apresentamos como defensores do Problema da Direção Larga, fazem uma apologia a
esse Problema com base na ideia de que a relação subordinada é um simples objeto nas
ocorrências da relação acreditar. Deixando, assim, de reconhecer sua operação relacionante
específica e sua verdadeira participação na ordenação dos termos.
Ora, realmente, se a relação subordinada estivesse no mesmo nível lógico dos outros
termos da relação acreditar, então, logicamente, ela poderia ser pensada em qualquer posição,
inclusive nos lugares próprios para os outros termos. Mas, claro, disso só resultaria uma
justaposição de termos isolados, nunca uma unidade de crença. O que nos permite ver que,
desde o início, é o Problema da Direção Larga que tem um grande problema pra resolver, a
saber, o problema de justificar seu pressuposto básico de que a relação subordinada é um
mero termo no mesmo nível lógico dos demais termos na crença.
114
2.1.3.1 A tentativa de fundamentar o Problema da Direção Larga
O crítico que mais se esforçou para dar uma fundamentação ao Problema da Direção
Larga parece ter sido Nicolas Griffin. De acordo com ele a raiz do Problema da Direção Larga
está na relação subordinada, haja vista que ela é um “mero termo” da relação acreditar. No
seu entender, para que o Problema da Direção Larga não ocorresse, a relação subordinada
teria que ser uma relação particularizada ou uma relação relacionando. Mas, sustenta ele, a
teoria RM “não requer nem uma coisa, nem outra”.
Como vimos acima, as duas maneiras como Griffin classifica a relação subordinada,
bem como o modo como ele sentencia que a Teoria RM não suporta a relação subordinada
como relação particularizada ou relacionando, são bastante questionáveis. Ele não justifica o
que entende por relação “particularizada” e não considera se a única maneira de ser uma
relação relacionando é ocorrer como relação principal ou não numa instância. E, esse é um
ponto decisivo, não existe apenas uma única maneira para uma relação ocorrer como “relação
relacionando”.
O mais importante da posição de Griffin, porém, é que na própria maneira de colocar
o Problema da Direção Larga, ele já deixa entrever a pedra de apoio sobre a qual tenta
construir uma fundamentação para o Problema. E, lamentavelmente, como veremos agora,
essa pedra de apoio não suporta o edifício que ele pretende construir.
Griffin precisa justificar que a relação subordinada, como ela é pensada na Teoria
RM, está no mesmo nível lógico dos outros termos do juízo. Para isso, ele faz uma
interpretação de Russell sustentando duas ideias bastante questionáveis. A primeira é que a
Teoria RM mantida por Russell não comporta a relação subordinada como relação
relacionando. E a segunda é que a relação envolvida numa instância da relação acreditar é
uma relação universal e para Russell somente a relação universal tem ser.127
Acontece que, além de sua interpretação da posição de Russell não parecer correta,
nenhuma das duas ideias de Griffin serve de justificativa para dizer que a relação subordinada,
no escopo da relação acreditar, é um termo comum. Primeiro, a Teoria RM, especialmente
em sua primeira versão, requer e comporta a relação subordinada como uma relação
relacionando logicamente. Russell foi claro ao dizer na versão de 1910 que a relação
127 GRIFFIN, 1985, p. 216.
115
subordinada liga os termos e determina a direção deles, porque ela tem, naturalmente, uma
direção.
O que Griffin não conseguiu distinguir, talvez por manter-se preso demais à segunda
versão da Teoria RM, foi que podemos distinguir uma relação relacionando efetivamente de
uma relação relacionando logicamente apenas. Quando uma relação ocorre relacionando
efetivamente, ela cria um fato no mundo. E quando uma relação ocorre relacionando
logicamente, ela cria uma possibilidade lógica do fato ocorrer no mundo.
Ora, na Teoria RM a relação subordinada ocorre como relação relacionando
logicamente, sob o comando da relação acreditar que ocorre relacionando efetivamente. Se a
relação subordinada não ocorresse relacionando logicamente os termos, a relação acreditar
também não poderia ocorrer relacionando efetivamente. Pois, quando isso é o caso, a relação
acreditar apenas liga um sujeito a uma sequência desconexa de termos, mas isso não é uma
ocorrência autêntica.
Russell não trabalhou essa distinção devidamente e isso fez com que ele também não
superasse o Problema da Direção Larga na Teoria RM, mas ele chegou bem perto. Segundo
ele, “uma relação relacionando difere de uma relação em si mesma pelo indefinível elemento
da asserção”.128 Ora, se o que difere uma relação relacionando de uma relação em si mesma é
a asserção, então, ela é de fato a mesma relação, numericamente a mesma, tomada em campos
diferentes. No primeiro caso ela é tomada operando logicamente sobre os termos, pois uma
asserção é uma operação lógica e, no segundo caso, ela é tomada como uma entidade objetiva,
que existe em si mesma e que pode manifestar-se concretamente em vários fatos.
Quanto à segunda afirmação de Griffin, a de que para Russell somente a relação
universal tem ser, parece não capturar devidamente o pensamento de Russell. Griffin faz
referência ao parágrafo 55 de The Principles, sem citar as palavras de Russell, mas, acontece
que o que Russell afirma naquele parágrafo é que “relações não têm instâncias, elas são
numericamente as mesmas em todas as proposições em que elas ocorrem”. E isso não quer
dizer que a relação instanciada não tem ser, mas, sim, que ela é a mesma relação universal,
“precisamente e numericamente a mesma relação” em todas as proposições que ela ocorre.
128 RUSSELL, 1903, p. 100.
116
Ao que parece, Russell afirma exatamente o contrário do que Griffin está dizendo,
isto é, que a relação instanciada é a relação universal ocorrendo concretamente num fato. E,
ainda que aquela ocorrência venha a desaparecer da existência, a relação universal continua
na ordem do ser. Por conseguinte, não parece certo dizer que para Russell a relação
relacionando não tem ser, o certo seria dizer que para ele a relação relacionando
concretamente é a mesma e única relação, que tem ser, ocorrendo efetivamente num fato.
Agora o jogo parece empatado. Griffin acusa a posição russelliana de erro e a
posição russelliana acusa a interpretação dele de ser insustentável. Ele deve provar que a
relação subordinada é um mero objeto na crença e para isso apela para o fato de que a relação
subordinada não pode ocorrer como relação relacionando na Teoria RM porque ela é uma
relação universal e a relação universal só pode ocorrer como objeto na crença. Mas, como
vimos, isso não parece certo e a conclusão a que chegamos é que a afirmação de que a relação
subordinada não pode ocorrer relacionando na crença está apoiada numa interpretação
insustentável do pensamento de Russell.
De nossa parte, questionamos essa posição de Griffin e assumimos que a relação
subordinada não é um termo no mesmo nível lógico dos demais, mas, sim, um termo especial
que exerce a função lógica de ligar os termos sob o comando da relação acreditar. E assim
nos propomos o oposto, isto é, a defender que a relação subordinada é também uma relação
relacionando, não efetivamente, mas logicamente. Contudo, suspenderemos o assunto aqui,
nesse ponto de empate, e voltaremos a ele apenas no Terceiro Capítulo. Antes, ainda
precisamos notar e examinar atentamente os dois pressupostos centrais presentes no esforço
de Griffin para fundamentar o Problema da Direção Larga.
2.1.3.2 Pressupostos centrais na fundamentação do Problema da Direção Larga
Para afirmar o Problema da Direção Larga, Griffin (e quem quer que tenha essa
pretensão) deve assumir desde o início dois pressupostos básicos, a saber, o pressuposto do
nível lógico único nos termos e o pressuposto da operação simples na relação acreditar. O
primeiro deles afirma que os termos relata da relação acreditar estão todos no mesmo nível
lógico, e o segundo deles afirma que a operação realizada pela relação acreditar,
simplesmente, consiste em posicionar os termos. Consequentemente, com o apoio desses dois
117
pressupostos, torna-se possível afirmar que a relação acreditar pode posicionar a relação
subordinada aleatoriamente em suas instâncias efetivas.
O pressuposto do nível lógico único nos termos da relação acreditar, porém, não é
sustentável. Ele está ligado a uma compreensão inadequada da teoria das relações de Russell.
Não obstante, e isso é desconcertante, o próprio Russell ter assumido essa compreensão
inadequada na segunda versão da Teoria RM. Haja vista que, considerada com atenção, a
teoria das relações mais robusta de Russell não deixa nenhum espaço que justifique assumir
essa concepção da relação subordinada como termo que está no mesmo nível lógico dos
demais termos da crença.
A teoria das relações de Russell distingue a relação universal da relação relacionando
efetivamente, isto é, da relação quando ocorre instanciada. A relação universal é um conceito
objetivo, mas, não é um conceito estático. Ela tem muitas possibilidades lógicas.
Especialmente, a possibilidade de ocorrer muitas vezes, ao mesmo tempo, em diferentes
lugares e a possibilidade de ocorrer ligando logicamente termos nos juízos. Em hipótese
alguma, porém, a relação instanciada efetivamente, ou ligando os termos no juízo ou como
relação universal, é uma relação ontologicamente diferente. A relação universal exemplifica-
se numa instância concreta ou numa ocorrência lógica e ela pode fazer isso inúmeras vezes
simultaneamente. É próprio de um universal ocorrer inúmeras vezes, simultaneamente, em
lugares diferentes, bem como, em momentos ou juízos diferentes. E a ocorrência de uma
relação no juízo é uma exemplificação lógica da única e mesma relação universal, assim como
uma instanciação efetiva de uma relação é uma exemplificação da única e mesma relação
universal que, como disse Russell, é “numericamente a mesma em todas as proposições em
que ocorre”.
Nada nessa dinâmica entre a relação como universal, a relação instanciada
efetivamente e a relação ocorrendo logicamente no juízo resulta em obstáculo ontológico para
que a relação acreditar possa operar com ela como relação subordinada. A relação tomada
como subordinada é a mesma entidade objetiva universal, pensada logicamente, ligando
alguns termos. A entidade ontológica universal que é a relação, por natureza, comporta ser
usada logicamente como objeto de crença, isto é, de ser objeto de outra relação, e comporta
ser usada para ligar logicamente termos compatíveis com sua operação. E o sujeito da relação
acreditar, por sua vez, pode operar logicamente com uma relação subordinada universal,
porque a conhece por acquaintance, isto é, porque ela não lhe é estranha em nenhuma de suas
118
capacidades. Haja vista que, para ter tal acquaintance com a relação universal o sujeito da
relação acreditar teve que lidar com ela em várias ocorrências exemplificadas, até chegar a
ela como conceito objetivo e poder operar com ela logicamente.
Ao lado do pressuposto do mesmo nível lógico dos termos, Griffin, implicitamente,
assume também o pressuposto da operação simples da relação acreditar. Em que consiste esse
pressuposto? Ele consiste na pressuposição de que a relação acreditar simplesmente posiciona
os termos da crença e nada mais. Claro, isso não é assumido expressamente desse modo por
Griffin, nem por nenhum outro simpatizante do Problema da Direção Larga, mas não há como
negar que isso decorre da maneira como ele trata a relação acreditar ao propor o Problema da
Direção Larga.
Contudo, tal qual o pressuposto do nível lógico único dos termos da crença, o
pressuposto da operação simples da relação acreditar não se sustenta na realidade. Quando a
relação acreditar forma uma crença de modo algum ela realiza a operação simples de pôr um
termo ao lado do outro apenas. Ela não afirma, simplesmente, que este termo está no primeiro
lugar e aquele termo está no segundo lugar e aquele outro termo está no terceiro lugar. Ao
contrário, ela faz uma operação complexa organizando os termos numa hierarquia lógica,
posicionando-os numa direção lógica e atribuindo a eles papeis lógicos específicos por meio
da relação subordinada. Na prática, se a relação subordinada for dual e assimétrica, ela afirma
que o primeiro termo é o sujeito daquela relação subordinada e que o outro termo é o relatum.
Ou seja, ela faz uma operação complexa, aplicando a relação subordinada aos objetos
intencionados pelo seu sujeito, atendendo à exigências lógicas da relação subordinada e, por
meio desta, unindo os termos numa unidade complexa, com papéis lógicos específicos.
Como podemos ver, as inconsistências apontadas nos dois pressupostos básicos da
tentativa de fundamentação do Problema da Direção Larga, mostram que qualquer tentativa
de justificar esse Problema tem um alto preço a pagar. Elas revelam o quanto esses dois
pressupostos são frágeis e abrem caminho para assumir e justificar pressupostos diferentes e
mais consistentes, a saber, que os termos da relação acreditar nunca estão no mesmo nível
lógico e que a operação da relação acreditar é uma operação complexa, onde o seu sujeito
aplica uma relação subordinada sobre outros termos, atribuindo a estes últimos papeis lógicos
diferentes na unidade da crença que ele forma. A justificativa devida de tudo isso, porém, nós
faremos apenas no Capítulo Seguinte.
119
2.2 DIFICULDADES ADJACENTES AO PROBLEMA DA DIREÇÃO
Se o pressuposto de que a relação subordinada é um objeto comum na crença é levado
a sério como, de modo geral, fazem os críticos da Teoria RM, então, além do Problema da
Direção, em seu duplo aspecto, surgem, também, algumas dificuldades ligadas a ele. De fato,
se a relação subordinada for tratada como um objeto comum na crença, então, não podemos
afirmar que a relação acreditar consiga alcançar uma instanciação completa e também não
podemos falar de uma unidade de crença. Consequentemente, fica difícil (e talvez impossível)
explicar a variação de aridade e da ordem lógica nas ocorrências da relação acreditar. E, fica
igualmente difícil (talvez impossível) explicar os papéis lógicos dos termos ou construir um
simbolismo formal capaz de expressá-los.
Essas dificuldades adjacentes ao Problema da Direção, apontadas no parágrafo
anterior, podem ser estruturadas em duas partes. A primeira parte é constituída das
dificuldades das variações e a segunda parte é constituído das dificuldades da identificação
dos papéis lógicos dos termos e da construção de um simbolismo formal eficaz para as
ocorrências da relação acreditar. A fim de considerá-los bem, vamos dividir esta seção em
duas subseções para tratar, respectivamente, de uma parte e da outra.
2.2.1 Dificuldades com variações
Considerar a relação subordinada como um termo que está no mesmo nível lógico dos
demais termos da relação acreditar não somente causa o Problema da Direção, Estreita e
Larga, mas, causa também várias dificuldades explicativas ligadas a certas variações que, na
relação acreditar proposta pela Teoria RM, ainda não foram devidamente consideradas. Por
um lado, a relação acreditar parece poder variar indefinidamente na aridade, isto é, na
quantidade de termos envolvidos por ela numa instanciação, o que também gera uma variação
no número de lugares dos termos. E, por outro lado, ela também parece poder variar de ordem
lógica, dependendo da ordem da relação que ela envolver numa ocorrência. Mas, se a relação
subordinada for considerada um termo comum, então, essas variações perdem todo
significado. Ao contrário, se a subordinada for tratada como uma relação, então, tais
dificuldades são superadas. Consideremos melhor e separadamente cada uma dessas
dificuldades relativas às variações que acabamos de mencionar.
120
2.2.1.1 Dificuldades explicativas na variação de aridade da relação acreditar
Se a relação subordinada for tratada como um objeto comum na crença, pelo menos,
duas dificuldades adjacentes a esta decisão, relativas à aridade da relação acreditar, devem ser
levadas em conta. A primeira é que a relação acreditar, rigorosamente falando, não alcançará
uma instância válida como crença relacional. Ela, na melhor das considerações, nada mais
conseguiria do que formar uma sequência de termos. E, nesse caso, não poderíamos falar nem
de unidade de crença, nem de aridade da relação. Pois, a aridade da relação consiste,
exatamente, no número de termos que a relação envolve quando ela ocorre numa instância
determinada.
A segunda dificuldade, contudo, começa a surgir quando tomamos a decisão de
rejeitar o pressuposto de que a relação subordinada é um objeto comum na crença. Nesse
caso, a relação acreditar pode ser vista formando crenças relacionais que contêm diferentes
números de termos. Devemos considerá-la a mesma relação em todas as essas instâncias ou
devemos considerá-la uma relação diferente em cada instância com aridade diferente?
Trataremos primeiro dessa segunda hipótese, que é a mais descabida no nosso entender, e, em
seguida, consideraremos a primeira.
Apesar de envolver um número determinado de termos a cada instância, podemos
perceber na relação acreditar uma capacidade lógica numericamente indefinida de envolver
termos, isto é, de instanciar-se envolvendo um número cada vez maior de termos. Não há
nenhum critério que determine um limite máximo para a quantidade de termos que ela pode
envolver numa ocorrência. Contudo, apesar dessa variedade parecer tão patente, as opiniões
ainda se dividem. Alguns acham que ela deve ser entendida como uma relação de grau fixo e
outros que ela deve ser entendida como uma relação de grau variável. Neste último caso, ela
seria uma relação multigrade129(*) e, no primeiro caso, ela seria uma relação unigrade(*).
Os que defendem que acreditar é uma relação unigrade sustentam que ela só pode
ocorrer com um número determinado de termos e que a cada ocorrência com um número de
termos diferente ela é uma relação diferente. Já os que defendem que a relação acreditar é
multigrade sustentam que ela é a mesma relação em todas as ocorrências, seja qual for o
129 Adiante, na nota 169, justificaremos nossa escolha em manter o uso das palavras inglesas “multigrade”e
“unigrade”.
121
número de termos por ela envolvido, e que ela tem a capacidade de envolver qualquer número
de termos acima de dois.
No caso da relação acreditar proposta pela Teoria RM, devemos notar que se ela for
considerada uma relação unigrade chegaremos a resultados tão incompatíveis com a proposta
de Russell que, ainda que ele não tenha dito expressamente, somos levados a inferir que a sua
Teoria RM supõe a relação acreditar como relação multigrade. De fato, é comum encontrar
ocorrências da relação acreditar envolvendo diferentes números de termos como, por
exemplo, nos seguintes casos:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
(37) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio mais que Glauco.
(38) Otelo acredita que Desdemona entregou Cássio a Glauco e Brutus.
A frase (3) expressa a relação acreditar envolvendo quatro termos, a saber, Otelo,
Desdemona, Cássio e a relação amar. A frase (37) expressa a relação acreditar envolvendo
cinco termos, isto é, Otelo, Desdemona, Cássio, Glauco e a relação amar mais que. E,
finalmente a frase (38) expressa a relação acreditar envolvendo seis termos: Otelo,
Desdemona, Cássio, Glauco, Brutus e a relação entregar.
Alguns críticos sustentam que a posição geral de Russell sobre universais o coloca do
lado dos que sustentam que relações são entidades unigrade e, consequentemente, que a
relação acreditar mantida pela Teoria RM seria uma relação unigrade também. Eles advogam
para a relação acreditar mantida por Russell características que, no nosso entender, não
representam a posição de Russell e resultam em dificuldades tais, que seria bastante duvidoso
imaginar que Russell não as tivesse percebido se tivesse adotado essa posição.
Peter Geach (1957) desencadeou sua crítica à Teoria do juízo de Russell assumindo
que ela realmente exige relações de crenças distintas, em ocorrências com aridades diferentes,
porque ela não é capaz de mostrar, digamos, como poderemos entender o juízo abreviado
“James julga que p” se nós entendemos a expressão “James julga (que) ...” e a sentença
abreviada “p”. Pois, segundo ele, se usarmos o simbolismo “B (j, a, R, b)”, onde “R”
122
representa uma relação, poderemos analisar “James julga que p” em todos os casos em que
“p” é interpretada como uma declaração “aRb”. Mas, insiste Geach, isto não dá nenhuma pista
para analisarmos casos onde “p” contém outro tipo de interpretação, digamos, com três,
quatro ou mais objetos. Nesses casos, sustenta ele, a teoria de Russell precisaria de diferentes
relações de julgar (diferindo de acordo com o número e o tipo lógico dos termos entre os
quais ela é mantida) para cada sentença de forma lógica diferente expressando juízo.130
Com uma postura muito semelhante à de Geach, Artur Norman Prior (1971) também
sustenta que acreditar é um tipo de relação que só podemos dizer o que ela é dependendo
daquilo que é acreditado.131E bem próxima das posições de Geach e Prior, temos também a
crítica de Nicholas Griffin. Segundo ele, na teoria russelliana do juízo a relação julgar é uma
relação de grau fixo e que tratá-la como uma relação de aridade variável “está excluído para
Russell, cuja lógica não deixa espaço para relações sem aridade definida”.132
Próximo à posição de Griffin, também podemos colocar a posição de Fraser
MacBride. Ele não trata diretamente da aridade da relação acreditar, mas assume que Russell
considera universais como entidades que ocorrem com aridade fixa nos fatos atômicos em que
aparecem. Contudo, uma vez que acreditar é uma relação universal, fica valendo a
consequência de que ela também teria que ter grau fixo. Tal posição, porém, segundo
MacBride, não se sustenta, pois a existência de predicados coletivos revela a existência de
universais multigrade, que solapam a ideia de que só há relações com grau fixo.133
Em contrapartida, Alex Oliver e Timothy Smiley contestam que relações tenham
grau fixo e contestam que a posição de Russell na Teoria RM era de que acreditar fosse uma
relação de grau fixo. Segundo eles, predicados coletivos e predicados que contêm listas de
elementos representam relações de aridade variável, isto é, relações que são multigrade. O
predicado “.... prepararam o jantar”, por exemplo, expressa perfeitamente um predicado
multigrade e aponta para a existência de universais, propriedades e relações, que podem
instanciar-se com uma lista de tamanho indefinido de elementos.134 Mas, diferentemente do
que pensam os críticos acima, sustentam Oliver e Smiley, que essa também era a posição de
Russell no tocante à relação acreditar com a Teoria RM.
130 GEACH, 1957, p. 49. 131 PRIOR, 1971, p. 09. 132 GRIFFIN, 1985, p. 218. 133MACBRIDE, 2005, p. 571-72. 134OLIVER; SMILEY, 2004, p. 610.
123
De nossa parte, concordamos com a posição de MacBride, segundo a qual é
insustentável a ideia de que todas as relações têm grau fixo, e também concordamos com a
posição de Alex e Timothy, segundo a qual há relações de predicação multigrade que revelam
a existência de relações multigrade, e que esta era, de fato, a posição de Russell para com a
relação acreditar, na Teoria RM. Por outro lado, nos afastamos dos que acusam Russell de
sustentar que a relação acreditar é uma relação unigrade ou que a sua teoria do juízo requer
isto ou resulta nisto como consequência.
Primeiro, com exceção de MacBride, seus defensores não apresentam uma base
textual clara para afirmar que segundo Russell acreditar é uma relação unigrade, que resulta
numa relação ontologicamente diferente cada vez que ocorre numa sentença com forma lógica
diferente ou que a lógica de Russell não deixa espaço para tratar de relações com variação de
aridade. Por exemplo, em que texto, durante a fase em que sustentou a teoria da relação
múltipla, Russel assume que a relação acreditar é unigrade ou que ela resulta numa relação
diferente a cada ocorrência com aridade n ≥ 2 + 1? MacBride parece ser o único a indicar uma
base textual, ele sustenta que Russell introduziu a concepção de que universais são entidades
unigrade na teoria dos universais da segunda edição do Principia, isto é, em 1925.135 Mas
naquele texto Russell não sustentava mais a Teoria RM.
Segundo, os críticos apontados acima desvirtuaram completamente a propriedade
lógica central da relação acreditar advogada por Russell, que é ser uma relação múltipla
capaz de ligar vários termos. Ao invés de tirar as consequências disso, eles procuram
estabelecer outra propriedade como característica central para a relação acreditar, a saber, ser
uma relação que só liga um número determinado de termos. Qual é, por exemplo, a razão
pela qual não podemos entender “James acredita que p”, quando “p” é da forma “aRb” e
também quando “p” é da forma “aRbc”? Qual é o mecanismo recursivo que Russell precisa
oferecer para isso, se ele já estabeleceu que acreditar é uma relação entre um sujeito e vários
objetos, e que o sujeito reúne esses objetos num juízo? Será que o fato de aumentar algum
elemento a mais entre os objetos ligados pela relação acreditar faria Russell sustentar que ela
já não é a mesma relação? Ora, apesar do motivo principal para ter adotado a Teoria RM ter
sido o reconhecimento de que proposições não são entidades objetivas, parece bastante claro
que também era desejo de Russell mostrar que a relação acreditar tem a capacidade de ligar
135MACBRIDE, 2005, p. 568.
124
vários termos e que por “vários termos” ele entendia um numero indefinido maior do que
dois.
Terceiro, eles ainda postulam uma rigidez de aridade na relação acreditar, a partir de
uma influência externa, insustentável. Prior, por exemplo, é mais direto quanto a isso, mas
Geach segue a mesma trilha: o conteúdo formado pela relação acreditar determina o que é a
relação acreditar e não a sua natureza lógica. Mas é preciso que perguntemos: por que só é
possível dizer o que é a relação acreditar dependendo daquilo que é acreditado? A nosso ver,
parece que aquilo que podemos dizer a partir do que é acreditado é em que consiste o
conteúdo de uma crença, sua quantidade de elementos ou quais são seus elementos, mas não o
que é a relação acreditar. A partir do que é acreditado podemos dizer como a relação
acreditar aparece instanciada, mas não o que é ela em si. O que é ela só pode ser dito por
meio de suas propriedades lógicas, especialmente, a de ligar vários termos num juízo por
meio de uma relação subordinada.
Além disso, não obstante a posição de Griffin afirmar que para Russell é difícil lidar
com relações de aridade variável, porque sua lógica não deixa espaço para esse tipo de
relações, podemos afirmar que a filosofia de Russell permite pensá-las, razoavelmente bem
como relações de aridade variável. Em Fundamental Ideas and Axioms of Mathematics
(1899), texto não publicado em vida, por exemplo, Russell trata da predicação não-
distributiva, isto é, de relações de predicação que podem ser atribuídas a conjuntos ou
seqüências de objetos e este é, sem dúvida, um bom caminho para pensar as relações de
aridade variável. Outro caminho pode ser a maneira como ele apresenta algumas relações na
primeira versão da Teoria RM. A relação descrita como “...tem ciúmes de ... com ...”, por
exemplo, é apresentada por ele como uma relação de três termos, mas que “se formos além e
levarmos em conta a necessidade de uma data, a relação se torna uma relação de quatro
termos, nomeadamente, três pessoas e uma data”.136
Até onde podemos perceber, portanto, durante o tempo em que sustentou a Teoria
RM, Russell não assumiu que acreditar é uma relação unigrade ou que ela é uma relação
diferente em cada ocorrência com aridade diferente. Se por “diferente” entendermos “entidade
diferente” e não “instância diferente”. Em vez disso, o que ele faz é afirmar explicitamente
que acreditar é uma relação que envolve “vários outros termos”,137 uma relação que requer
136 RUSSELL, 1911, p.179-180. 137Ibidem., p.157.
125
“mais de dois termos”138 e que “um ato de crença ou juízo é a ocorrência entre certos termos
num momento particular do tempo, da relação acreditar ou julgar”.139Ora isso sugere muito
mais que o número de seus termos é indeterminado do que determinado.
Claro, em Theory of Knowledge Russell disse que “relações diferem de acordo com o
número de termos que elas relatam em um complexo atômico”.140 Mas isso não justifica a
interpretação de que uma relação deixa de ser ela mesma pelo fato de que muda sua aridade
numa ocorrência. Ao contrário, parece que o que Russell está afirmando é exatamente que
relações podem ocorrer com diferentes números de termos em fatos atômicos. E é isso que as
difere, enquanto instâncias diferentes, pois a ocorrência de uma relação numa instância
ternária é diferente de sua ocorrência como instância quaternária. Assim, dizer que “relações
diferem de acordo com o número de termos que elas relatam num complexo atômico” sugere
muito mais ser entendido como “diferem nas instâncias”, do que ser entendido como “diferem
ontologicamente”.
Em contrapartida a tudo isso, aceitável mesmo é o ponto de vista de Alex Oliver e
Timothy Smiley segundo o qual a posição de Russell não somente não deve ser vista como
sustentando que acreditar é uma relação unigrade, mas, sobretudo, que ela pode e deve ser
lida como ele considerando acreditar uma relação multigrade. Até porque, considerar a
relação acreditar uma relação unigrade leva a dificuldades que, provavelmente, jamais
passariam despercebidas por Russell. No campo da linguagem, por exemplo, se acreditar
fosse uma relação diferente em cada ocorrência com aridade diferente, o verbo “acreditar”
seria vítima de uma ambiguidade impraticável. Imaginemos dois reportes de crença como os
que são expressos por (39) e (40):
(39) Otelo acredita que Desdemona acredita na informação de Cássio.
(40) Otelo acredita em tudo que Desdemona acredita.
138RUSSELL, 1911, p.156. 139 Idem., 1912, p. 186. 140Idem., 1913, p.90.
126
Para o falante pronunciar (39) adequadamente ele teria que saber qual é a informação
que Desdemona acredita de Cássio, isto é, teria que saber a aridade do seu conteúdo de
crença, do contrário ele não saberia que verbo “acreditar” deveria ser usado. E, de modo
similar, podemos considerar a mesma dificuldade presente em (40). Como Desdemona pode
acreditar em várias coisas, suas crenças teriam diferentes aridades e não haveria um verbo
“acreditar” que pudesse ser usado para expressar “tudo que Desdemona acredita”. Assim, não
é cabível sustentar que “acreditar” seja um verbo diferente cada vez que ocorrer com aridade
diferente e isso dificilmente passaria despercebido por Russell que, por sinal, considerava
uma palavra como um universal, cujos “exemplos são ocasiões em que um exemplo da
palavra é falado, ouvido, escrito ou lido”, não como uma coisa totalmente diferente a cada
ocorrência.141
Além do mais, também aparecem problemas graves no campo da lógica que
dificilmente passariam despercebidos por Russell se acreditar fosse uma relação unigrade.
Seria impossível, por exemplo, fazer determinadas inferências lógicas, como comumente se
faz, a partir de suas ocorrências. Por exemplo:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
(41) Alexandre acredita que Desdemona ama Cássio mais que Glauco.
Considerando verdadeiras essas duas atribuições de crença, parece perfeitamente
lógico que as pessoas façam inferências como essa expressa por (42):
(42) Otelo mantém com “Desdemona ama Cássio” a mesma relação de juízo que
Alexandre mantém com “Desdemona ama Cássio mais que Glauco”.
Ora, se uma inferência como essa é possível, e é correto fazê-la, então a relação de
juízo que Otelo mantém com o conteúdo expresso por “Desdemona ama Cássio” e que
141 RUSSELL, 1959, p.124.
127
Alexandre mantém com o conteúdo expresso por “Desdemona ama Cássio mais que Glauco”
é a mesma relação, instanciada em situações diferentes e com números de termos diferentes.
Se, contudo, acreditar fosse uma relação unigrade a inferência expressa por (42)
seria impossível. Não haveria nada em comum entre a relação de juízo de Otelo expressa por
(3) e a relação de juízo de Alexandre expressa por (41). Elas seriam relações absolutamente
diferentes. Mas, até onde podemos compreender, essa posição jamais se identificaria com a
posição de Russell, que reivindicava a experiência de acquaintance com relações como sendo
entidades subsistentes das quais cada ocorrência concreta é apenas “um exemplo”.142
Contudo, ao aceitarmos que a relação acreditar pode ser lida como sendo uma
relação de aridade variável, ainda teremos dificuldades a resolver, caso o padrão de leitura
que trata a relação subordinada como objeto comum na crença seja aceito. Pois, neste caso,
apesar da relação acreditar ligar um sujeito a uma seqüência desconexa de termos, nenhuma
unidade lógica que permita identificar uma aridade adequadamente é formada.
Percebemos, portanto, que a variação na aridade da relação acreditar também está
ligada à operação lógica da relação subordinada. Acreditar é uma relação multigrade sim,
mas, pelo menos um dos seus termos tem que ser uma relação, e tem que funcionar como
relação, para que ela possa ocorrer plenamente e formar uma crença relacional. Mas, se
acreditar for uma relação de aridade variável e a subordinada não for tratada como um termo
comum na crença, a variação de aridade será determinada pela relação acreditar ou pela
relação subordinada? Neste último caso, qual é mesmo o papel da relação subordinada na
determinação da aridade da relação acreditar? E, no primeiro caso, em que consiste o papel
da relação acreditar na determinação da aridade? Essas perguntas, porém, só serão
enfrentadas no Capítulo Terceiro.
2.2.1.2 Dificuldades explicativas na variação do número de lugares da relação acreditar
Russell assumiu que a relação acreditar é uma relação que sempre envolve mais de
dois termos em suas ocorrências. Contudo, voltado mais para o Problema da Direção, ele não
conseguiu oferecer um tratamento satisfatório ao tema dos lugares dos termos na relação
142 RUSSELL, 1912, 197.
128
acreditar. Ele tinha em mãos uma boa base para fazer isso, que era sua teoria das relações,
mas, depois de dar os primeiros passos na direção certa, quando lançou a primeira versão,
afastou-se radicalmente. Em sua primeira versão da Teoria RM, ele tratou a relação
subordinada como relação, um termo de nível superior, cujo sentido vai de um termo para
outro quando ela é assimétrica e dual. O termo do primeiro lugar desempenha o papel de
sujeito da relação e o termo do segundo lugar desempenha o papel de relatum.
A relação acreditar, porém, não é uma relação dual, apesar de ser assimétrica, e
Russell não procurou aplicar essas considerações aos lugares que os termos ocupam nela. Ele
preferiu abandonar esse caminho e assumir que a relação subordinada está no mesmo nível
dos outros termos, a partir da segunda versão da Teoria RM. Essa mudança, claro, resultou
num sério problema para a Teoria RM porque nivelou os lugares dos termos entre os relata da
relação acreditar.
Por outro lado, reconhecer que a relação subordinada opera como relação dentro do
escopo da relação acreditar e que ela é um termo de nível superior elimina esses
inconvenientes. Mas, ao diferenciar a relação subordinada dos outros termos, resta a tarefa de
explicar a variação no número de lugares envolvidos nas ocorrências da relação acreditar. E,
essa tarefa tem pela frente, pelo menos, duas dificuldades muito importantes para a Teoria
RM. Primeiro, dependendo da relação subordinada, numa determinada instância da relação
acreditar, ser uma relação dual, ternária ou quaternária, por exemplo, a ocorrência da relação
acreditar terá número de lugares diferentes. Segundo, se a relação subordinada tiver aridade
acima de dois, torna-se perigoso dizer que cada termo ocupa um lugar na relação acreditar,
pois, muitas vezes, isso causará uma fragmentação descabível dos termos. Alguns críticos,143
por exemplo, procuraram entender a posição de Russell, no tocante aos lugares da relação
acreditar, como afirmação de que ela é uma relação de “muitos lugares” (many-places) e,
como se depreende do modo como eles simbolizam as ocorrências da relação acreditar, por
“muitos lugares” eles entenderam “um lugar para cada termo”, o que resultou em sérios
problemas, nas situações em que ocorrem relações subordinadas com aridade acima de dois.
Dessas dificuldades apontadas acima, então, emergem duas perguntas cujas respostas
serão de grande valia para entendermos o funcionamento da Teoria RM. A primeira é
referente à determinação da variação. A aridade da relação acreditar é determinada quando a
143GRIFFIN, 1985, p 213 e 216; WAHAL, 1986, p.385; MILLER, 2000, p. 88; PINCOCK, 2008, p.107.
129
aridade da relação subordinada é dada e a aridade da relação subordinada é dada quando a
relação acreditar a aplica sobre os objetos. Nesse caso, quem determina exatamente a aridade
da relação acreditar, ela mesma ou a relação subordinada? E, a segunda dificuldade é
referente à fragmentação dos lugares dos termos. Se não é possível afirmarmos que cada
termo ocupa um lugar nas ocorrências da relação acreditar, quando a relação subordinada tem
aridade acima de dois, o que é mesmo que caracteriza “um lugar” na ocorrência de uma
relação?
2.2.1.3 Dificuldades explicativas da variação da ordem lógica na relação acreditar
A dificuldade explicativa na variação na ordem lógica da relação acreditar também
está enraizada na má compreensão do papel da relação subordinada na crença. Aqueles que
consideram a relação subordinada um termo no mesmo nível lógico dos demais termos da
relação acreditar, rigorosamente falando, terão que admitir que ela não alcança uma
instanciação completa e que, nesse caso, nem se pode falar que ela tenha uma ordem lógica
definida.
Por outro lado, se a relação subordinada for tratada como uma relação, então, ela terá
um nível lógico diferente dos objetos. Ela poderá ser de primeira ordem, de segunda ordem ou
de ordem superior, dependendo dos termos que ela relatar. E, nesse caso, acreditar será uma
relação de ordem variável, ou seja, acreditar será de segunda ordem se a subordinada for de
primeira ordem, será de terceira ordem se a subordinada for de segunda ordem, e assim por
diante. Por exemplo:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio. (obj) (2ª ordem) (obj) (1ª ordem) (obj)
(43) Otelo acredita que vermelho é a cor preferida de Desdemona. (obj) (3ª ordem) (1ª ordem) (2ª ordem) (obj)
(44) Otelo acredita que ser virtude vale mais que ser dom. (obj) (4ª ordem) (2ª ordem) (3ª ordem) (2ª ordem)
130
Se considerarmos a relação subordinada uma relação por meio da qual a relação acreditar liga
logicamente os outros termos, então, a hierarquia das ordens lógicas envolvidas em suas
ocorrências torna-se patente. Nas ocorrências descritas por (3), (43) e (44), por exemplo, a
relação acreditar aparece, respectivamente, como relação de segunda, terceira e quarta ordem.
Enquanto que a relação subordinada aparece, respectivamente, como relação de primeira,
segunda e terceira ordem. Mas, como podemos ver nos exemplos acima, a ordem lógica da
relação acreditar é determinada quando a ordem lógica da relação subordinada é dada, e a
ordem lógica da relação subordinada é dada quando a relação acreditar a aplica sobre os
objetos. A questão de fundo, portanto, consiste em definir quem determina, exatamente, a
ordem lógica da relação acreditar, ela mesma ou a relação subordinada? Essa questão,
contudo, a exemplo da escolha feita com as outras variações apontadas acima, só será
enfrentada na última seção do Capítulo Terceiro.
2.2.2 Dificuldades na identificação dos papéis lógicos dos termos e na construção de um
simbolismo formal para a relação acreditar
Além das dificuldades adjacentes relativas às variações, mesmo que a relação
subordinada não seja tratada como um objeto comum na crença, ainda teremos alguns
obstáculos para compreender os papeis lógicos que os termos desempenham na relação
subordinada e para construir um simbolismo formal capaz de capturar e preservar a distinção
desses papéis lógicos que os termos desempenham na relação subordinada nas ocorrências da
relação acreditar. Nesta subseção, dividida em duas partes, trataremos, respectivamente,
dessas duas dificuldades.
2.2.2.1 Dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na crença
Quando a relação acreditar ocorre numa instância efetiva, ela cria uma unidade lógica
envolvendo os termos objetos e a relação subordinada. Esta unidade tem uma estrutura lógica,
no sentido de que suas partes se integram e, ao mesmo tempo, desempenham papéis lógicos
específicos e complementares. Conhecer a estrutura lógica que a ocorrência da relação
acreditar pode alcançar em suas variadas ocorrências e saber identificar os papéis lógicos que
os termos desempenham em tal estrutura é uma condição necessária para que o sujeito da
131
relação acreditar possa formar crenças adequadamente. Dito de outro modo, o sujeito da
crença precisa saber como instanciar a relação acreditar e suas variadas ocorrências e precisa
saber o papel lógico que os termos desempenham na estrutura formada por ela numa
ocorrência concreta para poder aplicá-los corretamente.
Russell reconheceu isso quando, na primeira versão da teoria RM, assumiu que a
mente que julga deve distinguir o juízo “que A ama B” do juízo “que B ama A”. E para que
isso aconteça, claro, a relação subordinada tem que estar diante da mente que julga indo de A
para B, mais do que de B para A.144 Acontece que, ter uma relação assimétrica dual indo de
um termo para outro, na teoria das relações de Russel, impõe ao sujeito da crença a tarefa de
“distinguir o termo do qual a relação procede como referent e o termo para o qual a relação
procede como relatum”.145 Ora, distinguir o termo de onde uma relação assimétrica dual
procede e o termo para o qual ela procede impõe ao sujeito da crença a tarefa de saber o papel
lógico de um e de outro na crença. Ou seja, o sujeito que, numa ocorrência da relação
acreditar, atribui tanto o termo de onde a relação procede quanto o termo para o qual ela
procede precisa saber que papel lógico o termo desempenha estando num lugar ou noutro.
Para visualizar isto, retomemos o nosso exemplo padrão:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
No juízo descrito pela frase (3), Otelo é capaz de julgar que Desdemona ama Cássio,
porque ele pode distinguir os papéis lógicos dos termos ligados pela relação amar. Uma vez
que esses papéis são impostos aos termos pela relação amar, que Otelo aplica sobre eles, e
que Otelo tanto está acquainted com a relação amar, quanto com os outros termos, ele sabe
que a relação amar tanto impõe esses papéis, como sabe que termos pretende colocar para
desempenhar um papel e outro. Assim, estando ele acquainted com Desdemona, Cássio e
amar, ele sabe que a relação amar demanda um termo que seja o seu sujeito e outro que seja o
seu relatum e ele posiciona os termos com base nessas exigências.
144 RUSSELL, 1910a, p. 180. 145 Idem., 1903, p. 96
132
Além disso, os lugares que a relação subordinada amar determina para cada papel
lógico também ajudam na tarefa do sujeito que instancia a relação acreditar. Pois, o lugar
para que cada termo possa desempenhar corretamente o papel lógico determinado na relação
amar também é determinado por ela mesma. No caso descrito por (3), por exemplo, o
primeiro lugar da relação amar pertence ao termo que vai desempenhar o papel de sujeito e o
segundo lugar pertence ao termo que vai desempenhar o papel de relatum, porque a relação é
tomada como sendo uma relação assimétrica. E somente termos que possam instanciar a
relação amar podem ocorrer no lugar de sujeito.
A esse ponto, porém, surgem duas dificuldades importantes para a Teoria RM e para
as quais Russell não deixou uma resposta, mas, que se forem respondidas devidamente,
desembaraçam em muito o funcionamento da Teoria RM. A primeira delas refere-se à
caracterização dos papéis lógicos dos termos. O que caracteriza o termo sujeito e o termo
relatum? É estar um no primeiro e outro no segundo lugar apenas? E a segunda delas refere-se
ao fato de que muitas relações assimétricas têm aridade acima de dois. Nestes casos, quando a
relação tiver aridade maior que dois, como identificar o papel lógico dos termos?
Além disso, precisamos notar, também, que existe um vínculo estreito entre os papéis
lógicos que os termos desempenham e os lugares que eles ocupam na relação. E isso
demanda, sem sombra de dúvida, uma boa classificação dos lugares dos termos na relação e
um bom simbolismo formal para lidar com eles. Contudo, deixaremos para tratar da
classificação dos lugares dos termos no Capítulo Terceiro, quando estivermos respondendo à
dificuldade da identificação dos papéis lógicos, e situaremos melhor a seguir, na próxima
parte desta subseção, a dificuldade para chegar a um simbolismo formal adequado das
ocorrências da relação acreditar.
2.2.2.2 Dificuldade na construção de um simbolismo formal eficaz para as ocorrências da
relação acreditar
Russell percebeu que a relação acreditar não tem uma forma lógica definida. Uma
forma lógica única que, como ocorre com muitas outras relações, possa ser alcançada e
representada apenas substituindo seus termos por variáveis lógicas numa ocorrência. Ele se
deu conta que ela não é, por exemplo, como uma relação dual ou ternária, de aridade fixa,
133
para que possamos representá-la sempre com a forma lógica R(x, y) ou R(x, y, z,), mas, que,
ao contrário disso, ela “alcança diferentes formas lógicas conforme seja a natureza daquilo
que é acreditado”.146 Até por que, admitiu Russell, uma das coisas mais estranhas envolvidas
na relação acreditar é que “alguém pode acreditar em proposições de todos os tipos de forma
lógica”.147
O reconhecimento de que as ocorrências da relação acreditar podem alcançar
diferentes formas lógicas, porém, não impediu Russell de tentar construir um “mapa”, com o
intuito de simbolizar a complexidade de sua estrutura e nortear o entendimento, para ajudar na
compreensão de suas ocorrências. Depois da complexa tentativa feita na terceira versão da
Teoria RM,148 que não vai nos interessar aqui, por considerar a forma lógica como um termo
adicional nas ocorrências da relação acreditar, ele chegou ao seu melhor resultado nessa
empreitada, em 1918, com o seguinte “mapa”149:
Otelo
Acre dita
DESDEMONA CÁSSIO
ama
Um aspecto interessante deste “mapa” é que ele acentua os “percursos” das duas
relações envolvidas na presente instância da relação acreditar. Ele indica que há um percurso
relacional da relação acreditar e outro percurso relacional da relação amar, naquela situação.
Mas, ele não oferece nenhuma sugestão sobre como devemos entender as diferentes direções,
indicadas pelas setas, apontando os percursos das duas relações. Ele indica relações espaciais,
para “mapear” as operações das duas relações, que não ajudam em nada no entendimento da
estrutura da relação acreditar.
146 RUSSELL, 1918, p. 226. 147 Ibidem., p. 226. 148 Idem., 1913, p. 118. 149 O primeiro esforço de Russell para alcançar um “mapa” desse tipo foi feito na versão da Teoria RM de 1913,
envolvendo a relação entender uma proposição. Ele chegou a um resultado muito complexo, pouco intuitivo e
desinteressante, sobretudo, por adicionar a forma lógica da relação subordinada como um constituinte do juízo.
134
O mais interessante nessa iniciativa de Russell, porém, é que ela nos ajuda a perceber
duas coisas. Primeiro, que Russell considerou seu esforço para chegar a esse mapa como um
trabalho que faz “parte da teoria geral do simbolismo” e, segundo, que ele considerou muito
“importante identificar onde e como um simbolismo como aquele seria errado”.150 Essas duas
afirmações que ele fez sobre o seu esforço para chegar a um “mapa” da relação acreditar,
então, são importantes para nós porque elas indicam dois caminhos promissores para
continuarmos a pensar um simbolismo formal mais adequado para expressar a estrutura das
ocorrências da relação acreditar. O primeiro caminho tem a ver com a convicção de Russell
de que oferecer um “mapa” para a relação acreditar é algo valioso, porque faz parte da tarefa
de construir um simbolismo eficaz que atenda à necessidade humana de expressar a realidade
em seus detalhes mais sutis. E, o segundo caminho tem a ver com o modo de Russell entender
“simbolismo” como algo que “inclui todo tipo de linguagem”, pois isso nos permite pensar
noutras possibilidades de simbolizar a relação acreditar e não apenas num “mapa”. Afinal de
contas, temos uma ampla possibilidade de construção e aplicação de símbolos, haja vista que,
como insiste o próprio Russell, “um símbolo é alguma coisa que significa alguma outra
coisa”.151
De fato, encontrar outros modos que traduzam simbolicamente os detalhes da
estrutura das ocorrências da relação acreditar é muito valioso e é possível, muito embora, um
simbolismo que faça isso com eficácia, atendendo à natureza da relação acreditar proposta
pela Teoria RM, ainda não tenha sido alcançado. Trata-se de uma tarefa de grande
importância porque, considerando que “há diferentes espécies de símbolos”,152 o sistema de
símbolos escolhido para representar um aspecto da realidade pode influenciar muito nos
resultados. Basta notar, como insiste um olhar atento à fecundidade encontrada na mudança
de simbolismo, que “a mera troca de sinais pode ter grande influência na nossa capacidade de
pensamento”.153
A tradição analítica, sem dúvida, levou isso muito a sério e, afastando-se da ideia
russelliana de construir um “mapa”, se esforçou para chegar a um simbolismo formal capaz de
expressar a estrutura lógica das ocorrências da relação acreditar. Esse esforço pode ser
150 RUSSELL, 1918, p. 225. 151 Ibidem., p. 186. 152 Ibidem., p. 185. 153 IMAGUIRE; BARROSO, 2006, p. 18.
135
identificado nos dois modelos de simbolismo mais usados desde então. A fim de considerar
melhor cada um deles, porém, retomemos nosso exemplo padrão:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
Um primeiro tipo de simbolismo usado para representar a estrutura da relação
acreditar numa ocorrência como a descrita pela frase (3), que se tornou bastante comum,
ofereceu o seguinte modelo:
(3a) B < o, L < d, c >>
Neste jeito de simbolizar a relação acreditar, podemos notar dois usos interessantes
dos parênteses de ângulos. Primeiro, eles são usados para indicar que a ordem dos termos na
relação é relevante. Os dois parênteses de ângulos extremos indicam que a ordem dos quatro
termos é relevante em B e os dois parênteses de ângulos internos indicam que a ordem dos
termos envolvidos por L também é relevante em L. Segundo, os dois parênteses de ângulos
internos também desempenham a função de indicar um termo complexo. Eles ligam os termos
de L e indicam que a expressão “L < d, c >” representa um termo complexo da relação B, o
termo relatum de B.
Ora, sabe-se que esse modelo de simbolismo tem como pano de fundo a noção de par
ordenado, cujas exigências centrais são exatamente que a ordem dos termos na relação seja
levada em conta e que as relações sejam estruturadas em pares ordenados que permitam
identificar quais termos ocupam o primeiro lugar e quais termos ocupam o segundo lugar em
suas ocorrências. Dois problemas graves, pelo menos, neste jeito de simbolizar a relação
acreditar, sugerem seu abandono. O primeiro refere-se ao número de lugares na relação e o
segundo refere-se ao status ontológico dos termos complexos assumidos pelos adeptos dessa
interpretação.
136
No tocante ao número de lugares, esse modo de simbolizar a relação acreditar tende
a reduzir as relações a uma estrutura dual. Em (3a), por exemplo, a relação B é representada
como uma relação dual. No primeiro lugar de B ocorre o termo representado por “o” e no
segundo lugar ocorre o termo complexo representado pela expressão “L <d, c>”. Portanto, de
acordo com o simbolismo dado em (3a), a relação B deve ser considerada uma relação de dois
termos. Consequência inaceitável para a Teoria RM, pois, o segundo termo da relação teria
que ser tratado como uma proposição, previamente estruturada.
E no tocante ao status ontológico do termo representado por “L < d, c >”, indicado
pelos parênteses de ângulos internos na relação B em (3a), sabemos que o simbolismo é
neutro ontologicamente, mas, pode influenciar e sugestionar na adoção de uma ontologia.
Qual poderia ser o status ontológico daquilo que está representado como um termo complexo?
É algo que existe previamente ao juízo ou é algo formado pelo juízo? Se for algo que existe
previamente ao juízo, então, ele é um termo que subsiste independentemente do sujeito que o
julga e o juízo consistirá, exatamente, em apreendê-lo e asserí-lo. Nesse caso, a Teoria do
Juízo como Relação Dual retorna e com ela todos os inconvenientes que já apresentamos no
Capítulo Primeiro.
Por outro lado, se aquele termo complexo representado por “L < d, c >” é formado
pelo sujeito no ato do juízo, então, ele não subsiste anteriormente ao sujeito, nesse caso, o
juízo é um trabalho de construção daquele termo complexo e não a apreensão de um termo
complexo já pronto. Por conseguinte, neste ponto de vista, a Teoria RM continua válida e o
modelo de simbolismo que gerou (3a) deve ser abandonado no tocante à relação acreditar.
Outro tipo de simbolismo usado para capturar a estrutura da relação acreditar tem
sua origem no próprio Russell. Segundo este modelo, o simbolismo adequado para a
ocorrência da relação acreditar em (3) deve ser como mostra (3b):
(3b) B ( o, L, d, c )
Neste modelo os parênteses também indicam que a ordem dos termos é relevante em
B e nenhum outro sinal é dado para indicar a ordem interna dos termos na relação L. Os
137
termos dentro do escopo da relação B são separados por vírgulas em lugares distintos e não há
nenhum termo complexo. Tal simbolismo apresenta duas vantagens que superam as
dificuldades encontrados no modelo anterior. Primeiro, ele não faz uma fusão dos lugares dos
termos envolvidos na relação subordinada, ele não estrutura os termos relata da relação
acreditar com base na noção de pares ordenados. E com isso ele tanto preserva o fato de que a
relação acreditar pode ocorrer com mais de dois lugares, quanto evita o esforço inconveniente
de forçar os termos a se estruturarem sempre num esquema dual. Segundo, ele não provoca
nenhum compromisso ontológico com termos complexos subsistentes.
Apesar dessas vantagens, porém, este modelo de inspiração russelliana ainda revela
um sério problema. Uma vez que ele não faz uso de um sinal que indique a ordem dos termos
na relação subordinada, ele precisa encontrar um meio de indicar como a relação subordinada
arranja seus termos dentro do escopo da relação principal. Em (3), por exemplo, é preciso
justificar como devemos entender porque a ordem dos termos em L é d-c e não c-d, mesmo
com a relação acreditar impondo d-c na ordem geral.
A resposta da primeira versão da Teoria RM para essa questão é interessantíssima e
ainda não foi devidamente explorada. Segundo ela, pode-se dispensar um sinal que indique a
ordem dos termos no simbolismo lógico, porque os papeis lógicos dos termos impostos pela
relação que age sobre eles permitem identificar os lugares certos para eles e,
consequentemente, permitem que o sujeito da crença determine a ordem em que eles devem
ocorrer. Por isso, basta que o simbolismo indique os lugares certos dos termos que, com a
ajuda de uma regra sintática, se pode assumir que o termo do primeiro lugar é o sujeito e o
termo do segundo lugar é o relatum da relação da relação subordinada. No simbolismo dado
em (3b), por exemplo, a relação subordinada envolve dois termos, em lugares distintos e com
papéis lógicos distintos. A relação acreditar posiciona os termos nesses lugares da relação
subordinada com base nesses papéis. Ela escolhe que termo deve desempenhar o papel lógico
próprio de cada um dos dois lugares.
Desse modo, a ausência de um indicador da ordem dos termos na relação
subordinada é superada com a ajuda de uma regra sintática que determina que o primeiro
lugar da relação pertence ao termo sujeito e o segundo lugar pertence ao termo relatum. A
relação representada por “B”, então, determina o lugar da relação subordinada e como a
relação subordinada determina os lugares dos seus termos e os papeis lógicos que cada termo
deve desempenhar em seus respectivos lugares, B posiciona os termos, na ordem que a
138
subordinada determina os papéis lógicos e os lugares dos termos, indicando que termo deve
ocorrer em cada lugar. Por isso, em (3b), podemos ler sem embaraços que o termo
representado por “o” é o sujeito da relação B, que L é a relação subordinada e que o termo
representado por “d” é o sujeito de L e o termo representado por “c” é o relatum de L. A
ordem d-c que B impõe aos termos em L não é arbitrária porque os papeis lógicos
determinados por L impõem uma direção e os lugares certos para que os termos funcionem
com suas respectivas funções lógicas. O que é arbitrário, ou seja, o que B decide por si
mesma, é que o termo “d” seja posto no primeiro lugar e que o termo “c” seja posto no
segundo lugar.
Contudo, apesar dos ganhos que oferece, esse simbolismo começa a se embaraçar
quando vários termos desempenham a mesma função na relação subordinada, isto é, quando a
relação subordinada não é dual. Por exemplo:
(45) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Romeu, Julieta e Hypatia.
(45a) B (o, F, d, c, r, j, h ).
Neste caso, a relação acreditar envolve a relação subordinada lutar com, que tem
dois termos ocorrendo com o papel de sujeito e três termos ocorrendo com o papel de relatum.
O simbolismo lógico, porém, separa os termos em lugares diferentes e não tem nenhum sinal
que indique os papéis que os termos desempenham nesses lugares. Uma vez que este
simbolismo identifica o lugar do termo com o papel lógico que o termo desempenha na
relação e associa cada termo a um lugar separado, ele termina por reproduzir os lugares de
forma ambígua, multiplicando-os, de modo incompatível com os papeis lógicos dos termos
que são, de fato, impostos pela ocorrência da relação subordinada.
De fato, no simbolismo de (48), dado em (48a), está totalmente ambíguo saber quais
termos desempenham o papel de sujeito e quais termos desempenham o papel de relatum na
relação F. Como também está errado formalizar F envolvendo cinco lugares quando, na
verdade, ela ocorre com termos desempenhando dois papeis lógicos e, consequentemente,
deve ter dois lugares apenas. A questão central para o simbolismo adequado da relação
acreditar está, pois, em indicar de modo bem-sucedido os lugares dos termos impostos pela
139
relação subordinada, tornando possível identificar corretamente os papeis que a relação
acreditar atribui a eles por meio da relação subordinada. Este passo, porém, só será dado na
última seção do Capítulo Terceiro.
2.3 DIFICULDADE CENTRAL DOS SIMPATIZANTES DO PROBLEMA DA
DIREÇÃO: ASSIMILAR O PAPEL RELACIONANTE DA RELAÇÃO SUBORDINADA
Como temos visto, Russell assumiu que acreditar é uma relação múltipla entre um
sujeito e vários objetos, dentre os quais, um é uma relação universal. E, tratando esta relação
universal como um objeto comum na crença, a tradição crítica acentuou enfaticamente o
Problema da Direção, no qual encontramos envolvidas as várias dificuldades adjacentes
apontadas acima. Mas, como nós contestamos este caminho interpretativo, porque não
achamos correto tratar a relação subordinada como um objeto comum na crença, temos que
nos perguntar agora qual é a dificuldade encontrada quando se tenta tratar a relação
subordinada como uma relação universal, com a qual o sujeito está acquainted e posta
relacionando logicamente na crença.
Nicholas Griffin situa essa dificuldade de um jeito muito interessante. Primeiro, ele
insiste na importância de considerarmos a relação subordinada como uma relação universal,
pois, do contrário, crenças falsas não seriam permitidas e a teoria da correspondência abriria
falência. E, segundo, ele insiste na ideia de que relações que ocorrem como termos de outra
relação são relações universais e, elas mesmas, não necessitam de termos. Pois, insiste ele,
uma relação “só necessita de termos quando ela ocorre como ‘relação relacionando’”.154
No modo como Griffin situa a questão, podemos ver em que consiste a raiz da
dificuldade para que a Teoria RM possa tratar a relação subordinada como uma relação e não
como um objeto comum na crença. A raiz dessa dificuldade está em justificar de que modo a
relação subordinada pode ocorrer como termo da relação acreditar e como relação
relacionando outros termos no juízo. Pois, no entender de Griffin, enquanto termo da relação
acreditar, ela deve ser uma relação universal, e, enquanto relação relacionando outros termos,
154 GRIFFIN, 1985, p. 216.
140
ela deve ser uma relação “particularizada”. O que, olhando do ponto de vista do sujeito da
crença, também pode ser dito do seguinte modo: como o sujeito da crença pode estar ligado à
relação subordinada como uma relação universal, por meio da relação acreditar, e formar a
crença com ela como relação relacionando?
A resposta a essa dificuldade, juntamente com a resposta ao Problema da Direção,
em seu duplo aspecto, e às dificuldades adjacentes a ele que foram apresentadas acima, serão
dadas nas seções 3.2 e 3.3 do Capítulo Terceiro.
2.4 SUMARIZANDO
Todos os Problemas e dificuldades apontados neste Capítulo contra a Teoria RM
repousam numa compreensão defasada da relação subordinada. Mais precisamente, na
compreensão da relação entre ela e a relação acreditar, bem como, na devida distinção dos
campos em que cada uma delas opera quando um juízo é formado. No caso do Problema da
Direção dos termos, isso desafia a Teoria RM a justificar porque e como a relação acreditar
pode aplicar a relação subordinada de A para B mais do que de B para A. Ou, no caso do
Problema da Direção Larga, a justificar porque ela não é um termo no mesmo nível lógico dos
demais termos da crença e, pelo papel que ela desempenha, se for de primeira ordem, porque
ela mantém com todos eles uma relação assimétrica heterogênea.
Já no caso das dificuldades explicativas na variação, a questão de fundo está em
tratar a relação subordinada como um termo comum ou não. Se ela for tratada como um termo
comum, as dificuldades relativas à variação na aridade, no número de lugares e na ordem
lógica da relação acreditar ficam totalmente carentes de uma base lógica consistente. Haja
vista que, em sentido estrito, não podemos falar de uma instanciação válida da relação
acreditar, porque tudo o que encontramos é uma simples sequência indeterminada de termos
num único nível lógico. Por outro lado, se a relação subordinada for tratada como uma relação
na crença (e ela é uma relação!), temos que enfrentar a tarefa de explicar o papel lógico dela e
da relação acreditar na unidade formada pela instanciação desta última.
141
Tais constatações, sem dúvida, indicam que a saída para o Problema da Direção e
para as dificuldades explicativas relativas à variação, à identificação dos papéis lógicos dos
termos e ao simbolismo formal das ocorrências da relação acreditar deve começar por
estabelecer uma relação precisa entre acreditar e a relação subordinada e distinguir com
clareza o campo de operação, bem como o papel, das duas relações. Uma vez que esta base
for estabelecida, as dificuldades com a variação vão se esclarecer, abrindo caminho para
bloquear o Problema da Direção e para alcançar um simbolismo lógico adequado para as
ocorrências da relação acreditar. Este, porém, será o trabalho do Capítulo Terceiro, para o
qual nos voltaremos agora.
142
3 COISAS VELHAS E NOVAS DO TESOURO DA FILOSOFIA
O Terceiro Capítulo de nossa Tese está estruturado em três grandes seções que, por
sua vez, ainda estão subdivididas em algumas subseções. Na primeira seção procuraremos um
meio de superar a lacuna, deixada por Russell na primeira versão da Teoria RM, referente aos
campos em que operam a relação acreditar e a relação subordinada na ocorrência de um
juízo, bem como na definição da relação entre as duas relações. Para isso, nos afastamos da
rota propriamente dita da Teoria RM e entramos no baú do patrimônio filosófico a fim de
apreciar algumas ferramentas antigas e novas.
Já na segunda seção, voltando do excurso empreendido fora da rota da Teoria RM,
faremos uma releitura da natureza e do papel da relação acreditar e da relação subordinada na
ocorrência efetiva de um juízo. Tal releitura, apoiada nas teorias apreciadas na primeira seção,
distingue cuidadosamente o campo de operação de cada uma das duas relações e esboça um
jeito novo de vê-las, tanto na operação própria de cada uma quanto na indissociável interação
das operações existente entre elas. E, por fim, na terceira seção, retomando as dificuldades
com a Teoria RM apontadas no Capítulo Segundo, indicaremos um caminho de superação
para o Problema da Direção e as dificuldades adjacentes a ele nas ocorrências da relação
acreditar, tomando como base a distinção dos campos de operação, a relação hierárquica e a
interação existente entre as duas relações. A distinção dos campos em que operam, revela os
diferentes papéis das duas relações, mostrando que a relação hierárquica entre elas determina
as condições para a construção de uma direção vertical lógica e a interação entre elas
determina as condições para a construção de uma direção horizontal lógica dos termos relata.
3.1 PREENCHENDO A LACUNA DEIXADA PELA PRIMEIRA VERSÃO DA
TEORIA RM
Como vimos no Capítulo Primeiro, Russell reconheceu a importância do papel que a
relação subordinada desempenha na determinação da direção dos termos relata em crenças
143
relacionais simples em sua primeira versão da Teoria RM. Quando é uma relação dual
assimétrica, por exemplo, ela tem uma direção e impõe essa direção aos demais
relata.155Contudo, apesar de ter reconhecido a importância do papel da relação subordinada
nas crenças relacionais, aquela primeira versão da Teoria RM deixou uma lacuna em aberto
com, pelo menos, três pontos muito importantes envolvendo a relação subordinada.
Primeiro, Russell não disse o que faz com que a relação subordinada determine uma
direção, mais do que outra, para os termos que ela envolve. Segundo, ele não disse como a
operação que a relação subordinada desempenha determinando a direção dos relata se
harmoniza com a operação da relação acreditar, que une os termos num complexo geral. E,
terceiro, ele não disse, exatamente, em que consiste o papel da relação subordinada e o papel
da relação acreditar na formação dessa unidade geral.
Esses três pontos, até o presente momento, formam uma lacuna abissal na primeira
versão da Teoria RM e Russell, ao que parece, não encontrou resposta para eles. Pior ainda,
nas versões seguintes à de 1911, ele acabou deixando esses pontos de lado e passou a tratar a
relação subordinada como um termo comum, sem nenhum papel decisivo na formação da
unidade das crenças relacionais. Mas, como vimos no Capítulo Primeiro, essa mudança de
rumo não foi feliz. A primeira versão da Teoria RM é a melhor de todas e não deveria ter sido
abandonada. O caminho certo a seguir é tentar preencher aquela lacuna, responder às questões
presentes nela e abrir caminho para superar as demais dificuldades.
Visando essa meta, a partir de agora buscaremos preencher aquela lacuna,
oferecendo uma resposta a cada um dos pontos indicados acima para, em seguida, apontar
uma saída nova para as dificuldades relativas à variação, aos papéis lógicos dos termos e ao
simbolismo formal das ocorrências da relação acreditar, bem como ao Problema da Direção,
tratados no Capítulo Segundo. E, para tanto, tomaremos como objetivo geral desta seção sair
da rota em que vínhamos, por um momento, a fim de entrar no baú da filosofia e apreciar duas
teorias do patrimônio filosófico que nos darão o suporte adequado para responder àquelas
demandas constitutivas da lacuna que encontramos na primeira versão da Teoria RM. De
modo concreto, dividiremos a seção em duas subseções. A primeira será voltada para uma
teoria mais remota, uma pérola despercebida num canto do baú, que insere na discussão dois
conceitos novos, valiosíssimos, para a compreensão da relação acreditar e de seus termos,
155 RUSSELL, 1910a, p. 183-184.
144
especialmente a relação subordinada. E, a segunda subseção é voltada para uma teoria mais
recente, a teoria das relações multigrade, da qual vamos extrair elementos fundamentais para
superar as dificuldades da variação e do simbolismo formal na terceira e última seção.
3.1.1 Afastando-se da rota (i): o baú de antiguidades
Antes de afrontarmos os problemas deixados naquela lacuna da primeira versão da
Teoria RM vamos suspender, por um instante, a preocupação com as questões envolvendo a
relação acreditar e a relação subordinada num ato de crença. Precisamos fazer um excurso e
entrar num dos mais importantes filósofos do período escolástico. Seu pensamento esconde
valiosos tesouros do patrimônio filosófico e, de modo especial, veremos que duas noções
metafísicas defendidas por ele são de fundamental importância para a Teoria RM, não
obstante, terem passado despercebidas por todos os críticos da teoria de Russell. Desse modo,
antes de avançar, vamos voltar ao baú da filosofia e apanhar esse instrumental teórico
“adormecido”.
O filósofo a que nos referimos é são Tomás de Aquino. Nossa excursão vai na
direção do seu pensamento exposto na Summa Theologiae. De modo mais preciso, ela visa
apreciar a solução oferecida por são Tomás aos problemas filosófico-teológicos decorrentes
da concepção de operações de agentes diferentes ordenados entre si. A empreitada não será de
forma alguma uma digressão infrutífera, devemos antecipar. Muito pelo contrário, ela será
como uma valiosa descida a um porão que guarda a herança de muitas gerações,
acompanhada da grata descoberta de uma joia que, até então, esteve ali despercebida até
mesmo aos olhos dos mais ilustres peritos.
A questão da integração das operações entre agentes diferentes ordenados entre si foi
tratada por são Tomás no artigo 1º da questão 19, na parte III da Summa Theologiae, ao
enfrentar o problema da unidade de operação em Cristo.156 Este último problema, claro, é de
grande importância para a teologia cristã e não nos interessa diretamente aqui, mas também há
nele uma importantíssima base filosófica, tanto na sua formulação quanto na solução proposta
por são Tomás, que nos interessa muito, e por isso teremos que considerá-lo atentamente.
156 AQUINO, 2002, p. 169-172.
145
A face teológica desse problema, contra a qual são Tomás se insurgiu, repousava na
afirmação, considerada herética, de que em Cristo há uma única operação. Os partidários
desta posição admitiam que em Cristo havia duas naturezas, a divina e a humana, mas
negavam que houvesse duas vontades e duas operações e, desse modo, caiam numa confusão
das naturezas.157 E a face filosófica do problema baseava-se em duas afirmações bastante
significativas. A primeira dizia que quando duas naturezas formam um ser subsistente,
necessariamente, quem opera é o sujeito subsistente como tal. No homem, por exemplo, a
alma e o corpo formam um único indivíduo subsistente e, consequentemente, cada operação
do homem é operação do indivíduo subsistente. Não há uma operação do corpo separada de
uma operação da alma e vice-versa. A segunda dizia que a cada operação de um indivíduo
corresponde uma ação apenas.158 No homem, por exemplo, andar, falar ou tocar são operações
únicas de um indivíduo e não a soma de duas operações diferentes de naturezas diferentes.
A solução proposta por Tomás para essa questão consistiu em identificar com
precisão tanto a diferença quanto a cooperação dos agentes que atuam, de modo
hierarquicamente ordenado, formando uma unidade de operação. Sua posição revela que,
nesses casos, o nível hierárquico de cada agente deve ser devidamente identificado e
classificado, assim como o papel e a interação recíproca deles na constituição da unidade de
operação. De modo que, dada a importância dessas três coisas, vamos considerar cada uma
delas separadamente.
3.1.1.1 O agente movente
São Tomás reagiu aos que tentavam diluir as duas vontades e as duas operações das
naturezas, divina e humana, em Cristo numa única vontade e numa única operação. Ele
propôs uma explicação que preserva tanto a interação e a harmonia das duas vontades e das
duas operações, quanto a identidade da operação de cada uma das duas naturezas. Segundo
ele, quando uma unidade é constituída por vários agentes ordenados entre si é necessário
perceber que um agente inferior é movido por um agente superior ou principal, pois essa
distinção é indispensável para entender corretamente a complexidade de tal situação.
157 AQUINO, 2002, p. 162-163. 158 Ibidem., p. 171-172.
146
O agente principal é aquele que move. Ele atua por sua própria natureza e não é
instrumento de nenhum outro agente. Enquanto agente movente, ele utiliza o agente
subordinado, faz dele seu instrumento e aplica-o sobre os objetos que pretende. Enquanto
agente movente, ele age com sua operação própria e visa um fim próprio, de modo que a
operação do agente movido é assimilada por ele e pode, legitimamente, ser dita sua também.
O papel e os poderes do agente movente, então, são muito importantes. Ele aciona o
agente subordinado, servindo-se das propriedades e possibilidades operacionais próprias
deste, para alcançar fins que, embora sejam possíveis a este, não lhes são necessários. Neste
sentido, podemos dizer que o agente movente, literalmente, apodera-se da operação do agente
movido, explora e usa suas possibilidades operacionais, numa situação concreta, para seus
próprios fins. Por isso, no dizer de são Tomás, podemos afirmar que as operações do agente
movido são efeitos da operação do agente movente sobre ele, enquanto que as operações do
agente movente são operações propriamente ditas.159
A extensão dos poderes do agente movente, como se pode ver, é formidável. Ela
mostra que ele estabelece uma relação hierárquica com o agente movido. Primeiro, os poderes
do agente movente indicam que ele pode envolver um ou vários agentes subordinados, como
veremos melhor mais abaixo. Segundo, os poderes do agente movente indicam que ele pode
tomar para si efetivamente as propriedades e as possibilidades operacionais formais do agente
movido, numa situação concreta. O agente movente pode tomar para seus próprios fins as
propriedades e os modos de afetar objetos que são próprios dos agentes subordinados. Ele faz
seus, por exemplo, a formas como tais agentes subordinados operam juntando ou separando
os objetos sob seu comando, tal como o lenhador faz sua a forma como o machado corta a
madeira em várias partes e o laçador faz sua a forma da corda ligar os vários pedaços de
madeira num feixe.
Os poderes do agente movente fazem dele a causa eficiente principal da operação. A
causa que produz seu efeito em virtude dos seus próprios poderes, para usarmos uma
terminologia escolástica.160 Mas os poderes do agente movente não fazem dele a causa
suficiente da operação, isto é, seus poderes também são limitados, eles não são suficientes
para realizar determinadas operações sem a cooperação do agente movido. Enquanto agente
movente, para realizar determinadas operações, ele necessita da cooperação da operação do
159 AQUINO, 2002, p. 170. 160 SESBOÜÉ, 2006, p. 444. Confira ainda: ALVIRA, 2014, p. 226-277.
147
agente movido. O lenhador e o caçador, mais uma vez, não realizarão as operações de cortar e
laçar a madeira sem que, respectivamente, um instrumento cortante e outro capaz de laçar
cooperem com as operações deles oferecendo essas formas de operação.
Deste ponto de vista, portanto, há uma interdependência entre o agente movente e o
agente movido. O agente movente, por um lado, independe do agente movido e o influencia
direcionando-o para um fim determinado e, por outro lado, depende do agente movido para
determinadas operações e recebe sua influência. Ele depende das possibilidades oferecidas
pelo agente movido e deve se ater às exigências próprias da operação natural do agente
movido. Apesar de direcionar o agente movido, ele não pode afastar-se de sua natureza nem
ultrapassar suas possibilidades operar de operar quando faz dele seu instrumento. Por isso,
além da relação hierárquica, o agente movente mantém uma fecunda relação de interação com
o agente movido.
3.1.1.2 O agente movido
Consideremos agora a figura do agente movido ou subordinado. De acordo com são
Tomás, o agente movido tem sua forma própria de operar decorrente de sua natureza. Mas
quando movido por outro agente, ele torna-se subordinado e, apesar de operar dentro das
possibilidades de sua forma, ele passa a ser um agente movido ou governado por outro.
Consequentemente, insiste Tomás, ele pode ser visto como sendo possuidor de uma dupla
operação. Ele tem uma operação que é própria da sua natureza e outra quando recebe de fora
o seu movimento.161 O bisturi médico é um bom exemplo para indicar a dupla ação de um
agente movido. Ele tem uma operação própria de sua natureza, que é cortar e, como
instrumento médico, ele tem uma operação diferente, que é causar a saúde, na medida em que
recebe do médico o seu movimento.
A operação de um agente movido segundo sua natureza própria não pertence a
nenhum outro agente. Ela decorre da virtude própria de sua natureza e é intransferível. Mas se
outro agente se serve dele para sua própria ação, ele cede suas propriedades formalmente, seu
modo de atuar, numa ocorrência determinada, como instrumento de uso particular, para
aquele outro agente alcançar o fim que pretende. E cede transferindo, de modo bem
161 AQUINO, 2002, p. 170.
148
específico, suas propriedades formais para o agente movente, de modo que será muito
importante distinguir num agente movido o que é intransferível e o que é transferível para o
agente movente em cada circunstância concreta.
Uma analogia com o argumento jurídico da lei dos direitos autorais pode ajudar
bastante no entendimento disso. Ela indica o que queremos dizer com “aquilo que é
intransferível e aquilo que é transferível” do agente movido para o agente movente. Segundo a
lei dos direitos autorais, com relação a uma obra publicada, deve-se distinguir direitos morais
de direitos patrimoniais. Os direitos morais sobre uma obra são direitos de autoria, eles são
intransferíveis. E os direitos patrimoniais são direitos de posse e de uso sobre uma expressão
concreta da obra, eles são transferíveis.
Um exemplo ilustrando essa distinção entre direitos morais e direitos patrimoniais de
posse e uso ajudará ainda mais a compreendê-la tal distinção. Guido Imaguire e Cícero
Barroso são autores do livro intitulado “lógica, os jogos da razão”, seus direitos sobre este
livro são morais, eles são direitos intransferíveis. Ninguém mais pode dizer que é seu este
livro. Só eles podem dizer “temos o livro ‘lógica, os jogos da razão’”, com significado
autoral, isto é, com direitos morais sobre o livro. Por outro lado, Marcos e Nei possuem um
exemplar do livro “lógica, os jogos da razão”. O que eles possuem, porém, é o direito de
posse e uso daquele livro. Eles só têm o direito (transferível) de possuir e usar aquele livro,
presente naquele exemplar, e só podem dizer “temos o livro ‘lógica, jogos da razão’”
significando direito de posse.
De modo análogo, assim como os autores Guido Imaguire e Cícero Barroso têm o
direito moral e patrimonial sobre o livro “lógica, os jogos da razão’” e só transferem o direito
patrimonial, de posse e de uso do seu livro, o agente movido tem suas propriedades “autorais”
e as transfere como direito de posse e uso para o agente movente. Transfere sua forma de
operar como instrumento de posse e uso, não como expropriação de sua natureza. Suas
propriedades operacionais e estruturais continuam pertencendo à sua natureza de modo
intransferível.
Ressalta-se com isso, mais uma vez, a dupla operação do agente movido. Ele opera
por sua própria natureza e essa operação é intransferível. E ele opera como instrumento de
outro agente que o move. Enquanto agente movido, isto é, enquanto instrumento de um
agente movente, porém, suas propriedades operacionais formais são cedidas ao agente
149
movente na qualidade de posse e uso. Cada propriedade operacional do agente movido, no
momento em que é movido, torna-se propriedade instrumental do agente movente.
Desse modo, uma fecunda e indissociável interação se estabelece entre o agente
movido e o agente movente. Enquanto instrumento, o agente movido é influenciado pelo
agente movente. Ele tem suas propriedades operacionais instrumentalizadas pelo agente
movente. Mas, ao ser influenciado, ele transfere formalmente suas propriedades operacionais
para o agente movente e o influencia também, impondo-lhe as possibilidades e exigências
próprias da forma de operar da sua natureza.
3.1.1.3 Diversidade e cooperação nas operações de agentes diferentes ordenados entre si
O cerne da proposta de são Tomás é que quando vários agentes atuam ordenados
entre si, um deles é o agente movente, o outro é o agente movido e as operações de ambos,
embora em campos diferentes, influenciam-se reciprocamente e cooperam uma com a outra.
A operação própria de cada agente é a que ele realiza em virtude de sua própria natureza, não
pertencendo a nenhum outro agente que possa lhe tomar como instrumento. Contudo, se outro
agente se serve dele para sua própria ação, a operação dele, enquanto instrumento, não difere
da ação do agente que o move, mas integra-se a ela. O agente movente usa efetivamente a
operação do agente movido e o agente movido participa da operação efetiva do agente
movente.162
Os dois agentes influenciam-se reciprocamente, salvas as diferenças hierárquicas
estabelecidas entre eles, porque cada um interfere de certo modo na determinação do outro.
Tomemos como exemplo o caso do lenhador e do machado. O lenhador é o agente movente e
o machado é o agente movido. Por natureza, o machado pode cortar muitas coisas e de muitos
modos, mas muitas outras coisas ele não pode cortar. Ora, isso determina a operação do
lenhador que terá de respeitar as exigências operacionais próprias da natureza do machado
para poder tomá-lo como instrumento de modo bem-sucedido.
Desse modo, agente movido determina o agente movente antes que este o aplique,
porque ele tem natureza própria e condições de operação próprias que o agente movente deve
162AQUINO, 2002, p. 170.
150
respeitar para que possa aplicá-lo de modo eficaz. Mais do que isso. Ele determina não
somente que o agente movente deve saber quando pode e quando não pode aplicar sua forma
de operar, mas, sobretudo, como aplicá-la corretamente.
No momento em que o lenhador aplica o machado para cortar o galho mais alto de
uma árvore, porém, ele determina o objeto específico da operação do machado num ato
operacional concreto. O agente movente, portanto, determina o objeto sobre o qual quer
aplicar o modo de operar do agente movido no momento em que seleciona dentre as inúmeras
possibilidades do agente movido um objeto determinado.
Além disso, o agente movido também determina o agente movente depois que este o
move porque, ao ser usado pelo agente movente, o agente movido transfere para ele suas
propriedades usadas por ele como instrumento. O agente movido faz com que o agente
movente seja visto como a causa principal das suas propriedades terem sido utilizadas
instrumentalmente. No caso do lenhador e do machado, por exemplo, ao ser utilizado por um
determinado lenhador com dois golpes de forte intensidade para cortar o galho mais baixo da
árvore, o machado também determina que aquele lenhador cortou o galho mais baixo da
árvore com apenas dois golpes, porque cedeu ao lenhador o seu poder cortante. Claro, essa
determinação é decorrente do uso da propriedade cortante, por parte do agente movente,
propriedade que pertence ao agente movido. O agente movente determina o agente movido
escolhendo uma das possibilidades formais de operação do agente movido. E o agente movido
determina o agente movente como decorrência do fato de que alguma de suas propriedades se
tornou posse e instrumento dele.
A influência recíproca dos dois agentes, cada um a seu modo e no seu campo
específico, portanto, revela uma cooperação recíproca entre eles. Haja vista que, sempre que o
agente movente e o agente movido têm virtudes operatórias diversas, uma é a operação do que
move e outra a do que é movido. O movido participa da operação do movente e o que move
se serve da operação do movido, pois um opera com a cooperação do outro.163 O agente
movido coopera com o agente movente, enquanto instrumento de sua ação, ajudando o agente
movente a agir sobre os objetos do seu interesse. Neste sentido, o agente movido completa a
ação do agente movente e o ajuda a realizar sua meta sobre os objetos pretendidos. E o agente
163 AQUINO, 2002, p. 172.
151
movente, por sua vez, também coopera com o agente movido, na situação concreta em que faz
uso deste, porque determina e aplica, numa operação concreta, sua forma de operar.
3.1.1.4 Possíveis combinações de agentes diferentes ordenados entre si
Até aqui, falamos de agente movente e agente movido, no singular, mas é preciso
notar que a proposta de são Tomás de Aquino se refere também a situações em que “há
muitos agentes ordenados”. 164 Neste caso, a gama de situações possíveis revela-se muito
maior e, apesar de não termos nenhuma pretensão de apresentá-la aqui exaustivamente,
queremos destacar, pelo menos, as primeiras possibilidades de combinação numérica entre os
dois tipos de agentes.
Para isso, considerando a posição de são Tomás, segundo a qual, quando há muitos
agentes ordenados entre si “o inferior é movido pelo superior”, vamos classificar suas
possíveis combinações em dois grupos. O primeiro grupo é aquele em que há um agente
movente e um (ou mais de um) agente movido. E o segundo grupo é aquele em que há mais
de um agente movente e um (ou mais de um) agente movido.
3.1.1.4.1 Primeiro grupo: um agente movente e um ou vários agentes movidos
a) Um agente movente e um agente movido
A primeira combinação possível é aquela onde temos um agente movente e apenas
um agente movido como, por exemplo, o médico e o bisturi. O médico é o agente movente
principal e o bisturi é o agente movido subordinado. O agente movente usa a forma de operar
de um único agente movido e integra suas capacidades operacionais numa estrutura complexa
única para atingir seu alvo, que é fazer o corte cirúrgico com precisão e remover as células
doentes.
164 AQUINO, 2002, p. 170.
152
b) Um agente movente e dois agentes movidos
A segunda combinação é aquela onde um agente movente utiliza dois agentes
movidos como, por exemplo, quando o médico usa a seringa e o liquido medicinal para
aplicar uma injeção no paciente. Nesse caso concreto, temos dois agentes movidos. A seringa
é o agente movido primeiro. Por um lado, ela está subordinada à ação do médico e, por outro
lado, ela também age sobre o liquido medicinal para que haja a operação de injeção. O liquido
medicinal, por sua vez, é o segundo agente movido. Ele está subordinado à operação do
médico, por meio da seringa e age sobre o corpo do paciente. Assim sendo, ele tem um grau
de subordinação maior do que a seringa, porque tanto o agente movente quanto a seringa
agem sobre ele. O grau de subordinação, portanto é uma propriedade transitiva. Se C é
subordinado a B e B é subordinado a A, então, C é subordinado a A.
A operação do médico, o agente movente, então, faz uso dos dois agentes movidos,
aplicando a operação de um sobre a operação do outro. Ele faz uso do primeiro agente
movido, a seringa, para mover o segundo agente movido, o liquido medicinal. Ele determina
os agentes movidos, no sentido de que aplica cada um deles a uma situação concreta que
constitui uma de suas possibilidades formais de operação. E também é determinado por eles
porque assume essas propriedades operacionais e liga-as efetivamente numa estrutura
complexa única, tornando-se o agente movente determinado da operação complexa total.
Assim, podemos identificar a unidade da operação complexa, a ação própria de cada agente
(movente, movido primeiro e movido segundo) e a interconexão deles no fato ocorrido.
c) Um agente movente e três agentes movidos
A terceira combinação envolvendo vários agentes ordenados entre si é aquela em que
um agente movente opera com três agentes movidos subordinados. Em tais ocorrências,
apesar da unidade geral da operação complexa, podemos distinguir a operação do agente
movente e a operação de cada um dos agentes movidos, identificando também os diversos
graus de subordinação existentes entre eles. Tomemos como exemplo o caso do operador que,
acionando corretamente o computador, põe em funcionamento a impressora e com ela faz uso
da folha de papel para imprimir a primeira página do jornal.
153
Nesta situação concreta, temos o operador do computador como agente movente,
aquele de quem podemos afirmar “o Sr. x imprimiu a primeira página do jornal”. Em seguida
temos os agentes movidos, as causas instrumentais da operação denominada “imprimir a
primeira página do jornal”. O computador é o agente movido primeiro, por meio do qual o
agente movente faz uso da impressora, que é o agente movido segundo e, por meio da
impressora faz uso da folha de papel, que é o terceiro agente movido.
De novo podemos perceber que o processo se repete, mas com complexidade e
números maiores. O operador usa, formalmente, as propriedades dos agentes movidos para
atingir seu objetivo. Mas, ele só faz isso, usando a operação de um agente movido sobre a
operação de outro, sucessivamente, até alcançar o objetivo desejado. Para isso ele se apropria
instrumentalmente da forma de operar de cada um dos agentes movidos e liga todos eles,
integrando suas operações, numa única operação complexa hierarquicamente organizada.
3.1.1.4.2 Segundo grupo: dois agentes moventes (ou mais) e um ou vários agentes
movidos
a) Dois agentes moventes (ou mais) atuando individualmente com um agente movido (ou
mais de um do mesmo tipo)
Duas situações básicas exemplificam as ocorrências que caem sob esta classificação.
A primeira é quando dois (ou mais) agentes moventes atuam individualmente envolvendo um
único agente movido é possível perceber a operação de cada um dos agentes moventes na
realização da operação complexa geral. Um exemplo disso pode ser o seguinte fato: Pedro e
João, usando um único machado, alternando a cooperação, cortarem a árvore. Neste caso, os
dois agentes moventes se servem das propriedades operacionais do agente movido para atingir
um fim comum às suas pretensões. Claro, a quantidade de golpes desferidos por cada um pode
ser diferente e o modo como cada um opera, se com maior ou menor intensidade, também
pode ser diferente, mas a natureza da relação hierárquica e da interação entre os agentes
moventes e o agente movido não se altera. Cada um, individualmente, toma posse
instrumentalmente da forma de operar do agente movido para uma operação comum, que é
cortar a árvore, e cada um influencia e é influenciado pelo agente movido.
154
A segunda situação de ocorrência dentro dessa classificação é aquela em que dois (ou
mais) agentes moventes envolvem dois (ou mais) agentes movidos do mesmo tipo. Cada
agente movente pode usar um agente movido (do mesmo tipo) como, por exemplo, no caso de
Pedro e João, cada um com um machado, cortam a árvore. De novo, a cooperação de cada
agente movente pode ser diferente na quantidade e no modo, mas a natureza da relação
hierárquica e da interação entre os agentes moventes e os agentes movidos continua a mesma.
Cada agente movente usa, instrumentalmente, as propriedades operacionais e estruturais dos
agentes movidos para uma operação comum e tanto influencia quanto é influenciado pelos
agentes movidos. Em resumo, quando dois (ou mais) agentes moventes atuam
individualmente para uma operação comum, cada agente movente coopera para a realização
da operação comum, mesmo que a quantidade e o modo da cooperação contenham diferenças,
sem nenhuma alteração na natureza lógica da relação hierárquica e da interação entre os
agentes moventes e os agentes movidos. E é exatamente essa constância na relação
hierárquica e na interação entre o agente movente e o agente movido, que permite individuar a
operação dos vários agentes moventes e seus respectivos agentes movidos.
b) Dois agentes moventes (ou mais) atuando coletivamente com um agente movido (ou
mais de um de diferentes tipos)
Esta caracterização também pode ser exemplificada com duas situações básicas. A
primeira delas é quando dois agentes moventes (ou mais) operam coletivamente com um
único agente movido. Um bom caso de ilustração dessa situação é a operação coletiva de
Pedro e João, com uma corda, para amarrar a fera. Neste caso, não é possível individuar a
cooperação de cada um dos agentes moventes, muito embora se possa admitir diferenças na
quantidade e no modo como cada um coopera em vista do objetivo comum. Mas, a exemplo
do que já identificamos nos casos acima, a natureza da relação hierárquica e da interação dos
agentes moventes com o agente movido não sofre nenhuma alteração.
A segunda exemplificação dessa caracterização é quando dois agentes moventes (ou
mais) envolvem dois agentes movidos (ou mais) de tipos diferentes. Uma boa ilustração dessa
situação é a operação coletiva de Pedro e João para içar a vítima com uma corda e uma
padiola. Também aqui podemos perceber que não há como separar a operação dos agentes
moventes, ela é coletiva, muito embora se possa admitir diferenças quantitativas e de modo na
155
cooperação de um e de outro. Mas, tal qual aconteceu nos casos acima, a natureza da relação
hierárquica e da interação das operações entre agentes moventes e agentes movidos não sofre
alteração. Os agentes moventes tomam posse, coletiva e instrumentalmente, das propriedades
formais dos agentes movidos em vista de uma operação comum. Em resumo, também nas
situações que constituem esse grupo, quando a operação de dois (ou mais) agentes moventes é
uma operação coletiva, mesmo que seja admissível diferenças na quantidade e no modo da
cooperação de cada agente movente, a natureza da relação hierárquica e da interação entre
agentes moventes e agentes movidos permanece inalterada.
3.1.2 Afastando-se da rota (ii): o baú de ferramentas
Continuando a excursão que nos propomos fazer no baú do patrimônio filosófico,
vamos dirigir nossa atenção agora para a caixa de ferramentas e fazer uso de outra teoria que
também tem muito a cooperar na superação dos problemas da Teoria RM. Trata-se da teoria
das relações multigrade de Alex Oliver e Timothy Smiley, segundo a qual, apesar de algumas
relações poderem envolver um número variável de termos, há uma estratégia lógica eficaz
para lidar com elas e, inclusive, traduzi-las formalmente de modo adequado.
Para considerar bem a posição deles e identificar os ganhos que ela oferece para a
Teoria RM, então, vamos dividir esta subseção em duas partes. Na primeira parte veremos em
detalhe a proposta da teoria multigrade das relações proposta por eles e, na segunda parte,
veremos o assunto da indicação formal da relevância na ordem dos termos. Esta segunda parte
ajudará em muito a pôr em relevo a proposta da estratégia multigrade.
3.1.2.1 A estrutura interna e a natureza lógica da relação na teoria das relações multigrade
As relações capazes de ligar uma sequência indefinida de termos revelam
peculiaridades desafiadoras, tanto na compreensão de sua natureza lógica, como na sua
maneira de estruturar os termos, que suscitam um árduo trabalho explicativo. Nesse sentido, a
teoria multigrade desenvolvida por Alex Oliver e Timothy Smiley oferece uma estratégia
156
inovadora no trato dessas relações. E, no nosso entender, ela pode ser aplicada, com pleno
sucesso e bons resultados, à relação acreditar proposta pela primeira versão da Teoria RM,
como veremos na segunda seção deste Capítulo.
A fim de apreciar cuidadosamente a teoria multigrade de Alex Oliver e Timothy
Smiley, vamos, então, dividir a presente parte em cinco pontos para examinar,
respectivamente, o que são relações multigrade, qual é a estratégia interpretativa proposta
pela teoria deles, em que consiste a distinção entre lugar e posição de termos sugerida por
eles, qual é sua concepção de aridade numa relação e, finalmente, em que consiste a
classificação de simetria global e simetria local oferecida por eles.
3.1.2.1.1 As relações multigrade
Como já foi indicado em 2.2.1, há duas maneiras de considerar as relações, no
tocante à sua aridade, uma se pode chamar multigrade a outra unigrade.165Os que consideram
relações como entidades unigrade assumem que elas só podem instanciar-se em fatos
atômicos com um número determinado de termos e, consequentemente, ou são monádicas ou
diádicas ou triádicas ... ou n-ádicas, mas não ocorrem ora como uma coisa, ora como outra.
Para ilustrar isso, tomemos como exemplo a frase (10) e acrescentemos as frases (46)-(48):
(10) Desdemona ama Cássio.
(46) Desdemona está entre Cássio e Glauco.
(47) Desdemona entrega Cássio a Glauco em T1.
(48) Desdemona entrega Cássio, Glauco e Romeu a Hypatia em T1.
Segundo o ponto de vista de que relações são entidades unigrade, as relações
expressas por (10) e (46)-(48) têm aridade fixa. A relação expressa por ...ama..., em (10),
165(*) Talvez se possa traduzir unigrade e multigrade para o português como “um grau” e “muitos graus”,
respectivamente, mas, como veremos melhor adiante, essas expressões indicam um campo de significado que
precisa ser expresso com mais clareza. Então, manteremos o uso dos dois temos no original inglês, até
justificarmos sua tradução com expressões mais técnicas.
157
seria sempre diádica. A relação expressa por ...está entre... e ..., em (46), seria sempre
triádica. A relação expressa por ...entrega ...a ... em ..., como mostra (47), seria sempre
tetrádica. E a relação expressa por ... entrega ... a ... em ..., descrita em (48), seria sempre
pentádrica. Ou seja, de modo geral, podemos dizer que as relações unigrade são entidades n-
ádicas que só podem ocorrer em fatos atômicos contendo n + 1 termos.
Um problema grave com essa posição, porém, é que situações como as que são
expressas por (47) e (48) implicam em relações diferentes. Quando, na verdade, são apenas
instâncias da mesma relação.
Os que consideram relações como entidades multigrade, por sua vez, admitem que
elas podem ocorrer com um número variável de termos.166Desse modo, uma mesma relação
pode instanciar-se com aridade 2, 3, 4, 5 etc e, desse ponto de vista, a relação amar, expressa
na frase (10), por exemplo, deve ser considerada uma relação multigrade. De fato, naquela
ocorrência, a relação amar ocorre com aridade 2, mas, ela pode ocorrer com aridade 3, 4, 5
etc. Quando isso acontece, em situações como “Desdemona ama Huguinho, Zezinho e
Luizinho”, por exemplo, a clássica explicação de que a ocorrência da relação apenas oculta
várias conjunções lógicas tem um valor parcial, mas, tem o inconveniente de apelar para
formas lógicas ocultas e não atende aos casos em a relação ocorre do modo não distributivo.
Assim, a interpretação multigrade explica de modo mais econômico e mais abrangente a
variação de aridade da relação apelando apenas para a sua natureza lógica.
Quanto aos casos expressos por (46)-(48), a posição que considera relações como
entidades multigrade assume que ali se expressam instâncias, com diferentes aridades, da
mesma e única relação. A relação mesma pode compor sequências de termos, como ilustram
(47) e (48), que não se reduzem a um conjunto de conjunções ocultas.
Apesar de ser comum relações ocorrem assim, esse modo de considera-las como
relações de aridade variável despontou com força a partir de Russell e Susanne Langer.167
Mas, como observam Alex Oliver e Timothy Smiley, em linhas gerais, a bibliografia que trata
relações como entidades multigrade é muito escassa e carente para justificar devidamente essa
propriedade delas e descrever o seu funcionamento lógico.168Segundo eles, porém, não há
166 LANGER, 2014, p. 50; LEONARD & GOODMAN 1940, p. 50; MORTON, 1975, p. 309; OLIVER;
SMILEY, 2013, p. 610. 167 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 611. 168 Idem., 2013, p. 153.
158
como negar essa propriedade multigrade nas relações. A grande prova disso é que, se algumas
relações fossem tratadas como relações unigrade a linguagem naufragaria numa ambiguidade
insuportável e outras não seriam devidamente capturadas em suas ocorrências concretas.169
De acordo com esses autores, porém, pode-se dizer que uma relação é multigrade em
três sentidos. Uma relação será multigrade se variar o número geral de termos envolvidos por
ela em suas várias instâncias. Uma relação será multigrade se variar o seu número de lugares
de termos envolvidos por ela em suas várias instâncias. E uma relação será multigrade se
variar o número de posições dos termos dentro de um lugar.
Essas distinções são muito valiosas para a compreensão da dinâmica do
funcionamento lógico das relações multigrade. Elas põem em evidência o caráter polivalente
da significação da palavra “multigrade” e sugerem a busca de termos mais precisos para
cobrir seu campo de significação. De fato, não seria mais acurado designar cada um desses
significados com uma expressão própria e direta? Usar “multigrade” para significar todos
esses aspectos é mais trabalhoso e arriscado do que expressar os seus respectivos aspectos
com termos diretos. É mais trabalhoso porque o tempo todo será necessário justificar quando
a palavra “multigrade” é usada com um significado ou com outro. E é mais arriscado porque
às vezes uma relação será multigrade por um aspecto e não será por outro e isso pode passar
despercebido ao leitor caso não esteja devidamente explicitado.
Além disso, a tradução da palavra “multigrade” para a língua portuguesa sugere um
campo de significação ainda mais amplo do que aquele sugerido por Alex e Smiley.A
tradução de “multigrade” para a língua portuguesa, ipsis litteris, deve ser “multi-grau” ou
“muitos graus”. Mas o que podemos entender com a afirmação de que uma relação tem
muitos graus? Via de regra, essa expressão tanto sugere que a relação tem muitas aridades
quanto sugere que ela tem muitos graus de ordens lógicas. Desse modo, além dos significados
referentes à aridade e ao número de lugares e posições, apontados por Alex e Smiley,
devemos acrescentar o significado da variação de ordem lógica à expressão “multigrade”. O
que nos indica que precisamos traduzir quatro significados de “multigrade” para o português e
não três.
Traduzir essa riqueza da palavra “multigrade” para a língua portuguesa, então, não é
uma tarefa simples. Não há uma palavra na língua portuguesa que, sozinha, consiga capturar
169 Friedericke Moltmann também compartilha com essa posição (Cf. MOLTIMANN, 2013, p. 4-5).
159
toda essa significação. Por isso, nós sugerimos o uso de quatro expressões técnicas que
possam, individualmente, designar cada um desses significados. Assim, quando dissermos
que uma relação é multigrade poderemos especificar com esses termos se é porque ela é uma
relação “multi-aridade”, “multi-lugar”, “multi-posição” e/ou “multi-ordem”.
Para visualizar melhor o significado e a importância de cada uma dessas expressões,
consideremos o seguinte quadro de exemplos:
RELAÇÕES MULTI-
ARIDADE
RELAÇÕES MULTI-LUGAR RELAÇÕES MULTI-
POSIÇÃO
RELAÇÕES MULTI-
ORDEM
(49) Cássio lutou
com Otelo.
(50) Cássio lutou com
Otelo e Glauco.
(51) Cássio e Otelo
lutaram com Glauco,
Romeu e Alexandre.
(52) Cássio observa Desdemona.
(53) Cássio observa Desdemona
posicionando Romeu à esquerda
de Julieta.
(54) Cássio observa Desdemona
posicionando o livro sobre a mesa
ao lado da xícara e da caneta.
(49) Cássio lutou com
Otelo.
(50) Cássio lutou com
Otelo e Glauco.
(51) Cássio e Otelo
lutaram com Glauco,
Romeu e Alexandre.
(55) Desdemona prefere
Otelo.
(56) Desdemona prefere
ser bela.
(57) Desdemona prefere
instanciar beleza em vez
de fidelidade.
Na coluna das relações multi-aridade as frases (49)-(51) expressam instâncias da
relação lutar com que têm, respectivamente, aridade 2, aridade 3 e aridade 5. Sua variação de
aridade, porém, poderia continuar aumentando indefinidamente. É essa propriedade, presente
em várias relações, que designamos como “multi-aridade”.
Na coluna da relações multi-lugar, as frases (52)-(54), expressam instâncias das
relações observar que têm, respectivamente 2 lugares, 6 lugares e 8 lugares: A sentença (55)
afirma a relação observar com dois lugares que apesar de cada um conter apenas um termo,
podem ser considerados lugares multi-aridade, isto é, lugares que podem abrigar vários
termos. A sentença (56) afirma a relação observar ligando seis termos em seis lugares
separados. A sentença (57) afirma a relação observar ligando nove termos em oito lugares
separados, sendo o último lugar ocupado por dois termos, a saber, a xícara e a caneta. É essa
160
capacidade de algumas relações terem mais de dois lugares de termos que designamos como
“multi-lugar”.
Na coluna das relações multi-posições, as frases (49)-(51) são retomadas de novo na
coluna das posições mostrando que aquelas instâncias da relação “...luta com...”têm,
respectivamente, um objeto ocupando uma posição em cada lugar em (49).Um objeto
ocupando a primeira posição no primeiro lugar e dois objetos ocupando duas posições no
segundo lugar em (50). E dois objetos ocupando duas posições no primeiro lugar e três
objetos ocupando três posições no segundo lugar em (51). E a variação de posições também
poderia continuar aumentando indefinidamente, ela é a propriedade que designamos como
“multi-posição”.
E, finalmente, na coluna das relações multi-ordem, as frases (55)-(57) expressam
instâncias da relação preferir que mostram essa relação, respectivamente, ocorrendo como
relação de primeira ordem, segunda ordem e terceira ordem. A hierarquia das ordens lógicas,
porém, pode continuar a crescer em ocorrências que envolvam termos de ordem lógica mais
alta. É essa propriedade da relação que designamos como “multi-ordem”.
3.1.2.1.2 A estratégia da mudança de sujeito e a estratégia multigrade
A posição que considera relações como entidades multigrade precisa, então,
enfrentar a questão da variação no número de termos que uma relação pode envolver ao
instanciar-se. Seriam esses “vários termos” um termo complexo ou uma pluralidade de
teremos ligados pela relação? Duas estratégias explicativas tentam responder essas perguntas.
Consideremos, em separado, cada uma delas.
A estratégia da mudança de sujeito, segundo Alex e Smiley, considera uma
sequência de termos como sendo um termo composto. Desse modo, seja na relação, seja no
predicado que representa a relação, a sequência mesmo é o termo ou argumento que ocupa um
lugar relevante na relação.170 Segundo esse ponto de vista, o “e” que ocorre na formação da
sequência é um sinal de função. Ele representa uma função criando uma expressão singular
que designa “um objeto complexo, um conjunto ou grupo ou agregado ou fusão”, podendo ser
170 OLIVER; SMILEY, 2013, p. 165.
161
tanto sujeito quanto objeto de uma relação.171 Nesse caso, tanto a relação que envolve os
termos, quanto o predicado que a exprime na linguagem têm grau fixo.
Essa estratégia, apesar de ser bastante interessante, insere algumas demandas que
tornam a vida dos seus adeptos mais difícil. Sendo o “e” um sinal funcional, impõe a tarefa de
explicar como ele estrutura os vários termos num conjunto ou agregado. Se o “e” for uma
função binária, então, ele imporá grupos onde nem sempre parece haver grupos.172 Por
exemplo:
(58) Russell, Whitehead e Wittgenstein vão à festa
(58a) F (( _, _ ) e _)
(59) Frege e Russell e Whitehead e Wittgenstein vão à festa.
(59a) F (( _ e _ ) e ( _ e _))
(59b) F ( _ e ( _ e _ e _ ))
(59c) F (( _ e _ e _ ) e _ )
Como podemos ver, se o termo funcional “e” for considerado uma função diádica,
será necessário atribuir agrupamento de termos em seqüências com mais de dois elementos.
Mas, visto nem sempre haver tal agrupamento natural entre eles, essa tarefa termina recaindo
numa arbitrariedade incômoda. Em (59), por exemplo, nada indica que os termos estão
agrupados como qualquer uma das alternativas (59a)-(59c).
Além disso, se uma sequência de termos forma um conjunto e é tratada como tal será
preciso dar um status ontológico a esse conjunto. Ele é uma entidade objetiva ou uma
construção do falante? Se ele for uma construção do falante, a relação não parecerá mais ter
grau fixo e, nesse caso, será preciso considerá-la uma relação multigrade. E se ele for uma
entidade objetiva, então, quando aplicada à relação acreditar, a proposta se tornará uma
reedição da Teoria do Juízo Dual.
A solução dos defensores da estratégia da mudança de sujeito, então, rejeita
considerar o “e” como sendo uma função diádica e passa a considerá-lo como uma função
171 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 610. (Confira ainda: OLIVER; SMILEY, 2013, p. 154). 172 Idem., 2013, p. 156.
162
multigrade.173 Sendo “e” uma função multigrade, ele pode combinar um número indefinido
de termos, todos no mesmo nível lógico. Mas, com esta manobra, uma decisão radical precisa
ser tomada pelos partidários da estratégia da mudança de sujeito: a relação deve ser
considerada de grau fixo ou variável? Se a sequência de termos contar como um conjunto,
então a relação continua sendo de grau fixo. Mas se ela é de grau fixo, então a sequência deve
ser fixa. Cada vez que ela aumentar ou diminuir terá que ser um objeto diferente. E é
exatamente isso o que acontece, uma vez que a sequência é formada por uma função
multigrade inúmeros conjuntos diferentes serão possíveis e a relação terá que ser diferente
com cada um deles ou ser de aridade variável também.
A segunda posição se impõe. A sequência de termos em (59), por exemplo, pode
continuar a aumentar e a relação será verdadeira se for verdade que cada elemento da lista vai
à festa com os demais. E se essa posição se impõe, então é melhor tratar a sequência como
uma fila de termos e considerar a relação, juntamente com o predicado que a exprime, como
sendo de aridade variável. Mas esta já não é a estratégia da mudança de sujeito e sim a
estratégia multigrade.
Segundo Alex Oliver e Timothy Smiley, a estratégia multigrade considera uma
sequência de termos como sendo uma fila de termos separados.174 A expressão “e” que ocorre
entre os termos da fila é apenas um sinal de pontuação, isto é, um sinal que separa os termos
em posições diferentes. Retomemos o exemplo de (59):
(59) Frege e Russell e Whitehead e Wittgenstein vão à festa.
(59a) G < f, r, w, t>
Neste caso, o predicado “vão à festa” expressa uma ação, realizada conjuntamente,
por Frege, Russell, Whitehead e Wittgenstein. A expressão “e” que separa um termo do outro
é apenas um sinal de pontuação, que a formalização representa com uma vírgula.
O segundo passo da estratégia multigrade consiste em distinguir lugares de posições
dos termos, quando a relação é instanciada por certo número de objetos cumprindo papéis
173 OLIVER; SMILEY, 2013, p. 155. 174 Ibidem., p. 165. (Confira ainda: OLIVER; SMILEY, 2004, p.610).
163
lógicos diferentes. Esta distinção, como veremos melhor abaixo, permite considerar os vários
termos envolvidos numa relação como termos que estão, ao mesmo tempo, separados e numa
ordem determinada. Além disso, a estratégia também permitirá refinar ainda mais a
consideração das propriedades de simetria e assimetria das relações, considerando-as de modo
global e de modo local, isto é, considerando-a de um lugar para outro ou dentro de um único
lugar.
3.1.2.1.3 Distinguindo lugares e posições
A estratégia multigrade considera sequências de termos como filas, onde os termos
ocorrem, simultaneamente, separados e ordenados na relação. Para justificar essa posição, ela
distingue as posições, em que os termos ocorrem separados, dos lugares, em que eles são
agrupados na relação. No que diz respeito aos lugares dos termos, Alex e Smiley não
oferecem uma definição propriamente dita. Eles apenas assumem o ponto de vista de Adam
Morton, segundo o qual lugares correspondem a “grupos de argumentos”.175
A identificação de lugares com grupos de termos, a nosso ver, porém, não parece
adequada. Ela é pouco específica e implica, pelo menos, em duas dificuldades bastante
desagradáveis. Retomemos o caso de (52) e consideremos as outras seguintes ocorrências:
(49) Cássio lutou com Otelo.
(60) Cássio e Otelo lutaram com Romeu e Alexandre.
(61) Os brasileiros lutaram com os paraguaios.
(62) Os alemães e os italianos lutaram com os ingleses e os americanos.
A primeira dificuldade, ao identificar lugares com grupos de argumentos, como
podemos ver comparando (49) e (60), surge quando apenas um termo singular ocorre num
lugar. Em (60) parece mais aceitável dizer que um grupo (de dois membros) lutou com outro
grupo (de dois membros) e aí parece justificável dizer que um lugar equivale a um grupo de
termos. Mas em (49), de modo algum parece aceitável dizer que um lugar se identifica com
175 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 615. (Confira ainda: MORTON, 1975, p. 309-10).
164
um grupo (de um elemento apenas). E a segunda dificuldade em indicar lugares com grupos
de termos, como podemos ver comparando (61) e (62), consiste no fato de que vários grupos,
expressos com termos coletivos, podem ocorrer num único lugar da relação. Em (61) é
pertinente dizer que um grupo (os brasileiros) corresponde a um lugar na relação lutar com,
mas em (62) não convém de modo algum dizer que dois grupos, os alemães e os italianos,
ocupam dois lugares na relação, pois eles apenas ocupam posições diferentes no mesmo lugar,
uma vez que a relação lutar é uma relação cujo número de lugares é fixo, como admitem os
autores.
No tocante à classificação de um lugar, então, nos parece que a visão de Russell é
mais adequada que a de Alex e Smiley. Como já indicamos em 1.1.2.2, no capítulo primeiro,
Russell mantinha em sua teoria das relações que os lugares dos termos nas relações
assimétricas estão estreitamente ligados ao papel lógico que os termos desempenham no juízo.
O primeiro lugar é do termo sujeito e o segundo lugar é do termo relatum.176
A opção que Russell fez de considerar o papel lógico dos termos como aquilo que
caracteriza os lugares na relação supera as lacunas deixadas pela qualificação geral dada por
Alex e Smiley. Um lugar não se define por abrigar um grupo de termos, mas por demarcar um
papel lógico que um termo ou uma fila de termos pode desempenhar. Em (49), por exemplo, a
relação lutar com tem dois lugares de termos. No primeiro lugar ocorre um termo que
desempenha o papel de sujeito e no segundo lugar ocorre um termo que desempenha o papel
de relatum. Já em (60) temos outra ocorrência da mesma relação, que tem os lugares fixos
como lembram Alex e Smiley, onde o primeiro lugar abriga dois termos que desempenham o
papel de sujeito e o segundo lugar abriga dois termos que desempenham o papel de relatum.
Em (61) temos outra ocorrência da mesma relação, onde o primeiro lugar abriga um grupo
numericamente indefinido de termos, representado por uma expressão plural, que corresponde
aos sujeitos da relação e no segundo lugar outro grupo numericamente indefinido de termos,
representado por outro termo plural, que corresponde aos relata da relação. E, finalmente, em
(62) o primeiro lugar do predicado abriga dois termos plurais que representam dois grupos de
elementos numericamente indeterminados como sujeitos da relação. Enquanto que o segundo
lugar, igualmente, abriga dois termos plurais que representam dois grupos de elementos
numericamente indeterminados como relata da relação.
176 RUSSELL, 1903, p. 96.
165
No tocante às posições dos termos num lugar multigrade, o ponto de vista de Alex e
Smiley é que elas são as colocações dos “termos individuais dentro de um lugar” da
relação.177 Ou seja, elas são individuais, cada uma abriga um termo, singular ou plural178, e
são relativas ao lugar em que ocorrem. Visto que assumimos que o que caracteriza um lugar é
o fato dele demarcar um papel lógico, desempenhado por um ou por vários termos, podemos
assumir esse ponto de vista com relação às posições e ainda enriquecê-lo dizendo que as
diversas posições dentro de um lugar, quando acontecer, separam termos enfileirados que
desempenham o mesmo papel lógico imposto pela relação que os envolve.
3.1.2.1.4 Um novo jeito de pensar a aridade
Tradicionalmente, costuma-se considerar a aridade de uma relação como sendo o
número de termos ligados por ela numa instância. Esse número pode variar de instância para
instância ou não, depende da relação ser multigrade ou ter grau fixo. Alex e Smiley, porém,
afastam-se dessa posição e, uma vez que se pode distinguir lugares e posições numa relação,
assumem que a aridade de uma relação é o número de lugares que ela comporta, mesmo que o
número geral de termos nesses lugares venha a variar de uma ocorrência para outra.
Consideremos as duas ocorrências da relação lutar com descritas em (49) e (60):
(49) Cássio lutou com Otelo.
(60) Cássio e Otelo lutaram com Romeu e Alexandre.
De modo geral, a aridade da relação lutar com é considerada 2 na ocorrência descrita
por (49) e é considerada 4 na ocorrência descrita por (60). Mas, em contrário, para Alex e
Smiley, a relação lutar com “tem dois lugares de argumentos” apenas. Eles são lugares fixos,
o que varia são as posições e o número geral dos termos. Desse modo, sustentam os dois
177 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 615. 178 Já está se consolidando um jeito próprio de representar o termo plural. (Cf. LINNEBO, 2003, p. 75), mas,
tratar disso aqui nos levaria a uma digressão desnecessária.
166
autores, a aridade da relação não é o número geral de termos ligados pela relação, mas, sim, o
número de lugares da relação.179
A posição de Alex e Smiley de novo nos faz pensar no significado da palavra
“multigrade”. Autores anteriores, como Susanne Langer, Goodmann e Adam Morton, por
exemplo, consideram “multigrade” como significando aquelas relações que têm a aridade
variável e por “aridade” entendem o número geral dos termos envolvidos pela relação. Mas,
Alex e Smiley sugerem considerar a “aridade” da relação como sendo o seu número de
lugares. Devemos, então, abandonar o significado tradicional de “aridade”? Se a sugestão
desses dois autores fosse pertinente a resposta seria “sim”, mas, ao que parece, ela não é.
A tentativa de inovar o significado de “aridade”, por parte de Alex e Smiley gera
confusão para entender o caráter multigrade de uma relação. Eles mantêm que o número geral
de termos em algumas relações, como lutar com, por exemplo, pode variar e o número de
lugares permanecer fixo. Permanecendo fixo o número de lugares teremos, na concepção
deles, uma aridade fixa. Mas, visto que o número geral de termos pode variar mesmo com o
número de lugares sendo fixo, a relação é dita multigrade. Então, considerando que o que
caracteriza uma relação multigrade é não ter aridade fixa, fica muito confuso dizer que ela é
multigrade porque não tem um número fixo de termos gerais, mas tem aridade fixa porque
seu número de lugares é fixo. Melhor seria dizer as duas coisas separadamente, sem mexer no
significado de “aridade”, isto é, dizer que ela é multigrade multi-aridade, porque não tem o
número de termos fixo, e não é multi-lugar, porque sempre ocorre com dois lugares.
A nossa proposta, então, é manter a concepção tradicional de aridade e alargar a
tentativa de Alex e Smiley a fim de explicitar os aspectos significativos da expressão
multigrade com as expressões que assumimos em 3.1.2.1.1. Desse modo, fica mais simples e
correto manter o significado tradicional de que a aridade de uma relação é o número geral de
termos envolvidos por ela numa ocorrência e torna-se possível acolher a preocupação de Alex
e Smiley com as relações multigrade que têm o número de lugares fixo, apesar de ter o
número geral de termos variável. Contudo, como eles mesmos salientam, outras relações têm
o número de lugar e o número geral de termos variáveis, então será importante alargar essa
179 “No contexto da nossa distinção entre lugares e posições é conveniente reservar as palavras gregas –
monádica, diádica etc – para especificar o número de lugares que o predicado tem, ao que, nós chamamos
aridade (adicity)”. (OLIVER; SMILEY, 2004, p. 615. grifo do autor).
167
posição e explicitar os vários aspectos que permitem classificar uma relação como multigrade,
como já assumimos acima.
3.1.2.1.5 Simetria global e simetria local
A teoria da predicação multigrade proposta por Alex e Smiley permite tratar com
bases novas a propriedade de simetria daquelas relações expressas por predicados multigrade.
Visto que relações expressas por predicados multigrade podem estruturar seus termos em
lugares e posições diferentes, a propriedade de simetria pode ser vista tanto com relação a
lugares diferentes, quanto com relação a posições diferentes dentro de um mesmo lugar.
Consideremos os seguintes casos:
(63) Tiago e João são irmãos de Pedro e André.180
(64) Tiago observa João, Pedro e André.
Na frase (63) o predicado expressa uma ocorrência da relação ser irmão de que tem
dois lugares multigrade. Neste caso, os termos podem ser intercambiados dentro do lugar em
que se encontram ou de um lugar para outro sem alterar o valor de verdade da frase. Quando o
intercambiamento de um lugar para o outro é possível, sem alterar o valor de verdade da frase
que expressa a relação, pode-se dizer que a relação é globalmente simétrica. E quando o
intercambiamento de termos dentro do mesmo lugar for possível, sem alterar o valor de
verdade da frase que expressa a relação, pode-se dizer que a relação é localmente simétrica.181
Na frase (64), por sua vez, o predicado representa uma ocorrência da relação
observar que também tem dois lugares de argumentos. Mas, diferentemente do que ocorreu
acima, os termos não podem ser intercambiados de um lugar para outro garantindo a
permanência do valor de verdade da frase. Neste caso, a simetria global não é possível.
Contudo, o segundo lugar da relação é um lugar multigrade e os termos que ocorrem dentro
180 Num contexto pragmático em que os quatro têm os mesmos pais. 181 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 618.
168
dele, em posições diferentes, podem mudar de posição sem alterar o valor de verdade da frase.
Neste caso, a simetria local é perfeitamente possível. Em (64), portanto, a relação observar
não é globalmente simétrica, mas, apenas, localmente simétrica.
Alex e Smiley não tratam de casos assimétricos em seu texto. Uma pena, porque eles
reconhecem a importância e o impacto da assimetria nas relações multigrade. O que
justificaria essa falta, então? No nosso entender, o motivo está no critério adotado por eles
para classificar a simetria. Este critério tem alguns inconvenientes se for usado para classificar
relações com assimetria global ou local. De acordo com eles, uma relação é globalmente
simétrica se os termos puderem mudar de lugar sem alterar o valor de verdade da sentença
que exprime a relação. E, igualmente, ela é localmente simétrica se os termos puderem mudar
de posição dentro de um lugar sem alterar o valor de verdade da sentença.
A questão que se levanta é: se os termos puderem mudar de lugar e isso vier a alterar
o valor de verdade da frase a relação será globalmente assimétrica? Se a resposta for “sim”,
então, em (64), a relação observar será globalmente assimétrica caso nenhum dos três relata
(João, Pedro e André) observe Tiago e venha a mudar de lugar com ele na relação. E será
simétrica se, nos casos em que algum dos três (ou mesmo os três) observe Tiago e os outros
dois e mude de lugar com Tiago na relação. Na primeira situação o valor de verdade da
sentença mudaria e na segunda situação não mudaria. Mas isto é totalmente circunstancial. A
verdade é que se houver qualquer intercâmbio de lugar entre os termos em (64), como
assumiu Russell na terceira versão da teoria RM, o conteúdo lógico da frase será diferente e
poderá manter o mesmo valor de verdade ou não. O que nos faz ver que considerar a
preservação do conteúdo lógico da frase é um critério mais adequado para caracterizar as
relações em simétricas e assimétricas, como assumiu Russell, do que considerar a preservação
do valor de verdade da frase que exprime a relação.
Combinando o critério russelliano para classificar a relação em simétrica ou
assimétrica, como preservação ou não do conteúdo lógico na ocorrência da relação, com a
distinção de lugares e posições sugerida por Alex e Smiley, então, podemos ajustar a
definição de simetria, bem como de assimetria, global e local, envolvidas nas relações
multigrade do seguinte modo:
a) Uma relação é globalmente simétrica se os seus termos podem ser intercambiados de lugar
sem causar alteração no conteúdo lógico da sua ocorrência. E ela é globalmente assimétrica se
169
os seus termos podem ser intercambiados de lugar e esse intercambiamento altera o conteúdo
lógico da sua ocorrência.
b) Uma relação é localmente simétrica se os seus termos podem ser intercambiados de
posição dentro de um lugar e isso não altera o conteúdo lógico da ocorrência da relação. E ela
é localmente assimétrica se os termos podem mudar de posição dentro de um lugar, mas isso
altera o seu conteúdo lógico.
Assim definidas, as propriedades de simetria e assimetria podem ser ilustradas do
seguinte modo:
(63) Tiago e João são irmãos de Pedro e André.
A relação ser irmão de, expressa em (63) é:
- Globalmente simétrica: os termos podem mudar de lugar sem alteração lógica no conteúdo
da ocorrência.
- Localmente simétrica: os termos podem mudar de posição sem alteração lógica no conteúdo
da ocorrência.
(64) Tiago observa João, Pedro e André.
A relação observar, expressa em (64) é:
- Globalmente assimétrica: os termos não podem mudar de lugar sem alteração lógica no
conteúdo da ocorrência.
- Localmente simétrica: os termos podem mudar de posição no 2º lugar sem alteração lógica
no conteúdo da ocorrência.
170
(65) A bola tocou o braço do jogador e o solo.
A relação tocar em, expressa em (65), é:
- Globalmente assimétrica: os termos não podem mudar de lugar sem alteração lógica no
conteúdo da ocorrência.
- Localmente assimétrica: os termos não podem mudar de posição no 2º lugar sem alteração
lógica no conteúdo da ocorrência.
Essas situações, porém, não esgotam as possibilidades de simetria e assimetria nas
ocorrências atômicas, porque ainda pode haver situações em que nem a simetria nem a
assimetria global são possíveis, mas a simetria e a assimetria local são possíveis. Por
exemplo:
(66) Tiago gosta de laranja, maçã e pêra.
Na relação gostar de, expressa em (66), a simetria e a assimetria globais são impossíveis.
Contudo, a simetria local é possível: os termos podem mudar de posição no 2º lugar sem
alteração lógica no conteúdo da ocorrência.
(67) Tiago diz que percebe o gato.
Na relação dizer que, expressa em (67), tanto a simetria quanto a assimetria globais são
impossíveis. Mas, a assimetria local é possível:os termos podem mudar de posição no 2º lugar e se
isso acontecer ocorrerá uma alteração lógica no conteúdo da ocorrência.
Com isso, podemos perceber que a classificação de simetria e assimetria dada por
Russell na terceira versão da teoria RM harmoniza-se bem com a distinção entre lugares e
171
posições proposta pela teoria multigrade de Alex e Smiley. E isso permitirá construir um
considerável argumento contra o problema do sentido largo, como veremos, na última seção
deste Capítulo.
3.1.2.2 A indicação da relevância na ordem dos termos
Nós assumimos a estratégia multigrade como caminho de explicação para o
funcionamento das relações que não têm aridade fixa. Assumimos também que a sequência de
termos formada por uma relação multigrade não é um termo complexo pré-definido, pois, a
relação é que os envolve e liga numa unidade, dando-lhes uma ordem lógica. Por conseguinte,
somos levados a considerar com atenção ainda qual deve ser a melhor maneira de
compreender e indicar formalmente a ordem dos termos dada por uma relação assimétrica.
Relações assimétricas, como se sabe, são relações ordenadas, isto é, relações onde a
ordem dos termos é relevante. Elas impõem uma determinada ordem aos termos, de modo que
o intercambiamento deles altera o conteúdo instanciado. As relações que as frases (68)-(70)
expressam ilustram bem esta propriedade:
(68) Romeu ama Julieta.
(69) Palmares fica entre Recife e Maceió.
(70) Otelo tem ciúmes de Desdemona com Cássio mais do que com Romeu.
A frase (68) expressa a relação amar envolvendo dois termos ordenados. A frase (69)
expressa a relação ficar entre ...e ...envolvendo três termos ordenados. E a frase (70) expressa
a relação ter ciúmes de ...com ... mais do que com ...envolvendo quatro termos. Em todas elas
a ordem dos termos tem que ser respeitada, se os termos forem intercambiados o conteúdo
instanciado será profundamente alterado.
Uma maneira clássica de formalizar a ordem lógica dos termos, em relações como
essas, consistiu em tratar relações sendo como pares ordenados, triplas e quádruplas
ordenadas, e assim por diante. Mas, se confrontada com a teoria multigrade, essa estratégia se
172
revela problemática em, pelo menos, dois pontos, pois, nem toda relação em que a ordem dos
termos é relevante pode ser tratada como um conjunto de n-uplas ordenadas e, muitas vezes,
tentar formalizar uma relação como sendo um conjunto de n-uplas ordenadas força uma
estruturação lógica dos termos que conflita com a estruturação deles na ocorrência efetiva da
relação.
Neste modelo de formalização que trata as relações como conjuntos de n-uplas
ordenadas, uma relação dual assimétrica é o conjunto de dois pares ordenados, que pode ser
formalizado do seguinte modo:
(ix) R ˂ x, y ˃
No tocante à expressão da ordem dos termos, dois recursos formais são de suma
importância para este modelo de formalização. O uso dos parênteses de ângulos externos182e o
uso de vírgulas. O par de parênteses de ângulos externos indica que a ordem dos termos é
relevante e a vírgula separa um termo do outro dentro da ordem estabelecida pela relação.
Mas, como veremos agora, o uso desses sinais para expressar a ordem dos termos nas relações
ordenadas fica mais complexo a partir das relações que são triplas e quádruplas ordenadas,
resultando em sérias dificuldades para os defensores deste modelo de formalização.
Visto que nessa estratégia de formalização a noção de par ordenado é estendida para
explicar as relações ternárias e quaternárias onde a ordem dos termos for relevante, a relação
considerada uma tripla ordenada, por exemplo, passa a ser vista como o conjunto dos pares
ordenados que contém outro par ordenado como elemento.183 Mas, convém notar, as relações
que são triplas ordenadas não seguem um padrão único para agrupar os termos, como faziam
as relações que são pares ordenados. Uma tripla ordenada pode agrupar os termos de três
maneiras diferentes, como mostram as suas possíveis formulações em (x)-(xi):
182 Alguns autores trabalham com suportes de ângulos e outros trabalham com parênteses. As funções atribuídas
a eles, porém, são as mesmas. 183 IMAGUIRE; BARROSO, 2006, p. 45.
173
(x) R ˂ x, y, z ˃
(xi) R ˂ x, ˂ y, z ˃ ˃
(xii) R ˂ ˂ x, y ˃, z ˃
Na formalização apresentada em (x), para indicar o modo como a relação agrupa os
termos numa ordem geral, essa teoria usa apenas um par de parênteses de ângulos e para
indicar que esses termos estão separados usa apenas vírgulas. Estes foram os mesmos recursos
de formalização usados com os pares ordenados. Mas as formalizações das triplas ordenadas
em (xi) e (xii) indicam um modo de agrupar os termos numa ordem geral que contém também
uma sub-ordem interna. A ordem geral é a mesma nas duas situações, mas a sub-ordem
interna é diferente. Em (xi) os dois últimos elementos estão sub-agrupados num par ordenado
e contam como um elemento. Já em (xii) são os dois primeiros elementos que estão sub-
agrupados num par ordenado e também contam como um elemento na formalização da
relação R. Portanto, em (xi) e em (xii) a relação é formalizada como um par ordenado que tem
um argumento que é outro par ordenado e este conta somente como um elemento na relação.
Desse modo, percebe-se que essa estratégia de formalização das relações ordenadas segue
uma tática similar à da estratégia da mudança de sujeito, vista acima. Ela força uma
estruturação dos termos, ao invés de tentar capturar sua verdadeira estruturação.
Uma questão muito importante deve ser levantada aqui: o par ordenado demarcado
com os parênteses de ângulos internos deve ser considerado como um elemento mesmo ou
como dois elementos no cômputo da aridade da relação? A resposta dessa estratégia é que em
tais situações os parênteses de ângulos internos indicam um elemento. O que faz com que a
relação R, naquelas circunstâncias apresentadas em (xi) e (xii), seja entendida como uma
relação de dois pares ordenados, onde um dos elementos é outro par ordenado.
Mas, e aqui está o problema, se os termos demarcados com os parênteses de ângulos
internos, em (xi) e (xii), devem contar como um único elemento, então, eles representam algo
objetivamente existente, a saber, um objeto com o qual o sujeito de um juízo envolvendo
aquela relação teria que estar relacionado. Nesse caso, a relação que inicialmente
consideramos uma tripla ordenada, passa a ser vista como um par ordenado, isto é, uma
relação de dois termos.
174
Essa mesma dificuldade se repete, e fica mais acentuada ainda, nas relações que são
quádruplas ordenadas como mostram, por exemplo, (xiii)-(xvi):
(xiii) R ˂ x, y, z, w ˃
(xiv) R ˂ ˂ x, y ˃, ˂ z, w ˃ ˃
(xv) R ˂ x, ˂ y, z, w ˃ ˃
(xvi) R ˂ ˂ x, y, z ˃, w ˃
No caso da formalização expressa por (xiii), o uso dos parênteses de ângulos na
formalização é bastante claro e não sugere nenhuma duplicidade de função. Ali, a relação R é
representada ligando quatro termos, numa ordem geral indicada pelos parênteses de ângulos,
com os termos devidamente separados por vírgulas. Já nas formalizações expressas em (xiv)-
(xvi), temos o mesmo problema constado nas triplas ordenadas. Cada ocorrência tem uma
sub-ordem que precisa ser indicada na formalização e essa estratégia procura responder a isso
fazendo um uso novo dos parênteses de ângulos.
Em (xiv) a formalização indica que a relação R estrutura os termos em dois pares
ordenados e cada um desses pares deve ser considerado como um elemento apenas. E a
mesma questão se repete em (xv)-(xvi), com a diferença de que os suportes de ângulos
internos agora ligam três termos. Por conseguinte, o problema se torna ainda mais acentuado
se as ocorrências dos parênteses de ângulos internos forem lidas como representação de um
elemento numa relação quaternária, pois, no fundo, tal relação ficará reduzida a uma relação
dual.
A nosso ver, portanto, o problema dessa estratégia de formalização reside na
duplicidade de papéis dados aos parênteses de ângulos ao formalizar relações que contém uma
sub-ordem interna. Para notar isso, lembremos que no caso dos pares ordenados, no caso da
relação tripla formalizada em (x) e no caso da relação quádrupla formalizada em (xiii) os
parênteses de ângulos são usados apenas para representar a ordem dos termos na relação.
Nesses casos, eles não têm nada a ver com o número de elementos. Mas, com o surgimento da
necessidade de expressar uma sub-ordem, em (xi)-(xii) e (xiv)-(xvi), eles foram usados
também para ligar os termos, que com isso passaram a ser vistos como um termo composto
que, como tal, encontra-se separado do outros formando uma sub-ordem. Mas, com isso, os
175
parênteses de ângulos passam a ser usados com um papel novo, a saber, o papel de reduzir a
um os termos da relação ligados por eles. Isso é problemático para a Teoria RM. Seria melhor
conservar os parênteses de ângulos com o papel constante de indicar a ordem geral dos termos
apenas, deixar o número de elementos ser indicado pelos próprios elementos e pensar noutra
estratégia para representar a ordem interna dos termos.
3.1.2.3 Evitando sinais com duas funções numa mesma ocorrência
A consideração atenta dos papéis dados aos parênteses de ângulos neste modelo de
formalização lógica nos permite perceber a importância e a pertinência do primeiro papel que
é atribuído a eles, o de indicar a relevância na ordem dos termos. Usados assim, eles indicam
a ordem geral dada aos termos pela relação. Mas, o segundo uso atribuído a eles, o de
demarcar uma sub-ordem no interior de uma relação, revela-se bastante problemático, porque
compromete a compreensão do número de termos da relação e sugere compromisso com
termos complexos objetivos.
Diante disso, desejamos assumir o uso dos parênteses de ângulos com aquele
primeiro papel, mas não com o segundo. Agora, ao rejeitarmos o segundo uso dos parênteses
de ângulos para expressar uma sub-ordem no interior da relação, não queremos nos furtar à
tarefa de pensar um modo mais adequado para fazer isso. De modo que, vamos usar os
parênteses de ângulos para indicar a ordem geral dos ternos na relação ordenada e para
expressar os detalhes da ordem dos termos dentro dos parênteses de ângulos vamos usar os
recursos da estratégia multigrade e uma sintaxe de inspiração russelliana que, juntas,
permitem cumprir de modo adequado essa tarefa.
3.2 VOLTANDO DO EXCURSO
Depois do longo excurso feito na seção anterior, retornemos agora ao assunto da
relação acreditar e dos seus termos e apliquemos a ele os ganhos adquiridos. Com tais
ganhos, como veremos melhor a seguir, chegaremos a um jeito novo de ver a natureza e a
176
operação da relação acreditar e da relação subordinada que, como agente movente e agente
movido,operam de modo integrado. Para isso, dividiremos esta seção em duas subseções. A
primeira delas faz uma releitura da natureza e da estrutura lógicas da relação acreditar à luz
das teorias trabalhadas na primeira seção deste capítulo. E a segunda subseção, de modo
bastante análogo, procura fazer o mesmo com a relação subordinada.
3.2.1 Relendo a natureza e a operação da relação acreditar na Teoria RM
Nesta subseção, a relação acreditar será vista como um agente movente e também
como uma relação multigrade. Como agente movente, ela identifica-se plenamente com a
posição tomista, apreciada na seção anterior, e revela poderes e limites bastante interessantes
em sua operação que devemos levar em conta a partir de agora. E, como relação multigrade,
ela demonstra todos os significados dessa categoria, a saber, ela é uma relação multi-aridade,
multi-ordem, multi-posição e multi-lugar. Além disso, ao exercer toda essa riqueza de
operação numa ocorrência concreta, acreditar será vista também como uma relação criadora
de fatos especiais.
Cada um desses três pontos, porém, precisa ser tratado separadamente. De modo que,
para examiná-los bem, vamos dividir a subseção em três partes. A primeira delas vai
considerar acreditar como um agente movente, a segunda delas vai considerar acreditar como
uma relação multigrade e a terceira delas vai tratar acreditar como criadora de fatos especiais.
3.2.1.1 A relação acreditar é um agente movente
A relação acreditar proposta por Russell na primeira versão da Teoria RM pode ser
vista à luz da noção tomista de agente movente. A aproximação das duas noções indica que a
relação acreditar pode ser entendida como sendo o agente movente nas instâncias em que ela
ocorre como relação principal. Assim, tal qual um agente movente que se serve de um agente
instrumental para realizar sua operação, a relação acreditar se serve de uma relação
subordinada para formar uma crença.
177
Enquanto agente movente, que toma uma relação subordinada como instrumento, a
relação acreditar também estabelece uma relação hierárquica e uma relação de interação com
a relação subordinada que não podem passar despercebidas pela análise. Primeiro, ela mantém
uma relação hierárquica com a relação subordinada porque ela age sobre a subordinada, ela
serve-se da subordinada para seus próprios fins. Ela faz sua efetivamente a operação lógica da
relação subordinada e aplica a subordinada sobre outros termos logicamente compatíveis.
Consequentemente, ela poderá formar hierarquias de termos com diversas ordens lógicas,
dependendo dos termos sobre os quais ela aplica a subordinada. Segundo, ao exercer seu
governo sobre a relação subordinada, a relação acreditar mantém uma relação de interação
com a subordinada que resulta numa série de influências recíprocas. Ao servir-se da relação
subordinada, como ainda veremos melhor na próxima subseção, a relação acreditar é
influenciada por ela e a influência de vários modos.
A capacidade da relação acreditar envolver relações instrumentalmente também se
assemelha à capacidade do agente movente sugerido por Tomás no tocante ao número de
agentes movidos. Assim como um agente movente pode servir-se de um ou mais de um
agente instrumental, a relação acreditar pode servir-se de uma ou mais de uma relação
subordinada. Por exemplo:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
(71) Otelo acredita que Desdemona pensa sobre Romeu amar Julieta.
A frase (3) expressa uma ocorrência da relação acreditar, servindo-se
instrumentalmente de uma relação subordinada amar, formando o juízo de Otelo “Desdemona
ama Cássio”. Já a frase (71) mostra a relação acreditar, servindo-se de duas relações
subordinadas, a relação pensar sobre e a relação amar, para formar o juízo de Otelo
“Desdemona pensa sobre Romeu amar Julieta”.
Ao servir-se instrumentalmente de uma relação subordinada, acreditar faz uso da
capacidade lógica dessa relação ser aplicada a objetos e constitui uma unidade
hierarquicamente estruturada. E ao servir-se de mais de uma relação subordinada, a relação
acreditar faz uso efetivo da capacidade lógica de uma relação poder ser aplicada sobre uma
178
propriedade ou sobre outra relação e estabelece uma hierarquia lógica ainda mais alta. Cada
relação tomada como instrumento tem sua respectiva capacidade de ocorrer em primeira
ordem ou em ordem superior, dependendo dos termos que as instanciem. Mas, ao aplicar uma
sobre outra, impondo-lhes termos, a relação acreditar cria uma hierarquia lógica precisa, em
meio às possibilidades lógicas de ocorrências que elas oferecem.
As ocorrências da relação acreditar expressas em (3) e (71) ilustram perfeitamente o
que acabamos de afirmar. A relação amar pode ocorrer como relação de primeira ordem ou de
ordem superior. E a relação pensar sobre pode ocorrer como relação de primeira ordem ou de
ordem superior. Assim, em (3) a relação acreditar serve-se da relação amar para criar uma
hierarquia de dois níveis lógicos, ficando ela mesma no terceiro nível. Os objetos do primeiro
nível, Otelo, Desdemona e Cássio, são de ordem lógica zero. A relação amar é aplicada sobre
eles e ocupa o segundo nível, como relação de primeira ordem. E a relação acreditar, que fica
no terceiro nível, acima da relação tomada como seu instrumento, acaba ocorrendo como
relação de segunda ordem lógica. Ao determinar a ordem lógica da relação subordinada,
dando a ela termos precisos, dentre suas inúmeras possibilidades, acreditar termina por ter
sua própria ordem lógica determinada pela ordem lógica da relação subordinada.
Em (71), por sua vez, acreditar aplica a operação de uma relação subordinada para
ligar um objeto a uma operação de outra relação subordinada, esta última ligando dois
objetos, formando assim uma hierarquia lógica de quatro níveis e três ordens lógicas. No
primeiro nível estão os objetos Otelo, Desdemona, Romeu e Julieta, que têm ordem lógica
zero. No segundo nível está a relação amar, que ocorre como relação de primeira ordem
aplicada sobre os objetos Romeu e Julieta. No terceiro nível está a relação pensar sobre, que
ocorre como relação de segunda ordem, ligando um objeto a uma relação de primeira ordem.
E no quarto nível está a própria relação acreditar, que ocorre como relação de terceira ordem,
ligando o objeto Otelo a uma relação de segunda ordem.
A capacidade da relação acreditar, enquanto agente movente, formar hierarquias
lógicas cada vez mais altas, põe em relevo sua extraordinária capacidade de variar de ordem
lógica e de aridade, bem como de variar também no número de lugares e de posições dos seus
termos. Capacidades tais que, como vimos, caracterizam as relações multigrade. Desse modo,
acreditar não é apenas um agente movente como tantos, ela é um agente movente multigrade.
179
3.2.1.2 A relação acreditar é um agente movente multigrade
A relação acreditar proposta por Russell na primeira versão da Teoria RM também
pode ser considerada uma relação multigrade. Alex e Smiley, por exemplo, reconhecem que é
legítimo identificar a relação múltipla sugerida por Russell em 1911 com uma relação
multigrade.184 Segundo eles, apesar de alguns autores insistirem que a Teoria RM mantém ou
implica numa concepção de acreditar como sendo uma relação de grau fixo, o certo é que a
Teoria RM toma a relação acreditar e o predicado que a representa com sendo ambos de
aridade variável. O que é próprio das relações multigrade.185
Desse modo, podemos considerar a relação acreditar não somente como agente
movente, nos moldes propostos por são Tomás, mas, também, como um agente movente
multigrade, nos moldes propostos por Alex e Smiley. De fato, a relação acreditar faz sua a
operação lógica da relação subordinada e, assimilando suas possibilidades operacionais
lógicas, assimila também a ordem lógica, a aridade e o número de lugares e de posições dos
termos que utiliza por meio da relação subordinada.
Aliás, podemos até mesmo dizer que a relação acreditar é um agente movente
multigrade em todos os campos de significação da expressão “multigrade” que explicitamos
em 3.1.2.1.1. De fato, mesmo nas expressões mais simples, a relação acreditar sempre ocorre
como uma relação multi-aridade, multi-ordem, multi-posição e multi-lugar. Ela sempre
ocorre em segunda ordem ou noutra ordem superior, sempre ocorre com mais de dois lugares,
com aridade acima de dois e com mais de duas posições de termos.Consideremos essas
características separadamente.
3.2.1.2.1 Acreditar é uma relação multi-aridade
Entendendo a aridade de uma relação como o número de termos que ela envolve
numa ocorrência, como assumimos acima, podemos dizer que a relação acreditar é uma
relação multi-aridade porque ela não tem um número geral fixo de termos. Ela pode ocorrer
com qualquer número de termos acima de 2. Nas frases (72)-(74), por exemplo, ela é descrita
ocorrendo, respectivamente, com aridade 4, 5 e 7:
184 OLIVER; SMILEY, 2004, p. 627. 185Ibidem., p. 628.
180
(72) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia.
(aridade4)
(73) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia e Julieta.
(aridade5)
(74) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Hypatia, Julieta e
Cleópatra.
(aridade 7)
3.2.1.2.2 Acreditar é uma relação multi-ordem
Considerando a ordem lógica de uma relação a partir dos níveis lógicos em que ela
posiciona seus termos dentro do escopo de sua operação, podemos dizer que a relação
acreditar também é uma relação multi-ordem porque ela pode ocorrer em várias ordens
lógicas diferentes, a partir da segunda ordem, conforme seja a ordem lógica em que ela aplica
a relação subordinada. Nas frases (75)-(77), por exemplo, ela é descrita ocorrendo,
respectivamente, como relação de 2ª, 3ª e4ª ordem lógica:
(75) Otelo acredita que Desdemona admira Cássio.
(2ª. Ordem) (1ª. Ordem)
(76) Otelo acredita que ser belo é uma qualidade.
(3ª. Ordem) (1ª. Ordem) (2ª. Ordem)
(77) Otelo acredita que ser qualidade é uma propriedade de 2ª ordem.
(4ª. Ordem) (2ª. Ordem) (3ª. Ordem)
3.2.1.2.3 Acreditar é uma relação multi-posição
Considerando que a posição de um termo é sua colocação dentro de um lugar na
relação, podemos dizer que a relação acreditar é uma relação multi-posições também porque
ela não tem um número fixo de posições para seus termos. Ela demanda sempre mais de três
posições de termos nas crenças relacionais e, tanto pode posicionar um termo em cada lugar,
181
como pode posicionar vários termos num lugar, conforme sejam a sua intenção e as
possibilidades lógicas da relação subordinada. Haja vista que ela assimila os lugares e as
posições que faz uso por meio da relação subordinada. Como podemos ver abaixo, retomando
as frases (72)-(74), ela é descrita posicionando seus termos, respectivamente, em 4, 5 e 7
posições. Em (72) cada posição coincide com um lugar, em (73) o quarto lugar abriga duas
posições e em (74) o terceiro lugar abriga duas posições, enquanto o quarto lugar abriga três
posições.
(72) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia.
B < o; F; d; h>
(73) Otelo acredita que Desdemona lutou com Hypatia e Julieta.
B < o; F; d; h, j>
(74) Otelo acredita que Desdemona e Cássio lutaram com Hypatia, Julieta e
Cleópatra.
B < o; F; d, c; h, j, k>
3.2.1.2.4 Acreditar é uma relação multi-lugar
Considerando que um lugar de termo ou de termos numa relação se identifica com o
papel lógico que aquele termo ou aqueles termos desempenha(m) na relação, podemos dizer
que a relação acreditar é, finalmente, uma relação multi-lugar. Ela não tem um número fixo
de lugares de termos. Ela sempre pode ocorrer com mais de dois lugares, podendo abrigar um
termo ou vários num mesmo lugar, dependendo da relação subordinada que usar. Haja vista
que ela assimila os lugares que faz uso por meio da relação subordinada. Podemos ver isso
nos exemplos abaixo: na frase (78) ela é descrita ocorrendo com 4 lugares, e nas frases (79)-
(80), ela é descrita ocorrendo com cinco lugares. Em (78)-(79) cada lugar abriga um termo, já
em (80) o quarto e o quinto lugares, respectivamente, abrigam dois termos.
(78) Otelo acredita que Desdemona admira a virtude.
B ˂ o; A; d; v ˃
(79) Otelo acredita que Desdemona entrega uma carta a Romeu.
182
B ˂ o; E; d; c; r ˃
(80) Otelo acredita que Desdemona gosta mais de Cássio e Romeu do que de Julieta
e Hypatia.
B ˂ o; L; d; c, r; j, h ˃
Assim, além de não ser uma relação com número fixo de lugares, devemos
acrescentar, a relação acreditar pode ocorrer contendo lugares que são multi-posições, isto é,
que podem ocorrer com vários termos.
3.2.1.3 A relação acreditar é um agente movente multigrade criador
A relação acreditar é uma relação criadora. Ela cria um fato novo cada vez que
ocorre efetivamente, cada vez que se serve de uma relação subordinada para ligar certo
número de termos, mesmo que esses termos se encontrem ligados no mundo. Ela cria um fato
novo, porque ela forma um complexo representativo daquele fato existente no mundo e o
complexo que ela forma, até então, não existia. Antes de sua ocorrência, os elementos do fato
estavam ligados efetivamente no mundo, mas agora eles também estão ligados efetivamente
na relação acreditar.
Além disso, ela também cria um fato novo quando liga termos que não estão ligados
no mundo. Quando o ciumento Otelo, por exemplo, julga que Desdemona ama Cássio, ele
está ligando, no juízo, duas coisas que não se encontram ligadas desse modo no mundo. E esta
crença de Otelo é um fato. O seu ato de juízo tem um caráter ontológico, isto é, a sua crença
existe ontologicamente. Ela é um modo de ser de coisas que não se encontram assim no
mundo naquele momento.
A crença de Otelo, bem como toda crença falsa, não representa algo existente no
mundo, mas ela é um ente mental. Ela reuniu os elementos, mesmo sem eles se encontrarem
reunidos assim no mundo, e fez dessa reunião um fato especial, existente na crença de Otelo
apenas. Salienta-se assim que acreditar é uma relação que tem o poder de ligar os elementos
no juízo e criar fatos mentais que representam ou não fatos do mundo. Tais fatos mentais, são
diferentes dos fatos extra-mentais em muitos aspectos, mas, sobretudo, no tocante a possuir
um valor de verdade. Pois, justamente porque pode criar esses fatos especiais, que
183
representam o mundo existente ou outro mundo possível, que é que acreditar temum valor de
verdade, que ela pode ser verdadeira ou falsa.
Isso nos adverte que é preciso distinguir bem o campo de operação da relação
acreditar e o campo de operação da relação subordinada. A relação acreditar é quem cria o
fato novo, ligando mentalmente os termos da crença, operando efetivamente com eles por
meio da operação lógica da relação subordinada. Como Russell afirmou, na versão da Teoria
RM de 1912, a relação acreditar une todos os termos, os objetos e a relação subordinada, num
único juízo. Ela é a cola que, juntando os termos por meio da relação subordinada, forma uma
unidade diferente de qualquer outro fato extra mental. E a relação subordinada age no campo
lógico, ela é tomada logicamente, pela relação acreditar, para agir logicamente também.
Encontrá-la operando de forma correspondente ao uso que acreditar faz dela, isto é, operando
efetivamente também é totalmente circunstancial. Certo é que, enquanto termo da relação
acreditar, a relação subordinada só opera no campo lógico. Correta ou incorretamente,
verdadeira ou falsamente, enquanto termo da relação acreditar, ela só opera no campo lógico.
Agora, tendo bem clara a distinção dos campos em que operam as duas relações nas
instâncias da relação acreditar, vamos reler com mais cuidado a natureza e a operação da
relação subordinada.
3.2.2 Relendo a natureza e a operação da relação subordinada na Teoria RM
A exemplo do que fizemos acima com a relação acreditar, vamos agora dirigir a
atenção para a relação subordinada, à luz dos ganhos adquiridos ao longo da primeira seção
deste capítulo. Com isso, queremos notar que a relação subordinada se identifica com o
agente movido proposto na teoria de são Tomás de Aquino, mas, que também não deixa de ter
sua natureza própria. Por conseguinte, ela tanto ocorre na crença como um termo subordinado
e operante, ao mesmo tempo, determinando e sofrendo influência na relação acreditar.
Dada a importância desses três aspectos, vamos, mais uma vez, dividir a subseção
em três partes. A primeira, para considerar a relação subordinada em sua operação própria. A
segunda, para considerar a relação subordinada como agente movido. E a terceira, para
considerar a relação subordinada em seu aspecto dialético de determinar e sofrer certa
determinação dentro do escopo da relação acreditar.
184
3.2.2.1 A relação subordinada em sua operação própria
A relação que ocorre dentro do escopo da relação acreditar é uma relação
subordinada, contudo, isso não deve ocultar o fato de que ela também é um agente próprio
quando age por si mesma. E, por isso mesmo, ela deve ser vista como uma coisa e outra.
Assim, antes de pensar a relação subordinada como agente movido, convém primeiro
entendê-la em sua operação própria, pois, ela tem uma natureza com possibilidades e
exigências próprias que a relação acreditar toma como instrumento lógico no seu agir efetivo.
Tendo uma natureza própria, a relação subordinada entra numa relação dinâmica
com a relação movente quando é tomada como instrumento desta última. A natureza própria
da subordinada obriga a relação movente a respeitar suas exigências operacionais, enquanto
dispõe para ela suas possibilidades lógicas. Ela pode ser, por exemplo, de natureza simétrica
ou assimétrica e de aridade fixa ou variável e a relação movente terá de respeitar isso e operar
com isso. Sendo de natureza assimétrica, para ilustrar mais concretamente, ela determina
lugares e posições diferentes para seus termos e impõe a eles papéis lógicos diferentes. E ao
fazer isso, estabelece entre eles um sentido que vai de um ou mais de um termo para algum
outro, ou alguns outros termos, e isso deve ser levado em conta pela relação movente, a
relação acreditar.
Além disso, a relação subordinada tem possibilidades próprias de ocorrer em ordens
lógicas diferentes. Ela envolve termos de tipo lógico diferente dela ou de ordem lógica
diferente da ordem lógica dela e constitui com eles uma hierarquia contituída de várias ordens
lógicas. Por conseguinte, se ela envolver termos objetos, então, ela será uma relação de
primeira ordem. Se ela for aplicada a termos de primeira ordem, então ela será uma relação de
segunda ordem. E assim por diante, dependendo das possibilidades de sua natureza. E a
ordem lógica que ela assume, por sua vez, determina a ordem lógica da relação movente, que
se coloca uma ordem lógica acima dela e coloca os termos objetos numa ordem lógica abaixo
dela quando a envolve instrumentalmente. Assim, a natureza lógica própria da relação
subordinada determina relação movente na formação de um sentido vertical hierárquico.
3.2.2.2 A relação subordinada é um agente movido
185
Os críticos da Teoria RM criaram um falso dilema sobre a relação subordinada
dentro do contexto da relação acreditar. Para eles, a relação subordinada que o sujeito da
crença tem diante da mente quando julga deve ser uma relação universal sem vínculo nenhum
com termos ou uma relação instanciada. Se for uma relação universal, ela não terá nenhum
sentido, porque uma relação universal não demanda termos e se for uma relação instanciada a
Teoria RM fica desnecessária, porque já haverá um complexo pré-definido. Tal questão,
contudo, está apoiada numa confusão entre os níveis ontológicos e lógicos da relação
subordinada. Quando um sujeito forma uma crença, ele está em relação com a relação
subordinada, enquanto relação universal, isto é, como entidade objetiva. Mas, ao operar
mentalmente com aquela relação, ele realiza um trabalho lógico. Ele não manipula
ontologicamente a relação subordinada, ele opera com ela logicamente. Procedimento natural
comum aos seres humanos que, freqüentemente, se relacionam efetivamente com objetos,
relações e propriedades, depois pensam sobre tais coisas, logicamente, tanto como são como
quanto acreditam que poderiam ser.
A relação subordinada enquanto entidade objetiva, então, é tomada como relação e é
posta para funcionar logicamente como agente movido. Ela é tomada como agente lógico na
operação efetiva da relação acreditar, que é o agente principal ou movente. E assim, quando
usada logicamente como instrumento, a relação subordinada sofre o governo da relação
movente e “cede” a ela sua operação. Ela se torna um meio lógico para a relação acreditar
ligar os demais termos e coloca à disposição da relação acreditar as suas possibilidades
operacionais lógicas.
Assim, enquanto agente movido pela relação principal, a relação subordinada é usada
para fixar um fim pretendido pela relação principal. Ela participa ativamente da operação da
relação principal. É movida logicamente, mas é agente. Sua contribuição para a realização da
operação da relação acreditar é única e insubstituível frente aos demais termos da relação
movente. Primeiro, sem a sua atuação instrumental a relação acreditar não alcança uma
instanciação devida. De fato, sem o uso lógico instrumental da relação subordinada a relação
acreditar só poderá formar uma justaposição de termos, mas nunca conseguirá um juízo
relacional completo. Segundo, a relação instrumental subordinada é que permite à relação
acreditar formar logicamente uma unidade com os termos julgados, pois é por meio da
relação subordinada que a relação acreditar estabelece uma ligação lógica entre um termo e
outro. De modo que, caso a relação acreditar não disponha de uma relação instrumental, isto
186
é, caso o sujeito da crença não tenha acquaintance com uma relação que lhe possa servir de
instrumento, não conseguirá formar um juízo com ela, não conseguirá aplicá-la a outros
termos.
3.2.2.3 A relação subordinada é um agente movido determinante e determinado
A relação subordinada, tomada como agente movido, então, pode ser vista como um
termo determinante e determinado em sua interação com a relação acreditar. Por conseguinte,
é importante ter um olhar dialético para perceber corretamente em que consistem estes dois
aspectos. Por um lado, a relação subordinada determina a relação acreditar, porque ela
determina todas as suas possibilidades de aplicação e a relação acreditar tem que operar
dentro dessas possibilidades. Ela tem sua natureza própria e impõe todas as suas exigências e
possibilidades de operação para que a relação acreditar possa tomá-la como instrumento.
Por outro lado, a relação acreditar escolhe uma possibilidade de ocorrência
específica da relação subordinada cada vez que opera com ela. E, ao fazer isso, a relação
acreditar determina a relação subordinada, participa ativamente da determinação lógica da
aridade e da ordem lógica da subordinada, bem como da determinação do sentido dos termos
envolvidos logicamente por meio da relação subordinada. Ou seja, ela determina a relação
subordinada numa ocorrência lógica específica, pois, a aplica a termos determinados
escolhidos intencionalmente por ela.
Essa influência recíproca das duas relações é tão importante para entender a
interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada que vale a pena ilustrá-la
com uma metáfora também. Trata-se da metáfora do atualizador de pressão e do posicionador
inteligente da válvula de passagem.
O posicionador inteligente da válvula de pressão é um dispositivo acoplado a uma
haste da válvula de controle de passagem de líquido para otimizar o seu funcionamento. O seu
objetivo é operar com o sinal que indica a pressão na saída de líquido. Se a saída de líquido
está fluindo bem a pressão na válvula de passagem diminui e ele emite uma ordem para que o
posicionador inteligente adote uma posição que faça a valvular abrir ainda mais a passagem.
Se o volume de saída aumenta, aumenta também a pressão sobre o atualizador e ele emite
outra ordem para que o posicionador inteligente adote uma nova posição e faça a válvula
187
começar a fechar. Há, portanto, uma interação dinâmica entre o atualizador de pressão e o
posicionador inteligente da haste da válvula de passagem, conforme a pressão da passagem de
líquido no momento seja aceitável ou não. O posicionador inteligente determina todas as
possibilidades de ocorrência, isto é, todas as possibilidades de ser posto na posição x1, x2, x3,
..., xn, a fim de permitir a passagem de líquido adequada. E o atualizador determina uma
posição específica a cada momento para o posicionador inteligente, dentro das possibilidades
determinadas por este.
Desse modo, o atualizador de pressão autoriza que o posicionador inteligente comece
permitindo que a válvula libere uma passagem x de líquido, e continue abrindo a válvula e
permitindo um volume maior x1, x2, x3, ..., xn, até que o aumento do volume de líquido faça o
líquido represar e causar uma pressão oposta suficiente para causar uma pressão oposta no
atualizador e ele ordene uma mudança no comportamento do posicionador inteligente para
que este reposicione a haste da válvula e diminua a passagem de líquido. A mudança no
comportamento do posicionador inteligente, então, começa mover a haste da válvula para uma
nova posição ordenando que a válvula comece a fechar e redimensione o volume de líquido
permitido assumindo uma nova ordem de passagem xn,..., x3, x2, x1. Com isso, a diminuição
da pressão volta a alterar o atualizador e este volta a dar nova ordem de comportamento ao
posicionador inteligente, que por sua vez volta a mover a haste de controle da válvula para a
outra direção, reiniciando o processo de aumento de passagem de líquido, em busca de um
novo posicionamento adequado. Assim, o atualizador de pressão e o posicionador inteligente
se autorregulam no posicionamento do volume de líquido certo para a capacidade da
tubulação, cada um com sua operação específica e sua respectiva influência sobre o outro.
De modo análogo, a interação entre o atualizador de pressão e o posicionador
inteligente da haste de controle da válvula assemelha-se à interação da operação da relação
acreditar com a operação da relação subordinada. Assim como o atualizador de pressão ajusta
o posicionador inteligente numa posição específica, a relação acreditar determina a relação
subordinada numa ocorrência específica, aplicando-a sobre os termos e determinando por
meio dela a direção dos termos e os papéis lógicos que cada um deve desempenhar se ela for
assimétrica. E assim como o posicionador inteligente determina suas possibilidades de
operação, impondo ao atualizador suas condições de atuação, a relação subordinada determina
todas as suas possibilidades de aplicação e impõe à relação acreditar suas condições para ser
um agente instrumental movido. E assim, tal qual o atualizador de pressão e o posicionador
188
inteligente na válvula de passagem, as duas relações se autorregulam com suas operações,
possibilidades e limites lógicos próprios. Cada uma determinando, a seu modo, o trabalho da
outra.
3.3 REVENDO O PROBLEMA DA DIREÇÃO E SUAS DIFICULDADES
ADJACENTES
Nesta terceira e última seção do Capítulo Terceiro, com os ganhos obtidos até aqui,
vamos revisitar as críticas à Teoria RM, que foram apresentadas no Primeiro Capítulo, bem
como as dificuldades adjacentes ao Problema da Direção e o próprio Problema da Direção,
que foram tratados no Segundo Capítulo. A relação hierárquica e a relação de interação
dinâmica estabelecida entre a relação acreditar, que opera no campo efetivo, e a relação
subordinada, que opera no campo lógico, trabalhadas nas seções anteriores, permitirão agora
uma nova e fecunda releitura daquelas dificuldades e desse Problema. Para isso, dividiremos a
presente seção em cinco subseções. A primeira subseção revê a crítica à Teoria RM e
responde a cada um dos críticos apresentados no Primeiro Capítulo.
A segunda subseção apresenta uma saída para a dificuldade da variação na ordem
lógica, na aridade e no número de lugares e de posições dos termos na relação acreditar. A
terceira subseção apresenta uma saída para o Problema da Direção Larga e o Problema da
Direção Estreita. A quarta subseção apresenta uma saída para as dificuldades explicativas
relativas à identificação dos papéis lógicos dos termos relata nas ocorrências da relação
acreditar. E, finalmente, a quinta subseção apresenta uma saída para a dificuldade com o
simbolismo formal nas ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação subordinada.
3.3.1 Crítica à crítica da Teoria RM
A constatação de que a relação acreditar é um agente movente multigrade e a
relação subordinada é um agente movido, nos permite agora reconsiderar a crítica da Teoria
RM exposta ao longo da subseção 1.3.3 do Primeiro Capítulo. Haja vista que, para
189
infelicidade dos críticos apresentados, as posições alegadas sobre a relação entre acreditar e a
relação subordinada são todas inadequadas. Retornemos a elas, uma a uma, para deixar isso
mais claro.
3.3.1.1 Respondendo à crítica de Stout
Stout acusou defeitos na Teoria RM em três pontos: a relação de correspondência
inexiste, a relação subordinada é um mero termo na crença e o Problema da Direção é tão
grave que a relação subordinada pode ser posta no lugar dos objetos em um ato de crença.
Ora, antes de tudo, devemos notar que ele se deteve de modo predominante na segunda versão
da Teoria RM e, a partir dela, procurou assumir até às últimas consequências, a tentativa
russelliana de tratar a relação subordinada como um mero objeto na ocorrência da relação
acreditar, sendo essa pressuposição superada pelo tratamento que proporcionamos da relação
subordinada como um agente movido, todas as críticas de Stout desmoronam.
A crítica à relação de correspondência é a primeira a ruir, pois, Stout se apoiava na
ideia de que a relação subordinada tem que estar relacionando efetivamente os objetos diante
da mente que acredita, a fim de que haja correspondência com o fato, e como ela não está
relacionando efetivamente os objetos diante da mente, a correspondência, simplesmente, não
existe. Mas, como vimos, a relação subordinada não tem que estar relacionando efetivamente
os objetos diante da mente que acredita. Ela é posta relacionando logicamente os objetos na
crença, isto é, ela é posta representando uma situação logicamente possível. Se houver o fato
que ela representou nessa situação, então o juízo será verdadeiro. A correspondência
requerida pela Teoria RM não é entre a relação subordinada ocorrendo como relação
relacionado efetivamente na crença e ocorrendo efetivamente no fato. A correspondência,
quando houver, será entre a relação subordinada ocorrendo como relação relacionando
logicamente na crença, como representação, e ocorrendo efetivamente no fato apenas.
Quanto ao estranhamento de Stout, por que a relação acreditar não aparece no fato
correspondente, a resposta é que ela não precisa mesmo aparecer no fato correspondente que
torna o complexo de crença verdadeiro, porque ela é a relação principal que forma o fato geral
da crença. Ela só precisa aparecer no fato correspondente ao complexo formado por ela
envolvendo todos os constituintes em questão. Ao passo que, no complexo que corresponde
190
ao conteúdo subordinado que ela gerou, só precisa aparecer a relação subordinada mesmo, se
o conteúdo lógico formado por ela for verdadeiro. Desse modo, percebemos que Stout não
distingue cuidadosamente os seguintes níveis na correspondência:
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
↓ ↓
Ocorrência efetiva . Ocorrência lógica.
↓ ↓
Fato correspondente: geral Fato correspondente: do conteúdo lógico subordinado.
O fato em que a relação acreditar deve aparecer (e aparece mesmo) é o fato geral, formado
pela instanciação da relação acreditar envolvendo todos os constituintes da crença. Ele é o
fato que corresponde á ocorrência efetiva da relação acreditar ou, se se preferir, ele é a
relação acreditar ocorrendo efetivamente com aqueles respectivos constituintes. Enquanto
que o fato requerido para tornar o complexo julgado verdadeiro só requer a ocorrência da
relação subordinada na crença. Ele é o fato pensado e acreditado como possível. Ele, se
existir, corresponde apenas ao conteúdo que a crença gerou com o uso da relação
subordinada, isto é, com o uso da relação que ocorre na crença relacionando logicamente
apenas.
Por conseguinte, a crítica de Stout afirmando que a relação subordinada é um mero
termo na ocorrência da relação acreditar e que só pode ocorrer assim, não se sustenta mais,
uma vez que a mudança que proporcionamos no quadro metafísico das duas relações permite
capturar corretamente a operação delas. A relação subordinada é um termo da crença, sim,
mas, ela é um termo especial. Sua função é única e indispensável. Ela é uma relação e é posta
na crença como relação relacionando logicamente. Se assim não for, a relação acreditar não
consegue formar uma unidade com os constituintes em questão. Se assim não for, a relação
acreditar só consegue gerar uma mera seqüência, sem sentido lógico, dos constituintes.
A acusação de Stout de que a Teoria RM postula um sujeito que, estando ligado à
relação universal, não pode asserir tal relação numa ocorrência da elação acreditar como
relação relacionando também está apoiada num pressuposto insustentável. Por trás dessa
acusação está o pressuposto de que a relação subordinada, enquanto relação universal, é um
191
objeto comum para o sujeito do juízo, totalmente diferente do que seria como relação
relacionando. Pressuposição bastante questionável, pois, de fato, há diferenças a serem
notadas na relação do sujeito com uma relação universal e na relação de um sujeito com uma
relação relacionando. Com a relação universal ele mantém uma relação mental como, por
exemplo, a relação que alguém mantém com vermelhidão quando pensa a cor vermelha em si.
E com a relação relacionando efetivamente ele mantém uma relação que a considera
constituinte de um fato determinado no mundo.
Tais diferenças, porém, não implicam que a relação universal seja uma entidade
ontologicamente diferente da relação relacionando. Ela é a mesma relação nas duas
ocorrências. E porque ela é a mesma relação nas duas ocorrências, o sujeito pode conectar-se
com ela e pode pensar sobre ela nos dois modos. O sujeito pode pensá-la como relação em si e
pode pensá-la como constituinte de um fato específico possível, relacionando logicamente os
objetos, mesmo que ela não esteja ocorrendo efetivamente em tal fato. Até por que, como
Russell assumiu, “uma relação relacionando é distinguida da relação em si mesma pelo
indefinível elemento da asserção”.186 Ela é a mesma relação quando o sujeito a toma como
conceito em si ou quando ele a toma como asserção. Não está vedada ao sujeito a
possibilidade de apreendê-la e pensá-la de um jeito ou de outro se ele estiver acquainted com
ela.
E, finalmente, a crítica de Stout ao Problema da Direção também desmorona a partir
do momento que não consideramos mais a relação subordinada como um mero objeto da
crença. Enquanto agente movente multigrade, a relação acreditar aplica a relação subordinada
aos demais termos como um agente movido. E enquanto agente movido, a relação
subordinada determina as condições para que a relação acreditar opere com ela. Não existe
aquela fragmentação inconciliável dos termos da crença que foi pensada por Stout. Os termos
da crença estão separados, mas, eles são capazes de se combinarem. Eles são capazes de se
combinarem e eles têm condições lógicas para que isso aconteça. Condições essas, que são
determinadas logicamente pela relação subordinada. Pois, sendo uma relação assimétrica, a
subordinada tem uma direção, impõe papéis lógicos diferentes e determina lugares adequados
para os objetos, quando os envolve logicamente.
186 RUSSELL, 1903, p. 100.
192
3.3.1.2 Respondendo à crítica de Griffin
Griffin está correto em dizer que a relação subordinada com a qual o sujeito está em
relação num ato de crença é a relação universal e não a relação particularizada. Uma vez que a
crença pode ser falsa, a relação subordinada não pode estar particularizada diante da mente da
mente do sujeito. Mas disto não se segue que o sujeito não pode estar em relação com uma
relação universal e acreditar nessa relação ligando dois objetos possíveis, nem que a teoria da
correspondência não obtém sucesso se ele acreditar nela ligando dois objetos.
Ao contrário, nós mostramos que a Teoria RM pode tratar a relação subordinada de
modo bem diferente, a saber, como um agente movido, que opera logicamente sob o comando
da relação acreditar. Assim, podemos dizer que o sujeito da crença está em relação com a
relação universal, porque ele está acquainted com ela, e se ele está acquainted com ela, então,
ele pode operar com ela logicamente ou reconhecê-la em qualquer instância efetiva, pois não
a tem como um objeto comum, mas, como uma relação com todas as suas possibilidades
lógicas. E é exatamente porque ele pode operar com ela em todas as suas possibilidades
lógicas, mesmo sem saber se ela se encontra particularizada num fato, que a crença pode ser
falsa, isto é, que o sujeito da crença pode julgá-la ocorrendo numa instância quando, de fato,
ela não ocorre. A noção de correspondência sugerida pela Teoria RM, de modo algum fica
comprometida.
Percebe-se, pois, que Griffin terminou caindo no mesmo engano de Stout porque, a
seu modo, ele também tratou a relação subordinada como um objeto comum na relação
acreditar. Também para ele, o fato de estar relacionado com uma relação universal, só dá ao
sujeito da crença o direito dele operar com ela como um objeto do juízo, isto é, de pensá-la ao
lado de outros objetos. Mas, isso parece bastante problemático e contra intuitivo. Não é assim
que percebemos as coisas acontecerem. Frequentemente, as pessoas que se mostram
familiarizadas com uma relação produzem crenças com tal relação ocorrendo como objeto ou
ocorrendo como relação relacionando. O olhar atento sobre esse uso natural de uma relação,
envolvida pela relação acreditar, logo percebe que aquela relação subordinada não é um
objeto comum da crença, mas, sim, um termo especial, cujo uso implica o domínio de suas
características identificadoras e de suas capacidades lógicas operacionais.
Convém, ainda, levantarmos dois questionamentos à crítica de Griffin. Primeiro, o
que é mesmo uma relação “particularizada”? É uma “parte” de uma relação? Ora, não se pode
193
abandonar a arena sem avisar ao oponente. Griffin usa uma expressão nova para o universo
ontológico russelliano, sem oferecer a devida justificativa para ela, e no universo ontológico
russelliano uma relação é um universal. Ela ocorre numa instância particular, ou em várias
instâncias ao mesmo tempo, mas ela é um universal. Se uma relação “particularizada” for uma
relação ocorrendo numa instância particular, então, ele deveria dizer isso diretamente. E se
isso não for o caso, ele teria que dizer também.
Segundo, quando uma relação ocorre como relação numa instância particular ela
ocorre relacionando efetivamente. Mas, também pode acontecer que uma relação ocorra como
relação, numa instância particular, apenas relacionando logicamente. Se ela ocorrer
relacionando efetivamente será a relação principal da ocorrência, claro, mas isso não impede
que outra relação ocorra como sua subordinada relacionando logicamente apenas. E isso é
totalmente compatível com a Teoria RM.
Desse modo, devemos perguntar a Griffin, a Teoria RM não requer que a relação
subordinada ocorra no juízo como “relação relacionando” em que sentido, efetivamente ou
logicamente? Claro, Russell usou a expressão “relação relacionando” para designar a relação
principal, aquela que forma uma unidade com todos os termos numa ocorrência e a literatura
filosófica posterior acentuou muito essa posição. Mas, como temos observado, esse não é o
único modo de uma relação ocorrer “relacionado”. Ela também pode, por exemplo, ocorrer
relacionando logicamente, no juízo, ou verbalmente, na linguagem, subordinada à operação de
outra relação. Aqui reside a maior falha de Griffin, em não considerar que uma relação pode
ocorrer como relação relacionando de diferentes (e compatíveis) modos.
Por conseguinte, podemos responder à crítica de Griffin dizendo um “sim”, a Teoria
RM é capaz sim de distinguir o juízo de Otelo que Desdemona ama Cássio, do juízo de Otelo
que Cássio ama Desdemona. Ela pode distinguir esses juízos um do outro, neste contexto,
exatamente porque a relação subordinada não é um mero termo no juízo. Ela é um agente
movido, sob o comando da relação acreditar, que determina as condições da direção, os
papéis lógicos e os lugares dos termos. O que faz com que Otelo opere com a operação lógica
dela para ligar os termos em diferentes direções. Ou, dito de outro modo, o que faz com que
Otelo relacione os termos por meio da operação relacionante dela e os posicione em direções
e com significados diferentes.
194
3.3.1.3 Respondendo à crítica de Wahl
A análise de Wahl está correta em afirmar que o pressuposto mais pernicioso, usado
até então, para interpretar a Teoria RM é o pressuposto de que a relação subordinada é um
objeto no mesmo nível lógico dos demais termos nas ocorrências da relação acreditar. E ela
está certa, sobretudo, em afirmar que isso é um pressuposto. Acontece, porém, que todo
pressuposto deve ter razões sólidas para se sustentar este não tem. Este é totalmente
inadequado, ele não possibilita a formação de crenças relacionais e não captura
adequadamente as operações das duas relações envolvidas num ato de crença simples, a
operação da relação subordinada e a operação da relação principal. Por isso, outro pressuposto
melhor e mais condizente com a Teoria RM pode e deve suplantar esse que a sua análise
aponta.
Ora, como temos mostrado, a relação subordinada ocorre, nas instancias de crença,
como relação relacionando logicamente. Se assim não fosse, não haveria crença relacional
alguma. O que Wahl e os críticos não notam com clareza é o modo e a natureza dessa
operação relacionante da relação subordinada ocorrer dentro da crença, isto é, como ela opera
sem deixar de ser subordinada à relação acreditar. Para entender isso é preciso considerar a
relação subordinada tomada como objeto especial e levar em conta tanto o fato de que ela
ocorre como subordinada, quanto o fato de que ela ocorre como relação operante. Ou seja, o
pressuposto adequado para entender a Teoria RM é o que nós propomos, a saber, que ela é
uma agente movida. Ela é uma agente lógica, que determina as condições de sua aplicação, e
ela é movida, porque é operada por outro princípio, a relação acreditar, que age sobre ela.
Nesse pressuposto que propomos, então, a direção dos termos numa ocorrência da
relação acreditar não é algo gratuito. O sujeito da crença não posiciona os termos
aleatoriamente. Ele segue as determinações da relação subordinada para atribuir os termos nos
lugares e papeis lógicos corretos, conforme determina a relação subordinada com a qual a
crença opera. A diferença entre o juízo “A acredita que aRb” e o juízo “A acredita que bRa”
pode ser perfeitamente contabilizada pela análise e, o que é mais importante, ela pode ser
operacionalizada pelo sujeito da crença também. Este, escolhe que juízo quer formar,
conforme sua intenção e com base nas determinações lógicas da relação subordinada.
Por fim, ao admitirmos que a relação subordinada funciona como relação
relacionando logicamente sob a operação efetiva da relação acreditar, cai por terra também a
195
acusação de Wahl de que a Teoria RM é insensível para acolher relações de ordem superior.
Como temos mostrado, para poder instanciar-se a relação acreditar deve respeitar as
condições e determinações lógicas da relação subordinada, caso contrário não poderá operar
com ela, e isso, claro, inclui respeitar tanto as possibilidades da relação subordinada ocorrer
como relação de primeira ordem quanto as possibilidades dela ocorrer como relação de ordem
superior, dependendo de sua natureza comportar graus de ordem superior. Por conseguinte, a
Teoria RM não somente comporta a relação subordinada como relação relacionando
logicamente, sem conflito nenhum com a operação principal da relação acreditar, como
também comporta a relação subordinada operando como relação de primeira ordem e/ou de
ordem superior.
3.3.1.4 Respondendo à crítica de Miller
Em sua interpretação da Teoria RM, Alexander Miller faz uma formidável separação
das operações da relação acreditar e da relação subordinada no tocante à determinação do
sentido dos termos. Ele considera que a ordem dos termos deve ser imposta ou pela relação
acreditar ou pela relação subordinada. Infelizmente, para ele, porém, essa não é a única e nem
a melhor maneira de pensar a Teoria RM.
Na primeira versão da Teoria RM, como temos mostrado, Russell não indicou em
que consiste, exatamente, a participação da relação acreditar na determinação da direção dos
termos. Ele admitiu que a relação subordinada, sendo assimétrica, tem uma direção conforme
vai de A para B e outra conforme vai de B para A e que a relação subordinada já deve ser
pensada com a direção apropriada. Ora, admitimos que Russell não foi totalmente feliz com
esse passo. Ao fazer isso, ele deixou a responsabilidade da direção toda com a relação
subordinada e sugeriu que a participação da relação acreditar consiste em já apanhar a relação
subordinada, “com a direção apropriada”.187Mas, não precisamos seguir Russell nessa escolha
infeliz e não temos motivo para seguir Miller em sua radicalização de que ou uma relação ou
a outra (sozinha) impõe a ordem aos termos.
No nosso entender, a relação subordinada opera logicamente de modo determinante
na imposição da ordem dos termos, na medida em que ela dá as condições lógicas para a
187 RUSSELL, 1910, p. 184.
196
direção deles. E a relação acreditar também opera de modo determinante na imposição da
direção dos termos numa instancia determinada, na medida em que atribui os termos
efetivamente nas condições dadas pela relação subordinada. Portanto, a ordem dos termos na
crença de Otelo não é imposta pela relação amar sozinha nem pela relação acreditar sozinha,
como sugere Miller. A ordem dos termos resulta da operação integrada das duas relações.
Cada uma em seu campo específico. Por conseguinte, no nosso entender, Miller parece certo
em dizer que se a relação subordinada fora responsável (única) pela ordem dos termos, a
relação acreditar proposta pela Teoria RM colapsa numa relação dual. Mas, ele parece errado
em assumir que ou é assim ou acreditar deve impor a ordem dos termos sozinha. Não
precisamos assumir nem uma coisa nem outra para pensar a Teoria RM.
Além do mais, Miller parece certo em dizer que, se acreditar impõe a ordem
(sozinha) sobre Desdemona e Cássio apenas, fica sem sentido justificar que uma relação de
quatro lugares impõe uma ordem sobre dois termos. Mas ele está errado em dizer que essa é a
sugestão da Teoria RM. Pois a Teoria RM sugere que se entenda a operação da relação
acreditar de modo não-distributivo, isto é, ligando, simultaneamente, o sujeito da crença, a
relação subordinada e os termos objetos. Quando ela ocorre não está impondo uma ordem a
Desdemona e Cássio apenas. Quando ela ocorre forma um complexo que envolve Otelo,
Desdemona, a relação amar e Cássio. E, ligando os quatro termos, impõe uma ordem a eles
onde, por meio da relação amar impõe uma ordem a Dedesmona e Cássio, isto é, ela impõe
uma geral aos quatro termos e a ordem dada a Desdemona e Cássio é uma ordem subordinada
a essa ordem geral.
Por fim, convém notar que a compreensão da relação de correspondência
desenvolvida por Miller, faz uma inversão bastante sutil no tocante ao primado entre o campo
lógico e o campo efetivo envolvidos nas ocorrências de crença, dificilmente aceita por Russel.
De acordo com ele, a ordem efetiva dos termos julgados teria que ser dada primeira, caso a
Teoria RM estivesse certa, e só depois a crença poderia impor aquela ordem aos termos. Mas,
Russell não assumiu isso, ele assumiu que se a ordem dada aos termos no juízo corresponder
à ordem efetiva dos termos no fato, então, o juízo será verdadeiro. Caso contrário será falso.
Mas, a imposição da ordem na crença independe da ordem dada na crença está ou não
efetivada num fato. A correspondência é uma condição lógica, necessária e suficiente, para a
verdade da crença, não uma condição efetiva, dada fora juízo. Ela é uma exigência lógica para
a verdade do juízo. Para ele, a ordem dos objetos na crença deve ser a mesma dos termos no
197
fato, sim e isso é uma condição que pode ocorrer ou não. Enquanto que para Miller a ordem
dos termos no fato deve ser a mesma dos termos na crença, mas, como uma determinação
efetiva da primeira sobre a segunda. Como uma lei reguladora imposta a partir do fato, a
ponto dele concluir que a crença só pode ocorrer se a relação subordinada já for dada de fato,
ou seja, a ponto de sustentar que a Teoria RM desemboca na teoria do juízo como relação
dual outra vez.
3.3.1.5 Dialogando com a defesa de Samuel Lebens
A defesa da Teoria RM feita por Samuel Lebens é sofisticada, pertinente e original.
Nelas nós encontramos, pelo menos, três importantes vantagens para a posição central de
nossa tese de que a Teoria RM apresentada na primeira versão é favorável a uma leitura bem-
sucedida e encontramos também uma importante limitação ou desvantagem, muito embora,
essa possa ser sanada facilmente. Consideremos primeiro as vantagens.
A primeira importante vantagem da interpretação que Samuel Lebens faz da Teoria
RM é que ela não trata a relação subordinada como um mero termo do juízo. Apesar de
Samuel, em parte, ainda acentuar bastante o fato da relação subordinada ser subordinada,
percebe-se que ele toma o cuidado de ressaltar que ela não é um objeto como os demais
objetos na crença.
A segunda vantagem da interpretação de Lebens é que ele procura não somente
constatar que todas as tentativas de interpretar a Teoria RM, anteriores a ele, partem do
pressuposto errado de considerar a relação subordinada um mero objeto da crença, mas,
sobretudo, constata as consequências desastrosas dessa posição gerando uma concepção de
problema do sentido estreito numa forma, praticamente, intransponível.
E, por fim, a terceira grande vantagem da posição de Lebens é que ele, muito
acertadamente, identifica de modo muito preciso o erro generalizado dos críticos da Teoria
RM no entendimento da sugestão de Russell, na versão de 1910, para que a relação
subordinada fosse aceita como estando diante da mente com um sentido. A saber, que todos
os críticos interpretaram a proposta de Russell como se ele estivesse assumindo que a relação
subordinada tem uma direção quando vai de A para B ( A → B), e
198
tem outra direção quando vai de B para A (A ← B).
Em contraste com essas importantíssimas vantagens da interpretação que Lebens faz
da Teoria RM, porém, encontramos uma significativa desvantagem. Trata-se do seu esforço,
visando justificar a posição de Russell, para interpretar a concepção de relação subordinada da
primeira versão da Teoria RM “como se ela apenas parecesse estar relacionando” no juízo, a
fim de ter um sentido. Como podemos entender sua proposta (e aceitação) de que Russell não
quis que a relação subordinada entrasse no juízo como relação relacionando, mas, apenas
parecendo relacionar?
Primeiro que tudo, precisamos notar que essa posição de Lebens pode incorrer no
risco grave de fazer alguém pensar que, ao executar o trabalho de formar uma crença o sujeito
apenas constrói uma justaposição dos termos querendo, simplesmente, que a relação
subordinada pareça estar relacionando. O indivíduo que for por esse caminho, sem dúvida,
chegará a um resultado desastroso, que nada tem a ver com a proposta de Russell na Teoria
RM. De fato, Russell nunca disse que uma crença é uma justaposição dos termos, mas, sim,
que a relação acreditar, ao instanciar-se, liga todos os constituintes formando uma unidade. E
isso que só pode acontecer se os termos subordinados estiverem ligados logicamente, não
justapostos.
Lebens parece se dar conta desse risco e atenua sua sugestão, de que à relação
subordinada basta parecer relacionar, afirmando que ao constituir uma ordem para os termos,
num ato de crença, o sujeito cria uma representação de um fato possível. Nesse caso, porém,
temos que adverti-lo que, se o sujeito da crença cria uma representação com a relação
subordinada e os objetos, então, a relação subordinada não está sendo posta como se
parecesse relacionar, mas, sim, como relacionando logicamente os objetos. De fato, com o
avanço de sua exposição, Lebens se revela tão inclinado a aceitar o caráter relacionante da
relação subordinada, que assume a relação acreditar como sendo, russellianamente, a
operação de predicar algo de algo ou ligar algo e algo.
Por fim, continuando a afastar-se da imagem de que a relação subordinada
“simplesmente parece relacionar”, Lebens termina assumindo que julgar ou acreditar já é dar
as condições de verdade do que é asserido. Ora, se acreditar já é dar as condições de verdade
do que é asserido, não somente fica sem cabimento falar de “juízos sem sentido lógico”, como
afirmar Lebens, mas, também fica sem cabimento falar que a relação subordinada só parece
199
relacionar. Pois, se o amor de A por B é a condição de verdade do juízo que A ama B, não
tem sentido afirmar que aquele juízo determina que essa seja sua condição de verdade se nele
a relação amar só estiver parecendo relacionar.
Por conseguinte, julgamos nossa proposta de que a relação subordinada é um agente
movido, que relaciona logicamente os termos sob o comando operacional da relação
acreditar, bem melhor do que a leitura de Lebens assumindo que à relação subordinada basta
parecer relacionar. E achamos que ela é melhor por duas importantes razões. A primeira delas
é porque ela corresponde melhor à exigência central feita por Russell de que, ao ligar ao ligar
os constituintes num ato de crença, a relação acreditar constitui uma unidade. E só haverá
uma unidade se os termos se integrarem, não se parecerem estar integrados.
A segunda razão é porque nossa proposta se harmoniza perfeitamente com as outras
posições de Lebens que consideram acreditar como sendo a operação de formar a
representação de um fato possível, isto é, como sendo a operação de ligar algo a algo,
constituindo assim as condições de verdade da representação formada, enquanto que a posição
dele assumindo que a relação subordinada só precisa parecer relacionar destoa totalmente
disso. De fato, se ele admite que acreditar é formar uma representação de um fato possível,
que liga algo a algo e já dá as condições de verdade do que é asserido, então, é porque a
relação subordinada não ocorre parecendo ligar os objetos, mas, ligando mesmo os objetos
sob o comando da relação acreditar.
3.3.2 Revendo as dificuldades explicativas da variação na relação acreditar
A solução para as dificuldades explicativas da variação, tanto na ordem lógica quanto
na aridade e no número de lugares, da relação acreditar se irradia a partir da relação
subordinada. Compreendida corretamente, como um agente movido, a relação subordinada,
por sua natureza, determina logicamente as suas possibilidades de ocorrências e,
consequentemente, obriga a relação acreditar a operar dentro dos seus limites e
determinações lógicas.
Assim, para aplicar devidamente isso aos três tipos de dificuldades relativas à
variação, vamos dividir essa subseção em três partes, a fim justificar como, nas possibilidades
da variação, se define a ordem lógica, a aridade e o número de lugares dos termos. Na
200
primeira subseção, veremos como, dialeticamente, as duas relações interagem na
determinação da ordem lógica das duas relações numa ocorrência efetiva da relação acreditar.
Na segunda, veremos como isso acontece na determinação da aridade e, finalmente, na
terceira, veremos como isso ocorre na determinação do número de lugares das duas relações.
3.3.2.1 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação
da ordem lógica das duas relações
Como vimos na subseção 2.2.1.3, a dificuldade explicativa relativa à variação na
ordem lógica da relação acreditar também está ligada à relação subordinada. Se a relação
subordinada for tratada como um termo no mesmo nível lógico dos outros, a relação acreditar
não conseguirá instanciar-se e, consequentemente, não chegará a ter uma ordem lógica
definida. Haja vista que, neste caso, tudo que poderá fazer é formar uma sequência desconexa
de termos.
Em contrapartida, se a relação subordinada não for considerada um termo no mesmo
nível lógico dos outros relata, então, a ocorrência da relação acreditar constitui-se numa
hierarquia com diferentes ordens lógicas envolvidas. A relação acreditar age sobre a relação
subordinada e aplica a relação subordinada sobre termos que ficam numa ordem lógica ainda
mais baixa.
Nesta relação e interação hierárquica, as duas relações se influenciam na
determinação de suas respectivas ordens lógicas. Por um a lado, a relação acreditar move
logicamente a relação subordinada e influencia a concretização de uma lógica determinada
para ela, exercendo sobre ela papel de governo. Mas, por outro lado, a relação subordinada
tem suas possibilidades de ocorrer em ordens lógicas diferentes determinadas por sua própria
natureza, de modo que ela determina as possibilidades da relação acreditar usá-la numa
dentro de suas possibilidades.
A relação acreditar, servindo-se instrumentalmente da relação subordinada, liga dois
ou mais termos numa crença relacional. Ao fazer isso, porém, ela aplica logicamente a relação
subordinada sobre os outros termos e com isso dá a esta uma ordem lógica determinada. Mas,
visto que, a relação subordinada, por sua natureza própria, determina que termos pode
envolver ou não, a fim de que possa ser aplicada, determina também que grau de ordem lógica
201
pode atingir ou não. Essas possibilidades e restrições, por sua vez, determinam a ordem lógica
que a relação acreditar pode alcançar com aquela subordinada. Haja vista que elas impõem
possibilidades e limites que obrigam a relação acreditar a colocar-se acima da subordinada,
para que possa utilizá-la adequadamente como seu instrumento.
Percebe-se, então, que a relação hierárquica e a interação entre as duas relações,
operando em campos distintos, impõem obrigações lógicas aos dois lados. A natureza da
relação subordinada determina que tipo ou tipos de termos ela pode envolver e em que ordem
ou ordens lógicas ela pode atuar, obrigando a relação acreditar a operar com ela dentro desses
limites e possibilidades. Enquanto que a relação acreditar, usando instrumentalmente a
relação subordinada, determina os termos sobre os quais esta será aplicada. E ao fazer isso, a
relação acreditar determina uma ordem lógica exata da relação subordinada na ocorrência.
Desse modo, podemos dizer mais formalmente que a ordem lógica da relação acreditar será 1
+ o número de ordem lógica em que a relação subordinada foi aplicada e, por sua vez, a
ordem lógica da relação subordinada será 1 + o número da ordem lógica mais elevado entre
seus termos.
A conclusão a que somos levados com essas considerações é que a relação acreditar
impõe, por meio da relação subordinada, uma direção hierárquica vertical sobre seus relata
numa ocorrência efetiva. E esta direção hierárquica vertical é determinada pelas
possibilidades que a relação subordinada oferece. A relação subordinada não pode deixar de
ser respeitada em suas condições lógicas, pois, suas condições lógicas são necessárias para
que a relação acreditar possa instanciar-se, aplicando adequadamente a relação subordinada.
E isso resultará também, como veremos melhor mais abaixo, num golpe mortal para o
Problema da Direção Larga.
3.3.2.2 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação
da aridade das duas relações
A dificuldade explicativa referente à variação da aridade na relação acreditar, como
vimos na subseção 2.2.1.1, também está presa ao tratamento dado à relação subordinada. Se
esta não for considerada um termo de nível lógico diferente dos outros relata, não será
possível considerar a relação acreditar numa instancia efetiva. E se ela não for considerada
202
um termo no mesmo nível lógico dos demais relata, então, será preciso definir qual é o seu
papel na determinação da aridade da relação acreditar. Coisa que não foi feita pela Teoria
RM apresentada por Russell em nenhuma de suas versões.
Tendo visto que as duas relações operam em campos diferentes, formando uma
hierarquia e uma interdependência dos termos, porém, podemos agora justificar a variação na
aridade da relação acreditar e o modo como a relação subordinada participa dessa variação. A
relação subordinada, por sua natureza própria, tem suas possibilidades de aridade conforme
seja ela uma relação unigrade ou multigrade. Se ela for uma relação unigrade, a relação
acreditar terá como aridade 2 + o número (fixo) da aridade da relação subordinada. Mas se
ela for uma relação multigrade, a relação acreditar terá ao seu dispor um instrumento com
inúmeras possibilidades de aridade. A relação acreditar, então, determinará uma aridade
concreta na relação subordinada ao aplicar-lhe termos específicos e a subordinada, que
determina as possibilidades de sua aplicação para a relação acreditar, influencia de volta a
determinação da aridade da relação acreditar. Dito de modo mais formal, nos casos em que a
relação subordinada é de aridade variável, a aridade da relação acreditar será 2 + o número
de termos sobre os quais ela aplica a relação subordinada. Visualizemos isso no caso descrito
pela frase (81):
(81) Otelo acredita que Desdemona detesta Cássio.
O que a frase (81) descreve é uma ocorrência da relação acreditar com aridade 4,
pois ela aplica a relação subordinada sobre dois termos, que somados ao número da própria
relação subordinada e o sujeito da crença resultam na aridade da relação acreditar. Mas, nesse
caso, a relação subordinada é multigrade, ela poderia ocorrer com muitas outras aridades
diferentes, o que resultaria em aridades diferentes para a relação acreditar também.
3.3.2.3 Interação dinâmica entre a relação acreditar e a relação subordinada na determinação
do número de lugares das duas relações
203
A exemplo do que aconteceu com a variação na ordem lógica e na aridade da relação
acreditar, o tratamento dado à relação subordinada também é decisivo para entender os
lugares dos termos numa crença. Se a relação subordinada for considerada um termo no
mesmo nível lógico dos outros relata, então, os lugares adquirem um nivelamento tal, que os
papeis lógicos dos termos se perdem, como foi visto na subseção 2.2.1.2 acima. E se a relação
subordinada não for tratada como um termo no mesmo nível lógico dos demais, então,
teremos que definir o que identifica um lugar de termos na ocorrência de uma relação e como
computar adequadamente os lugares de relação acreditar e da relação subordinada numa
ocorrência determinada. Consideremos as dificuldades próprias de cada uma desses dois
pontos.
No tocante à definição dos lugares dos termos, podemos tomar dois caminhos. O
primeiro caminho consiste em tratar um lugar, na ocorrência de uma relação, como sendo o
ponto que aquele termo ocupa na estrutura lógica daquela relação instanciada. Mas, neste
caso, os papéis lógicos dos termos se perdem também quando a relação subordinada envolve
mais de dois termos. O que nos leva a abandonar este caminho, pois, ao invés de solucionar,
ele agrava ainda mais as dificuldades.
O segundo caminho, com o qual estamos de acordo, consiste em tratar um lugar
como sendo o “espaço” onde o termo desempenha um papel lógico na ocorrência de uma
relação. Assim entendido, um lugar pode conter um ou mais de um termo dividindo um
“espaço” lógico na relação, isto é, desempenhando mesmo papel lógico na ocorrência da
relação. Neste caminho, portanto, ao contrário do anterior, não há nenhum descompasso entre
os lugares e os papéis lógicos dos termos na relação. Claro, este modo de entender os lugares
dos termos ainda deixa dificuldades a serem resolvidas pela tarefa de simbolizar formalmente
as ocorrências da relação acreditar que envolverem uma relação subordinada que imponha
mais de dois papéis lógicos aos seus termos. Mas, como veremos na última seção deste
Capítulo, tomando por base a estratégia multigrade, conseguiremos superar essa dificuldade.
No tocante ao cômputo dos lugares dos termos nas duas relações envolvidas numa
ocorrência da relação acreditar, também podemos seguir duas direções. A primeira direção,
que não consideramos viável, propõe computar separadamente o número de lugares da relação
acreditar e o número de lugares da relação subordinada. Mas, indo nesta direção, as
dificuldades se agravam, porque a tentativa de separar os lugares das duas relações leva a
considerar a relação acreditar como uma relação dual, isto é, uma relação que tem o lugar do
204
sujeito e o lugar dos relata. Enquanto que a relação subordinada, dentro do lugar dos relata,
tem seus lugares exclusivos.
A outra direção, contudo, nos parece bem-sucedida. Ela baseia-se nas posições que
assumimos nas duas primeiras seções deste Capítulo e considera a interação existente entre as
duas relações. De fato, a interação da relação acreditar com a relação subordinada, como
agente movente e agente movido, também repercute no cômputo do número de lugares das
duas relações. O número de lugares da relação acreditar depende do número de lugares
usados por ela na aplicação lógica da relação subordinada, uma vez que acreditar se apropria
logicamente da operação da relação subordinada. E, num movimento contrário, o número de
lugares da relação subordinada sofre a influência da relação acreditar, numa ocorrência
concreta, que escolhe aplicar um termo ou vários aos lugares impostos logicamente pela
relação subordinada.
Por conseguinte, visto que a relação acreditar, enquanto agente movente, se apropria
da operação lógica da relação subordinada, o cômputo do número de lugares não deve ser
feito isoladamente para cada relação, mas, ao contrário, ele deve ser feito de modo cumulativo
para a relação acreditar, pois a relação superior toma para si os lugares da relação inferior
usados por ela logicamente. Assim, a relação acreditar acumula o número de lugares da
relação subordinada dos quais ela faz uso e a relação subordinada cede à relação acreditar o
número de lugares usados instrumentalmente por ela. Por exemplo:
(82) Otelo acredita que Desdemona detesta o inverno.
Na frase (82) as relações são descritas de um modo que parece tentador dizer que a
relação detestar tem dois lugares e a relação acreditar tem dois lugares. Mas essa maneira de
computar os lugares das duas relações não é correta. O correto é dizer que, na ocorrência (82),
a relação detestar tem dois lugares e a relação acreditar tem quatro lugares, porque a relação
acreditar é superior e assimila os lugares utilizados por ela na relação subordinada. Por
conseguinte, em (82) acreditar ocorre como uma relação de quatro lugares, uma vez que ela
assume os lugares utilizados por ela na relação subordinada, fazendo-os seus para atribuir a
eles os termos da sua intenção. De modo que, a relação subordinada determina ONDE os
205
termos devem ocorrer, ao determinar o papel lógico que eles devem desempenhar em cada
lugar, e a relação acreditar determina QUE termo ocorre num lugar ou noutro, conforme
pretenda que ele desempenhe um papel ou outro, e os posiciona nos lugares adequados que,
consequentemente, ficam pertencendo às duas relações.
3.3.3 Revendo os Problemas da Direção na relação acreditar da Teoria RM
Ao longo da primeira seção do Capítulo Segundo, foi possível perceber que nem
Russell nem os críticos examinados ofereceram uma definição clara do Problema da Direção.
Tudo que eles fizeram foi oferecer algumas ilustrações, inclusive, com diferenças bem
inquietantes. Examinando-as, porém, conseguimos identificar uma base de sustentação
comum a todas elas, que foi a falta de clareza sobre a relação entre as duas relações e o papel
de cada uma delas na formação da unidade constituída numa ocorrência da relação acreditar.
Veremos agora que, se a má compreensão daquele ponto serviu de base para a
construção do Problema da Direção, uma boa compreensão do mesmo ponto vai nos levar à
superação do Problema, tanto do considerado Problema da Direção Estreita como do
considerado Problema da Direção Larga. Mas, por razões argumentativas, vamos começar por
este último.
3.3.3.1 A verticalidade hierárquica entre acreditar, a relação subordinada e os demais termos
na determinação da Direção Larga
Como foi visto ao longo da seção 2.1.3, os acusadores de que a Teoria RM incorre no
Problema da Direção Larga se baseiam em dois pressupostos bastante duvidosos. A saber, que
os termos da relação acreditar estão todos no mesmo nível lógico e que a operação da relação
acreditar, simplesmente, consiste em pôr um termo ao lado do outro quando forma uma
ocorrência. Mas, quando examinados cuidadosamente, percebemos que aqueles pressupostos
decorrem de uma compreensão inadequada da natureza lógica e da operação tanto da relação
acreditar e da relação subordinada quanto dos outros termos envolvidos no juízo. E, tão logo
esse engano se desfaz, o Problema da Direção Larga ficar sem fundamentos aceitáveis.
206
Realmente, como temos mostrado, numa ocorrência da relação acreditar, as duas
relações atuam em campos diferentes. A relação acreditar está no campo efetivo, ela está
ocorrendo efetivamente, e se sobrepõe à relação subordinada. Enquanto que a relação
subordinada está ocorrendo no campo lógico, ela é usada logicamente e fica sob a ordem
lógica da relação acreditar. Além disso, a interação entre as duas relações, cada uma em seu
respectivo campo, envolve os demais termos e cria um nível ainda mais inferior, o nível dos
termos que acreditar liga por intermédio da relação subordinada.
Ora, percebemos que essa estrutura hierárquica de três níveis lógicos se encontra
presente em todas as ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação subordinada.
Ela revela que a operação da relação acreditar não consiste, simplesmente, em colocar um
termo ao lado outro. Pelo contrário, ela indica que, antes de realizar uma operação horizontal
dando direção aos seus termos, a relação acreditar realiza uma operação vertical hierárquica,
aplicando termos de um nível lógico sobre outros de nível lógico inferior.
Por conseguinte, se toda ocorrência da relação acreditar, envolvendo uma relação
subordinada, gera uma hierarquia de três níveis, então, fica inconsistente assumir que seus
termos estão todos no mesmo nível lógico. E não resta mais nenhum cabimento para o
primeiro pressuposto dos partidários do Problema da Direção Larga. A relação acreditar
opera com a relação subordinada, ligando logicamente os outros termos. A relação
subordinada é usada instrumentalmente pela relação acreditar, como ferramenta lógica, sobre
os demais termos. E os termos são ligados por meio da relação subordinada, sob o comando
da relação acreditar.
Ainda mais. Uma vez que a falta de clareza sobre os níveis envolvidos nas
ocorrências da relação acreditar é superada, cai por terra também a ideia de que a operação da
relação acreditar se resume em posicionar os termos lado a lado. De fato, a verticalização
hierárquica na estrutura formada pela ocorrência da relação acreditar revela que sua operação
é muito mais complexa. Ela opera num nível vertical, aplicando a relação subordinada sobre
os demais termos, e opera num nível horizontal, aplicando os termos nos lugares
determinados pela relação subordinada e atribuindo a eles papéis lógicos próprios de cada
lugar, conforme as determinações lógicas da relação subordinada.
Por sua vez, essa operação horizontal da relação acreditar, baseada nas
determinações das condições lógicas da relação subordinada, já deixa entrever uma fissura na
207
construção do Problema da Direção Estreita que vai fazer muito estrago na sua pretensão de
sustentabilidade. Consideremos ela mais detalhadamente.
3.3.3.2 Força efetiva da relação acreditar e exigências lógicas da relação subordinada na
determinação da Direção Estreito
O Problema da Direção Estreita, exposto na seção 2.1.2, também surge de uma má
compreensão da natureza da relação subordinada e da relação que ela mantém com a relação
acreditar. Russell assumiu, na primeira versão da teoria RM, que a relação subordinada é uma
relação universal e que ela tem que está no juízo indo de A para B, mais do que de B para A.
Contudo, ele não disse exatamente como se dá o movimento de formação do juízo, em que o
sujeito da relação acreditar, estando acquainted com uma relação universal, aplica
logicamente tal relação de A para B, mais do que de B para A. E não disse, exatamente,
porque lhe faltava clareza sobre a relação entre a relação acreditar e a relação subordinada.
Ao expor a Teoria RM, Russell não distinguiu devidamente o fato de que apesar da
relação subordinada ser universal, por sua própria natureza, ela pode ser posta como relação
ligando logicamente os termos numa ocorrência de crença. Não se trata de duas relações
diferentes, nem de duas ocorrências que se contrapõem. Enquanto objeto da relação acreditar,
isto é, tomada em sua própria natureza, a relação subordinada é universal. E, nesse caso,
estamos no campo ontológico. Mas, enquanto instrumento da relação acreditar, a relação
subordinada é posta, logicamente, numa situação concreta de crença. Neste caso, não estamos
mais no campo ontológico, mas, sim, no campo lógico. Não se trata mais do que é a relação e
sim de como ela é aplicada, logicamente, como instrumento da relação acreditar.
Ora, como já foi mostrado, a relação acreditar aplica a relação subordinada sobre os
demais termos do juízo formando com eles uma hierarquia lógica vertical e também dando a
eles uma direção horizontal. Essa direção horizontal, porém, apesar de ter um lado
obrigatório, que é o fato dos lugares e dos papéis lógicos dos termos serem determinados pela
relação subordinada, ainda pode ser formada de modos diferentes se a subordinada for uma
relação assimétrica. Haja vista que, se os papéis lógicos dos termos são diferentes, então, será
possível colocar um termo ou outro em cada papel.
208
Russell teve dois elementos essenciais em sua primeira versão da teoria RM para
vencer o Problema da Direção Estreita. Faltou-lhe apenas mais um. O primeiro elemento que
ele teve em suas mãos foi a distinção de tipos lógicos, aliada à distinção de relação simétrica e
relação assimétrica. E o segundo elemento foi a distinção de papéis lógicos diferentes nos
termos das relações assimétricas. Faltou-lhe uma noção precisa da relação entre as duas
relações, acreditar e a relação subordinada, que permitisse distinguir adequadamente o campo
em que cada uma opera e permitisse explorar a interação entre ambas na determinação da
Direção Estreita dos termos.
A distinção russelliana de tipos e a classificação de simetria e assimetria nos
permitem ver que a relação subordinada é um termo irremovível, pelo tipo, pela operação e/ou
pela ordem lógica que ocupa dentro da ocorrência da relação acreditar. Retomemos o caso
expresso pela frase (3):
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
De acordo com a classificação multigrade de assimetria global e de acordo com a
classificação russelliana de assimetria heterogênea, podemos perceber que em (3) a relação
subordinada amar é irremovível. Haja vista que a relação acreditar comporta assimetria
global para os termos Otelo, Desdemona e Cássio, mas não para o termo amar. E, de modo
bastante similar, mesmo entre os relata da relação acreditar, amar ainda é irremovível do seu
lugar, pois sua relação com os demais relata é de assimetria heterogênea.
E a relação entre as duas relações, por sua vez, mostra que em suas ocorrências como
relação principal, acreditar opera no campo ontológico. Ela é criativa, no sentido ontológico
mesmo, e põe os seus termos em relações lógicas uns com outros, sem depender do fato deles
estarem ou não nessas relações no mundo. Já a relação subordinada, apesar de ter sua natureza
universal própria, é tomada logicamente pela relação acreditar e posta para operar movida por
esta última. Enquanto relação subordinada, ela não cria efetivamente um fato, ela serve de
termo lógico para que a relação acreditar possa criar. O que ela faz é determinar os lugares e
os papéis lógicos dos termos sobre os quais ela for aplicada, mas ela não decide quais são
esses termos. Ela é determinante, porque dá as condições e possibilidades lógicas de sua
209
aplicação, mas, não é criativa nesse momento. A relação acreditar é que é criativa, mas, ela
deve respeitar as condições determinada pela relação subordinada. Uma relação determina a
operação da outra, não fica espaço para nenhuma arbitrariedade ilógica por parte da relação
acreditar, porque ela opera dentro das possibilidades determinações dadas pela subordinada.
Desse modo, também a acusação de que na Teoria RM a relação acreditar pode
colocar os termos aleatoriamente na relação subordinada e não distinguir uma crença da forma
aRb de uma crença da forma bRa, fica inaceitável. A relação acreditar serve-se da relação
subordinada para formar um juízo. Ela posiciona os termos e atribui a eles papéis lógicos
específicos, mas, não faz isso arbitrariamente. Ela é condicionada pela relação subordinada a
formar o juízo dentro das condições lógicas impostas pela relação subordinada que ela toma
como instrumento. O que ela escolhe é que termo deve desempenha um papel ou outro.
3.3.4 Revendo a dificuldade na identificação dos papéis lógicos dos termos na relação
subordinada
Agora que dispomos da possibilidade de classificar a relação acreditar como um
agente movente multigrade e a relação subordinada como um agente movido, podemos
também dar um rumo novo à dificuldade da identificação dos papéis lógicos dos termos na
relação acreditar. Como vimos em 2.2.2.1, quando situamos esta dificuldade, ela levanta a
seguinte questão: o que permite ao sujeito da crença atribuir corretamente os papéis lógicos
aos termos envolvidos pela relação subordinada? A resposta é que: a relação subordinada
oferece as condições e possibilidades para que o sujeito da crença atribua termos concretos
aos papéis lógicos e o sujeito da crença escolhe os termos compatíveis para cada papel lógico
de acordo com sua intenção.
Para isso, claro, o sujeito da crença precisa identificar em cada relação subordinada
os papéis lógicos que ela impõe aos seus termos. O que, de acordo com Russell, pode ser feito
de duas maneiras quando a relação é dual e assimétrica. A primeira foi a maneira foi
apresentado em The Principles, onde ele classificou os termos como sujeito e relatum. O
termo sujeito é aquele termo de onde e o relatum é aquele termo para o qual a relação
procede. Mas, devemos notar, essa classificação esbarra em algumas dificuldades. Para
percebê-las, tomemos o seguinte exemplo:
210
(83) Otelo acreditar que o gato foi morto pelo carro.
Neste caso, o sujeito da relação ser morto por é o gato e o relatum é o carro.
Contudo, parece bastante estranho dizer que tal relação procede do gato para o carro naquela
ocorrência. Ou seja, nem sempre a relação dual assimétrica perfaz o movimento de ir do
sujeito para o relatum.
A segunda tentativa de caracterizar os termos da relação dual oferecida por Russell,
na terceira versão da teoria RM, consistiu em classificar o sujeito como o termo ativo e o
relatum como o termo passivo. Mas, de novo, essa classificação tem algumas dificuldades.
Tomemos o exemplo (84):
(84) Otelo acredita que a mesa é maior que a cadeira.
Na situação descrita pela frase (84), a relação subordinada ser maior que ocorre
como relação dual e assimétrica e nela o sujeito é a mesa e o relatum é a cadeira. Mas,
também nesse caso, parece estranho dizer que a mesa é o termo ativo e a cadeira é o termo
passivo. A mesa e a cadeira, simplesmente, são o que são. E, contestação similar pode-se
dizer também da relação ser morto por, descrita na frase (83), pois ali o sujeito é o gato e o
relatum é o carro, mas não parece certo dizer que o gato é o termo ativo naquela ocorrência.
Ao contrário, ele é o termo paciente.
As duas classificações oferecidas por Russell para os papéis lógicos dos termos da
relação dual assimétrica, portanto, apesar de atenderem a um bom número de casos, não
garantem uma classificação geral, capaz de identificar os papéis lógicos que os termos
desempenham em relações deste tipo. Ao que tudo indica, parece que isso se deve ao fato de
Russell tentar classificar o papel dos termos tomando como base alguma influência que os
termos possam exercer sobre a relação. No primeiro caso, por exemplo, o papel dos termos
consiste em demarcar o ponto de procedência e o término da relação. E no segundo caso, o
papel deles consiste em executar e sofrer a operação da relação.
211
Ora, isso tem lá suas verdades, mas, não dá uma caracterização geral. No nosso
entender, Russell deveria partir da ação da relação sobre os termos. O que ela “põe” sobre os
termos caracteriza muito mais o papel que eles desempenham nela do que o que eles oferecem
a ela para que ela possa instanciar-se.
Desse modo, podemos classificar o papel lógico do sujeito da relação dual
assimétrica como o de ser o termo que instancia a propriedade central da relação que age
logicamente sobre ele, e podemos classificar o relatum como o termo com o qual a relação
dual liga o sujeito. Tal classificação pode dar conta das situações exemplificadas em (83) e
(84) e ainda pode ser ajustada para dar conta de casos com aridade acima de dois. Em (83),
por exemplo, o gato é o termo sujeito da relação porque ele é o termo que instancia a
propriedade central da relação ser morto por. E em (84) a mesa é o termo sujeito da relação
ser maior que porque ela é que instancia a propriedade central daquela relação naquela
ocorrência.
Já os casos em que a relação tem aridade maior que dois, podemos considerá-los de
duas maneiras. Primeiro, pode acontecer que a relação contenha mais de um termo como
sujeito como, por exemplo, nos juízos do tipo “x, y, z, F, w”. Neste caso, os termos que
desempenham o papel de sujeito são todos classificados como aqueles termos que instanciam
a propriedade central da relação que os envolve. Segundo, pode acontecer que a relação
envolva não um, mas, vários termos com o papel de relatum como, por exemplo, nos juízos
do tipo “x, F, y, z, w”. Neste caso, ela terá vários relata e não um relatum, mas, eles poderão
ser caracterizados tranquilamente como os termos aos quais a relação liga o termo sujeito por
meio de sua propriedade central.
Além disso, essa nossa maneira de caracterizar o termo sujeito de uma relação ajuda
a entender melhor a operação da relação acreditar. Considerando que a relação subordinada
determina as condições para que o termo que venha a ocorrer como sujeito, isto é,
instanciando sua propriedade central, o sujeito da relação acreditar, acquainted com a relação
subordinada, opera com ela escolhendo o termo que deseja como sujeito e o termo ao qual
deseja que ela ligue o sujeito. Ela determina as condições para que o sujeito da crença, ao
instanciar a relação acreditar, determine a direção dos termos.
Quanto aos casos das relações com aridade maior que dois, basta ao sujeito da crença
está acquainted com a relação e os termos a serem aplicados e identificar o papel lógico do
212
seu sujeito, com seu respectivo lugar, na relação subordinada, que, pelas próprias exigências
dela, saberá identificar os papéis lógicos e os lugares dos termos relata. Considerando que
cada relação assimétrica simples atribui um papel único de sujeito, basta que o sujeito da
crença identifique esse papel e o seu lugar nas ocorrências da relação, que ele saberá aplicá-la.
E isso ele faz pela natureza lógica da relação que, estando ele acquainted com ela, lhe dá as
condições e possibilidades lógicas para que um termo venha a desempenhar o papel lógico de
sujeito, isto é, para que ele possa ser o termo que instancia sua propriedade central.
3.3.5 Revendo as dificuldades do simbolismo nas ocorrências da relação acreditar
A dificuldade central da representação simbólica da relação acreditar na Teoria RM,
como foi visto em 2.2.2.2, reside no desafio de encontrar um meio que, ao simbolizar as
ocorrências da relação acreditar, garanta a compreensão certa dos papéis lógicos e do número
de lugares que os termos ocupam na relação subordinada. A teoria russelliana das relações
propôs como saída dessas dificuldades o uso de uma regra sintática determinando que, numa
relação assimétrica dual, o primeiro lugar da relação pertence aos termos que desempenha o
papel de sujeito e o segundo lugar pertence ao termo que desempenha o papel de relatum.
Mas, como foi visto, isso convém às relações assimétricas duais apenas e, tanto a relação
acreditar não é uma relação dual, quanto, em muitos casos, a relação subordinada pode não
ser uma relação dual.
Por conseguinte, a superação daquelas dificuldades continua a demandar dois passos
de capital importância. Primeiro, que haja sinais que distingam corretamente os lugares dos
termos e a maneira como eles estão preenchidos quando mais de um termo compartilhar o
mesmo lugar e exercer o mesmo papel lógico na relação. Sinais que capturem os detalhes da
maneira como os termos estão estruturados logicamente pela relação acreditar na relação
subordinada. E, segundo, estabelecer algumas regras sintáticas que interpretem com clareza os
sinais e os lugares dos termos, identificando os papéis lógicos dos termos em seus respectivos
lugares.
A teoria multigrade, como pudemos perceber, oferece uma saída adequada para o
primeiro desses dois passos, distinguindo os lugares dos termos com o sinal de ponto e vírgula
e as posições que os termos ocupam quando compartilham o mesmo lugar com o sinal de
213
vírgula. À sua proposta, nós só acrescentamos que os lugares dos termos se caracterizam
pelos papéis lógicos que os termos desempenham na relação estando dentro deles, não,
simplesmente, por formarem um grupo. E, com um breve ajuste, a regra sintática de
inspiração russelliana apontada acima nos permite dar o segundo passo, pois, de fato, a regra
sintática para interpretar os sinais e os lugares no simbolismo, identificando os papéis lógicos
dos termos na relação, só precisa determinar que o primeiro lugar, com um termo ou com
vários, de uma relação assimétrica pertence ao(s) termo(s) sujeito(s)188 daquela relação e que
os papéis dos termos nos lugares a seguir, com um termo ou com vários, são determinados
pela natureza da relação que os têm sob seu domínio logicamente.
Tendo presente isso, propomos quatro regras sintáticas para concretizar esses dois
passos e chegar a um simbolismo eficaz para a relação acreditar:
1º. PASSO
I. Como sugere o primeiro modelo de simbolismo apresentado em
2.2.2.2, usaremos os parênteses de ângulos “˂ ˃” para indicar que a ordem
dos termos é relevante, mas, somente para isso.
II. Como sugere a estratégia multigrade de Alex Oliver e Timothy
Smiley, usaremos o sinal de ponto e vírgula “;” para separar um lugar de
outro na relação e usaremos o sinal de vírgula “,” para separar uma posição
da outra quando vários termos compartilham o mesmo lugar.
2º. PASSO
III. Assumiremos que o primeiro lugar, com um termo ou com vários,
numa relação assimétrica pertence ao(s) termo(s) sujeito(s) daquela relação.
IV. Assumiremos que o papel lógico do(s) termo(s) nos lugares seguintes
é determinado pela natureza da relação que os governa logicamente.
Agora, tendo em mãos esses recursos simbólicos e essas regras sintáticas de
interpretação, consideremos de novo a ocorrência da relação acreditar indicada pela frase (3)
e acrescentemos as ocorrências descritas pelas frases (85)-(86), a fim de verificar se seremos
bem-sucedidos com esses novos recursos:
188 Devemos recordar aqui a flexibilidade de significado que a noção de “sujeito” tem na linguagem, quanto ao
modo ativo e passivo. No primeiro modo o sujeito é o agente da operação da relação (se ela fora assimétrica) e
no segundo modo o sujeito sofre a operação da relação assimétrica (se ela for assimétrica). De nossa parte,
porém, preferimos assumir que o sujeito de uma relação assimétrica é o termo que instancia a propriedade
central da relação que o rege logicamente.
214
(3) Otelo acredita que Desdemona ama Cássio.
(3b) B ˂ o; L; d; c ˃
(85) Otelo acredita que Desdemona e Cássio atacaram Romeu e Julieta.
(85a) B ˂ o; A; d, c; r, j ˃
(86) Otelo acredita que Desdemona tem ciúmes de Cássio e Hypatia com Romeu
Julieta e Tebaldo.
(86a) B ˂ o; G; d; c, h; r, j, t ˃
A frase (3) expressa a instância da relação acreditar que tomamos como caso modelo
desde o início. Sua representação simbólica, indicada por (3b), representa a relação acreditar
como “B” e representa os termos Otelo, amar, Desdemona e Cássio, nesta ordem, como “o”,
“L”, “d” e “c”. Os parênteses de ângulos indicam que a ordem dos termos é relevante na
relação “B”e o sinal de ponto e vírgula indica a separação dos lugares onde cada termo se
encontra e desempenha um papel diferente dos demais. O que indica também que “B” é uma
relação de quatro lugares, com apenas um termo em cada lugar, e que o papel lógico de cada
termo pode ser identificado com as regras sintáticas III e IV.
Pela regra sintática III podemos identificar o papel lógico do termo “o”, no primeiro
lugar de “B”, a saber, o de sujeito da relação “B” e, pela regra sintática IV, podemos
identificar os papéis lógicos de “L”, “d” e “c”, a saber, que “L” é a relação subordinada e
funciona como agente movido pela relação principal “B” para ligar, o termo “d” ao termo “c”.
O que faz também com que “L”, sendo uma relação assimétrica, determine papéis lógicos
diferentes para os termos “d” e “c”. Assim, de modo análogo, pela regra sintática III, podemos
identificar o papel lógico do termo “d”, no primeiro lugar de “L”, a saber, o de sujeito da
relação “L” e, também pela regra sintática IV, podemos identificar o papel lógico de “c”, a
saber, o de relatum da relação “L” que tem “d” como sujeito.
A frase (85) expressa uma instância da relação acreditar com um pouco mais de
complexidade. Sua representação simbólica, indicada por (86a), representa a relação acreditar
como “B” e representa os termos Otelo, atacar, Desdemona, Cássio, Romeu e Julieta, nesta
ordem, como “o”, “A”, “d”, “c”, “r” e “j”. Os parênteses de ângulos indicam que a ordem dos
termos é relevante na relação “B”, o sinal de ponto e vírgula indica a separação dos lugares
onde os termos se encontram e desempenham papéis lógicos diferentes dos demais, e o sinal
de vírgula separa as posições dos termos que compartilham o mesmo lugar e o mesmo papel
lógico na relação. O que indica que “B” é uma relação de quatro lugares, mas com
215
significativas diferenças em comparação com a situação anterior, que as regras sintáticas III e
IV permitem realçar.
Pela regra sintática III é possível identificar no simbolismo que o papel lógico do
termo “o”, no primeiro lugar de “B”, é o de sujeito da relação “B”. Enquanto que, pela regra
sintática IV, é possível identificar que o papel lógico da relação “A” é o de agente movido
pela relação “B” para ligar os termos “d”, “c”,“r” e “j” com sua capacidade lógica. O que faz
também com que a relação “A” imponha os papéis lógicos que sua natureza assimétrica
demanda para os termos “d”, “c”, “r” e “j”. Assim, de modo similar, pode-se identificar que
“d” e “c” compartilham o papel lógico de sujeito, ocupando o primeiro lugar daquela relação,.
E, igualmente, pode-se identificar que os termos “r” e “j” compartilham o papel lógico de
relatum, ocupando o segundo lugar de “A”.
A frase (86), finalmente, expressa uma instância da relação acreditar com um grau
de complexidade ainda maior, se comparada com as situações anteriores. Ela tem um lugar a
mais e os relata são estruturados em dois grupos distintos. Sua representação simbólica,
indicada por (87a), representa a relação acreditar como “B” e representa os termos Otelo, ter
ciúmes de... com ..., Desdemona, Cássio, Hypatia, Romeu, Julieta e Tebaldo, nesta ordem,
como “o”, “G”, “d”, “c”, “h”, “r”, “j” e “t”. Os parênteses de ângulos indicam que a ordem
dos termos é relevante na relação “B”, o sinal de ponto e vírgula indica a separação dos
lugares onde os termos se encontram e desempenham papéis lógicos diferentes dos demais, e
o sinal de vírgula separa as posições dos termos que compartilham o mesmo lugar e o mesmo
papel lógico na relação. O que indica que “B” é uma relação de cinco lugares, também com
algumas diferenças significativas, se comparada com a situação anterior, que as regras
sintáticas III e IV permitem realçar.
Pela regra sintática III é possível identificar no simbolismo que o papel lógico do
termo “o”, no primeiro lugar de “B”, é o de sujeito da relação “B”. Enquanto que, pela regra
sintática IV, é possível identificar que o papel lógico da relação “G” é o de agente movido
pela relação “B” para ligar os termos “d”, “c”, “h”, “r”, “j” e “t” com sua capacidade lógica. O
que faz também com que a relação “G” imponha os papéis lógicos que sua natureza
assimétrica demanda para esses termos. Assim, de modo similar ao que foi feito antes, pode-
se identificar que “d” é o sujeito da relação “G”, ocupando nela o primeiro lugar. E,
igualmente, pode-se identificar que os termos “c” e “h” compartilham um papel lógico e um
216
lugar diferente, entre os relata da relação “G”, daqueles que compartilham os termos “r”, “j” e
“t”, conforme determina a natureza lógica da relação “G”.
Este modo de simbolizar as ocorrências da relação acreditar, claro, tem um forte
caráter ad hoc. Ele não expressa uma forma lógica da relação acreditar que seja válida para
todas as suas ocorrências, mas, ele se ajusta a todas as diferentes ocorrências da relação
acreditar envolvendo uma relação subordinada assimétrica. Sua desvantagem é que, por não
oferecer uma forma lógica única, ele não se presta às exigências do cálculo de predicados,
nem pode ser traduzido no simbolismo das n-uplas ordenadas. Contudo, ele tem vantagens
muito importantes. Ele pode capturar a estrutura interna das ocorrências da relação acreditar
em suas variadas situações. Pode capturar essa estrutura e possibilitar uma melhor
compreensão dos lugares e dos papéis lógicos que a relação acreditar impõe aos seus termos
ao agrupá-los numa unidade. E mais ainda. Ele permite destacar a centralidade e o papel
lógico que a relação subordinada tem nas ocorrências da relação acreditar, exigindo que, com
o auxílio das regras sintáticas adequadas, levemos em conta o caráter lógico-operante que ela
desempenha dentro do escopo da crença.
Uma última palavra sobre este simbolismo que ora propomos. No nosso entender,
este modo de simbolizar as ocorrências da relação acreditar atende a todos os seus casos de
ocorrências simples, isto é, aos casos em que ela envolve apenas uma relação subordinada.
Casos em que acreditar envolve duas relações subordinadas têm um grau maior de
dificuldade, porque a relação de subordinação fica mais complexa e a tarefa de simbolizar os
lugares/posições e identificar os papéis lógicos dos termos nas relações subordinadas fica
maior. E, apesar de acharmos que as regras sintáticas assumidas acima podem ser expandidas
para atender essas situações, não as enfrentaremos por enquanto. Elas serão o alvo da
continuidade de nossa Pesquisa.
217
4 CONCLUSÃO
Terminando nossa exposição, queremos salientar, com a devida discrição, que o
cerne do nosso esforço foi mostrar que enxergamos de um jeito novo e promissor três
aspectos, que pareciam velhos e estéreis, capazes de recolocar a Teoria RM no centro do
debate filosófico com plena força e vivo interesse.
Primeiro, desde cedo, a Teoria RM foi alvo, de rigorosas e radicais críticas. Mas, ao
que parece, nenhuma das investidas contra ela percebeu que a raiz das dificuldades aludidas,
contra ela, estava na carência de uma boa distinção na natureza e no papel das operações da
relação acreditar e da relação subordinada. E, igualmente, nenhuma delas propôs alguma
saída que levasse essa lacuna a sério, como nós fizemos. De fato, a Teoria RM é um poderoso
rival do Realismo Proposicional e tem potencial para recolocar em bases novas toda a
metafísica da proposição. Mas, historicamente, ela foi pouco apreciada e prematuramente
impugnada pela supervalorização do Problema da Direção. E, uma vez que alcançamos uma
resposta adequada para este Problema e suas dificuldades adjacentes, nós deixamos ela em
condições de virar a página e voltar-se para questões mais centrais relativas à natureza da
proposição.
Segundo, as tentativas de solução para as dificuldades, tradicionalmente, aludidas
contra a Teoria RM, especialmente, as dificuldades relativas ao Problema da Direção dos
termos na relação acreditar, buscaram encontrar alguma luz nas teorias novas ou, pelo menos,
posteriores à publicação da Teoria RM. Nenhuma delas parece ter dirigido o olhar para o
acervo filosófico do passado. E foi isso que fizemos, identificando uma saída pertinente e
eficaz com o uso das noções de agente movente e agente movido, na metafísica de santo
Tomás, para superar as lacunas na compreensão da natureza e dos papéis da relação acreditar
e da relação subordinada na Teoria RM. Mostrando, a partir daí, que a Teoria RM é um aliado
forte na luta para desembaraçar a metafísica do juízo.
Terceiro as dificuldades de funcionamento da Teoria RM, decorrentes da falta de
clareza na compreensão das operações e dos papéis das duas relações, refletiam-se nas
tentativas de simbolizar logicamente as ocorrências da relação acreditar. E, uma vez que
218
superamos essas dificuldades de compreensão das operações e da interação das duas relações
com o caminho aberto pelas noções tomistas, percebemos que a teoria das relações multigrade
de Alex Oliver e Timothy Smiley permitem alcançar um simbolismo lógico eficaz para as
ocorrências da relação acreditar, tratando-a como relação de aridade, número de lugares e
ordem lógica variáveis, capaz de ligar diferentes números de termos acima de dois em suas
variadas instanciações.
Os resultados obtidos, acreditamos, indicam que, cem anos após ter sido abandonada
por Russell, em 1918, a Teoria RM mostra que ainda continua tão fecunda e inusitada como
foi em seu primeiro aparecimento e que merece estar, de pleno direito, no centro do debate
filosófico. Até porque, tendo se desvencilhado do Problema da Direção, ela se apresenta como
alternativa, bastante contundente, do Realismo Proposicional. Capaz de responder a
problemas como o da unidade e o da representatividade na proposição, que, até então, têm
sido extremamente problemáticos para a sua Teoria Rival.
Além disso, os resultados que alcançamos também mostram que nosso modelo
explicativo funciona bem com as ocorrências da relação acreditar envolvendo uma relação
subordinada entre seus relata. A aplicação bem-sucedida dos resultados alcançados a
ocorrências em que a relação acreditar envolva duas relações subordinadas entre seus relata,
certamente, encontrará consideráveis dificuldades, principalmente, no campo do simbolismo
lógico. E nós pretendemos, na continuidade da Pesquisa, avançar em sua direção.
219
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