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GRACIELLA TAMIRES DOS SANTOS BORBA
UMA CARTOGRAFIA DAS REDES DE PRODUÇÃO DE SAÚDE NAS PRÁTICAS
DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO (AT) EM UM CAPS AD
Santa Maria
2016
GRACIELLA TAMIRES DOS SANTOS BORBA
CARTOGRAFIA DAS REDES DE PRODUÇÃO DE SAÚDE NAS PRÁTICAS
DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO (AT) EM UM CAPS AD
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado como requisito de avaliação
para obtenção do título de Psicólogo ao
Curso de Graduação em Psicologia, da
Faculdade Integrada de Santa Maria -
FISMA.
Orientador do Prof. Ms. Douglas Casarotto de Oliveira
Santa Maria
2016
FACULDADE INTEGRADA DE SANTA MARIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova o Trabalho de Conclusão de Curso de Psicologia:
CARTOGRAFIA DAS REDES DE PRODUÇÃO DE SAÚDE NAS PRÁTICAS DE ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO (AT) EM UM CAPS AD
Elaborada por:
GRACIELLA TAMIRES DOS SANTOS BORBA
como requisito parcial para obtenção do grau de Psicólogo.
COMISSÃO EXAMINADORA:
Ms. Douglas Casarotto Oliveira (Orientador FISMA)
Dr. Marcos Adegas Azambuja (Titular-UFSM)
Dr. Guilherme Carlos Corrêa (Titular -UFSM)
Ms. Guilherme Corrêa (Suplente - FISMA)
Santa Maria, Dezembro de 2016
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que me aturaram neste percurso, principalmente, os
que mais padeceram, minha família, obrigada mãe por me aguentarem. Neste
difícil momento em que ocorre o fim de um ciclo, foi muito importante contar o
apoio de vocês, de todos que até o meu maravilhoso sobrinho de seis anos
entendeu, amo vocês.
Agradeço aos amigos e colegas que disseram que eu ia conseguir
terminar, pois eu realmente não acreditei. A todos que este ano infelizmente, ou
melhor, por uma boa causa, não pude dar a atenção que eu gostaria.
Agradeço a toda a equipe e usuários do CAPS Ad Cia do Recomeço, e
participantes do projeto de extensão “O Acompanhamento Terapêutico como
dispositivo para construção de redes de cuidado em Saúde Mental”, por me
permitir fazer parte da equipe, pelo conhecimento proporcionado. Neste meu
percurso acadêmico posso garantir que a participação no projeto foi um divisor
de águas, e se caracterizou como o maior aprendizado que tive durante estes
cinco anos de faculdade.
Enfim, agradeço ao meu orientador, por todos os ensinamentos, pelo
comprometimento, envio de revisões de madrugada, e pela imensa paciência
neste momento.
Gostaria de agradecer também a Deus por todas as oportunidades que
tive, e por todas as pessoas maravilhosas que colocou em meu caminho,
“(...)cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra! Cada pessoa que passa
em nossa vida passa sozinha e não nos deixa só porque deixa um pouco de si
e leva um pouquinho de nós”. Fico muito feliz de nesta trilha ter compartilhado,
aprendido e desenvolvido conhecimentos ao longo destes cinco anos.
Muito obrigada a todos que fizeram parte deste percurso
RESUMO
Este artigo apresenta a pesquisa realizada no segundo semestre de 2016, a partir da inserção da pesquisadora no projeto de extensão “O Acompanhamento Terapêutico como dispositivo para construção de redes de cuidado em Saúde Mental”, o qual funciona desde meados de 2013, numa parceria entre uma instituição de nível superior e um Centro de Atenção Psicossocial, de um município da região central do RS. Numa abordagem cartográfica do tema, buscou-se compreender os efeitos das práticas de Acompanhamento Terapêutico em relação as redes de produção de saúde em um CAPS AD, com ênfase na de identificação e problematização desses efeitos em diferentes dimensões. Como forma de produzir dados a pesquisa se deu a partir de dois blocos. O primeiro foi composto pela da experiência da pesquisadora como AT no referido projeto, a qual foi registrada via diário de campo. Um segundo bloco se deu a partir de relatórios do projeto, produzidos pelos seus participantes e também pelos relatórios gerais, produzidos ao final de cada semestre. Como forma de análise dos dados a pesquisa tomou como conceitos ferramentas noções advindas do movimento institucionalista, como analise de implicação e analisador. A partir da análise dos materiais, observa-se que o AT atua entre as redes molares e moleculares, se produz a partir de encontros, e que seu funcionamento, se constitui a partir de pequenas mudanças. Como prática possibilita um o olhar singularizado para atuar com o usuário, e agenciar uma rede de produção de saúde.
Palavras chave: Acompanhamento Terapêutico; Redes de Produção de saúde;
CAPS AD.
ABSTRACT
This article presents the research carried out in the second half of 2016, from the insertion of the researcher in the extension project "Therapeutic Accompaniment as a device for building networks of care in Mental Health", which has been working since mid-2013, in a partnership between A higher level institution and a Psychosocial Care Center, of a municipality in the central region of RS. In a cartographic approach of the theme, we sought to understand the effects of Therapeutic Accompaniment practices in relation to health production networks in a CAPS AD, with an emphasis on identifying and problematizing these effects in different dimensions. As a way of producing data, the research was based on two blocks. The first one was composed of the researcher's experience as a TA in the aforementioned project, which was recorded through the field journal. A second block came from project reports produced by its participants and also from the general reports produced at the end of each semester. As a way of analyzing the data, the research took as concepts concepts tools derived from the institutionalist movement, such as analysis of implication and analyzer. From the analysis of the materials, it is observed that the TA acts between the molar and molecular networks, it is produced from meetings, and that its operation, is constituted from small changes. As a practice it allows a singular look to act with the user, and to organize a network of health production. Keywords: Therapeutic Accompaniment; Health Production Networks; CAPS AD.
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS
AT - Acompanhamento Terapêutico ATs- Acompanhantes Terapêuticos CAPS - Centro de Atenção Psicossocial CAPS - AD - Centro de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas DC- Diário de Campo FISMA - Faculdade Integrada de Santa Maria PAC- Programa de Aceleração do Crescimento RA- Relatórios semestrais feitos pelos acompanhantes terapêuticos (RA RG- Relatórios gerais RAS- Rede de Atenção à Saúde RAPS- Rede de Atenção Psicossocial RAS- Rede de Atenção à Saúde RP - Reforma Psiquiátrica SUS - Sistema Único de Saúde TCC - Trabalho de Conclusão de Curso
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................ 8
1.1 Do CAPS à RAPS: a construção de um novo modelo de atenção à saúde
mental ............................................................................................................. 8
1.2 Acompanhamento Terapêutico e as redes de produção de saúde ......... 10
1.3 A produção singular de um problema de pesquisa ................................. 10
2 REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................................ 13
2.1 Desinstitucionalização e Intersetorialidade ............................................. 13
2.2 Breve história .......................................................................................... 14
2.3 O Acompanhamento Terapêutico e sua função rizomática .................... 14
2.4 Redes e sua polissemia .......................................................................... 16
3 PERCURSO METODOLÓGICO- PROJETO “O ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO COMO DISPOSITIVO PARA CONSTRUÇÃO DE REDES DE
CUIDADO EM SAÚDE MENTAL” .................................................................... 21
4 RETRATOS DE UM ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO ....................... 22
4.1 Primeiro analisador: O AT entre o molar e o molecular .......................... 23
4.2 Segundo analisador: Qual o olhar para o acompanhado ........................ 25
4.3 Terceiro analisador: Um AT que funciona para a produção de saúde .... 27
4.4 Conexões no fio da navalha ................................................................... 29
5 CONCLUSÕES ............................................................................................. 32
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 33
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa a traça uma cartografia acerca dos efeitos do dispositivo
clínico denominado “Acompanhamento Terapêutico” em relação às redes de
produção de saúde. Para isso, parte das experiências da pesquisadora como AT
realizada no contexto do projeto de extensão “O acompanhamento terapêutico
como dispositivo para a produção de redes de cuidado em saúde mental”, o qual
é realizado desde 2013 numa parceria entre o curso de psicologia da Faculdade
Integrada de Santa Maria (FISMA) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Cia
do Recomeço. Para de contextualizar a importância e a emergência de um
problema de pesquisa, apresentamos nessa introdução alguns marcos teóricos
e legais que dão as linhas iniciais para a presente discussão. Assim início o
projeto apresentando a reforma psiquiátrica enfatizando as portarias que
instituem o CAPS e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Em seguida,
apresento duas noções que sustentam as práticas problematizadas com o
projeto, que são as noções de AT e Redes de Produção de Saúde. Por fim,
depois de uma contextualização acerca dos pressupostos que sustentam o
projeto, apresento o movimento de constituição do problema a partir de minhas
experiências acadêmicas.
1.1 Do CAPS à RAPS: a construção de um novo modelo de atenção à saúde mental
Após a aprovação da Lei 10216/01, conhecida como Lei da Reforma
Psiquiátrica Brasileira (RP), a qual redireciona o modelo de atenção à saúde
mental e dispõe sobre os direitos das pessoas com sofrimento mental, uma série
de portarias foram criadas visando possibilitar a implementação de uma nova
proposta de cuidado. Não mais centrada na internação em instituições
manicomiais, a RP propõe o que o cuidado seja realizado por serviços
substitutivos e em redes territorializadas e intersetoriais. (BRASIL, 2001;
AMARANTE, 2007).
Em 2002, a partir da Portaria n° 336 são instituídos os Centros de Atenção
Psicossocial, com o objetivo de ampliar o acesso psicossocial, promover locais
9
de atenção e garantir a articulação, integração de pontos de atenção das redes
de saúde no território às pessoas em sofrimento psíquico e seus familiares,
qualificando o cuidado, pelo acolhimento e acompanhamento contínuo. Dentre
os diferentes tipos de CAPS, os CAPS ad são responsáveis pelo cuidado de
pessoas que usam álcool e outras drogas. Aos CAPS cabe a criação de um
modelo de atenção que visa desenvolver relações com os recursos de cuidado
existentes na comunidade, tendo um sentido de não cronificação do usuário ao
serviço, mas para sua inserção na comunidade (AMARANTE, 2007; LANCETTI,
2006).
Dez anos depois da Lei da RP, outra portaria tornou-se importante para a
construção desse novo modelo, é a Portaria 3088/11, a qual institui a Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS). A RAPS tem como objetivo a ampliação do
acesso aos serviços de saúde mental, a partir da produção do cuidado de
pessoas em sofrimento psíquico e/ou com necessidades decorrentes do uso de
drogas e álcool e seus familiares, na articulação entre diferentes pontos de
atenção. Em seu texto, a RAPS elenca diferentes serviços e suas funções, tais
como os Núcleos de Apoio à Saúde da Família, Unidades Básicas de Saúde,
Consultório de Rua, Centros de Convivência, Unidades de Acolhimento,
Residenciais Terapêuticos e Centros de Atenção Psicossocial, dentre outros
(BRASIL, 2011).
Apesar de os CAPS e a RAPS terem sido criados visando um cuidado
territorializado e em rede, somente sua existência não garante que as práticas
dos profissionais se deem nessa direção. Conforme Dimenstein (2006), há
dificuldades nos serviços de saúde mental, dentre eles os CAPS, em realizar
práticas fora de seus muros, o que se dá em função da falta de capacitação de
profissionais, da dificuldade do usuário que está estigmatizado, do baixo
investimento do SUS para criação de serviços substitutivos, alta demanda para
o serviço, falta de articulação entre os serviços de atuação da rede básica, dentre
outros. O que a mesma autora ainda coloca é que há dispositivos que produzem
movimentos nos serviços em direção ao território, dentre eles o Apoio Matricial1
e o Acompanhamento Terapêutico.
1 Apoio matricial é um arranjo institucional criado para promover interlocução entre os serviços de saúde
mental, implica na responsabilidade ampliada do caso, permitindo um modelo de atendimento e
responsabilidade singular, ocorrendo a partir de supervisão e discussão dos casos (Dimenstein, 2006).
10
1.2 Acompanhamento Terapêutico e as redes de produção de saúde
O Acompanhamento Terapêutico é uma prática de cuidado desenvolvida
no contexto da Reforma Psiquiátrica que busca o empoderamento e a inclusão
da pessoa com sofrimento psíquico a partir de uma clínica itinerante, onde a
circulação pelo território é critério para o seu funcionamento. Nessa prática, há
um caminho que é traçado em conjunto com o sujeito, respeitando seus desejos
e inventando novas formas de lidar com a vida, seus percalços e potências.
(PALOMBINI, 2006). Assim, se o AT enquanto dispositivo atualiza uma proposta
clínica em direção as potências do território, cabe a este projeto compreender
sua atuação em relação a uma proposta de cuidado em rede. Afinal, existe nos
serviços de saúde um desafio da produção de um cuidado em redes
territorializadas, pois no cotidiano das práticas de saúde, o cuidado
compartilhado não se dá apenas pela existência de diferentes pontos de
atenção, mas em função de diferentes fatores, dentre eles as relações
estabelecidas entre trabalhadores, usuários e gestores. Assim, uma noção de
redes é a que será destacada neste projeto, a qual é chamada de redes de
produção de saúde (BRASIL, 2009).
As redes de produção de saúde trazem uma concepção de saúde
ampliada, entendendo a saúde como um processo que depende de ações
intersetoriais, buscando articular entre os profissionais, gestores e usuários, com
o objetivo de propiciar agenciamentos2 que desenvolvam um cuidado, sendo
uma rede heterogênea. Elas buscam construir sistemas integrados de saúde e
articulá-los no território, a partir de ações intersetoriais (BRASIL, 2009). Assim,
este projeto direciona seu olhar para o processo de produção de redes de saúde
a partir das práticas do AT.
1.3 A produção singular de um problema de pesquisa
2 Agenciamento: algo que visa articular, dispor de diferentes processos, facilitando o processo de produção, buscando um aumento das dimensões numa multiplicidade, uma ampliação de conexões (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
11
Meu interesse pelo tema surgiu no terceiro semestre do curso de
Psicologia, quando estagiei como visitadora social em uma empresa que fazia
trabalhos terceirizados para a prefeitura de Santa Maria, trabalhávamos direto
com as pessoas que já haviam sido beneficiadas pelas casas do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) e com as que seriam. Havia pouco mais de
um ano que tinha ingressado na faculdade de Psicologia e meu trabalho consistia
em fazer visitas às residências dos beneficiários, os quais eram pessoas que
viviam em vulnerabilidade social, fazíamos plantões sociais e reuniões com a
comunidade. A partir disto, pude perceber o quanto se pode conhecer e
compreender as pessoas ao entrar em sua comunidade, entender suas relações
e seu meio de vida. Nesse estágio, que teve a duração de três semestres,
trabalhava em uma equipe de acadêmicos dos cursos de psicologia, serviço
social e enfermagem, o que me auxiliou na percepção da importância do trabalho
em conjunto com outras disciplinas.
Outra experiência que direcionou meu olhar aconteceu quando, no quarto
semestre da graduação, ao cursar a disciplina de Introdução à Psicologia da
Saúde, pude começar a entender sobre o SUS e a política de Saúde Mental,
bem como ter uma certa noção sobre os diferentes serviços que compõem a
rede de saúde. Nesse mesmo semestre, fiz o primeiro estágio com ênfase na
saúde em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) que atendia pessoas com
transtornos mentais graves. Pude observar a importância do serviço para os
usuários, pois este se configurava como um local de confiança, sendo muitas
vezes o único local que os acolhia. Por outro lado, também percebi um serviço
abarrotado de usuários, que por fim permaneciam cronificados nele, cronificação
esta que ocorre, muitas vezes, por falta de dispositivos que permitam uma
inserção na sociedade. Enfim, o interesse pelo tema foi tomando consistência a
partir de minha inserção no projeto de extensão “O Acompanhamento
Terapêutico como dispositivo para construção de redes de cuidado em Saúde
Mental” no centro de Atenção Psicossocial ad Cia do Recomeço, do qual
participo até o momento.
A partir da prática nesse serviço, tenho observado sua importância como
um dos dispositivos substitutivos da RP, a qual se expressa por um trabalho
vinculado ao território e sua busca pelo empoderamento e produção de
autonomia do usuário observações que se somam e reforçam com a
12
experimentação da vivência como AT. Nessa experiência, duas situações
produziram em mim maiores questionamentos: a primeira delas é em relação a
potência do AT na produção de cuidado, sendo este tomado por indicativos como
vínculo, acolhimento e autonomia; a segunda foi perceber que ainda falta muito
para a rede funcionar, mas que este dispositivo possui uma potência para que o
cuidado em rede se produza. Assim, diante da importância das práticas de AT
para a efetivação da política de Saúde Mental e para a produção de um cuidado
em rede e da experimentação que tenho tido como AT o presente trabalho surge.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 Desinstitucionalização e Intersetorialidade
A sociedade viveu uma importante fase de reflexão sobre o tratamento
das pessoas em sofrimento psíquico, chegando ao ponto de perceber muitas
semelhanças entre os campos de concentração e os hospitais psiquiátricos. No
Brasil, a Reforma Psiquiátrica se inspirou no modelo italiano da Psiquiatria
Democrática de Franco Basaglia, conhecido como desinstitucionalização, a qual
problematiza o aparato científico psiquiátrico e suas instituições assistenciais,
centrada numa perspectiva manicomial. A RP propõe, além da desospitalização
e a reinserção dos indivíduos em sofrimento mental na sociedade, a
desconstrução dos estigmas ligados as pessoas em sofrimento psíquico, a qual
demanda, não só novos serviços, mas novas formas de operar a clínica
(AMARANTE, 2007).
A 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial que ocorreu em
2010, teve como tema “Saúde Mental direito e compromisso de todos: consolidar
avanços e enfrentar desafios”, colocou construção da intersetorialidade como um
desafio para as políticas sociais, sendo esta entendida como ações articuladas
entre a saúde e os demais setores (educação, cultura, assistência social, justiça,
dentre outros) fortalecendo ações no território. Também reafirmou o campo da
saúde mental como sendo inerente ao campo interdisciplinar multidimensional,
interprofissional e intersetorial, como parte fundamental da integralidade do
cuidado social e da saúde em geral, ou seja, reafirmou a importância da
intersetorialidade para um funcionamento pleno dos serviços de saúde (BRASIL,
2010).
A intersetorialidade traz que os serviços devem sair da sede e buscar na
sociedade possibilidades que os complementem e ampliem o cuidado, sendo
articulados com os recursos existentes no campo de saúde mental, saúde geral
e políticas públicas e recursos criados pela sociedade. A articulação dos
diferentes setores para planejamento de ações conjuntas visa a melhor
resolução do cuidado este que deve ser fortalecido no território, pois é nele que
existem os vínculos, as relações das pessoas atendidas (AMARANTE, 2007
14
2.2 Breve história
No Brasil, a pauta anterior a RP foi o indivíduo em sofrimento mental como
um indivíduo privado dos direitos à liberdade e ao convívio em sociedade. Foi a
Antipsiquiatria que proporcionou as ideias para o surgimento do
Acompanhamento Terapêutico, que teve seu início nos anos 70, na Argentina,
com a criação da função de auxiliar ou atendente psiquiátrico, figura que
acompanhava os pacientes dentro das próprias instituições ou em atividades que
ocorressem fora delas (CHAUÍ-BERLINCK, 2010). Inicialmente nomeado como
amigo qualificado, nome este que foi modificado, para trazer a seriedade
terapêutica e não permitir a proliferação de equívocos –, a partir do declínio do
regime manicomial no país, eles passaram a trabalhar nas casas dos pacientes,
em sua maioria os trabalhos eram voltados para a parte de inclusão social e
fortalecimento de vínculos familiares (LONDRERO e PACHECO, 2006).
Neste panorama de saída dos manicômios e asilos e entrada na cidade é
que o Acompanhamento Terapêutico se constitui num dispositivo potencializador
de inclusão e autonomia, que a Reforma Psiquiátrica propõe. Assim, o AT tem
suas incursões por fora dos settings tradicionais, que fazem com que ele traga
uma nova visão do mundo ao acompanhado e acompanhante (PALOMBINI,
2006). Lima (2010) traz que ele era utilizado em casos mais complexos, nos
quais apenas a clínica tradicional não conseguia oferecer todo o suporte
necessário. Porém ao observar seus aspectos práticos e sua não delimitação às
paredes do consultório, saindo assim do território, passou a ser utilizado em
qualquer caso onde este tipo de intervenção fosse considerada necessária,
independente da complexidade.
2.3 O Acompanhamento Terapêutico e sua função rizomática
Palombini (2006) menciona o AT como um dispositivo que possui uma
estratégia clínico-política, pois não existiria uma clínica sem política, tendo a
reforma psiquiátrica em presença como leis, o auxílio ao empoderamento do
15
sujeito e o espaço externo, uma compreensão mais ampla da subjetividade e a
disponibilidade com o outro. De acordo com Lima (2010) o acompanhamento
terapêutico traz em sua prática as funções de micropolítica, transversalização,
deslocalizadora e analisadora da clínica, rizomática, resistência aos modelos
centrípetos e analisadora do Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira,
função de territorialização, autonomização e função de publicização ou de
geração de um plano comum na clínica.
A função micropolítica vai ao encontro de uma conversão, transformação,
a partir da minoria, de pequenas mudanças, fugindo da percepção da maioria, a
autora traz a ideia de análise da formação dos desejos no campo social, ela se
faz a partir da análise da problemática, de seu pequeno universo e seus
processos de subjetivação. São as mudanças que ocorrem em pequenas ações
que surgem no micro. Na função de transversalização a clínica não é mais
centrada em poderes, horizontais, ou verticais, mais sim em um poder
transversal, um saber criado a partir dos saberes de todos os envolvidos.
A função deslocalizadora e analisadora da clínica não possui local e nem
um tempo fixo, a clínica vai para a rua e deslocamos a técnica, analisando qual
o melhor momento para aplicá-la, de acordo com o tempo do acontecimento, ou
seja, não se escolhe o momento de intervir, mas a partir do momento se
intervém. Outra função refere-se a publicização, que é a geração de um plano
comum na clínica, a não separação entre o público e o privado, entre o individual
e o coletivo (LIMA, 2010).
Na função de resistência aos modelos centrípetos e analisadora do
Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, o acompanhamento toma a
questão do movimento num processo contínuo de transformação. Da mesma
forma a função de territorialização, é no território que o AT se cria, mais para
além de uma ideia espaço-temporal, um território existencial, aquilo que existe
em torno de nós cria nossos comportamentos, cultura e subjetividade (LIMA,
2010). A função de autonomização atrelada a uma percepção inclusiva, de um
não assujeitamento, se compondo de redes que produzem subjetividade e
autonomia.
Neste trabalho o processo rizomática é o que mais nos interessa, sendo
colocado quando ele ocorre ou não, entendido como uma rede formadora de
conexões heterogêneas, trazendo a questão do AT ao fazer um mapeamento da
16
rede social do acompanhado, uma rede maleável, que vai se construindo e
mudando com o tempo, nesta função é que compreendemos o AT como
agenciador de conexões, que compõem movimentos, podemos entender a rede
como um rizoma.
Os conceitos descritos acima foram citados para demonstrar o potencial
do acompanhamento terapêutico. Palombini (2006) traz o AT como uma
experiência diferente do serviço, trazendo um reposicionamento da equipe, ou
seja, age como força motivadora, para que se repense o caso buscando novas
formas de ação, novos desvios para que se lide com o caso.
2.4 Redes e sua polissemia
O termo redes tem se tornado cada vez mais utilizado dentro da política
de saúde mental e do SUS como um todo. Assim, nesta sessão buscar-se-á
distinguir algumas de suas apresentações dentro do SUS para, em seguida,
apresentar a noção de redes com que esta pesquisa estará operando.
Os serviços e as estratégias de promoção e proteção da saúde mental
precisam ser coordenados entre si e articulados com outros serviços, tais como:
a segurança social, a educação, o emprego e a habitação. No Brasil, o estado
tem assumido importante papel na reestruturação da Reforma Psiquiátrica,
priorizando sua inserção social, surgindo a rede de atenção básica à saúde
(PITIÁ e FUREGATO 2009).
Com a ampliação da concepção de saúde, o processo de saúde e doença
passou a ser entendido como integrante de uma rede, uma produção social
composta por vários fatores, sendo ela consolidada como direito. Assim, no
Brasil, após a Constituição de 1988, nasceu o SUS tendo como estratégia a
organização em rede, e sua proposta a universalidade e a integralidade
unificadas, que se articulariam em redes regionalizadas e descentralizadas. A
criação dos serviços em rede se tornou crucial para a formação de diversas
respostas de enfrentamento ao processo de saúde e doença. Sua composição
é feita pelos conjuntos de serviços e equipamentos que um determinado local
17
disponibiliza e sua implementação é complexa, sendo necessária uma
ampliação de cobertura em consonância com a comunicação (BRASIL, 2009).
Segundo Ministério da Saúde (2009), a produção de saúde ampliada
ocorre pela construção de sistemas integrados e pela articulação de iniciativas e
ações intersetoriais, trazendo questões de discussões de caso, apoio matricial,
co-responsabilização pelo usuário, assim, os serviços poderão ter mais força de
atuação. Quanto maior a interação entre os atores, pessoas, equipes e serviço,
melhor o desenvolvimento do trabalho para todos os envolvidos (BRASIL 2009).
A Portaria nº 4.279, de 30 de dezembro de 2010, estipula a Rede de Atenção à
Saúde no Sistema Único de Saúde (RAS), que são diferentes formas de atuação
do sistema, as quais ocorrem integradas e apoiadas a outros sistemas. Ela
objetiva trazer à população um cuidado integral, busca promover a integração
dos serviços de saúde, de atenção contínua, responsável e humanizada de
acordo com as diretrizes do SUS.
A Portaria n° 3088 de 23 de dezembro de 2011, institui Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), ela é um serviço que visa assegurar o cuidado, a
autonomia, a equidade e garantir o acesso e qualidade dos serviços, de pessoas
em sofrimento psíquico e com uso de álcool e outras drogas, buscando
estabelecer pontos de atenção. Atuando em uma perspectiva territorial,
conhecendo e transformando os locais e relações, articulando a integração e a
atenção.
Azevedo et al. (2013) questiona a constituição de rede diante da
dificuldade e inconstância de estabelecê-la e a necessidade de criar dispositivos
que auxiliem a entrar em contato com diferentes atores, saberes e propor
diferentes intervenções, para a produção de efetivas redes de cuidado. A
produção de redes dentro da gestão pública, exige que a coordenação das
mesmas seja eficiente (diminuição de custos, ampliação do acesso e interligação
das políticas). A organização dos sistemas de saúde em rede é projetada de
modo a superar uma fragmentação da atenção caracterizada por pontos de
assistência isolados, pela fragilidade na comunicação e pela dificuldade de
ofertar um acompanhamento continuo aos usuários, ela colocou em discussão a
necessidade de mudanças no sistema de atenção à saúde, e que essas
mudanças poderão ocorrer a partir de uma organização. Apesar de diferentes
concepções de redes existentes dentro do campo da saúde, interessa a este
18
projeto a noção de redes de produção de saúde. Esta percepção busca novos
modos de produção de saúde e gestão de serviço, relações em atenção e
gestão, clínica e política, produção de saúde e produção de subjetividade. Tendo
por objetivo provocar inovações nas práticas de gestão e produção de saúde,
buscando novas formas de organização dos serviços e novos modos de
produção.
Olhando de forma mais precisa essa noção de redes de produção de
saúde (BRASIL 2009), duas concepções se destacam, são elas: rede de
conversações e redes de encontros. Redes de conversações se relacionam ao
conjunto de relações e interações que ocorrem entre os atores envolvidos
(profissionais, usuários e gestores), é com base nesta interação que a rede
circula. Sendo no sistema de serviços de saúde, um conjunto de relações não
hierárquicas e interdependentes, ocorrem a partir de conversação para efetivar
seus diversos interesses e promover a integração dos serviços (LIMA e
RIVEIRA, 2009). Ferigato (2013) traz em seu trabalho, nos centros de
convivência de Campinas, a produção de encontros como uma percepção de
potência, de trazer diferença, de produzir encontros entre os corpos e de criar
novas linhas de fuga dos processos tradicionais. Ela parte da percepção de
Espinoza de encontro, que o encontro ocorre por conveniência ou
desconveniência, podendo aumentar ou diminuir a potência das partes que se
relacionam, sendo eles ético-afetivos, o bom encontro se daria pelo aumento da
potência e o mau pela diminuição da potência de agir e existir, que também um
encontro pode causar um efeito indeterminado. Os encontros ocorrem entre
usuários, profissionais, familiares, trabalhadores de diferentes serviços e
formações. Assim, a partir da proposta desse projeto, cabe um olhar aos
encontros, as conversas e aos efeitos destas em relação ao cuidado. É a partir
desse olhar que estar-se-á problematizando as redes constituídas a partir das
práticas de AT.
3 PERCUSO METODOLÓGICO- PROJETO “O ACOMPANHAMENTO
TERAPÊUTICO COMO DISPOSITIVO PARA CONSTRUÇÃO DE REDES DE
CUIDADO EM SAÚDE MENTAL”
Os dados foram analisados a partir do método cartográfico de um conceito
da análise institucional, o analisador e a análise de implicação. O método
cartográfico que consiste em uma forma de acompanhar os acontecimentos, ao
longo do processo avaliando, os efeitos e os resultados da pesquisa. Ronilk
(2009) traz a cartografia como algo que acompanha os movimentos, os quais
vão mudando conforme as passagens, trazendo o cartógrafo como quem possui
a função buscar elementos para compor suas cartografias, que busca entender
os afetos e ao mesmo tempo inventar pontes de linguagem. Romagnoli (2009)
percebe a cartografia como uma ferramenta de investigação que compreende
problemas e acompanha os acontecimentos. Existindo em uma concepção de
mundo e subjetividade, entende a pesquisa e vai ao encontro do pesquisador,
que não é um ser transparente, vai se delineando em conjunto ao pensamento
e a prática. Trazendo a produção a partir das percepções, sensações e afetos,
fazendo a produção de conhecimento a partir da criação, buscando romper a
separação do sujeito com o objeto (ROMAGNOLI, 2009).
O analisador e a análise de implicação, que pode ser qualquer expressão,
fala, acontecimento ou momento, que seja capaz de trazer um conflito
necessário para iniciar o processo analítico, ou seja, são acontecimentos que
buscam produzir rupturas, estimulando fluxos para a produção de análise
(LOURAU, 1993). Paulon (2005) coloca que a análise de implicação como o
pesquisador implicado que analisa também o seu lugar, ele não se torna
transparente na pesquisa, na percepção de que a aproximação no campo inclui
um permanente processo de analisar os impactos que os acontecimentos têm
sobre o pesquisador, e o sistema em que está constituído. Ela significa
evidenciar os jogos de interesse e poder que existem em torno do campo da
investigação.
Os dados foram produzidos de duas formas, a primeira delas a partir da
produção do diário de campo (DC), o qual serviu como registro dos
acontecimentos e a segunda, a partir da análise documental relativa as atas de
reunião do projeto (AR), e todos os relatórios gerais relativos (RG), que são
20
confeccionados a cada final de semestre. Além dos relatórios semestrais feitos
pelos acompanhantes terapêuticos (RA), para os relatórios semestrais foram
escolhidas quatro acompanhantes terapêuticas, sendo o critério de inclusão
aquelas que possuíam mais tempo de participação no projeto, totalizando quinze
relatórios. De acordo com Gil (2010), a pesquisa exploratória tem o propósito de
entender melhor o problema, e torná-lo mais visível, ela conta com um
planejamento flexível. A pesquisa documental se utiliza de documentos,
relatórios, jornais, etc, neste caso serão analisados relatórios e prontuários.
A pesquisa buscou compreender os efeitos das práticas de
Acompanhamento Terapêutico em relação as redes de produção de saúde em
um CAPS AD, identificar as redes de produção de saúde agenciadas por meio
das práticas do Acompanhamento Terapêutico, e problematizar os efeitos do AT
na composição de redes de produção de saúde que se originam no projeto.
A pesquisa foi realizada no CAPS ad Cia do Recomeço, sendo elaborada
a partir dos dados disponibilizados do projeto de extensão “O Acompanhamento
Terapêutico como dispositivo para construção de redes de cuidado em Saúde
Mental”. O projeto teve seu início em 2013, sendo resultado da parceria entre o
Centro de Atenção Psicossocial ad “Cia do Recomeço” e a Faculdade Integrada
de Santa Maria. O CAPS Cia do Recomeço trabalha atendendo usuários de
álcool e outras drogas, fica localizado na Rua General Neto, n° 579, e seu horário
de funcionamento é de segunda-feira a sexta-feira, das 8 horas ás 18 horas, sem
fechar ao meio-dia. Atualmente, possui 738 usuários, os quais são atendidos por
uma equipe multiprofissional, que é composta por psicólogo, assistente social,
psiquiatra, auxiliar administrativo, técnico em saúde mental, redutor de danos e
auxiliar de limpeza.
O projeto atua com casos encaminhados pela equipe do CAPS, quando a
mesma observa a necessidade de inserção de seu dispositivo em seu Plano
Terapêutico Singular. Cada acompanhante atua de 6 a 10 horas por semana no
projeto. Na atualidade, ele conta com cinco Acompanhantes Terapêuticos (todos
estudantes de Psicologia), que são supervisionados pelo professor coordenador
e pela enfermeira integrante da equipe. Afim de discutir os casos e realizar a
cogestão do projeto, o grupo de ATs, professor e profissional do CAPS se reúne
uma vez por semana, por duas horas. Até o momento o projeto já contou com
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22 acadêmicos como ATs, sendo 18 deles do curso de psicologia e 3 do curso
de enfermagem.
A presente pesquisa contou com duas formas para a produção de dados.
A primeira delas a partir da produção do diário de campo, o qual serviu como
registro dos acontecimentos em relação à dois aspectos: a inserção no campo
de pesquisa e minha prática como AT, a qual realizo desde o segundo semestre
de 2014, e o acompanhamento de dois usuários no segundo semestre de 2016.
A segunda forma de produção de dados ocorreu a partir da uma análise
documental relativa as atas de reunião do projeto, os relatórios gerais,
semestrais relativos ao projeto e dos relatórios semestrais de 5 acompanhantes
terapêuticas do projeto. Como critérios de inclusão, foram escolhidos os
relatórios de ATs com mais tempo de participação no projeto. Os relatórios gerais
totalizaram cinco, um a cada semestre de existência do projeto, e os relatórios
das Acompanhantes com mais tempo no projeto totalizaram dezessete. No
trabalho são utilizadas as siglas DC (diário de campo), RG (relatório geral), RA
(relatório de acadêmica), com numeração para cada uma das cinco acadêmicas
e AR (ata de reunião). Dos dezessete relatórios busquei colocar trechos dos que
desenvolvem maiores detalhes os casos, ou seja, que desenvolveram mais as
conversas. A identificação da rede acessada foi avaliada em todo o material.
4 RETRATOS DE UM ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
Para iniciar a imersão nos materiais pesquisados, gostaria de colocar dois
conceitos que foram se entrelaçando com o desenvolver do trabalho. Para
pensar em redes e suas relações com a práticas de AT foi importante meu
encontro com as noções de rizoma e agenciamentos,pensadas por Deleuze e
Guattari. Conforme os autores (1995, capa do livro):
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.
Neste trecho podemos entender o conceito do rizoma e trazer para a
noção de redes, uma rede que não possui começo, ou fim que vai se conectando
a diversas outras multiplicidades. De acordo com Lima (2010) a função
rizomática é entendida como uma rede formadora de conexões heterogêneas,
pois é a partir desta função que ocorre o movimento, ou não, da rede de
produção de saúde.
Deleuze e Guatarri (1995) trazem agenciamentos como multiplicidades,
com natureza constituída por dois eixos, um horizontal e outro vertical. O primeiro
deles contém um segmento de conteúdo, e outro de expressão. Já o eixo vertical
tem lados territoriais ou reterritorializados. Ricardo Teixeira (informal 2008)
coloca o conceito de redes como multiplicidades conectadas de agenciamentos
heterogêneos, vindo ao encontro da ideia de rizoma, agenciamentos.
Tentei colocar da forma mais organizada possível, as redes de produção
de saúde agenciadas, a partir das práticas de Acompanhamento Terapêutico.
Foram retirados alguns trechos do diário de campo, e dos relatórios para
discorrer sobre o assunto. A partir do material analisado foram elencados três
analisadores, são eles: 1) Como o AT produz uma rede?; 2) Qual o olhar para o
acompanhado?; 3) O que é um AT que funciona?
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4.1 Primeiro analisador: O AT entre o molar e o molecular
Este analisador surge para pensar sobre as redes produzidas a partir do
AT. Que rede é esta que o AT pode produzir. Podemos colocar que o AT produz
rede entre o molar e o molecular. Ronilk (2014) traz duas linhas uma molar,
consciente, limitada, dura, estável e visível (serviços de saúde), e outra
molecular, inconsciente, invisível, ilimitada e flexível (feita a partir da
inventividade, como a música). Neste analisador, interessa apontar como o AT
funciona nesse entre, produzindo e seus efeitos na articulação entre essas
linhas.
Uma noção que possibilita visualizar como o AT opera como entre, está
nos encontros que ele possibilita. Conforme Ferigato (2013) numa perspectiva
Spinoziana, entendo por encontro tudo aquilo que visa aumentar ou diminuir a
potência, e a afetação. O AT parte do encontro, e é nesta relação que se articula
uma rede de produção de saúde. Quando pensamos na ideia de encontros,
temos a ideia deles entre pessoas, mas no acompanhamento, podemos
perceber com um olhar mais amplo, permite encontros entre pessoas, entre
pessoas e serviços, entre pessoas e objetos, ou seja, possui diversos tipos de
encontros, sempre em busca de potências de vida para o usuário. Nesta parte
colocaremos este movimento do AT entre redes de serviços e encontros.
Gostaria de colocar um trecho de um dos relatórios que podem
demonstrar o quanto estes encontros que se constroem no AT podem afetar o
usuário:
Durante a conversa, na minha ida, era véspera de natal, J.S. relatou que se sentiu mais fortalecida com o acompanhamento, que não se sentia mais sozinha, disse que percebeu o interesse do serviço e pensou bem, trazendo a fala “se eles investem em mim, eu também devo”. Ela, chorando, me disse “fazia tempo que eu não me sentia gente, e estou voltando a me sentir (sic). (RA1, Dez. 2014)
Dentre a atuação do acompanhamento terapêutico, a característica mais
marcante, que pude perceber, para a produção de saúde e ampliação do
território do acompanhado, ocorre através de um setting diferenciado, neste
espaço que podemos ampliar a relação com o sujeito. Sendo nesta inserção no
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território do acompanhado, que o encontramos. Foram colocados diversos locais
em que estes encontros aconteceram, como Fórum, hospitais, escolas, lojas,
casas, dentre outros.
O acompanhante foi se inserindo conforme a situação, e é esta prática de
estar junto que permite auxiliar no movimento desta rede de produção de saúde.
Brasil (2009) traz a rede com conexões heterogêneas como uma possibilidade
de produzir diferença nas distribuições de poderes e saberes. Sendo que a
produção de saúde ampliada ocorre a partir da construção de sistemas de saúde
integrados, e pela articulação do território, em um conjunto de iniciativas
intersetoriais.
A partir dos exemplos contidos nos relatórios e diários de campo, é
possível perceber os efeitos do AT em relação a produção de redes, também em
um nível micropolítico. Afinal, para além de visualizar pontos específicos de uma
rede intersetorial acessado pelo AT, é interesse dessa pesquisa dar visibilidade
aos encontros que se produzem a partir dessa prática.
Como exemplo, o caso de um acompanhamento que ocorreu na tentativa
de inscrever um usuário em uma escola:
Conforme descrição da AT, a pessoa que recepcionou o jovem logo respondeu que não poderia, pois não está mais na época. Para além de estar fora da época, a extensionista relata que sentiu um olhar que indicou um preconceito a forma como o jovem estava se apresentando.Foi quando a AT intervêm e conversa com o funcionário que se trata de um adolescente atendido no CAPS, que era importante ao seu Plano Terapêutico Singular, para sua reinserção social, que ele pudesse voltar a estudar. Com a presença da AT, o funcionário foi até a direção falar da situação. Após alguns minutos, foi possível matricular o jovem (RG, Dez. 2013).
Nesta cena a acompanhante traz o movimento do AT como um articulador
entre o CAPS Ad, a escola e o usuário, e neste encontro, que talvez em um
primeiro instante causou uma repulsa, logo em seguida acarretou um
movimento. A escola faz parte de um direto, da intersetorialidade, porém, para
que ocorresse a inscrição, teve de ser tensionada. Muito provavelmente, se o
usuário fosse sozinho, não sairia inscrito na escola.
Neste caso, o AT potencializou a partir do desta conversa que teve, nos
materiais foram encontradas diversas formas de agenciar movimentos tais como
músicas, inserção em projetos, caminhar, conversas, falas, idas a instituição,
25
tudo de acordo com cada caso. O que foi relatado mostra o setting como um
espaço amplo em constante mudança, e é nesta mudança que o AT vai se
desenvolvendo, em busca de caminhos desviantes, de novas formas de pensar
(LIMA, 2010).
No decorrer da análise do material, é possível perceber que estar em
conjunto com o acompanhado, proporciona ir ao encontro da produção de saúde.
Este processo acontece a partir da construção com o acompanhante, nesta
relação acompanhante/acompanhado, serviços, família, dispositivos e
potências. Lima (2010) traz que o AT intensifica os laços com o usuário, fazendo
com que ele perceba tanto no serviço, como no acompanhante, uma referência,
fortalecendo a confiança depositada no dispositivo e fazendo com que o serviço
flua.
Colocarei outro relato para demonstrar a heterogeneidade dessas redes,
esta fala da abertura de uma conta em uma rede social. Uma nova conexão foi
desenvolvida para desenvolver saúde:
[...] neste dia estava sob efeito de álcool, ofertei mesmo assim o que fora pensado em reunião para divulgar seu trabalho, só que coloquei como condição cada vez que fosse marcado um acompanhamento terapêutico este deveria estar sóbrio, Mc concordou com o acordo. Combinamos então que no encontro seguinte iríamos abrir uma conta na rede social Facebook, para divulgarmos fotos e vídeos do trabalho do usuário. Como combinado na semana seguinte, no dia que fora combinado Mc estava “limpo” (sic), ou seja, disse que não havia usado tanto álcool como outra droga. Abrimos assim seu perfil na rede social. (RA2, Dez.,2014)
Utilizei este trecho para exemplificar a amplitude desta rede, que pode ser
encontrada em diferentes coisas, de acordo com a singularidade de cada caso,
sendo essa rede de produção de saúde possuidora de conexões heterogêneas.
Neste caso o objetivo de melhora da qualidade de vida do usuário, ocorreu a
partir da abertura da conta na rede social, no material observamos, idas a lojas,
tocar música, dentre outras.
4.2 Segundo analisador: Qual o olhar para o acompanhado
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Este analisador diz respeito ao olhar singularizado para a produção de
saúde. Quando pensamos em usuários de um CAPS ad, a maioria das pessoas
pensam, na questão do uso de álcool e outras drogas, mas a saúde está para
muito além disso, sendo concebida e agenciada por diversas questões que
permeiam este sujeito. Neste analisador, falaremos do olhar diferenciado.
Campos (2007) traz no método paídeia, a percepção de saúde composta
por questões sociais e históricas. Segundo ele, o homem é produtor e produto
de sua cultura, e que nesta discussão entre saúde e cultura, podem ocorrer
modificações no olhar da pessoa, tendo assim um sujeito produtor de saúde.
Ainda de acordo com o autor, o efeito traz uma ampliação do conhecimento, de
si mesmo, dos outros, de seu contexto, além de um aumento da capacidade de
buscar informações e compreende-las. Assim, possibilitando ao sujeito um agir
sobre as relações, intervir sobre o mundo, sendo este efeito que o AT busca.
No material analisado, há casos de usuários que moram e moraram na
rua, de vulnerabilidade social, fragilidade das relações familiares, pessoas que
não possuem apoio, assim, neste contexto, o uso de droga acaba sendo a menor
questão. Em nenhum dos materiais analisados o foco foi na questão do uso, mas
sim na busca de potências de vida do usuário, o investimento em suas
potencialidades, em uma construção em conjunto de agenciamentos. Nesta
perspectiva, buscamos entender a constituição de cada acompanhado, o que os
permeiam, que relações possuem, a quem ou o que está vinculado.
As práticas dos acompanhantes buscam fortalecer o acompanhado, um
dos casos conta do acompanhado que viu uma potência a partir da música e que
nela desenvolveu uma melhora de vida no usuário. Tem casos que a partir de
uma conversa, de falas, que ocorrem a vinculação e o desejo de mudança por
parte do acompanhado. Parte do material não desenvolve tão especificamente
quanto as conversas. Como exemplo colocarei um trecho de um dos relatórios,
que fala desta busca pela potência.
Fora encaminhado para o projeto de extensão em Acompanhamento Terapêutico, pois o usuário apresenta um pequeno grau de déficit cognitivo, necessitando de alguém que estivesse junto aos exames, além do uso abusivo de substâncias também é portador do vírus HIV, e faz tratamento para a tuberculose. Ao iniciar junto ao caso o usuário estava retomando seu tratamento da tuberculose. Assim é de suma importância que seja levado a sério, por se tratar de uma bactéria
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(tuberculose) leva em torno de seis meses até que esta seja eliminada por completo. Por mais que o Centro de Atenção Psicossocial represente um serviço de saúde, procura-se ampliar o olhar e entender o sujeito de forma integral, não apenas voltado para as suas “doenças” ou “dependências”. Uma forma de que este sujeito consiga se organizar seja no próprio uso ou na sua vida, potencializando assim seu lado sadio. Como dito anteriormente o jovem acompanhado faz rimas improvisadas, e esta sua potencialidade o faz sentir-se reconhecido. Resultando nos objetivos que o CAPS almeja, onde o jovem consegue organizar-se melhor diante do uso de álcool e outras drogas e frente a sua própria vida. Com este viés fora discutido e pensado em reunião algumas possibilidades para este Acompanhamento Terapêutico, objetivando potencializar o lado sadio do sujeito em questão. (RA2, Dez. 2014)
Este trecho traz o olhar diferenciado para cada caso e o trabalho com
outros serviços, é que permite com que o acompanhamento se desenvolva.
Pensar em produção de saúde, entendemos que varia de pessoa para pessoa.
Entender a singularidade e como potencializar estas questões, voltado a
concepção de rede, estas conexões heterogêneas podem ser formadas, no caso
com a música, mas poderia ser uma palavra, ou tudo aquilo que produza algo
novo e que potencialize.
4.3 Terceiro analisador: Um AT que funciona para a produção de saúde
Este analisador busca compreender o que é um AT que funciona. E
quando ele não funciona? O funcionar pode ser entendido como aquele que
produz um movimento no sujeito. Primeiro, tem a criação do vínculo com o
acompanhado, depois passamos pelo percurso de criação em conjunto de novos
caminhos, linhas fuga3 que venham de encontro ao desejo do acompanhado, e
depois o processo de desvinculação do dispositivo. Nesta busca por uma
mudança, de procurar e proporcionar novos caminhos na vida de usuário. Retirei
alguns trechos referentes ao enredo de um caso.
No próximo encontro, ela estava determinada, queria se internar (o que me surpreendeu), disse que se passasse 21 dias sem utilizar drogas acreditava que não usaria mais. Porém para se internar ela disse para
3 Linhas de fuga é um movimento de desterritorialização, seguir outros caminhos mudando a natureza, linhas de intensidade (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
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mim e o profissional de referência “Cuidem de meus filhos para mim, eu preciso ter certeza de que eles vão ficar bem” sic, colocando também a questão do conselho tutelar e do mal relacionamento com o conselheiro. Garantimos que seus filhos ficariam bem, e que o conselho não iria tira-los. Ela se mostrou muito preocupada com a família e os filhos, então me comprometi a visitar a família dela durante o período de internação. Nesse dia houve uma série de acordos com ela, foram acionados diferentes profissionais da equipe, e também foi conversado com o conselheiro sobre a situação e o apoio da equipe.
(RA1 Dez., 2014).
Campos (2007) traz que uma clínica com qualidade é aquela que fortalece
os vínculos, entre paciente, famílias, profissionais com a equipe e alguns
profissionais de referência. Estimulando pessoas e organizações a participarem
das resoluções dos próprios problemas. Amarante (2007) fala da importância de
que os serviços de atenção psicossociais tenham um estabelecimento de
vínculos, entre profissionais, equipe e que seja demonstrado um efetivo
comprometimento, voltado para seus problemas. Um AT que funciona é aquele
que promove um movimento, como exemplo no trecho acima do relatório, houve
uma mobilização da equipe para a internação da usuária.
Proporciona o entendimento de clínica transdisciplinar onde um saber não
é visto como único, mas sim agregado a outros saberes, a partir de outras
disciplinas e de outros conhecimentos, não existindo mais sujeitos e
determinadas formas de conhecer objetos. Há sim uma flexibilização de
diferentes conhecimentos e disciplinas, que são reunidos para lidar com o sujeito
(neste caso produzir cuidado ao usuário), produzindo uma zona de intercessão
entre os saberes (PASSOS; BARROS, 2000).
A seguir, coloco um trecho do diário de campo, em que o acompanhado
está em um processo de desvinculação do serviço. Também fala do difícil acesso
ao mercado de trabalho de pessoas em sofrimento psíquico.
Conversamos sobre esta busca de emprego C. disse que já havia conversado no CAPS, que procurava um trabalho e após organizar a sua vida, disse “está na hora de trabalhar, ter a minha família, perdi muito tempo com as drogas, meu pai na idade já era casado e tinha filhos”. Combinamos de continuar em busca de uma vaga para a inserção de C.M. no mercado de trabalho. Pensamos em como podíamos colocar na entrevista o fato dele nunca ter trabalhado, devido ao fato não ter tido um cuidado em relação a saúde, ele está com 25 anos, e não completou o ensino fundamental, apesar de querer estudar o pai acha mais importante ele trabalhar. Separamos dois tipos de currículos um para PCD, em que colocamos a esquizofrenia e o outro sem colocar nenhum diagnóstico. Ao chegar
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para deixar um currículo a responsável do setor de recursos humanos, ela sorri para ele, pergunta se ele não frequentava o clube, ele responde que sim, mas faz muito tempo. Ela questiona por que motivo C. M. nunca trabalhou, ele responde que passou todo este tempo se tratando da esquizofrenia. Então o sorriso dela congela, e diz a ele pode deixar que caso necessário o chamariam para uma entrevista. Combinamos de continuar em busca de um emprego para C. M. no mercado de trabalho, e de pensarmos novas formas de estar colocando o motivo dele nunca ter trabalhado (DC, 17/11/16).
Muitos dos casos que foram trazidos a partir da análise do material
mostram diversas questões que permeiam o sujeito, com base no que eu
analisei, percebo que um AT que funciona atua produzindo um movimento.
Quando não há movimento, então ele não funciona. Me colocando também como
participante, há dois anos no projeto, percebo uma frustração, quando não
conseguimos atingir o movimento de mudança, frustração enquanto
acompanhante, que vem de uma espera, de um desejo, de uma busca que não
ocorre. Talvez o AT não funciona quando o nosso desejo está mais inserido do
que o do outro, quando colocamos uma prioridade e o acompanhado outra, mas
quem deve saber a prioridade para a sua vida é ele.
Outro aspecto além, para o não funcionamento do AT, vem de acordo com
o que já foi trazido referente a rede, uma rede que não flui, que não agencia algo
novo, que não movimenta e que institui um saber, mesmo sem saber de nada.
Um AT que funciona em grupo, com diversas pessoas envolvidas, diversos
saberes, sendo eles, familiar do usuário, profissional, ou de serviços e,
principalmente, pensando no desejo do outro.
4.4 Conexões no fio da navalha
Como já foi colocado, a singularidade deve ser pensada em coletivo, entre
serviços, profissionais, entre outros. Como exemplo, um caso que venho
acompanhando e que faz parte do meu diário de campo: R. é mãe de cinco e
está grávida do sexto, usuária do CAPS, R. pediu internação, mas não possuía
ninguém para deixar os filhos, além de uma avó (mãe de criação do pai de sua
primeira filha), que não estava muito interessada, pois a mesma já cuidava de
três netos da filha de criação. Vou colocar uns trechos do diário de campo:
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Em conversa com a profissional de referência sobre sua tentativa de contato com a conselheira tutelar, para que juntas pudéssemos pensar em novas formas de lidar com o caso, ela me trouxe que no momento lá no conselho não sabiam quem era o conselheiro, e que ficaram de dar o retorno. Mas em conversa com R. ela me contou que eles enviaram uma notificação, para sua casa exigindo que ela fosse imediatamente ao conselho, então eu pensei, mas nós queríamos falar com o conselho, e ao invés disso eles a procuram (DC, 22/09/16).
Este trecho retrata a tentativa de conversar com outros serviços, para
pensar no caso em conjunto, porém a mesma não ocorreu. A tentativa de
contato, virou uma notificação, que pedia para R. ir imediatamente ao conselho.
Outro trecho será colocado para que possamos entender o desenvolvimento da
história desenvolvimento da história.
Fui até a residência de R. porém a mesma não estava então conversei com a filha mais velha dela, T. me disse que a mãe se mudaria depois da conversa com a conselheira tutelar, pois a mesma disse que deste jeito ela iria perder as crianças. Então a mudança será para o terreno da casa de J. avó de T. (Diário de campo 12/10/16).
Então R. acabou não permanecendo com J. e não conseguimos mais
contatá-la. O que coloco aqui quando o serviço produz um afeto negativo. Esta
rede produz saúde?
Enfim, para finalizar esse mapa, a seguir apresento outro caso para
demonstrar quando uma conexão funciona, mas dificulta a produção de saúde.
Este caso não é apenas mais um, mas aquele, que acompanhei e o que me
motivou para falar sobre as redes. Nesta época, a noção de rede que operava
em mim era a noção de rede identificada aos diferentes serviços de saúde e
intersetoriais Foram retirados alguns trechos do desenvolvimento do caso, para
poder contextualizá-lo:
Foi feito acompanhamento de D.M., um homem, com de 29 anos, o qual foi encaminhado pelo Instituto Psiquiátrico Forense – IPF ao CAPS Ad “Cia do Recomeço”. Inicialmente ele possuía um vínculo muito forte com o IPF, especialmente com a psicóloga do local. Para explicar a dimensão desta relação de institucionalização para o usuário, é importante mencionar que, em um momento de desorientação, ele foi para o IPF, pois era lá que havia pessoas que ele conhecia e era lá que ele tinha vivido. Aos 19 anos, D.M. roubou a bolsa da filha de alguém com um cargo importante no poder judiciário, fato este que desencadeou sua ida para o IPF. Ele foi diagnosticado com esquizofrenia, era usuário de crack, cocaína e maconha. O usuário saiu do IPF após ter ficado dez anos lá. Em sua volta para Santa Maria, ele deveria ser atendido em conjunto
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pelo CAPS AD “Cia do Recomeço”(álcool e drogas) e Prado Veppo (doenças mentais graves). No início, ele não queria que fosse em sua casa, depois acabou permitindo, eu cheguei a marcar com a profissional de referência, porém acabei não indo. Depois, DM brigou com a mãe, saiu de casa e foi para a casa de um amigo que consumia drogas. Para entender a importância do serviço em sua vida, ele queria fazer o aniversário no CAPS, comemorar com os usuários, estávamos num processo de vinculação e ajuste dele, porém foi atrapalhado pela sua saída de casa. A descoberta da tuberculose foi algo que infelizmente, fez com que o acompanhamento terapêutico retrocedesse. DM, por motivos de saúde (inclusive eu fiz teste de tuberculose), não pode mais ir ao CAPS (que era sua referência), então ele se viu sem o auxílio do local, porém a equipe do CAPS AD não deixou de trabalhar e movimentar a rede, tentando manter o cuidado dele. O usuário parou de tomar seus remédios corretamente, surtou e arranhou o carro de um profissional de outro CAPS, foi preso, depois foi solto, mesmo estando avisado que ele teria de tomar os remédios. Ele ficou fora de casa, foi tentada a internação compulsória, mas esta não ocorreu porque a Casa de Saúde não tinha leito para interná-lo devido a tuberculose, assim, não havia lugar para ele. Devido a outras questões, ele foi preso, enviado ao presídio e depois encaminhado para o IPF (no qual não se sabe quanto tempo ele vai ficar). No final, ele retornou para o seu ponto de partida, local de onde ele não queria ter saído. Esta desfecho é uma lástima pois o usuário estava se mantendo organizado, tomando os corretamente os
remédios e reaprendendo a viver fora do IPF.(RA1, Dez., 2015).
Amarante (2007) traz a necessidade de uma ampla rede para o cuidado
em saúde mental, onde ocorra uma responsabilização pelos sujeitos e um
investimento nas relações entre os atores. Uma rede criada de acordo com as
possibilidades, a criatividades do serviço e as necessidades de cada caso.
A corresponsabilização pelo usuário traz o comprometimento com o sujeito, que
busca ampliar as práticas dos serviços (BRASIL, 2010). Mas e quando ele não
é atendido, e quando a rede não se compromete, e quando as pessoas, as
instituições não fazem o seu serviço? Então fica a frustração de um
desenvolvimento que não ocorreu, uma reprodução de doença.
5 CONCLUSÕES
Em busca de entender como se agenciam as redes de produção de saúde
por meio das práticas de Acompanhamento Terapêutico em um CAPS ad, me
deparei com diversas sensações e afetos, pois este material analisado, faz parte
do projeto em que estou inserida há dois anos, e ao mesmo tempo que facilitou
também me desorganizou.
Percebi o acompanhamento como encontros, encontros que buscam
promover mudanças, encontros, pois não temos o seu controle, eles acontecem
e vão se desenvolvendo em conjunto a aqueles que encontram. Atuando em
conjunto com esta rede de produção de saúde, como um articulador entre
diversas composições humanas e inumanas, diversos atores, família,
profissionais, serviços, amigos, música, fala, arte e diversos dispositivos que
buscam potencializar o sujeito.
O sujeito de desejo que o AT busca, o empoderamento da pessoa a partir
da articulação com diversos dispositivos, que produzem saúde. Pode ser abrir
uma conta em uma rede social para mostrar sua música, ir à escola, ir em uma
loja, etc. Inúmeros são os dispositivos que o AT pode utilizar para desenvolver a
saúde, as potências de vida.
Diversas redes de produção de saúde foram agenciadas, mas ao final
deste trabalho, vejo uma rede de produção de invenções, de linhas de fuga, de
caminhos desviantes, que surgem a partir da arte de inventar, de inovar de
descobrir algo novo.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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