Upload
renata-sena
View
19
Download
2
Embed Size (px)
DESCRIPTION
livro
Citation preview
Renato Drummond Tapioca Neto
Mademoiselle Boullan Uma história de amor e ódio na corte dos Tudor
Salvador, 2014
Copyright © 2013 by Renato Drummond Tapioca Neto
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Renato Drummond Tapioca Neto
Tapioca Neto, Renato Drummond
Mademoiselle Boullan: uma história de amor e ódio na corte dos Tudor / Renato
Drummond Tapioca Neto. Salvador, 2014. Trabalho não publicado.
1. Inglaterra – História 2. Henrique VIII, Rei da Inglaterra, 1491-1547 3. Ana
Bolena, Rainha da Inglaterra, 1501?-1536.
Este trabalho foi composto apenas para uso privado e com direitos de reprodução concedidos
unicamente ao blog “Rainhas Trágicas” (www.rainhastragicas.com). A reprodução dessa
obra para fins comerciais está terminantemente proibida.
Lista de Ilustrações
Figura 1 Carta de Ana Bolena ao seu pai, escrita em La Veure (1514) .................................. 13
Figura 2 Francisco I, rei da França, por Jean Clouet ............................................................... 17
Figura 3 Ana Bolena, por artista desconhecido, Castelo de Hever, Kent ............................... 19
Figura 4 Sir Thomas Wyatt, por Hans Holbein (o Jovem) ...................................................... 23
Figura 5 Carta de Henrique VIII para Ana Bolena (1528) ...................................................... 26
Figura 6 Catarina de Aragão, por Lucas Horenbout................................................................ 29
Figura 7 Possível retrato de Maria Bolena, por artista desconhecido ..................................... 33
Figura 8 Henrique VIII, por artista desconhecido ................................................................... 35
Figura 9 Cardeal Wolsey, por artista desconhecido ................................................................ 39
Figura 10 Ana Bolena como Marquesa de Pembroke, por Renato Drummond Tapioca Neto
(2014) ....................................................................................................................................... 43
Figura 11 Procissão da coroação de Ana Bolena, na Abadia de Westminster ........................ 44
Figura 12 Thomas Cranmer, por Gerlack Flicke ..................................................................... 49
Figura 13 Lady Mary, por Mestre John ................................................................................... 51
Figura 14 Thomas More, por Hans Holbein (o Jovem) .......................................................... 54
Figura 15 Jane Seymour, por Hans Holbein (o Jovem) .......................................................... 57
Figura 16 Ana Bolena, por artista desconhecido ..................................................................... 61
Figura 17 Ana Bolena na Torre, por Edward Cibot (1835) ..................................................... 65
Figura 18 Túmulo de Ana Bolena, na capela de St. Peter ad. Vincula ................................... 67
Figura 19 Anel da rainha Elizabeth I (c. 1575) ....................................................................... 70
Figura 20 Retrato de Ana Bolena em medalha de 1534 .......................................................... 72
Figura 21 Retrato de uma mulher, por Hans Holbein (o Jovem) ............................................ 76
Figura 22 Livro de orações de Ana Bolena ............................................................................ 79
Figura 23 Assinatura de Ana Bolena em seu livro de orações ............................................... 81
Figura 24 Edição do Novo Testamento que pertencera a Ana Bolena .................................... 85
Figura 25 Ana Bolena, por artista desconhecido, NPG ........................................................... 88
Índice
Agradecimentos ................................................................................................ 06
Sobre esta série .................................................................................................. 09
Introdução Ana Bolena, uma perspectiva histórica .......................................... 11
Capítulo 1 Uma educação renascentista ............................................................ 13
Capítulo 2 A corte inglesa ................................................................................. 19
Capítulo 3 Uma simples dama da corte contra a grande princesa de Castela ... 26
Capítulo 4 O grande dilema do rei .................................................................... 35
Capítulo 5 “Deus salve Ana, rainha da Inglaterra” ........................................... 44
Capítulo 6 A queda de uma rainha e a ascensão de outra ................................. 57
Conclusão Ana Bolena, uma trágica heroína dos tempos modernos ................. 69
Anexo 1 As várias faces de Ana Bolena ............................................................ 72
Anexo 2 A religiosidade de Ana Bolena ............................................................ 79
Anexo 3 Vilã ou heroína? – as representações de Ana Bolena .......................... 88
Cronologia ......................................................................................................... 92
Referências bibliográficas ................................................................................ 96
6 www.rainhastragicas.com
Agradecimentos
Em um dia qualquer, de um mês quem não me recordo, do ano de 2009, ouvi dos
lábios de minha professora de História que “Henrique VIII rompeu com a igreja para se casar
com Ana Bolena, que era uma concubina”. Não dei muita atenção para o que ela acabava de
dizer, até porque acreditava que o movimento reformista na Inglaterra era nada comparado
com o luteranismo ou o calvinismo. Permaneci em minha mente com a imagem de uma
mulher qualquer e indigna de atenção, até que no início do ano seguinte, quando estava no
primeiro semestre da faculdade de História da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC),
assisti à superprodução cinematográfica “A Outra” (2008), que é baseado no romance de
Philippa Gregory1.
A partir de então, me senti intrigado com os elementos iconográficos do filme,
incluindo seus personagens, dos quais a figura da rainha Ana me envolveu com uma profunda
onda de magnetismo que eu jamais sentira por qualquer outro agente da História (exceto, um
ano depois, por Maria Antonieta). Fascinado pela ótima atuação de Natalie Portman no papel
da rainha Ana, resolvi investigar mais sobre aquela personagem, que viveu em meio a uma
época de tempestades ideológicas, fomentada pelo movimento da reforma religiosa.
À medida que fui aprofundando mais em meus estudos percebi que aquela Ana
Bolena era uma pessoa totalmente diferente da que eu acreditava conhecer. Passei então a
buscar mais e mais livros e textos sobre sua vida ou que estivessem ligados ao período em que
ela viveu, e nesses três anos de exaustiva pesquisa tornou-se pra mim um fato de que era ela
quem eu queria para o meu projeto de Trabalho de Conclusão de Curso.
Mantendo contado com as obras dos principais autores encarregados da tarefa de
dissertar sobre essa mulher incrível, pus-me em frente de uma Ana multifacetada: a criança
prodígio que encantou a corte de Bruxelas e de França; a jovem apaixonada por Henry Percy;
a mulher ressentida e determinada a vingar quem causara seu infortúnio; a enamorada do rei;
a rainha; a soberana política; a patrona da reforma em Inglaterra; a mãe; a acusada; a vítima; a
esposa decapitada. Muitas fases podem ser identificadas na trajetória deste ícone, mas em vez
delas me revelarem respostas acerca de sua personalidade, me fizeram (e ainda fazem)
1 GREGORY, Philippa. A irmã de Ana Bolena. Tradução de Ana Luiza Borges. 4ª edição. Rio de Janeiro:
Record, 2010.
7 www.rainhastragicas.com
levantar uma série de questionamentos para os quis talvez nunca encontre respostas. Ana
Bolena passara a ser então um mistério pra mim, e espero que assim o seja pra sempre. Creio
que esse é um de seus grandes encantos: a áurea de misticismo que carrega.
Contudo, não conseguiria completar essa série sem o auxílio de algumas pessoas que
me ajudaram durante esses três anos de pesquisa, e cujo apoio vou precisar por ainda muito
mais tempo, como minhas caras amigas Luiza Fonseca de Souza e Camila Maréga
(proprietária do blog “Tudor Brasil”). Todas as conversas que tivemos me proporcionaram a
clareza de pensamento e sensibilidade para tratar com meu objeto de estudo de forma
adequada. Também à Stéphane Lorene, pela paciência em escutar horas e horas de falatório
sobre os Tudor, e à minha irmã, Vanessa Tapioca pelo apoio e carinho incondicional. Não
obstante, possuo uma dívida eterna com Lady Antonia Fraser2, cuja biografia das seis esposas
de Henrique VIII foi uma chave para me fazer entender os acontecimentos da Inglaterra do
século XVI e dos seus principais atores.
Todavia, seria quase impossível estar pesquisando sobre a vida de mademoiselle
Boullan sem deixar de se encantar com sua suposta rival, Catarina de Aragão. Suas
determinações em não aceitar as decisões do marido também tiveram um forte peso no rumo
dos acontecimentos e ela sempre será digna de meu respeito. Acredito que a melhor biografia
já escrita sobre a filha dos reis Católicos é a de Garrett Manttingly3, e foi-me imprescindível
para compor esta análise, apesar do tratamento hostil que este autor dispensa a Ana Bolena.
Possivelmente, a melhor biografia da rainha Ana lançada até então é a do professor
Eric Ives4, ainda não publicada aqui no Brasil. Seu método de exposição difere do de Antonia
Fraser à medida que ele não se atém a uma linearidade dos acontecimentos, utilizando-se dos
fatos para explorar as várias representações da rainha. Sua escrita não é carregada do
ceticismo de Alison Weir5, por exemplo, nem do romantismo de Carolly Erikson
6. Assim
como Ives, tentei não exaltar demais a figura de Ana, mostrando-a não como uma mártir do
movimento reformista, e sim como uma mulher suscetível aos vícios humanos, mas repleta
daquela energia que tem o poder de conquistar os homens mesmo anos depois de morta.
2 FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do Nascimento E Silva. 2ª
edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. 3 MATTINGLY, Garrett. Catalina de Aragón. Tradução de Ramón de La Serna – Buenos Aires: Editorial
Sudamericana, 1942. 4 IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell
Publishing, 2010. 5 WEIR, ALISON. The Six Wives of Henry VIII. – New York: Grove Press, 1992. 6 ERIKSON, Carolly. Ana Bolena: Un Amor Decapitado. Tradução de León Mirlas – Buenos Aires: Atlántida,
1986.
8 www.rainhastragicas.com
Ao estudar sua trajetória, não pude deixar de imaginar o que teria acontecido se seu
caminho não cruzasse com o do rei, ou se no desenrolar dessa trama ela tivesse morrido de
morte natural. Provavelmente as coisas não teriam chegado aos extremos que chegaram e só
por isso sua presença se mostra relevante. A cruel execução que sofrera proporcionou um
“quê” a mais em sua lenda: a de uma pessoa que amou e que viveu do mesmo jeito que nós,
mas que batalhou por um lugar de consideração no seio da sociedade. Sua luta, entretanto, não
despareceu com ela, mas permaneceu ativa, correndo nas veias de sua única descendente:
Elizabeth I, soberana de uma era dourada; o fruto da reforma; a filha de sua mãe.
9 www.rainhastragicas.com
Sobre esta série
Mademoiselle Boullan foi a primeira série de posts escrita por Renato Drummond para
o extinto site de história Jardim de Clio. Depois de algum tempo, surgiu à oportunidade de
republicar o presente texto, mais completo e atualizado, no blog do próprio autor, o Rainhas
Trágicas, que se dedica à vida e obra de mulheres que marcaram o período em que viverem e,
como no caso de Ana Bolena, foram mal vistas por alguns pesquisadores ao longo dos anos.
Nesse sentido, é importante questionar o que favoreceu uma reinterpretação da vida dessas
personagens, que por muito tempo permaneceram como perversas e atualmente são encaradas
como uma espécie de heroínas trágicas dos tempos modernos?
Em sua monografia de conclusão de curso, Drummond7, ao analisar o romance
histórico The Secret Diary of Anne Boleyn (1997), da escritora norte-americana Robin
Maxwell8, aponta para o feminismo como um fator essencial nesse processo de reavaliação e
resgate destas personalidades do passado. Um delas e talvez a mais controversa de todas seja
a própria Ana Bolena. Até o século XIX, ela era representada na literatura como a prostituta
do rei, uma mulher cuja ambição dividira o reino, causando efeitos até hoje inalterados na
sociedade inglesa. Contudo, a Era Vitoriana se mostrara bastante gentil para com Ana,
devolvendo-lhe inclusive o título de rainha, retirado desde que o casamento da mesma com
Henrique VIII fora declarado inválido em 15369.
Em seu recente ensaio cultural sobre a vida de Ana Bolena, Susan Bordo10
avalia que
após o período da Segunda Guerra, a literatura e a historiografia em geral se mostraram muito
mais gentis com a segunda esposa de Henrique VIII, ressaltando as suas virtudes, tais como a
inteligência e a religião. Coincidentemente, essa transformação ocorre de forma paralela ao
crescimento do movimento feminista nos países ocidentais. Como todo movimento ou
instituição que procura na história elementos que legitimem suas lutas, o feminismo resgatou
do passado figuras de mulheres até então estereotipadas pela história dos homens, oferecendo
um novo viés interpretativo para a trajetória das mesmas. Foi o que aconteceu com
7 TAPIOCA Neto, Renato Drummond. A condição da mulher no século XVI: o discurso feminista em The
Secret Diary of Anne Boleyn (1997). Ilhéus, 2013. Monografia (Graduação em História). – Universidade
Estadual de Santa Cruz. 8 MAXWELL, Robin. The secret diary of Anne Boleyn. – New York: Touchstone Book, 2012. 9 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 562 10
BORDO, Susan. The creation of Anne Boleyn: a new look at England’s most notorious queen. –
New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.
10 www.rainhastragicas.com
personagens como Cleópatra, Ana Bolena, Catarina de Médici, Margarida de Valois (a
famosa rainha Margot) e Maria Antonieta. Tais soberanas passaram para o rol de grandes
personalidades do passado, com seus feitos e méritos devidamente restaurados.
O caso de Ana Bolena, por sua vez, é particularmente interessante, pois se tem
observado um crescente interesse por parte dos veículos de cultura de massa em sua vida.
Filmes e séries de televisão se dedicaram a recontar o drama da rainha Ana utilizando-se para
isso de atrizes bem dotadas esteticamente como Natalie Portman em The Other Boleyn Girl
(2008) e Natalie Dormer em The Tudors (2007-2008). Biografias como a de Eric Ives e
romances como o da própria Maxwell caíram no gosto do grande público. Páginas na internet
foram criadas com o intuito de transmitir para o leitor através de postagens a trajetória de Ana
Bolena de uma maneira mais interativa.
Foi nesse contexto que surgiu a série Mademoiselle Boullan: uma história de amor e
ódio na corte dos Tudor, publicada em seis partes no blog Rainhas Trágicas. Um ano depois
essas partes foram unidas em um único arquivo, editadas e complementadas com novas
informações e imagens. Depois de finalizado o trabalho, acreditamos que ele possa servir de
auxílio nos estudos de pessoas interessadas na história de Ana Bolena, visto que no Brasil a
precariedade de publicações sobre a Dinastia Tudor é notória, o que acaba sendo um entrave
para o indivíduo que não tem acesso às principais publicações em inglês. Dessa forma,
oferecemos para o leitor essa pequena contribuição, na esperança de que trabalhos futuros e
mais bem fundamentados sejam publicados em território nacional.
11 www.rainhastragicas.com
Introdução
A Europa do século XVI foi marcada por diversas transformações, que, a seu modo,
desencadearam numa ruptura de preceitos e valores na mente das pessoas. Com o advento do
movimento renascentista, as concepções estéticas da cultura greco-romana são resgatadas e
reformuladas frente às necessidades de então. Através de Lutero, o poder e a influência da
Igreja Católica, e seu monopólio sobre a consciência e o domínio econômico de seus adeptos,
começaram a ruir diante de um mundo que não mais aceitava explicações sobrenaturais para
os fenômenos que ocorriam. Em Calvino, e sua teoria da predestinação, observa-se o
surgimento de uma classe burguesa mais unificada e ansiosa por participar das decisões
políticas do Estado. Contudo, dos interstícios de uma Inglaterra menos interessante, se
comparada com as grandiosas potências da época (França e Espanha), um caso de amor entre
um rei e uma plebeia chamará a atenção dos olhos do continente, em mais um prelúdio das
calamitosas circunstâncias em que a antiga ordem feudal se encontrava.
O movimento anglicano, como posteriormente fora identificado, tivera como força
motriz as negações do Papa Clemente VII em atender ao desejo do rei Henrique VIII de se
separar de sua esposa infértil, para se unir em matrimônio com outra mulher, uma notória
camareira do séquito de Catarina de Aragão. Mas quem era Ana Bolena? Eis uma questão que
nem os principais estudiosos do período conseguiram chegar a obter conclusão comum.
Através dos anos que se seguiram à sua morte (1536), a figura dessa multifacetada senhora
tem sido duramente criticada, e até mesmo difamada, por alguns pesquisadores mais
tradicionais que jogam para o campo da irrelevância sua fundamental contribuição na
formação da nova instituição religiosa que despontava naquela pequena ilha. Em grande
maioria referindo-se a ela como “a amante do rei” e não como a rainha que foi (mesmo que
por um curto período), alguns a chamaram de bruxa, outros de meretriz, e também há quem
diga que foi uma das maiores rainhas consortes que a Inglaterra já conheceu.11
.
11 Na introdução da sua Dissertação de Mestrado, Ana Paula Lopes de Almeida diz que “a imagem de Ana
Bolena tem sido maltratada ao longo dos séculos – o seu estereótipo como ‘coquete’, ‘vulgar’ e ‘adúltera’
prevaleceu ao longo dos tempos”, contudo, “alguns historiadores, biógrafos e romancistas têm recentemente
olhado para Ana de uma forma diferente, recuperando a sua representação e reconhecendo a importância do seu
papel como Rainha, na mudança que desencadeou na própria Inglaterra”. Ver mais em: ALMEIDA, Ana Paula
Lopes Alves Pinto de. Ana dos mil dias: Ana Bolena, entre a luz e a sombra da Reforma Henriquina. Porto,
2009. Dissertação (Mestrado em Letras). – Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
12 www.rainhastragicas.com
Entretanto, uma singularidade em particular costura todas essas interpretações acerca
de Ana Bolena: como uma jovem plebéia da corte dos Tudor manipulou o próprio destino,
numa época à qual ser mulher significava sujeitar-se a todo tipo de submissão, e acabou por
conquistar e impor suas vontades perante o mais poderoso dos homens, o rei? Diversos livros
a abordam como alguém à frente do seu tempo, o que pode ser facilmente comprovado se
levarmos em consideração o fato dela ter sido uma árdua leitora dos defensores do
protestantismo, como, por exemplo, William Tyndale (responsável pela primeira tradução da
Bíblia para o inglês). Isso, por sua vez, é somente uma dentre as muitas provas que atestam
sua excepcional fibra e coragem, na medida em que outros, por atitude semelhante, foram
punidos pelas autoridades do país, cujo rei havia sido condecorado com o título de “defensor
da fé”, pelo papa Leão X12
.
Todavia, longe de ser uma pessoa que pensava aquém de sua época, Ana Bolena
estava inserida dentro de uma pequena parcela da população inglesa que não mais suportava o
despotismo e os penosos dízimos cobrados pela Igreja Católica. Com o tempo, esse outrora
diminuto contingente de indivíduos iria crescer, ao passo em que aquela dama ganhava as
boas graças do monarca, para se tornar a voz de uma ideologia em ascensão. Ana, com toda
certeza, foi filha e vítima do movimento protestante em Inglaterra, e sua imagem se
perpetuaria num eco de coragem e labor para as mulheres da posteridade. Com base nessa
premissa, o presente estudo objetiva, de forma singela, retraçar os passos desse ícone do
imaginário popular, avaliando suas contribuições para os acontecimentos que fizeram ferver o
palco político da renascença, enquanto tenta por em xeque muitas das visões preconceituosas
que macularam a reputação de tão extraordinária persona ao longo de cinco séculos de
história.
12 Para saber mais sobre a religiosidade de Ana Bolena, ver o anexo 2.
13 www.rainhastragicas.com
Capítulo 1
Uma educação renascentista
Figura 1 – Carta de Ana Bolena ao seu pai, Sir Thomas, escrita em 1513-1413
.
Feito as considerações iniciais, partamos então para o cerne do caso, que fez com que
essa predestinada dama, certamente nascida em Blickling Hall (Norfolk), saltasse de sua vida
aparentemente modesta para o centro do furacão que se tornara o continente europeu, no
século XVI. Filha de um cavaleiro, Sir Thomas Bolena, com uma jovem aristocrata,
Elizabeth Howard, Ana Bolena provavelmente era a mais nova de três irmãos que
sobreviveram à infância. Muito do que se sabe hoje a respeito de sua vida está voltado para o
campo das especulações. Entre elas, o ano exato de seu nascimento. Uma análise cronológica
dos acontecimentos o estabelece entre os anos de 1500 a 1507, porém, é mais plausível que se
tenha ocorrido em junho de 150114
. Uma das provas para tal suposição deriva de uma carta
que o pai, quando afundado em desonra (provocada pela queda da filha em 1536), enviou ao
13 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011. p. 158-
h, escrito por Alison Weir 14 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 157
14 www.rainhastragicas.com
secretário Cromwell pedindo-lhe ajuda, afirmando que sua mulher, nos primórdios do
casamento, concebia uma criança por ano. É possível que tal união tenha ocorrido em 1498, já
que o dote da noiva seria pago pela família desta apenas dois anos depois, ou seja, 1500.
Dessa forma, prestemos então a devida atenção para o quão incerto os pesquisadores
se encontram em definir as origens da segunda esposa de Henrique VIII. Outros autores,
como Carrolly Erikson, adotam 1507 como uma possível data de nascimento, baseados nas
pesquisas de William Camden em 161515
. Essa sugestão perde plausibilidade quando
confrontada com o fato de Ana ter sido descrita em 1514 como tendo aproximadamente
quinze anos, e vinte em 1521. Nas palavras da historiadora Antonia Fraser:
... Essa hesitação e confusão quanto à juventude de Ana Bolena tem uma explicação
bem simples: ali está uma jovem comparativamente desconhecida, que de repente
salta para a fama (ou notoriedade) na idade adulta. Passaram-se mais alguns anos, e
ela se tornou uma espécie de ‘não ser’ depois de sua queda. Passou-se uma geração
e, vejam só, ela era a mãe do soberano que reinava...16
Sua genealogia também não era das mais ilustres (embora possamos identificar na
mesma alguns membros da nobreza, como se verá mais adiante): o pai era neto de Sir
Geoffrey Bolena, outrora prefeito de Londres (1447) e comerciante de tecidos que, com o
dinheiro que acumulou, comprou as terras de Blickling Hall, em Norfolk, e o Castelo de
Hever, em Kent. Já pelo lado materno, descendia da nobre casa dos Howard, que tinham
parentesco direto com o rei Eduardo I. Com o término da Guerra das Duas Rosas (1485), a
família Howard sofreu um duro golpe em suas finanças, visto que Thomas Howard, segundo
duque de Norfolk, lutava por Ricardo III. Como consequência, o título lhe fora tomado e ele
fora preso. Contudo, 4 anos depois ela obtinha a liberdade, conseguindo manter, inclusive, o
condado de Surrey. A família Bolena, por sua vez, gozava de crescente prosperidade naquele
período e mantinha boas relações com os Howard, de modo que foi possível arranjar um
casamento entre a filha mais velha do conde, Elizabeth, com o herdeiro dos Bolena,
Thomas17
.
Cortesão deveras experiente e fluente em mais de um idioma, Thomas Bolena
conseguiu para a filha mais jovem, e de mente mais aguçada, uma posição no séquito de
15 Escrevendo sobre as conclusões de Camden, Alsion Weir em sua biografia de Maria Bolena (2011), afirma
que “according to the marginal note made by William Camden in 1615, Anne was born in 1507, the date also
given by Henry Clifford in his memoir of Jane Dormer, Duchess of Feria, printed in 1643, long after it was
written; according to the letter, Ann was ‘not twenty-nine years of age’ at the time of her execution in 1536”.
WEIR, Alison. Op.cit. 2011, p. 15 16 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 158 17 WEIR, Alison. Op.cit. 2011, p. 9
15 www.rainhastragicas.com
Margaret da Áustria, a regente dos países baixos (dependentes do comércio de tecidos e lãs da
Inglaterra). A corte borgonhesa era um verdadeiro centro artístico e intelectual do período.
Enviada para este espaço em 1513, foi aí que Ana desenvolveu muitos de suas aptidões para a
música, dança e pintura, uma vez que a arquiduquesa era particularmente conhecida por seu
patronato a pintores e escultores, e também pelos poemas de sua autoria. À época,
mademoiselle Boullan (como era então conhecida), deveria estar com doze ou treze anos
(idade mínima para uma fille d’honneur, o que mais uma vez corrobora para que seu
nascimento tenha ocorrido em 1501) e já havia atraído boa impressão por parte da nobreza
local. Em missiva ao pai da mesma, a regente teria escrito que a achava “tão apresentável e
tão agradável, considerando-se sua a pouca idade, que estou mais agradecida ao senhor por tê-
la mandado para mim, do que o senhor a mim (...)” 18
.
De La Vure (hoje Terveuren), quando a corte da Arquiduquesa passava o verão em
Freyr, um palácio localizado nas proximidades de Bruxelas, Ana escreveu ao pai sua primeira
carta de que se tem registro (ver a figura 1), na qual compartilhava das ambições de seu
progenitor. Escrita em francês, a missiva atesta como a autora ainda encontrava-se deficitária
no idioma comercial da Europa. A mensagem dizia o seguinte:
Senhor, eu entendo pela sua carta que você deseja que eu me torne uma mulher de
boa reputação quando eu for para a corte, e você me diz que a rainha se dará ao
trabalho de conversar comigo, e isso me dá grande alegria, de pensar em falar com
uma pessoa tão sábia e virtuosa. Isso me deixará entusiasmada para falar bem o
francês, e especialmente também porque você me aconselhou para trabalhar de
minha parte nisso, tanto quanto eu puder 19.
Todavia, esse documento também demonstra certa maturidade e independência por
parte da jovem, pois no segmento do mesmo, ela escreve em linhas bem delineadas que
redigia a missiva sem a orientação de Symonnet, seu tutor. Isso, por sua vez, denota que a
filha desejava mostrar ao pai como seus estudos estavam progredindo. Ao atingir as
expectativas de Sir Thomas, um destino ainda mais brilhante aguardava Ana, quando fora
convocada para integrar, um ano depois, o grupo de damas de Mary Tudor, que viajava a
França para se casar com o idoso rei Luís XII20
.
18 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 163 19 Tradução de: “Sir, I understand from your letter that you desire me to be a woman of good reputation [toufs
onette fame] when I come to court, and you tell me that the queen will take the trouble to converse with me, and
it gives me great joy to think of talking with such as wise and virtuous person. This will make me all the keener
to persevere in speaking French Well, and also especially because you have told me to, and have advised me for
my own part to work at it as much as I can” IVES, Eric W. Op.cit. p. 19 20 Segundo Antonia Fraser, aos 13 anos, Ana Bolena já tinha idade para demonstrar sua inteligência,
convencendo seu pai de que vai a pena continuar investindo nela. Não obstante, “tinha um personalidade muito
16 www.rainhastragicas.com
Ana, certamente, teve acesso à coleção de manuscritos iluministas de Margaret,
incluindo livros e objetos de arte, e rapidamente absorveu boa parte da ideologia que aquela
atmosfera renascentista poderia lhe oferecer21
. Em 14 de agosto de 1514, Sir Thomas escreveu
à arquiduquesa pedindo permissão para que esta dispensasse sua filha das atividades na corte.
Sendo assim, após ter passado pouco mais de um ano nos países baixos, onde adquiriu uma
educação sofisticada, mademoiselle Boullan juntou-se à sua irmã mais velha no serviço de
Mary Tudor, que deixou a Inglaterra com extensa comitiva em outubro, e foi coroada rainha
consorte da França em seis de novembro daquele ano22
. Porém, a irmã mais nova de Henrique
VIII não conservaria por muito tempo o status de soberana do país mais requintado da
Europa, pois seu marido, o rei, já muito doente e idoso, faleceu. A princesa Mary, porém,
retornaria à pátria novamente casada, dessa vez com Charles Brandon, sem que os demais
soubessem. Enquanto isso, a filha mais nova dos Bolena permaneceria subordinada à nova
rainha, Claudia de Valois, em um universo pecaminoso e repleto de glamour, onde uma dama
facilmente se entregaria aos jogos de amor, cujo maior prêmio era sua honra23
.
Os anos franceses
Se discorrer sobre a infância de Ana Bolena e suas atividades na corte da arquiduquesa
Margaret da Áustria já é tarefa complicada, investigar os sete anos que passou na França
constitui-se num campo ainda mais especulativo. Eric Ives24
, autor da biografia mais completa
(atualmente) sobre a segunda esposa de Henrique VIII, aponta para o fato de que seu nome
não constava na lista de damas que partiram com Mary Tudor para Paris em outubro de 1514,
mas apenas o de sua irmã, Maria. Não obstante, as circunstâncias que fizeram Ana
permanecer a serviço da rainha Cláudia são ainda mais misteriosas. Provavelmente, os
atributos da jovem chamaram a atenção da consorte do novo rei, Francisco I: nos países
baixos ela tornara-se extremamente notável na dança, uma arte que era muito apreciada nos
grandes centros renascentistas; seu francês estava muito mais sofisticado; era inteligente e
diferente da de sua doidivanas irmã Mary; muito mais inteligente e muito mais aplicada”. FRASER, Antonia.
Op.cit. pp. 163-4 21 IVES, Eric W. Op.cit. p. 22 22 Contudo, Eric Ives aponta para o fato de que “ in august 1514, therefore, Anne was one yhe list for France, bur
what happened then is no clear. Her sister Mary was also to go, and a list in the French archives shows that Mary
Boleyn was one of the ladies in the household of the new queen of France, but it no mention of Anne” Idem. p.
27 23 Ibid. p. 29 24 Ibid. p. 27
17 www.rainhastragicas.com
esforçada, inclusive em atividades caseiras, como corte e costura. Enfim, o conjunto dessas
habilidades recomendou aquela adolescente ao séquito de aias de Cláudia de Valois.
Figura 2 – Rei Francisco I de França, atribuído da Jean Clouet25
.
Entretanto, para uma dama ser bem sucedida na corte de França, especialmente uma
com a idade tão precoce como a de Ana Bolena, era preciso dominar o jogo do amor cortês,
que, em tese, incluía demonstrações de cordialidades entre uma mulher e um homem. Mas na
nova monarquia do rei Francisco, as coisas eram muito mais extravagantes do que deveriam
ser, e o que era apenas uma forma de demonstrar amizade diferenciada, acabava resultando
em escandalosos casos sexuais, e extraconjugais. Carolly Erikson diz-nos o seguinte:
... Para uma menina, constituía-se uma educação temerária observar o tumultuoso e
sensual jogo galante entre ambos os sexos e o alto preço do temor e dor que as
mulheres logo pagavam. Na realidade, Ana devia conhecer, na idade adulta, todo o
alcance dessas modas eróticas, toda a variedade do amor, desde a amizade até o
prazer...26.
Sendo assim, não deve ter sido raro para a filha de Sir Thomas Bolena presenciar
separações de casais que muitas vezes resultavam em morte, especialmente da mulher. Era
25 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-g,
escrito por David Starkey. 26 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 33
18 www.rainhastragicas.com
preciso muito autocontrole e perspicácia para dominar o jogo de amor cortês em França, e
provavelmente Ana possuía tal atributo, uma vez que não chegou ao conhecimento dos
historiadores nenhum desvio de sua conduta nos anos em que passou na corte do rei
Francisco.
De acordo com IVES27
, existe ainda uma possibilidade de Ana Bolena ter conhecido
Leonardo da Vinci, um dos maiores nomes do renascimento, quando este, a convite e
pensionado pelo rei, chegou a Amboise, no ano de 1516. Também é aceitável de que tenha
acompanhado Cláudia e Louise de Savóia na jornada cerimonial de boas vindas a Francisco I
(ver a figura 2) depois de sua vitória em Marignano, em outubro de 1515. Outro evento de que
Ana provavelmente fez parte foi no triunfo pessoal da rainha em maio de 1516, quando ela foi
coroada em Saint Dennis e em seguida, quando fez sua entrada estatal em Paris. Sabe-se
também que estabeleceu laços amigáveis com Margaret D’Angoulême, futura rainha de
Navarra e irmã do rei, uma mulher muito culta e que mais tarde seria conhecida por ser uma
defensora do protestantismo. Para a maioria dos biógrafos de Ana, a figura de Margaret
exercera uma forte ascendência sobre a personalidade mademoiselle Boullan, principalmente
por ser uma defensora da influência feminina. Mais tarde, em 1535, Ana se referiria a
Margaret como “uma princesa que sempre amara de verdade” 28
.
A educação de Ana Bolena, inclusive, a credenciava a agir como intérprete nas
missões inglesas em França, como, por exemplo, em 22 de dezembro de 1818, quando houve
um banquete dado na Bastilha para a delegação de Henrique VIII, que estava a negociar o
casamento de Delfim com a filha do rei Tudor. Outra grande ocasião em que ela pode mostrar
sua utilidade foi no “Campo do tecido de ouro”, que celebrou o encontro entre os monarcas da
França e da Inglaterra, de 7 a 23 de junho d 152029
. É possível que sua mãe e irmãos também
estivessem presentes na ocasião, visto que Sir Thomas Bolena agia como embaixador.
Entretanto, ainda é muito cedo pra dizer que Henrique teria se encantado por ela em tal
ocasião. Naquele tempo, porém, Ana era uma jovem que acabava de entrar na casa dos 20
(caso adotemos 1501 como a data de seu nascimento), uma idade ideal para que a mulher
fosse escalada pela família para um casamento vantajoso, tal qual acontecera com Maria
Bolena. E o noivo já estava em vista: James Butler, filho de conde de Ormonde.
27 IVES, Eric W. Op.cit. p. 30 28 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 165 29 IVES, Eric W. Op.cit. p. 31
19 www.rainhastragicas.com
Capítulo 2
A corte inglesa
Figura 3 – Ana Bolena, por artista desconhecido. Cópia de um retrato original perdido do
séc. XVI30
.
O retorno de mademoiselle Boullan à Inglaterra esteve ligado aos planos de casamento
que seu tio, Thomas Howard (então conde de Surrey) e o cardeal Wolsey (chanceler do reino)
estavam a fazer entre ela e James, filho de Piers Butler, conde de Ormonde. Não obstante, o
início da terceira década do século XVI foi marcado pelas hostilidades entre Henrique VIII e
Francisco I, logo após as comemorações do “Campo do tecido de ouro”. A questão do
matrimônio, por sua vez, afigurou-se como uma tentativa de apaziguar as ambições de Sir
Thomas Bolena à herança de sua mãe, Margaret (filha do velho conde de Ormonde, que
morreu tendo apenas duas filhas, fazendo com que um primo distante, Piers Butler,
reivindicasse a patente). Ao que parece, o pai de Ana ainda não estava satisfeito por ter aberto
30 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011. p. 158-
d, escrito por Alison Weir.
20 www.rainhastragicas.com
mão do título, em troca de algumas posses31
. Nesse processo, é importante também colocar
que era desejo do próprio Henrique que a união entre ambos os jovens, com idades
aproximadas, se procedesse32
.
Em outubro de 1521, Wolsey escreveu ao rei em Calais uma carta na qual dizia que
quando regressasse à corte “dedicar-me-ei em pleno ao aperfeiçoamento desse casamento” 33
.
Naquele tempo, James Butler era membro da casa do cardeal, enquanto a noiva, juntamente
com outros cortesãos, retornaria de França, passando a integrar o séquito de aias da rainha
Catarina de Aragão. Sua primeira grande aparição na corte de que se tem registro foi numa
peça teatral ao lado de damas influentes, como a ci-devant rainha da França, Mary Tudor
(agora duquesa de Suffolk), na qual representara o papel de perseverança, aprisionada com
outras virtudes numa fortaleza guardada por outras jovens que simbolizavam alegoricamente
os vícios humanos34
. O rei, que se sabe um grande admirador de tais festividades, participou
da dramatização disfarçado de cavaleiro, liderando o assalto ao castelo, ao que se seguiu uma
simulação de luta na tradição borgonhesa, e de um baile, com paços de dança
coreograficamente elaborados35
.
Qual a aparência de Ana Bolena quando de seu retorno é outro fator de discussão entre
seus principais biógrafos. Se tomarmos como referência os retratos da mesma, perceberemos
ali uma moça que não se enquadrava nos padrões estéticos daquele período, que valorizava
mulheres loiras e de olhos azuis36
. Segundo David Loades,
... O aspecto de Ana nesta fase foi descrito ou recordado por muitos escritores, que
discordam em considera-la favoravelmente ou não, mas que são unânimes em certos
aspectos. Ela não era de uma beleza deslumbrante, mas tinha uma sexualidade
eletrizante: ‘Muito eloquente e graciosa, e razoavelmente bem-parecida’, escreveu
um contemporâneo que a conhecia bem, apesar de se tratar de um padre que
dificilmente comentaria os seus atrativos...37.
31 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 166 32 IVES, Eric W. Op.cit. p. 35 33 LOADES, David. As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-XVII). Tradução
de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010. . 128 34 O evento se passou em 1 de março de 1522 e ficou conhecido como “the assault on ‘the Château Vert” (o
assalto ao castelo verde): “there were eight court ladies involved, each cast as one of the qualities of the perfect
mistress of chivalric tradition – Beauty, Honour, Perseverance, Kindness, Constancy, Bounty, Mercy and Pity”.
A princesa Mary ficou com o papel da “beleza”, enquanto Maria, irmã de Ana, que também estava presente na
celebração, interpretou a “gentileza”. IVES, Eric W. Op.cit. p. 37 35 LOADES, David. Op.cit. p. 128 36 Para uma melhor descrição da aparência física de Ana Bolena e de seus retratos, ver o apêndice 1: “As várias
faces de Ana Bolena”. 37 LOADES, David. Op.cit. p. 129
21 www.rainhastragicas.com
Porém, a descrição mais confiável provém de um diplomata veneziano que estava
presente na corte inglesa na época: “Não é uma das mulheres mais bonitas do mundo, tem
estatura média, compleição escura, pescoço cumprido, boca larga, um peito não muito saliente
e olhos que são negros e lindos...” 38
. Antonia Fraser39
discorre acerca da possibilidade de Ana
ser usuária de cosméticos, preparados a partir de urtiga, folhas de hera, cinabre, enxofre e
açafrão, para clarear sua tez cor de oliva e os cabelos, que eram muito escuros, geneticamente
herdados de sua avó irlandesa40
.
Contudo, o que fascinava os rapazes na compleição física de Ana Bolena era o fato de
que, nas palavras de Eric Ives41
, “ela irradiava sexo”. Passara tantos anos na corte do rei
Francisco que quando retornou, fora descrita como mais francesa do que inglesa. Seus modos
coquetes, aliados à maneira de vestir-se, contribuíam para uma opinião como essas acerca de
sua personalidade. Além disso, sabia tocar diversos instrumentos e manter uma conversa
interessante por várias horas, tanto em sua língua natal, como em francês. Porém, os homens
sentiam-se também intimidados pelo seu caráter, dotado de fortes opiniões, o que, por sua
vez, desagradavam-nos. As negociações de casamento com Jaime Butler simplesmente não
foram adiante, ora por que o conde de Ormonde precisou retornar para a Irlanda a fim de
resolver um entrave político, ora por que Sir Thomas não estava satisfeito com o acordo pré-
nupcial. Todavia, “a jovem e viçosa donzela” já estava enamorada de um dos grandes
herdeiros do reino, de quem, suspeita-se, teria extraído uma promessa de matrimônio: Henry
Percy, filho do quinto conde de Northumberland42
.
Os amores de Ana Bolena
A relação que mademoiselle Boullan desenvolveu com Henry Percy, herdeiro do
quinto conde de Northumberland, serviu para inúmeras passagens de livros de romancistas
como Robin Maxwell em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997) e Philippa Gregory em The
Other Boleyn Girl (2001). Porém, a maior fonte de que dispomos como referencial da 38 Idem. p. 129 39 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 167 40 Ao se referir sobre os cosméticos utilizados no século XVI para branqueamento da pele, Antonia Fraser sugere
que “teria sido necessária uma grande quantidade de açafrão e enxofre para clarear a tez cor de oliva de Ana
Bolena. Este era outro elemento sobre o qual os comentadores concordavam, quando classificavam a sua cor de
‘muito escura’ (fúscula) ou pálida (subflavo), ‘como sofrendo de icterícia’, ou ‘não tão esbranquiçada quanto (...)
acima de tudo possamos avaliar”. Idem. 41 IVES, Eric W. Op.cit. p. 45 42 FRASER, Antonia. Op.cit. pp. 169-70
22 www.rainhastragicas.com
veracidade de tal união é a biografia que George Cavendish, serviçal do cardeal Wolsey,
escreveu anos mais tarde sobre seu amo. Segundo ele, Percy, que era membro da comitiva do
cardeal, tinha o costume de frequentar a câmara privada de Catarina de Aragão inicialmente
“para se distrair”, e lá teria se deparado com uma jovem dama de olhos negros e penetrantes.
Passavam horas a fio conversando e se entretendo na melhor tradição do amor cortês, uma
espécie de amizade em forma de galanteria muito comum no período. Mas, com o andar dos
dias as coisas foram ficando mais sérias de modo que “desenvolveu-se tal amor secreto entre
eles que depois de um certo tempo os dois ficaram garantidos’ (isto é, ficaram unidos por uma
promessa de casamento ou pré-contrato)” 43
.
A natureza de tal relacionamento e até que ponto ele teria avançado ainda permanece
um mistério. Naquele período, Henry Percy estava prometido à jovem Mary Talbot, filha do
conde de Sherewsbury (embora, inicialmente, as negociações de noivado entre eles tivessem
se esfriado). Northumberland era um grande senhor de terras do norte e, como tal, enviou o
filho de 14 anos para o sul, onde receberia uma educação apropriada44
. Como membro da casa
de Wolsey, cabia ao cardeal a responsabilidade pela conduta de seu aprendiz, e um caso com
uma jovem de ascendência comum não fazia parte dos planos da família deste. Nas palavras
de Francis Hackett,
... A esbelta moça de olhos negros e o rapaz tinham-se descoberto, e não tardaram
em apaixonar-se de tal forma que era impossível ocultá-lo. Percy não tinha a menor
ideia da imprudência que cometera até a noite fatal em que, voltando da corte com o
seu senhor, foi rudemente avisado de que o Cardeal o esperava na grande galeria...45.
O círculo estava voltado contra Percy, e Wolsey estava disposto a acabar de vez com
as ambições do jovem em relação à senhorita Bolena. Mesmo tendo feito uma intrépida defesa
de sua escolha, na qual ressaltou sua nobre linhagem como justificativa para agir como bem
entendesse, o chanceler foi mais astuto e mandou chamar o próprio conde de Northumberland,
que dissolveu as pretensões do filho com um rude sermão, ressuscitando o compromisso deste
com Mary Talbot.
De acordo com alguns historiadores, esse fora o início da desilusão de Ana Bolena,
que de donzela apaixonada, passou a nutrir incontido rancor por quem considerava o
responsável pelo seu infortúnio: o cardeal Wolsey. Fora então despachada da corte para o
castelo de sua família, em Kent, e lá permaneceria até obter o perdão real. Todavia, o
43 Idem. p. 170 44 Ibid. 45 HACKETT, Francis. Henrique VIII. Tradução de Carlos Domingues. – São Paulo: Pongetti, [1950]. p. 174
23 www.rainhastragicas.com
principal agente da empreitada que levou ao rompimento de Ana e Henry Percy foi o próprio
Henrique VIII, que se beneficiaria com o casamento entre os filhos de dois dos mais
importantes nobres da região norte do país46
. Não podemos saber se a essa altura (algures em
1523) o rei já tinha posto os olhos naquela moça, que vira na figura do cardeal um bode
expiatório para todas as suas raivas, e embora muitos tendam a supor que o exílio de Ana fora
longo, Carolly Erikson47
afirma que na verdade durara bem menos do que se pensa (o que
pode ser um forte indicador dos interesses do soberano, que não queria manter longe por
muito tempo o alvo de suas paixões).
Figura 4 – Sir Thomas Wyatt, por Hans Holbein (o Jovem) 48
.
Contudo, pouco depois de mademoiselle Boullan retornar à corte, seu nome estaria
ligado ao de outro homem: o poeta Thomas Wyatt (ver a figura 4). Tal como os Bolena, a
46 Em nota à página 171, Antonia Fraser (2010) diz o seguinte: “George Cavendish, como outro membro da
criadagem de Wolsey (ele era escudeiro dele) foi testemunha do romance de Percy com Ana Bolena; por isso,
seu depoimento sobre o desenvolvimento desse é valioso. Mas ele não foi testemunha dos colóquios entre o rei e
o cardeal sobre o assunto. Trinta anos depois – na década de 1550 –, quando redigiu a biografia de Wolsey, foi
fácil demais reduzir as datas e partir do pressuposto de que Henrique tinha sido contra o casamento de Percy por
desejar Ana Bolena”. 47 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 59 48 Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books,
2010. p. 202-j, escrito por Alison Weir.
24 www.rainhastragicas.com
família Wyatt morava em Kent, próximo ao castelo de Hever. Sendo assim, é possível que ele
e Ana tivessem se conhecido ainda crianças. De acordo com uma biografia que o neto, George
Wyatt, escreveu sobre o avô, Thomas apaixonara-se por aquela jovem dama desde sua volta
da França. John Lelanden o descreveu como um rapaz “alto, de vigorosos músculos e tendões,
agregados a um belo rosto” 49
. Era, acredita-se, mais novo um ou dois anos do que ela.
Entretanto, em princípios de 1526, pouco antes de sua viagem para o exterior, já estava
casado com Isabel Brook e com um filho, de modo que não estava livre para desposá-la.
Desse modo, é provável que o envolvimento entre ambos não tenha ido além das regras de
amor cortês, incluindo rejeições por parte dama, que não queria tornar-se amante do rapaz50
.
Há muitas referências à Ana na poesia dele, e consequentemente de suas recusas aos
avanços amorosos do mesmo. Dentre elas, a que mais ilustra sua situação de sentimento não
correspondido é aquela em que ele faz referência à mulher que o seduzira e depois o
abandonara:
Quem quiser ir à caça? Eu sei onde está uma corça
Mas, de minha parte, ai de mim já não posso
Este trabalho vão cansou-me cruelmente
Eu sou um dos últimos chegados
E contudo o meu espírito lasso não pode desprender-se
Da sua pressa, e enquanto ela foge
Eu busco em vão segui-la. Finalmente detenho-me:
seria o mesmo querer perder o vento nas malhas de uma rede.
Quem quer dar-lhe caça? Eu posso assegurar-lhe
Que, como eu, perde o seu tempo em vão
Em redor de seu colo, em letras de diamante
está claramente escrito:
Noli me tangere, porque eu sou de Cesar
E difícil de reter, embora pareça domesticada51
.
49 Idem. p. 61 50 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 173 51 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 177
25 www.rainhastragicas.com
Os versos finais são bastante claros acerca dos motivos que levaram o poeta a não
mais investir naquela dama: o César, de que faz menção, nada mais era do que o próprio rei
Henrique VIII, que foi mais uma vítima dos encantos de Ana Bolena. Uma vez que se tornara
fruto dos desejos do rei, significava que nenhum homem além dele podia tê-la. Todavia, a
última frase do poema revela um aspecto fundamental acerca do caráter da dama: ela podia
parecer dócil à primeira vista, mas era alguém cujas convicções e ambição eram difíceis de
apaziguar.
26 www.rainhastragicas.com
Capítulo 3
Uma simples dama da corte contra a grande princesa de Castela.
Figura 5 – Uma das 17 cartas que Henrique VIII escreveu para Ana Bolena52
.
Não se sabe ao certo quando Henrique VIII começou a questionar a validade do
casamento com sua consorte, e ambicionou contrair matrimônio com a jovem filha de Thomas
Bolena. A princípio, sua intensão era toma-la como amante, tal como fizera com a irmã da
mesma, Maria53
. Todavia, Ana era mais determinada, e não queria comprometer sua virtude
sem a certeza de que poderia sair desse relacionamento com a reputação ilesa. Por outro lado,
não tinha como barrar as investidas do rei, encantado por aquela mulher de aparência tão
díspar e de energia tão cativante que lhe traria o conforto que não mais encontrava nos braços
52 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:
Blackwell Publishing, 2010. p. 202-l, escrito por Eric Ives. 53 As intenções do rei de fazer Ana Bolena sua amante ficou exposta em uma das cartas que o mesmo enviou a
ela, onde dizia “se vos aprouver cumprir os deveres de uma sincera e leal amante, e entregar-se a mim de corpo e
alma, eu serei, como sempre fui, o vosso servidor mais leal (se o vosso rigor não mo vedar), e prometo-vos que
não vos darei só o nome de amante; vós o serei efetivamente, eu afastarei do meu pensamento e da minha afeição
todas aquelas que possam competir convosco, e não servirei senão a vós”. HACKETT, Francis. Op.cit. p. 183
27 www.rainhastragicas.com
da esposa de 40 anos. Provavelmente, pelo idos do carnaval de 1526, o rei já se tinha deixado
enamorar pela dama em questão54
; em abril do ano seguinte, estava claro que queria uma
anulação do seu casamento com Catarina de Aragão, pois foi quando se deu início às
primeiras reuniões para avaliar a validade do matrimônio entre o oitavo Henrique e a filha dos
reis católicos, que, em dezoito anos de casamento, não lhe dera filhos homens saudáveis,
exceto uma garota de compleição debilitada.
A determinação do rei em conquistar mademoiselle Boullan está bem documentada
pelas apaixonadas cartas que este lhe escreveu, onde demonstra uma jovialidade e interesse
pouco comuns para um rei de 35 anos. Ao todo, existem 17 dessas correspondências (ver a
figura 5), arquivadas por meios misteriosos na Biblioteca do Vaticano55
. Nenhuma delas,
porém, está datada, mas algumas referências internas ajudam a coloca-las numa espécie de
ordem56
. Em tais missivas, podemos perceber o sangue e o amor do autor, quando ele diz:
Revolvendo no meu pensamento o conteúdo das vossas últimas cartas, eu me acho
nos tormentos mais dolorosos, não sabendo se elas me são desfavoráveis, como
compreendo em muitos pontos, ou favoráveis, como me parecem em alguns outros;
eu vos suplico agora, com o mais intenso ardor, que me façais conhecer inteiramente
as vossas intenções, pelo que respeita ao amor entre nós dois...57.
A partir deste trecho percebemos como Ana ainda tentava recusar as investidas do rei.
Porém, a insistência do mesmo a deixava sem saída. Em determinado momento, ela deve ter
percebido que garantir a atenção do monarca poderia lhe garantir muitos benefícios. Além do
mais, como súdita, ela não podia simplesmente rejeitar as atenções do rei.
Muitas das cartas de Henrique para Ana eram escritas em francês, haja vista que
ambos dominavam esse idioma, enquanto que a maioria dos demais cortesãos não58
. Isso, por
sua vez, ajudava a manter o conteúdo de tais correspondências em segredo. Em outras delas, o
escritor já demonstra mais felicidade e segurança quanto à afeição que a amada lhe tinha,
quando agradece por um presente que esta havia lhe dado (um pingente com uma donzela
dentro de um barco, que navegava num mar revoltoso), dizendo também que:
54 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 175 55 Em nota à página 176, Antonia Fraser (2010) diz o seguinte: “Lá, elas receberam de um arquivista
desconhecido a numeração que é usada desde então: não há dúvida de que ela não é cronológica. São várias as
teorias sobre a maneira pela qual as cartas do rei chegaram a Roma: talvez um espião papal as tenha roubado em
1529, já que não parece que o legado papal, cardeal Campeggio, tentasse contrabandeá-las, como certa vez foi
sugerido. Outra possibilidade é de que as cartas tenham ficado na Inglaterra: poderiam, por exemplo, ter ficado
em Hever, ter sido passadas pelo proprietário da época, o católico Edward Waldegrave, a um padre que ele
estava protegendo e que as levou para Roma...” 56 Ibid. 57 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 183 58 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 176
28 www.rainhastragicas.com
... As vossas demonstrações afetuosas são tais, os delicados pensamentos da vossa
carta são expressos tão cordialmente que me obrigam para sempre a honrar-vos,
amar-vos e servir-vos sinceramente, suplicando-vos que persistais com firmeza e
constância no vosso sentimento; e asseguro-vos que, de minha parte, não só vos
corresponderei, mas, se possível, vos superarei em plena lealdade de coração...59.
Curiosamente não sobraram quaisquer respostas de Ana a essas cartas do rei, talvez
porque ele mesmo as destruiu a fim de preservar o segredo de seu relacionamento com ela.
Entretanto, em breve todas as cortes da Europa saberiam que Henrique VIII de Inglaterra
desejava anular seu casamento com uma esposa estéril (lembremos que o divórcio não era
permitido pelas leis bíblicas) e se casar com uma mulher mais jovem. Wolsey tencionava
arrumar-lhe como noiva a princesa Renata da França, mas seu senhor já tinha em vista a
candidata que considerava ideal.
No entanto, as circunstâncias não eram tão favoráveis como Henrique imaginava. Por
mais de trinta anos os franceses e uma sucessão de inimigos (mais recentemente os
Habsburgos) vinham lutando pelo domínio da Itália. Em maio de 1527 essa situação atingiu
seu clímax quando as tropas do Imperador Carlos V saquearam a cidade de Roma. Por muitos
meses o Papa Clemente VII ficou como prisioneiro em sua própria cidade e depois em um
paupérrimo refúgio60
. Além disso, uma série de outras questões contribuiu para o que ficou
conhecido como “o grande caso do rei” não apresentasse uma solução rápida e fácil. Em
grande parte, isso se deveu à perseverança de uma mulher determinada a continuar no lugar
que na sua convicção Deus lhe destinara, dispondo para tanto de todo seu poder e influência
na tentativa de assegurar a herança de sua filha, e a impedir que Ana Bolena, a quem chamou
certa vez de “o escândalo da cristandade”, se tornasse rainha da Inglaterra.
Um casamento, a priori.
Para compreender os motivos pelos quais Henrique VIII decidiu se separar da esposa,
primeiro é preciso remontar os passos desta, empreendendo assim uma viagem que se inicia
na Espanha, quando os reis Católicos estavam em campanha contra os mouros de Granada.
Catarina de Aragão (ver a figura 6) era filha legítima dos dois mais famosos monarcas da
História do cristianismo: Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão. Nascera praticamente
59 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 184 60 IVES, Eric W. Op.cit. p. 46
29 www.rainhastragicas.com
no meio do campo de batalha, em 1485, e desde cedo fora prometida em casamento ao filho
mais velho do rei Henrique VII da Inglaterra, Arthur. A dinastia Tudor acabara de chegar ao
poder naquela ilha, há anos devastava pela Guerra das Duas Rosas. Sendo assim, um
casamento com uma potência estrangeira ajudaria a solidificar os alicerces da autoridade do
novo rei, e a escolha para tal tarefa recaíra na figura da figura da mais jovem entre as filhas de
Fernando e Isabel. Destarte, sua mãe providenciou-lhe uma excelente educação, nos moldes
do catolicismo; tornara-se fluente em mais de uma língua, como, por exemplo, o latim e o
francês, e passava horas a deleitar-se com os inúmeros livros da biblioteca de seus pais, além
de ser uma hábil costureira61
.
Figura 6 – Catarina de Aragão, atribuído a Lucas Hornebolt62
.
Em 1501, já com 16 anos, fora enviada à corte Inglesa e condecorada com o título de
princesa de Gales, em virtude de seu matrimônio com o príncipe Arthur. Mas, para infortúnio
de Catarina, o jovem príncipe era de saúde precária e morreu seis meses após a celebração de
casamento. Contudo, uma dúvida pairava na cabeça de todos os cortesãos: teriam os dois
61 Sobre a educação de Catarina de Aragão, assim como outras passagens de sua vida, é imprescindível a
consulta do livro Catherine of Aragon (1942), escrito por Garret Mattingly. Ver mais em MATTINGLY, Garret.
Op.cit. pp. 15-37. 62 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-e,
escrito por David Starkey.
30 www.rainhastragicas.com
jovens consumado ou não a união? Essa questão até hoje salta aos olhos dos pesquisadores,
que divergem em suas opiniões. Quando o príncipe de Gales morrera, muitos acreditaram que
Catarina poderia estar carregando um filho dele, mas à medida que seu corpo não apresentava
mudanças, essa esperança logo desapareceu. Dona Elvira, representante da rainha Isabel em
Inglaterra, afirmou que sua protegida ainda era virgem, o que não era impossível, dada à idade
precoce dos noivos (ela tinha 16 e ele 15) e à fragilidade física de Arthur63
.
Contudo, a afirmação que o príncipe teria feito após a lua de mel do casal, de que
passara a noite “no meio da Espanha” é bastante confusa. O mais provável é que este estivesse
a contar vantagens por uma coisa que não fez, pois se assumisse o fracasso, seria
ridicularizado diante da corte, e reprimido pelo próprio pai64
. De acordo com Antonia Fraser,
Num período em que os casamentos eram, com frequência, contratados por motivos
de Estado entre crianças ou entre seres em torno das fronteiras da infância e da
adolescência, tomava-se mais, e não menos, cuidado quanto ao momento da
consumação. Uma vez oficialmente completado o casamento, poderiam passar-se
alguns anos para que se julgasse que o momento adequado chegara...65.
Para uma mulher de mentalidade extremamente cristã como a de Catarina, o que
estava em jogo não era apenas o destino que acreditava ser o seu (o de tornar-se rainha da
Inglaterra), mas sua alma imortal perante Deus. Confiando na palavra da filha, o rei Fernando
recorreu ao papa Júlio II para emitir uma bula, permitindo uma nova união entre a princesa
viúva e Henrique, irmão de seu finado marido. Porém, tal documento constava uma cláusula
na qual o casamento tornava-se válido mesmo a princesa fosse virgem ou não66
.
Esse ponto demonstra diversas interpretações: a) os reis católicos queriam ver sua filha
coroada rainha da Inglaterra; b) Henrique VII queria garantir a outra parte do dote da noiva
que ainda não havia sido paga. Então, com a dispensa pronta, começaram-se os preparativos
para um novo contrato de casamento entre uma mulher de quase 20 anos e um rapaz de 11.
Muitos anos ainda se passariam até que aquela princesa alcançasse seu destino. Desde a morte
de Arthur, em 1502, até a coroação de Henrique VIII, em 1509, Catarina passaria anos difíceis
na Inglaterra, com pouco orçamento para manter sua casa e criadagem. O rei, à medida que
63 Segundo a história de Catarina, que ela mesma contara no confessionário ao cardeal Campeggio em 1529, ela
e Arthur só haviam compartilhado o leito por sete vezes, mas em momento algum ele a “conhecera”. FRASER,
Antonia. Op.cit. p. 44 64 Sobre essa afirmação, Antonia Fraser ressalta que “não existe registro contemporâneo algum da opinião do
príncipe Arthur sobre o assunto, e não há dúvida que não se deve dar crédito a boatos vulgares divulgados muito
convenientemente vários anos depois por cortesãos que, estava evidente, esperavam atender aos interesses de seu
senhor”. Idem. p. 45 65 Ibid. p. 44 66 Ibid. pp. 54-5
31 www.rainhastragicas.com
Fernando não pagava o restante do dote, pouco se interessava pelo destino dela (embora tenha
cogitado a possibilidade de ser casar com a própria, o que foi duramente recusado pelos pais
da moça). Quando sua sogra, Isabel de York, morreu, em 1503, e a rainha Isabel um ano
depois, a princesa viúva não tinha ninguém que intercedesse a seu favor. Os embaixadores
espanhóis pouco faziam para recomendá-la ao favor de Henrique VII, já muito doente. A
situação da infanta havia-se tornado, então, um impasse para as coroas de Inglaterra e
Espanha67
.
Todavia, logo a sorte agiria em seu favor, quando o seu sogro morreu, passando a
coroa para o jovem príncipe Henrique, aos 17 anos. Tão logo subiu ao poder, o novo rei tratou
de tomar por esposa a viúva de seu irmão, coroando-a rainha. A felicidade daquela dama de
24 anos não podia ter mais fim: finalmente ela cumprira a função para o qual havia sido
enviada: tornara-se soberana. Uma vez no poder, eram vivíeis as suas qualidades, tanto como
esposa, quanto como monarca. Segundo um de seus principais biógrafos:
... Catarina pensou sempre que seu dever primordial era aconselhar o marido e o fato
de que a caridade e a educação absorveram seu tempo, não significa dizer que parara
de se interessar pela política externa. Porém, estava começando a compartilhar os
ideais pacifistas de More, Colet e Erasmo...68.
A partir do excerto acima, percebemos como a rainha se interessava pelos ideais do
humanismo, legando seu patronato, inclusive, aos principais pensadores da época e a grandes
universidades, a exemplo de Cambridge. Tornara-se uma mulher cada vez mais amada pelos
súditos, por seu caráter bondoso e compassivo. No entanto, ao passo em que não gerava um
herdeiro saudável para a coroa, o desapontamento do rei começa a surgir.
Em 1509, havia abortado uma garota, mas como era sua primeira gestão, não
significava que algo estivesse errado. O ano de 1513 trouxera mais felicidade para o casal,
quando um príncipe chegou. Organizaram-se torneios e festas para celebrar o nascimento do
pequeno Henry, que, infelizmente, viveria pouco mais de um mês. Ao todo, Catarina
engravidara sete vezes, das quais apenas uma menina sobrevivera: a futura Maria I. Mas
Henrique não queria como sua sucessora uma mulher, e sim um varão capaz de domar aquele
reino. Essa situação se complicara ainda mais quando o rei se deparou com um texto bíblico
do livro Levítico, que condenava a união entre um homem e a mulher de seu irmão, com a
penalidade de não vingarem filhos dos dois. Embora eles tivessem uma garota, Henrique
relacionou a palavra “filhos” a rebentos do sexo masculino. Como conforto pra seu desânimo,
67 Ibid. pp. 56-7 68 MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 235
32 www.rainhastragicas.com
passou a procurar aconchego nos braços de amantes, como Bessie Blount, que lhe dera um
menino bastardo, batizado de Henry Fitzroy, e Maria Bolena, a filha mais velha de Sir
Thomas Bolena, conhecida pela alcunha de “a grande prostituta”.
Ana e Maria, verdade e ficção.
A relação entre Ana e Maria Bolena foi tema do best-seller da escritora Philippa
Gregory, The Other Boleyn Girl (2001). Adaptado tanto para a televisão (2003), quanto para o
cinema (2008), o enredo da obra em questão traz uma série de fatos que nem sempre
conferem com os registros históricos. O público brasileiro, provavelmente, já deve ter tido
contato com a narrativa do romance através do filme “A Outra” (2008), que trás muitas
estrelas hollywoodianas em um cenário muito bem contextualizado, com banquetes em
grandes salões de palácios, e figurinos bem ilustrativos. Entretanto, a presente trama foi
também responsável por uma análise diferenciada de seus personagens, ao mostrar Maria
como a boa filha e sua irmã como a vilã. Em realidade, os registros nos mostram outra versão
deste caso, não tanto animadora ou cheia de paixões e intrigas como nos mostra Gregory, mas
mesmo assim fascinante. Nesse contexto, o que se afigura é a condição de submissão das
mulheres pelo que se denominava inferioridade do sexo feminino.
De acordo com o que vimos anteriormente, Maria (ver a figura 7) provavelmente era
a mais velha de seus irmãos Ana e George, tendo nascido por volta de 149969
, também em
Blickling Hall. Assim como acontece com a Bolena mais nova, muito do que se sabe hoje a
respeito da segunda amante de Henrique VIII baseia-se em especulações. Poucos são os
pesquisadores que se interessam em destrinchar a vida desta mulher, que representou um caso
de coragem na Inglaterra no século XVI. Segundo as opiniões de contemporâneos do período,
Maria apresentava todas as características valorizadas em uma dama: tinha cabelos e peles
claros, assim como um tom de tez muito apreciado, ou nas palavras de Carrolly Erikson, “era
sensual e precocemente atraente”. Todavia, o fato de seu pai não a ter enviado para a corte de
Margaret da Áustria, assim como fez com Ana, pode significar que este depositava mais
esperanças no sucesso da filha mais nova, do que na mais velha70
.
69 Alison Weir, em sua mais recente biografia sobre Maria Bolena (2011), sugere que a filha mais velha de
Thomas Bolena e Elizabeth Howard nascera em 1498 ou 1499 e que seu nome deriva da Virgem Maria. Nesse
caso, ela estipula a data de seu nascimento nas proximidades da festa da Anunciação (25 de Março), quando
muitas garotas eram batizadas em homenagem à mãe de cristo. WEIR, Alison. Op.cit. 2011, p.17 70 FRASER, Antonia. Op.cit. p.163
33 www.rainhastragicas.com
Figura 7 – Possível retrato de Maria Bolena, por atrista desconhecido71
.
Porém, logo a oportunidade de Maria chegaria: em 1514, ela foi escalada como dama
de companhia da Mary Tudor. Eric Ives72
sugere que quando a princesa retornou à Inglaterra,
é provável que a Bolena mais velha tenha ido junto com ela, mas não sua irmã menor, que
permaneceu no serviço da nova rainha. Contudo, Maria regressou com a reputação maculada
pelos escândalos pertinentes àquela corte. Erikson, ao discorrer sobre esse fato, diz que:
Francisco I se referia a ela com os termos ‘uma potranca’ ou ‘essa égua inglesa’, que
ele e muitos outros haviam desfrutado, cavalgando-a durante sua permanência em
França. E duas décadas depois de sua partida para a Inglaterra, a chamavam ainda de
uma ‘grande prostituta, mais infame que qualquer outra...73.
Todavia, Maria haveria tipo pouco tempo para construir tão negativo conceito em
França. Se os boatos forem verossímeis, podemos então supor que ela não voltou com Mary
Tudor para Inglaterra, mas permaneceu na corte francesa a serviço da nova rainha até 1519,
um ano antes de se casar.
71 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011. p. 158-
a, escrito por Alison Weir. 72 IVES, Eric W. Op.cit. p. 29 73 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 34
34 www.rainhastragicas.com
O noivo da moça era um mercador nobre de baixa extração, William Carey. A escolha
do pretendente de linhagem simples, por sua vez, poderia simbolizar a pouca expectativa
que Sir Thomas nutria pela filha mais velha, enquanto que para a mais nova havia projetado
um união com um conde irlandês. Porém, o Senhor e a Senhora Carey haveriam tido pouco
tempo para desfrutar da lua-de-mel, pois mais tarde naquele ano Henrique VIII resolvera
toma-la por amante. Como consequência, a família Bolena recebeu novos títulos e
propriedades, além de obter maior influência na corte. Mas o relacionamento entre eles não
duraria sequer um ano, terminando em 1521, antes de mademoiselle Boullan voltar para casa.
Dessa forma, há que se desfazer a opção de que o romance entre Ana e Henry Percy poderia
fragilizar o caso que o rei mantinha com Maria, pois quando isso aconteceu, os dois já
estavam separados. Em 1524, ela deu à luz sua primeira filha com o esposo, batizada de
Catarina74
. Dois anos depois, veio um menino, chamado Henrique.
Em 1528, William Carey morreu de uma epidemia que dizimou boa parte da
população da época; conhecida como a febre do suor, o enfermo passava horas a fio
agonizando e transpirando em cima do leito. Poucos foram os contagiados que conseguiram
sobreviver (entre eles a própria Ana). Recluída no campo desde que se tornara viúva, Maria só
retornou à corte (algures em 1533) quando sua irmã estava no auge de sua carreira política.
Mas, poucos anos depois cairia no desagrado da família por contrair bodas secretas com
William Stafford, um mero serviçal75
. Com uma reputação de meretriz, a Bolena mais velha
teve sorte de encontrar alguém que a aceitasse e desse um nome para seus filhos. Passaria por
muitos anos difíceis ao lado do novo cônjuge, mas preferia “mendigar o pão ao lado dele, a
ser a maior rainha ungida da cristandade” (como disse em carta ao secretário Cromwell) 76
.
Sua decisão contrária aos anseios dos parentes demonstra grande fibra e coragem, duas
características não muito encontradas nas mulheres do período.
74 Alison Weir sugere que o nome da primeira filha de Maria Bolena foi escolhido em homenagem à rainha
Catarina de Aragão. Para a historiadora, é possível que o relacionamento do rei com a filha mais velha de
Thomas Bolena se estendera até a época da primeira gravidez dela, fazendo do rei um possível pai da criança.
Posteriormente se levantaria a suspeita de que as duas crianças fossem bastardos reais, embora o rei nunca os
tenha reconhecido como seus. WEIR, Alison. Op.cit. p. 151 75 WILKINSON, Josephine. Mary Boleyn: the true story of Henry VIII’s favourite mistress. –
Gloucestershire: Amberley Publishing, 2010. p. 151 76 WILKINSON, Josephine. Op.cit. p. 150
35 www.rainhastragicas.com
Capítulo 4
O Grande dilema do rei
Figura 8 – Henrique VIII, por artista desconhecido77
.
O ano de 1527 trouxe alguns obstáculos para os envolvidos no caso que ficou
conhecido como o “grande problema do rei”. Era ele ou não casado com sua esposa? Teria
sido uma mentira os 18 anos que os dois passaram em união conjugal? Pelo menos o rei
estava confiante nesta certeza, mas não a rainha. Quando ele foi expor seus argumentos a ela,
esta se negou a acreditar naquelas palavras e logo em seguida caiu em prantos78
. Naquele ano,
Henrique tinha ordenado ao cardeal Wolsey que organizasse um tribunal secreto para avaliar a
validade de seu matrimônio, mas três semanas depois não haviam chegado a uma conclusão79
.
Enquanto isso, mademoiselle Boullan se negava veemente a tornar-se amante real, o que, por
77 Imagem extraída do livro Mary Boleyn: the true story of Henry VIII’s favourite mistress. –
Gloucestershire: Amberley Publishing, 2010. p. 96-c, escrito por Josephine Wilkinson. 78 Garret Mattingly escreve que as lágrimas de Catarina deixaram Henrique profundamente enervado e sem
reação perante tamanha demonstração de sentimentos por parte da esposa. MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 302 79 A sessão “secreta”, que ficou conhecida como inquisitivo ex officio teve lugar no palácio de Wolsey, York
House, em maio de 1527 e contou com a presença do cardeal, do Arcebispo de Canterbury, William Warham,
entre outros. O objetivo do conchavo era julgar a validade da bula emitida por Júlio II e, como era esperado,
declarar nulo o casamento do rei. MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 301
36 www.rainhastragicas.com
sua vez, só acentuava o interesse do soberano em sua pessoa. Contudo, deve-se desfazer o
credo de que Henrique (ver a figura 8) só queria desfazer-se da mulher para tomar Ana como
sua esposa. Seu desejo maior era obter um herdeiro varão para a coroa e assim garantir a
sucessão dos Tudor80
.
Embora o Papa Júlio II tivesse emitido uma bula em 1503 autorizando o casamento
entre o rei e a viúva de seu irmão, para Henrique o vigário de cristo não tinha poder sobre as
leis bíblicas, que condenavam tal união81
. Segundo o cardeal Wolsey, havia ocorrido um erro
na época:
... Se Catarina deixara o leito de Arthur ainda virgem, então ela e Henrique
precisavam de uma autorização ‘de honestidade pública’, isto é, para desfazer um
casamento publicamente prometido ou contratado, mas nunca consumado. A
autorização do Papa fora de ‘afinidade’ – para um relacionamento consumado entre
um casal com parentesco demasiadamente próximo82.
Wolsey, que não era muito favorável aos espanhóis, ansiava por um tratado com a
França, estabelecendo assim a paz entre esses dois reinos. Porém, o que ele não contava era
com a astúcia de Catarina de Aragão, que conseguira enviar uma carta secreta ao sobrinho,
Imperador Carlos V, pedindo-lhe ajuda83
. Seria politicamente danosa para a Espanha uma
aliança franco-inglesa, e como tal anulação deveria vir do Papa, feito prisioneiro pelas tropas
do Imperador, Carlos resolveu então agir em favor da tia.
O povo da Inglaterra amava sua soberana católica, enquanto detestava o chanceler,
cardeal Wolsey, que gozava a muito tempo do favor real. Muitos nobres, como os duques de
Norfolk e Suffolk também o odiavam, devido a sua baixa extração84
, e viram em Ana Bolena
uma oportunidade para rebaixá-lo. O atual chefe da Igreja, Clemente VII, estava perdido no
meio dos interesses estatais: de um lado o Imperador o pressionava a não anular o casamento,
mas se não o fizesse poderia perder a fidelidade da Inglaterra, quando muitos outros países
europeus já haviam aderido ao protestantismo. Sua alternativa foi, então, adiar o máximo que
pode (em dezembro de 1527 havia conseguido fugir de seu cativeiro, mas ainda não estava
livre para tomar quaisquer medidas). Em dezembro de 1528, o rei ordenou que a rainha
deixasse seus aposentos no palácio de Greenwich, adjacentes aos seus, para serem ocupados
80 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 184 81 Levítico, capítulo 20, versículo 21: “Se alguém tomar como esposa a própria cunhada, estará cometendo uma
torpeza. Terá ofendido o seu próprio irmão, e morrerão sem filhos”. 82 DWYER, Frank. Os Grandes Líderes: Henrique VIII. Tradução de Edi G. de Oliveira. – São Paulo: Nova
Cultural, 1988. P. 45 83 MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 306 84 Wolsey era filho de um açougueiro.
37 www.rainhastragicas.com
por Ana, que estava sempre ao seu lado em audiências e constantemente dava conselhos ao
soberano85
. Naquele instante, o cardeal percebeu que aquela dama, longe de ser alguém
insignificante, representava uma ameaça.
Desconfiando das atitudes de Wolsey, que havia viajado para França em 1528 para
tentar uma solução com os cardeais de lá, Henrique decidira enviar dois emissários, Stephen
Gardner e Edward Fox, ao Papa para interceder em seu nome, mas estes também não
lograram êxito86
. Tampouco Clemente queria permitir que o núncio inglês tomasse as
decisões por ele, algo que também foi desencorajado pelos cardeais franceses. O único jeito
era, por hora, autorizar que uma comissão avaliasse essa situação em Inglaterra. Para julgar o
caso ao lado de Wolsey, o Papa enviou o cardeal Campeggio como legado. “Embora isso não
fosse a plena comissão decretal pública que Wolsey esperava – era apenas para os olhos do rei
–, era um começo promissor” 87
. Naquele tempo tudo podia acontecer, como, por exemplo, a
rainha ou o rei poderiam morrer, ou este se desinteressar por Ana Bolena. Mas não foi isso
que aconteceu. Catarina também não aceitou a proposta de ir para um convento, deixando o
esposo livre, pois não tinha “vocação para a vida sacerdotal”.
Campeggio, com a permissão do rei, fizera uma série de visitas a Catarina. Segundo o
relatório do cardeal enviado a Roma, em um de seus encontros com a rainha, Cataria se
confessara com ele, alegando sob juramento sacramental que estava intacta e incorrupta da
lui comme venne dal ventre di sua madre88
, ou seja, que saíra de seu primeiro casamento da
mesma forma como viera ao mundo: virgem. Para Antonia Fraser89
, seria impossível imaginar
que alguém como Catarina, sempre conhecida por seu caráter firme e piedoso, mentisse
daquela maneira e naquela altura dos fatos. Para manter as aparências, o rei voltou a partilhar
do leito de sua esposa, mas nada mais poderia acontecer entre aquele homem de 38 anos e a
mulher de 44. A corte legatícia se reunira em Blackfriars Hall, a 31 de maio de 1529, para
julgar o casamento entre Henrique VIII e a infanta de Castela e Aragão. Nem o rei ou a rainha
estavam presentes na ocasião, se encontrando no tribunal apenas três dias depois.
Nesse dia, numa cena imortalizada por Shakespeare, Catarina se levantou de sua
cadeira e se dirigiu ao marido, ajoelhando-se diante dele e proferindo um apaixonante
discurso:
85 DWYER, Frank. Op.cit. p. 49 86 Idem. p. 46 87 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 200 88 Idem. p. 202 89 Ibid.
38 www.rainhastragicas.com
Senhor, eu imploro por todo amor que houve entre nós, permita que me seja feita
justiça e que se cumpra o direito. Tenha por mim um pouco de piedade e compaixão,
pois sou uma pobre mulher e uma estrangeira, nascida fora de vossos domínios. Não
tenho aqui amigos e muito menos conselho imparcial, por isso peço-vos como
representante da justiça em vosso reino... Tomo a Deus e a todo o mundo por
testemunho de que fui vossa fiel, humilde e obediente esposa, sempre dócil a vosso
gosto e vontade..., estando sempre disposta e contente com todas as coisas que lhe
causavam diversão ou prazer, pouco ou muito... Presei a todos por que presaste, só
por vós, com vontade ou sem ela, fossem eles meus amigos ou inimigos. Em vinte
anos ou mais fui vossa fiel esposa, e por mim teria tido diversos filhos, embora
tenha sido a vontade de Deus leva-los. E quando me tivestes pela primeira vez, tomo
a Ele como juiz de minhas palavras, eu era virgem e nenhum homem tinha me
tocado. E se isso é verdade ou não, eu deixo ao encargo de vossa consciência90.
Depois de tão devotadas palavras, a plateia do tribunal fora a júbilo. Catarina recebera
uma calorosa acolhida da multidão do lado de fora91
. Havia triunfado sobre seus inimigos, ao
menos agora. O rei, por sua vez, precisava descontar sua frustração em alguém e o alvo já
tinha sido escolhido: o cardeal Wolsey.
A Queda do cardeal
Enquanto a rainha Catarina tentava a todo custo manter sua posição e a herança da
filha, pelo menos podia ter satisfação ao ver seu outrora arque inimigo caindo em desgraça.
Wolsey estava ficando cada vez mais sem recursos e a quem apelar, pois o rei (acredita-se que
também influenciado por Ana Bolena) o estava responsabilizando pelo insucesso do tribunal
legatício, dissolvido por ordem de Clemente VII em julho de 152992
. O “grande caso do rei”
havia sido transferido a Roma para ser julgado lá. Em outubro daquele ano, após ter sido
negligenciado pelo soberano em inúmeras ocasiões, o cardeal finalmente perdeu o seu poder.
90 “Señor, os imploro por todo ela amor que há habido entre nosotros: permitid que se me haga justicia y se
cumpla el derecho, tened de mí un poco de piedad y compasión, pues soy una pobre mujer y una extranjera,
nacida fuera de vuestros dominios. No tengo aquí amigo seguro y mucho menos consejo imparcial. Acudo a
Vos como cabeza de la justicia en vuestro reino...”
“Tomo a Dios y a todo el mundo por testigo que he sido vuestra fiel, humilde y obediente esposa, siempre dócil a
vuestro gusto y voluntad..., estando siempre complacida y contenta con todas las cosas que os causaban
diversión o goce, poco o mucho... Quise a todos los que quisisteis, sólo por Vos, con causa o sin ella, fueran mis
amigos o mis enemigos. Estos veinte años o más he sido vuestra fiel esposa, ‘and by me ye have had divers
children’, y en mí habéis tenido varios hijos, aunque plugo a Dios llevarlos de este mundo...” Se afirmó. Cuando
continuó, su voz era clara. Llegaba el momento decisivo. “Y cuando me tuvisteis por primera vez, tomo a Dios
por juez de mis palabras, era doncella sin mengua, sin contacto de varón. Si esto es o no verdad, lo dejo a vuestra
conciencia”. MATTINGLY, Garret. Op.cit. p. 343 91 Depois desse dia, Catarina de Aragão não mais compareceu a qualquer das sessões do julgamento, que
procedera sem a presença da mesma. FRASER, Antonia. Op.cit. p 218 92 Para saber mais sobre Ana Bolena e a que de Wolsey ver Anne Boleyn and the fall of Wolsey. In: IVES, Eric
W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom: Blackwell Publishing, 2010. p.
110-126.
39 www.rainhastragicas.com
Quando o novo embaixador imperial veio para a Inglaterra, Catarina teria lhe dito que não
apresentasse suas credenciais a Wolsey (como era de costume), porque a situação dele estava
muito difícil93
. Todavia, o ex-chanceler do reino possuía inimigos muito mais poderosos do
que Catarina de Aragão ou mademoiselle Boullan, que lucrariam muito com a ruína deste,
como os duques de Norfolk e Suffolk.
Figura 9 – Cardeal Thomas Wolsey, por artista desconhecido94
.
A situação do cardeal Wolsey ficara ainda mais complicada quando fora selado o
tratado de Cambrai (ou “Paz das Danas”, em virtude de ter sido intermediado por Louise de
Sabóia, mãe de Francisco I, e Margaret da Áustria, tia de Carlos V), entre os franceses e os
Habsburgo, no dia 5 de julho. A Inglaterra, por sua vez, estava politicamente isolada95
.
Desesperado, o prelado se refugiara em seu palácio de York Place, mas em breve o rei lhe
desferiria o golpe final. Para Antonia Fraser:
A ascensão do cardeal fora demorada e dura, com diligência, paciência e serviço
árduo acompanhando cada passo. Sua queda foi rápida. Uma série de golpes brutais
tirou-lhe os poderes, a começar com o procurador-geral em 9 de outubro, que o
93 Idem. p. 222 94 Imagem extraída do Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-h, escrito
por David Starkey. 95 DWYER, Frank. Op.cit. p. 51
40 www.rainhastragicas.com
acusou de praemunire, ou seja, exercer os poderes de legado papal em território do
rei, depreciando, assim, a autoridade do rei...96.
Não obstante, o grande selo de chanceler lhe fora tirado; seus belos palácios e bens
luxuosos foram confiscados pela coroa, como o próprio York Place (rebatizado de Withehall)
e Hampton Court. O cardeal passara então a vaguear pela suas residências menores em Esher,
onde adoeceria gravemente.
Em carta ao seu ex-secretário, Cromwell, que agora estava a serviço de Henrique,
Wolsey rogava para que o desagrado de Ana Bolena não fosse tão grande como imaginava97
.
A partir disso, percebe-se até que ponto aquela dama estava à frente dos assuntos do rei, tanto
que enviara ninguém menos que Henry Percy, seu romance passado, para notificar ao prelado
de que ele seria preso e julgado por alta traição. Porém, em 29 de novembro de 1530, antes de
chegar a Londres, o cardeal deu o seu último suspiro. Como comemoração, Sir Thomas
Bolena oferecera um grandioso banquete, com um espetáculo no qual o Wolsey descia ao
inferno98
. Sua queda deixara grandes lacunas na vida política da corte, que logo foram sendo
preenchidas, como, por exemplo, o cargo de chanceler, que passara para as mãos de Sir
Thomas More, advogado e erudito inglês mais conhecido por seu trabalho “A Utopia” (1516),
em que descrevia uma sociedade justa e igualitária, algo não muito adequado ao contexto da
Inglaterra de 1530.
Incapaz de obter uma decisão firme do Papa, Henrique VIII decidiu agir dentro de
suas possibilidades. Na medida em que substituía seus ministros, entrara em contato (por
intermédio de Ana Bolena99
) com “A obediência do Homem Cristão”, de William Tyndale,
que afirmava a primazia do rei em seus domínios, e não do Papa100
. A partir de então,
qualquer um que negasse sua soberania, tanto em assuntos de Estado, quando em religiosos,
seria acusado de praemunire. Essa medida fora apresentada ao soberano por Thomas
Cromwell, seu novo secretário, e logo recebeu a aprovação dos clérigos e do Parlamento,
temerosos de que pudessem desfrutar do mesmo fim que o cardeal Wolsey. Enquanto isso,
Henrique rejeitava cada vez mais Catarina: na manhã de 11 de julho de 1531, o rei e sua Lady
saíram de Windsor para cassar, deixando um ordem expressa de que a rainha deveria
abandonar o palácio, com séquito reduzido, e que não mais teria permissão de escrever para o
96 FRASER, Antonia. Op.cit. p 223 97 Idem. p.224 98 DWYER, Frank. Op.cit. p. 52 99 Ana Bolena era uma leitora voraz de obras escritas por autores como William Tyndale e Simon Fish, que teria
apresentado ao rei Henrique. Para saber mais sobre a religiosidade de Ana Bolena, ver o anexo 2. 100 DWYER, Frank. Op.cit. p. 57
41 www.rainhastragicas.com
rei, ou ver sua filha, a não ser que concordasse com a anulação do casamento, o que ela não
estava disposta a aceitar.
“De Dover à Calais”
Com a partida de Catarina de Aragão da corte, Ana Bolena definitivamente tornara-se
rainha em tudo, menos no nome. O desejo que Henrique mantinha pela favorita era tamanho,
que aceitava inclusive os repentinos ataques de humor dela. Segundo relatos de
contemporâneos, a referida dama não possuía o comportamento que se esperava de uma
fidalga: tinha a língua ferina, gostava de desafiar os outros intelectualmente, e era dada a
explosões de raiva quando alguma coisa lhe contrariava101
. Antonia Fraser102
salienta que esse
gênio explosivo pode ser um traço que Ana Bolena herdara de seu pai. Pelos relatos do
embaixador imperial Chapuys em outubro de 1530, Sir Thomas havia caluniado o Papa e os
cardeais de tal forma, que o enviado de Carlos V fora forçado a se retirar da sala. Esse gênio,
apesar de tudo, era mais aceitável em um homem que em uma mulher, e em breve Ana teria
motivo para ficar mais preocupada e irritada: Mary Talbolt, mulher do então conde de
Northumberland, se queixara acerca da validade de seu matrimônio, partindo do princípio de
que seu marido tinha um pré-contrato com a favorita do rei103
.
A questão do casamento pré-contratado era bastante delicada: um casal, que jurasse
em nome de Deus se unir no sagrado estado do matrimônio, perante testemunhas, estava
comprometido, e só a intervenção de uma autoridade eclesiástica poderia desfazer o acordo,
mediante concessão das duas partes. Porém, se os noivos copulassem antes da cerimônia,
então estavam casados aos olhos de Deus, e ninguém, a não ser o Papa, poderia desfazer essa
conjunção. Sendo assim, se Ana Bolena e Henry Percy estiveram prometidos um ao outro, e
em seguida feito amor, nesse caso estariam casados, e a dama não mais estaria livre para o
rei104
. Quando esse escândalo vazou, logo os agentes de Henrique VIII recorreram ao conde
de Northumberland para interroga-lo. Ele, por sua vez, negou que tivesse mantido qualquer
101 ALMEIDA, Ana Paula Lopes Alves Pinto de. Op.cit. p. 6 102 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 229 103 Idem. p. 171 104 “Até que ponto foi, de fato, o namoro de Percy com Ana Bolena?”, questiona Antonia Fraser. Se um pré-
contrato fosse consumado, adquiria a validade de um casamento. Contudo, ressalta a historiadora, alguns beijos e
carícias que, por sua vez, levassem às chamadas preliminares amorosas, mas que parassem por aí, significava
que não havia um compromisso. A virgindade técnica, por assim dizer, era um fato muito mais preocupante para
as mulheres daquele período. Ibid. p. 172
42 www.rainhastragicas.com
envolvimento marital com a filha de Sir Thomas, para grande alívio do rei, que em 1532 já
estava a aproximadamente 6 anos esperando por aquela mulher.
Muitos dos responsáveis pelos boatos envolvendo mademoiselle Boullan foram os
espanhóis, fiéis partidários da rainha, entre eles Eustace Chapuys. Homem poucos anos mais
novo que Catarina de Aragão, Chapuys era um católico convicto e grande detrator de Ana.
Em suas crônicas a Carlos V, podemos ver com frequência ele se referindo a ela com termos e
adjetivos nada amigáveis105
. Isso valeu àquela dama uma má reputação em todo o continente
europeu, enquanto Catarina era vista como a injustiçada. Segundo Frank Dwyer:
A influência de Ana sobre o rei era cada vez maior, o povo a odiava e estava
começando a odiar Henrique também. Nos bastidores, Cromwell organizava seus
espiões e sua polícia secreta, engabelando, pressionando, subornando, conspirando e
colocando seus homens em postos importantes para persuadir o parlamento a apoiar
o divórcio do rei...106.
Não obstante, o rei, por sugestão de Thomas Cranmer, um clérigo relativamente
desconhecido, encomendou o caso da anulação de seu casamento a todas as universidades do
continente e demais igrejas protestantes, na esperança de que apoiassem a sua causa107
. O
resultado, contudo, fora bastante ambíguo: a maioria dos teólogos julgou de acordo com a
vontade de seus chefes políticos, mesmo tendo sido subornados pela Inglaterra108
.
Em 1532, o soberano estava disposto a se encontrar com Francisco I de França para
negociar uma nova paz e lhe pedir que intercedesse em seu favor junto ao Papa. O encontro
entre os dois reis seria organizado na cidade de Calais (uma possessão inglesa na França).
Para a ocasião, Ana não iria somente como dama da corte: Henrique a investira com o título
de marquês de Pembroke (ver a figura 10), e ao pai dela com o de conde de Wiltshire. Não
obstante, o rei solicitara de Catarina as joias de rainha da Inglaterra para adornar a nova
favorita109
. Depois de muito protelar, a ci devant rainha aceitou entregá-las, mas mesmo assim
as nobres francesas, como a irmã de Francisco, Margaret d’Angoulême (outrora amiga de
105 Os relatos de Eustace Chapuys se constituem numa importante fonte para se estudar os acontecimentos do
período, desde que levemos em consideração sua natural tendência imperialista. Ele serviu na corte da Inglaterra
por mais de 16 anos como embaixador de Carlos V e nesse tempo criou uma eficiente rede de serviço secreto.
Ibid. 225 106 DWYER, Frank. Op.cit. pp. 58-59 107 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 224 108 A Universidade de Paris apresentou um veredito positive, pois o divórcio interessava a Francisco I, que queria
criar hostilidades entre Henrique VIII e Carlos V. Na Itália, os eruditos se dividiram, enquanto os da Espanha
foram totalmente contra. A maioria das opiniões em Oxford e Cambridge, por sua vez, foi a favor do rei. Idem.
p. 236 109 Quando os emissários do rei solicitaram a Catarina as joias da coroa, ela negara-se afirmando que não
entregarias as peças para “uma pessoa que é uma vergonha para a cristandade e está trazendo escândalo e
desgraça para o rei”. Ibid. p. 249
43 www.rainhastragicas.com
Ana) e a rainha Eleonor (sobrinha de Catarina de Aragão), se recusaram a comparecer ao
evento110
. Henrique teria respondido que pouco o importava, pois já estava farto de mulheres
espanholas (uma referência à sua esposa e à de Francisco).
Figura 10 – Ana Bolena como Marquesa de Pembroke (ilustração de Renato Drummond
Tapioca Neto, 2014).
Não obstante, a figura de Thomas Wyatt logo voltaria a estar envolvida em escândalos
juntamente com a de Ana, o que mais uma vez a deixava numa situação difícil. Para desfazer
os boatos de que sua amada e Thomas Wyatt tinham sido amantes, o rei resolveu convida-lo
para a viagem. Em sua poesia podemos encontrar ainda referências ao seu amor não
correspondido pela favorita do monarca: “E agora sigo em brasas que precisam ser extintas.
De Dover para Calais, contra a minha vontade...” 111
. Aquela viagem à França seria de
fundamental importância para o rei e sua Lady, pois ali, acredita-se, poriam término a 6
longos anos de espera. Depois de Calais, tudo estaria mudado.
110 Ibid. p. 248 111 Ibid. p. 174
44 www.rainhastragicas.com
Capítulo 5
“Deus salve Ana, Rainha da Inglaterra”
Figura 11 – A coroação de Ana Bolena, na Abadia de Westminster, em junho de 1533 (Mary
Evans Picture Library) 112
.
O segundo encontro entre Henrique VIII e Francisco I fora concebido de forma a
beneficiar ambos os reinos. Não só o rei inglês partilharia das pretensões de Francisco contra
o imperador Carlos V, como receberia o apoio francês na anulação de seu casamento com
Catarina de Aragão113
. Fora então organizada uma grande cerimônia em Calais, na qual um
grupo de damas mascaradas dançou perante os monarcas. Entre elas, mademoiselle Boullan,
reconhecida por Francisco e escolhida pelo mesmo para ser seu par. Era a primeira vez, desde
que deixara a corte onde servia a rainha Cláudia de Valois, que Ana Bolena via o soberano de
França, um homem conhecido por sua luxúria e vaidade. Porém, aquela conjunção entre os
dois reinos se mostraria infrutífera para Henrique, pois Clemente VII mostrava-se relutante
em sua decisão de liberar a sentença de anulação do casamento, fazendo assim com que o
soberano agisse clandestinamente. Com um título de marquês nas mãos, Ana Bolena tinha
quase certeza de que seu destino estava traçado. Era apenas questão de tempo até tornar-se
rainha da Inglaterra.
112 Imagem extraída do livro Os Grandes Líderes: Henrique VIII. Tradução de Edi G. de Oliveira. – São
Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 68, escrito po Frank Dwyer. 113 Ibid. p. 246
45 www.rainhastragicas.com
Ao longo de 7 anos de espera, é provável que Ana Bolena tenha se permitido algumas
brincadeiras eróticas com Henrique VIII, a fim de manter a atenção e o desejo dele voltados
para ela. Um método muito utilizado pelas mulheres para não engravidarem era o coitus
interruptus, ou seja, quando no ato sexual, o homem estivesse prestes a ejacular, ele retirava
seu membro da genitália feminina, impedido assim que sua parceira concebesse um filho114
.
Dessa forma, não é impossível que o rei e sua Lady tenham feito amor, porém tomando
cuidado para que ela não carregasse em seu ventre mais um bastardo real (algo que Henrique
não queria). Segundo Antonia Fraser:
Por volta do fim da primeira semana de dezembro de 1532, a lady marquês de
Pembroke ficou grávida (isto para presumir uma gestação de nove meses para a
criança que nasceu no dia 7 de setembro do ano seguinte). Em princípios de janeiro,
ela deve ter desconfiado – ter tido a esperança – disso...115.
De acordo com os cálculos da historiadora, quando Ana ficou grávida do rei eles
estavam em Calais, durante o período de negociações com Francisco I. Os planos dos dois já
estavam bem traçados, e assim que Henrique descobriu o estado de sua amada, percebeu que
era hora de agir.
De volta à corte inglesa, Ana Bolena estava em estado de graça. Declarara para
Thomas Wyatt em alto e bom som para que todos escutassem que desejava comer uma maçã,
pois “há três dias que tenho uma vontade louca de comer maçãs”. Wyatt olhou-a com espanto,
mas Ana desatou a rir e continuou falando:
“Sabeis o que isso significa, na opinião do Rei?”
O olhar atônito de Wyatt fê-la rir tão alto que muitos se voltaram para eles, o que lhe
aumentou a alegria. “O Rei diz que é sinal de que estou grávida!” E aqui a sua
hilaridade foi tão ruidosa que todos, inclusive Wyatt, a contemplaram penosamente
surpresos.
“Mas não é verdade, não é verdade!” E rindo loucamente Ana voltou-se e fugiu,
deixando todos pasmados e constrangidos116.
Henrique, que não queria ter seu herdeiro nascido antes do casamento, apressou-se em
organizar o matrimônio com a filha de Sir Thomas. De acordo com a crença popular, eles se
casaram secretamente no dia 25 de Janeiro de 1533, no de Palácio de Whitehall117
.
114 Ibid. p. 232 115 Ibid. p. 252 116 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 244 117 Segundo Carolly Erikson, nenhum dos convidados para a cerimônia sabiam que aquilo se tratava de um
casamento secreto. De acordo com os despachos de Chapuys para a Espanha, estavam presentes na ocasião os
pais da noiva, seu irmão e duas damas de companhia. ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 193
46 www.rainhastragicas.com
Ana estava cada vez mais orgulhosa de sua barriga protuberante. Havia engravidado
do rei de forma rápida, exaltando assim sua fertilidade em detrimento da de Catarina. Em 23
de maio daquele ano, o novo arcebispo de Canterbury, Thomas Cranmer (nomeado ao cargo
pelo papa Clemente VII, que pensou com isso estar apaziguando o temperamento de
Henrique) proclamou nula a união do rei com a filha de Isabel e Fernando, com base no fato
de que Catarina havia consumado seu primeiro casamento com Arthur e que, portanto, ela não
era rainha da Inglaterra, mas sim “princesa viúva de Gales”. 5 dias depois, o arcebispo
declarou a união de Henrique VIII com Ana Bolena válida118
. Assim que soube do ocorrido, o
Papa se apressou em decretar nula a conclusão de Cranmer, alegando que o caso ainda estava
sendo avaliado em Roma119
. Mas Henrique não mais se importava com as decisões de
Clemente. Durante todo o seu reinado agira em nome da fé católica, e agora a mesma lhe
voltava às costas em um assunto tão importante como esse.
O estado de espírito do rei era tão entusiasta, que logo começou a preparar a coroação
de Ana Bolena. Cada detalhe fora meticulosamente planejado, desde seus aposentos na Torre
de Londres, até o percurso que faria na cidade rumo à abadia de Westminster. Para reafirmar a
nobreza de sangue de Ana, fora apresentada uma árvore genealógica dela, em que se
poderiam encontrar duques, condes, e até mesmo um rei. Dessa forma, pretendia-se “limpar”
a linhagem da dama, incluindo membros da alta nobreza, tornando-a, assim, numa boa
candidata ao posto de consorte real. Ainda existem alguns detalhes de sua coroação (ver a
figura 11): sabe-se que na ocasião ela estava de cabelos soltos, com um vestido de cor
púrpura, e a cerimônia seguiu todo o protocolo imposto às rainhas de Inglaterra. Poetas,
músicos e demais artistas se puseram a trabalhar para que tudo corresse bem; carpinteiros e
vidraceiros trataram logo de eliminar os vestígios de Catarina de Aragão dos palácios e
demais residências reais, substituindo seu símbolo, a romã de Granada, pelo falcão coroado de
Ana Bolena120
.
A população londrina se mostrou hostil à sua nova soberana, não lhe fazendo as
devidas homenagens enquanto ela desfilava pela cidade. Estava claro que ainda amavam a
rainha Catarina e não aceitariam “a rameira do rei” 121
no lugar antes ocupado por uma
118 DWYER, Frank. Op.cit. p. 62 119 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 263 120 Conta-se uma história de que Ana Bolena fizera questão de usar a barcaça de Catarina para subir o riu Tâmisa
rumo à Torre de Londres, onde todos os reis e rainhas permaneciam um dia antes da coroação. Henrique, por sua
vez, teria ficado nada contente ao saber que sua esposa eliminara todos os vestígios de Catarina gravados na
barcaça. Esse relato, contudo, fora oferecido pelo duque de Norfolk ao embaixador Chapuys. Como o nobre
vivia aflito com a possibilidade de uma ameaça imperial, então é provável que sua versão dos fatos não seja
imparcial. Idem. p. 263 121 ERIKSON, Carolly. Op.cit. p. 193
47 www.rainhastragicas.com
princesa espanhola. Mas, dado ao seu estado de gravidez, as pessoas passaram a interessar-se
por sua figura. Era consenso geral de que Ana Bolena carregava em seu ventre um sucessor
varão para apaziguar o país. Até mesmo os principais astrólogos afirmaram que um menino
estava a caminho. De acordo com David Loades,
A rainha que era também mãe de um herdeiro varão era duplamente afortunada. Não
tinha só cumprido o seu dever mais elevado – tinha também aumentado a autoridade
do marido a um nível incalculável e demonstrado que Deus via favoravelmente o seu
governo. O papel de uma rainha consorte dependia então até certo ponto de sua
condição de mulher, mas também variava com as circunstâncias e com a sua própria
personalidade...122.
Se fosse bem sucedida na tarefa de uma consorte real, então estaria provado que Deus
via com bons olhos o novo casamento do rei, mas se o contrário acontecesse então todo o
esforço que fora feito até então se mostraria infrutífero. Na época, porém, todos estavam na
expectativa de que os desejos do rei se cumpririam e que uma grande surpresa os esperava.
Uma garotinha para Ana
Para o nascimento do futuro príncipe de Gales, foram planejadas inúmeras
festividades, incluindo torneios, justas, queima de fogos e grandiosos banquetes. Os pais da
criança estavam jubilosos e a nova rainha em uma posição extremamente vantajosa. Como era
costume na época, é provável que no período de gestação Ana e o rei tivessem cessado de
manter relações sexuais, por medo de prejudicar o bebê de algum modo. Os Bolena logo
ficaram em alerta, por temer que nesse tempo Henrique tomasse uma amante para apaziguar
seus desejos carnais. Todavia, não sobrou qualquer registro de aventura extraconjugal que ele
pudesse ter mantido durante a gravidez de sua segunda esposa123
. Pelo contrário. Seu
comportamento para com ela era dotado de extrema atenção e carinho, pois afinal ela
carregava no ventre o rebento real, por quem o rei usara de intermináveis recursos para obter.
Em 11 julho de 1533, quando a rainha já estava em estado avançado de gestação,
chegara de Roma uma bula na qual o Papa declarava quaisquer filhos provenientes da nova
união do rei inválidos, e o excomungava, a menos que retornasse para Catarina de Aragão e
122 LOADES, David. Op.cit. p. 14 123 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 265.
48 www.rainhastragicas.com
repudiasse a “concubina” 124
. Mas isso em pouco ajudava a situação da princesa viúva, ou de
sua filha Maria, que era repudiada pelo próprio pai. Enquanto isso, mademoiselle Boullan
abandonava a vida pública em 26 de agosto daquele ano, duas semanas antes de dar à luz o
herdeiro do trono. Segundo Antonia Fraser:
De acordo com o costume, a rainha Ana recolheu-se a seus aposentos com
antecedência para aguardar o nascimento do filho homem. O precedente era
extremamente importante naqueles casos, muito embora tivesse havido uma
mudança de rainha... 125.
Conforme cita a mesma autora, o tempo que uma soberana passava no confinamento
variava na medida em que esperava para sentir as dores do parto. No caso de Ana, pensava-se
que a criança era prevista para algures depois de agosto, pois segundo o rumor, o rei e sua
Lady se casaram em 14 de novembro de 1532.
Dessa forma, não necessitariam usar da desculpa de um parto prematuro para que a
criança escapasse da acusação de bastardia, uma vez que um filho concebido antes do
casamento era considerado ilegítimo. No dia 7 de setembro, Ana finalmente deu à luz um
herdeiro para a coroa, mas não era o tão esperado menino que apaziguaria o reino da
Inglaterra, mas uma linda garotinha, que recebera o nome de Elizabeth, em homenagem à mãe
do rei (se fosse homem seria nomeado de Eduardo ou Henrique). Segundo a historiografia
tradicionalista, o rei tomou-se de raiva e ressentimento ao saber da notícia, e teria culpado a
esposa pelo infortúnio. Entretanto, a criança era perfeitamente saudável, e Henrique
regozijou-se com esse fato: se Ana fora capaz de gerar uma filha bem formada logo na
primeira vez que engravidou, então era um sinal de que filhos homens também viriam a
seguir126
. Não obstante, a pequena Elizabeth era a imagem viva do pai, com sua pele leitosa e
bastos cabelos ruivos. Por outro lado, todos os festejos programados para a ocasião foram
cancelados.
Podemos avaliar a natureza do constrangimento causado pela situação através da carta
que a rainha emitiu para as demais cortes anunciando o nascimento de sua filha. Como se
acreditava que a criança que Ana esperava era um menino, então o documento já estava
preparado para ser entregue. Nela, continha o seguinte texto:
124 Idem. p. 263 125 Ibid. p. 267 126 Susan Bordo aponta para o fato de que na Europa do século XVI, o índice de mortalidade infantil era muito
alto, de modo que o nascimento de uma criança saudável, fosse ela do sexo masculino ou feminino, não
constituía motivo pra tanta frustração. BORDO, Susan. Op.cit. p. 75-76
49 www.rainhastragicas.com
E por ter agradado a bondade de Deus Todo-Poderoso, em sua infinita mercê e
graça, enviar a nós, neste momento, a bênção no parto e o nascimento de um
príncipe (...). A Deus Todo-Poderoso, profundos agradecimentos, glória, louvor e
exaltação; e rezar pela boa saúde, prosperidade e continuada preservação do referido
príncipe127.
O curioso desse trecho é que príncipe, em inglês, se escreve “prince”, enquanto que
princesa “princess”. Desse modo, apenas acrescentou-se as duas letras “s” no final da palavra
“prince” para reaproveitar as cartas que já estavam redigidas. Interiormente, o rei poderia
estar desesperado128
. Afinal, arriscara seu reino e sua alma diante de Deus, por uma filha,
quando tudo que ele queria era um varão? Os que pensavam assim começaram a caçoar dele,
enquanto o mesmo tentava manter o equilíbrio pessoal.
Figura 12 – Thomas Cranmer, por Gerlack Flicke129
.
Contudo, Ana não se esquecera da ci-devant rainha, Catarina de Aragão, que para ela
estaria jubilosa com seu malogro em produzir um menino. Solicitara à reclusa princesa viúva,
estabelecida em The More, a roupa de batismo que ela trouxera da Espanha especialmente
127 FRASER, Antonia, Op.cit. p. 268 128 Idem. 129 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-q,
escrito por David Starkey.
50 www.rainhastragicas.com
para ocasiões como essa. Catarina prontamente recusou-se a oferecer qualquer ajuda a um
“caso tão horrível como este”, segundo suas palavras130
. A pequena Elizabeth teria como
padrinhos Thomas Cranmer (ver a figura 12) e Agnes, duquesa viúva de Norfolk, e após a
cerimônia de batizado, conforme a tradição, toda a corte se dirigiu ao quarto da rainha para
prestar-lhe suas homenagens pelo fato de ter sobrevivido ao parto e dado ao rei uma prole
saudável. A princesa logo fora declarada pelo arauto real como sendo o primeiro filho
“legítimo” do rei, em detrimento da princesa Maria, filha de Henrique e Catarina. Embora a
dissolução formal do casamento de seus pais tivesse sido declarada em maio de 1533, até
então nenhum passo fora dado para declara-la teoricamente ilegítima131
. Por hora, a nova
rainha encontrava-se com um desafio nas mãos: precisava gerar um herdeiro varão para a
coroa e o quanto antes, melhor.
Anna Regina
O nascimento de uma princesa deixara a posição de Ana Bolena bastante
enfraquecida. Agora seus inimigos sentiam-se mais uma vez livres para agirem contra ela,
implicando-lhe toda sorte de apelidos que logo se espalharam por toda parte do continente
europeu, tais como “putain”, rameira do rei, prostituta de olhos esbugalhados (em alusão aos
grandes olhos negros e brilhantes dela), corvo negro, feiticeira, etc132
. Três meses depois de
seu nascimento, a pequena Elizabeth fora enviada para Hatfield House, onde constituiria sua
própria morada, assim como fizeram outros bebês de sangue real antes dela. Destarte, aquela
linda garotinha contaria com uma criada especial em seu séquito: a filha de Catarina de
Aragão, Maria, agora conhecida por todos como “Lady Mary” (ver a figura 13) 133
. Segundo a
crendice popular, Ana fora a responsável pela humilhação infligida à outrora princesa de
Gales, e que estaria planejando uma grande vingança contra ela sua mãe.
130 Pelo menos dessa vez, ao contrário do que aconteceu com as joias da coroa, Catarina foi bem sucedida em sua
recusa. Ao que parece, o rei não estava tão interessado nos trajes para o batismo da filha. FRASER, Antonia,
Op.cit. p. 269 131 Sobre isso, escreve Antonia Fraser: “Na lei canônica, era possível que a situação de filhos cujos pais, como
Henrique e Catarina, tivessem se casado de boa fé fosse regularizada: em situações assim, a Igreja não agira
como rigor”. Antes de Ana dar á luz a situação da princesa fora tratada com cautela, visto que a rainha poderia
morrer de parto ou a criança nascer defeituosa. Nesse caso, seria insensatez declarar uma herdeira saudável,
como Maria, ilegítima. Só após o nascimento de Elizabeth que essa situação mudou. Idem. p. 269-270 132 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 252 133 FRASER, Antonia, Op.cit. p. 270
51 www.rainhastragicas.com
Figura 13 – Lady Mary (futura rainha Maria I da Inglaterra), por Master John134
.
Por outro lado, as demais cortes européias contestavam a legitimidade de Elizabeth. O
embaixador imperial Chapuys, por exemplo, se referia a ela em seus despachos a Carlos V
como “a bastarda” 135
. Era então preciso tomar medidas eficazes, e o rei não tardou em
providenciá-las. Em 1534, fora aprovada pelo parlamento uma lei pela qual todos os herdeiros
advindos do segundo matrimônio de Henrique VIII eram legítimos e inclusos na linha
sucessória, que, por sua vez, excluía quaisquer outros filhos do monarca, a exemplo de Maria.
Não obstante, “a Ato de Sucessão”, como ficara conhecido, “declarava formalmente a
validade do casamento do rei Henrique e da rainha Ana” 136
, e deveria, portanto, ser ratificado
por todo povo inglês, independente de status social. Aquele que se negasse a fazê-lo seria
acusado de traição e condenado à morte. Para Francis Hackett137
, o “Ato de Sucessão era a
pedra final do novo edifício que Ana e Henrique estavam construindo”.
Essa medida, entretanto, não foi aderida de boa vontade por muitos súditos que ainda
tinham em conta a rainha Catarina, como Thomas More (que havia renunciado a chancelaria
do reino em 1532 para “cuidar de sua alma”) e o bispo John Fisher. Henrique, que tinha
134 Imagem extraída do livro Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. – Rio de
Janeiro: Rocco, 2004. P. 160-g, escrito por Jane Dunn. 135 Idem. p. 280 136 Ibid. p. 279 137 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 257
52 www.rainhastragicas.com
grande estima e respeito por More, infelizmente não podia abrir uma exceção para ele sem
também conceder para os demais insatisfeitos. Dessa forma, não lhe restara opção a não ser
enviar o erudito e o clérigo para Torre e esperar até que se submetessem à lei ou pagassem
pelo preço de suas ações138
. O rei, conforme se perceberia, viu-se diante da extrema
popularidade que sua ex-mulher e a filha mantinham no coração das pessoas, enquanto seu
novo casamento era mal quisto por todos os países católicos. Nem mesmo Paulo III, sucessor
de Clemente VII no trono de São Pedro, tinha intenção de aliviar sua situação.
Para desespero de Ana, seu marido tomara uma nova amante (de quem não sobrou
registro de nome ou qualquer outro vestígio, exceto o fato de que era uma dama muito linda).
Mademoiselle Boullan, com seu temperamento explosivo, não tardou em rechaçar a rival,
sofrendo por isso com a cólera do rei, que dissera à esposa pra abaixar a cabeça e aceitar os
fatos “da mesma forma que pessoas melhores fizeram antes de ti” (uma clara alusão a
Catarina de Aragão e ao seu sangue real espanhol) 139
. Os Ingleses favoráveis ao Imperador
Carlos V acreditavam que Ana esperava pelo momento em que Henrique a deixaria como
regente para por um fim às vidas de Catarina e de Maria através do veneno. Contudo, suas
intenções para com a ex-princesa e sua mãe não eram tão extremas como a crônica espanhola
induz a acreditar. Em várias ocasiões, a rainha tentou se aproximar da enteada e foi
cordialmente rechaçada pela mesma. No entanto, Maria tinha a seu lado o povo, que apoiava
sua pretensão ao trono, enquanto a de Elizabeth apenas pelas aparências.
Em uma moeda datada do ano de 1534, o rosto oval de Ana usando um capelo inglês
aparece em volta de uma inscrição que dificilmente representava seu estado espírito naquele
momento: “The Most Happy” (A mais feliz – ver a figura 20). Para muitos, ela estava
convicta de que enquanto Catarina e Maria vivessem, ela não poderia cumprir os desejos do
rei, o de ter um filho varão140
. Provavelmente engravidara no segundo semestre daquele ano,
mas infelizmente não conseguira manter a gestação, tendo sofrido um aborto141
. Seus
inimigos se regozijavam cada vez mais com a situação dela, mas em sua obstinação, Ana
Bolena estava decidida a cumprir com zelo seu papel de soberana, não renegando seu
patrocínio à causa da reforma e incitando o rei ao mesmo142
. Enquanto ainda aparentasse apta
138 Idem. 139 Quando Ana reclamou com Henrique sobre a corte que ele fazia à “jovem muito bonita”, o rei, num acesso de
cólera exclamara que Ana “tinha bons motivos para estar contente com o que fizera por ela, o que ele agora não
faria se fosse preciso recomeçar, e que ela devia pensar de onde tinha vindo e coisas mais”. FRASER, Antonia.
Op.cit. p. 293-294. 140 “Ela é a minha morte e eu sou a dela”, teria declarado Ana Bolena no outono de 1535 diante da discórdia
causada pela enteada. Idem. p. 297 141 Ibid. 142 Sobre a religiosidade de Ana Bolena, ver o anexo 2.
53 www.rainhastragicas.com
para produzir herdeiros, a coroa permaneceria em cima de sua cabeça. Porém, como os
acontecimentos seguintes provariam, não por muito tempo.
O Prelúdio do fim
O ano de 1535 começou em estado de tensão para os reais personagens dessa trama:
era evidente que o rei estava se desinteressando aos poucos pela sua rainha, que, por sua vez
possuía escassos amigos na corte e muitos inimigos, inclusive entre os comuns. Enquanto isso
jazia nas celas da Torre o Bispo Fisher e o humanista Thomas More, que aguardavam no
conforto da fé que acreditavam verdadeira o dia em que seriam julgados pelos pares do reino.
Não obstante, Henrique começava a dar sinais de sua periódica impotência, frustrando assim
as pretensões de Ana de engravidar durante o inverno daquele ano143
. Ela e sua família
precisavam que o rei se mantivesse entretido, enquanto ela tentava dar à coroa o tão esperado
herdeiro. Além do mais, seria perigoso que ele tomasse por conta própria uma nova amante,
que representasse uma facção oposta à dos Bolena. Sendo assim, fora escolhida uma moça
ligada à rainha pelo sangue e que estava a serviço de sua casa naqueles tempos: sua prima
Margaret Shelton, carinhosamente apelidada de “Madge” 144
.
Entretanto, a prima “Madge” (que se dizia ter lindas covinhas de sorriso no rosto) não
estava apenas encarregada de estimular sexualmente o rei. A rainha a encarregou
pessoalmente de conversar com Lady Mary sobre as afáveis disposições de sua ama para com
ela. A jovem, naquele ano, já contava com 18 anos de idade e apresentava muito do caráter e
obstinação herdados de sua mãe. Em janeiro de 1536, por exemplo, depois de demasiadas
tentativas, Ana Bolena enviou uma carta à sua aia na qual dizia:
Senhora Shelton, peço-vos que não façais mais nenhum esforço para demovê-la do
seu capricho, porque a mim ela não pode fazer bem nem mal. Cumpri os vossos
deveres para com ela, segundo as ordens do Rei, como estou certa de que fazeis e
fareis, e aconteça o que acontecer achareis sempre em mim a vossa boa senhora,
ANA R 145.
Em outras correspondências, Ana pedia à Medge para desistir de apelar para o bom
senso de Maria, acrescentando que quando tivesse um filho, “o que espero que será em breve,
143 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 295 144 Idem. P. 291 145 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 277
54 www.rainhastragicas.com
sei o que acontecerá com ela” 146
. Tampouco Henrique VIII se mostrava satisfeito com o
comportamento de sua filha. Ele esperava submissão total perante seus desígnios, algo que a
jovem não estava disposta a passar por cima de sua consciência para ceder.
Figura 14 – Thomas More, por Hans Holbein (o Jovem) 147
.
Em meados de 1535, a cólera do rei estava se fechando em torno de seus opositores.
Para acentuar ainda mais o seu estado de espírito, o Papa Paulo III resolvera elevar o bispo
Fisher à categoria de cardeal, e, dessa forma, averiguar se Henrique VIII teria coragem de
assassinar um príncipe da igreja. Em tom sarcástico, o soberano respondera: “Mandarei a
cabeça a Roma para o chapéu” 148
(o bispo fora executado em Tower Hill a 22 de junho). Para
completar o quadro, havia ainda Thomas More e seus escrúpulos, que muito além de
representar um afronta à autoridade real, denotava um embate entre duas ideologias de vida: a
antiga (católica) e a nova (protestante). Para Francis Hackett,
Essas convicções, que Thomas More sustentava, feriam profundamente Henrique.
Embora se servisse de Cromwell, moralmente o desprezava; também ele fazia
profissão de um amor cristão não inferior ao do ex-chanceler. Mas não podia obter
146 Idem. 147 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-h,
escrito por David Starkey. 148 Ibid. p. 265
55 www.rainhastragicas.com
de More aquele respeito interior de que a sua consciência precisava. More recusava-
lhe o grão de incenso. Por isso, durante a longa prisão na Torre, teve de sofrer
rigores e privações, contínuos mortejos e propostas de compromisso, tentativas de
arrastá-lo a uma discussão e de seduzir seu espírito.
Thomas, porém, era o único homem para quem Henrique não era o Messias, um
homem que possuía coragem moral e inteligência lúcida149.
Destarte, o humanista havia sido acusado de se corresponder com a monja de Kent,
que há pouco tempo atrás tinha sido executada por alta traição por profetizar contra a sorte do
rei. Diante do veredito de culpabilidade, Thomas More teria dito à corte jurídica que “embora
vossas senhorias tenham sido os juízes que me condenaram na terra, nós poderemos
encontrar-nos depois jubilosamente no céu para a nossa salvação eterna” 150
. Em 6 de julho de
1535, sua cabeça rolou perante os olhos de uma multidão pasmada, depois de ter pronunciado
as breves palavras de que morria “como um leal súdito do rei, mas que Deus vinha em
primeiro lugar”.
A execução de More (ver a figura 14) chocou todo o continente europeu e contribuiu
para diminuir a popularidade do rei. Ana fazia o que podia para lhe aquietar a mente,
apresentando-o a novos livros de reformistas e se empenhando na educação da pequena
Elizabeth. Porém, seu estado de espírito também não era dos mais pacíficos: o rei havia se
cansado de Madge Shelton e voltara seus olhos para outra dama do círculo da rainha, uma
mulher sem muitos atrativos físicos e de comportamento modesto, Jane Seymour (ver a figura
15). A prova disso consiste no fato de que no itinerário daquele ano tinha sido acrescentado
um lugar em Wiltshire conhecido como Wolfhall, lar família Seymour151
. Foi lá que
mademoiselle Boullan pode avaliar de perto sua rival. Entretanto, Eric Ives ressalta:
Não há, portanto, nenhuma razão para suspeitar de alguma fenda no casamento real,
logo após o casal ter deixado os Seymours. Na verdade à medida que 1535 avançava e
chegava ao fim, Ana começou a ter esperanças de que seu maior desafio estava prestes
a ser cumprido – quando viesse a primavera, haveria um príncipe152.
Os anseios da rainha poderiam ser comprovados pela carta que enviara à sua amiga
Margarida de Angoulême (irmã de Francisco I), de que seus dois maiores desejos eram revê-
la e dar um herdeiro varão para a coroa153
.
149 Ibid. p. 263 150 Ibid. 151 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 269. 152 “There is , thus, no reason to suspect a rift in the royal marriage when the couple lefts the Seymours. Indeed,
as the 1535 progress came to an end, Anne began to hope that her ultimate challenge was about to be met – come
the spring, there would be a prince”. IVES, Eric W. Op.cit. p. 293 153 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 269.
56 www.rainhastragicas.com
Cada vez mais, Ana demonstrava abertamente seus ciúmes para com o marido. Em
uma ocasião, por exemplo, ofendera sem querer o embaixador francês com suas histéricas
gargalhadas. O motivo que provocara as mesmas, entretanto, não fora devido à presença do
emissário, e sim ao fato de que o rei “tinha saído com a desculpa de conversar com um amigo,
mas no caminho se tinha detido ao encontrar uma de suas amantes”. Henrique estava ficando
aborrecido com essas cenas protagonizadas pela rainha, apesar de todos os esforços que ela
fazia para agradá-lo. Enquanto isso chegou aos ouvidos do embaixador imperial Chapuys
notícias de que Catarina de Aragão jazia moribunda em seu leito no castelo de Kimbolton,
acometida de uma forte febre e que lhe restavam poucos dias de vida. Quando chegara o natal,
por exemplo, diziam que estava sucumbindo154
. Todavia, as festas de ano novo estavam a
todo vapor na corte, principalmente após a notícia de que Ana Bolena estava mais uma vez
grávida.
154 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 299
57 www.rainhastragicas.com
Capítulo 6
A queda de uma rainha e a ascensão de outra.
Figura 15 – Jane Seymour, por Hans Holbein, o Jovem
155.
Enquanto toda a corte celebrava as festas de início de ano, Catarina de Aragão tentava
se apegar aos últimos fios de vida que ainda lhe restavam. Em sua reclusão, tinha à sua
disposição poucos serviçais, entre eles uma amiga que a acompanhara desde sua viagem para
a Inglaterra em 1501, Maria de Salinas. Chapuys, por sua vez, obteve permissão para visita-la,
mas enquanto subia à barca rumo ao castelo de Kimbolton, fora detido pelo conde de Suffolk,
que portava uma mensagem do rei na qual se lhe dizia que Catarina estava in extremis, e que
dificilmente chegaria a tempo de encontrá-la com vida156
. Mesmo assim, o embaixador
conseguira um salvo-conduto para visitar a tia de seu amo, chegando ao castelo de Kimbolton
na manhã de ano novo de 1536. Encontrou-a em condições de saúde gravíssimas. A visita do
emissário, juntamente com a presença de sua amiga Maria de Salinas, animou o coração
155 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-j,
escrito por David Starkey. 156 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 273
58 www.rainhastragicas.com
daquela mulher de 50 anos, a ponto de fazê-la se sentir melhor. Entretanto, seria apenas um
alívio passageiro157
.
Segundo o parecer dos médicos, Catarina sofria de “violentas dores de estômago,
flatulência, vômitos e debilidade geral. Os seus anos de reclusão, a sua dieta, a má saúde
anterior podiam explicar o seu esgotamento” 158
. Não obstante, a ci devant rainha apresentava
os sintomas de uma hidropisia cardíaca. Na tarde do dia 6 de janeiro, conseguira levantar-se e
pentear os próprios cabelos, mas à meia noite seu estado teve uma grave piora. Sentindo que
sua hora final se aproximava, quis ouvir a missa em latim durante as quatro da manhã (hora
canônica), recebeu a extrema unção e ditou a última de suas cartas, direcionada ao seu
“caríssimo senhor, rei e marido”:
... Aproximando-se a hora da minha morte, eu não posso pelo amor que vos tenho,
deixar de recordar-vos a salvação da vossa alma, que deveis preferir a todas as
considerações do mundo ou da carne, quais quer que sejas. Pelas quais, todavia,
causastes tantas desventuras a mim, e tantos embaraços a vos mesmo. Mas eu vos
perdôo tudo e peço a Deus que faça outro tanto. Quanto ao mais, recomendo-vos
Maria, nossa filha, suplicando-vos que sejais para ela um bom pai, como eu até aqui
tenho desejado...159.
Em sua triste correspondência, Catarina ainda pedia ao rei para que cuidasse dos
criados que tinham ficado ao seu serviço, pagando-lhes os salários atrasados e provendo bons
casamentos para suas damas. Por fim, em um tom que pode parecer quase patético160
, ela
terminava a missiva dizendo que “finalmente, juro-vos que os meus olhos os desejam acima
de tudo”. Falecera às duas da tarde do dia 7.
O embaixador Chapuys só teve notícia da morte de Catarina apenas no dia 9161
. O rei,
de acordo com uma das versões do caso, caiu em prantos ao saber da notícia; em outro relato,
juntou-se à Ana Bolena nas festividades, todo vestido de amarelo, a cor da alegria (na opinião
de Antonia Fraser162
, é possível que ele tenha demonstrado ambas as reações). Para David
Loades,
... Não há dúvida de que nos últimos anos de vida [Catarina de Aragão] assumiu
uma qualidade de quase mártir e retirou uma satisfação lúgubre do fato de, em 1533,
a filha ter sido também afetada por causa dela. [...] Sem de fato o desejar, tornou-se
157 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 305 158 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 273 159 Idem. p. 274 160 Assim Antonia Fraser define a última frase da carta de Catarina de Aragão à Henrique VIII. FRASER,
Antonia. Op.cit. p. 304 161 Eustace Chapuys não compareceu ao enterro de Catarina de Aragão, pois achara um insulto ela ser sepultada
com as honras de uma princesa viúva de Gales, mas não as reservadas a uma rainha da Inglaterra. Idem. p. 308 162 Ibid. p. 306
59 www.rainhastragicas.com
a alavanca para o sobrinho penetrar ma política inglesa e um fulcro que o imperador
considerava valioso para lidar com o rei da Inglaterra. Apesar de ter passado mais de
35 anos na Inglaterra e de ter conhecido sorte e azar, Catarina nunca esqueceu que
tinha sangue real espanhol...163.
Junto com a ex-rainha, ia embora o medo que Henrique tinha de uma retaliação
imperial. Logo após a morte de Catarina, Carlos V começou a demonstrar intenções de
estabelecer uma nova aliança com os ingleses. Contudo, uma virada de sorte acabaria por
mudar todo o destino da política tudoriana e de sua soberana: mademoiselle Boullan perdera o
bebê164
.
Os acontecimentos que levaram Ana Bolena a sofrer um aborto prematuro em 29 de
janeiro são muito confusos. De acordo com a narrativa mais aceita, ela ficara histérica ao
saber que o rei sofrera um grave acidente de justa, ficando desacordado por cerca de 2 horas.
Outro caso bastante utilizado pelos romancistas seria de que Ana, grávida de 15 semanas,
teria surpreendido Jane Seymour sentada no colo de seu marido aos beijos com ele. Destarte,
a violência impactante com que esses fatos chegaram ao conhecimento dela foi suficiente para
fazê-la abortar165
. Ao se dirigir ao leito da parturiente, Henrique teria dito:
“Vejo bem que Deus não quer dar-me filhos homens”.
Ela tentou responder-lhe. Tinha sido a notícia da sua queda, disse-lhe. “Porque vos
amo muito mais do que vos amava Catarina, o meu coração se parte quando vos vejo
fazer a corte a outras”.
“Quando estiverdes restabelecida”, respondeu Henrique, “eu vos falarei” 166.
Henrique estava começando a acreditar que Deus havia amaldiçoado este casamento
do mesmo jeito que fizeram com o primeiro. Naquele período já era um homem de 45 anos, e
sem nenhum sucessor legítimo ao trono. Aos seus mais chegados havia confidenciado que
fora “seduzido e forçado a esse casamento por feitiçaria. Por isso Deus não permite que eu
tenha filhos varões. E por isso eu quero realizar uma nova união” 167
. A sucessora de Ana
Bolena, contudo, já havia sido escolhida. Para Antonia Fraser,
A essa altura, o relacionamento do rei com Jane Seymour adquiriu um novo
significado, com a primeira rainha morta e a segunda, de acordo com a opinião
generalizada, incapaz de gerar filhos homens. Uma paixão que poderia, em
circunstâncias muito mais felizes – isto é, mais felizes para Ana Bolena –, ter sido
agradável, mas transitória, tornou-se o foco de especulação universal168.
163 LOADES, David. Op.cit. p. 120 164 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 310 165 Idem. p. 310-311 166 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 278 167 Idem. 168 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 311
60 www.rainhastragicas.com
A família Seymour possuiu nobres ancestrais. O pai de Jane, Sir John, fora feito
cavaleiro por Henrique VII e havia acompanhado o sucessor deste nas comemorações do
“campo do tecido de ouro” em 1520. Uma vez que toda a corte tinha observado como se dera
a ascensão dos Bolena, chegara o tempo de outra família aristocrata repetir a fórmula utilizada
pelos mesmos169
.
Enquanto isso, Ana fechava-se cada vez mais em sua corte íntima, composta por
cavaleiros da câmara privada do rei, como Henry Norris, William Brereton e Francis Weston,
além de seu próprio irmão George e de mais algumas damas, que se deleitavam ao som das
cordas de um tocador de alaúde chamado Mark Smeaton, a quem Ana havia resgatado da
miséria. Mal sabia o círculo de amigos que em meados de abril, Thomas Cromwell já estava
reunindo provas contra a rainha, suficientes para declarar seu casamento inválido e culpá-la
por alta traição. Os acontecimentos daqueles primeiros meses de 1536 só fizeram corroborar
para o desespero que estava tomando conta dela: em 23 de abril, Nicholas Carew (que fazia
parte da facção anti Bolena, e estava intercedendo a favor de Jane Seymour) havia sido
nomeado cavaleiro da Ordem da Jarreteira, em vez de George Bolena170
. Sua situação
mostrava-se mais complicada a cada passo, partindo do pressuposto de que Catarina não fora
julgada ou condenada por Henrique devido ao fato de ter em seu apoio o Imperador; já Ana,
não tinha qualquer personalidade poderosa pronta a tomar partido de sua causa. Em fins de
abril, durante um torneio de justa, seria a última e derradeira vez em que a rainha veria
Henrique.
Julgamento e execução
É difícil dizer até que ponto os acontecimentos dos primeiros meses de 1536
influenciaram na queda de Ana Bolena em fins de abril daquele ano. A cronologia de
acontecimentos que interferiram nesse processo já vem sendo discutida há muito tempo pelos
principais historiadores do período. É possível, portanto, dizer que quando as comemorações
do primeiro de maio estavam acontecendo (com o torneio de justa), a rainha não sabia
absolutamente de nada do que estava sendo feito, embora pudesse sentir o cerco se fechando
169 Idem. p. 312 170 Ibid. p. 317
61 www.rainhastragicas.com
ao seu redor171
. No domingo de 30 de abril, o músico Mark Smeaton havia sido preso na
Torre de Londres após confessar que mantinha relações sexuais com sua senhora, além de
indicado os nomes de Weston, Norris e Brereton como amantes da mesma. Segundo
informações de uma testemunha ocular, o tocador de alaúde havia sido convocado à casa do
secretário Cromwell e lá fora torturado por dois lacaios com o intuito de fazer-lhe confessar
justamente aquilo que o Mestre Secretário desejava ouvir172
.
Figura 16 – Ana Bolena, como ela provavelmente se parecia no tempo de sua queda, por
artista desconhecido173
.
Um dia depois, enquanto o rei e a rainha presidiam o torneio em Greenwich, Henrique
recebera uma mensagem de conteúdo misterioso. Após ler tal missiva, levantou-se e partiu do
lugar sem sequer se despedir da esposa (da mesma forma que fizera com Catarina de Aragão
em 1531). Fizera-se, entretanto, acompanhar-se de Norris, que estaria competindo com o
irmão da rainha neste dia. Durante o percurso, o rei notificou o cavalheiro das acusações feitas
171 LOADES, David. Op.cit. p. 140 172 Antonia Fraser acredita que a história da tortura de Mark Smeaton não era impossível, visto que não era um
nobre, para ser tratado com gentileza, mas um jovem de origens humildes. Boatos dão conta de que ao chegar à
casa de Cromwell para uma suposta ceia, uma corda fora amarrada em torno de seu pescoço e torcida com um
porrete, enquanto outros diziam que ele fora “cruelmente torturado”. Tais fatos, ainda hoje, carecem de maiores
provas. FRASER, Antonia. Op.cit. p. 324 173 Imagem extraída do livro Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New
York: Ballantine Books, 2010. p. 202-a, escrito por Alison Weir.
62 www.rainhastragicas.com
por Smeaton no domingo passado. Apesar dos protestos de inocência por parte de Norris, ele
fora levado para a Torre174
. Lá, os presos foram novamente interrogados. O mais estranho
nesse processo foi que o próprio irmão da rainha, George Rochford, também havia sido
capturado. As provas contra ele foram oferecidas pela própria esposa, Jane Parker, que não
possuía um casamento estável com o marido e sempre teve um dom especial para intrigas.
Conforme consta no auto de acusação contra Lorde Rochford, sua esposa afirmara que havia
certa “familiaridade indevida” entre ele e sua irmã, Ana175
.
Para Antonia Fraser176
, os motivos que levaram a esposa de George a fazer tal
acusação contra seu esposo continuam obscuros. Sabe-se que o pai dela, Lorde Morley, fora
um dedicado defensor de Catarina de Aragão, e a própria Jane pretendera colaborar com a
causa da filha de Catarina, Maria. Por outro lado, como alternativa, ela pretendia permanecer
do lado vencedor (como, de fato, aconteceu), e se afastar o máximo possível da sombra da
“culpa” do marido. Jane ainda teria afirmado que Ana lhe dissera em certa ocasião que o rei
era incapaz de copular com a própria esposa e que não possuía nem habilidade nem virilidade.
O efeito de tais palavras condenaria a rainha com demasiada eficiência, visto que ninguém
poderia fazer uma crítica desse nível ao monarca e esperar viver (especialmente se houvesse a
preocupante possibilidade de a acusação ser verdadeira) 177
.
Após ter interrogado os membros do séquito de Ana, e feito alguns prisioneiros na
Torre, Cromwell pode finalmente concluir um auto de acusação contra ela, e tão logo o
apresentou ao rei. Em tal documento, era ainda possível identificar os amantes da soberana e,
inclusive, as datas em que ela se relacionara com eles:
Ana tivera procedimento licencioso fazia já quase três anos. Um mês apenas depois
do nascimento de Isabel, era acusada de infidelidade com Norris. Dizia-se que
enganara Henrique. Com Brereton a 16 de Novembro, de novo com Norris a 19,
ainda com Brereton a 8 de Dezembro de 1533. Cinco meses depois era acusada de
alternar, com curiosa regularidade, Smeaton e Weston: e finalmente, enquanto
Smeaton, Weston, Brereton e Norris continuavam a fazer parte de seu círculo íntimo
muito tempo depois que ela cessara de conceder-lhes os seus favores, suspeitava-se
que se entregara a seu irmão, precisamente na solenidade da semana de natal, e
quando se achava em estado da adiantada gravidez178.
174 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 286 175 No dia de seu julgamento, em 15 de Maio, ao saber que fora a esposa quem oferecera tal prova, George
Bolena exclamara com amargor perante os seus juízes: “Com base no depoimento de apenas uma mulher, os
senhores estão dispostos a acreditar que cometi esse grande pecado”. FRASER, Antonia. O.cit. p. 336. 176 Idem. pp. 336-337 177 Ibid. 178 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 285
63 www.rainhastragicas.com
Segundo Alison Weir179
, o rei parece que não ponderou as informações que acabavam
de lhe ser passadas por seu secretário e, aparentemente, acatou como verdadeiras todas
aquelas acuações de adultério, extraídas através de meios duvidosos. Não obstante, Eric
Ives180
ressalta que investigações, além disso, mostraram que mesmo depois de quase 500
anos, três-quartos daquelas alegações poderiam ser refutadas. Em doze casos, por exemplo,
Ana estava em outro lugar, ou então com um homem diferente.
Na madrugada de 2 de Maio, a rainha recebera uma mensagem na qual era convocada
a comparecer diante o Conselho, presidido pelo duque de Norfolk. Lá ficou sabendo de que
estava sendo acusada de adultério e de que devia tomar a barca rumo à Torre. Empalidecida
pela falta de cortesia dos pares do reino, ela replicou: “Ser rainha e ser tratada assim é uma
coisa nunca vista” 181
. A condução que a levaria à sua prisão chegou por volta das duas da
tarde. Sendo transportada em plena luz do dia e sob os olhares de uma incrível multidão, ela
finalmente avistou os portões do recinto. Ao aportar, fora recepcionada pelo guardião do
lugar, mestre Kingston, a quem perguntou: “Mestre Kingston, tenho de ir para um torreão?”.
Ao passo que ele respondeu: “Não, Senhora, ireis para o aposento que ocupaste no tempo da
vossa coroação”. Agradecida pela gentileza de seu carcereiro, Ana exclamou que “é bom
demais pra mim. Jesus tenha piedade de mim” 182
. Em seguida, caiu de joelhos, em um choro
que depois se transformou numa gargalhada incontida, que surpreendeu a todos ali presentes.
A rainha, por sua vez, também não podia deixar de se preocupar com seu irmão, de quem não
soubera o paradeiro desde o dia anterior. Quando questionou Kingston se este sabia alguma
coisa a respeito de George, ele respondeu que o havia deixado em York Place, mas na verdade
ele tinha sido levando também para a Torre pouco antes do meio dia183
.
Uma vez encarcerada (ver a figura 17), Cromwell designou algumas camareiras
chefiadas pela mulher de Kingston para relatar todos os atos de Ana em sua cela. Segundo tais
senhoras, em alguns momentos a prisioneira era tomada por fortes sentimentos de desespero,
para depois cair em uma gargalhada descontrolada. Todas as palavras que saiam de sua boca
eram relatadas ao secretário do rei para que fossem usadas no julgamento184
. Na opinião de
Antonia Fraser:
179 WEIR, ALISON. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010. pp.
87-89 180 IVES, Eric W. Op.cit. p. 344 181 HACKETT, Francis. Op.cit. p. 287 182 Idem. 183 Ibid. 184 Ibid. p. 289
64 www.rainhastragicas.com
Por que se considerava essencial livrar-se da rainha Ana de uma vez? A resposta
esta no comportamento de sua antecessora. Certa vez, o rei e seus ministros tinham
previsto uma retirada digna da rainha Catarina do palco, possivelmente para um
convento. Em vez disso, tinham enfrentado sete anos de protesto, assumindo formas
tão variadas como uma ameaça imperialista do exterior e apoio pessoal a Catarina
dentro do país. Não dariam a mesma oportunidade a Ana Bolena185.
Como estava convicto de que mademoiselle Boullan não poderia lhe dar um herdeiro
varão, o rei não queria mais uma ex-esposa causando problemas justo quando a morte acabava
de lhe livrar da primeira. Tornou-se então um fato de que Ana Bolena precisava desaparecer,
para que não se tornasse uma pedra no caminho das pretensões dinásticas de Henrique VIII.
No dia 4, Sir Francis Weston e William Brereton foram finalmente presos. Novas
provas foram levantadas: dizia-se que a rainha havia conspirado com Norris para assassinar o
rei e depois casar-se com ele, o que logicamente implicava num crime de alta traição. Pouco
antes do acontecido, o dito fidalgo havia contraído bodas com a prima da rainha, Madge
Shelton. De acordo com os relatos, Ana se tinha impacientado com a demora do casamento e
então proferiu as comprometedoras palavras: “você lucraria com a morte de uma pessoa, pois
se algo de mal acontecesse ao rei, você procuraria me conquistar” 186
. No entanto, esse
diálogo, que poderia ter se sucedido de forma despretensiosa, fora transformado em uma arma
no inquérito estabelecido contra a rainha. No dia 8, Thomas Wyatt, antigo admirador de Ana,
também fora preso, mas logo foi solto por falta de provas mais conclusivas. Quatro dias
depois, os três membros da câmara do rei, mais o tocador de alaúde Mark Smeaton, foram
julgados culpados. Weston, Norris e Brereton foram condenados a morrerem decapitados,
enquanto o Smeaton, por não ser um fidalgo, seria enforcado até quase morrer, eviscerado,
depois castrado e por fim esquartejado187
.
O julgamento de Ana e de seu irmão seria realizado no dia 15 no Grande Salão da
Torre de Londres. Corajosa e orgulhosa como sempre, a rainha se dirigiu com calma aos pares
do reino, chefiados pelo seu tio, duque de Norfolk, e entre os quais se encontrava sua paixão
de outrora: Henry Percy. Apesar de ter feito uma brilhante defesa, na qual alegava sua
inocência diante daqueles horríveis crimes que atacavam mais sua fidelidade conjugal que
qualquer outra coisa, ela foi considerada culpada e sentenciada a morrer decapitada ou
queimada na fogueira conforme a vontade do rei. Logo depois foi a vez de seu irmão. Todos
achavam que ele seria exonerado da culpa, já que as provas de incesto careciam de maior
fundamento. Entretanto, Lorde Rochford cometeu a insensatez de ler em voz alta a suposta
185 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 327 186 Idem. p. 333 187 Ibid.
65 www.rainhastragicas.com
declaração que Ana fizera à Jane Parker sobre a virilidade do rei, o que constituía numa
afronta direta à pessoa do monarca, contribuindo, dessa forma, para que o júri condenasse o
réu à morte em circunstâncias iguais às de sua irmã188
. No dia seguinte, o Arcebispo Cranmer
declarou o segundo casamento do rei, inválido189
.
Figura 17 – Ana Bolena na Torre de Londres, por Edward Cibot, 1835 190
.
No dia 17, debaixo da janela da cela da em que estava presa, os cinco homens com os
quais fora acusada de manter relações sexuais, foram executados. Quanto à própria Ana, seria
decapitada por um espachim francês no próximo dia, mas por algum motivo o carrasco se
atrasou, dando à vítima mais algumas horas de vida. Kingston havia relatado que a ci-devant
rainha havia se queixado do atraso e ainda fazia piada do ocorrido: “ouvi dizer que o carrasco
é muito hábil, e eu tenho um pescoço tão fino!” 191
. Logo depois, começou a rir. Na manhã de
sexta (dia 19), vestindo um manto de arminho sobre uma túnica, e um vestido de damasco
188 Ibid. 337 189 A anulação, por sua vez, fora preparada depois de uma confissão que Ana Bolena fizera ao arcebispo. Até
hoje não se sabe o conteúdo da declaração da rainha. É possível que ela tenha feito algumas afirmações na
esperança de se salvar ou para preservar a segurança de seus familiares. Apesar de o decreto da nulidade do
casamento ser datado de 17 de maio, o mesmo só fora assinado em 10 de junho e aprovado pelas duas casas do
Parlamento em 28 de junho, quando a rainha já estava morta. Ibid. p. 340 190 Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books,
2010. p. 202-i, escrito por Alison Weir. 191 HACKETT, Francis. Op.cit. p.292
66 www.rainhastragicas.com
escuro e uma anágua vermelha, Ana subiu no patíbulo armado em frente à Torre Branca, e
proferiu o seguinte discurso para os espectadores presentes na ocasião:
Bom povo Cristão, venho aqui para morrer, de acordo com a lei, e por ela fui julgada
para morrer, e por isso não direi nada contra ela. [...] Não venho aqui para acusar
qualquer homem, nem falar nada a respeito daquilo de que fui acusada. [...] Eu rezo
e peço a todos vocês, bons amigos, que rezem pela vida do rei, meu senhor soberano
e de vocês, que é um dos melhores príncipes na face da terra, e que sempre me tratou
tão bem. [...] Dessa forma, eu me despeço deste mundo, e de vocês, e imploro para
que rezem por mim 192.
Em seguida, ela pagou ao carrasco pela sua execução um total de 24 libras, ajoelhou-
se, e enquanto encomendava sua alma a Deus, recebeu o golpe de misericórdia, que calou
para sempre sua oração. Logo após, tiros de canhão foram disparados, para anunciar que a
vítima finalmente partira para a imortalidade. Ninguém se importava; ninguém além de
poucas serviçais se interessou e dar um destino digno a seu corpo. Ela partira deste mundo
deixando no ar seus medos e desilusões, num verdadeiro eco de misticismo que se propagaria
para muitas gerações a posteriori.
192 “Good Christian people, I am come hither to die, according to de low, for bay the low I am judged to die, and
therefore I will speak nothing against it. […] I come hither to accuse no man, nor to speak anything of that
whereof I am accused […]. I pray and beseech you all, good friends, to pray for the life of the King, my
sovereign lord and yours, who is one of the best princes on the face of the earth, who has always treated me so
well that better could not be […]. Thus I take my leave of the world, and of you, and I heartily desire you all to
pray for me…” WEIR, Alison. Op.cit. 2010, p. 281
67 www.rainhastragicas.com
Conclusão Ana Bolena, uma trágica heroína dos tempos modernos
Figura 18 – Túmulos de Ana Bolena (esquerda) e Catarina Howard (direita) na Capela de St.
Peter ad Vincula193
Até que ponto um homem é capaz de chegar para satisfazer suas pretensões? Qual é o
limite dos poderes de um rei? Em tempos de monarquia absolutista, acreditava-se que o
soberano era um representante de Deus na terra, e que sua autoridade e direito de reinar
emanava dos céus. Sua vontade era lei, e quem a contrariasse ou interferisse no curso dos
acontecimentos seria duramente castigado. Sem dúvida, Ana pode comprovar por si mesma
que “a cólera do rei, era a morte”. Para muitos, tanto ela quanto os outros cinco homens que
morreram em maio de 1536 nada mais eram do que joguetes nas mãos de indivíduos
ambiciosos e prontos para conseguirem aquilo a que estavam dispostos a ter, machucando a
quem tivesse de machucar para isso, groigne qui groigne194
. Mas seria Ana Bolena um
joguete ou uma jogadora? Quem, por exemplo, poderia prever que em 1533, quando a rainha
193 Imagem extraída do livro Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New
York: Ballantine Books, 2010. p. 202-q, escrito por Alison Weir. 194 Referência ao lema de Ana Bolena Ainsi sera, groigne qui gorigne – É assim que será, por mais que o povo
possa resmungar. FRASER, Antonia. Op.cit. p. 211
68 www.rainhastragicas.com
carregava o presuntivo herdeiro varão da coroa em seu ventre, os acontecimentos tomariam
rumo tão catastrófico? Naqueles anos, estava no ápice de sua influência, mas o jogo acabou
virando contra ela mesma.
O fato é que Ana foi uma mulher impressionante, talvez uma das mais interessantes
das seis esposas de Henrique VIII. Seu desempenho e obstinação, em um mundo governado
por homens, marcou a história. Mas que foi feito dela, após pagar o preço máximo por seus
atos? Os despojos do que um dia fora a mulher mais desejável da corte inglesa foram
transladados para uma sepultura insalubre, indigna da posição que um dia ocupara. Ana
Bolena não morreu como rainha da Inglaterra, uma vez que seu casamento com Henrique fora
declarado inválido desde o princípio. Todavia, se nunca estivera casada com o rei, como
poderia ter cometido adultério? Ao olhar contemporâneo, essa é uma das maiores falhas do
processo levantado contra a mesma. Seria executada não como soberana, mas como senhora
marquês de Pembroke195
. Entretanto, é possível presumir que aquele a quem outrora chamara
de marido, guardara um pouco de misericórdia para com aquela mulher. Em vez de sofrer
uma morte dolorosa na fogueira, mademoiselle Boullan seria decapitada por um espadachim
francês. O golpe da espada foi tão rápido e silencioso que apenas em um piscar de olhos, a
dama já estava morta. Não obstante, o saco de moedas com que pagara ao carrasco fora
custeado pelo próprio rei.
Alguns diziam que seu espírito jamais encontrou paz após a morte, vagando pelos
lugares que marcaram a sua vida. Outros, que era uma bruxa; que conquistara o rei através de
sortilégios; que em todo aniversário de sua execução, várias lebres corriam descontroladas
pelos campos (a lebre era tida como um dos símbolos da feiticeira) 196
. A partir daí a história
se tornou lenda, acrescentando um “quê” a mais de misticismo em sua figura. Mas às vezes os
acontecimentos se mostram demasiado irônicos, pois quis o destino que o grande sucessor de
Henrique VIII não fosse o garoto por quem tanto lutara, mas uma menina: Elizabeth, sua filha
com Ana Bolena. Após a morte da mãe, a pequena órfã fora considerada uma bastarda, tal
como sua meia-irmã Maria. Dez dias depois da execução da ci-devant rainha, o rei se casou
com Jane Seymour, a quem mais tarde chamaria de sua “verdadeira esposa”. Jane cumpriu
com suas obrigações como rainha consorte, dando ao marido um herdeiro para o trono, mas
logo após o parto contraiu febre puerperal e morreu em seu leito de parturiente poucos dias
depois.
195 Idem. pp. 338-339 196 Ibid. p. 343
69 www.rainhastragicas.com
Em 1540, o rei desposou uma princesa alemã, outra Ana, filha do duque de Cléves.
Dois anos se passaram desde a morte de Jane Seymour, e os ministros do rei decidiram que
era hora de unir a Inglaterra em uma aliança que prejudicasse as pretensões do Imperador
Carlos V. Todavia, Henrique não gostara daquela moça de comportamento alienígena ao seu.
Sentira-se enganado pelo retrato que Holbein pintara dela. Em consequencia, despejara toda a
sua cólera nos ombros de Thomas Cromwell, já que fora ele o arquiteto do casamento. Quatro
anos após planejar a queda de Ana Bolena, agora era a vez do secretário de rei perder a
cabeça. Com apenas seis meses de matrimônio, o arcebispo Cranmer mais uma vez decretava
inválida a união do soberano, para que ele contraísse bodas com Catarina Howard, uma dama
com menos de vinte anos e que era prima de sua segunda esposa. A pobre jovem também teria
um trágico fim, ao contrário de sua antecessora, que aceitara o divórcio sem nenhuma objeção
e fora agraciada pela bondade de Henrique pela sua atitude. Em 1541 os ministros do rei,
temendo a influência do duque de Norfolk sobre o mesmo, reuniram provas contra a nova
rainha, acusando-a de adultério. Seu destino fora o mesmo dos traidores: a decapitação.
Estando muito velho e doente, Henrique precisa de alguém com quem dissipar seus
infortúnios, e a família Seymour não tardou em arranjar uma candidata ideal para o posto de
rainha, uma viúva de 32 anos e que já tinha certa experiência em cuidar de maridos enfermos:
Catarina Parr. Era uma protestante convicta e defensora da causa da reforma, e apesar de suas
crenças lhe terem causado alguns problemas futuros, viveu com o rei até a morte dele, em
janeiro de 1547. A partir daí, Henrique fora sucedido pelo seu filho com Jane Seymour, que
ascendeu ao trono do pai sob a nomenclatura de Edward VI, com apenas nove anos de idade.
Infelizmente, o jovem príncipe era de compleição debilitada e morreu seis anos depois,
deixando a coroa para a herdeira de Catarina de Aragão. Em seu desejo de trazer a Inglaterra
de volta á crença da mãe, Maria I mergulhou o país nas chamas da inquisição, causando por
isso grandes tumultos internos na Inglaterra.
Seu casamento frustrado com Felipe da Espanha (filho do imperador Carlos V), aliado
às falsas gravidezes por que passou, acabou por exaurir suas forças. Morreu em 1558,
deixando a coroa para sua meia-irmã. Elizabeth herdara não somente um Estado fraco, mas
também as dívidas e querelas de três reinados anteriores. Mas as provações por que passara na
infância e adolescência, juntamente com a refinada educação que recebera, prepararam-na
para o papel de soberana de uma nação orgulhosa de si mesma. Com Elizabeth I, a Inglaterra
teve um de seus mais notórios monarcas. Ela fortalecera a marinha, a moeda, além de
estabelecer preciosos contratos mercantis com os reinos vizinhos. Em 1588 derrotara a
armada espanhola de Felipe II, o que fez com que os ingleses se tornassem os verdadeiros
70 www.rainhastragicas.com
senhores das águas nórdicas. Sua gestão fora chamada de a Idade de Ouro e a decisão da
mesma de nunca se casar, valera-lhe o epíteto de a “Rainha Virgem”.
Figura 19 – Ane de Elizabeth I contendo um retrato seu ao lado de uma dama em trajes da
corte francesa, provavelmente Ana Bolena197
.
Após sua morte em 1603, tendo governado por aproximadamente 45 anos, a dinastia
Tudor terminou. Não era só o fim de uma Era, mas também o desmoronamento do
absolutismo naquele país, sob o domínio dos Stuarts. Hoje, o poder da realeza inglesa em
nada se assemelha aos dos tempos de Henrique VIII, mas é realmente curioso que sob a filha
de Ana Bolena e de tantas outras soberanas, a exemplo de Vitória e Elizabeth II, ficou
provado que o governo das mulheres era tão eficaz, ou inclusive mais magnânimo, que o dos
homens. Poucos sabemos do interesse de Elizabeth por sua mãe. Ela nunca se prontificara em
restaurar a reputação da segunda mulher de seu pai. Contudo, um pequeno artefato seu nos
mostra o carinho que a rainha guardava pela sua progenitora: em um pequeno anel de pedras
preciosas, fora adicionado um fecho que ocultava a efígie de duas mulheres; uma delas se
trata logicamente da soberana, mas na outra podemos ver uma dama de capelo inglês, rosto
oval, maçãs do rosto salientes como as de Elizabeth, além de lábios carmim que revelavam
197 Imagem extraída do livro Imagem extraída do livro The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New
York: Ballantine Books, 2010. p. 202-q, escrito por Alison Weir.
71 www.rainhastragicas.com
um encantador sorriso de Mona Lisa; se trata de ninguém menos que Ana Bolena (ver a figura
19).
Os ossos de mademoiselle Boullan só foram descobertos em 1877, durante reformas
na capela de Saint-Peter ad Vincula. Após um estudo, concluiu-se que o esqueleto pertencia
rainha decapitada. Embora alguns historiadores contestarem esse fato198
, só se pode louvar a
atitude daqueles que se prontificaram a dar um sepulcro razoavelmente digno para aquela
mulher (ver a figura18), devolvendo-lhe, inclusive, o título de rainha da Inglaterra. Ha quem a
considere uma mártir; outros, apenas uma pessoa vil, cujo desígnio era apenas arruinar a vida
de seus inimigos. O fato é que mesmo quase quinhentos anos após sua morte, Ana Bolena
ainda continua tendo cruéis detratores, mas também aqueles que a defendem com ardor199
.
Seria um equívoco dizer aqui que se não fosse por ela, Henrique jamais teria se separado de
Catarina de Aragão ou rompido com a Igreja Católica. Todavia, a ascensão e queda desta
senhora fora um marco divisor de águas, e como tal um estudo detalhado acerca da vida de
sua personalidade torna-se necessário. Jamais conseguiremos desvendar todos os segredos que
ela carregara para a cova, mas pelo menos podemos nos forçar à tentativa de estudá-la em
toda a sua magnitude.
198 Alison Weir argumenta que os ossos que repousam no túmulo de Ana Bolena pode não ser dela, uma vez que
durante a exumação do corpo, constatou-se que o esqueleto tinha um pescoço curto, enquanto Ana Bolena fora
descrita em seu tempo de vida como tendo um pescoço comprido. WEIR, Alison. Op.cit. 2010. p. 343. 199 Sobre as representações de Ana Bolena ao longo dos anos, ver o anexo 3.
72 www.rainhastragicas.com
Anexo 1
As várias faces de Ana Bolena
Figura 20 – Retrato de Ana Bolena em medalha, com a inscrição A.R. THE MOOST HAPPI
ANNO 1534200
.
Entre os muitos mistérios ligados à figura de Ana Bolena, está a sua aparência física.
Perguntas do tipo “como ela era?” já renderam (e ainda rendem) bastante assunto para
discussão. O fato de haverem tantos retratos dela, cada um apresentando diferenças faciais
significativas, ajuda em quase nada na solução deste problema, principalmente quando
levamos em consideração a evidência de que quase todos os quadros foram pintados depois da
morte da rainha, baseados em descrições da mesma e/ou em algum retrato original que não
sobrevivera aos últimos séculos. A única e indisputável imagem criada durante sua vida é uma
medalha (hoje no Museu Britânico) datada de 1534 (ver a figura 20) na qual podemos ver
uma mulher de rosto oval, usando um capelo inglês, com a inscrição A. R. (Anna Regina) e o
motto ‘The Moost Happi’ (the most happy – a mais feliz). Contudo, o nariz e o olho direito de
200 Imagem extaída do livro IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United
Kingdom: Blackwell Publishing, 2010, escrito por Eric Ives.
73 www.rainhastragicas.com
Ana apresentam-se irremediavelmente danificados, o que torna a medalha numa fonte pouco
fidedigna de sua aparência201
.
E como Ana Bolena se parecia? As primeiras descrições de seu físico datam do ano de
1527, quando o caso entre ela e Henrique VIII tornou-se alvo do interesse público. Segundo
Sanuto202
, um diplomata veneziano que esteve na corte inglesa durante aquele período, “a
Senhora Ana não é uma das mulheres mais bonitas do mundo, tem estatura média, compleição
escura, pescoço comprido, boca larga, um peito não muito saliente e olhos que são negros e
lindos”. William Barlow, um dos capelães favoritos de Ana, chegou inclusive a compará-la
com Bessie Blount, ao descrever a ex-amante de Henrique VIII como mais bonita, embora
reconhecesse que Ana era “mais eloquente e graciosa” que a outra203
. Tais características,
contudo, não se encaixavam nos moldes do que era considerado belo no período: enquanto
cabelos escuros, lábios salientes, olhos grandes e negros, aliados de uma pele em tons de oliva
são traços físicos amplamente valorizados na mulher do século XXI, no XVI quem reinavam
eram as loiras.
Dos retratos da virgem Maria ao de Vênus (especialmente na pintura de Botticelli de
1496), inclusive na literatura com Guinevere às heroínas do amor cortês, observamos uma
verdadeira celebração de mulheres loiras, com pele leitosa, olhos azuis e lábios finos. Não
obstante, esse modelo estético atuava como um divisor de classes, separando as mulheres da
nobreza das outras com uma tez mais escura e de cabelos castanhos204
. Nesse contexto, Ana
não poderia ser considerada uma grande beldade, mas o fato de ela ter atraído a atenção de
tantos homens, como Henry Percy, Thomas Wyatt e o próprio rei, significa que ela possuía
um charme natural que, por sua vez, tornava-a mais interessante do que as suas
contemporâneas. Escrevendo sobre Ana Bolena, George Wyatt (neto de Thomas Wyatt) a
descreveu como uma mulher de “rara e admirável beleza”.
Com efeito, George Wyatt tivera acesso a relatos de pessoas que conheceram Ana
Bolena para compor um manuscrito intitulado Life of Queen Anne Boleigne (Vida da Rainha
Ana Bolena), que ele passou para seu sobrinho em 1623. Seu ponto de vista é visivelmente
favorável à Ana, exceto por algumas descrições que ainda permanecem enraizadas na cultura
popular:
201 BERNARD, G.W. Anne Boleyn: fatal attractions. – London: Yale University Press, 2010. p. 198 202 LOADES, David. Op.cit. p. 129 203 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 19 204 BORDO, Susan. Op.cit. p. 26
74 www.rainhastragicas.com
... ali encontrava-se, de fato, em cima do lado de sua unha, em cima de um de seus
dedos, uma pequena amostra de unha [extra], mas tão pequena, que pelo relato
daqueles que a viram numa ocasião, parecia que fora trabalhada para dar maior
graça à sua mão, como a ponta de um de seus outros dedos poderia ser, e geralmente
era escondido por ela sem qualquer defeito a ele. Do mesmo modo, disserem que
sobre algumas partes de seu corpo incidiam pequenas manchas...205.
Antonia Fraser206
considera que essas manchas atuavam no corpo de Ana como
pequenos sinais que a embelezavam sem, contudo, desfigura-la. Assim como ela, Eric Ives207
acredita que uma simples malformação em um de seus dedos poderia ser possível, ou uma ou
duas manchas, mas nunca o desastre que Nicholas Sander, autor de De Origine ac Progressu
Schismatis Anglicani (1585), descreveu. De acordo com Sander, um católico que deixou a
Inglaterra durante o reinado de Elizabeth I e depois se tornou jesuíta, Ana Bolena era
desfigurada por uma imensa papeira que ela escondia com a gola alta de seus vestidos, uma
grande quantidade de verrugas cobria seu corpo, seis dedos em uma das mãos e um dente
projetado para fora dos lábios. Entretanto, Sander tinha apenas 9 anos quando Ana morreu
(1536) e é provável que nunca a tenha visto208
. Além do mais, golas altas em vestidos não
eram usadas durante o reinado de Henrique VIII. Destarte, é de presumir que dificilmente
uma deformidade como essas chamaria a atenção dos homens, especialmente do rei.
Entretanto, seu relato coincide com o de outros quanto às outras características de
Ana, tais como: estatura mediana, cabelo escuro e rosto oval, e parece também concordar com
George Wyatt no que diz respeito aos seis dedos. Para Bordo:
Desde a morte de Ana, os corpos enterrados na capela de St. Peter ad Vincula foram
exumados e nenhum dos esqueletos apresentou evidência de um sexto dedo. No
entanto, há quem acredite atualmente que o corpo de Ana não descansa ali. Mas
remanescentes humanos à parte, se durante sua vida Ana possuía seis dedos, porque
o olho de águia de Chapuys falhou em reportar isso?209
De fato, Eustace Chapuys, embaixador imperial na Inglaterra, era um dos mais
virulentos atacantes de Ana. Em seus despachos, ele não cansava de diminuir a figura da
segunda esposa de Henrique VIII, referindo-se a ela como prostituta e relatando (e muitas
vezes exagerando) as más opiniões da população e da corte sobre ela. Por que ele deixaria de
205 “there was found, indeed, upon the side of her nail, upon one her fingers, some little show of a nail, which yet
so small, by the reports of those that have seen her, as the work master seemed to leave it an occasion of greater
grace to her hand, which, with the tip of one of her other fingers might be, and was usually by her hidden without
any blemish to it. Likewise there were said to be upon some parts of her body, certain small moles…” IVES,
Eric W. Op.cit. p. 40 206 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 167 207 IVES, Eric W. Op.cit. p.40 208 FRASER, Antonia. Op.cit. p. 167 209 BORDO, Susan. Op.cit. pp. 29-30
75 www.rainhastragicas.com
mencionar a evidência de um sexto dedo numa das mãos da mesma, que poderia ser
facilmente interpretado como um toque do diabo e sinal de bruxaria? Isso só reforça a
conclusão de que para além dos cabelos e olhos escuros, a pele em tons de oliva, as pequenas
manchas, e a evidência de uma pequena unha em seu dedo mindinho, nós ainda não estamos
muito certos sobre como Ana Bolena realmente se parecia. Depois de sua morte, Henrique
ordenou que todos os pertences dela fossem destruídos, inclusive seus retratos originais. Os
que sobreviveram são cópias e/ou interpretações discordantes entre si210
. Voltemos agora
nosso foco para uma análise dos quadros da rainha Ana.
Como dito no início desse texto, a única imagem contemporânea de Ana Bolena que
sobreviveu à posteridade é um medalha de 1534, feita possivelmente para comemorar sua
segunda gravidez211
. Contudo, os retratos mais associados a ela são os do Castelo de Hever
(Kent – ver a figura 3) e o da Galeria Nacional de Retratos de Londres (National Portrait
Gallery – ver a figura 25), que trazem as seguintes inscrições: Anne Bolina Angliae Regina
(Ana Bolena Rainha da Inglaterra) e Anna Bolina Uxor Henrici Octavi (Ana Bolena Esposa
de Henrique VIII), respectivamente. Existem várias versões dessas duas imagens, espalhadas
por outras galerias. Na maioria delas, observamos uma mulher usando roupas pretas seguindo
a moda da primeira metade do século XVI, um capelo francês adornado com pérolas, um
pingente como o “B” de Bolena, e com as mesmas características descritas em Ana. Porém,
quando comparamos os quadros observamos discordância faciais significativas, derivadas do
olhar diferenciado de cada pintor.
Na opinião de G. W. Bernard212
é possível que os retratos expostos em Hever e na
NPG possam ser cópias, feitas a partir de um original da década de 1530, a julgar pelas roupas
de Ana. Não obstante, os contornos dos rostos nos dois retratos são claramente definidos sem
sinais de reformulação, o que implica a dependência de um modelo original. Uma sugestão
argumentada por Bernard é que o retrato original tenha sido pintado por Lucas Horenbout,
considerado o autor de duas supostas miniaturas de Ana Bolena, uma localizada na coleção do
Duque de Buccleuch e a outra no Royal Ontario Museum (Toronto). No retrato em Toronto,
podemos ler a inscrição “ano xxv”, o que significa dizer que a mulher na imagem tinha 25
anos. Se Ana nasceu em 1501, como geralmente acredita-se, então a miniatura fora pintada
entre 1526-27. Entretanto, explica Bernard213
, alguns historiadores acreditam que essa data é
muito cedo para que Henrique VIII, já apaixonado, comissionasse algum retrato da amada.
210 Idem. p. 30 211 IVES, Eric W. Op.cit. p.41 212 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 197 213 Idem. p. 196
76 www.rainhastragicas.com
Outros, por sua vez, argumentam que a existência dos retratos poderia demonstrar uma
evidência independente do tempo de Ana Bolena antes de seu relacionamento com o rei.
Figura 21 – Retrato de uma mulher, exposto no castelo de Windsor, feito por Hans Holbein
(o Jovem) 214
.
Outra sugestão de autoria para o retrato que serviu de modelo para o de Hever e o da
NPG recai sobre os ombros de Hans Holbein, que estava na Inglaterra desde 1532 e
provavelmente pintara Ana. Existem dois rascunhos feitos por ele, parte de um livro de
desenhos adquirido por Henrique VIII após a morte de Holbein. Em um deles (hoje localizado
no Museu Britânico), lemos a inscrição em latim feita em 1649 que diz: “Ana Bolena,
decapitada em 19 de maio de 1536”, e “Ana Bolena Rainha”, no outro (pertencente à Coleção
Real do Castelo de Windsor – ver a figura21). Nas duas imagens não vemos a mesma pessoa,
e apesar do rascunho no Museu Britânico apresentar certa semelhança com os retratos de
Hever/NPG, no de Windsor observamos uma mulher com trajes informais e provavelmente
vestida para dormir. A identificação deste último retrato, por sua vez, fora oferecida por Jonh
Cheke, tutor do príncipe Edward e que estava numa aparente posição de autoridade para fazê-
lo.
214 Imagem extraída do livro Anne Boleyn: fatal attractions. – London: Yale University Press, 2010. p. ii,
escrito por G. W. Bernard.
77 www.rainhastragicas.com
Todavia, Eric Ives215
argumenta que o trabalho de Cheke é suspeito, pois muitas de
suas supostas identificações de outros rascunhos de Holbein acabaram se mostrando
incorretas, e nesse caso é possível que a imagem com a inscrição “Ana Bolena Rainha” esteja
ligada à família Wyatt. Não obstante, por que uma rainha iria comissionar um retrato seu em
trajes tão informais? Na opinião de Bernard216
, é possível que a imagem estivesse inacabada e
que o artista ainda estaria trabalhando para deixa-la com um aspecto mais formal. Em todo
caso, não podemos tomar os rascunhos do Museu Britânico e o do Castelo de Windsor como
evidências sérias da fisionomia de Ana Bolena. Por outro lado, existem dois retratos
adicionados ao fecho de um anel da Rainha Elizabeth I que pode oferecer mais luz a essa
questão (ver a imagem 19). Um deles representa a própria monarca, enquanto no outro
observamos um mulher de rosto oval, vestida de acordo com moda nos tempos de Henrique
VIII e que provavelmente se trata da mãe da soberana. Porém, sua identidade ainda não é
conclusiva.
Durante o período elisabetano, tornou-se popular entre a nobreza e a gentry expor
retratos de reis e rainhas em suas casas, especialmente em corredores e longas galerias como
forma de demonstrar lealdade. A maioria dessas imagens não é fruto de um trabalho de
grande qualidade, como podemos notar entre as muitas versões dos quadros de Ana Bolena.
Em alguns casos, os artistas pintavam aquilo que acreditavam que seus patronos queriam em
vez de uma cópia fidedigna. Sendo assim, não era difícil alguma confusão pudesse acontecer.
Por exemplo: o retrato que por muito tempo fora tido como de Lady Jane Grey, acabou sendo
identificado como de Catarina Parr, da mesma forma que em 2013 um especialista da NPG
chegou à conclusão que um dos supostos quadros da sexta esposa de Henrique VIII, na
verdade representava sua primeira, ou seja, Catarina de Aragão.
Recentemente especulou-se que os retratos de Ana Bolena, incluído o de Hever e o da
NPG, poderiam ser cópias ou variações de um original não de Ana, mas de Mary, irmã de
Henrique. Um suporte circunstancial para essa sugestão, além da semelhança de traços faciais,
é que o colar de pérolas com o broche “B” não significava Bolena, e sim Brandon, sobrenome
do segundo esposo de Mary, Charles, duque de Suffolk. Contudo, G. W. Bernard217
desacredita essa suposição ao levantar o fato de que Henrique VIII, em suas cartas de amor,
usava as inicias A.B. de sua amada. Além disso, Mary era irmã do Rei da Inglaterra e Rainha
viúva da França, então porque ela seria pintada, mesmo se tratando de um retrato da segunda
215 IVES, Eric W. Op.cit. p.41 216 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 197 217 Idem. p. 199
78 www.rainhastragicas.com
metade do século XVI, fazendo referência a uma família de linhagem não tão distinta? O mais
intrigante para Bernard é que a mulher do retrato da NPG apresenta cabelos e olhos castanhos,
diferentemente dos cabelos e olhos escuros descritos em Ana. Sobre esse aspecto, é
interessante recordar o verso que o Rei Francisco I escreveu, e que é geralmente aceito como
sendo para Ana:
Venus était blonde, on m’a dit
L’on voit bien, qu’elle est brunette218
.
Brunnette, ressalta Bordo219
, pode ser traduzindo em inglês para “brown” (marrom), o
que nos permite supor que os cabelos de Ana poderiam ser de um tom castanho escuro e o
fato de no retrato da NPG eles aparecerem mais claros, pode ser interpretado como um
recurso do artista para deixar a modelo mais adequada aos padrões de beleza do período. Por
último, há a miniatura pintada por John Hoskins (c. 1590-1664/5), que provavelmente tivera
acesso ao mesmo modelo original que serviu de base para os quadros de Hever e da NPG.
Nesse sentido, Ives220
conclui que os retratos mais fiéis à Ana Bolena são a medalha de 1534,
a mulher no anel de Elizabeth, as duas versões no castelo de Hever e na Galeria Nacional de
Retratos e Londres, e a miniatura de Hoskins. Em todas elas, o que fica marcante é o seu
sorriso enigmático de Gioconda, como se estivesse rindo de alguma coisa que o observador
não sabe, e que dificilmente virá a descobrir.
218 WEIR, Alison. Op.cit. 1992, p. 151 219 BORDO, Susan. Op.cit. p. 32 220 IVES, Eric W. Op.cit. p.43
79 www.rainhastragicas.com
Anexo 2
A religiosidade de Ana Bolena
Figura 22 – Livro de orações que pertenceu a Ana Bolena. Castelo de Hever, Kent
221.
O hábito de escrever nas páginas de um livro pode parecer vulgar para algumas
pessoas, mas quando o “infrator” se trata de uma personalidade histórica, a coisa pode mudar
um pouco de sentido: numa sala do castelo de Hever, permanece aberto um pequeno livro de
orações que oferece maior interesse ao cômodo, especialmente pelo fato de conter numa de
suas páginas a assinatura da antiga proprietária, Ana Bolena (ver a figura 22). Não menos
interessante que o desenho da esfera armilar que acompanha a firma da rainha, o visitante
poderá ler a inscrição “Le temps viendra” (os tempos virão), abreviação do provérbio francês
que diz: “virá o dia em que pagaremos por tudo” 222
. Acima da inscrição, uma ilustração do
dia do juízo final toma quase todo o espaçamento da página, fazendo uma clara referência à
passagem do livro do Eclesiastes (12:13): “Deus fará dar contas, no dia de juízo, de tudo o
221 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:
Blackwell Publishing, 2010. p. 202-q, escrito por Eric Ives. 222 IVES, Eric W. Op.cit. p. 277
80 www.rainhastragicas.com
que está oculto, quer seja bom, quer seja mal”. Mas até que ponto esse fato ilustra a
concepção religiosa da mulher que esteve no centro do movimento reformista na Inglaterra? É
isso que observaremos no seguinte texto.
A religiosidade de Ana Bolena, por muito tempo, tem sido alvo de debates entre vários
estudiosos. Era protestante ou católica? O fato dela não ter deixado qualquer documento
escrito expressando suas crenças só dificulta ainda mais a questão. Catarina Parr (sexta esposa
de Henrique VIII), por exemplo, expressou sua fé protestante e conhecimentos doutrinários
em muitos trabalhos de sua autoria, especialmente no livro Lamentation of a Sinner223
.
Entretanto, alguns elementos podem ajudara esclarecer um pouco mais esse assunto, como o
patronato que Ana concedeu a escritores protestantes, notadamente William Tyndale e Simon
Fish, e seu empenho na tradução e difusão da bíblia na língua inglesa. Contudo, para entender
a ação religiosa da rainha, precisamos olhar além do cisma entre a Igreja da Inglaterra e a de
Roma, e retroceder alguns anos em sua história, quando ela era uma jovem promissora na
corte de França a serviço de Cláudia, esposa de Francisco I. Ali, Ana Bolena teria entrado em
contato com grandes pensadores e também com uma das mulheres mais importantes de sua
geração, Margaret D’Angoulême, irmã do rei.
A futura rainha de Navarra fora uma grande patrona das letras, de poetas e filósofos,
além de uma das maiores entusiastas da reforma da Igreja em França, mesmo quando o
protestantismo ainda dava seus primeiros passos na Europa. Conforme diz ABREU224
muitos
teólogos e humanistas faziam parte do círculo de amizades de Margaret, a exemplo de
Erasmo, Lefèvre d’Étaples, Rabelais, Melanchthon, Bucer, Calvino e o poeta Clément Marot,
que contribuíra de maneira significativa para causa protestante naquele país. Sob esse ponto
de vista, muitos escritores assumiram que a personalidade responsável pela religiosidade de
Ana Bolena fora a irmã do rei Francisco. Na opinião de alguns, como Nicholas Sander, a
“infecção” passara de Margaret para Ana, e desta para a Inglaterra. Porém, ressalta IVES225
,
Ana nunca fizera parte do círculo da duquesa e, em suas cartas, ela aparece mais como uma
visitante do que como uma discípula.
Com efeito, é possível dizer que a figura excêntrica de Margaret D’Angoulême
exercera uma forte influência sob a personalidade de Ana Bolena, o que pode ser comprovado
pela correspondência entre ambas e pelo esforço que a segunda esposa de Henrique VIII
empreendeu, depois de rainha, para encarnar diante dos olhos dos súditos o modelo de
223 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 96 224 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. A reforma da Igreja em Inglaterra: acção feminina, protestantismo e
democratização política e dos sexos. – Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. p. 224 225 IVES, Eric W. Op.cit. p. 278
81 www.rainhastragicas.com
soberana cristã representado por Margaret. Não obstante, muitas das obras que Ana
colecionava provinham de autores e/ou editores protegidos pela rainha de Navarra, e tanto
uma quanto a outra tinham o mesmo hábito de expressar suas crenças em belos manuscritos,
como podemos observar através da inscrição em seu livro de orações: “Le temps viendra / je
Anne Boleyn” (ver a figura 23). Ainda de acordo com IVES226
, é possível que Ana possuísse
uma cópia da obra de Margaret publicada em 1531, intitulada Le Miroir de l’âme pécheresse,
e que teria sido esse mesmo exemplar utilizado em 1545 por sua filha, Elizabeth, para um
trabalho de tradução, destinado à madrasta, Catarina Parr.
Figura 23 – Inscrição feita por Ana Bolena em seu livro de orações (detalhe da figura 22): Le
temps viendra / je Anne Boleyn227
.
Teria sido durante sua estadia em França que Ana Bolena fora introduzida a uma
prática religiosa que se concentrava numa experiência espiritual nutrida pela leitura pessoal da
Bíblia. Todavia, não existem provas de que ela tivesse entrado em contato “com doutrinas
religiosas mais extremistas, que visassem um cisma com a Sé de Roma” 228
. Nesse caso,
poderíamos dar confiança à observação de Eustace Chapuys, que a descreveu como “mais
luterana do que o próprio Lutero”? Para BERNARD229
, o problema com a mente do
embaixador imperial é que para ele romper com Roma significava uma evidência de
luteranismo. Não obstante, em seus relatos o diplomata vendia a imagem de Ana como a da
mulher responsável pelo repúdio de Catarina de Aragão e pela introdução da “heresia
protestante” na Inglaterra. A despeito das alegações hostis de Chapuys, não podemos ignorar
o fato de que Ana possuía livros de Simon Fish e William Tyndale que, por sua vez, eram
influenciados por Martinho Lutero.
226 Idem. 227 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:
Blackwell Publishing, 2010. p. 202-q, escrito por Eric Ives. 228 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 225 229 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 95
82 www.rainhastragicas.com
Em Obedience of a Christian Man (1528), Tyndale condenava certas doutrinas, ritos e
dogmas da Igreja Católica, tais como a adoração de imagens, os milagres, a confissão, a
penitência e a absolvição. Além do mais, ele defendia a difusão da Bíblia em vernáculo, sob a
alegação de que “Deus dera aos filhos de Israel a lei pelas mãos de Moisés em sua língua
materna”, acrescentando também que “todos os profetas haviam escrito em sua língua
materna”. Nesse sentido, ele não via razão para que a Bíblia fosse composta em latim230
.
Acredita-se que fora Ana Bolena quem recomendara a leitura da obra de Tyndale a Henrique
VIII, que após o término da mesma teria exclamado: “esse livro é para ser lido por mim e
todos os príncipes”. Afinal, em Obedience, Tyndale denunciava a legitimidade do pode papal,
assim como enfatizava a autoridade dos governantes seculares, um argumento que servia às
intenções do rei durante os anos do processo de anulação de seu casamento com Catarina de
Aragão.
Teria sido Ana Bolena quem também fizera chegar às mãos de Henrique o livro de
Simon Fish, Supplicattion for the Beggars (1529), onde o autor confrontava a opulência do
clero com a indigência dos destituídos. A julgar pelas intenções do rei de espoliar o clero
inglês, é possível supor que a análise desta obra teria reforçado a atitude do monarca. Retha
Warnicke231
argumenta que o esforço que Ana empreendia no estudo de obras religiosas não
ortodoxas pode ser entendido, ao menos em parte, pela vontade que ela tinha de agradar o rei,
apresentando-lhe livros que ele certamente gostaria de ler, visto que Henrique VIII enxergava
a si próprio como um teólogo amador. Com efeito, era uma forma dela também fazer a leitura
das mesmas, para assim discuti-las com o rei. De acordo com um de seus capelães, William
Latimer, Ana “debatia as escrituras” com o rei enquanto tomavam a refeição. Para agradar ao
monarca, em 1532 ela informara a Nicholas Hawkins, diácono de Ely que estava fora em uma
missão diplomática, de que o rei estava interessando em obter trabalhos que discutissem o
poder papal.
O próprio Henrique também não era contra a difusão da Bíblia em vernáculo. Em
1524 ele havia sugerido que não havia problema em ler as sagradas escrituras em qualquer
língua, exceto na versão de Lutero232
. Entretanto, mesmo que o rei tivesse explorado a
possibilidade de traduzir a Bíblia para o inglês, ele relutava em permitir que seus súditos,
mesmo estudantes universitários, lessem livros considerados heréticos. É lógico que isso não
impediu que obras dessa natureza entrassem no país e é provável que Ana Bolena soubesse
230 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 226 231 WARNICKE, Retha M. The rise and fall of Anne Boleyn: family politics at the court of Henry VIII. –
UK: Cambridge University Press, 1989. p. 110 232 Idem.
83 www.rainhastragicas.com
dos riscos que estava correndo ao consumir esse tipo de literatura. Assim como o soberano,
ela acreditava que as escrituras deveriam ser lidas em vernáculo, e após Henrique assumir
uma postura contrária à autoridade papal, surgiu uma possibilidade para que diversos grupos
de protestantes o apoiassem em seu desafio à supremacia de Roma. Nesse aspecto, Ana se
transformava numa peça fundamental para aqueles que não mais suportavam o despotismo da
Igreja Católica e rogavam por uma reforma religiosa na Inglaterra.
Uma vez coroada rainha da Inglaterra, Ana Bolena aparentemente exerceu
significativa influência sobre a pequena facção protestante na corte, liderada por Thomas
Cromwell e Thomas Cranmer. A elevação deste último ao posto de arcebispo de Canterbury,
por sua vez, fora um passo decisivo no processo de separação entre o rei e sua primeira
esposa, Catarina de Aragão. É possível que Ana tenha interferido de maneira relevante na
nomeação de Cranmer, que na época se encontrava em missão diplomática junto a Carlos V,
em Nuremberg. De volta à Inglaterra, o clérigo trouxe na sua bagagem um profundo
conhecimento e apego pelas doutrinas luteranas, tornando-se com o tempo defensor e
promotor da Reforma da Igreja no país. Em 1534, por exemplo, ele emitira licenças a clérigos
protestantes para que se juntassem à sua arquidiocese, atitude tão audaciosa que, se levarmos
em consideração a timidez e a prudência de caráter do mesmo, provavelmente só terá sido
tomada com a certeza da proteção da rainha233
.
Com o apoio de Ana Bolena e Henrique VIII, Cranmer convidara o luterano Hugh
Latimer para oficiar os serviços religiosos da Quaresma. O rei teria ficado tão bem
impressionado com a eloquência de seu novo capelão que, mais tarde, o nomeara bispo de
Worcester. Na opinião do martirologista John Foxe, a elevação de Latimer fora feita graças à
intervenção da rainha, provavelmente em colaboração com Thomas Cromwell. No ano de
1533, Ana conseguira a nomeação de outro luterano, Matthew Parker, para seu capelão, assim
como distribuíra proteção e apoio a outros clérigos protestantes234
. Ainda de acordo com
Foxe, o luteranismo de Ana Bolena era conhecido por todo o reino, sendo ela “uma especial
entusiasta e ajudante de todos aqueles que professavam o evangelho de cristo, tanto daqueles
mais eruditos quanto dos menos instruídos” 235
. É possível que haja algum exagero na fala de
Foxe, visto que sua propagação de um forte protestantismo por parte de Ana Bolena teria
como finalidade estimular a filha desta, Elizabeth, a perseverar na Reforma da Igreja em
Inglaterra.
233 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 228 234 Idem. 235 Ibid. 227
84 www.rainhastragicas.com
Segundo G. W. Bernard236
, um dos aspectos mais interessantes no testemunho de Foxe
é que para ele, uma mulher tão religiosa e cheia de virtudes como Ana Bolena não poderia ser
considera culpada pelos adultérios de que ela fora acusada em 1536. William Latymer, um
dos capelães de Ana, argumenta que a rainha ajudava a todos aqueles que sofriam de
perseguição, demonstrando “constante afeição para com os pobres evangelistas” 237
. Devemos
a Latymer a famosa história de que em certa ocasião a rainha teria repreendido uma de suas
damas, Madge Shelton, por escrever em seu livro de orações “poesias tolas”, assim como se
escandalizara com o rei pelas notas de amor que ele deixara no mesmo livro. Entretanto,
argumenta Eric Ives238
, tanto Latymer quanto Foxe estavam mais preocupados em promover a
imagem de Ana como uma espécie de “boa matriarca” da reforma e, portanto, devemos olhar
para o testemunho deles com alguma reserva.
Todavia, um campo muito mais seguro para se avaliar a religiosidade de Ana Bolena,
conforme vimos antes, consiste no interesse dela pelas Sagradas Escrituras em vernáculo. O
próprio Latymer escrevera que ela era “muito experiente na língua francesa, exercitando-se
continuamente na leitura da Bíblia em francês assim como em outros trabalhos do mesmo
efeito” 239
. Ela possuía, inclusive, uma edição de 1534, feita em Antuérpia, da tradução da
Bíblia em francês por Lefèvre, em 1528. Ainda de acordo como William Latymer, Ana
constantemente discutia as Sagradas Escrituras como o rei, o que não é impossível, apesar de
Latymer ser a nossa única fonte sobre isso. Contudo, um valioso suporte acerca do interesse
da rainha pela Bíblia em vernáculo provém de uma carta que ela escrevera em favor Richard
Hermon, um mercador e cidadão de Antuérpia, que reclamava por ter sido privado de suas
relações com a Inglaterra apenas por importar para o país algumas cópias do Novo
Testamento em inglês, ainda nos tempos em que o Cardeal Wolsey era chanceler do reino240
.
O mais interessante na atitude de Herman, é que ele poderia ter pedido pela ajuda de
Cranmer ou Cromwell, mas preferira apelar à rainha, que, por sua vez, atendera ao seu
pedido. Esse fato corrobora a tese de ABREU241
de que o favor de Ana Bolena a tais
protestantes fora de grande relevância para a penetração do luteranismo em solo inglês. Em
1534, Richard Herman já estava liberto de sua prisão imposta por Wolsey, e se encontrava em
Londres a exigir indenização pelos danos que a sua detenção lhe causou. Foi por essa época
também que William Tyndale estava ocupado com a impressão de uma edição melhorada de
236 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 94 237 Idem. p. 92 238 IVES, Eric W. Op.cit. p. 279 239 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 96 240 Idem. pp. 97-98 241 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 229
85 www.rainhastragicas.com
sua tradução do Novo Testamento e tomou conhecimento do caso de Herman. Sentindo-se
tocado pela atuação da rainha inglesa, especialmente por saber que uma mulher como ela
apreciava seu trabalho, além de proteger e apoiar tantos outros que sofriam perseguições por
suas crenças, Tyndale decidira presentear a sua patrona com um exemplar de luxo da sua nova
edição do Novo Testamento242
.
Figura 24 – Cópia do Novo Testamento de William Tyndale dedicada à Ana Bolena243
.
A cópia que William Tyndale encomendara para Ana Bolena era impressa em
pergaminho, recheada de ricas ilustrações e encadernada em marroquim azul. Na capa do
livro, lê-se em letras grandes e douradas em fundo vermelho: Anne Regina Angliae (Ana
Rainha da Inglaterra – ver a figura 24). Para ABREU244
é provável que tivesse sido com o
apoio da rainha que o Novo Testamento de Tyndale fora publicado pela primeira vez na
Inglaterra, em 1536. Apesar de esse ano coincidir exatamente com o da execução da soberana,
o processo de edição da obra se iniciara muito antes, quando ela ainda estava em posse de
seus poderes. Vale ressaltar também que a tradução das Sagradas Escrituras por Tyndale era a
242 Idem. p. 230 243 Imagem extraída do livro The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:
Blackwell Publishing, 2010. p. 202-s, escrito por Eric Ives. 244 Ibid. pp. 230-231
86 www.rainhastragicas.com
melhor feita até então, tendo servido como base para traduções posteriores da Bíblia, ainda
durante o reinado de Henrique VIII.
Retha Warnicke245
ressalta que como rainha, Ana Bolena exigia de suas damas um
comportamento exemplar. Elas deveriam comparecer aos sermões diariamente e se reportar a
um livro de devoção, exposto em seus aposentos, que continha algumas orações e salmos em
inglês. Teria sido este o cenário para a história contada por Latymer, sobre Ana discutindo
com sua prima e dama de companhia, Madge Shelton, por rabiscar alguns versos no referido
livro. Embora no passado Ana Bolena tivesse sido uma amante de poesias, especialmente das
de Thomas Wyatt, sua elevação ao posto de rainha alterou essa situação. Ela queria seguir os
passos de sua antecessora, Catarina de Aragão, assim como Margaret D’Angoulême, rainha
de Navarra, e da princesa Renata da França, duquesa de Ferrara, e se tornar um exemplo de
mulher cristã para toda a Europa. Uma vez que os governantes daquele tempo acreditavam
que a segurança da dinastia dependia da bênção de Deus e do suporte que davam à Igreja,
então Ana teria razões mais do que políticas para enfatizar sua devoção em assuntos
espirituais246
.
Apesar de tudo o que fora até aqui exposto, devemos classificar Ana Bolena como
luterana? Por causa de sua posição favorável à tradução da Bíblia, mais tarde muitos
reformadores a descreveram como protestante247
. As evidências para tal afirmação existem,
mas ainda não são conclusivas quanto a esse aspecto. Entretanto, se Ana não era protestante,
em seu breve reinado era demonstrara grande afinidade por aqueles que eram. Já para Karen
Lindsey248
, ela não era um catalisador na reforma inglesa, mas sim um elemento dentro dessa
equação. Durante a ascenção da princesa Elizabeth ao trono em 1558, muitas famílias
passaram a alegar que a sua ascendência protestante provinha de sua família materna,
especialmente por parte de sua mãe e seu tio, George. Entretanto, na era elisabetana, a
comunidade cristã já se encontrava consolidada em dois campos distintos: protestante e
católico. No período henriquino, por sua vez, “muitos dos ímpetos reformadores de indivíduos
que desafiavam o poder do Papa e defendiam a Bíblia em vernáculo não significavam uma
completa conversão à Fé Protestante” 249
.
245 WARNICKE, Retha M. Op.cit. p. 151 246 Idem. p. 152 247 Ibid. 153 248 LINDSEY, Karen. Divorced, Beheaded, Survived: A Feminist Reinterpretation of the Wives of Henry
VIII. – Cambridge, M A: Da Capo Press, 1995. p. 100 249 ABREU, Maria Zina Gonçalves de. Op.cit. p. 233
87 www.rainhastragicas.com
Nesse caso, Ana Bolena poderia ter sido uma “reformadora” da Igreja Católica, sem
ser uma completa defensora da Reforma Protestante. Na opinião de Eric Ives250
, é mais seguro
classifica-la como uma evangelista nos moldes do humanismo francês. Segundo o
martirologista John Foxe e William Latymer, a rainha fora vítima de um complô papista para
derrubá-la do trono. Contudo, não devemos resumir a queda de Ana Bolena em maio de 1536
a questões religiosas, quando na verdade uma série de outros fatores interferiu na questão,
principalmente a sucessão da coroa, haja vista que ela não fora capaz de gerar um herdeiro
varão para o trono. Em seu último discurso, proferido de cima do patíbulo em 19 de maio de
1536, também podemos perceber alguma evidência de suas convicções religiosas, mas
existem tantas versões do mesmo que, por sua vez, acabam tornando essa numa fonte
inconclusiva. Por fim, deixo a palavra final para a própria rainha, extraída de uma conversa da
mesma com William Kingston enquanto se encontrava presa na Torre: “eu deverei ir para o
céu, pois eu fiz coisas boas em meus dias” 251
.
250 IVES, Eric W. Op.cit. p. 287 251 BERNARD, G. W. Op.cit. p. 106
88 www.rainhastragicas.com
Anexo 3
Vilã ou heroína? – as representações de Ana Bolena
Figura 25 – Ana Bolena, por artista desconhecido. Cópia de um retrato original perdido do
séc. XVI252
.
Ana Bolena é uma das personagens mais controversas da história inglesa e talvez uma
das mulheres mais interessantes do mundo. Sua vida até hoje permanece um mistério para
muitos pesquisadores, devido às várias lacunas factuais não preenchidas pela historiografia.
Não sabemos, por exemplo, a data exata de seu nascimento, ou qual de seus retratos melhor a
representa (todos, ou nenhum?). Decapitada em 19 de maio de 1536, ela passara a ser uma
espécie de não ser depois de sua morte. Uma geração depois, as coisas mudam e ela já era a
mãe da monarca reinante. Esse fascínio que Ana exerce nas pessoas, ressalta a biógrafa
Antonia Fraser, é explicável pelo fato de que nela observamos a trajetória de uma garota
desconhecida que de repente salta para a fama ou notoriedade. Pouco tempo depois sua estrela
252 Imagem extraída do livro Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004. p. 422-I,
escrito por David Starkey.
89 www.rainhastragicas.com
cai, até que ela é resgatada por escritores como Shakespeare e mais recentemente por
romancistas e cineastas, transformando-a de concubina a ícone da cultura popular.
Mas porque Ana Bolena é tão fascinante? Susan Bordo253
, autora de um belíssimo
ensaio cultural sobre a rainha Ana, responde essa pergunta afirmando que não devemos
pensar além do óbvio: a história de sua ascensão e queda é tão instigante, de roteiro
inteligente, que pouco se diferencia de um filme da vida real. Neste enredo, observamos o
longo sofrimento de uma esposa na pós-menopausa; a infidelidade de um marido apaixonado
por uma mulher mais jovem e sexy; um momento de glória para a amante. De repente a
paixão e o desejo acabam e então o círculo se fecha em torno da protagonista, culminando no
seu derradeiro fim. Essa fórmula, por sua vez, fora amplamente aproveitada por romancistas
ao longo de mais de 200 anos. Desde Francis Hackett até Philippa Gregory, a imagem de Ana
Bolena sofreu uma profunda transformação, sempre acompanhado as principais correntes
ideológicas ao longo dos anos.
De prostituta a rainha, de vilã a heroína, as representações de Ana variaram de acordo
com os séculos e os escritores. Garrett Mattingly, por exemplo, em sua célebre biografia sobre
Catarina de Aragão lançada em 1942 usara de palavras pouco lisonjeiras para descrever a
mulher que suplantara a filha dos reis católicos no posto de rainha da Inglaterra. Contudo, o
posicionamento deste autor pode ser explicado devido ao fato de que até o final da Segunda
Guerra Mundial (1945), Ana Bolena ainda era vista com hostilidade por parte de alguns
pesquisadores. Com o término do conflito, ela retorna para o campo literário e historiográfico
sob uma perspectiva mais delicada e mesmo favorável às suas atitudes como mulher e
soberana254
. Mas o que possibilitou essa transformação da imagem da segunda esposa de
Henrique VIII, que de concubina, passa a ser encarada como um exemplo de força e coragem
para a sociedade ocidental?
Mais uma vez, para responder essa pergunta talvez não precisemos ir além do que está
nítido: a partir da década de 1960, a mulher emerge como objeto de estudo nas ciências
humanas e particularmente na história. Até então, ela atuava na família, geralmente confinada
em casa ou, como diz a historiadora Michelle Perrot255
, ela era “invisível”. Na primeira
Epístola a Timóteo (2, 12-14), estava escrito: “Que a mulher conserve o silêncio, diz o
apóstolo Paulo. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi
seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em regressão”. Aquelas que quebrassem a ordem
253 BORDO, Susan. Op.cit. p. xiii 254 Idem. p. 171 255 PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução de Angela M. S. Corrêa. 2ª edição. São Paulo:
Contexto 2013. p. 17
90 www.rainhastragicas.com
natural das coisas, tal como Ana Bolena fizera em meados do século XVI, seriam uma espécie
de abominação para os países cristãos, dando assim margem a todo tipo de acusação,
inclusive de bruxaria. O próprio Henrique VIII, quando queria se livrar da segunda esposa,
afirmara que teria sido seduzido àquele casamento através sortilégios e, portanto, sua união
não era válida aos olhos de Deus.
Vários anos depois, Ana Bolena ainda permanecia como um mau exemplo a ser
seguido e sua morte brutal servia de lição para aquelas que ambicionassem algo maior do que
lhes era permitido, como mais tarde provaram sua prima, Catarina Howard, sua cunhada Jane
Rochford, a rainha da Escócia, Mary Stuart, e quase três mais tarde, Maria Antonieta, última
rainha da França. Todas essas mulheres pagaram com a própria vida por crimes que
supostamente haviam cometido em decorrência de uma conduta duvidosa. Desse modo, a
herança de Ana Bolena viria para assombrar todas aquelas que transgredissem as normas
sociais de suas respectivas épocas. A Revolução Francesa (1789), contudo, fora um momento
onde a mulher tivera maior espaço para lutar por seus direitos. A partir daí, as portas estavam
abertas para que mais de um século depois o movimento feminista ganhasse adeptas (e
também adeptos) em todo o mundo.
Sendo assim, como em quase todo movimento que busca na história elementos que
legitimem sua luta, o feminismo resgatou do silêncio mencionado por Perrot, personagens
antes tidas como vis e diabólicas, a exemplo de Cleópatra, Maria I Tudor, Catarina de Médici,
Margarida de Valois (a popular rainha Margot), Maria Antonieta e a própria Ana Bolena.
Nesse caso, um dos veículos mais utilizados para que esse resgate se tornasse possível fora a
literatura. Romances como os de Jean Plaidy, Muder Most Royal (1949), e Norah Lofts, The
Cuncubine (1963), ganharam rapidamente o gosto do grande público, especialmente por trazer
para o leitor uma Ana diferente daquela mulher perversa e mal intencionada que é retratada
nos despachos do embaixador imperial Chapuys, e que fora ratificada posteriormente por
algumas biografias, como a de Garrett Mattingly.
Na segunda metade do século XX, personagens dependentes e passivas já tinham
deixado de ser apreciadas pelo público de leitoras de classe média. Conta-nos Susan Bordo:
A Ana da ficção não é mais produzida no século XX como uma maligna com ódio
no sangue. Em vez disso, ela é uma jovem mulher de temperamento forte, com
qualidades pessoais que são bastante atraentes, mas que, quando desencadeada sua
elevação, mostraram-se perigosas para ela256.
256 “the Anne of most twentieth-century fiction is not bred-in-the-bone she devil. Rather, she is a strong-willed
young woman with personal qualities that are quite attractive but, when unleashed by her elevation, proved
dangerous to her” BORDO, Susan. Op.cit. p. 165
91 www.rainhastragicas.com
Depois do período de Guerras, Ana Bolena retornara para o mundo da ficção com mais força
e independência que antes. Não era mais a concubina e sim a heroína injustiçada, que pagou
com a própria vida por crimes que não cometeu. Nesse sentido, a ideologia feminista
constituíra-se num fator decisivo para que romancistas e depois biógrafos reinterpretassem o
papel da rainha Ana tanto como mulher quanto como soberana dentro da sociedade inglesa do
século XVI.
Dessa fase, surgem excelentes biografias que vão desde autores como Hester W.
Chapman257
, The Challenge of Anne Boleyn (1974), a Eric Ives, The Life and Death of Anne
Boleyn (2004). Através filmes como Anne of The Thousand Days (1969) e a série televisiva
The Tudors (2007-2010), Ana Bolena salta do mundo dos livros para o das telas. Sua história
passa a ser mais acessível, variando de acordo com a posição de cada autor e/ou diretor.
Entretanto, em quase todas essas produções modernas, é possível vermos uma personagem
romântica, mas também determinada a conseguir o que queria, representando assim um tipo
de força amplamente valorizada pela mulher moderna, que não mais aceitava ficar surdinada à
vontade dos homens e confinada no ambiente da casa, criando os filhos e cuidando do lar
enquanto eram sustentadas pelos maridos. Com isso, a Ana do final século XX deixara de ser
a vilã para se tornar num exemplo de heroína trágica para as mulheres de então.
A partir daí, Ana Bolena faz uma entrada triunfal no século XX, celebrizada por uma
porção livros, filmes, séries de TV e peças de teatro. Ultimamente, tem-se verificado um
grande aumento na rede de blogs dedicados a ela e ao período em que vivera. A quantidade de
informações que tem sido veiculada sobre a segunda esposa de Henrique VIII não para de
cessar. É interessante notar que mesmo o rei tendo se empenhado em apagar dos registros a
memória de sua ex-consorte ao mandar destruir retratos, objetos e documentos referentes à
mesma, o fascínio que ela exerce na mente das pessoas, mesmo naquelas que não simpatizam
com sua história, é tanto que ultrapassou as barreiras do tempo, da literatura, do sexo, das
mídias, etc. Vilã ou heroína, é inegável que Ana Bolena fora uma mulher incrível, e a julgar
pelo caminhar das coisas é provável que sua fama esteja longe de chegar ao fim.
257 CHAPMAN, Heste W. The Challenge of Anne Boleyn. New York: Coward, McCann & Geoghegan, 1974.
92 www.rainhastragicas.com
Cronologia
1485
- 15 de dezembro: nascimento de Catarina de Aragão
1486
- 19 de setembro: nascimento de Arthur, príncipe de Gales
1491
- 28 de junho: nascimento de Henrique VIII
1501
- 14 de novembro: casamento de Catarina de Aragão com Arthur, príncipe de Gales
- possível ano do nascimento de Ana Bolena
1502
- 2 de abril: morte de Arthur, príncipe de Gales
1509
- 22 de abril: morte Henrique VII aos 52 anos e ascenção de Henrique VIII ao trono, com 17
anos
- 11 de junho: casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão
1513
- provável ano em que Ana Bolena passou a fazer parte da corte de Margaret da Áustria, nos
países baixos, como dama de honra, aos 12 anos
1514
- ano em que Ana Bolena deixou a corte de Margaret da Áustria e passou a integrar o séquito
da princesa Mary Tudor, na França
1515
- Mary Tudor retorna para a Inglaterra e Ana Bolena passa a fazer parte do grupo de damas
de Cláudia de Valois, a nova rainha da França.
1516
- 18 de fevereiro: nascimento da rainha Maria I da Inglaterra, filha de Henrique VIII e
Catarina de Aragão
93 www.rainhastragicas.com
1520
- de 7 a 23 de junho: Celebrações do “Campo do Tecido de Ouro”
1522
- Ana Bolena retorna para a Inglaterra
- 1° de março: primeira aparição registrada de Ana Bolena na corte no Château Vert
1526
- possível ano em que Henrique VIII se interessou por Ana Bolena
1527
- início da correspondência amorosa entre Henrique VIII e Ana Bolena
- maio: reunião do tribunal inquisitivo ex officio, presidido pelo cardeal Wolsey para discutir a
validade do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão
1528
- Ana Bolena contrai a doença do suor, mas se recupera
1529
- 31 de maio: a corte legatícia se reúne em Blackfriars Hall para julgar a validade do
casamento de Henrique VIII e Catarina de Aragão
1530
- 29 de novembro: morte do cardeal Wolsey
1531
- 11 de julho: Catarina é banida da corte
1532
- 1 de setembro: Ana Bolena é investida com o título de marquesa de Pembroke
1533
- 25 de janeiro: possível data do casamento secreto de Henrique VIII com Ana Bolena
- 23 de maio: Thomas Cranmer, arcebispo de Canterbury, declara inválido o casamento de
Henrique VIII com Catarina de Aragão
- 28 de maio: Cranmer declara o casamento de Henrique VIII com Ana Bolena válido
- 1° de junho: Ana Bolena é coroada rainha da Inglaterra
- 11 de junho: Henrique VIII é excomungado pelo Papa Clemente VII
- 7 de setembro: nascimento da princesa Elizabeth
94 www.rainhastragicas.com
- 10 de setembro: batizado da princesa Elizabeth em Greenwich
1534
- é aprovado pelo Parlamento o “Ato de Sucessão”
- possível aborto de Ana Bolena
1535
- 22 de junho: execução do bispo Jonh Fisher
- 6 de julho: execução de Sir Thomas More
1536
- 7 de janeiro: morte de Catarina de Aragão, aos 50 anos
- 29 de janeiro: Ana Bolena aborta um filho
- 2 de maio: Ana Bolena é presa na Torre de Londres
- 12 de maio: julgamento de Norris, Weston, Brereton e Smeaton
- 15 de maio: julgamento de Ana e George Bolena
- 17 de maio: execução de Norris, Weston, Brereton, Smeaton e George
- 19 de maio: execução de Ana Bolena
- 20 de maio: Henrique VIII fica noivo de Jane Seymour
- 30 de maio: casamento de Henrique VIII e Jane Seymour
- 1° julho: Elizabeth é declarada bastarda
1537
- 12 de outubro: nascimento do príncipe Edward
- 24 de outubro: Jane Seymour morre de febre puerperal
1540
- 28 de julho: execução de Thomas Cromwell
1543
- junho: Maria e Elizabeth são readmitidas na linha de sucessão
1547
28 de janeiro: morte de Henrique VIII, aos 55 anos
20 de fevereiro: Edward é coroado rei da Inglaterra, aos 9 anos
1553
- 20 de julho: Maria é coroada rainha da Inglaterra
1558
95 www.rainhastragicas.com
- 17 de novembro: morte de Maria I, aos 42 aos e ascenção de Elizabeth I ao trono
1559
- 15 de janeiro: coroação de Elizabeth I
1603
- 24 de março: morte de Elizabeth I, aos 69 anos
96 www.rainhastragicas.com
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Ana Paula Lopes Alves Pinto de. Ana dos mil dias: Ana Bolena, entre a luz e a
sombra da Reforma Henriquina. Porto, 2009. Dissertação (Mestrado em Letras). –
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
ABREU, Maria Zina Gonçalves de. A reforma da Igreja em Inglaterra: acção feminina,
protestantismo e democratização política e dos sexos. – Coimbra: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2003.
BERNARD, G.W. Anne Boleyn: fatal attractions. – London: Yale University Press, 2010.
BORDO, Susan. The creation of Anne Boleyn: a new look at England’s most notorious
queen. – New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2013.
CRÉTÉ, Liliane et al. Dossiê Tudor. História Viva. São Paulo, Duetto, São Paulo, n. 110, p.
26-45, dez. 2012.
CHAPMAN, Heste W. The Challenge of Anne Boleyn. – New York: Coward, McCann &
Geoghegan, 1974.
DUNN, Jane. Elizabeth e Mary: primas, rivais, rainhas. Tradução de Alda Porto. – Rio de
Janeiro: Rocco, 2004.
DWYER, Frank. Os Grandes Líderes: Henrique VIII. Tradução de Edi G. de Oliveira. –
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
ERIKSON, Carolly. Ana Bolena: Un Amor Decapitado. Tradução de León Mirlas – Buenos
Aires: Atlántida, 1986.
FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Tradução de Luiz Carlos Do
Nascimento E Silva. 2ª edição. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
GALLO, Rodrigo. Os cinco séculos de Henrique VIII. Leituras da História, São Paulo,
Escala, n. 24, p. 52-9, 2009.
HACKETT, Francis. Henrique VIII. Tradução de Carlos Domingues. – São Paulo: Pongetti,
[1950].
HENRY VIII; ELLIS, Henry. The love letters of Henry VIII to Anne Boleyn and other
correspondence and documents concerning the king and his wives. – [S.I.]: Leonaur,
2011.
IVES, Eric W. The life and death of Anne Boleyn: ‘the most happy’. – United Kingdom:
Blackwell Publishing, 2010.
97 www.rainhastragicas.com
LINDSEY, Karen. Divorced, Beheaded, Survived: A Feminist Reinterpretation of the
Wives of Henry VIII. – Cambridge, M A: Da Capo Press, 1995.
LOADES, David. As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV-
XVII). Tradução de Paulo Mendes. – Portugal: Caleidoscópio, 2010.
MATTINGLY, Garrett. Catalina de Aragón. Tradução de Ramón de La Serna – Buenos
Aires: Editorial Sudamericana, 1942.
MOURA, Luíz Alberto; PIRES, Lucas. Henrique VIII. Grandes Líderes da História, São
Paulo, Arte Antiga, n. 10, p. 3-50.
NORTON, Elizabeth. The Anne Boleyn Papers. – Gloucestershire: Amberley Publishing,
2013.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução de Angela M. S. Corrêa. 2ª
edição. São Paulo: Contexto 2013.
STARKEY, David. Elizabeth: apprenticeship. – London: Vintage, 2001.
_. Six Wives: The Queens of Henry VIII. – New York: Perennial, 2004.
TAPIOCA Neto, Renato Drummond. A condição da mulher no século XVI: o discurso
feminista em The Secret Diary of Anne Boleyn (1997). Ilhéus, 2013. Monografia
(Graduação em História). – Universidade Estadual de Santa Cruz.
WARNICKE, Retha M. The rise and fall of Anne Boleyn: family politics at the court of
Henry VIII. – UK: Cambridge University Press, 1989.
WEIR, Alison. Mary Boleyn: the mistress of kings. – New York: Ballantine Books, 2011.
_. The lady in the tower: the fall of Anne Boleyn. – New York: Ballantine Books, 2010.
_. The life of Elizabeth I. – New York: Ballantine Books, 2008.
_. The Six Wives of Henry VIII. – New York: Grove Press, 1992.
WATT, Ian. A ascensão do romance. Tradução de HildegardFeist.- São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
WILKINSON, Josephine. Mary Boleyn: the true story of Henry VIII’s favourite mistress.
– Gloucestershire: Amberley Publishing, 2010.
1.1 – Romances Históricos
GREGORY, Philippa. A Irmã de Ana Bolena. Tradução de Ana Luiza Borges. 4ª edição.
Rio de Janeiro: Record, 2010
MAXWELL, Robin. The secret diary of Anne Boleyn. – New York: Touchstone Book,
2012.
98 www.rainhastragicas.com
1.2 – Filmografia
“The Other Boleyn Girl” (2008), Sony Pictures Home Entertainment.
“The Tudors”, Seansons 1 & 2 (2007 e 2008), Sony Pictures Home Entertainment.
1.3 – Sites
2 http://rainhastragicas.com/ acesso em 09 de dezembro de 2013.
3 http://tudorbrasil.wordpress.com/ acesso em 09 de dezembro de 2013.
4 http://boullan.org/ acesso em 09 de dezembro de 2013.
5 http://onthetudortrail.com/Blog/ acesso em 09 de dezembro de 2013.
6 http://tudorhistory.org/ acesso em 09 de dezembro de 2013.