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UM TEMPO INFÂNCIA - unesdoc.unesco.orgunesdoc.unesco.org/images/0008/000870/087024poro.pdf · Familiar”, de natureza interdisciplinar e interagências - em colaboração, designadamente,

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U M TEMPO PARAA INFÂNCIA

Título original: Toward a Fair Start for Children, UNESCO, 1990,1991.

Tradução de Maria Luísa S. Alvarenga de Andrade

Edição e distribuição: CENTRO UNESCO DO PORTO Rua José Falcão, 100 - W C 4000 PORTO - PORTUGAL

Impressão e acabamento: Tipografia Camões, Póvoa deVarzim, Portugal.

Depósito Legal: 60696/92

ISBN 972-8059-08-6

UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Os Programas de Intervenção Precoce no Desenvolvimento Infantil

nos Países e m Desenvolvimento

Robert G. Myers

Projecto Sobre a Criança e o Meio Ambiente Familiar 1990-95

O Dr. Robert Myers é Coordenador do Consultative Group on Early Childhood Care and Development, Nova Iorque. A sua experiência, tanto e m trabalhos de campo como no domínio da investigação ao serviço da Fundação Ford e da UNICEF, é vasta. Actualmente, é membro da Comissão Consultiva Científica da Unesco para o Projecto “A Criança e o Meio Familiar”.

No seu trabalho, o Dr. Myers defende que a luta travada para salvar a vida das crianças deverá ser indissociável de um esforço para dar um sentido a sua existência. O seu livro mais recente, publicado pela Routledge, Londres, e m Março de 1992, “The Twelve Who Survive”, inclui um quadro geral abrangente dos programas de intervenção na primeira infância e m curso nos países e m vias de desenvolvimento.

O autor é responsável pela escolha e apresentação dos factos contidos neste livro e pelas opiniões nele expressas, as quais não são necessariamente as da Unesco e não vinculam a Organização.

Para mais informações, contacte: Projecto sobre a Criança e o Meio Ambiente Familiar Unesco, 7 Place de Fontenoy, 75700 Paris, França

ÍNDICE

Prefácio ...............................................................

Nota prévia .........................................................

Agradecimentos ...................................................

I

I1

I11

IV

V

VI

Introdução ...................................................

O significado dos conceitos e o estádio dos nossos conhecimentos ...............

Porquê investir no desenvolvimento da primeira infância? ....................................

A evolução da intervenção precoce no desenvolvimento infantil ...........................

U m a estratégia da intervenção ........................

O que devemos fazer? ....................................

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PREFACIO O Mundo é, cada vez mais, um só. O progresso, sobre-

tudo dos meios de comunicação, esbateu as fronteiras e apro- ximou os homens. Quando uma criança morre hoje de fome, e m Moçambique ou no Bangladesh, logo os nossos olhos se abrem de espanto e comoção perante as imagens que a tele- visão imediatamente nos traz.

Não podemos, por isso, ficar indiferentes ou dizer que ignoramos. A realidade, dura, brutal, trágica vem, a cada hora, até nós, para nos pôr perante as nossas responsabili- dades.

Milhares de crianças - sabemo-lo, portanto - morrem e m cada dia no Mundo. Vítimas da guerra, da fome, da misé- ria, da ignorância e da intolerância dos homens. Muitas vezes vítimas de fenómenos naturais agravados ainda pela ganância dos que, irresponsavelmente, agridem o ambiente e põem e m risco as condições de sobrevivência dos seres humanos.

As crianças são as grandes, as maiores vítimas. Neste magnífico trabalho que agora se apresenta e m

língua portuguesa, diz o Dr. Myers que não nos devemos esquecer que “a geração que no ano 2000 irá concluir a escola primária já nasceu e já está a ser formada para o futuro. Os bebés e as criançasLde hoje serão os homens e as mulheres que, no século XXI, irão liderar, construir e sonhar o mundo de amanhã”.

Este “memento homo” que nos é feito pela extraordinária personalidade que é o Dr. Myers é precisamente o fecho deste extraordinário documento - “Um Tempo para a Infância’’ - e vem na sequência de um vibrante apelo a comunidade internacional para que se mobilize, cada vez mais, e cada vez mais intensamente, criando novas iniciativas e novos pro-

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gramas que não visem apenas a sobrevivência das crianças mas o seu integral desenvolvimento.

Só assim poderemos salvar o futuro da humanidade e ajudar a construir o mundo de paz, de justiça e de solida- riedade com que sempre sonhámos.

Lembrando os direitos da criança consignados na “Decla- ração dos Direitos da Criança”, adoptada pelas Nações Unidas e m 1989 e ratificada e aceite por muitos países (entre os quais o nosso), Myers faz uma análise profunda do que foi feito e do que importa fazer, no sentido de uma acção mais adequada as necessidades do presente, tendo sempre e m vista a preparação do futuro.

Este documento detém-se na análise de cenceitos funda- mentais como sobrevivência, crescimento e desenvolvimento, considerando-os processos simultâneos e não sequenciais chamando a atenção para as deficiências dos programas até agora aplicados, que não têm tido isso e m consideração, limitando-se, muitos deles, a salvar - e insuficientemente - as crianças do risco de morte.

Por isso mesmo, são preconizadas acções que visem, não só a sobrevivência da criança, mas o seu crescimento e desen- volvimento, que sejam aplicadas na primeira infância e atin- jam todos e tudo o que rodeia a criança nos seus primeiros tempos de vida, com destaque para a família. Programas que incluam todo o tipo de cuidados a ser ministrados para o seu bem-estar físico, psicológico e social.

k o direito a um “começo justo” de todo o ser humano que deve inspirar esses programas. São, portanto, necessárias estratégias de intervenção que tenham e m conta uma nova visão, mais global, dos problemas das crianças e que aten- dam aos diversos contextos, as várias necessidades e aos dife- rentes valores e heranças culturais dos povos a que elas pertencem e que não podem ser anulados.

Fazendo u m a análise das acções desenvolvidas por algumas das organizações e instituições vocacionadas para a defesa da criança e apoiando, apesar de tudo, o muito que têm realizado, pergunta-se que fazer agora e a que priori- dades atender, sublinhando as características que devem ter os programas de acção a desencadear.

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“Um Tempo para a Infância’’ é, pois, um trabalho de uma grande seriedade e importância que resultou de u m a observação e reflexão profundas sobre os problemas das crianças e m situação de risco no Mundo e também de u m a grande experiência feita no contacto com esse tipo de crianças.

A UNESCO, ao publicá-lo, revela o que tem sido e con- tinua a ser o sentido das suas grandes preocupações e inte- resses e demonstra, uma vez mais, a responsabilidade que assume de ser como que a consciência universal na denúnica das grandes desigualdades que dividem os homens nas suas origens e na procura das soluções para as eliminar.

A ignorância, a fome, o subdesenvolvimento teimam e m dividir os homens e m dois mundos. preciso impedir que essa divisão se alargue cada vez mais e irremediavel- mente.

Este livro é uma contribuição para esse grande desíg- nio. Será, estou certa, um guia, um motivo de inspiração e um apelo a todos os que querem que o mundo seja um só. Que seja um mundo de paz, de tolerância, de saber e de solidariedade entre todos os membros da grande família humana.

Maria Barroso Soares

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NOTA PRÉVIA

“Um Tempo para a Infância” pretendeu ser um contributo para o Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, organizado pelas Nações Unidas e m Setembro de 1990. O objectivo deste estudo é sublinhar a importância e promover u m compro- misso, ao mais alto nível político, com metas e estratégias susceptíveis de garantir a sobrevivência, a protecção e o desenvolvimento das crianças, já que de u m desenvolvimento harmonioso e integral do potencial dos seus membros mais jovens depende o progresso das sociedades humanas.

C o m base n u m profundo conhecimento teórico desta pro- blemática, e muitos anos de experiência prática, o Dr. Myers realça o significado que o desenvolvimento da primeira infância tem para a comunidade internacional, no limiar do século XXI. Ele recorda-nos que, para milhões de crianças, a infância é u m tempo de sofrimento e indica-nos, com clareza, o que é necessário fazer. Ele solicita também a nossa atenção para a dupla tragédia que a angústia destas crianças e das suas famílias representa, quando se considera que muitos dos problemas que as afligem poderiam ser mitigados, através de u m a aplicação mais generalizada da experiência e do saber acumulados sobre desenvolvimento na primeira infância.

O seu trabalho representa, pois, u m apelo a comunidade internacional para que aceite o desafio de cuidar das crianças do mundo inteiro e fomente, rapidamente, programas de sobre- vivência e desenvolvimento infantil, abrangentes, integrados e esclarecidos, que assegurem a preparação para o novo século. Esta necessidade é tão premente que, e m consciência, não é possível permitir que este apelo a u m “começo justo” para todas as crianças continue ignorado por mais tempo.

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D e forma convincente, o Dr. Myers descreve as reali- zações alcançadas e as dificuldades sentidas pelos pais, educadores, comunidades e governos de diferentes partes do mundo. A sua premissa básica - de que a luta travada para salvar a vida das crianças deverá ser acompanhada de um esforço para dar um sentido a sua existência - deverá constituir-se no princípio orientador e na preocupação de todos aqueles que trabalham no domínio dos cuidados a primeira infância, desenvolvimento e educação.

Sendo uma das inúmeras organizações envolvidas na problemática do desenvolvimento na primeira infância e da educação, a Unesco está plenamente consciente da importância desta tarefa. A sua experiência e m matérias educativas é vasta, e o balanço das suas realizações, e m prol de uma melhoria da condição da criança nas zonas mais deprimidas do mundo, inequivocamente positivo.

Neste empreendimento de vital importância, que con- siste e m educar e apoiar as crianças, os seus pais e famílias, as agências internacionais enfrentam grandes responsabi- lidades, mas também novas oportunidades, como sublinhou o Director-Geral da UNICEF, James P. Grant, na sua bri- lhante alocução perante o Conselho Executivo da Unesco, e m Novembro de 1988:

“Vivemos numa era particularmente emocionante, em que novas oportunidades se nos deparam: existe uma nova e crescente capacidade para municiar as pessoas do mundo inteiro com os conhecimentos, que lhe permi- tirão proteger e sustentar as suas famílias e, em par- ticular, os seus filhos.”

O mais recente projecto da Unesco “A Criança e o Meio Familiar”, de natureza interdisciplinar e interagências - em colaboração, designadamente, com a UNICEF e a OMS -, propõe-se responder directamente a este apelo. Fazendo incidir os seus esforços e m áreas tão vitais como a nutrição, a es- timulação precoce, as práticas educativas e m contextos de conturbação e mudança, os défices infantis, a educação pré-

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-escolar e a mobilização de recursos, tanto actuais como tradi- cionais, para a promoção das competências e do bem-estar da criança, a Unesco busca dar o seu contributo para um avanço significativo e sustentado na garantia de um começo justo para todas as crianças.

N a sua conferência pública “ W h o Cares For Children?”, proferida na Unesco e m Setembro de 1989, Urie Brofenbren- ner - um grande amigo das crianças e um pioneiro da investigação sobre a infância - declarou:

“Ver crianças, aparentemente condenadas a uma existência de fracasso e sofrimento, desabrochar em adultos competentes e afectuosos, irá despertar uma renovada esperança nas famílias e nações do mundo inteiro e, e m última análise, desencadear a dinâmica mais poderosa que conduzirá ao êxito dos nossos esforços. ”

Esta dinâmica não será uma resultante de esforços iso- lados; todos partilhamos a responsabilidade de querer e de trabalhar para a concretização desta meta.

Federico Mayor Director-Geral da Unesco

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AGRADECIMENTOS

A elaboração deste documento só foi possível devido ao apoio de várias organizações que, durante os últimos seis anos, integraram o Consultative Group on Early Childhood Care and Development. O Consultative Group é um disposi- tivo interorganizacional que se dedica a recolha, síntese e disseminação de informação sobre cuidados e desenvolvimento na primeira infância, especialmente sobre os programas e m curso nos países e m vias de desenvolvimento. Estas organi- zações patrocinaram a elaboração de muitos dos estudos conceptuais e das revisões bibliográficas que serviram de base as páginas seguintes. Foi também o seu apoio que m e propor- cionou o privilégio de m e poder dedicar a reflexão e a escrita. As três principais organizações, que participaram e con- tribuíram para as actividades do Consultative Group são: a Fundação Ford, a UNICEF e The Agency for International Development. Outras organizações que também participaram são: a Unesco, o International Development Research Centre, a Fundação Aga Khan, a Corporação Carnegie, o Banco Mundial, a Fundação Rockfeller, “Save the Children”, o Inter- national Child Development Centre, a Fundação Bernard Van Leer, a Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional e a American Health Foundation.

N e m as actividades do Consultative Group, nem este documento, teriam sido possíveis sem o apoio da HigWScope Educational Research Foundation e, e m especial, do seu Presidente, David Weikart. A HigWScope coadjuvou o Con- sultative Group, prestando-lhe assistência e m termos de consultadoria técnica, e fornecendo-lhe a sua sede organi- zacional e administrativa, onde funcionou a Unidade de

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Coordenação. Quero também dirigir um agradecimento espe- cial a Unesco e aos membros do Projecto “A Criança e o Meio Familiar”, que se excederam, muito para além do cumpri- mento das suas obrigações, para que este livro tomasse forma e fosse publicado.

Finalmente, quero exprimir a minha gratidão a minha colega Cassie Landers e aos membros do Comité Consultivo do Consultative Group pelo seu incentivo moral e inte- lectual.

Robert G. Myers Cidade do México, Junho 1990

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I INTRODUÇÃO

Os cuidados a prestar a infância e o desenvolvimento social, intelectual e físico dos recém-nascidos e crianças e m idade pré-escolar, particularmente nos países e m desen- volvimento, são os tópicos que iremos abordar neste docu- mental. Em questão está o bem-estar e o desenvolvimento das crianças do Nepal, da Nigéria, da Nicarágua e de tantos outros países que, apesar de terem nascido e m condições de extrema pobreza e de viverem e m constante risco de vida, conseguem sobreviver. O número destas crianças tem vindo a aumentar e, para as suas famílias, que subsistem nos limites da sobrevivência, eles representam uma bênção, uma espe- rança para o futuro, mas também um problema quotidiano.

Pelo menos 12 e m cada 13 crianças, nascidas e m 1990, conseguirão sobreviver até atingirem o primeiro ano de vida. Comparando este número com a estatística de 1960 - 5 e m cada 6 crianças - torna-se claro que, nos últimos 30 anos, a promoção da sobrevivência infantil conheceu avanços signifi- *

_ _ _ _ _ _ Este documento baseia-se num livro intitulado “The Twelve W h o

Survive”, a ser publicado pela Routledge, Londres, nos finais de 1991. Este livro irá conter revisões bibliográficas das investigações que estabeleceram as bases científicas de muitos enunciados que se encontram nas páginas seguintes, e que, neste documento, foram omitidas. T a m b é m aqui omitimos discussões exaustivas e m torno das temáticas relativas a integração (ou convergência) dos programas, a participação comunitária, as transformações verificadas nas práticas educativas, ao alargamento da dimensão da in- tervenção e aos custos envolvidos. Contudo, as ideias-chave de cada u m desses capítulos foram incorporadas neste ensaio e as conclusões apresen- tadas são idênticas.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

cativos. As projecções para o ano 2000 sugerem que 19 e m cada 20 crianças nascidas conseguirão sobreviver durante o primeiro ano de vida.

N a próxima década, a criança cuja vida se encontra ainda e m risco irá, certamente, ser motivo de muitas preocupações e despender-se-ão avultadas somas na tentativa de a salvar, num esforço que, aliás, se justifica plenamente. Mas que irá suceder aquelas doze ou dezanove que conseguem sobreviver? Quem se irá preocupar com elas durante os anos mais críti- cos da sua formação? Quem irá olhar para além da sobre- vivência, interrogando-se e, se possível, procurando respostas para a questão: “Sobrevivência para quê?”

Infelizmente, muitas destas crianças não superarão nunca as condições de pobreza e stress,’que começaram por pôr e m risco a sua sobrevivência. Estes e outros factores constituem u m a real ameaça ao seu normal desenvolvimento físico, mental, social e emocional, durante os primeiros meses e anos de vida. Por negligência, milhões de crianças são conde- nadas a uma existência de inércia, dependência, improdu- tividade e frustração. Privadas da possibilidade de desen- volver as suas capacidades, tornar-se-ão, frequentemente, incapazes de lidar adequadamente com um mundo em rápida transformação e de crescente complexidade, e impedidas de participar na construção de um mundo melhor. Estas cri- anças merecem um “começo justo” mas, ao invés, são sujeitas a uma “falsa partida” e, desde o início, marginalizadas.

Como parte do processo de concepção de uma interven- ção que, visando “além da sobrevivência”, realize o ideal de um “começo justo” para todas as crianças, este documento oferece:

- U m a definição simples do conceito de “desenvolvimento infantil”, diferenciando-o dos conceitos de sobrevivência e de crescimento, e relacionando-o com o conceito de cuidados a infância. - U m a fundamentação, que justifique o investimento

e m programas de cuidados e desenvolvimento na primeira infância.

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INTRODUÇ AO

- U m a breve descrição da evolução da intervenção neste domínio e um esboço da actual configuração dos programas já institucionalizados, procurando dar uma atenção particu- lar as mudanças ocorridas a partir de 1979, Ano Internacional da Criança (AIC). - U m a estrutura programática e m três dimensões, que

articula os estádios de desenvolvimento da criança com 5 abordagens complementares e com um conjunto de orientações para a intervenção. - U m a descrição sucinta de vários programas represen- tativos das diferentes modalidades de apoio e promoção do desenvolvimento na primeira infância. - Algumas conclusões sobre as medidas necessárias a

um aumento do investimento, que permita passar da retó- rica a prática no domínio do apoio e do desenvolvimento da criança.

Apesar de corrermos o risco de nos anteciparmos as con- clusões, um breve resumo das teses fundamentais fornecerá ao leitor algumas linhas condutoras na leitura deste docu- mento:

1. Não existe qualquer mistério no processo de desen- volvimento infantil, uma vez clarificados alguns dos equívocos e ideias erróneas mais generalizadas.

2. Nos últimos anos temos assistido a avanços signifi- cativos na evolução dos conhecimentos teóricos. Com efeito, sabemos mais do que acreditamos saber. Todavia, a aplicação prática encontra-se num estádio de evolução muito inferior relativamente aos conhecimentos que já possuímos.

3. Existem fortes argumentos de ordem biológica, so- cial, económica e política, que justificam um maior inves- timento e m programas de promoção dos cuidados e do desen- volvimento na primeira infância.

4. As mudanças de ordem demográfica, social, eco- nómica e política provocaram quer um acréscimo da procura,

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

quer uma maior necessidade de programas integrados de cuidados e de desenvolvimento da criança.

5. Em alguns países, este tipo de programas destina- dos a crianças dos O aos 6 anos conheceu uma expansão notável. Contudo, apesar de se constatar um crescimento global significativo, a sua taxa de cobertura permanece baixa, a sua distribuição é desigual, o nível de qualidade continua deficiente e pouca atenção tem sido dada a aprendizagem e desenvolvimento das crianças com idade inferior a 3 anos, pelo que muito há ainda a fazer.

6. Esta proliferação de experiências, ao longo da última década, forneceu-nos uma grande diversidade de modelos de intervenção potencialmente eficazes e financeiramente viáveis.

7. A sólida fundamentação teórica, a crescente neces- sidade e procura, os conhecimentos e experiências já acumu- lados, que nos mostram o que pode ser feito, conjugam-se num poderoso argumento e m defesa do investimento na pri- meira infância. Apesar disso, a resposta da maioria das or- ganizações internacionais e dos governos permanece tímida e o investimento continua a ser ínfimo. A resposta da comunidade internacional tem sido concebida dentro de hori- zontes estreitos, colocando a tónica na saúde, embora mais recentemente pareça estarmos a assistir a uma maior aber- tura a novas iniciativas.

8. Apesar dos governos frequentemente se adiantarem as organizações internacionais na resposta a estes proble- mas, também eles se encontram, não raro, condicionados por factores de ordem política, pela inércia e segmentação buro- cráticas, e por todo um conjunto de atitudes e falsas con- cepções face a problemática do desenvolvimento infantil, que tardam e m mudar.

9. D e entre as razões apontadas para justificar o baixo nível de investimento, as mais comuns referem-se aos custos envolvidos e as dificuldades enfrentadas para encontrar fon-

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INTRODUÇAO

tes de financiamento. Admitindo embora que estes aspectos nunca deixarão de constituir matéria de preocupação, existe, ainda assim, um número suficiente de alternativas eficazes de baixo custo, o que nos permite afirmar que o baixo nível de investimento, que se verifica actualmente no desen- volvimento infantil, não resulta da falta de recursos. A questão reside, fundamentalmente, na aquisição de novas atitudes, e m tirar partido dos conhecimentos resultantes das iniciati- vas já concretizadas, na procura de novos meios para motivar e solicitar as organizações governamentais e não-gover- namentais a incluírem, nos programas pelos quais são responsáveis, componentes de desenvolvimento infantil, e na mobilização da vontade política e social e m torno destas iniciativas.

10. Finalmente, porque o processo de implementação de programas de promoção dos cuidados e do desenvolvimento infantil está ainda no seu início, temos a possibilidade de o conceber de forma a evitar os erros que foram cometidos noutros domínios de acção. Temos a oportunidade, e a obri- gação, de trabalhar árdua e criativamente para a criação de uma “oportunidade justa” para todas as crianças, a medida que elas evoluem, do nascimento a entrada na escola e do meio restrito da familia para o mundo exterior.

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I1 O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTADIO DOS NOSSOS CONHECI- MENTOS

Um técnico de uma organização internacional declarou recentemente: “É óbvio que uma criança tem primeiro que sobreviver antes de começar a desenvolver-se.’’ Nós, porém, afirmamos que esta é uma noção infundada, ou seja, que a sobrevivência, o crescimento e o desenvolvimento são processos simultâneos, e não sequenciais. Qualquer iniciativa que vise promover a sobrevivência ou o crescimento facilita o desen- volvimento e vice-versa.

U m a mulher grávida manifesta o seu espanto perante uma técnica de serviço social: “Quer dizer que quando o meu bebé nascer será capaz de m e ver?’ Sim, de facto, e esta criança será também capaz de ouvir, sentir os outros tocar-lhe e comu- nicarem com ela, para além de muitas outras coisas, que irão permitir que os outros a ajudem a desenvolver-se.

A directora de um infantário explica com orgulho a um visitante: “AS crianças no nosso centro são bem tratadas. São alimentadas a horas e a comida é boa. Veja como o local está limpo. Estão quentes e o médico vem examiná-las uma vez por mês.” Todos estes aspectos são, certamente, importantes mas o conceito desta responsável sobre cuidados infantis é limitado, já que parece omitir a resposta as necessidades sociais e intelectuais da criança. Um funcionário governamental, quando interrogado sobre

os apoios existentes a programas de desenvolvimento infantil,

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

pede esclarecimentos: "Programas de desenvolvimento infantil? Oh, quer dizer, como nas escolas pré-primárias, quando as crianças brincam com aqueles cubos coloridos?" Não, não exactamente. O desenvolvimento pode ser facilitado através das mais diversas modalidades de intervenção, nelas se incluindo os programas de nutrição, de saúde e de educação e, também, através de iniciativas que visem os pais ou outros agentes educativos, não se restringindo, pois, a intervenção directa junto das crianças.

Cada um dos exemplos com que começámos por introduzir este capítulo ilustra uma das concepções erróneas mais vulgarizadas, ou lacunas de conhecimento, acerca do desenvolvimento e dos cuidados a prestar a primeira infância. Esta insuficiente compreensão ou clareza na definição de conceitos, por seu turno, repercute-se negativamente nas atitudes dos pais, profissionais, políticos, técnicos de planeamento e doadores e, através deles, nas crianças que se encontram e m desenvolvimento. Não existe um entendimento claro sobre os conceitos de sobrevivência infantil, crescimento, desenvolvimento e programa de cuidados infantis, e as respectivas designações têm significados diversos para diferentes pessoas, dando origem, por vezes, a equívocos. Embora os conhecimentos que possuímos sobre o processo de desenvolvimento sejam já apreciáveis, nem sempre estes se encontram a disposição daqueles que lidam com as crianças, e que são chamados a tomar decisões sobre os programas de cuidados e desenvolvimento infantil.

Assim, neste capítulo, tentaremos responder as seguintes questões:

a) Qual o significado dos conceitos? - procurando clarificar o que entendemos por sobrevivência infantil, crescimento, desenvolvimento da criança, programa de cuidados infantis, e as relações existentes entre estes conceitos.

b) O que sabemos? - argumentando que sabemos de facto mais do que acreditamos sobre cuidados infantis e

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTbIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

desenvolvimento da criança e recorrendo a exemplos que demonstram que existem já bases suficientes, para nos permitir começar a implementar programas de acção, e que é grande o desfasamento entre os nossos conhecimentos teóricos e a sua aplicação prática.

O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS

Sobrevivência infantil

Paradoxalmente, o conceito de “sobrevivência” é, normalmente, definido pela negativa: sobreviver consiste e m não morrer. A sobrevivência dos lactentes consiste e m não morrer antes de atingido o primeiro ano de vida; a sobrevivência das crianças em idade pré-escolar, e m não morrer antes dos cinco anos. Em consonância com este conceito, os programas de sobrevivência infantil consideram um objectivo prioritário evitar a morte, objectivo cujo sucesso é avaliado pela redução da Taxa de Mortalidade Infantil (TMI) ou da Taxa de Mortalidade de Menores de 5 Anos (TMM5). O facto de a morte ser um acontecimento dramático e final simplifica este procedimento: os óbitos podem ser facilmente contabilizados, com algum rigor, mesmo admitindo que alguns casos nunca chegam a ser participados. No entanto, a morte raramente ocorre de forma súbita. A maioria das mortes acontece no término de um período de doença e deterioração, que pode prolongar-se dolorosamente, ou ser relativamente breve. Morrer é um processo e a morte o seu desenlace (Mosley & Chen, 1984).

D a mesma forma, viver é um processo cujo fim não consiste apenas na sobrevivência, mas no bem-estar físico, mental e social. Assim, a sobrevivência infantil pode ser definida positivamente, se for conceptualizada como algo mais do que evitar a morte. As crianças que sobrevivem podem

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

situar-se ao longo de um continuum que vai desde um estado próximo da morte devido a doença, até um estado de saúde. Quanto mais próximo, neste continuum, uma criança se encontra do estado de saúde, maiores serão as garantias de uma sobrevivência continuada. O processo pode, então, ser concebido como uma busca activa de um estado de saúde, de aproximação ao pólo saudável do eixo morte-doença-saúde, e m vez da mera prevenção ou suspensão do processo de morte.

A aceitação desta reconceptualização, numa acepção positiva, da sobrevivência infantil - como um processo de promoção de um estado de saúde no momento do nascimento e durante os primeiros meses e anos de vida - pressupõe ir além da análise das causas da mortalidade infantil e da implementação de programas tendentes a reduzi-la, e examinar e m que ponto do continuum saúde-crescimento- -desenvolvimento se situam as crianças. Implica conceber e implementar medidas destinadas a melhorar a sua saúde. U m a intervenção desta natureza impõe noções claras sobre e m que consiste, num sentido positivo, a aproximação a “um estado saudável” e terá necessariamente de abranger a promoção da saúde mental e social das crianças, tanto quanto o seu bem-estar físico.

Se a sobrevivência infantil for definida positivamente, e m vez de se limitar a fórmula “não morrer”, deve, então, ser expressa através de uma Taxa de Sobrevivência Infantil (TSI), ao invés de ser definida por um índice como a Taxa de Mortalidade Infantil. O sucesso dos programas deveria ser avaliado pelo aumento da taxa de sobrevivência, e m vez da diminuição da taxa de mortalidade. A TSI simplesmente inverte a TMI. Por exemplo, e m 1988, a TMI era de aproximadamente 77 mortes por cada 1000 crianças nascidas, isto é, esperava-se que 1 e m cada 13 crianças nascidas morresse, antes de atingir um ano de idade (Grant, 1988). A TSI seria de 923 por 1000, dando ênfase ao facto de que 12 e m cada 13 crianças atingem o primeiro ano de idade. A utilização deste indicador permite afirmar que a Taxa de Sobrevivência aumentou de 5 e m cada 6 crianças nascidas e m 1960, para 12 e m cada 13 e m 1988.

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTADIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

Sugerir a substituição da TMI por uma TSI1 representa algo mais do que uma simples mudança de siglas ou um jogo de números. Colocar o acento na vida, implícito na TSI, implica toda uma maneira diferente de pensar a questão, para além do mero evitar da morte, representado pela TMI. Este índice chama a atenção para o facto de que muitas crianças, apesar de consideradas “em risco”, conseguem de algum modo sobre- viver, e levanta questões sobre o seu estado e sobre as medidas tomadas para melhorar as suas condições de vida.

Crescimento

Crescer consiste e m aumentar de tamanho. Este processo ocorre quando aumenta o número de células no organismo, ou quando as células existentes aumentam de tamanho. As medidas mais utilizadas para avaliar o crescimento são o peso, a altura ou ambas. Estas medidas são relativamente fáceis de obter (se comparadas com os índices de desenvolvimento social ou psicológico) e existem normas que permitem compará-las. Esta facilidade de mensuração e a existência de padrões deu origem ao uso de gráficos de crescimento, baseados na altura eíou peso por idade, como forma adequada para avaliar o crescimento de uma criança.

O crescimento nas crianças pode ser conceptualizado como consistindo e m atingir uma certa “norma de cre~cimento’~ ou, então, ser concebido como um processo de aumento regular de tamanho. Temos assistido, ao longo dos últimos anos, a uma evolução gradual da abordagem normativa para uma conceptualização do crescimento enquanto processo. Um crescimento regular indica progresso; a ausência de

A publicação da UNICEF “The state of the World‘s Children, 1989” apresenta um capítulo especial com o título “A avaliação do desenvolvimento real” (pp. 73-90) no qual é apresentado um quadro que agrupa os diferentes países de acordo com u m a Taxa de Sobrevivência Infantil (p. 80). Contudo, a discussão continua a ser efectuada e m termos da Taxa de Mortalidade de Menores de 5 anos.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

crescimento (traduzida, por exemplo, pelo não aumento de peso) aponta para a necessidade de uma acção remediativa. Assim, o ponto exacto e m que uma criança se situa abaixo do padrão normal, num gráfico de crescimento, é menos importante do que o padrão de mudança individual, isto é, se houve aumento ou diminuição desde a última vez e m que o seu peso e altura foram medidos. Esta tendência para encarar o crescimento como um processo tem-se desenvolvido e m paralelo com o novo conceito de sobrevivência já esboçado e, como veremos, é congruente com as perspectivas mais actuais sobre desenvolvimento infantil.

O crescimento depende, efectivamente, da quantidade e diversidade de alimentos que uma criança ingere. Esta relação entre consumo alimentar e crescimento tem mesmo constituído uma das principais preocupações dos nutricionistas. Contudo, tem-se verificado, entre estes especialistas, u m a forte tendência para ignorar o facto de que o consumo alimentar não depende, apenas, da existência de alimentos disponíveis; este consumo é igualmente afectado pelo comportamento alimentar, o qual, principalmente nos primeiros anos de vida, é também um processo de natureza social, já que ocorre num contexto de interacção entre a mãe, ou outro membro da família, e a criança.

O crescimento depende não só da quantidade e qualidade de alimentos ingeridos, mas também da forma como o organismo os utiliza e assimila, a qual, por sua vez, dependerá do estado de saúde da criança. O organismo de uma criança que sofre de diarreia será, certamente, incapaz de fazer uma utilização adequada dos alimentos. Embora não tenha sido sempre este o caso, o efeito conjugado da ingestão de alimentos e do estado de saúde é, hoje, quase unanimemente reconhe- cido. Todavia, o crescimento físico, tal como a sobrevivência, pode igualmente ser condicionado pelo desenvolvimento social e psicológico, e pela libertação das condições de stress da criança e dos seus educadores, variáveis que muitas discus- sões sobre crescimento e nutrição continuam a ignorar. Equivale isto a dizer que a importância dos efeitos, na nutrição e na saúde, da qualidade destas interacções, críticas para o

I

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESThIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

desenvolvimento, não é ainda suficientemente compreendida ou aceite.

Desenvolvimento infantil

Desenvolvimento infantil e crescimento não são sinónimos, embora, como já sugerimos, os conceitos estejam interligados e os termos sejam, com alguma frequência, utilizados indistintamente. Enquanto o crescimento se define por uma mudança no tamanho, o desenvolvimento caracteriza-se por mudanças e m complexidade e função. U m a criança que aprende a coordenar os movimentos do olho e da mão com o objectivo de agarrar um objecto dá provas de ter acedido a uma forma mais complexa de pensamento, independentemente do seu tamanho, uma vez que a capacidade de agarrar vai implicar um maior domínio sobre o meio. Estas mudanças são de natureza diversa de um aumento de altura, de 70 para 75 centímetros, ou de um aumento de peso, de 10 para 12 quilogramas.

Embora seja difícil chegar a consenso sobre alguns aspectos do desenvolvimento infantil, a seguinte definição, apresentada numa terminologia intencionalmente simples, que seguidamente desenvolveremos pela análise das suas características, fornece-nos u m ponto de partida adequado para a discussão e para a acção:

O desenvolvimento infantil consiste num processo de mudanças através do qual a criança aprende a dominar níveis progressivamente mais complexos de acção, pensamento, emoção e interacção com os outros.

Tal como a sobrevivência e o crescimento, também o desenvolvimento pode ser conceptualizado e m termos do estádio atingido, avaliado, por exemplo, por um quociente intelectual ou de desenvolvimento, ou, ainda, pelo facto de a criança ter atingido, ou não, a coordenação de movimentos que lhe permite ser capaz de andar numa certa idade.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Contudo, tal como a nossa definição sugere, o desenvolvimento pode ser visto como um processo de múltiplas características:

1. O desenvolvimento é multidimensional: o seu campo de acção abarca a dimensão psicomotora (a capacidade de se movimentar e de coordenar os movimentos); a dimensão cognitiva (a capacidade de pensar e raciocinar); a dimensão emocional (a capacidade de sentir); e a dimensão social (a capacidade de estabelecer relações com os outros). Descrever adequadamente o desenvolvimento infantil implica, pois, algo mais do que medir a forma como a criança está a desenvolver a sua capacidade de pensar ou de andar; torna-se necessário considerar, simultaneamente, todos os domínios do desenvolvimento. Ao longo deste ensaio, contudo, a tónica será colocada nas dimensões mental, social e emocional do desenvolvimento, e referir-nos-emos frequentemente ao desenvolvimento “psicossocial”, uma designação que abrange estas três dimensões2.

2. O desenvolvimento da criança é um processo integral, isto é, os diversos vectores do desenvolvimento infantil estão interligados e devem ser considerados como um todo. Mudanças e m qualquer uma das dimensões influenciam e são, por sua vez, influenciadas pelo desenvolvimento nas outras. O desenvolvimento emocional, por exemplo, tem repercussões no desenvolvimento físico e cognitivo: se as condições e m que a criança vive perturbam o seu equilíbrio

_-____ Por vezes, as dimensões moral e espiritual são concebidas como

distintas das já citadas. Kohlberg (1976), por exemplo, estabeleceu uma sequência de estádios de desenvolvimento moral. Em algumas culturas, atingir um estado interior de contentamento e serenidade, resultante do autocontrole sobre a avidez, a ira, ou a inveja, é considerado um objectivo espiritual importante para o desenvolvimento humano, que se deve começar a desenvolver na primeira infância. Embora admitamos a necessidade de desenvolvimento moral e espiritual, não abordamos especificamente estas dimensões, preferindo considerá-las como valores determinados culturalmente, que servem de matriz ao desenvolvimento social, emocional e cognitivo.

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTbIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

emocional e as . competências, necessárias para enfrentar adequadamente essa ameaça, não se encontram ainda consolidadas, os efeitos nocivos far-se-ão também sentir no desenvolvimento físico e na aprendizagem. Esta interacção entre domínios conceptualmente distintos, mas organicamente interligados, impõe uma atenção centrada na “criança como um todo” e uma ênfase numa abordagem “total” ou “integrada” dos programas de. desenvolvimento infantil. A ênfase no “desenvolvimento psicossocial” não pode, pois, ser exclusiva, e deve ser encarada dentro de uma mais ampla concepção de desenvolvimento, que integre igualmente o desenvolvimento físico.

3. O desenvolvimento processa-se de forma contínua. O processo de desenvolvimento começa antes do nascimento e continua ao longo de todo o ciclo da vida. N a sua dimensão temporal, assim como no seu conteúdo, o desenvolvimento da criança deve, pois, ser encarado como uma parte do processo mais global do desenvolvimento da pessoa humana. Debruçar- -nos-emos aqui sobre a criança, desde a concepção até aos cinco ou seis anos de idade, altura e m que a criança começa a estabelecer relações fora do meio familiar. Mas, aceitar a continuidade do processo implica, também, dar atenção as repercussões que o desenvolvimento na primeira infância terá no desenvolvimento ulterior, e nos comportamentos e aquisições ao longo de toda a vida.

Afirmar que o desenvolvimento é um processo. contínuo equivale, pois, a dizer que uma criança está permanentemente e m desenvolvimento; o que acontece num dado momento terá consequências para o futuro. Todavia, esta noção de continuidade, tal como a perspectivamos, não significa que as aquisições alcançadas num dado momento perdurem indefinidamente, ou que o sentido do desenvolvimento seja sempre positivo; as mudanças ambientais têm o poder de fazer regredir ou reforçar as aquisições já efectuadas. A noção de continuidade também não implica que uma criança que sofreu um atraso ou problemas no início da vida permaneça,

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

necessariamente, e m atraso para sempre. Pelo contrário, as crianças são muito resistentes, particularmente durante os primeiros anos de vida. U m a melhoria das condições ambientais pode contribuir para reverter o processo de deterioração. Porém, se estas se mantiverem desfavoráveis, os défices acumular-se-ão, originando um atraso permanente. Inversamente, u m a intervenção adequada pode levar a recuperação, como iremos demonstrar.

4. O desenvolvimento infantil ocorre em interacção. O desenvolvimento acontece a medida que a criança reage aos estímulos do seu meio, aprende através desta interacção, e procura influenciar o seu ambiente físico e social. Este processo ocorre e m interacção com objectos e pessoas. Por esta razão, a promoção do desenvolvimento requer algo mais do que fornecer-lhe “estimulação”. É igualmente necessário que as suas iniciativas obtenham resposta. U m a criança contribui activamente para a construção do seu meio, tomando iniciativas que lhe permitem influenciar o ambiente circundante. Este facto é essencial na compreensão de como o estado de saúde e de nutrição são condicionados pelo desenvolvimento psicológico e social e vice-versa.

5. O desenvolvimento obedece a um padrão geral mas é, simultaneamente, único. Todas as crianças se desenvolvem, segundo uma sequência ou esquema geral, mas o ritmo, natureza e qualidade desse processo variam de criança para criança. Estas variações são um produto da constituição biológica de cada indivíduo e do meio específico com que ele se defronta para sobreviver e se desenvolver.. O ritmo de desenvolvimento difere de cultura para cultura, assim como de criança para criança.

Do ponto de vista teórico, o processo de desenvolvimento é, por regra, descrito e m termos de “estádios”, um referencial que permite a compreensão do ponto e m que cada criança se situa neste processo de mudanças contínuas. Os diferentes autores divergem, porém, nos seguintes aspectos:

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTbIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

- quanto a possibilidade de identificar traços distintos, que permitam diferenciar um estádio, período ou etapa, de um outro; - quanto aos aspectos específicos do desenvolvimento

que são tomados e m consideração na definição dos estádios, por exemplo, físico, social ou sexual; - quanto ia relação existente entre estádios de desenvol-

vimento e idade cronológica: quão breve e delimitado no tempo deverá ser cada estádio, comparado com definições mais amplas referidas a intervalos temporais mais longos? - quanto a universalidade dos estádios: deverão estes

ser sempre os mesmos e m todas as culturas? - deverá a criança passar sequencialmente através dos

estádios? Será a regressão possível? Como é que os problemas enfrentados num estádio irão afectar os comportamentos num outro estádio? (Thomas, 1985 Cp. 2). Apesar destas divergências, a noção de estádio pode, ainda assim, ser utilizada com vantagens práticas e teóricas, se aplicada criteriosamente.

Será que existe um denominador comum ao desen- volvimento infantil e m diferentes culturas? Quaisquer que sejam as circunstâncias e m que o processo ocorra, a meta principal do desenvolvimento infantil consiste na adaptação do indivíduo e na obtenção de um controle sobre o seu meio. Porque as condições ambientais podem ser restritivas, alguns analistas referem, entre os objectivos do processo de desenvolvimento, a capacidade para as transformar. Se é verdade que, a curto prazo, a adaptação e o controle se referem essencialmente as condições imediatas, quando, todavia, se considera todo o ciclo da vida, a adaptação e o controle podem e devem incluir o ajustamento a uma grande diversidade de contextos, com diferentes requisitos para a sobrevivência e a adaptação. Em consonância com este objectivo, podemos conceber o desenvolvimento como “. . . uma mudança duradoura na forma como uma pessoa percepciona e lida com o seu meio ambiente” (Brofenbrenner, 1979).

O objectivo desenvolvimental de adaptação, domínio e transformação do meio imediato difere radicalmente dos objectivos da sobrevivência, de ser saudável, d de atingir um

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

certo nível de coordenação ou u m quociente de inteligência mais elevado. Impõe-se, pois, uma abordagem desmassificada e descentralizada a problemática do desenvolvimento na primeira infância, que leve e m consideração os diversos sistemas culturais e ecológicos, que colocam a criança perante diferentes exigências.

Cuidados infantis

O conceito de cuidados infantis insere-se numa categoria um pouco diferente dos três conceitos já abordados. Esta noção engloba todas as acções tendentes a promoção da sobrevivência, do crescimento e do desenvolvimento. Cuidar de uma criança significa satisfazer as suas necessidades básicas. Ora, as necessidades básicas que emergem no processo de desenvolvimento não se restringem a protecção, nutrição e cuidados de saúde; incluem igualmente afecto, interacção e estimulação, segurança induzida pela consistência e previsibilidade do meio envolvente, exploração e descoberta através do jogo. Estas necessidades formam um todo. Um meio favorável será aquele que dê resposta a todas elas, mesmo ressalvando o facto de que culturas diferentes tenderão a defini-las de forma um pouco diferente, atribuindo-lhes uma ordem de prioridade distinta.

No mínimo, podemos especificar as seguintes actividades no âmbito dos cuidados a ter com a criança: fornecer-lhe segurança e abrigo, alimentação e vestuário, cuidar da sua higiene, prevenir e curar as doenças, demonstrar-lhe carinho e afecto, interagir e brincar com ela, estimulá-la e socializá-la a sua cultura.

Definir “cuidados” desta forma implica que, e m nossa opinião, programas de cuidados infantis e programas de desenvolvimento integrado deveriam ser uma e a mesma coisa. Neste documento, utilizaremos o conceito de “cuidados” no seu sentido mais amplo, acima referido, que abrange o domínio da saúde e outros aspectos da assistência institucional, mas o ultrapassa, incluindo, igualmente, todo o tipo de cuidados que visem o bem-estar psicológico, social e emocional da criança.

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTADIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

No entanto, o conceito de “cuidados” é normalmente utilizado com um sentido muito mais restrito, apresentando u m a significação diferente para os diversos grupos profissionais que trabalham no domínio da infância. Para os profissionais de saúde, por exemplo, tratar-se-á funda- mentalmente .de cuidados de saúde, definidos e m termos de prevenção e cura de infecções e doenças, e, analogamente, os “cuidados infantis” referir-se-ão a assistência prestada a mãe no âmbito dos programas de saúde materno-infantil.

Quando associado a programas que visam facilitar as condições de desempenho do papel “produtivo” da mulher, o conceito refere-se as providências tomadas no sentido de assegurar a protecção da criança, enquanto a mãe trabalha. C o m frequência, estas providências são de natureza institucional, privilegiando as funções de “guarda” e delegando noutra pessoa ou instituição a responsabilidade temporária de assegurar que a criança esteja protegida, convenientemente vestida e alimentada, e acauteladas as suas necessidades de saúde3.

Esta associação aos cuidados institucionais significa que os programas de cuidados infantis são normalmente enquadrados numa categoria distinta dos programas de desenvolvimento da criança. De facto, estas iniciativas tendem, na sua maioria, a subestimar as componentes de estimulação e educação, cujo objectivo é promover o desenvolvimento mental e social da criança.

Se a questão dos cuidados a prestar a primeira infância for abordada sob o ponto de vista da segurança social, ela aparecerá conotada com a assistência institucionalizada e, com frequência, com programas para crianças indigentes, vítimas de maus tratos ou abandonadas. Estes programas também possuem uma forte tradição institucional. Contudo,

___-__ Por exemplo, quando o termo “care” é traduzido e m francês, a

designação correspondente é “protecção”, deixando pouco campo de manobra para u m a definição mais lata, que englobe a atenção ao desenvolvimento da criança. T a m b é m no modelo adoptado pela UNICEF para analisar o “ajustamento estrutural”, os cuidados infantis aparecem referidos num dos modelos, inseridos na categoria “maus tratos”, o que é consistente com a ideia de “protecção” (Comia e col., 1988).

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

quando estão e m discussão os cuidados a infância, parece-nos adequado não restringirmos o debate as formas de assistência institucional, alicerçada e m centros próprios, mas incluir nele os cuidados prestados directamente pela mãe, ou por outras pessoas da família e da rede de relações pessoais.

Esta discussão de conceitos e termos pode parecer, a alguns leitores, demasiado elaborada, enquanto outros considerá-la-ão uma simplificação. No entanto, as concepções erróneas e a ausência generalizada de clareza, que caracterizam muitos debates, parecem exigir uma tentativa de clarificação e de apresentação destes conceitos-chave numa linguagem simples, susceptível de estabelecer a acepção e m que os termos sobrevivência infantil, crescimento, desenvol- vimento e cuidados serão usados neste documento.

Sobrevivência, Crescimento e Desenvolvimento: As relações entre a Saúde, a Nutrição e o Desenvolvimento Social e Psicológico

A forma como as pessoas pensam na sobrevivência, no crescimento e no desenvolvimento reflecte-se no modo como elas concebem as relações existentes entre o estado de saúde, o estado de nutrição e o bem-estar psicossocial. A maioria dos povos pensa na saúde numa perspectiva holística, ou seja, as dimensões física, social e espiritual não são concebidas como existindo separadamente. Por exemplo, os herbalistas de Oaxaca, no México, a pergunta “O que significa ser saudável?”, dão a seguinte resposta:

“Estar de saúde é quando u ma pessoa se sente contente, calma, tem vontade de trabalhar e de comer. Os seus olhos brilham. É quando uma pessoa não tem problemas com os familiares, vizinhos ou autoridades e significa estar de bem com Deus e os seus semelhantes. Em resumo, é sentir-se feliz.”

Por contraposição, a tendência para decompor a saúde e m diversas componentes e colocar a tónica na saúde física é

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lugar-comum entre os médicos, resultando, e m parte, da era de especialização e m que vivemos. Ela reflecte, também, o primado atribuído a u m modelo biológico da doença, h medida que a profissão médica se desenvolveu. Estas tendências são evidentes e m todo o mundo, na formação dos médicos, e encontram-se patentes nos programas de acção dos governos e das organizações internacionais, que visam a sobrevivência, e m primeiro lugar, e o desenvolvimento depois, como se de processos sequenciais se tratasse.

Como um primeiro passo para uma abordagem integrada das questões ligadas a sobrevivência, crescimento e desen- volvimento, e para a unificação das necessidades físicas e psicossociais da criança, torna-se necessário operar u m a mudança na percepção das relações existentes entre saúde, nutrição e bem-estar psicossocial. A Figura 1 ilustra a forma como essa relação é, actualmente, interpretada por muitos técnicos e responsáveis pelo planeamento, e compara esta abordagem com uma nova formulação dessa relação.

FIGURA 1 Perspectiva actual e Perspectiva Emergente das Relações entre Nutrição, Saúde e Bem-Estar Psicossocial

Nutrição Saúde

/ /

Bem-Estar psicossocial

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

A perspectiva mais generalizada entre médicos especialistas reconhece uma relação de duplo sentido entre o estado de saúde e o estado de nutrição, representada na Figura pela dupla seta entre S e N. A doença aumenta a probabilidade de malnutrição e vice-versa.

Contudo, já a relação quer entre o estado de nutrição, quer entre o estado de saúde, e o bem-estar social é vista como tratando-se de uma relação de sentido único, que vai de N para PS ou de S para PS, ou seja, que reconhece os efeitos debilitantes que condições de saúde precárias podem ter no desenvolvimento, mas dá uma menor atenção ao efeito inverso, isto é, a incidência do desenvolvimento psicossocial (ou da sua debilidade) no estado de saúde. D o mesmo modo, os efeitos do estado de nutrição no desenvolvimento psicossocial são, geralmente, aceites, explicando-se esta relação principalmente pelo facto de a malnutrição constituir um factor que afecta o crescimento e o desenvolvimento do cérebro ou o nível de energia da criança. É crença geral, justificada, aliás, que as intervenções que visam melhorar o estado nutricional têm efeitos favoráveis, tanto no desenvolvimento social e psicológico como no desenvolvimento físico. Porém, já não se aceita tão facilmente que também as intervenções no desenvolvimento psicossocial possam influir no estado nutricional e no cresci- mento.

Embora esta formulação possa parecer caricatura1 para alguns leitores, e m particular para aqueles que tendem a ver estas componentes como indissociáveis, as relações que ilus- tramos tendem, com frequência, a reflectir-se nas principais linhas de acção e na implementação de programas.

Gradualmente, porém, temos assistido a emergência de uma nova perspectiva, representada na segunda metade da Figura 1, sobre as relações entre saúde, nutrição e bem-estar psicossocial. De acordo com esta perspectiva, podemos conceber um efeito recíproco entre o bem-estar psicossocial e a saúde ou a nutrição, tal como entre a saúde e a nutrição.

Se a nova formulação for aceite, os programas de saúde e nutrição, com vista a “sobrevi~ência’~, deverão incluir medidas tendentes a promover o bem-estar psicológico e social. Este

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTADIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

ponto de vista defende que uma melhoria nas condições sociais e psicológicas da criança e dos seus educadores pode condicionar, favoravelmente, a sobrevivência e o desenvol- vimento físico. Os resultados empíricos que sustentam esta posição são sólidos e e m número crescente (Zeitlin & Mansour, 1985; Myers & Routledge, 1992).

O ESTbIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

Algures entre o óbvio e o incerto, sabemos mais do que acreditamos saber sobre desenvolvimento na primeira infância, e sobre as iniciativas a levar a efeito para facilitar e promover este desenvolvimento. Esta área tem conhecido uma rápida evolução nas últimas duas décadas, trazendo novos conhecimentos e algumas mudanças de orientação. Simultaneamente, os resultados das experiências já efectuadas neste domínio têm-se vindo a acumular e m ritmo acelerado. Este domínio continuará, sem dúvida, a desenvolver-se e, a medida que mais experiências concretas forem levadas a prática, também os nossos conhecimentos se expandirão. Todavia, o corpo de conhecimentos e experiências que já possuímos é mais do que suficiente, apesar das lacunas ainda existentes, para servir de orientação a implementação da intervenção.

A base teórica

Consideremos as seguintes afirmações derivadas da literatura existente sobre desenvolvimento infantil, cada uma delas com implicações importantes para o desenvolvimento de programas de acção. Estes enunciados ilustram conhecimentos de ordem científica, que podem ser de grande utilidade prática. Algumas destas afirmações são óbvias, porém consideramos que, devido ao seu alcance, nunca será demais repeti-las. As asserções menos evidentes poderão ser alvo de alguma discussão, mas, mesmo essas, são aceites,

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

pela maioria dos especialistas e m desenvolvimento infantil, como hipóteses de trabalho plausíveis.

1. Logo após o nascimento, uma criança é capaz de ver e ouvir, e o conjunto de predisposições com que é dotada a nascença preparam-na para apreender, aprender e fazer exigências ao seu meio. Através do choro, das suas expressões faciais e movimentos, um bebé é capaz de comunicar desde o momento de nascimento. As implicações deste facto são de grande importância. U m a vez que, desde o nascimento, a criança tem capacidade para interagir e aprender através do contacto com o meio circundante, os programas de promoção do desenvolvimento podem abranger os recém-nascidos, ajudando os pais a responder adequadamente as solicitações da criança e a melhorar a sua comunicação através da interacção com o bebé.

2. Desde o nascimento que as crianças apresentam, entre outras características, diferenças nas suas predisposições para a actividade, para a irritabilidade e para manifestar receio perante estímulos estranhos, e, por isso, também as suas exigências face ao meio e as reacções aos comportamentos dos seus educadores serão diferentes. Deriva, deste facto, que os mesmos comportamentos dos adultos podem provocar reacções muito diversas nas crianças. É, pois, importante, que os pais estejam atentos a forma como o seu filho reage as condições que o cercam, e que, conscientes deste facto, se revelem capazes de adoptar um estilo educativo flexível, desenvolvendo um conjunto de competências e de expectativas adequadas ao comportamento da criança.

3. O desenvolvimento cognitivo e social está relacionado com o crescimento das células do cérebro e com o desenvol- vimento das conexões neuronais. Por isso, factores de saúde e de nutrição que afectem o funcionamento do cérebro, mesmo durante o período pré-natal, quando a maior parte do cresci- mento ocorre, irão influir no desenvolvimento. Além disso, uma estimulaçáo que permita ao cérebro exercitar-se irá con-

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o SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E o ESTADIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

tribuir para fortalecer as conexões estabelecidas e criar uma matriz mais sólida para o desenvolvimento ulterior.

4. As crianças são surpreendentemente resistentes, especialmente durante os primeiros anos de vida, e m que parecem possuir um conjunto de mecanismos genéticos que as ajudam no seu desenvolvimento. U m a criança pode sofrer um atraso, chegando mesmo a verificar-se lesões e m conse- quência de complicações surgidas durante o parto ou, já poste- riormente, devido a condições ambientais cruéis, mas, a menos que as dificuldades experimentadas precocemente sejam prolongadas e intensas (por exemplo, um período prolongado de subalimentação e m grau extremo), o seu potencial per- mitir-lhe-á recuperar e desenvolver-se normalmente. Os pais deverão, pois, estar informados de que o facto de o seu filho ter estado doente ou ter sofrido de malnutrição e m grau moderado não significa necessariamente que o seu desenvolvimento irá sofrer um atraso. A recuperação é possível, embora a prevenção seja sempre preferível a cura. Em suma, é sempre conveniente que os programas de prevenção comecem pela assistência a mãe durante o período de gestação.

5. Para além das necessidades de alimentação, abrigo, cuidados de saúde e protecção, as crianças têm necessidades básicas de desenvolvimento psicológico e social, entre as quais se incluem: amor e afecto; interacção (que inclui tanto a necessidade de estimulação como de obter reacções adequadas ao seu comportamento); um meio familiar consistente e previsível; exploração e descoberta. Como é evidente, qualquer programa integrado de acção deverá dar resposta a todas as necessidades básicas, não se limitando a proporcionar alimentação, abrigo, cuidados de saúde e protecção.

6. Embora todas as crianças possuam certas necessidades básicas, cada criança possui também um conjunto de necessidades individuais, determinadas pela sua estrutura genética, pelas condições prevalecentes no seu meio

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

familiar, que satisfazem ou, pelo contrário, frustram algumas das suas necessidades básicas, e pelas características da comunidade e da sociedade e m que vive, as quais estabelecem objectivos e impõem limites que irão influenciar o seu desenvolvimento. Qualquer intervenção deverá levar e m conta estas diferenças ao nível das variáveis individuais e dos factores prevalecentes na família, o que equivale a afirmar que não é possível tentar aplicar a mesma fórmula a todas as crianças, quaisquer que sejam as suas circunstâncias.

7. Existe u m a relação de duplo sentido entre o desenvolvimento psicossocial e o bem-estar físico da criança no que se refere ao seu estado de saúde e nutrição. Um exemplo desta relação consistirá numa criança activa e/ou que chora, que, quando comparada com uma criança passiva, terá mais probabilidades de conseguir chamar sobre si a atenção do seu meio e de ser alimentada. Por isso, qualquer intervenção que ajude a criança a desenvolver-se social e psicologicamente torná-la-á mais desperta e, finalmente, provocará uma melhoria do seu estado nutricional e de saúde, aumentando as suas possibilidades de sobrevivência.

8. Existe u m a relação sinérgica entre as várias dimensões do desenvolvimento: as dimensões física, social, intelectual e emocional fazem parte de um todo, de tal forma que qualquer alteração numa destas áreas de desenvolvimento provocará mudanças nas outras. Por exemplo, nas crianças, como nos adultos, aliás, os processos cognitivos estão associa- dos aos estados emocionais, devido a importância daqueles no desencadeamento, controle e redução da ansiedade. 8, pois, necessário que os programas de desenvolvimento comportem abordagens multifacetadas de intervenção.

9. O desenvolvimento cognitivo das crianças, que vivem e m meios que oferecem pouca variedade de estímulos, é geralmente inferior ao de crianças que vivem e m meios variados. Importa, pois, prestar alguma atenção a análise da gama de estímulos presente no ambiente, e reforçá-la ou

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enriquecê-la de acordo com as necessidades específicas de cada criança. (Esclareça-se que a maioria dos meios são já suficientemente diversificados pelo que é desnecessário introduzir novos objectos ou pessoas. Excepcionalmente, deparamos com um meio excessivamente variado e estimu- lante, susceptível de gerar confusão.)

10. Normalmente, a experiência social de uma criança terá, comparada com as condições existentes a nascença, repercussões de maior impacto no seu desempenho escolar, quociente intelectual e comportamento desviante. Em síntese, um meio favorável é um factor crítico para o desenvolvimento da criança, susceptível de provocar a recuperação de crianças, que as circunstâncias que rodearam o seu nascimento levaram a considerar de relativo “alto risco”.

11. Todas as crianças se desenvolvem, mas, e m algumas, o ritmo deste processo é mais rápido e o seu desenvolvimento é qualitativamente diferente (qualquer que seja o critério que se considere conveniente adoptar). Embora as normas de desenvolvimento possam ter utilidade na avaliação de um grande número de crianças, impõe-se precaução, quando aplicadas a u m a criança e m particular.

Incorporar a Experiência

Os onze princípios, acima enunciados, constituem exemplos de conhecimentos, que podem ser utilizados na concepção e implementação de programas de promoção do desenvolvimento infantil. Existe, todavia, u m a outra fonte de saber que deveria ser também levada e m consideração. Referimo-nos a “sabedoria tradicional” ou “experiência” que, infelizmente, no que diz respeito a práticas educativas válidas, é, com frequência, subestimada e omitida dos programas de intervenção. Até há bem pouco tempo, constatava-se uma atitude idêntica face a eficácia da medicina tradicional, embora esta tenha, nos últimos dez ou vinte anos, vindo a ser olhada com mais respeito.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

N o sentido de clarificar esta afirmação, podemos apresentar vários exemplos de práticas tradicionais, que têm um efeito benéfico na sobrevivência, no crescimento e no desenvolvimento. Em muitas culturas, existem normas que prescrevem o tratamento a dar as mulheres grávidas ou que amamentam, nas quais está implícita a consideração pelo seu estado psicológico. Nelas se reconhece a importância de as poupar a situações de stress, e quer sob o ponto de vista da saúde física da mulher, quer sob o ponto de vista da sobrevivência, do crescimento e do desenvolvimento do feto ou do lactente, haveria toda a conveniência e m que estes costumes continuassem a ser observados.

Muitas culturas possuem tabus alimentares que visam manter baixo o peso dos bebés. Embora os padrões académicos considerem que um peso baixo a nascença constitui um factor de “risco”, a luz da experiência acumulada por muitos povos é o inverso que se verifica, isto é, um peso elevado na altura do nascimento parece constituir uma ameaça a sobrevivência. Quando, porém, se pensa na estatura média das mulheres das montanhas da Guatemala ou do Bangladesh, ela própria um produto de séculos de subalimentação, ou noutros contextos caracterizados por raquitismo endémico, com repercussões ao nível do desenvolvimento pélvico, a sabedoria tradicional ganha outro sentido e qualquer tentativa para impor, nestas situações, pretensos padrões científicos equivaleria, de facto, a praticar um erro grosseiro (Negussie, 1988).

Também a massagem dos recém-nascidos, prática frequente nas culturas tradicionais, embora actualmente e m declínio, tem efeitos favoráveis no crescimento e no desenvolvimento da criança (Landers, 1989).

Amamentar a criança sempre que esta o reclama, constitui outro costume e m vias de desaparecimento. No entanto, esta prática integra os programas sobre estratégias de sobrevi- vência e o seu efeito no desenvolvimento social e emocional raramente é ainda questionado.

Finalmente, outra prática frequente e m muitas culturas, embora olhada com desconfiança pelos modernos círculos de

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profissionais de saúde, consiste e m partilhar o leito com os bebés. Ela, porém, permite mantê-los quentes, transmitindo- -lhes um sentimento de segurança, estimulá-los tactilmente e amamentá-los durante a noite sempre que estes têm fome.

A medida que a sabedoria tradicional ocupar nos nossos conhecimentos o lugar a que tem direito, e forem decantados os costumes com valor prático de entre aqueles para os quais já não existe qualquer justificação, a nossa conclusão de que sabemos realmente mais do que pensamos, sairá certamente reforçada.

O estádio dos conhecimentos e o estádio de concretização

Torna-se claro que existe u m desfasamento entre o estádio e m que se situam os nossos conhecimentos teóricos e empíricos e o estádio de concretização da intervenção, encontrando-se aquele num nível de evolução muito mais avançado.

Estádio dos conhecimentos

1. O desenvolvimento é um processo contínuo que começa no período pré- -natal.

2. O desenvolvimento é um processo interactivo.

3. Existe u m a sinergia entre saúde, nutrição e desenvolvimento.

4. As práticas educativas autóctones têm frequen-

Estádio de concretização

1. Os programas de inter- venção visam principal- mente o grupo etário dos 3-6 anos.

2. A ênfase é colocada na “estimulação” unilateral.

3. Os programas de inter- venção continuam a ser monofocais e a primar pela falta de integração.

4. As soluções são geral- mente importadas, sendo

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temente u m valor posi- tivo. lorizadas.

as práticas locais desva-

5. O desenvolvimento é 5. Os processos de avalia- afectado tanto pela natu- ção e mensuração do reza como pela cultura, desenvolvimento conti- actuando este factor nuam a privilegiar uma através de interacção com abordagem maturativa. o meio ambiente aos mais diversos níveis.

Certamente que o estádio da ciência irá continuar a evoluir, até porque o domínio do desenvolvimento infantil é uma área de investigação relativamente recente.

Porém, essa perspectiva não justifica que continuemos a aguardar para começarmos a organizar programas de acção. N a verdade, da experiência que formos capazes de ir acumulando e m programas de acção levados a prática resultarão algumas das novas orientações que irão influenciar o rumo de futuras intervenções. Mas, entretanto, a aplicação dos conhecimentos actuais pode, já hoje, traduzir-se na ajuda a milhões de crianças que, mesmo vivendo e m condições difíceis, poderão beneficiar de um desenvolvimento saudável e normal.

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O SIGNIFICADO DOS CONCEITOS E O ESTADIO DOS NOSSOS CONHECIMENTOS

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4

Zeitlin, M. & Mansour, M. “State-of-the-Art Paper on Positive Deviance and Nutrition”, Tufts University School of Nutrition, Medford, Mass.: 1985 (Documento elaborado para a UNICEF, Nova Iorque).

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I11 PORQUÊ INVESTIR NO DESENVOLVI- MENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

O Mundo está cheio de pessoas que acreditam na importância de proporcionar as crianças uma atenção especial, e cuidados adequados durante os primeiros meses e anos de vida. Esta crença tão generalizada encontra-se presente e m muitas tradições culturais. As crianças são vistas como pequenos deuses ainda num estado de relativa perfeição, ou representadas como “as borboletas do Paraíso” (Sharif, UNICEF) ou, ainda, como “pequenos sóis”. Esta crença na necessidade de cuidados adequados tem também o seu fundamento no reconhecimento de que as crianças representam a geração seguinte; elas simbolizam a continuidade das tradições, bem como a esperança e o receio da mudança. Existe a necessidade de acreditar que as crianças de hoje constituem uma alavanca de solidariedade para a acção social e que elas serão os construtores de um mundo melhor.

A experiência individual é um outro factor que pode contribuir para que as pessoas acreditem na importância do desenvolvimento da criança e dos cuidados que lhe são prestados. Pais, profissionais e outras pessoas, que apenas tiveram a oportunidade de observar de perto o crescimento dos filhos dos vizinhos, sabem o quanto a atenção e cuidados dispensados aos recém-nascidos e crianças e m idade pré- -escolar podem contribuir para a sua saúde. A sua convicção de que alguns cuidados de saúde rudimentares e uma boa dieta, combinados com sorrisos e carícias, diálogo e

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brincadeira, são a garantia de um desenvolvimento saudável, dispensa sólidos argumentos teóricos ou frias provas científicas. Para eles, tais atitudes não são apenas objecto de aprovação; são também consideradas como um bom investimento de tempo e dinheiro.

Mas se tantas pessoas no Mundo partilham esta convicção, poder-se-á perguntar por que motivos os apoios a intervenção no desenvolvimento infantil são tão diminutos. Porque é que as necessidades evidentes de desenvolvimento daquelas 12 e m 13 crianças nascidas, e que sobrevivem até ao primeiro ano de vida, não são mais generosamente contempladas nos orçamentos dos governos e outras organizações? Porque não existem mais programas destinados a melhorar a qualidade dos cuidados prestados e a promover o desenvolvimento?

Infelizmente para as crianças, quando se levanta a questão de investir em programas de desenvolvimento infantil, existem tantos cépticos, quantos os adeptos. O controle das decisões relativas a afectação de verbas e ao planeamento pertence, com frequência, a cépticos, cuja visão do mundo está condicionada pela sua profissão. Para estes, torna-se necessário algo mais do que as convicções dos outros, para os convencer a investir no desenvolvimento infantil. Eles insistem e m que lhes seja demonstrado que a infância é um investimento mais rentável do que a construção de estradas, barragens, escolas primárias ou mesmo aviões de combate, e reclamam provas tangíveis e sólidas de que os programas de acção propostos obterão resultados. Em suma, exigem, para justificar qualquer tipo de iniciativa, uma fundamentação, um conjunto de argumentos convincentes de ordem científica e política, baseados e m algo mais do que convicções insuficientemente fundamentadas.

Motivos de cepticismo

Quando se pretende estabelecer uma fundamentação, é importante dar resposta às preocupações dos cépticos. Os motivos que justificam esta atitude são tão diversos, e por

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PORQUÊ INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÁNCIA?

vezes tão irracionais, quanto os argumentos utilizados e m prol do investimento no desenvolvimento da primeira infância.

A título de exemplo, examinaremos alguns dos argumentos apresentados:

“Não compreendo”. A falta de compreensão constitui-se, com frequência, e m motivo de cepticismo. Aos olhos dos não iniciados, o desenvolvimento infantil aparece, por vezes, como algo demasiado simples e vago, ou, pelo contrário, como demasiado complicado e misterioso para ser susceptível de constituir o alvo de programas de intervenção com alguma relevância. “Como é possível programar uma sessão de carícias entre pais e filhos?”, “O que quer dizer quando fala numa interacção inadequada com efeitos adversos no estabelecimento das conexões neuronais?” A insuficiente compreensão do problema decorre, também, do facto de “o desenvolvimento na primeira infância” ser um domínio interdisciplinar, que parece ter u m significado diferente consoante a área de especialização e m que cada pessoa se situa, obscurecendo assim as bases que justificam a acção. Como sugerimos no Cap. I1 - no qual procuramos clarificar alguns conceitos -, existem muitas imprecisões na compreensão geral do processo de desenvolvimento infantil. Compreender uma noção abstracta não é um processo tão simples como compreender uma estrada ou uma barragem. U m a vez concluídas, estas podem ser vistas e a sua função é facilmente apreendida. É certo que o processo de construção e m si pode ser complexo, mas as técnicas são conhecidas e as decisões de entregar a tarefa nas mãos dos peritos suscitam poucas hesitações. Os cépticos gostariam de conhecer a mesma sensação face ao desenvolvimento infantil, o que só aconte- cerá se conseguirmos provar que os programas resultam, que é possível estabelecer um conjunto de orientações concretas e precisas e se lhes apresentarmos exemplos de várias modalidades de programas com resultados positivos. A fundamentação, que iremos apresentar, fornecerá diversos argumentos e diferentes tipos de evidência empírica que justificam este investimento. No capítulo IV, iremos sugerir

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

algumas orientações e apresentar um conjunto de abordagens programáticas complementares, que podem facilitar o processo de desenvolvimento físico, intelectual, social e emocional nos primeiros anos de vida. Também pretendemos dar a conhecer alguns exemplos que, esperamos, poderão facilitar a com- preensão do problema.

“Essa tarefa já está a ser desempenhada”. Não deixa de constituir uma ironia que muitos indivíduos, que encaram com cepticismo os programas de promoção de desenvolvimento infantil, tenham crescido, eles próprios, e m condições privilegiadas, no seio de uma família afectuosa, que nunca lhes deixou faltar alimentos ou assistência médica, e tenham tido pais que lhes proporcionaram um ambiente estimulante e propício ao crescimento e a aprendizagem. Em consequência da sua experiência pessoal, eles sentem que é a família que compete proporcionar a atenção necessária a um crescimento e desenvolvimento saudáveis. É possível até que concordem com a importância dos primeiros anos de vida, mas simplesmente não consideram ser necessário estabelecer programas especiais de assistência a criança e a família durante esse período. Eles acreditam, por vezes, que o desenvolvimento infantil passa essencialmente por amar a criança e contrapõem, justificadamente, que o amor não é susceptível de programação. Em síntese, estes indivíduos acreditam que a maioria das famílias está a desempenhar bem o seu papel na educação dos filhos, no que até podem ter razão. Então porquê interferir? Talvez o argumento mais convincente, nestes casos, consistisse e m tentar fazê-los acompanhar o dia-a-dia de uma jovem mãe solteira, que, sozinha, num meio urbano que lhe é adverso, luta pela sua sobrevivência e, simultaneamente, procura dar ao seu filho o amor, a assistência na saúde, a atenção e o carinho que ela lhe desejaria proporcionar, mas não consegue.

“É função da mãe77. Em alguns casos, a crença, acima exemplificada, sobre o que a família deveria ser e fazer, está intimamente relacionada com outro motivo de cepticismo: a

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PORQUÊ INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INF’ÂNCIA?

crença de que o lugar da mãe é e m casa. Os programas destinados a primeira infância, principalmente quando levados a efeito fora do âmbito da família, são encarados como factor de erosão do papel tradicional da mãe. A atitude de cepticismo, fundamentada nesta perspectiva, revela-se resistente a mudança, apesar de sabermos, hoje, que, de um ponto de vista histórico, a educação e os cuidados da criança raramente foram domínio exclusivo da mãe; ela persiste, apesar do grande número de mulheres que se vêem compelidas a trabalhar fora de casa e de inúmeros estudos efectuados terem provado que, nestas circunstâncias, um esquema de cuidados alternados pode constituir uma solução benéfica, tanto para a mãe como para a criança; persiste, ainda, apesar de os programas de promoção dos cuidados as crianças poderem ser implementados no âmbito da própria família, respeitando o papel primordial da mãe e dos outros familiares na educação da criança.

“Apresente-me provas”. Alguns cépticos mostram abertura perante a ideia de que o desenvolvimento da criança é importante e deveria ser promovido, mas exigem provas irrefutáveis de que a intervenção na primeira infância produzirá resultados, principalmente a longo prazo. Por vezes, este cepticismo apenas traduz insuficiente informação. Noutros casos, porém, ele pode resultar da consulta de estudos existentes, que demonstram que os programas levados a prática não obtiveram resultados, ou, então, que estes não foram duradouros. Efectivamente, é possível, por exemplo, apontar para as conclusões de estudos efectuados no início da década de 70, que sugerem que os efeitos das intervenções precoces “se desvanecem” por volta dos sete ou oito anos de idade. Porém, nos últimos dez ou quinze anos, foram conduzidas novas investigações, cujos resultados invalidam as conclusões desses estudos, o que muitas pessoas ainda ignoram.

“Qual a taxa de juro?“ Outros cépticos procuram, e m vão, encontrar uma justificação de ordem económica para o

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

investimento e m programas destinados a primeira infância. Estes indivíduos gostariam de ter a possibilidade de comparar uma taxa de juro económica, obtida pelos programas de desenvolvimento infantil, com a taxa esperada de outros possíveis investimentos, e escolher aquele que lhes proporcionasse a mais alta taxa de juro. No mínimo, gostariam de ter alguma certeza de que as iniciativas propostas irão, de facto, produzir resultados que compensem o seu custo, ou seja, como é compreensível, sentir que o dinheiro não seria desperdiçado.

Qualquer fundamentação para o investimento e m programas de desenvolvimento infantil terá de começar por dar resposta as diferentes objecções acima delineadas, o que, no mínimo, irá contribuir para reforçar a posição daqueles que gostariam de apoiar o desenvolvimento infantil, mas se encontram sujeitos a pressões no sentido de dar o seu apoio a outro tipo de iniciativas.

Princípios de argumentação

A linha de argumentação que iremos apresentar baseia- -se e m oito princípios complementares, que se constituem e m argumentos e m prol de um maior apoio aos programas de intervenção no desenvolvimento infantil:

1. Um princípio relativo aos Direitos Humanos: as crianças têm o direito a vida e ao desenvolvimento pleno de todas as suas potencialidades.

2. Um princípio moral e social: através das crianças, a Humanidade transmite os seus valores. Este processo começa pelos bebés. Se pretendemos preservar para o futuro valores morais e sociais, considerados desejáveis, é necessário começar pela infância.

3. Um princípio económico: a sociedade pode obter benefícios de natureza económica com o investimento no

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PORQUÊ INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

desenvolvimento infantil, dado que este se traduzirá num aumento de produtividade e numa redução de custos.

4. Um princípio de eficácia: a articulação com pro- gramas de desenvolvimento infantil tenderá a aumentar a eficácia de outros programas (por ex., de saúde, nutrição, educação, ou destinados as mulheres).

5. Um princípio de igualdade social: ao assegurar um “começo justo” as crianças, torna-se possível minorar intoleráveis desigualdades socioeconómicas e baseadas no sexo.

6. Um princípio político: as crianças constituem u m a base de acção política e social, susceptível de gerar consensos e motivar a solidariedade social.

7. Um principio científico: os dados obtidos pela investigação demonstram, inequivocamente, que os primeiros anos de vida são cruciais para o desenvolvimento da inteligência, personalidade e comportamento social, e que existe uma grande diversidade de programas de intervenção precoce susceptíveis de produzir efeitos observáveis a longo prazo.

8. A mudança das circunstâncias sociais e demo- gráficas: o aumento progressivo da taxa de sobrevivência de crianças vulneráveis, as mudanças ao nível da estrutura da família, as migrações dos meios rurais para os grandes meios urbanos e o aumento da percentagem de mulheres no conjunto da população activa impõem uma maior atenção ao desenvolvimento da primeira infância.

Será o contexto que determinará qual o grau de relevância a atribuir a estes diferentes princípios. Diferentes pessoas poderão considerar estes argumentos mais ou menos convincentes, conforme as suas preocupações específicas incidam mais na área dos Direitos Humanos, das vantagens económicas, da igualdade social ou do ajustamento as mudanças verificadas na estrutura familiar e do trabalho. Examinemos sucintamente cada um deles.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

1. A criança tem direito ao desenvolvimento pleno das suas potencialidades.

Para muitas pessoas, a obrigação de proteger os Direitos Humanos constitui o argumento mais fundamental e convincente para se investir e m programas de promoção do desenvolvimento na primeira infância. A Declaração dos Direitos da Criança, adoptada por unanimidade e m 1959, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, reconhece entre os seus dez princípios que:

“A criança será alvo de protecção especial e deverá beneficiar de oportunidades e serviços, garantidos por diplomas legais e outros meios necessários, que lhe permitam um desenvolvimento fisico, moral, espiritual e social saudável e normal, com liberdade e dignidade.”

Permitir que, e m cada ano, milhões de crianças sejam vítimas de situações susceptíveis de provocar défices e dar origem a u m atraso do desenvolvimento, constitui u m a violação dos direitos humanos fundamentais. O facto de as crianças dependerem dos adultos, na garantia dos seus direitos, torna essa obrigação um imperativo moral.

Trinta anos depois da aprovação da Declaração de 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou, e m 1989, uma Convenção sobre os Direitos da Criança, na qual se apela aos países signatários que:

“... garantam, por todos os meios ao seu alcance, a

Embora reconhecendo a família e aos pais o papel principal sobrevivência e o desenvolvimento das crianças.” (Artigo 6)

na educação das crianças, os Estados devem:

“... prestar assistência adequada aos pais e aos representantes legais da criança no desempenho das suas responsabilidades educativas e assegurar a criação de instituições, instalações e serviços vocacionados para o apoio a infância.” (Artigo 18.2)

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PORQUfi INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

E ainda:

“... os filhos de pais trabalhadores têm o direito de beneficiar dos serviços de assistência e apoio para os quais sejam elegíveis.” (Artigo 18.3)

A Declaração dos Direitos da Criança e a Convenção suge- rem que o direito das crianças ao desenvolvimento pleno das suas potencialidades goza da mais ampla aceitação por parte da comunidade internacional, constituindo um sólido argu- mento e m prol da implementação de programas de desenvolvi- mento infantil. Contudo, falta transpor a fronteira entre o plano da retórica e o plano da acção.Na dependência de outrem para verem garantidos os seus direitos, as crianças, sozinhas, não têm capacidade para empreender esta transição.

2. através das crianças que a Humanidade

Somos constantemente lembrados de que “as crianças são o nosso futuro”. A transmissão de valores sociais e morais, que servirão de directriz a esse futuro, começa nos primeiros meses e anos de vida. Em sociedades confrontadas com o fenómeno da erosão de valores considerados inalienáveis, existe uma motivação acrescida para se encontrarem processos que possam contribuir para o seu reforço. Os programas de educação na primeira infância podem dar um importante contributo para esse esforço, quer porque fortalecem a determinação dos pais no processo de transmissão, quer porque criam contextos de jogo e de aprendizagem que permitem dar uma atenção específica 2i formação dos valores fundamentais. Num mundo assolado pela violência e e m busca de paz, confrontado com a permanente degradação do seu meio ambiente e a procura de soluções mais cooperativas e saudáveis, e m que o consumismo, a competição e o egoísmo parecem estar a suplantar o altruísmo, a cooperação e a solidariedade, a preocupação com o desenvolvimento destes valores, nas crianças, deverá impor-se como uma prioridade absoluta.

transmite os seus valores.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Se as crianças são o nosso futuro, então serão elas os agentes da mudança e os guardiões da continuidade. Para muitos adultos, este facto tem algo de assustador. No entanto, não é por acaso que os governos resultantes de processos revolucionários vêem na infância uma oportunidade. Estes governos têm reconhecido, com razão, a importância de iniciar cedo a inculcação de valores. O ideário de que o “NOVO Homem” começa pela “Nova Criança” tem servido de justificação a implementação massiva, após os períodos de. revolução, de programas destinados a primeira infância. Embora a natureza centralizadora e catequizadora de muitos destes programas não seja vista com bons olhos por muitos estrangeiros (da mesma forma que as campanhas de catequização empreen- didas por missionários são objecto da desconfiança dos revo- lucionários), o que a proliferação pós-revolucionária de infan- tários e escolas pré-primárias parece comprovar claramente é que a decisão de investir neste tipo de programas é, funda- mentalmente, uma opção de carácter político.

3. O aumento de produtividade e a economia de custos que resultam de um investimento e m programas de desenvolvimento infantil consti- tuem benefícios extensivos a toda a sociedade.

Sem ser necessário recorrer a literatura científica, o bom senso sugere que uma pessoa com um bom desenvolvimento físico, mental, social e emocional terá melhores condições para contribuir economicamente para o bem-estar da sua família e para a elevação do nível de vida da comunidade e do país. E é conveniente lembrar que, e m muitos países, os indivíduos começam a desempenhar bem cedo na vida este papel.

Aumento de produtividade

Os programas destinados a primeira infância podem contribuir para u m aumento tanto das capacidades físicas como intelectuais. Eles são susceptíveis de influenciar,

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PORQUÊ INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

positivamente, a taxa de frequência escolar, os progressos e o rendimento escolar, variáveis que, por seu turno, condicionam a aquisição das competências e das perspectivas de vida subjacentes ao comportamento adulto. A escolarização está ainda relacionada com o desenvolvimento das seguintes competências: a capacidade de organização dos conhecimentos adquiridos e m categorias significativas, de transferência de conhecimentos de uma situação para outra, e uma maior selectividade na utilização da informação (Rogoff, 1980; Triandis, 1980). A escolarização também facilita a adaptação tecnológica (Grawe, 1989) e apresenta uma correlação positiva com a produtividade no sector agrícola (Lau e Jamison, 1980) e no mercado de trabalho clandestino (Colclough, 1980).

Este aumento da produtividade pode, também, ser consequência de mudanças verificadas na estrutura do emprego. Os programas de educação e desenvolvimento infantil não só influenciam positivamente a produtividade futura da criança, mas também contribuem para o incremento da taxa de população activa, facilitando o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, e disponibilizando os irmãos mais velhos para a aprendizagem ou para o trabalho remunerado. Outro aspecto ainda não referido: eles fomentam a criação de postos de trabalho na comunidade, tanto para educadores como para os fornecedores de bens, equipamentos ou serviços, necessários ao seu bom funcionamento.

Economia de custos

U m a das formas através das quais o investimento na saúde, na nutrição e no desenvolvimento psicossocial, durante os primeiros meses e anos de vida, se pode traduzir e m dividendos de carácter económico é através da redução de encargos que dele resulta em, pelo menos, quatro sectores: no sector laboral, pela diminuição das quebras de produtividade; no sector da assistência social, provocando, a prazo, u m a menor necessidade deste tipo de programas; no sector da educação, pelo aumento da eficácia do sistema educativo, que resulta de u m a menor taxa de abandono escolar e de repetência e de uma menor necessidade de programas de

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UM TEMPO PARA A INFÂhTIA

compensação educativa; e, finalmente, no sector da saúde, devido

Numa revisão de 17 estudos longitudinais sobre os efeitos de intervenções precoces sobre o futuro desempenho e sucesso académico na escola primária (Myers, no prelo), verificou-se que 12 destes estudos faziam referência aos efeitos na taxa de repetência. Destes, oito concluíram que as crianças, que tinham sido alvo de uma intervenção precoce, apresentavam uma taxa de repetência no ensino primário inferior a de crianças não sujeitas a qualquer intervenção. Dos quatro estudos efectuados que não confirmaram esta diferença, esclareça-se que um foi realizado no contexto de um sistema educativo que não previa a repetição de ano.

Mais especificamente, uma avaliação efectuada no Brasil demonstrou que, devido a redução das despesas suplementares no ensino primário, motivadas pelas repetições de ano, um programa de desenvolvimento integrado pré-escolar é sus- ceptível de produzir dividendos que compensam largamente o seu custo inicial (Ministério da Saúde, 1983). Um outro exemplo, abundantemente citado, de um benefício de carácter económico, resultante do investimento no desenvolvimento na primeira infância, veio dos Estados Unidos, onde foi efectuado um estudo longitudinal sobre os resultados da participação de filhos de famílias de baixo nível socio- económico num programa pré-escolar, tendo estes benefícios sido avaliados e m sete vezes o custo inicial do programa (Berruta-Clement & col., 1984).

redução dos encargos neste domínio.

A taxa de rendimento

Torna-se difícil calcular uma relação custohenefício, ou seja, u m a “taxa de rendimento” para investimentos de natureza social, designadamente programas de educação e desenvolvimento da criança. No entanto, todas as estimativas realizadas sugerem que a infância poderá constituir, potencialmente, um investimento de elevada taxa de rentabilidade. Citemos, por exemplo, Selowski, que, a partir de dados obtidos na América Latina, apresentou a seguinte conclusão:

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PORQUI? INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

“Um investimento anual, por criança, em programas susceptíveis de produzir u m aumento de aptidão geral, igual ou superior a u m desvio padrão, fiustifica-se’, se o seu custo se situar entre 0.37 e 0.51 do vencimento anual de u m trabalhador analfabeto.” (Selowski, 1981, p. 342).

Ora, tanto o aumento desejado daquilo que Selowski designa por “aptidão”, como o valor de custo indicado, podem ser considerados metas realistas, pelo que concluímos que existem fortes razões para acreditar que os programas de educação e desenvolvimento na infância constituem um investimento gerador de benefícios económicos.

4. Um investimento conjunto e m programas de desenvolvimento infantil permite aumentar a eficácia de outros tipos de programas.

Dado que o investimento e m programas de educação e desenvolvimento infantil pode contribuir para aumentar os resultados obtidos por outros programas, não é correcto considerá-los e m “alternativa” a escolarização básica ou a programas de cuidados de saúde primários. Este tipo de intervenção deveria ser encarado como parte integrante de u m a estratégia, possibilitando um acréscimo de lucros marginais e não envolvendo custos adicionais. A articulação de programas permite tirar partido do efeito interactivo entre a saúde, a nutrição e a estimulação precoce. Além disso, os programas de educação e desenvolvimento infantil apresentam a vantagem adicional de se constituírem e m veículos da expansão da rede de cuidados de saúde primários (Evans, 1985). Um exemplo paradigmático encontra-se nos programas de educação de pais, que, constituindo um meio que os ajuda a ajudar os seus filhos, pode, simultaneamente, contribuir para melhorar a forma como são utilizados os serviços de saúde.

Como é óbvio, se as crianças forem alvo de uma melhor preparação para a escola primária, esta experiência terá para elas uma maior utilidade, o que provocará uma quebra das

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

taxas de abandono e de repetência, permitindo uma redução de custos e, uma vez que a criança é um dos elementos mais importantes do sistema educativo, a melhoria da qualidade da educação. Se as crianças entrarem para a escola melhor preparadas, isso reflectir-se-á no nível de motivação dos professores, no uso efectivo dos equipamentos e materiais e na qualidade das aprendizagens que as crianças efectuam através do contacto umas com as outras.

N a revisão, já anteriormente citada, constatou-se que o rendimento escolar de crianças alvo de uma intervenção precoce foi considerado superior e m 8 dos 13 estudos longitudinais. Em 3 outros, não foram encontradas diferenças significativas entre as crianças que tinham beneficiado de uma intervenção e as outras, e num outro, concluía-se pela constatação de diferenças e m meios rurais, mas não e m meios urbanos (Myers, no prelo).

Numa óptica diferente, programas de incentivo ao emprego de mulheres, que incluam uma componente de educação e desenvolvimento da criança, são susceptíveis de se revelar mais eficazes, pois, se as mulheres sentirem que podem recorrer a serviços que assegurem o cuidado dos seus filhos, as quebras de produtividade, motivadas pelo tempo despendido com preocupações inerentes ao desempenho do seu papel maternal, diminuirão (Galinsky, 1986). Elas terão, então, condições para procurar empregos que ofereçam uma maior estabilidade e uma melhor remuneração.

5. Os programas de desenvolvimento infantil podem contribuir para minorar as desigual- dades sociais mais flagrantes.

Os investimentos no desenvolvimento na primeira infância podem contribuir para atenuar as desigualdades existentes, que radicam na pobreza e na discriminação (social, religiosa ou sexual) proporcionando as crianças oriundas dos estratos sociais mais desfavorecidos “um começo justo”. A pobreza

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PORQUÊ INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

eíou a discriminação constituem factores de stress e de tratamento desigual, que podem resultar na inibição de um processo de desenvolvimento saudável e harmonioso nos primeiros anos de vida. É bem conhecido o facto de que as crianças de origem pobre cedo começam a evidenciar sinais de atraso no desenvolvimento da prontidão escolar, que se manifestam precocemente, distanciando-se progressivamente dos seus pares pertencentes a famílias privilegiadas, atraso que nunca chega a ser inteiramente recuperado.

Tradicionalmente, os rapazes beneficiam de uma melhor preparação para a escola- do que as raparigas, sendo-lhes criadas mais oportunidades de frequência e de prosseguimento dos estudos. Estas diferenças manifestam-se, desde os primeiros anos, na desigualdade dos padrões educativos de rapazes e raparigas, que importa alterar, caso se pretenda erradicar a discriminação sexual. Embora estes padrões educativos diferenciados tenham raízes culturais profundas, existem dados que levam a supor que uma atenção integrada ao nível do desenvolvimento precoce pode provocar mudanças na percepção das famílias relativamente as capacidades e potencialidades das raparigas.

Optando por não investir na promoção do desenvolvimento infantil quando necessário, os governos estão, tacitamente, a sancionar e reforçar as desigualdades. É irónico constatar que um dos argumentos desferidos contra os programas de educação inicial radica, alegadamente, no seu carácter discriminatório - ou seja, que estes tendem a favorecer as classes superiores. Isto será certamente verdade, se não forem desenvolvidos esforços especiais para prestar assistência aos mais pobres, e apenas puderem deles beneficiar aqueles que tiverem possibilidades de os pagar. Todavia, os estudos efectuados revelam que, e m regra, os programas de educação inicial tendem a atenuar e não a reforçar as diferenças sociais. Por exemplo, u m a avaliação do gigantesco Serviço de Desenvolvimento Integrado da Criança, na Índia, demonstra, claramente, que os benefícios se fazem sentir de forma mais significativa nas castas inferiores e nas raparigas (Lal & Wati,

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1986). Vários estudos, efectuados na América Latina, chegaram igualmente a resultados, que favorecem as crianças provenientes dos estratos socioeconómicos mais desfavorecidos e/ou de meios rurais (Filp et al., 1983).

6. As crianças constituem u m ponto de união para a acção política e social susceptível de gerar consensos e motivar a solidariedade.

Moçambique, o Peru, o Sri Lanka, E1 Salvador, a Etiópia e o Irão são alguns países, de entre muitos outros, vítimas da violência e nos quais a coexistência pacífica se constitui como uma prioridade, no rol das suas metas sociais. Em muitas outras zonas, uma conjuntura de acalmia política e social torna extremamente difícil mobilizar as pessoas para iniciativas que redundariam e m seu próprio beneficio. Verifica- -se, nestas circunstâncias, que a adopção do lema “AS crianças e m primeiro lugar” pode constituir uma estratégia política eficaz.

Talvez os exemplos mais dramáticos, embora efémeros, de mobilização e m torno de programas destinados a infância sejam aqueles casos e m que facções beligerantes acordaram num cessar-fogo para permitir a realização de campanhas nacionais de vacinação. As crianças criaram uma “zona de paz”.

Menos espectaculares são os inúmeros programas comunitários que elegem como centro de interesse, como “ponto de partida” para a acção conjunta, as crianças. O bem- -estar das crianças é, comparado com outras problemáticas, u m tema menos conotado politicamente, para além de que quaisquer melhorias ao nível dos cuidados de saúde, do saneamento básico e das condições de nutrição que possam beneficiar as crianças produzirão, seguramente, resultados positivos extensíveis a todos os membros da comunidade. É possível citar inúmeros exemplos de programas desta natureza, se não veja-se a avaliação do projecto PROMESA levado a efeito na Colômbia (CINDE, 1990).

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7. Os estudos científicos demonstram que a intervenção no desenvolvimento infantil produz efeitos duradouros no comportamento adulto.

Os resultados obtidos através de um número progressivamente crescente de estudos, efectuados nos domínios da fisiologia, da nutrição e da psicologia, continuam a indicar que os primeiros anos de vida são críticos na formação da inteligência, da personalidade e dos padrões de comportamento social. A descoberta, já não muito recente, de que as células do cérebro se formam durante os dois primeiros anos de vida foi a primeira confirmação deste enunciado, mas estudos efectuados nos últimos anos vieram reforçar a importância deste período inicial de desenvolvimento, ao demonstrarem que a estimulação sensorial do meio envolvente condiciona a estrutura e a organização das conexões neuronais durante o período formativo (Dobbing, 1987). Assim, a riqueza de experiências motoras e perceptivas complexas, numa idade precoce, é uma variável que condiciona favoravelmente o desenvolvimento das diversas competências de aprendizagem, e é susceptível, pelo menos e m parte, de suprir os défices resultantes da malnutrição. As investigações realizadas também vieram comprovar que crianças, filhas de mães capazes de interagir com elas de forma consistente e afectuosa, apresentam um melhor estado nutricional e u m a maior resistência a doença (Zeitlin & Mansour, 1985).

N a década de 70, a avaliação de alguns programas de intervenção precoce, realizados nos Estados Unidos, indicou que os efeitos deste tipo de intervenção no Quociente Intelectual pareciam “desvanecer-se”, quando as crianças entravam para o segundo ou terceiro ano da escola primária. Mais recentemente, porém, os dados obtidos por novos estudos longitudinais demonstram, claramente, que u m a grande diversidade de programas de intervenção precoce produzem efeitos significativos, observáveis mesmo depois de decorrido um longo período após a intervenção. Entre os efeitos constatados, contam-se uma melhoria do rendimento e do

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comportamento escolar, um aumento da taxa de emprego, uma menor incidência de comportamentos anti-sociais na adolescência e uma menor percentagem de gravidezes e m adolescentes (Berruta-Clemente et al., 1984).

8. As mudanças verificadas na conjuntura social e económica exigem respostas inovadoras.

Desde a última década, os efeitos da recessão mundial fizeram-se sentir com impacto crescente nas famílias e nos governos, levando-os a tentar ajustar o seu comportamento e os seus programas as novas realidades (Cornia et al., 1987). Mesmo antes do início da recessão e, e m alguns casos sem qualquer relação com ela, já estavam e m curso transformações sociais de grande relevância que impuseram a necessidade de uma nova abordagem a problemática do desenvolvimento e da educação inicial.

a) O aumento do número de mulheres que ingressaram no mercado de trabalho. A crescente pressão sentida pelas mulheres para procurarem emprego e a necessidade, que muitas vezes tiveram, de assumir as tarefas agrícolas quando os respectivos cônjuges optaram por emigrar para as cidades, ou foram procurar trabalho nas minas, constituíram uma sobrecarga adicional, que veio dificultar o desempenho do seu papel educativo, tornando ainda mais premente a criação de esquemas de apoio alternativos. Esta tendência para o ingresso das mulheres no mercado de trabalho é anterior ao desencadeamento da recessáo mundial nos anos 80, mas foi por ela reforçada, e é previsível que estas tendências continuem a fazer-se sentir, e venham mesmo a acentuar-se, nos anos vindouros.

Neste ou noutros contextos, uma mãe, que é obrigada a trabalhar fora do lar, pode amar igualmente os seus filhos e sentir que lhes deveria devotar mais tempo, mas vê-se impossibilitada de dispor desse tempo: esta mãe precisa de ajuda.

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P O R Q ~ INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

b) A modificação das estruturas familiares tradicionais. A família alargada é, hoje, menos comum que no passado. A medida que se acentuam os fenómenos de migração e de urbanização, é cada vez menos frequente o recurso a membros da família alargada para auxiliarem na educação das crianças. As avós encontram-se menos disponíveis, quer porque permaneceram nas zonas rurais, quer porque também elas têm o seu emprego. O número de mulheres chefes de família tem vindo a aumentar. Em alguns países e m vias de desenvolvimento, existe u m a elevada percentagem de mulheres nestas condições (acima dos 40% nas zonas rurais do Quénia, Botswana, Gana, Serra Leoa e Lesoto, segundo Youssef & Hertler, 1984). Nestas famílias, as mulheres são compelidas a trabalhar fora de casa, o que provoca u m a necessidade acrescida de serviços de assistência educativa complementares. A criação destes serviços permitirá que os rendimentos auferidos por estas mulheres sejam canalizados para uma melhoria das condições de vida das crianças, e m maior volume do que nas situações e m que aos homens compete angariar o sustento da família.

Associado a estas mudanças e as alterações por elas provocadas na estrutura familiar, constata-se um aumento do número de crianças vítimas de maus tratos ou aban- donadas. Verifica-se, porém, que estes casos preocupantes tendem normalmente a ser alvo de u m a intervenção remediativa, depois do facto consumado, e m desfavor de u m a intervenção preventiva, que permita dar assistência, desde o primeiro momento, a famílias dele carecidas e onde existam crianças.

c) O aumento da taxa de frequência do ensino primário teve, como consequência, uma forte redução na disponibilidade de tempo dos irmãos mais velhos para auxiliarem na educação dos mais novos. Nas situações e m que tal não sucede, aqueles são forçados a abandonar os estudos para se ocuparem destas tarefas, o que reforça, ainda mais, os argumentos e m defesa da implementação de iniciativas de assistência a infância, de molde a libertar os irmãos mais velhos para prosseguirem os

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

seus estudos até terem, pelo menos, concluído a sua escolaridade básica.

d) A alteraçko das taxas de mortalidade e sobrevivência. Durante os últimos trinta anos, a taxa de mortalidade infantil no primeiro ano de vida sofreu uma quebra percentual para mais de metade. Crianças, que no passado teriam conhecido uma morte precoce, estão agora a conseguir sobreviver e, a medida que a taxa de sobrevivência aumenta, de 5 e m cada 6 crianças e m 1960 para 12 e m cada 13 crianças e m 1988, a necessidade de programas específicos far-se-á sentir de forma cada vez mais premente.

RESUMO

A fundamentação que apresentámos, pretendeu fazer convergir diversas linhas de argumentação e m prol da importância do investimento no desenvolvimento na primeira infância. Cada argumento apresentado é válido por direito próprio, mas, quando conjugados, o seu impacto é indiscutível. Quaisquer que sejam as preferências individuais ou as circunstâncias particulares, este conjunto de argumentos constitui uma base suficientemente sólida para justificar um aumento do investimento e m programas de educação e desenvolvimento inicial, independentemente de quem sejam os seus promotores: indivíduos, famílias ou comunidades, organizações governamentais e não-governamentais ou fundações internacionais.

Quando se elege a primeira infância como uma área de intervenção prioritária, o apoio financeiro sempre surge, mesmo e m situações e m que os recursos económicos são escassos. Efectivamente, o principal obstáculo a implemen- tação destes programas não reside nas dificuldades de finan- ciamento. O problema essencial consiste e m fazer reconhecer a importância de tais iniciativas e mobilizar a determinação pessoal e política e m torno da sua execução.

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PORQUk INVESTIR NO DESENVOLVIMENTO DA PRIMEIRA INFÂNCIA?

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

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IV A EVOLUÇÃO DA INTERVENÇÃO PRECOCE NO DESENVOLVIMENTO INFANTIL

N e m a questão do desenvolvimento da criança, nem os programas de educação infantil constituem uma novidade, mas, a medida que as sociedades e as circunstâncias foram mudando, também as práticas educativas foram evoluindo. De entre estas mudanças, destaca-se o aumento do número de programas institucionalizados. Relembrar a origem deste tipo de programas não só nos chama a atenção para as transformações ocorridas, mas põe também e m evidência a lentidão com que, e m alguns casos, nos adaptámos as mudanças, enquanto, noutros, nos precipitámos a adoptar reformas que se revelaram prematuras.

Contextos diferentes, necessidades diferentes

N o mundo ocidental, os programas de cuidados e desenvolvimento da criança, tal como hoje os conhecemos, tiveram uma das suas origens nas transformações desen- cadeadas pela Revolução Industrial do século XVIII. N a sociedade, predominantemente rural e agrícola, que precedeu o fenómeno de industrialização, as crianças cresciam no seio de uma família tradicional, alargada e intacta. O processo de socialização destas crianças de meios rurais visava, fundamentalmente, promover o seu ajustamento a um mundo de horizontes limitados, relativamente imutável, e m que

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

existia u m amplo consenso sobre os valores dominantes da comunidade. Este meio rural oferecia as crianças um espaço que podia ser explorado e um ambiente rico e m estímulos. Os cuidados as crianças competiam claramente as mulheres, cujas tarefas lhes permitiam, normalmente, amamentar os filhos e ocuparem-se directamente deles durante os primeiros anos de vida. As famílias eram geralmente numerosas e as crianças mais velhas tinham um papel auxiliar na educação dos mais novos. De facto, as crianças depressa. faziam a sua entrada no mundo dos adultos e, de certa forma, a “infância” não era, então, concebida como um estádio demarcado na existência individual (Aries, 1962).

No entanto, seria um erro construir u m a imagem romântica das condições de vida prevalecentes nos meios rurais, durante os séculos XVIII e XIX a vida era difícil e a sobrevivência encontrava-se continuamente ameaçada pela doença e, ocasionalmente, pela escassez de alimentos. Contudo, para aquelas crianças que conseguiam sobreviver durante os primeiros meses, o “desenvolvimento” era menos problemático do que para a maioria dos seus pares, vivendo nos aglomerados urbanos nascentes. As práticas educativas adoptadas ao longo de muitas gerações eram adequadas ao processo de socialização e m meio rural, mas revelavam-se desajustadas perante as novas condições de vida urbana.

Com a industrialização e a intensificação dos fluxos de migração e m direcção as cidades, produziram-se mudanças nos valores, nas condições de vida, na estrutura familiar e nos padrões de trabalho. As novas circunstâncias provocaram uma necessidade de, por um lado, proporcionar cuidados aos filhos de mulheres trabalhadoras, e, por outro, assegurar con- dições de estimulação adequadas as crianças, que passaram a desenvolver-se e m ambientes fisicamente restritivos. Estas condições colocaram os pais perante a exigência de aprenderem novas competências educativas e de se adaptarem a u m novo modo de socialização, já que as transformações ocorridas tornaram obsoletas as práticas educativas tradicionais.

Em resposta a estas novas circunstâncias, emergiram dois tipos de programas destinados a infância. Um deles tinha por

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objectivo, fundamentalmente, prestar assistência a crianças indigentes ou abandonadas. D e natureza essencialmente assistencial, frequentemente dirigidos por mulheres perten- centes as classes superiores, estes programas tinham um cariz vincadamente protector e institucional, visando sobretudo impedir que as crianças morressem de inanição e proporcio- nar-lhes um tecto que as abrigasse, mas pouco mais.

Um outro tipo de programas, entretanto surgidos, destinava-se preferencialmente a classe média urbana e m expansão, dando mais ênfase ao enriquecimento e a estimulação do que a protecção e a assistência institucional. Estes programas de características urbanas, desenvolvidos e m centros próprios, foram, de certa forma, concebidos como sucedâneos da diversidade de experiências, que os meios rurais possibilitavam. Numa sala de aula colocavam-se brinquedos e desenvolviam-se actividades lúdicas, susceptíveis de proporcionar as experiências e a estimulação de que as crianças rurais usufruíam naturalmente. A medida que este modelo educativo desenvolvido e m centros próprios vem sendo exportado das grandes capitais do mundo ocidental para as zonas rurais do Terceiro Mundo, parece-nos oportuno chamar a atenção sobre as suas origens, a fim de se evitar a introdução, nestes países, de elementos que lhes são estranhos, e que poderão não ter aí qualquer utilidade.

Existe um paralelismo acentuado entre a mudança de valores, padrões de vida, estrutura familiar e do trabalho, desencadeadas pela Revolução Industrial, e a mudança a que hoje assistimos e m países do Terceiro Mundo, nos quais se verifica um processo de urbanização acelerada e também, por vezes, de industrialização. Muitos destes países optaram por uma estrutura dicotómica de resposta a estas mudanças, semelhante a adoptada na Europa pós-industrial: u m a intervenção de tipo assistencial para os pobres, que, no máximo, proporciona alguma protecção, e uma intervenção para a classe média, concebida e m termos de estimulação, mais centrada no desenvolvimento.

Durante o século XX, e sobretudo a partir de 1945, produziram-se outras transformações sociais, de carac-

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terísticas diferentes das desencadeadas pela Revolução Industrial. A revolução nas comunicações, por exemplo, contribuiu para transformar o mundo numa “aldeia global” ou, como pretende um historiador africano, num “supermercado global”, (E-Zerbo, et al., 1990). Deparamos, actualmente, com rádios transístores nas localidades mais recônditas e mesmo as zonas rurais sofrem uma influência da televisão, que não teríamos julgado possível há vinte e cinco anos atrás.

Outra revolução que marcou o século XX deu-se no domínio da educação ou, para sermos mais rigorosos, no âmbito da escolarização. A alfabetização adquiriu foros de valor social e a taxa de frequência escolar aumentou vertiginosamente. Actualmente, é enorme o peso social atribuído a aquisição de competências cognitivas associadas ao raciocínio abstracto. A introdução, quase diríamos “intrusão”, de escolas e m zonas rurais desencadeou um fenómeno de competição com as modalidades de educação autóctones, e promoveu um novo tipo de certificação, que cada vez mais se impõe a todas as crianças, independentemente da sua origem rural ou urbana.

Também os meios de transporte e as organizações sofreram autênticas revoluções. Os autocarros não só permitiram aos habitantes dos meios rurais deslocarem-se mais facilmente as cidades ou emigrarem, como também facilitaram o seu retorno periódico ou permanente as aldeias de origem, onde introduziram novas ideias e formas de comportamento. A revolução nos meios de transporte e nas comunicações serviu de suporte a expansão de empresas e de organismos públicos; de tal forma, que já não constitui surpresa encontrar as suas sucursais e delegações implantadas em zonas rurais, onde os seus representantes introduzem os seus produtos comerciais ou serviços, apoiados por legiões de quadros, que, nas cidades, se dedicam ao estudo de novos produtos para venda e de novas estratégias de mercado.

Constata-se, pois, não só uma supremacia das cidades, com todas as implicações daí decorrentes, mas também uma maior penetração da sua influência nas zonas rurais. Esta

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influência das cidades trouxe consigo o consumo de produtos enlatados, coca-colas, blue-jeans e plásticos. Mas estas mudanças provocaram também a incerteza face aos valores e práticas tradicionais, incluindo as práticas educativas. O sentimento de “comunidade” foi abalado, gerando conflitos de lealdade. Actualmente, mesmo as crianças dos meios rurais vivem simultaneamente e m contextos múltiplos, por vezes dissonantes entre si. Condicionadas pela cultura nacional e global, têm as suas raízes numa cultura local, por vezes insegura de si própria, das suas origens e dos seus rumos.

Em geral, as ideias sobre o desenvolvimento da criança têm-se revelado resistentes a mudança, apesar de o acesso a informação estar, hoje, facilitado. É o caso dos habitantes de zonas rurais, a quem se pede que assimilem novos padrões de resposta e que resistam a adoptar novos comportamentos e atitudes que podem, efectivamente, revelar-se necessárias a um melhor ajustamento dos seus filhos a um mundo e m transição ou aos múltiplos contextos que os rodeiam. É também o caso dos indivíduos que migram para a cidade, obrigados a adaptar-se a u m novo ambiente. Mas esta resistência constata-se igualmente nas atitudes de técnicos e burocratas que, nas cidades, são incumbidos de elaborar programas de intervenção destinados as comunidades rurais. Tendo crescido e sido formados dentro da tradição ocidental (e muito provavelmente urbana), quando se aventuram e m áreas rurais, esses profissionais tendem a agarrar-se a metodologias e conteúdos de influência ocidental, subesti- mando e ignorando a riquíssima tradição cultural, existente nesses meios, e as suas práticas venerandas, de comprovada eficácia.

Se, nos indivíduos, o processo de adaptação a mudança é lento, quando toda uma cultura é nele implicada, ele ocorre ainda mais lentamente. Consideremos, por exemplo, uma outra revolução: a emancipação das mulheres e as consequências deste fenómeno na estrutura da família (Tilly & Scott, 1978). Em muitas zonas do mundo, os efeitos desta revolução ainda não se fizeram sentir, mas também aí, mais tarde ou mais cedo, acabarão por se manifestar. De novo, é

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necessário que as formas de pensar sobre o desenvolvimento e sobre a educação das crianças se ajustem a esta nova realidade. E, no entanto, este ajustamento tem-se vindo a processar lentamente e, paradoxalmente, quando as reacções finalmente surgem, revelam-se, por vezes, demasiado precipitadas ou excessivamente drásticas, menosprezando a necessidade e o desejo de preservação de valores fundamentais, que o processo de socialização precedente reforçou nos indivíduos.

U m a enumeração mais exaustiva de mudanças e m curso, que condicionam a nossa forma de pensar sobre o desenvolvimento da criança e a educação nos primeiros anos de vida, teria, necessariamente, de referir os efeitos do aumento da afluência, da mudança na distribuição da riqueza e das oscilações da conjuntura económica, que desencadeiam ajustamentos difíceis, das principais alterações no panorama geopolítico mundial durante as décadas de 50 e 60, que levaram a independência de muitas nações, e do crescimento de organizações de âmbito internacional, investidas com amplos poderes para estabelecer directrizes e conceder empréstimos. Mas o objectivo deste capítulo não é empreender uma análise histórica exaustiva de todas as mudanças sociais e económicas com reflexos na condição da criança (ver Wall, 1975 e Levine & White, 19861, mas, sim, tentar sugerir ao leitor que os modelos e formas de pensar sobre o desenvol- vimento da criança terão de mudar consideravelmente, face a proporção de tais mudanças e a luz da dualidade existente no mundo e m que tantas crianças “em risco” vivem. É nossa intenção chamar a atenção para a magnitude do desafio com que nos defrontamos, tentando preservar os valores. e a herança cultural dos povos e, simultaneamente, assimilar estas mudanças. Olhemos, pois, para o passado recente, numa tentativa para avaliar os resultados dos nossos esforços de adaptação. C o m a iniciativa de declarar 1979 como Ano Internacional da Criança (AIC), criou-se uma oportunidade de elaboração de novas concepções sobre o desenvolvimento infantil e de lançamento de novas iniciativas neste domínio. Quais os resultados alcançados?

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O Ano Internacional da Criança: u m ponto de viragem?

É inegável que o AIC provocou um entusiasmo e interesse renovados pela problemática de infância. Em diferentes países empreenderam-se múltiplos exercícios analíticos e descritivos, numa tentativa de identificação de necessidades, formação de uma nova consciência e mobilização das pessoas e m torno de uma abordagem a “criança como um todo”. Foi lançada u m a pletora de pequenos projectos-piloto e programas experimentais, projectos que marcaram u m a abertura significativa aos programas “informais”, empreendidos e m contextos de desenvolvimento comunitário. Instituíram-se, também, programas de formação para pais e programas visando a educação das crianças pelos seus irmãos mais velhos. Simultaneamente, desencadearam-se esforços consideráveis na promoção e expansão da rede de escolas pré-primárias.

O que é que mudou e m consequência do AIC? Uma apreciação retrospectiva concluiu que “ ... o nível de consciencialização acerca dos direitos e necessidades das crianças centuplicou nos últimos dez anos” (Smyke, 1989, p. 53). Esta nova consciência culminou na Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelas Nações Unidas e m 1989 e agora a ser analisada ao nível dos diferentes países.

Mas que aconteceu, de facto, ao nível da elaboração de políticas e programas desde 1979? Na generalidade, é certo que esta maior consciencialização contribuiu para que os diferentes países produzissem novas leis e políticas. Foram feitos progressos significativos no domínio da intervenção, visando um acréscimo da taxa de sobrevivência infantil, e progressos mais modestos na promoção dos cuidados e do desenvolvimento na primeira infância. Ainda hoje, várias organizações constituídas durante o AIC se mantêm activas e produtivas.

Infelizmente, não nos é possível precisar mais a nossa resposta, já que não foi criado qualquer mecanismo com o objectivo de acompanhar, de forma sistemática, a evolução da maioria dos esforços iniciados e m 1979. Isto é particularmente

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

verdade no que respeita a projectos e programas que, ao invés de um ponto de vista de sobrevivência, adoptaram como premissa de actuação a promoção do desenvolvimento da criança.

Entretanto, é certo que, embora o AIC tenha gerado uma vaga de entusiasmo e de actividade, muito do impulso criado e m 1979, relativamente a intervenção no desenvolvimento e na educação da criança, se perdeu. Com frequência, os governos e as organizações internacionais falharam no apoio financeiro as novas iniciativas. Empreenderam-se muitos esforços avulsos, mas não foi produzida nenhuma campanha concertada e persistente de promoção do desenvolvimento infantil. Ao nível internacional, a causa das crianças, ao contrário da causa das mulheres ou da preservação da qualidade da água, não conquistou uma década. Nenhuma instituição das Nações Unidas foi especialmente incumbida ou se responsabilizou por lhe dar seguimento. Privadas da necessária liderança e sentido de continuidade, as iniciativas de informação ou defesa da causa, e as experiências-piloto de promoção do desenvolvimento da criança foram rapidamente submergidas por uma poderosa vaga internacional de apoio aos cuidados de saúde primários, num movimento que começou a ganhar força a partir da Conferência de Alma Ata, de 1978, sob o lema “Saúde para Todos”.

No início da década de 80, começou-se a esboçar, nos círculos internacionais, uma maior ênfase nos cuidados de saúde primários e na sobrevivência infantil, a medida que as recomendações saídas da Conferência de Alma Ata foram sendo implementadas. A UNICEF, e m colaboração com a Organização Mundial de Saúde, lançou uma Revolução na Sobrevivência e Desenvolvimento da Criança (CSDWChild Survival and Development Revolution), a qual, embora ostentasse na sua designação o termo “desenvolvimento”, se limitou a promoção da sobrevivência. A iniciativa CSDR foi inicialmente condensada no acrónimo GOBI-FFF (Avaliação do CrescimentoíGrowth monitoring, Reidratação OraVOral rehydration, Aleitamento MaternoíBreast-feeding e ImunizaçãoíImunisation, tendo como temas subsidiários a Suplementação AlimentaríFood Supplementation, o Espa-

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çamento dos NascimentosíFarnily Spacing e a Educação das MulheredFemale Education). Contudo, a medida que a cruzada evoluiu, foi atribuída uma progressiva importância A reidratação oral e a imunização, consideradas os dois “motores gémeos” da iniciativa CSDR. Apenas agora se começa a dar mais atenção as outras valências, mas ainda sob uma óptica que coloca a tónica na sobrevivência e no crescimento. Outras organizações internacionais e bilaterais colaboraram nesta cruzada a escala planetária, tendo os governos, conscientes dos seus ainda elevados índices de mortalidade infantil e do clima internacional favorável ao auxílio destinado a sua redução, reagido positivamente.

Simultaneamente, o agravamento da conjuntura económica, que se fez sentir durante os anos 80 na maioria dos países do Terceiro Mundo, deixou pouco espaço para o incremento de qualquer tipo de intervenção. Em geral, os ajustamentos económicos necessários revelaram-se adversos aos sectores sociais da saúde e da educação. E com todos os esforços concentrados e m programas de saúde, de promoção da sobrevivência, os programas visando ou meramente abrangendo a componente de desenvolvimento psicossocial na primeira infância viram faltar-lhes o apoio e m larga escala que lhes seria devido, caso as recomendações e iniciativas despoletadas pelo AIC tivessem tido continuidade.

Apesar destas limitações, verificou-se e m alguns países algum crescimento nos programas de educação da criança e no sector pré-escolar. Ainda é muito cedo, porém, para afirmar se este facto se ficou a dever ao AIC, ou seja, se esta iniciativa já mobilizou u m número bastante de indivíduos dotados da força anímica necessária para prosseguir nesta via apesar dos obstáculos de vulto que se lhes colocam, ou se esta expansão ocorreu independentemente do AIC, resultando apenas de pressões locais que exigiam resposta imediata. Todavia, a situação e m 1989 é consideravelmente melhor do que aquela que se verificava e m 1979. E porque o desen- volvimento da criança é um processo multidimensional e interactivo, os programas de sobrevivência tiveram igual- mente repercussões positivas no desenvolvimento. Mas que distância já percorremos?

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Cuidados e Desenvolvimento da Criança e m 1989: O Quadro Geral

O quadro geral, que emerge de qualquer tentativa para descrever os programas de cuidados e desenvolvimento na primeira infância, e m 1989, será necessariamente impreciso, repleto de contradições aparentes. Por um lado, parece que, nos últimos 20 anos e, mais particularmente, nos últimos 5 ou 10 anos, foram dados passos gigantescos. Como se tornará evidente, alguns países fizeram progressos notáveis e existem inúmeros exemplos de programas inovadores, por vezes, de grande dimensão. Por outro lado, a impressão geral é de que a situação está longe de ser adequada. Com base nos dados disponíveis, é possível concluir que:

1. N a maioria dos países, a cobertura alcançada por programas estruturados e identificáveis é relativamente baixa. Isto é particularmente verdade nos países africanos a sul do Sara.

2. Muitos projectos e programas continuam a marcar passo na fase experimental, projectos que, embora inovadores, eficazes e relativamente fáceis de reproduzir noutras situações, não alcançaram uma dimensão significativa.

3. A distribuição dos programas, particularmente daqueles que têm um carácter mais institucionalizado, embora tenha vindo a equilibrar-se, continua a favorecer as cidades e a ignorar as crianças e m maior situação de “risco” (existem excepções a esta generalização).

4. A intervenção junto das crianças com menos de 3 anos de idade e, e m especial, entre um e três anos, ainda constitui um desafio. Os serviços de apoio, que levam e m consideração tanto as necessidades das crianças como das mães trabalhadoras, continuam a ser insuficientes, quer quantitativa quer qualitativamente.

5. Os programas de apoio e formação de pais tiveram um crescimento notável e m alguns países, mas noutros

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continuam a ser virtualmente desconhecidos, particularmente no que respeita a formação sobre as componentes psicossociais do desenvolvimento infantil. Nestes programas predomina uma tendência para a imposição de conhecimentos, e m vez de um maior apoio aos pais na elaboração e expansão do seu próprio saber.

6. Muitos programas de carácter “voluntário” já ultrapassaram o estádio de entusiasmo inicial, e o sentido de militância que lhe esteve na origem tem vindo a sofrer um desgaste. Todavia, como as instâncias oficiais não reconheceram, a este tipo de programas, a credibilidade necessária a afectação de fundos públicos, corre-se o risco da sua extinção.

7. Frequentemente, o nível de qualidade é baixo e, por isso, os seus efeitos nas crianças são pouco significativos. Apesar de alguns êxitos obtidos e de se constatar uma maior consciencialização, a articulação de diversas componentes e m programas integrados continua a constituir u m desafio.

Estes pontos podem ajudar a clarificar a conclusão de que a intervenção neste domínio, embora tenha registado progressos significativos, se encontra ainda num estádio de grande vulnerabilidade , exigindo uma maior atenção, que permita manter os progressos já alcançados e, simultaneamente, superar as lacunas existentes.

U m a Tarefa Impossível?

Actualmente é virtualmente impossível obter u m a descrição detalhada e abrangente das intervenções nos cuidados e desenvolvimento na primeira infância e m países do Terceiro Mundo. Duas razões, pelo menos, justificam esta situação. Em primeiro lugar, u m a grande parte destes programas reveste-se de um carácter tão informal que não figuram e m nenhum modelo de registo estatístico. Não só

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

escapam h atenção das organizações nacionais e internacionais especializadas, mas também não são incluídas, enquanto actividade produtiva, nas classificações nacionais de actividades económicas.

Mesmo entre os programas mais estruturados, a diversidade é tão grande, que apenas um modelo de registo estatístico seria insuficiente para levar a efeito esta tarefa. Conseguir uma cobertura adequada deste domínio, implicaria reunir dados não só sobre os centros e m funcionamento, mas também sobre programas de apoio domiciliário, formação de pais, intervenções associadas a programas de incentivo ao emprego das mulheres, e programas de reabilitação que abranjam crianças e m idade pré-escolar. Acresce que, se adoptarmos uma perspectiva genuinamente holística, todos os programas de saúde, nutrição, desenvolvimento e educação inicial deveriam ser incluídos. Quando se pensa no número de diferentes organizações, públicas e privadas, que ao nível da comunidade, região ou nação, são responsáveis pela implementação de programas que, de alguma forma, têm implicações no desenvolvimento da criança, esta tarefa assume proporções verdadeiramente esmagadoras.

Por esta razão, tentaremos usar de modéstia na delimitação da tarefa que nos propomos empreender, limitando-nos a abordar programas de cuidados e desenvolvimento infantis estruturados, e deixando de lado programas monofocais de saúde e nutrição, embora reconhecendo que, também eles, condicionam o desen- volvimento. Concentrar-nos-emos e m programas que se designam de cuidados infantis, de desenvolvimento da criança ou pré-escolares, ou que tenham numa destas componentes u m dos seus objectivos prioritários, o que traduz bem a nossa intenção de valorizar a dimensão psicossocial do desenvolvimento da criança. Mesmo assim, a tarefa é complexa e árdua, pois dificilmente será possível reunir todos os dados necessários recorrendo a uma única fonte de informação. Um exemplo respeitante a São Paulo, no Brasil, ilustra

bem a complexidade de que se reveste qualquer tentativa de sistematização deste tipo de programas. Num estudo exaustivo

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(1988), Campos e Rosemberg concluíram que, na área metropolitana de São Paulo, estavam e m curso 4 programas principais da responsabilidade de agências federais (de âmbito nacional), 6 da responsabilidade de agências estaduais e 3 da responsabilidade de agências municipais. Cada u m destes 13 organismos públicos utilizava um modelo de intervenção ligeiramente diferente. As principais variantes consistiam numa “creche completa” (para crianças dos O aos 6 anos), num “infantário completo” (para crianças dos 2 aos 6 anos), classes pré-primárias (para crianças de 5 e 6 anos), “infantários de emergência” (uma versão menos formal de um infantário completo, também para crianças dos 2 aos 6 anos). Ora, a maioria dos registos estatísticos não incluiria estes auto-intitulados programas de emergência. Para além dos modelos já mencionados, verificou-se ainda a existência de “parques infantis” (um remanescente dos anos 30 para crianças dos 3 aos 12 anos) e infantários organizados e m empresas (para crianças dos O aos 6 anos). Constatou-se, ainda, a existência de uma grande diversidade de programas de iniciativa privada que, no seu conjunto, asseguravam cerca de 38% da cobertura total.

Ainda um outro exemplo: o Ano Internacional da Criança serviu de estímulo, na Índia, a implementação de um pro- jecto de grande envergadura, empreendido pelo Ministério da Segurança Social, com o objectivo de caracterizar estatisticamente a situação de A CRIANÇA NA ÍNDIA. Publicado finalmente e m 1985, este relatório de 1500 páginas incluía informações exaustivas sobre programas de nutrição, designadamente de alimentação infantil, “serviços de assistência infantil” e de “assistência as crianças deficientes dos O aos 6 anos”. Entre estes serviços de assistência, contavam-se projectos patrocinados quer pelos serviços centrais, quer pelas delegações estaduais, do Serviço para o Desenvolvimento Integrado da Criança; lares para crianças indigentes financiados pela administração central e pelas administrações estaduais; programas de cuidados infantis de âmbito nacional ou estadual; creches geridas por agentes da

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UM TEMPO .PARA A INFÂNCIA

administração central, estadual ou municipal, ou pertencentes a instituições privadas; e, ainda, serviços oferecidos por organismos com um nome tão invulgar como “CháíCafé” e outras “Comissões”. Quando este documento foi publicado e m 1985, a informação nele contida encontrava-se já desactualizada nalguns aspectos relevantes, uma vez que o Serviço para o Desenvolvimento Integrado da Criança conheceu um rápido desenvolvimento entre 1980 e 1985 e as condições de saúde e de nutrição das crianças indianas apresentaram algumas melhorias durante este período. Contudo, esta iniciativa produziu um excelente quadro de referência para o enquadramento sistemático dos programas destinados a melhorar a situação da criança indiana.

Estatísticas e Impressões

Embora nenhuma fonte de informação nos permita elaborar um quadro completo da situação, várias são aquelas a partir das quais se pode legitimamente esperar obter uma ideia genérica sobre o nível de evolução atingido pelos programas de cuidados e desenvolvimento na primeira infância. Iremos examinar números que figuram nos documentos produzidos pela UNESCO e pela UNICEF, as duas principais organizações das Nações Unidas especia- lizadas nesta temática.

UNESCO

1. Estatísticas Educatzuas. Incluídas nos boletins de estatísticas educativas, editados periodicamente pela UNESCO, encontramos dados referentes a programas educa- tivos pré-escolares. A edição de 1988 (Quadro 3.3.) inclui os números respeitantes as taxas de frequência escolar na maioria dos países entre 1980 e 1985 (ou 1986, e m alguns casos). Os dados apresentados pela UNESCO referem-se a “infantários, creches e também infantários existentes e m escolas de nível de ensino mais elevado. Sempre que possível

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foram excluídos os centros informais e comunitários destinados ao acolhimento de crianças e m idade pré-escolar com dificuldades de aprendizagem, etc”. Embora as informações recolhidas pela UNESCO façam referência a uma grande diversidade de programas, nem sempre figuram entre eles os programas de carácter mais informal, e a maioria dos programas incluídos são programas estruturados, destinados a crianças entre os 3 e os 6 anos. Assim, as cifras referidas pela UNESCO apenas nos permitem formar uma ideia muito difusa da cobertura alcançada pelos programas existentes destinados a primeira infância. U m a vez que estes programas, referidos nas estatísticas da UNESCO, apresentam grandes variações de país para país (por ex., classes pré-primárias corânicas e m Marrocos, escolas comunitárias no Quénia, ou classes pré-primárias formais destinadas a elite da Nigéria), uma comparação interpaíses não faria qualquer sentido. Elas permitem, todavia, constatar o crescimento global e m cada país, deste tipo de programas, durante os 5 ou 6 anos que se seguiram ao AIC. U m a análise empreendida sob esta perspectiva permite-nos retirar as seguintes conclusões:

Com raras excepções, verificou-se um acréscimo nas taxas de cobertura, apesar de uma conjuntura económica difícil. Os poucos países que não apresentaram qualquer crescimento foram Angola, Moçambique, Irão e Líbano, países devastados pela guerra. Um quinto país, e m que a taxa de cobertura parece ter sofrido uma ligeira quebra, foi Cuba. Em todos os outros países e m vias de desenvolvimento (cerca de outros 100 para os quais foram apresentados dados), verificou-se pelo menos algum crescimento.

Em alguns casos, este incremento pode mesmo ser reputado de notável; note-se, no entanto, que este acréscimo se verificou e m relação a um nível inicial muito baixo, como no caso de Burkina Faso, cujo crescimento foi de cinco vezes (mas a partir de uma frequência de apenas 732 crianças e m 1980 para 3751 e m 1986); e m O m ã o crescimento foi de seis vezes (de 396 crianças para 2 542) e, a um nível mais elevado, de cinco vezes na República Dominicana (de 22278 para 125 780).

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

No entanto, também e m alguns países, e m que o número de crianças abrangidas é elevado, se verificou um crescimento relativamente rápido: o Brasil dobrou a cobertura destes programas de 1 335 O00 para 2 699 OOO), na Tailândia a cober- tura quase triplicou no mesmo período (de 376313 para 1009131) e, na Indonésia, a frequência destes programas aumentou de 1005 225 e m 1980 para 1258468 e m 1985. Não existem dados referentes ao Bangladesh, Paquistão ou Nigéria.

Entre os países mais populosos, os dados respeitantes a China relatam um crescimento de aproximadamente 11 507 O00 crianças participantes e m 1980 para 16 289 800 e m 1986 (o que constitui, aliás, uma taxa de cobertura consi- derada relativamente baixa) e a Índia registou um aumento de participação de 918 238 e m 1980 para 1033 315 e m 1984. Estes números revelam claramente que as crianças abrangidas pela componente pré-escolar formal do gigantesco Serviço para o Desenvolvimento Integrado da Criança na fndia não foram incluídas nesta estatística: a cobertura alcançada pelos centros de dia criados no âmbito deste programa que integram centros pré-primários foi calculada e m aproximadamente 3 O00 O00 crianças e m 1985 (UNICEF, 1988).

As estatísticas da UNESCO também nos fornecem números relativos a percentagem de crianças participantes do sexo feminino. Com excepção de três países (Marrocos, O m ã e Nepal), a percentagem de raparigas que frequentam “programas educativos anteriores ao 1” nível da escola primária” é, e m todos os países, de 45% ou superior, o que sugere um efeito potencialmente nivelador dos programas para a primeira infância.

É difícil avaliar com rigor qual a significância dos números apresentados no relatório da UNESCO, e m termos de valor da taxa de cobertura, sem conhecer a dimensão dos respectivos grupos etários. Quando se introduz a grandeza da população, como factor de ajustamento, a República Dominicana, por exemplo, com uma população de 6,4 milhões de habitantes e uma participação de cerca de 26000 crianças, produz uma impressão bem mais favorável do que a China, onde se verifica uma cobertura de 16 O00 O00 crianças para uma população de 1,2 mil milhões de habitantes.

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2. Taxas de Frequência Pré-escolar nos Países da América Latina. U m a ideia mais clara do número de crianças com idade inferior a 6 anos, abrangidas por este tipo de programas, é-nos fornecida pelas estatísticas compiladas, para a UNESCO (Calvo, 1988), pelo Bureau Regional da UNESCO para a Educação e m Santiago (OREALC). O Quadro 1 (ver página seguinte) mostra a “taxa de escolarização” e m 1981 e 1985 e m alguns países desta região. Estas estatísticas suge- rem que:

- existe uma percentagem relativamente alta de crianças, com idades compreendidas entre os 4 e os 6 anos, inscritas e m alguma modalidade não especificada de educação pré- -escolar; - a percentagem de crianças com idade inferior a 4 anos

que frequentam programas pré-escolares é relativamente baixa; - durante este período, verificou-se uma tendência geral no sentido de um incremento e m termos percentuais da cobertura destes programas. (Note-se que esta estatística regista um crescimento e m Cuba, enquanto a estatística citada anteriormente se pronunciava por um ligeiro declínio neste país.)

A UNESCOl estimava que a cobertura dos programas de educação inicial (pré-primária para crianças dos O aos 5 anos) tinha sofrido, no conjunto dos países da América Latina, um aumento de 7,9% e m 1980 para 15% e m 1986 - o que corresponde a uma taxa de crescimento anual de 19% durante esse período (Tedesco, 1989, p. 11).

Fonte: U N E S C O - O R E A L C , 1987, citado por Gilberto Calvo in “E1 proceso de transición entre 10s programas de atención a la nifiez y 10s de educación primaria en America Latina”, n u m a comunicação apresentada no Encontro sobre a articulação entre a educação inicial e o ensino primário, 14-18 Março, UNICEF, Bogotá e U N E S C O - O R E A L C , Santiago, 1988. A “taxa de escolarização” refere-se i percentagem de crianças do grupo etário especifi- cado que se encontra a frequentar programas pré-escolares.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Quadro 1 Taxa de escolarização no nível pré-primário e m alguns países da América Latina 1981-85

País

Bolívia Brasil Chile (1982/4)

Colômbia

Cuba (1980/84) Equador E1 Salvador Honduras República Dominicana

Grupo Etário

4-5 0-6 0-5

0-3 4-5 0-4 5 4-5

5 4-6 4-6 6

1981 31,5%

998 11,9

Taxa de Escolarização

274 32,2 10,5 31,9 36,9

19,7 15,O 935

1984 34,1% 13,9 13,9

293 38,3 14,3 36,O 43,8

29,6 20,l 11,2 29,2

3. Um Inquérito Mundial. Em 1988, a UNESCO realizou um inquérito especial sobre cuidados e educação na primeira infância dirigido aos seus Estados-membros (Fisher, 1990). Neste inquérito, solicitava-se aos inquiridos que se referissem tanto a modalidades formais como não-formais de programas de cuidados e educação na primeira infância (e não apenas a escolas pré-primárias do sistema educativo formal). No entanto, a percentagem de respostas obtidas foi apenas de 54% e alguns dos países mais populosos, entre os quais o Brasil, o Paquistão, o Bangladesh e a Nigéria, não deram resposta ao questionário enviado. Além disso, os resultados obtidos foram fortemente enviesados pelas respostas dos países industrializados e dos. estados árabes, tendo, por outro lado, sido verificadas variações de grande amplitude, quer no grau de detalhe das respostas, quer nas modalidades de programas referidos. Assim, embora este

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inquérito forneça algumas descrições interessantes sobre os diversos panoramas nacionais, torna-se difícil utilizar estes dados para perspectivar u m quadro geral dos programas de intervenção precoce.

Este inquérito veio confirmar o crescimento global e, por vezes, acentuado do número de instituições envolvidas neste tipo de programas e das crianças por ele abrangidas, durante o período compreendido entre 1980 e 1988. Confirmou, tam- bém, o ainda baixo nível de cobertura que se verifica na maioria dos países do Terceiro Mundo, tal como a existência, num número significativo de países, de um desequilíbrio e m benefício das cidades. Finalmente, este inquérito revelou que, e m mais de metade dos programas referidos, a participação estava sujeita ao pagamento de propinas.

UNICEF

U m a outra fonte de informação, com base na qual se poderia esperar obter um quadro geral do nível de evolução dos programas de cuidados e de desenvolvimento na primeira infância, são os relatórios anuais editados pela UNICEF e as análises de conjuntura sobre a condição da mulher e da criança e m muitos dos países aos quais a UNICEF presta a sua colaboração.

Procurando explorar as potencialidades desta fonte, empreendemos uma revisão de todos os relatórios anuais da UNICEF, relativos a 1988, e de 46 análises de situação, realizadas entre 1986 e 1988. A primeira e talvez principal conclusão que extraímos desta revisão é que as estatísticas são apresentadas de forma irregular e assistemática. N a verdade, não se exige dos técnicos da UNICEF que recolham informação sobre programas de cuidados e de desenvolvimento na primeira infância. Assim, desta revisão resultaram informações parcelares de grande interesse, que permitem formar uma impressão geral, mas que não são susceptíveis de uma articulação coerente. A título de exemplo, enunciamos algumas rubricas, coligidas dos relatórios, relativas a situação na Asia e na África.

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A China, com os seus 16,3 milhões de crianças que frequentam escolas pré-primárias, cobre 24% da sua população entre os 3 e os 6 anos de idade. Durante o triénio de 1986- -1988, um programa de educação de pais, que começou virtualmente do ponto zero, atingiu as 130000 escolas de pais (em 1989, de acordo com as informações oficiais, estas seriam e m número de 200000).

O Sri Lanka cobre 15% do grupo etário dos O aos 5 anos, e m diversas modalidades de programas de cuidados e desenvolvimento na primeira infância.

Relativamente as Filipinas, calculava-se que este país conseguiria integrar, até ao final de 1988, 24% dos 11,5 milhões de crianças e m idade pré-escolar.

No Vietname, 30% das crianças entre os O e os 3 anos e 35% das crianças na faixa etária dos 3 aos 6 anos frequentam centros de dia institucionalizados.

Aproximadamente 35% dos 5 144 centros de desenvol- vimento existentes na fndia estão cobertos pelo Serviço de Desenvolvimento Integrado da Criança.

Finalmente, no Laos, 4% de todas as crianças na faixa etária dos 4 aos 6 anos estão integradas e m programas para a primeira infância a funcionar e m centros próprios.

ÁFRICA

No Quénia, os programas já implementados cobrem 11% das crianças dos 3 aos 5 anos, o que, aliás, parece ser uma estimativa por defeito, dado que uma outra fonte (Riak et al., 1989) indica uma cobertura no Quénia superior a 20% já em 1987.

No Benim, somente 1% das crianças e m idade pré-escolar eram abrangidas por um programa estruturado de cuidados ou de desenvolvimento da criança.

O Botswana cobre 2,6% das crianças dos 2 anos e meio aos 6 através de escolas pré-primárias.

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As informações recolhidas nos relatórios da UNICEF sobre os programas específicos e m que esta organização está envolvida são fascinantes, mas raramente estes incluem o tipo de informação necessária a uma sistematização do quadro de referência programático existente e m cada país. Destes relatórios não emerge u m a ideia clara sobre o grau de implicação relativo dos diversos agentes, tal como governos, organizações não-governamentais e agências internacionais, na organização e apoio as iniciativas de cuidados e desenvolvimento na primeira infância. Estes relatórios raramente fazem referência a programas de educação de pais e adultos e, apenas esporadicamente, descrevem u m programa de desenvolvimento comunitário, ou uma iniciativa integrada de sobrevivência e desenvolvimento, que inclua a componente de desenvolvimento e cuidados infantis. k feita menção a programas de formação aos quais a UNICEF presta a sua colaboração, mas sem qualquer preocupação de enqua- dramento global. Além disso, quando é dada alguma atenção aos esforços de promoção da causa, apenas e m alguns casos se aborda explicitamente a sua valência de desenvolvimento da criança.

ALGUMAS CONCLUSÕES GENÉRICAS

A revisão da documentação produzida pela UNESCO e pela UNICEF vem confirmar a alegação de que esta área de intervenção teve um crescimento apreciável desde 1979, embora pareça provável que estes números constituam uma aproximação por defeito.

As estatísticas também ilustram o carácter irregular deste crescimento. Não constitui surpresa constatar que elas comprovam que os países asiáticos e latino-americanos fizeram progressos bem mais significativos do que os países do continente africano.

A revisão da informação existente também permite concluir que um país não tem forçosamente de ser rico, ou ostentar uma economia florescente, para atribuir aos cuidados

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

e ao desenvolvimento na primeira infância um nível de prioridade tal que conduza a implementação de um programa ou conjunto de programas de alguma relevância. A Índia e o Quénia, países com um rendimento per capita relativamente baixo e que, todavia, lograram alcançar uma taxa de cobertura significativa e m programas destinados a crianças e m idade pré-escolar, constituem exemplos particularmente elucidativos desta afirmação. Também no conjunto dos países da América Latina se verificou na década de 80 um declínio acentuado nos padrões de vida, o que não impediu que a “educação inicial” conhecesse, nesta região, uma expansão. Finalmente, refira-se que no México, país cuja dívida externa é uma das mais elevadas e m todo o mundo, a cobertura pré-escolar cresceu a um ritmo de 9% ao ano entre 1982 e 1988.

PARA ALÉM DAS ESTIMATIVAS

Esta revisão permitiu retirar algumas conclusões de carácter muito geral, mas devemos ser cautelosos nas interpretações, devido a falta de informação consistente. Desta análise emerge uma clara necessidade de meios, que permitam efectuar uma avaliação mais sistemática dos progressos registados pelos programas de cuidados e desenvolvimento na primeira infância. Emerge, também, a necessidade de um método que facilite o registo da cobertura e nível de qualidade das diversas iniciativas que, tomadas e m conjunto, permitem aferir adequadamente da magnitude do esforço investido na promoção do desenvolvimento na primeira infância e na criação de serviços institucionalizados.

U m a primeira etapa, neste processo, consistiria no estabelecimento de um conjunto geral de categorias que enquadrasse toda a gama de programas e m curso, tendo como destinatários os diversos grupos etários, promovidos quer por organismos governamentais, quer por organizações não- -governamentais. Esta descrição deveria abranger também os programas não-formais, nomeadamente o apoio domiciliário ou os programas de educação de pais para pais, que funcionam

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numa base de voluntariado ou semivoluntariado, isto é, e m que não existe um vínculo dos educadores a um sistema burocrático formal. O conjunto específico de categorias a ser aplicado e m cada país deveria ser determinado localmente, o que permitiria que nele se reflectisse o seu perfil orga- nizacional. Os exemplos recolhidos e m São Paulo, no Brasil e na Índia, a que já nos referimos, ilustram um tipo de abordagem que poderia vir a ser adoptada. Embora numa secção a parte, também os programas de formação de pais deveriam ser incluídos.

Será também conveniente formar u m a ideia mais sistemática de quem são os principais actores que intervêm neste domínio. Os programas da responsabilidade de organismos não-governamentais podem passar facilmente despercebidos aos registos estatísticos, mesmo se o trabalho de grupos ligados a Igreja e outras organizações não- -governamentais se reveste, e m alguns contextos, de uma enorme importância.

U m a vez organizada uma descrição geral das diversas modalidades de programas, respectivas taxas de cobertura e intervenientes neles implicados, seria então possível começar a aferir de forma mais sistemática da qualidade das intervenções. Para tal, poder-se-ia recorrer a amostragens efectuadas com base e m critérios institucionais e/ou de conteúdo, determinados localmente. O Inquérito Mundial efectuado pela UNESCO continha rubricas respeitantes ao pessoal e especialistas envolvidos, a formação de professores, aos objectivos e conteúdos dos programas, e ainda aos equipamentos e instalações.

Para além destas descrições de carácter organizacional e programático, centradas e m recursos e taxas de cobertura, são também necessárias medidas de avaliação do impacto das intervenções. Noutros domínios, é hoje possível, não só traçar o quadro geral das instituições e programas existentes, mas também acompanhar a sua evolução através de um indicador como, por exemplo, a redução da taxa de mortalidade infantil ou da malnutrição do terceiro grau. N o domínio do desenvolvimento da criança não foi ainda possível chegar a

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

consenso sobre a utilização de uma medida que nos permita “situarmo-nos no caminho já percorrido”.

Existem, neste domínio, literalmente, centenas de instrumentos e medidas, destinados aos diversos grupos etários, incidindo nos diferentes aspectos do desenvolvimento e propondo-se objectivos tão diferentes como a análise sistemática, o acompanhamento e a avaliação dos diferentes programas. A maioria destes instrumentos foi concebida nos Estados Unidos ou na Europa; a maior parte são instrumentos consideravelmente sofisticados, cuja aplicação requer uma formação específica. Poucos foram adaptados ou normalizados tendo e m vista a sua utilização e m contextos do Terceiro Mundo, e o número dos que foram criados, normalizados e validados nesses países é ainda menor.

N a linha dos indicadores utilizados para avaliar o estado de saúde e nutrição, embora com algumas diferenças, seria possível criar um “Perfil de Desenvolvimento da Criança”, para grupos de crianças com 5 ou 6 anos, ou seja, e m idade pré-escolar e m sentido estrito. Um tal perfil deveria consistir de pelo menos 5 indicadores: estado de nutrição, morbilidade, pré-competências de aprendizagem da leitura e da matemática, auto-estima e expectativas parentais face a criança. Estes cinco indicadores reflectem a natureza multifacetada do desenvolvimento e destacam factores cuja relação, tanto com o desenvolvimento na infância como com os progressos e rendimento de criança na escola e e m outras situações da vida, é bem conhecida. Este perfil, porém, não deveria ser utilizado como instrumento de classificação de crianças individuais; ele deveria, antes, constituir-se num meio de avaliação das mudanças produzidas numa dada população, relativamente as dimensões contempladas no perfil, particularmente daquelas que se presume terem resultado de uma intervenção planeada na promoção do desenvolvimento de criança.

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REFERÊNCIAS

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UM TEMPO PARA A INFÂNCZA

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V UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO~

Para um número considerável de pessoas, um projecto ou programa de desenvolvimento infantil imediatamente evoca a imagem de vinte e cinco ou trinta crianças, dos 3 aos 5 anos, brincando com cubos ou encaixando triângulos e quadrados nos buracos de puzzles de cores brilhantes, sob a supervisão de um educador infantil profissionalizado, numa classe pré-primária. Esta identificação da promoção do desenvolvimento da criança com este modelo de “escola pré- -primária” é pouco feliz por três razões: acentua apenas o desenvolvimento intelectual da criança, é u m a solução relativamente dispendiosa e inicia-se tardiamente na vida da criança. Este modelo implica também uma abordagem directa e “institucional”, alicerçada na criação de centros próprios, destinados a compensar as crianças dos elementos deficitários no meio familiar e comunitário, e que, por isso, tende a colocar os pais e os outros membros da comunidade, a margem do programa. Este modelo raramente se revela como a orientação mais adequada para uma intervenção no desenvolvimento e cuidados da criança e m países do Terceiro Mundo.

Os capítulos anteriores estabeleceram as bases, que nos permitem expandir a nossa perspectiva dos programas de desenvolvimento infantil para além do nível pré-primário,

____-- Este capítulo baseia-se largamente nas orientações estabelecidas no

documento “UNICEF Programme Guidelines, Volume 5”, um manual elaborado por Robert Myers e Cassie Landers para a UNICEF e, e m particular, nos capítulos 1 e 4.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

isto é, para além de um modelo centrado e m infantários, com u m a intervenção directa junto das crianças, que começa normalmente por volta dos 3/4 anos. Tentaremos agora sistematizar esta perspectiva mais englobante, fazendo convergir três tipos de considerações, relevantes para o planeamento e implementação de programas de cuidados e de desenvolvimento na primeira infância. Este referencial que, com alguma presunção, designamos por quadro de referência abrangente dos programas de intervenção precoce encontra-se representado na Figura 2.

FIGURA 2 Um Quadro de Referência Abrangente dos Programas de Intervenção Precoce

Esta estrutura comporta três dimensões:

1. As variações no nível de desenvolvimento da criança. A primeira dimensão é definida pelas mudanças que ocorrem

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UMA ESTRATfiGIA DE INTERVENÇÃO

nas necessidades de desenvolvimento durante os primeiros anos de vida. Estas apresentarão uma configuração diferente conforme o período e m que a criança se encontra: período pré-natal, primeira infância, período 1-4 anos, período pré- -escolar ou durante a fase que se caracteriza pela entrada na escola primária e pela transição entre os limites do quadro familiar e o mundo exterior.

2. Abordagens complementares. U m a segunda dimensão distingue cinco abordagens programáticas complementares. Cada uma delas visa intervir sobre uma categoria diferente de determinantes ambientais, com influência no desenvolvimento da criança, conforme ilustrámos nos capítulos anteriores. Para além dos programas desenvolvidos e m centros, que intervêm directamente junto da criança, existe todo um conjunto de programas Complementares, que incidem, respectivamente, no trabalho ao nível dos contextos familiar, comunitário, institucional e cultural.

3. Orientações/características dos programas. U m a terceira dimensão resulta de um conjunto de orientações que conformam as características dos programas. Para além do auxílio as crianças “em risco”, aqueles deveriam propor-se desenvolver u m a estratégia abrangente e integrada; susceptível de mobilizar a participação da comunidade; flexível; alicerçada nos recursos locais (embora não necessariamente a eles restringida); financeiramente viável e eficaz numa óptica custoshenefícios; e, finalmente, que, na medida do possível, abranja todas as crianças e m risco.

A principal justificação para a elaboração desta estrutura reside na constatação de que urge superar a forma de pensar e o tipo de iniciativas redutoras e desarticuladas, que tendem a caracterizar a intervenção no domínio do desenvolvimento da primeira infância. N a prática, dificilmente, ou porventura nunca, u m programa logrará cobrir todas as categorias estabelecidas na estrutura programática. Mas, só o facto de se adoptar como referência uma perspectiva global, irá facilitar

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

a identificação das limitações específicas de cada iniciativa, e permitirá indicar, aos responsáveis pela sua concepção e execução, as componentes deficitárias.

Analisemos agora cada uma destas três dimensões.

NÍVEL DE DESENVOLVIMENTO

Vimos, nos dois capítulos anteriores, que o desenvolvimento é um processo contínuo, durante o qual a criança se encontra e m permanente mudança. Este processo começa antes do nascimento e prossegue durante toda a infância, exigindo-se, como é óbvio, abordagens algo diferenciadas as suas diferentes etapas. U m a criança que se encontra ainda no útero materno tem características diferentes de outra, que começa a andar ou a falar. U m a estratégia, que se pretenda abrangente, deverá dar resposta as diferentes necessidades que irão emergir no decurso do desenvolvimento da criança. Não será, pois, suficiente iniciar uma intervenção de desenvolvimento quando a criança atinge os três anos, nem, tão-pouco, perspectivá-la apenas e m termos de uma melhoria das condições que irão permitir o nascimento de uma criança saudável e bem desenvolvida.

U m a vez que o desenvolvimento segue um padrão geral (embora com variações ao nível individual e cultural), é possível estabelecer, para cada programa, um conjunto de actividades adequadas aos diferentes estádios ou níveis de desenvolvimento e m que a criança se situa. Estes estádios correspondem, aproximadamente, a certas idades cronológicas, embora um maior rigor imponha a sua conceptualização e m função das aquisições específicas que a criança vai fazendo a medida que cresce. Em termos muito gerais, é possível conceber modalidades de intervenção adequadas aos seguintes estádios de desenvolvimento:

- período pré-natal; - primeira infância (até cerca dos dezoito meses) e m que

se verificam o desmame, a aprendizagem da marcha e o início do desenvolvimento da linguagem;

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UMA ESTRATRGIA DE INTERVENÇÁO

- período de 1 a 4 anos (dos 18 até cerca dos 48 meses mais propriamente) durante o qual a coordenação, a linguagem, o pensamento e as competências sociais da criança se desenvolvem rapidamente, embora a um ritmo irregular; - período pré-escolar (aproximadamente dos 4 aos 5 anos)

e m que a coordenação já se encontra relativamente bem consolidada e durante o qual o desenvolvimento cognitivo e das competências de pré-leitura se processam rapidamente, enquanto, simultaneamente, a criança manifesta um maior interesse pelas relações com os seus pares; - período de transição para a escola e para o mundo

exterior (aproximadamente dos 6 aos 8 anos).

Ao nível das estruturas governamentais, a tutela organizacional dos programas de desenvolvimento infantil tende a acompanhar a sucessão de estádios de desen- volvimento e/ou a idade da criança. Antes dos 2 ou 3 anos, a responsabilidade pelas intervenções neste domínio situa-se, normalmente, no sector da saúde e/ou nos organismos vocacionados para a assistência social a família. A partir dos 3 anos, o desenvolvimento infantil é mais susceptível de ser enquadrado no sector da educação, designadamente no ensino pré-primário. Esta segmentação será lógica, se pensarmos que a sobrevivência, e os primeiros meses de desenvolvimento, estão intimamente relacionados com a condição biofísica e o processo de maturação da criança, e que, durante este período, os cuidados prestados a maioria das crianças são assegurados pela família; já durante os anos pré-escolares adquirirão maior relevo a socialização e a preparação para o ingresso na escola, alargando-se progressivamente o círculo de agentes educativos. Mas, e m contrapartida, esta compartimentação também contribui, por um lado, para ocultar a necessidade de uma atenção contínua e integrada a criança, durante o processo de desenvolvimento, e, por outro, para reforçar a tendência reducionista para a omissão de componentes psicossociais antes dos 3 anos de idade, e para a identificação dos programas de desenvolvimento infantil com intervenções essencialmente educativas, com início aos 3 anos de idade.

103

UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Procurando contrariar esta tendência para limitar as intervenções no desenvolvimento infantil a um único grupo etário (por exemplo, ao período pré-escolar, tal como o descrevemos no início deste capítulo), e pôr e m evidência a natureza simultânea dos processos de sobrevivência, crescimento e desenvolvimento, um modelo integrado deve tornar explícita a necessidade da elaboração de programas que, levando e m consideração as mudanças que vão ocorrendo na criança, cubram todos os períodos de desenvolvimento.

ABORDAGENS COMPLEMENTARES

No capítulo I, o desenvolvimento da criança foi descrito como um processo contínuo de interacção entre a criança (a qual possui um conjunto de características biofísicas e m maturação) e as pessoas e objectos que compõem o seu mundo e m constante transformação (meio ambiente). Este é composto por diversos sistemas ambientais, todos eles susceptíveis de influenciar, de alguma forma, o seu desenvolvimento, incluindo o meio imediato, constituído pela família e pela comunidade (ou rede social próxima), um contexto mais lato (que inclui as instituições de apoio e o conjunto de leis, políticas e normas sociais vigentes) e, finalmente, o meio cultural mais amplo (representado pelos valores sociais, rituais e crenças).

Embora as interacções entre a criança e a família, a comunidade, as instituições e os valores culturais tenham u m impacto diferente sobre a criança, cada um destes níveis condiciona o seu desenvolvimento, directa ou indirectamente, através das atitudes e crenças dos educadores que com ela interagem. Qualquer estratégia integrada de intervenção nos cuidados e desenvolvimento da criança, que vise alcançar reais e duradouros progressos na sobrevivência, crescimento e desenvolvimento, deverá, pois, ser concebida de tal forma que opere e m todos estes níveis. Estas considerações conduziram ao estabelecimento de 5 abordagens programá- ticas, complementares entre si:

i. Intervenção directa sobre a criança em centros de acolhimento (creches, infantários, escolas pré-primárias).

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UMA ESTRATfiGIA DE INTERVENÇÁO

O objectivo imediato desta modalidade programática, que intervém directamente junto da criança, consiste na promoção do seu desenvolvimento através da satisfação das suas necessidades imediatas, e m centros exteriores ao meio familiar. Estes constituem-se, de certa forma, como um meio “alternativo” a família e ao lar.

2. Programas de apoio e formação dos educadores. Esta abordagem incide sobre os membros da família e destina-se a formar os pais e outros familiares, procurando desenvolver nele competências, atitudes e comportamentos, susceptíveis de os ajudar a melhorar a qualidade da interacção e da atenção que prestam a criança e, consequentemente, provocar um enriquecimento do meio imediato no qual o desenvolvimento ocorre, ao invés de lhe proporcionar uma alternativa.

3. Programas de promoção do desenvolvimento da comunidade. Nestes programas, a tónica é colocada no trabalho desenvolvido no sentido da modificação dos factores que, ao nível da comunidade, afectam negativamente o desenvolvimento da criança. Esta abordagem privilegia a mobilização de iniciativas; a organização e a participação das comunidades numa diversidade de actividades interligadas que, e m conjunto, concorrem para uma maior qualidade do seu ambiente físico; o aumento do nível de conhecimentos e a qualidade das práticas dos seus membros; e, também, o reforço da estrutura organizacional, por forma a facilitar a acção comum e a melhorar a base de negociação política e social.

4. Reforço dos recursos e da capacidade das instituições. Existem inúmeras instituições envolvidas na implementação das três abordagens já citadas. Para que elas tenham condições de executar um bom trabalho, necessitam de recursos financeiros, materiais e humanos, que lhes permitam planear, implementar e avaliar convenientemente os projectos a realizar. Os programas destinados a apoiar estas instituições podem abranger iniciativas tão diversas como a construção de edifícios, a formação de pessoal, o fornecimento de materiais

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

e a experimentação de técnicas e modelos inovadores (ou seja, o desenvolvimento da “tecnologia” necessária ao seu trabalho). Nesta abordagem se inclui, também, a elaboração dos normativos legais de que depende o bom funcionamento destas instituições.

5. Reforço da procura e consciencialização. Esta abordagem incide na produção e divulgação de conhecimen- tos, que sejam susceptíveis de favorecer uma tomada de consciência para esta problemática, e um acréscimo da procura deste tipo de iniciativas. O seu campo de actuação preferencial poderá situar-se ao nível dos responsáveis pela elaboração das políticas e pelo planeamento, ou e m iniciativas que visem a mudança ao nível dos valores ético-culturais que influenciam o desenvolvimento da criança.

Embora todas estas modalidades de intervenção concorram para a promoção do desenvolvimento da criança, os objectivos imediatos e os públicos-alvo, ou grupos de participantes, que cada uma se propõe atingir, são diferentes.

A Figura 3 (ver página seguinte) resume os principais objectivos e os diversos públicos-alvo (participanteshene- ficiários) de cada uma destas abordagens, e enuncia os dife- rentes modelos que, dependendo dos objectivos propostos, poderão ser adoptados. Mais adiante, neste capítulo, referiremos, e m mais pormenor, alguns exemplos das primeiras duas destas cinco abordagens, contrastando as suas vantagens e desvantagens.

Embora qualquer plano de conjunto deva ter e m atenção todas estas componentes, a sua importância relativa na estratégia adoptada dependerá consideravelmente das condições específicas do meio que irá ser objecto de intervenção

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UMA ESTRATkGIA DE INTERVENÇAO

FIGURA 3 Abordagens Complementares a Intervenção Pre- coce nos Cuidados e Desenvolvimento da Criança

Abargagem Participantes/ F'ragramática meneficiários Objectivas Modelas

Prestação de serviços

Formação de Educadores

Promoção do Desenvolvimento Comunitário

Reforço dos recursos nacionais e das competências técnicas

Promoção da intervenção no desenvolvimento infantil

A Criança 0-2 anos 3-6 anos 0-6 anos

Pais, famflia Irmão(sJ Público

Comunidade Líderes Promotores Membros

Técnicos dos programas Profissionais Pessoal auxiliar

Dirigentes Público Grupos profissionais

Sobrevivência Desenvolvimento integral Socialização Reabilitação Melhoria dos cuidados prestados A criança

Consciencialização Mudança de atitudes Melhoridmudança das práticas educativas

Consciencialização Mobilização para a acção Mudança de Condições

Consciencialização Treino de competências Aumento dos recursos materiais

Consciencialização Formação da vontade

Incremento da procura Mudança de atitudes

política

Apoio domiciliário Centros integrados de desenvolvimento infantil Centros de "compensação" Locais de trabalho Escolas pré-primárias formaishão-formais

Visitas domiciliárias Formação de pais Programas Criança

Meios de comunicação a Criança

social

Mobilização técnica Mobilização social

Formação Projectos experimentais Reforço das infra-estruturas

Marketing social Formação da consciência ética Disseminação de informação

PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA INTERVENÇÃO

Existem diversos princípios e linhas de orientação que deverão ser levados e m consideração no planeamento e implementação de iniciativas de desenvolvimento infantil, cuja adopção se traduzirá e m características desejáveis ao nível dos programas.

1. As famílias e comunidades, que vivem em condições susceptíveis de colocar as crianças <'em risco" de desen- volvimento retardado ou debilitado, deverão constituir u m alvo prioritário da intervenção.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

Se a implementação de programas se reger por u m prin- cípio de justiça social, dever-se-á atender preferencialmente aos mais carenciados. Seleccionar, como alvo de intervenção, as crianças que se presume estarem mais expostas a factores de “risco”, implicará reunir, previamente, todo um conjunto de informações sobre os seguintes aspectos:

- a condição das crianças (peso a nascença, taxas de mortalidade infantil, estado de saúde e de nutrição); - a condição das mulheres (níveis de escolaridade, estado

de saúde e de nutrição, idade da primeira gravidez, exigências de trabalho e níveis de rendimentos); - estrutura familiar e sistemas de apoio (tamanho e

composição, emprego e níveis de rendimento, facilidade de acesso a sistemas alternativos de cuidados infantis); - práticas educativas e crenças associadas (cuidados de

alimentação, hábitos de saúde, estilos educativos e padrões de comunicação); - outros factores socioeconómicos (nível e distribuição

dos rendimentos, taxas de alfabetização, existência de água potável e condições de saneamento básico, acesso aos serviços de saúde e a outros tipos de serviços).

Esta orientação é mais fácil de enunciar que de concretizar, quaisquer que sejam os indicadores con- vencionados para definir quais as crianças e famílias “em risco”. As realidades políticas e as desigualdades sociais e económicas prevalecentes dificultam a passagem da retórica a realidade. Contudo, um número suficiente de exemplos de situações, e m que a vontade política se aliou a consciência social e a competência técnica, levam-nos a acreditar que esta orientação é susceptível de ser levada a prática. Em reforço desta posição, note-se que a causa das crianças é, relativamente a outras problemáticas, um tema menos imbuído de conotações políticas, podendo, por isso, cons- tituir-se na vanguarda da luta contra as desigualdades sociais.

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇAO

2. Qualquer programa de intervenção deverá integrar- -se numa estratégia de acção global e multifacetada.

O estabelecimento de uma estratégia de intervenção deverá começar pela definição de um conjunto de objectivos. O direito de cada criança a actualização do seu potencial constitui um ponto de partida para muitos programas de desenvolvimento infantil. O entendimento desta expressão apresenta, no entanto, algumas diferenças nos diversos contextos culturais, o que significa que os objectivos específicos, através dos quais esta meta é operacionalizada, serão diferentes para as diversas sociedades. Esta razão conduziu-nos a adoptar como meta geral do desenvolvimento infantil e, consequentemente, dos programas neste domínio, a capacidade da criança para se ajustar ao meio e m que vive, actuar nele e transformá-lo pela sua acção. Para algumas culturas, esta competência implicará principalmente o desenvolvimento da autonomia individual; para outras, será a solidariedade de grupo que prevalecerá; algumas considerarão essencial a coordenação física, enquanto outras atribuirão este papel ao raciocínio abstracto. Em todos os contextos culturais, todavia, o processo de desenvolvimento englobará dimensões físicas, intelectuais e sociais.

Já acentuámos que existe unidade nas necessidades da criança. Insistimos, igualmente, e m que a satisfação simultânea destas necessidades gerará um efeito interactivo na activação do desenvolvimento, cuja natureza não é meramente aditiva. U m a consequência evidente que decorre desta perspectiva unitária e interactiva é que qualquer programa deverá assumir um carácter multifacetado e integrativo. No entanto, como já referimos, predomina a tendência para abordagens parcelares, que se traduz na existência de programas que visam a saúde ou a nutrição, mas ignoram as valências de estimulação e de interacção criançaíeducador, cruciais para o processo de desenvolvimento, e vice-versa.

A aceitação deste princípio não significa que todas as componentes tenham que ser, obrigatoriamente, contempladas

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

e m todos os programas de todas as organizações. Todavia, u m a estratégia global, que se pretenda abrangente e multifacetada, deverá enquadrar todos os esforços de implementação de programas de desenvolvimento infantil. Importa, pois, criar oportunidades de articulação entre diferentes serviços, de reforço da colaboração multissectorial e de inclusão de novas componentes nos programas e m curso, sempre que tal for considerado oportuno.

Mas será esta orientação passível de aplicação a todas as cinco abordagens? Consideremos a abordagem que se caracteriza pelo acolhimento e m centros próprios. Muitos centros de desenvolvimento infantil não proporcionam as crianças assistência médica ou alimentação e podem ou não incluir nos seus conteúdos educativos a aprendizagem de bons hábitos de saúde e nutrição. Mesmo que disponha de assistência médica e proporcione alimentação, um infantário poderá ou não dar atenção a estimulação precoce, a organização de actividades lúdicas elou de actividades educativas. Contudo, estas várias dimensões do desenvolvimento podem ser incorporadas num serviço “integrado” ou fornecidas separadamente, e m componentes distintas, por diferentes organismos que, todavia, “convergem7’ na sua acção sobre uma dada comunidade ou local (uma comunidade ou um centro de apoio domiciliário, uma escola pré-primária, um local de trabalho, u m posto de saúde, uma cantina comunitária, u m centro de distribuição de suplementos alimentares ou qualquer outro local).

A formação de educadores, por sua vez, coloca frequentemente a tónica apenas numa componente do desenvolvimento, designadamente a saúde, quando seria possível abranger várias simultaneamente, nomeadamente a saúde, a nutrição e a educação. Isto apesar de, na prática, a conjugação de conteúdos educativos se revelar um processo mais simples do que a articulação de diferentes organismos. Por vezes, os programas de desenvolvimento comunitário apenas privilegiam uma área - água e saneamento, por exemplo - e m vez de adoptarem u m a perspectiva multifacetada. Embora o impacto potencial que -estas

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

iniciativas poderão ter na condição das crianças sirva de justificação a estes programas comunitários, não deixa de ser verdade que eles negligenciam frequentemente a atenção devida as necessidades específicas de desenvolvimento psicossocial da criança. Esta opção baseia-se no falso pressuposto de que, se for possível transformar as condições físicas da comunidade, o desenvolvimento mental e social dos seus membros mais jovens estará, por si só, garantido.

Também as estratégias dirigidas ao reforço das instituições assumem, frequentemente, u m a concepção redutora e não- -integrada. Um esforço para aumentar o nível de qualificação dos educadores de infância, que se limite ao treino e m técnicas de inspiração piagetiana, associadas principalmente ao desenvolvimento cognitivo, ou um reforço da formação dos médicos pediatras, que incida apenas no diagnóstico das doenças infantis precoces e não lhes transmita quaisquer conhecimentos sobre o processo de desenvolvimento infantil, constituem exemplos paradigmáticos desta situação. Menos frequentes serão aqueles programas que transpõem as fron- teiras burocráticas, incluindo, por exemplo, u m a componente de desenvolvimento psicossocial na formação dos técnicos de saúde ou nas rotinas das instituições de saúde.

Finalmente, as iniciativas de promoção de u m a nova ética ou de novos valores culturais podem ser estritamente orientadas para u m a mudança nas concepções sobre a sobrevivência ou a doença, ou adoptar u m a premissa mais ampla, reforçando a tendência natural de muitos educadores para considerarem a criança como um todo.

3. Os programas deverão ser alicerçados na participação e no saber da comunidade.

A participação da comunidade é, por vezes, incentivada como um fim e m si, susceptível de contribuir para cimentar u m a maior solidariedade e controle sobre a própria existência. Mais frequentemente, porém, a participação é concebida sob um ponto de vista instrumental - como u m meio que, suscitando o envolvimento activo dos potenciais destinatários

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

dos programas, por forma a aumentar a sua procura e a assegurar o seu ajustamento as realidades locais, irá concorrer para a sua eficácia. Um número crescente de experiências tem demonstrado que a participação da comunidade é um factor que contribui, por um lado, para aumentar a eficácia da maioria dos programas e, por outro, para uma expansão dos serviços a um nível que, atendendo apenas as dotações orçamentais e aos recursos do sector público, julgaríamos impossível atingir.

O conceito de participação num programa pode ser definido de diversas formas. N a medida e m que os utentes acorrem aos centros, podemos afirmar que existe participação, mas a simples utilização não implica u m a contribuição dos beneficiários para a definição do seu conteúdo, financiamento e gestão. Pode significar, simplesmente, que os serviços oferecidos estão a ser utilizados, o que não é sinónimo do tipo de participação a que esta directriz se refere. Mais comum é u m a definição e m termos de um contributo, sob a forma de doação dos materiais ou da força de trabalho necessária para a construção de instalações. Esta concepção apresenta ainda grandes limitações, quer e m termos conceptuais, quer e m termos de dimensão temporal. Assim concebida, a participação não só não se traduz numa aquisição de novos conhecimentos ou competências, como também não implica um envolvimento continuado, necessário a sobrevivência dos programas.

U m a definição mais completa da participação comunitária, num dado programa, terá necessariamente de referir os aspectos de mobilização e de envolvimento directo da comunidade e m todas as fases da intervenção - no seu planeamento, implementação e avaliação. Para tal, importa criar e desenvolver mecanismos organizacionais, através dos quais esta participação se possa exprimir, e solicitar a participar na discussão e implementação da intervenção, não apenas alguns indivíduos designados, mas toda a comunidade, numa base de continuidade.

Em contraponto ao discurso oficial, a maior parte das intervenções na sobrevivência, no crescimento e no desenvolvimento coloca obstáculos a esta participação

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UMA ESTRATkGIA DE INTERVENÇÃO

generalizada por parte dos “utentes”, durante u m período prolongado, e nas diversas fases de formulação, implementação e avaliação de objectivos. Este facto é particularmente evidente e m muitas iniciativas de criação de centros de acolhimento para crianças, que tendem a ser concebidos, financiados e organizados por fontes exteriores a comunidade. Será ainda mais frequente no caso de se tratar de programas gover- namentais, centralizados, ou que têm por objectivo alcançar uma ampla cobertura. Contudo, os centros de cuidados e desenvolvimento da criança podem ser, e são-no ocasional- mente, criados e geridos através da participação local, ainda que financiados por fontes exteriores e conformados por orientações gerais de âmbito nacional.

A formação de educadores também pode assumir um formato extremamente participativo, alicerçado na experiência empírica e no saber de grupos de pais, que aprendem e se apoiam mutuamente através da discussão e m grupo, ou ser operacionalizada através de programas nos quais os educadores recebem informações consideradas adequadas a sua condição, sem qualquer preocupação de os adaptar as circunstâncias locais e de submeter o seu conteúdo a discussão. No âmbito desta abordagem, é possível escolher “professores” estranhos a comunidade ou optar, para o desempenho desta função, por membros da comunidade que se tenham revelado educadores bem sucedidos.

A diferença entre um formato participativo e um formato não-participativo pode traduzir-se nas fórmulas “transmitir conteúdos relativos ao desenvolvimento da criança’’ e “debater temas de desenvolvimento da criança”. D a mesma forma, os programas de desenvolvimento comunitário e as iniciativas e m prol do reforço das instituições podem ser concebidas de forma a suscitar uma elevada participação e serem localmente controladas ou, pelo contrário, resultar de imposições exteriores, levando a um grau de envolvimento virtualmente nulo no seu planeamento, financiamento e avaliação.

Finalmente, também as campanhas a favor de uma maior consciencialização da sociedade civil e m geral ou da classe política, de determinados grupos profissionais ou dos líderes da opinião pública podem ser abordadas de forma mais ou

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

menos participativa. D e novo, é possível indicar as pessoas aquilo que devem valorizar ou e m que devem acreditar ou, e m alternativa, ajudá-las a descobrir esses valores, dando- -lhes a oportunidade de participarem no processo.

As duas orientações, que iremos enunciar seguidamente, estão intimamente relacionadas com este debate sobre a necessidade de tornar os programas mais participados e alicerçados no saber da comunidade.

4. Os programas deverão ser dotados de flexibilidade e ajustados aos diferentes contextos socioculturais.

Crianças de diferentes nações, comunidades e culturas diferem largamente nas suas necessidades específicas. A menos que um programa consiga identificar as necessidades particulares da comunidade que se propõe servir, existe o risco de que a intervenção se revele irrelevante, face as reali- dades e necessidades prevalecentes. Nestas circunstâncias, os obstáculos a uma participação efectiva da comunidade seriam acrescidos. Chegar com um conjunto de soluções estereotipadas, para um conjunto de problemas preconcebidos, não só não favorece a participação como dificulta a obtenção dos resultados desejados. Se se pretende, pois, que a participação da comunidade se traduza numa consulta a todos os níveis, os programas devem revestir-se de uma flexibilidade que lhes permita incorporar os resultados deste processo. Verifica-se, todavia, uma tendência natural nos responsáveis para procurarem soluções-tipo, cuja aplicação possa ser generalizada, indiscriminadamente, a todas as circunstâncias (ver orientação 7).

5. Os programas devem reforçar e aproveitar as práticas locais que, ao longo da sua história, permitiram a comunidade lidar adequadamente com os problemas inerentes aos cuidados e ao desenvolvimento da criança.

Esta orientação baseia-se no pressuposto de que as probabilidades de êxito de um programa aumentarão, se este

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

começar por soluções concebidas e testadas localmente, ao invés de adoptar soluções impostas do exterior. Esta directriz acentua o valor das competências e das medidas inovadoras nascidas das necessidades concretas de cada comunidade. Esta posição contrasta com aquela que atribui todo o conhecimento válido aos “especialistas” exteriores a comunidade sem, todavia, negar a importância potencial de que se pode revestir a assistência prestada a comunidade por agentes exteriores, na formulação e aplicação de novos métodos de promoção do desenvolvimento infantil. O respeito pela cultura local e a utilização dos seus costumes caracterizam uma perspectiva “construtivista” de intervenção, que contrasta com o que designaríamos por perspectiva “compensatória”. U m a participação efectiva da comunidade determinará, por definição, uma intervenção construtivista e susceptível de respeitar a cultura local.

6. Os programas deverão ser financeiramente viáveis e a relação custo I beneficio favorável.

É óbvio que a implementação de um programa específico deverá ser viável, dentro dos limites impostos pelos recursos disponíveis, e que o projecto deverá revelar-se economicamente comportável, mesmo após o período inicial, e m que os custos são normalmente assumidos por uma fonte de financiamento exterior. Não obstante, a “viabilidade” económica de uma iniciativa só parcialmente depende da existência de fundos disponíveis - ela depende igualmente da agenda de prioridades estabelecida e da respectiva afectação de fundos. Isto significa que um programa, ao qual foi atribuído um nível elevado de prioridade, poderá ser viabilizado através do cancelamento de u m a iniciativa de grau menor de prioridade.

Dependendo da opção escolhida, o custo dos programas pode variar consideravelmente. Faz, pois, sentido que se envidem todos os esforços para evitar a utilização de tecnologias, materiais e técnicos importados, necessariamente dispendiosos e, não raro, de utilidade duvidosa. Os recursos

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

existentes no local são, frequentemente, susceptíveis de produzir resultados idênticos por um custo inferior.

O leitor poderá ter notado que não equacionámos esta orientação e m termos de procura de programas de “baixo- -custo”. A questão, de facto, não reside e m procurar o menor custo possível para um determinado programa, já que algumas medidas, que se traduziriam num custo inferior, teriam repercussões negativas no grau de eficácia. Ora, um projecto barato, que não produza quaisquer efeitos, equivale a um desperdício, e, e m última análise, redunda num dispêndio maior do que um programa de custo mais elevado que, contudo, permita obter resultados.

Cada uma das cinco abordagens identificadas permite diferentes opções de custo muito variável. Um programa de cuidados, destinado a 15 crianças, entregues a uma ama local treinada para o efeito, que as receba e m sua‘própria casa, e as cuide e eduque com a ajuda, numa base rotativa, das respectivas mães e com a assistência de postos de saúde existentes na comunidade, terá u m custo, por criança, consideravelmente inferior ao de um programa, que reúna 60 crianças num edifício especialmente construído para o efeito, e para o qual seja necessário contratar um director, um educador de infância profissionalizado, vários auxiliares educativos, um cozinheiro e um guarda, e ainda adquirir o mobiliário. Outro exemplo: um modelo de formação de educadores que utilize como suporte os meios de comunicação social, permitirá difundir mensagens susceptíveis de alcançar um elevado número de pessoas com um custo individual comparativamente muito inferior ao de um programa que recorra a uma metodologia de grupos de discussão, que, embora sendo potencialmente mais eficaz, não só terá custos mais elevados, mas também implicará um maior número de técnicos envolvidos.

Um modelo de intervenção mais dispendioso pode resultar numa maior eficácia, quando comparado com um modelo de menor custo. Contudo, se os custos ascenderem a níveis tão proibitivos que limitem os seus benefícios a alguns privilegiados, impedindo a sua aplicação e m larga escala, o

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

projecto poderá ter de ser abandonado, por se revelar impraticável, apesar de apresentar u m a relação custos/ benefícios favorável. A maximização dos recursos disponíveis obriga, pois, a enveredar pela procura de soluções que com- binem um custo relativamente baixo com um grau relativa- mente elevado de eficácia. A constatação de que quanto mais baixo for este custo maior será a dimensão atingida pelo programa, para o mesmo volume de recursos disponíveis, con- duz-nos a última directriz deste quadro de referência.

7. Os programas deverão procurar obter impacto junto do maior número possível de crianças ém risco”.

U m a vez que, na maioria dos países do Terceiro Mundo, as necessidades são tão elevadas, os responsáveis pelos programas deverão dar prioridade as iniciativas que ofereçam melhores garantias de proporcionar, a maioria das crianças e m situação de “risco”, uma solução eficaz. N a prática, isto significará considerar a possibilidade de ultrapassar as fases de demonstração e dos projectos-piloto e passar a implemen- tação e m larga escala.

A ‘‘escala’ de cada abordagem pode ser grosseiramente representada num continuum, que vai de um nível de cobertura muito reduzido até um nível que equivale ao valor de 100%. Determinar o que constitui esta “escala”, porém, já não se afigura um processo tão simples. Em primeiro lugar, é necessário determinar qual a população-alvo, a qual pode ser diferente da população total, constituída, por exemplo, por todas as crianças com idade inferior a 6 anos ou por todas as mulheres grávidas ou que amamentam. De facto, nem todos os indivíduos terão de ser abrangidos pelo programa, e o número de crianças necessitadas de auxílio poderá ser diferente consoante a modalidade de intervenção no desenvolvimento infantil adoptada. Por exemplo, uma taxa de cobertura de 100% poderá ser uma meta simultaneamente desejável e necessária, se se tratar de um programa de imunização, mas, já no caso de um programa de estimulação precoce, u m a parte significativa da mesma população

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

dispensará este tipo de intervenção, uma vez que estas crianças já se encontram a receber uma estimulação e uma educação adequadas.

Contudo, a “escala” pode ser alcançada por vários processos, de entre os quais a expansão de u m modelo ou programa único, para toda a população, constitui u m a alternativa, entre várias possíveis. Uma outra possibilidade consistiria e m adicionar os resultados de diversas iniciativas, baseadas e m modelos diferentes, e tendo como alvo segmentos distintos da população. A adopção desta concepção de escala por “as~ociação’~ ou “adição” permite incrementar uma ele- vada taxa de cobertura, estimulando o desenvolvimento de um conjunto de pequenos projectos e, simultaneamente, desencadeando iniciativas uniformes de âmbito nacional. É crucial que este conceito de escala seja adoptado, se pretendemos reconciliar o desejo de fomentar a participação da comunidade com o desejo de alcançar um número considerável de crianças.

Estes sete princípios orientadores, tomados no seu conjunto, constituem uma grelha de análise para todos os programas, que pode ser aplicada a uma qualquer ou a todas as abordagens, e m cada um dos estádios de desenvolvi- mento.

Tendo estabelecido o quadro de referência que nos servirá de orientação, iremos examinar alguns exemplos de diversos tipos de programas, formulados no âmbito das primeiras duas das cinco abordagens referidas.

ACOLHIMENTO DE CRIANÇAS EM CENTROS

O acolhimento de grupos de crianças num qualquer tipo de centro constitui uma abordagem que, potencialmente, apresenta várias vantagens:

- U m a atenção directa permite aos responsáveis pela implementação do programa saberem, com exactidão, se a criança está realmente a receber os cuidados adequados;

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇAO

- O agrupamento de crianças facilita um acompanha- mento do nível de protecção, cuidados de saúde e de alimen- tação fornecidos; - Para crianças na faixa etária dos 3 aos 6 anos, os

centros possibilitam um intercâmbio social necessário, que não existe nos seus lares; - Os centros revestem-se de uma notoriedade que é útil

do ponto de vista político, tanto para fazer os programas avançar, como para os manter e m curso. Eles podem tam- bém servir de ponto de reunião para os pais e para a comunidade.

Mas esta abordagem também comporta riscos:

- A intervenção exterior ao contexto familiar pode suscitar conflitos entre o meio familiar e o meio alternativo (tanto ao nível pessoal como entre os diferentes sistemas de valores promovidos). Se a criança provém de um meio familiar com características muito diferentes do centro, será difícil manter os “progressos” realizados no centro. - Em alguns casos, a família pode abdicar da sua

responsabilidade, delegando-a totalmente no centro. - O agrupamento de crianças pode contribuir para aumentar os riscos de exposição a doenças contagiosas (embora, teoricamente, também facilite a sua prevenção e tratamento).

Exemplos

Os cinco exemplos seguintes ilustram várias modalidades de acolhimento de crianças e m centros. Não incluímos, entre elas, nenhum programa de escolas pré-primárias, inseridas no sistema educativo formal; pelo contrário, a maioria dos exemplos é constituída por alternativas a este sistema. Os casos indiano e peruano representam programas não-formais baseados na comunidade: o primeiro, implicando um grau diminuto de participação desta e o segundo, dependendo mais do esforço dos seus membros. O exemplo colombiano representa uma modalidade de apoio domiciliário e m larga escala. Por sua vez, o caso nepalês descreve um tipo de

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

programa cooperativo, associado a uma linha de crédito destinada as mulheres. Finalmente, o exemplo brasileiro demonstra como um programa integrado pode funcionar num contexto urbano e produzir benefícios susceptíveis de cobrir o seu custo.

Índia: Os Serviços de Desenvolvimento Integrado da Criança (Integrated Child Development Services - ICDS)

Tendo-se iniciado e m 1975, com 33 projectos expe- rimentais, os Serviços de Desenvolvimento Integrado da Criança (ICDS) sofreram um incremento para quase 2000 projectos e m 1989, abrangendo 11,2 milhões de crianças com idade inferior a 6 anos. As metas gerais do programa são as seguintes: prestação de uma ampla gama de serviços básicos as crianças, as mulheres grávidas na faixa etária dos 15 aos 45 anos, e a criação de um mecanismo, ao nível das pequenas comunidades, que possibilite a prestação destes serviços, dando prioridade aos grupos socioeconómicos de menores recursos, nomeadamente as tribos mais desfavorecidas e as castas segregadas. Os objectivos específicos do programa ICDS são:

- criar os alicerces do desenvolvimento psicológico, físico e social da criança; - melhorar as condições de saúde e de nutrição das

crianças dos O aos 6 anos; - reduzir a incidência da mortalidade, morbilidade,

malnutrição e abandono escolar; - promover a competência das mães para dar resposta

adequada as necessidades das crianças; - alcançar uma coordenação eficaz entre departamentos

e serviços vocacionados para a activação do desenvolvimento infantil.

O conjunto de prestações de serviços do ICDS opera através de uma rede de Centros Anganwadi (palavra cujo

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UMA ESTRATfiGIA DE INTERVENÇÃO

significado literal é “pátio”), cada um deles gerido por um voluntário (Anganwadi Worker - AW) e um assistente, normalmente escolhidos entre os habitantes da aldeia. Estes AW participam num curso de formação, com a duração de 3 meses, num dos mais de 300 centros de formação existentes, pertencentes a organizações governamentais ou voluntárias. De entre as funções do AW destacam-se a educação pré-escolar não-formal, a distribuição de suplementos alimentares, a educação para a saúde e para a alimentação, a formação dos pais através de visitas domiciliárias, a animação e o apoio comunitário e o encaminhamento para os serviços de saúde primários materno-infantis.

O AW é assistido, no seu trabalho, por um supervisor (1 para 20 AW) e por um Técnico do Programa de Desenvolvimento da Criança (1 para 5 supervisores), que é directamente responsável pela implementação e gestão de cada projecto realizado no âmbito deste programa.

O programa ICDS utiliza os serviços de diversos departamentos governamentais e de outras organizações de carácter voluntário. A gestão central deste programa emana do Departamento para a Condição da Mulher e para o Desenvolvimento da Criança que, por sua vez, depende do Ministério para o Desenvolvimento dos Recursos Humanos. O custo unitário anual, por criança, deste programa foi calculado e m 151 rupias (aproximadamente USD 10.00).

Embora, com alguma frequência, o programa funcione com u m nível mínimo de qualidade, os resultados são já visíveis na população com idade inferior a 6 anos. U m a compilação de quase 30 estudos de impacto nutricional, cujos resultados foram quase unânimes, demonstrou os efeitos positivos imputáveis ao programa. Também u m estudo comparativo, abrangendo o triénio 1984-1986, efectuado e m diversas localidades, revelou que a taxa de mortalidade infantil das crianças integradas e m projectos ICDS, quando comparada com crianças não integradas, apresentava valores de 67 para 86, e m zonas rurais, e de 80 para 87, e m meios urbanos. Um oytro estudo comparativo, sobre os efeitos nas várias dimensões da escolarização, demonstrou que a

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

taxa de frequência da escola primária era mais elevada entre as crianças que tinham sido abrangidas pelo programa (89 para 78%), que estas apresentavam u m a maior assiduidade, obtinham melhores resultados escolares e os seus resultados num teste psicológico (as Matrizes Colo- ridas de Raven) eram significativamente superiores aos de crianças não abrangidas pelo programa. Além disso, a diferença nas respectivas taxas de frequência escolar explicava-se, sobretudo, por um aumento na taxa de frequência escolar das raparigas abrangidas pelo programa. Um outro estudo revelou que a taxa de abandono escolar era significativamente inferior entre as crianças pertencentes as castas inferiores e médias, que tinham sido alvo do programa (19 para 35%, entre as castas inferiores, e 5 para 25% entre as castas médias).

O ICDS, o maior programa do género, revela o poder da mobilização política para alcançar taxas significativas de cobertura, e m programas integrados de assistência as crianças dos O aos 6 anos, programas que, como ficou demonstrado, permitem alcançar resultados notáveis nos domínios da saúde e da educação, com um custo razoável por criança.

Peru: Um programa não-formal de Educação Inicial (PRONOEI)

Em 1967, foi iniciado um projecto de educação para a alimentação, destinado a mães, e m várias aldeias da Província de Puno, nas montanhas do Peru. Nesta zona, a taxa de mortalidade infantil era, então, superior a 150%0 e a malnutrição generalizada entre a população. O projecto, da iniciativa de voluntários pertencentes a uma universidade da região, evoluiu, dos seus objectivos iniciais, para um programa de desenvolvimento comunitário, que incluía a confecção diária de refeições servidas a meio da manhã, para crianças entre os 3 e os 6 anos, reunidas durante várias horas todas as manhãs dos dias úteis. Deste programa, que inicialmente se limitava a confecção de alimentos, resultou um programa

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

pré-escolar não-formal, destinado a ajudar as crianças por ele abrangidas a desenvolverem-se mental e socialmente, e a prepará-las para a entrada na escola.

Cinco anos depois, o Governo, no âmbito de uma reforma educativa de carácter mais global, adoptou este modelo comunitário e m pequena escala, expandindo-o e empreendendo um programa de cuidados e desenvolvimento infantil e m larga escala na Província de Puno. Desde então, este modelo comunitário não-formal foi alargado a todo o Peru, consti- tuindo uma alternativa as escolas pré-primárias do sistema educativo formal.

A participação da comunidade reveste várias modalidades: doação de um terreno (e, frequentemente, construção de um edifício) para a “Casa das Crianças”, escolha de um “animador”, ao qual é paga uma pequena gratificação, mas cujo trabalho permanece essencialmente voluntário, e a gestão do centro, da responsabilidade de uma comissão de pais. Em alguns casos, foram criadas, no âmbito do programa, iniciativas locais de emprego e, na maioria das situações, os víveres fornecidos através de programas governamentais são acrescidos por contribuições locais.

U m a avaliação e m profundidade do PRONOEI, efectuada e m 1985, demonstrou que as crianças PRONOEI revelavam uma maior prontidão social e intelectual para o ingresso na escola primária, quando comparadas com um grupo controle, constituído por crianças com as mesmas características que não tinham participado no PRONOEI, diferença visível apesar do nível mínimo de qualidade de muitos projectos PRONOEI. Esta diferença inicial, porém, parecia desvanecer-se a medida que as crianças iam evoluindo ao longo dos diferentes níveis da escola primária, presumivelmente devido ao baixo nível de qualidade destas instituições.

O custo, por aluno, deste programa (avaliado com base no número de inscrições e não contabilizando as contribuições da comunidade e m termos de prestações de serviços e materiais) era aproximadamente de USD 28 por ano, ou seja, menos de metade do custo das alternativas pré-escolares formais. Esta experiência sugere que é possível, a prazo,

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

conceber uma intervenção eficaz de baixo custo, recorrendo a programas pré-escolares não-formais de relativa amplitude, e também que a articulação dos programas pré-escolares com os programas do ensino primário é um factor crítico na maximização da eficácia de ambos.

Colômbia: Os Lares de Bem-Estar

O programa colombiano de “Lares de Bem-Estar” é u m a proposta de âmbito comunitário, e m larga escala, aos problemas de malnutrição e desenvolvimento retardado, que constituem um flagelo nos países e m que existe uma população de 5 milhões de crianças com idade inferior a 7 anos. Neste programa, as crianças com menos de 7 anos são “educadas” e m grupos constituídos por cerca de 15 elementos, com idades compreendidas entre 1 e 7 anos, e m lares situados nas proximidades da sua própria casa. Embora o programa se destine a dar resposta as necessidades de cuidados e de desenvolvimento das crianças, também visa melhorar as condições económicas da comunidade, criando postos de trabalho como educadores de infância para os seus habitantes, libertando as mulheres para a procura de emprego (ou para um maior investimento profissional, que lhes permita ascenderem a uma promoção) e canalizando fundos para actividades económicas associadas ao funcionamento destes lares (nomeadamente obras de beneficiação dos lares ou fornecimento de víveres).

Este programa atingiu rapidamente u m a dimensão considerável. Desde o seu lançamento (1986), o programa conheceu uma expansão que lhe permite hoje beneficiar 800 O00 crianças (1989). No final de 1992, espera-se que cerca de 1,5 milhões de crianças participem no programa.

Este programa é uma iniciativa de carácter comunitário. Os membros da comunidade participam numa fase inicial de análise das necessidades e m serviços, que leva e m consideração as idades das crianças, os níveis de rendimentos dos agregados familiares, a taxa de emprego e outras variáveis

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇAO

físicas e ambientais. (Quando se constata a necessidade de serviços que o programa não pode proporcionar, estabelece-se a articulação com outros organismos que estejam e m condições de ajudar.) É também a comunidade que compete determinar o número de “Lares de Bem-Estar” necessários para dar resposta as necessidades das crianças, e seleccionar, entre os seus membros, mulheres para desempenharem a função de mães substitutas. A gestão local é da responsabilidade de uma comissão, constituída por pais, que efectua as compras e os pagamentos das “mães” comunitárias. A maior parte do financiamento e da coordenação desta iniciativa é da responsabilidade do Instituto Colombiano para o Bem-Estar da Família (ICBF), sendo as demais competências partilhadas entre o Ministério da Saúde Pública, o Serviço Nacional de Aprendizagem, o Instituto de Crédito Territorial (que concede empréstimos destinados ao equipamento dos lares) e outros organismos tanto de carácter público como privado. As crianças são atribuídas ‘‘bolsas”, que se destinam a pagar os serviços das mães substitutas.

As mães substitutas, por sua vez, recebem formação sobre os cuidados a dispensar as crianças, sobre desenvolvimento infantil, relações familiares e comunitárias e nutrição e saúde. U m a vez concluído o período de formação inicial, cada mulher é encarregada de velar pela educação de cerca de 15 crianças entre 1 e 7 anos de idade - na sua própria casa e durante cerca de 8 horas por dia. Nesta tarefa, ela conta todos os dias com o auxílio de uma das mães, cujos filhos se encontram no lar, que lhe prestam assistência numa base rotativa. Os cuidados pretendidos consistem e m criar condições que promovam a saúde das crianças e o seu desenvolvimento físico, psicológico e social.

Neste momento, encontra-se a decorrer uma avaliação exaustiva do programa, incluindo u m a análise custos/ benefícios. Os resultados preliminares sugerem que o programa tem produzido efeitos positivos no apoio aos pais na educação dos filhos, sendo o seu custo baixo, e também efeitos positivos extensivos a toda a comunidade. O nível de qualidade do programa tem vindo a ser progressivamente

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

melhorado, procurando-se maximizar os seus efeitos no desenvolvimento das crianças.

Nepal: Projecto “Entry Point”

O projecto “Entry Point” reveste-se de características invulgares ao procurar dar resposta, simultaneamente, as necessidades de apoio nas tarefas educativas sentidas pelas mães trabalhadoras (famílias) e as necessidades de desen- volvimento das crianças e m idade pré-escolar. Este projecto foi desenvolvido nas zonas rurais do Nepal, onde se estima que 42% da população viva abaixo do limite da pobreza, ultrapassando a taxa de mortalidade infantil a média nacional, que é de 119 e m cada 1000 crianças nascidas vivas. As mulheres desempenham aí um papel económico de relevo, assegurando a exploração das propriedades agrícolas fami- liares, actividade da qual provêm aproximadamente 80% dos rendi-mentos médios anuais dos agregados familiares. Estas mulheres estão também implicadas numa diversi- dade de trabalhos precários, de que depende o sustento das famílias.

Reconhecendo o papel económico das mulheres e a sua necessidade de acesso ao crédito, o Governo iniciou um programa de Crédito a Produção para Mulheres Rurais. Esta linha de crédito tinha como objectivo apoiar actividades geradoras de rendimentos e, simultaneamente, susceptíveis de melhorar as condições da comunidade, designadamente os níveis de saúde, nutrição e educação. A medida que o projecto foi avançando, tornou-se evidente que as mulheres trabalhadoras (a quem a sociedade continuava a incumbir da responsabilidade de educar e cuidar das crianças) tinham necessidade de poder recorrer a um esquema alternativo de educação. Assim nasceu o “Entry Point”, tendo e m vista permitir as mulheres disporem de mais tempo para as suas actividades económicas e contribuir para o bem-estar dos seus filhos.

U m a das condições de acesso ao crédito, estabelecidas pelo programa, como garantia do reembolso do empréstimo

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÁO

concedido, consistia e m que as mulheres se organizassem e m grupos de cinco ou de seis elementos. Estes constituíam-se, então, também numa unidade visando a organização de um esquema de educação e cuidados das crianças. Dentro do grupo, as mulheres acordavam e m partilhar a responsabili- dade de tomar conta das crianças entre 1 e 3 anos de idade, nas suas próprias casas, com base num esquema rotativo que previa que cada mulher as acolhesse, no seu próprio lar, durante um dia por semana. Em 1989, estavam constituídos aproximadamente 54 grupos de mães, e m 11 distritos, e calculava-se que 1700 crianças se encontravam abrangidas por este esquema domiciliário de cuidados infantis.

Todas as mulheres e m cada grupo recebiam um curso de formação intensivo, com a duração de 4 dias, ministrado na própria aldeia. A cada grupo foi fornecido u m conjunto de materiais indispensáveis. U m a vez, porém, que a maioria das mulheres participantes era analfabeta, o curriculum desta formação, empreendida por uma inovadora organização não- -governamental nepalesa, socorria-se de representações gráficas das diferentes actividades.

As solicitações crescentes de cursos de formação - que ultrapassam largamente a capacidade de resposta - sugere que este programa está a obter êxito, tendo outras organizações manifestado já a intenção de iniciarem programas similares. Vários factores parecem estar a contribuir para este sucesso, nomeadamente o reforço mútuo dos participantes do grupo, o formato descentralizado do processo de planeamento, que implica a definição comunitária das necessidades, um curriculum integrado, e uma formação ministrada no local, susceptível de respeitar as práticas locais e, simultaneamente, incorporar novas informações. É de salientar que este programa tem obtido sucesso apesar de todo um conjunto de dificuldades decorrentes das acidentadas características geográficas deste país, da necessidade de dar continuação a formação inicial e dos conflitos que, ocasionalmente, se geram entre as diferentes concepções educativas, a tradicional e a mais actual, centrada na criança.

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

U m a vez que a assistência as crianças é assegurada rotativamente por mulheres pertencentes a comunidade, as despesas de funcionamento desta iniciativa, suportadas pelo Governo, são muito reduzidas, sendo os benefícios acrescidos tanto para as mulheres como para as crianças.

Brasil: Programa de Alimentação Pré-Escolar (PROAPE)

U m a atenqão integrada as necessidades de educação, saúde e nutrição das crianças pode revelar-se um investimento rentável numa óptica custos/eficácia. No Brasil, um programa com características inovadoras, envolvendo famílias de meios urbanos que vivem e m condições económicas marginais, compensou o seu custo, ao provocar uma quebra percentual significativa da taxa de repetência escolar nos primeiros anos da escola primária.

O PROAPE, implementado com a ajuda de um empréstimo para auxílio alimentar, concedido pelo Banco Mundial ao Governo brasileiro, iniciou-se e m 1977 com um projecto-piloto realizado no estado de Pernambuco. Em 1981, este projecto foi alargado a outros 10 estados do Norte e do Nordeste brasileiros, através de diversas adaptações do projecto-piloto. O modelo PROAPE consiste e m reunir grupos de cerca de 100 crianças, dos 4 aos 6 anos, e m centros de acolhimento, durante o período da manhã dos dias úteis, e proporcionar- -lhes, aí, uma refeição a meio da manhã e a oportunidade de desenvolverem, sob supervisão, diversas actividades psicomotoras. Este modelo inclui igualmente a componente da saúde, através de exames médicos regulares, vacinação, tratamento dentário e exames a higiene e a visão.

As crianças são assistidas por u m a equipa e m que participam tanto profissionais qualificados como os seus próprios familiares. No modelo original, 6 membros da comunidade auxiliavam um técnico especializado. Em Alagoas, outro dos estados e m que o modelo foi implantado, os centros são geridos por três paraprofissionais com formação, designados “estagiários”, que são coadjuvados no seu trabalho por pais das crianças. Os estagiários recebem 70% do salário

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UMA ESTRATQGIA DE INTERVENÇAO

mínimo e m retribuição pelo trabalho desenvolvido durante o período da manhã.

U m a avaliação do PROAPE concluiu que os índices conjugados de repetência e abandono escolar de crianças integradas no PROAPE, quando comparados com os de crianças não integradas, eram de 39% para 52%, no primeiro ano de escolaridade, e de 27% para 44%, no segundo. O custo total de escolarização, por aluno que terminou o segundo ano (incluindo os custos decorrentes da intervenção PROAPE ao nível pré-escolar), foi estimado e m 11% inferior para os alunos alvo do programa. Assim sendo, é possível concluir que este programa acabou por se autofinanciar.

No caso de Alagoas, a avaliação constatou resultados similares: 73% das crianças abrangidas pelo PROAPE transitaram de ano no 1" ano de escolaridade (em 1982), contra apenas 53% das crianças que não beneficiaram de qualquer intervenção pré-escolar, apesar de, neste estado, o programa só ter tido u m a duração de 78 dias. O valor adicionado dos custos da intervenção pré-escolar e da formação primária por cada estudante que terminou o 1" ano foi, no caso das crianças abrangidas pelo programa, inferior e m 17% ao valor dos custos de formação de um aluno sem experiência pré-escolar.

FORMAÇÃO E APOIO AOS PAIS

Esta modalidade específica merece um destaque especial. Quais as suas vantagens?

- Os seus benefícios revertem tanto a favor dos - permite reforçar a responsabilidade da família; - favorece uma melhor utilização de outros programas

existentes; - os efeitos no desenvolvimento da criança são mais

susceptíveis de se manterem; - facilita a implementação de uma abordagem "arti-

culada", porque é relativamente simples combinar diversos

educadores como das crianças;

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

conteúdos programáticos, sem ser necessário envolver serviços públicos de natureza distinta; - permite alcançar uma cobertura significativa com uma

despesa relativamente reduzida.

Como se imagina, quando se opta por um programa desta natureza, é necessário observar diversas precauções:

- para ser eficaz, a formação dos pais deve ser oportuna; - os conteúdos programáticos deverão ser culturalmente

relevantes, procurando veicular novos conhecimentos mas, simultaneamente, reforçar os conhecimentos que os partici- pantes já detêm; - o processo de transmissão de conhecimentos, para ser

eficaz, deverá dar oportunidade as trocas interpessoais e ao reforço mútuo dos participantes; - a formação de pais não é uma panaceia, mas uma de

entre várias estratégias complementares.

Os exemplos escolhidos ilustram várias modalidades diferentes, que operacionalizam uma abordagem de formação e apoio de educadores. O exemplo indonésio foi concebido com base num programa de visitas domiciliárias. Os chineses estruturaram u m programa ligeiramente mais formal de formação de pais, devidamente certificado. O modelo Criança- -a-Criança é ilustrado pelo caso jamaicano. Os exemplos recolhidos na Indonésia e na Tailândia demonstram como é possível introduzir esta componente a partir de um programa de alimentação. Finalmente, o exemplo chileno integra a formação de pais no âmbito de uma estratégia global de desenvolvimento comunitário, tirando partido dos meios de comunicação locais.

Indonésia: Duas iniciativas

Nos últimos quinze anos, desenvolveu-se na Indonésia uma vasta rede de programas comunitários de saúde, nutrição

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

e planeamento demográfico. Estes programas, e as respectivas estruturas organizativas, criaram as condições de base que permitiram a introdução de programas de desenvolvimento infantil precoce, destinados a activar o dekenvolvimento social e mental de crianças com menos de 5 anos de idade.

Em 1982, em articulação com a pesagem periódica das crianças e a distribuição de géneros alimentícios, o projecto Bina Kenarga e Galita (BKG), da responsabilidade do Ministério Adjunto para a Condição Feminina, desencadeou um conjunto de esforços no sentido de uma promoção dos conhecimentos, sensibilizáção e reforço das competências educativas das mães e de outros membros da família, procurando ajudá-los a proporcionar as crianças um ambi- ente mais favorável ao desenvolvimento. Trabalhadores comunitários - mulheres escolhidas pelas próprias comu- nidades e m que o projecto foi implantado - participaram num curso de formação sobre o desenvolvimento infantil e métodos de trabalho com adultos. Normalmente, o critério que presidia a escolha destas mulheres, conhecidas por “kaders”, era o sucesso por elas obtido na educação dos seus próprios filhos - apesar da existência de condições adversas que constituíam um factor de “risco” de desenvolvimento retardado ou debilitação, tanto para os seus filhos como para as outras crianças da comunidade. Estas voluntárias ao serviço da comunidade organizavam reuniões nos centros de distribuição de víveres, durante as quais as mães tinham a oportunidade de participar e m discussões de grupo, par- tilhar as suas experiências, construir brinquedos ou requisitá- -los a u m a ludoteca, e chegar a acordo sobre algumas actividades, que elas pudessem pôr e m prática nos seus próprios lares (por ex., as diferentes maneiras de utilizar OS brinquedos construídos, diálogos com as crianças durante o banho, etc.).

Em 1968, um projecto de investigação indonésio sobre práticas educativas permitiu identificar um conjunto de práticas correntes, prejudiciais a saúde e/ou desenvolvimento, e também alguns costumes tradicionais com efeitos benéficos, que seria conveniente reforçar. Com base neste estudo, foi

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

concebido o projecto PANDAI, que veio complementar a iniciativa BKG, a que já nos referimos (PANDAI é, simultaneamente, um acrónimo de palavras que significam desenvolvimento da criança e cuidados maternais e uma palavra indonésia que significa “inteligente” ou “esperto”). Este projecto implica visitas domiciliárias de “kaders” voluntárias, que trabalham com os pais, ou outros educadores, para melhorar a qualidade da atenção prestada as crianças e dos padrões de interacção criapçaíeducador. As visitas são efectuadas duas vezes por semana e, durante estas, discutem- -se questões e práticas no domínio da saúde, nutrição e desenvolvimento mental e social, com a ajuda de um “curriculum e m banda desenhada”. Os quadros da banda desenhada veiculam uma mensagem que pessoas analfabetas são capazes de interpretar.

Estes projectos ilustram uma modalidade de intervenção na saúde, nutrição e desenvolvimento da criança, alicerçada e m costumes locais, que tira partido das competências de educadoras “bem sucedidas’’ pertencentes a comunidade e integra diversas componentes, procurando potenciar o seu efeito simultâneo na sobrevivência e no desenvolvimento.

China: Escolas de Pais

Um projecto de formação de pais, iniciado e m 1985 na República Popular da China, levou, de acordo com uma estimativa de 1989, a criação de 200000 “Escolas de Pais”. Este rápido crescimento traduz, pelo menos e m parte, a preocupação com a educação das crianças de famílias com um único filho. O objectivo do programa é reforçar as competências parentais, permitindo o acesso dos pais a conhecimentos importantes para o desempenho da função educativa.

Os conteúdos educativos são variáveis conforme a zona, dependendo dos recursos e necessidades locais. Os temas abordados são determinados pelas conclusões de uma equipa intersectorial (saúde, nutrição, desenvolvimento da criança, educação e outros), reunida no local para analisar os estudos

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UMA ESTRATkGIA DE INTERVENÇAO

existentes, identificar os recursos locais e definir as necessidades dos pais e das crianças. A iniciativa desta intervenção partiu da Federação das Mulheres Chinesas (All China Women’s Federation), a qual se encontra organizada e m cinco níveis, incluindo o nível comunitário. Especialistas ou técnicos das instituições locais dinamizam um conjunto de oito sessões destinadas a pais, durante todo o período escolar. Os curricula e materiais de suporte existentes no local são complementados por outros materiais sobre desenvolvimento da criança fornecidos pela Federação das Mulheres.

A maioria das escolas de pais estão associadas a infantários, escolas primárias, escolas de nível intermédio (middle schools) ou hospitais. Em algumas comunidades, existem ainda programas para recém-casados ou futuros pais. Em alguns casos, foram criadas bibliotecas numa das salas da instituição hospedeira, onde os pais podem fazer leituras ou estudar durante o período intersessões. Aos partici- pantes presentes e m todas, ou quase todas as sessões, é atribuído, no final do programa, um certificado de educação parental.

Os custos envolvidos neste programa decorrem, essen- cialmente, do tempo disponibilizado pelas pessoas, mais que de encargos financeiros. Estas pessoas são os membros da Federação que participam na sua organização, os especialistas locais que intervêm no diagnóstico da situação e que apresentam comunicações, e os participantes que frequentam os cursos. Todas estas contribuições e m tempo são voluntárias. Os encargos financeiros resultam apenas da elaboração e distribuição de materiais de suporte. Em suma, do ponto de vista do Governo, trata-se de um projecto de baixo custo.

Jamaica: Criança-a-Criança

Os programas Criança-a-Criança destinam;se a crianças normalmente na faixa etária dos 8 aos 15 anos, que desem- penham com frequência, alternativa ou simultaneamente, uma multiplicidade de papéis enquanto educadores dos seus irmãos

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O QUE DEVEMOS FAZER?

- reconhecer que, quer de um ponto de vista histórico quer actual, as mães não são as únicas pessoas a ter um papel na educação das crianças, e que é possível o apoio a esquemas alternativos de cuidados infantis, o que contribuirá para aumentar a nossa sensibilidade face as múltiplas necessidades e papéis desempenhados pelas mulheres; - reconhecer que as crianças têm um papel activo no seu

próprio desenvolvimento e não são apenas recipientes passivos da estimulação do meio, o que significa admitir que, genericamente, a aprendizagem é um processo essencialmente activo; - reconhecer que as aprendizagens mais importantes

ocorrem durante os anos que antecedem a entrada para a escola, através de uma multiplicidade de experiências; a aprendizagem não é algo que se inicia com a entrada na escola e a função educativa não pode ser limitada aos professores. De facto, os primeiros e mais importantes agentes educativos na vida da criança são os pais; - evitar pensar que apenas os “especialistas” detêm as

respostas, e atribuir A “sabedoria tradicional”, aos para- profissionais, aos pais e a outros membros da comunidade, um papel de relevo na promoção do desenvolvimento da criança.

A superação destas falsas noções, e a aquisição de novas atitudes constituiria, só por si, um avanço importante no caminho que nos poderá conduzir a mobilização da vontade política e social, necessárias ao desencadear da acção.

CARACTER~STICAS DE UM PROGRAMA DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO NA PRIMEIRA INFÂNCIA

D e que características se deveria revestir um tal esforço? Muitos elementos foram já focados nas páginas anteriores e, mais especificamente, no Capítulo V, contudo a sua repetição não será redundante.

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UMA ESTRAaGIA DE INTERVENÇÃO

brincadeiras infantis. O nível de conhecimentos dos professores sobre saúde e desenvolvimento aumentou igualmente, tendo- -lhes a participação no programa facultado a oportunidade de se familiarizarem com novas estratégias de ensino.

Quando foi calculado o custo total deste projecto e m todas as 14 escolas (encargos decorrentes do pagamento aos professores das horas extra consagradas ao projecto, dos custos de formação, da supervisão, da elaboração de materiais, do desenvolvimento do curriculum e da elaboração de um programa curricular e respectiva avaliação), verificou-se que o custo anual deste projecto por criança era de cerca de USD 15 (ou seja, aproximadamente um terço do salário mínimo). Como, a medida que o programa for sendo alargado a outras escolas, os custos do desenvolvimento inicial do programa serão divididos por um maior número de crianças, é pre- visível que esta expansão se traduza numa redução do custo unitário do programa. Esta estimativa de custo por criança, no entanto, não contabilizou os benefícios que deste projecto resultaram para pais e professores, o que, sem dúvida, teria implicado uma ainda maior redução no custo unitário deste projecto.

Tailândia: Projecto Integrado de Nutrição e Desenvol- vimento Comunitário

U m a análise efectuada pelo Ministério da Saúde na Tailândia pôs e m evidência três principais obstáculos a redução significativa dos índices de Malnutrição Proteico- -Calórica (MPC) e m lactentes e crianças e m idade pré-escolar:

insuficiente cobertura nacional dos serviços de saúde; falta de consciência para o problema ao nível da

insuficiente colaboração multissectorial no desen-

i) 2)

3) comunidade;

volvimento de um programa de nutrição.

Os estudos tinham revelado que, só por si, os projectos destinados a aumentar o nível de rendimentos dos agregados

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

familiares não produziam qualquer impacto na resolução deste problema. Em consequência dos resultados destes estudos, o Governo, e m 1977, lançou um programa comunitário de cuidados de saúde primários, associado a um programa de avaliação do crescimento, e articulado com um programa de nutrição e de educação para a alimentação, iniciativas que foram enquadradas no âmbito de um plano nacional de combate A pobreza.

Adoptando este quadro de referência, o Instituto de Nutrição da Universidade de Mahidol implementou um projecto de educação para a alimentação, destinado aquelas famílias que apresentavam um maior número de bebés e crianças vulneráveis.

Um estudo das atitudes e práticas educativas preva- lecentes constituiu o ponto de partida deste projecto. Este estudo revelou a existência de diversos tabus alimentares e sociais, prejudiciais a criança. Por exemplo, uma falsa crença sobre o colostro e o aleitamento impedia que as mães começassem a amamentar os bebés imediatamente após o parto. Constatou-se, ainda, que poucas eram as mães conscientes da capacidade visual e auditiva que os bebés possuem desde o nascimento. As mães evidenciavam estar pouco conscientes dos efeitos do seu próprio comportamento no desenvolvimento da criança e da sua capacidade para criar, utilizando os recursos disponíveis, um ambiente mais favorável para os seus filhos.

Com o objectivo de questionar estas práticas, foi elaborada uma série de vídeos interactivos. Um destes vídeos , focava especificamente o desenvolvimento da criança, procurando levar as mães a tomar consciência dos seus filhos como seres dotados, desde a nascença, de capacidades perceptivas e a reconhecer a importância do jogo e da interacção mãe-criança nesses jogos e na alimentação. Um segundo vídeo comparava dois rapazinhos, ambos com 15 meses de idade, um deles vítima de malnutrição e outro normal, exibindo as diferenças existentes entre eles, tanto ao nível comportamental, como do seu estado de nutrição. Em cada aldeia, delegados de saúde,

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UMA ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO

encarregados da distribuição de géneros alimentícios, receberam formação sobre a utilização dos vídeos, que eram apresentados diversas vezes na mesma localidade.

Com base e m entrevistas efectuadas a mulheres com filhos de idade inferior a dois anos, e observações realizadas nos lares, os investigadores, que procederam a avaliação do projecto, concluíram que o nível de conhecimentos das mães e as suas atitudes face a capacidade visual dos recém-nascidos sofreram uma mudança positiva apreciável depois de terem assistido a projecção dos vídeos. As visitas domiciliárias depararam com mais berços abertos e verificou-se que era dado mais colostro as crianças. Os resultados sugerem que a utilização de mensagens visuais, que incentivem a discussão, pode provocar mudanças notáveis nas práticas educativas e nas crenças que lhes estão associadas.

Este projecto demonstra como é possível incorporar, num programa nacional de promoção do crescimento e de reforço alimentar, componentes de educação para a alimentação e de desenvolvimento psicossocial, com bons resultados, utilizando uma metodologia que não depende do grau de alfabetização da população e que respeita a sua tradição educativa.

Chile: Um Programa destinado a Pais e Filhos (PPH)

Os objectivos gerais e interligados do PPH consistem na promoção do desenvolvimento da criança, do crescimento pessoal dos adultos e da organização da comunidade. A metodologia adoptada consiste e m reuniões semanais, efectuadas e m comunidades rurais da área de Osorno, no Sul do Chile (inicialmente as comunidades que aderiram ao programa eram e m número de 50, actualmente são cerca de 200). As reuniões são marcadas de forma a coincidir com o horário de um programa difundido por uma rádio local, que utiliza novelas radiofónicas ou outras estratégias destinadas a suscitar questões e a estimular a discussão.

As discussões geradas nas reuniões centravam-se, inicial- mente, e m diferentes aspectos da educação das crianças e,

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

entre as temáticas abordadas, incluíam-se, nomeadamente, os seguintes tópicos: como ensinar a criança a falar, a ler e a contar; as relações humanas no seio da família; a alimentação e como fazer um melhor aproveitamento dos víveres disponíveis; a preservação dos alimentos; o abuso do álcool; etc. A lista destes tópicos foi sendo progressivamente alargada, tendo sido incluídas questões mais directamente relacionadas com a obtenção de meios de subsistência. Foram elaborados materiais de suporte relacionados com cada tema, destinados a complementar a apresentação radiofónica do problema. As discussões, conduzidas por um “promotor” local escolhido pela comunidade, terminavam na apresentação de sugestões, e na elaboração de planos de acção comunitários para as várias áreas.

No âmbito deste projecto, o objectivo de desenvolvimento da criança foi também operacionalizado, através da elaboração de um conjunto de exercícios pré-escolares, sob a forma de fichas de trabalho. Com estas fichas de trabalho pretende-se melhorar a percepção, a capacidade de pensamento, a utilização de símbolos e estimular a criatividade, a curiosidade e a motivação para a aprendizagem. Durante a sua reunião, os pais examinam estes materiais e, seguidamente, levam- -nos para os seus filhos que, por vezes com a ajuda dos adultos, os resolvem. As fichas de trabalho são, então, devolvidas, já resolvidas, na reunião semanal seguinte.

Técnicos de uma organização não-governamenbal (E1 Centro de Investigación y Desarollo de la Educación) colaboraram na implementação e desenvolvimento do PPH, trabalhando o CIDE e m colaboração estreita com a estação de rádio local.

U m a avaliação deste programa revelou que foram alcançados efeitos positivos nas crianças, nos seus pais e na comunidade e m geral. As crianças que participam no PPH obtêm melhores resultados e m testes de maturidade para o ingresso na escola, e o seu rendimento escolar posterior é superior ao de crianças não abrangidas pelo programa. Esta avaliação identificou mudanças nas atitudes e percepções dos adultos, a partir da descrição por estes feita do projecto, da

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UMA ESTRATkGIA DE INTERVENÇÃO

forma como verbalizavam as mudanças ocorridas, da facilidade com que chegavam a acordo e com que conseguiam pôr e m prática as conclusões. A principal mudança identificada era de “empatia” para a participação e m actividades construtivas, a medida que a sua autoestima ia sendo reforçada.

O custo, por criança, deste programa foi avaliado e m USD 6,38 por mês. Ora, um infantário de elevada qualidade custa seis vezes esta quantia, e um centro de acolhimento de baixa qualidade o dobro. O salário mínimo equivalia ao quíntuplo deste valor. Contudo, se os cálculos fossem efectuados tomando como referência todas as pessoas envolvidas, e não apenas as crianças, o valor encontrado seria de USD 1,62 por mês. Acrescente-se que estes custos não incluem o tempo doado pela comunidade. Em resumo, a participação dos membros da comunidade neste programa não só produziu benefícios, como contribuiu para reduzir o seu custo.

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REFERÊNCIAS

Myers, R. & C. Landers. “Early Childhood Development: UNICEF Programme Guidelines, Volume 5”, Nova Iorque, UNICEF, 1989.

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VI O QUE DEVEMOS FAZER?

Poucas dúvidas deverão subsistir, após a leitura dos capítulos precedentes, sobre a necessidade que se faz sentir de um maior investimento e m programas de cuidados e de desenvolvimento na primeira infância, que, proporcionando as crianças uma “oportunidade justa” no início da vida, poderão gerar elevados dividendos.

Deverá ser agora evidente que a maioria das crianças (mesmo os recém-nascidos LIG) são, desde o nascimento, dotadas de capacidades extraordinárias - os seus sentidos e um cérebro funcional, o seu desejo de interacção e uma motivação interior - que, no seu conjunto, permitem a comunicação e a aprendizagem. Podemos permitir que estas capacidades se deteriorem, com todos os custos de ordem pessoal e social daí decorrentes, ou optar por apoiá-las e promovê-las. Deverá, também, ser claro que o investimento e m programas de cuidados e desenvolvimento é um factor que pode contribuir para atenuar as desigualdades sociais; tem efeitos favoráveis no incremento da produtividade, resultando numa economia de custos; contribui para a eficácia de outros programas; e é susceptível de se constituir num factor de consenso e solidariedade políticas e m torno de iniciativas que contribuam para o bem comum, ultrapassando, nos seus efeitos, o benefício imediato das crianças. Temos a possibilidade de aproveitar esta oportunidade, que se nos depara, de beneficiar de todas estas vantagens, através do apoio as crianças e suas famílias, ou permitir que ela se gore, sofrendo todas as consequências inerentes. A medida que a necessidade e a procura, motivadas por mudanças nas

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UM TEMPO PARA A INFÂNCIA

condições económicas e demográficas aumentam, mais impe- riosa será a necessidade de passarmos a acção.

Já defendemos que o saber e a experiência acumulados são hoje bastantes, para nos permitir começar a trabalhar; abundam exemplos de programas que podem servir de ponto de partida para a acção. Não é, pois, necessário continuar a aguardar por soluções mágicas, fruto de novas investigações. É evidente que, neste preciso momento, estão na forja outras respostas, mas, esperar por elas, equivaleria a privar milhões de crianças da sua oportunidade.

Que devemos então fazer para garantir que a oportu- nidade, que se nos oferece, se não esgote? Com que desafios podemos esperar confrontarmo-nos? A que prioridades atender, quando a nossa atenção se dirige para a promoção dos cuidados e do desenvolvimento, no período que decorre entre o nascimento e os 7 ou 8 anos de vida, incluindo a fase de transição para a escola?

AQUISIÇÃO DE NOVAS ATITUDES

Um factor crítico, de que dependerá o êxito de tal esforço, consistirá na superação de inúmeras falsas noções e na promoção de novas atitudes. Para isso devemos:

- reconhecer que a sobrevivência e o desenvolvimento da criança não são processos sequenciais, mas simultâneos, e trabalhar para a integração destas duas linhas de intervenção; - reconhecer a sinergia existente entre o bem-estar

psicossocial e o estado de saúde e nutrição, o que implica ultrapassar a falsa concepção de que a saúde e as condições de nutrição condicionam o desenvolvimento social e mental, mas não o inverso; - evitar considerar o investimento na educação e nos

cuidados a infância, e o investimento no domínio da saúde e do ensino primário, ou nos programas destinados as mulheres, como alternativas, e reconhecer que, da sua articulação, resultará uma maior eficácia e rendibilidade;

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mais novos, futuros pais, agentes de transmissão de informações destinadas aos seus pais ou outros educadores, e, ainda, como membros da comunidade capazes, elas próprias, de dar um contributo para a melhoria de condições susceptíveis de afectar a saúde e o desenvolvimento. O programa jamaicano Criança-a-Criança visa, especificamente, melhorar o nível de conhecimentos e a qualidade das competências educativas de crianças da escola primária, com idades entre os 9 e os 12 anos, e, através delas, influenciar os conhecimentos dos pais ou dos seus guardiões legais.

Iniciado e m 1979, n u m a base experimental, e m apenas u m a escola, este programa da iniciativa da Unidade de Investigação do Metabolismo Tropical (Universidade das Índias Ocidentais), foi alargado a 14 escolas, depois de u m a avaliação ter demonstrado a boa receptividade de que gozava, e está agora a ser incorporado no curriculum regular da escola primária e m todo o país.

O curriculum veicula informações sobre saúde, nutrição, desenvolvimento psicossocial e cuidados dentários. As crianças são ensinadas a utilizar desperdícios para construir brin- quedos e a brincar com eles de forma a activar o desenvol- vimento das crianças mais novas. As aulas sobre imunização versam temas com o objectivo da imunização, as doenças que podem ser prevenidas e a periodicidade com que as vacinas devem ser tomadas. As aulas práticas incluem situações de "role-playing", discussões de grupo, demonstrações, construção de brinquedos, representação e canto. Grande parte dos conteúdos que constituem o programa Criança-a-Criança já estão, neste momento, integrados no curriculum da escola primária. No entanto, existe ainda margem para maximizar os seus benefícios, dando-lhes mais ênfase, relacionando os conhecimentos veiculados com situações práticas e apre- sentando os materiais de forma mais interessante e inovadora, por forma a suscitar u m a maior participação.

U m a avaliação do programa-piloto demonstrou que o nível de conhecimentos das crianças, e m todas as áreas versadas, aumentou significativamente. Por sua vez, também o nível de conhecimentos dos pais e tutores conheceu um acréscimo, bem como o apoio e encorajamento por estes manifestado as

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1. No Capítulo V foram expostas cinco abordagens complementares de intervenção, que passam pela assistência directa a criança, pelo trabalho com os pais, comunidade e instituições, e podem implicar a mudança da opinião pública face a problemática da infância e do desenvolvimento. No âmbito de cada uma delas, existem vários modelos possíveis de intervenção. Diferentes contextos exigirão diferentes combinações de programas, dependendo das circunstâncias específicas.

2. A medida que se avança na formulação e imple- mentação de programas de acção, estes devem:

- incidir especialmente e m crianças e famílias cujas condições de vida são susceptíveis de colocar e m risco e retardar o processo de desenvolvimento; - adoptar uma perspectiva multifacetada do desen-

volvimento da criança, promovendo a integração e a con- vergência entre diferentes programas, de molde a tirar o máximo partido da sinergia existente entre saúde, nutrição e educação inicial. Isto significa trabalhar arduamente para suplantar a compartimentação burocrática e académica, que conduz a perspectivar o desenvolvimento e m áreas e dimensões parcelares, sem qualquer relação entre si; - promover a conjugação de esforços com a família e a

comunidade, visando fomentar uma participação que não se limite a contributos pontuais e superficiais, mas que se traduza num envolvimento real destes agentes no planea- mento, gestão e avaliação dos programas; - promover uma flexibilidade que respeite e se ajuste a

diferentes contextos socioculturais, através do reforço das práticas locais que permitiram a comunidade lidar eficazmente com os problemas do foro dos cuidados e do desenvolvimento da criança, mesmo quando, simultaneamente, se procura introduzir novas ideias; - seleccionar abordagens e modelos de intervenção

economicamente viáveis e eficazes do ponto de vista dos custos

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O QUE DEVEMOS FAZER?

envolvidos, através do recurso a técnicas adequadas de comprovada eficácia; - tentar abranger o maior número possível de crianças

“em risco”.

3. Os programas deverão dar resposta as diferentes necessidades que emergem ao longo das várias etapas do processo de desenvolvimento: período pré-natal, primeiro ano de vida, período 1-4 anos, período pré-escolar e primeiros anos da escola primária.

DESAFIOS

Implícitos nas ideias que acabamos de enunciar, encon- tram-se vários desafios dignos de menção especial.

A adopção de uma perspectiva holística; a articulação de diferentes iniciativas. Um dos maiores desafios, que deverá ser enfrentado, consiste e m procurar recuperar um método de pensamento holístico e integral, nesta era de especialização e compartimentação.

No domínio do desenvolvimento da criança, é essencial uma perspectiva integradora e abrangente. Será conveniente relembrar que:

“. . . uma criança nasce sem barreiras. As suas necessidades formam um todo integrado, e somos nós que optamos por compartimentá-las nos diferentes domínios da saúde, nutrição e educação. Contudo, a própria criança não consegue dife- renciar a fome de alimentos da sua sede de afecto ou de conhecimento” (Alva, 1986).

Operacionalizar esta perspectiva holística, a unica susceptível de respeitar a unidade da criança, conduz a admitir que “integrar” estruturas burocráticas, vocacionadas para objectivos que lhes são próprios, como a prestação de serviços de saúde ou de educação, poderá não se revelar uma tarefa fácil. Esta integração poderá ser potenciada pelo recurso a estratégias organizacionais, de que um centro de coordenação,

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situado fora do âmbito das agências especializadas, a criação de redes de intercâmbio ou a realização de actividades interorganizacionais poderão constituir exemplo. Em última análise, todavia, a integração operacionaliza-se ao nível de comportamento dos membros da família, ou de outros agentes educativos. Por consequência, os programas de educação de pais, com um conteúdo integrado, parecem constituir uma estratégia bastante promissora, no que respeita aos seus efeitos no desenvolvimento da criança. O processo interactivo pode ser facilitado, promovendo u m a colaboração, que ultrapasse as barreiras burocráticas no processo de planeamento, e envolva nela organizações de base, que adoptem nos seus princípios uma perspectiva integrada.

Ser flexível, evitar panaceias ou soluções mágicas. Outro desafio, com que nos confrontamos, consiste no anseio natural de descobrir e aplicar, a todas as crianças, uma qualquer solução ou tecnologia específica. No entanto, a implementação de programas de promoção do desenvolvimento mental, social e emocional não deve alicerçar-se na esperança de descobrir uma vacina do desenvolvimento da criança. As crianças diferem entre si, e cada contexto apresenta características que lhe são próprias. Felizmente, porém, existe toda uma vasta gama de técnicas susceptíveis de u m a aplicação diferencial, de acordo com o contexto específico. N a resposta a este desafio, é óbvio que uma organização descentralizada estará e m vantagem, relativamente a um qualquer organismo centralizado. É, igualmente, evidente que quanto maior for o envolvimento da família e da comunidade, na criação e implementação de programas integrados de desenvolvimento, maior será a probabilidade de que estes se revelem com- patíveis com as realidades locais.

Conciliar o desejo de “escala” com a promoção da flexi- bilidade e da participação local. O desafio da flexibilidade não significa, necessariamente, que os programas sejam limitados, quer no seu âmbito, quer no número de participantes abrangidos. Implica, porém, que, quando se

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O QUE DEVEMOS FAZER?

tomam medidas e m grande escala, centralizadas, tal como campanhas de informação, sejam previstos meios que permitam que o seu conteúdo seja objecto de adaptações ao nível local. Implica que a disseminação de informação, e m grande escala, não deva ser considerada uma solução análoga a uma inoculação. Torna-se necessário dar continuidade aos esforços de acompanhamento, processo que, consoante as circunstâncias específicas, poderá assumir diferentes moda- lidades.

Verifica-se uma tendência para identificar escala com programas centralizados, e abordagens únicas, mas não é forçoso que assim seja. Em contraste com uma campanha centralizada de imunização ou alfabetização, dirigida a vastos segmentos da população, podemos perspectivar a “e~cala’~ como u m a resultante do somatório de um grande número de iniciativas, de âmbito local ou regional, distintas entre si, mas todas concorrendo para o mesmo fim: a promoção da sobrevivência e do desenvolvimento da criança. Ao adoptarmos este conceito de “escala por a~sociação~~, torna-se possível conciliar o desejo de programas de grande dimensão, e m termos de número de participantes envolvidos, com o incentivo a flexibilidade e a participação local. O papel que, aos governos ou outros organismos centralizados, caberá desempenhar e m programas desta natureza, deverá consistir e m traçar as orientações gerais, incentivar, fornecer os recursos adicionais necessários, gerar novas ideias e facilitar o acompanhamento e a avaliação. Esta perspectiva de expansão é compatível com um progressivo alargamento das iniciativas locais, ao nível dos distritos e das regiões, mas não obriga, enquanto critério de sucesso de um programa, a que, após as etapas piloto e de experimentação iniciais, esse programa seja alargado a todo o território nacional.

ALGUMAS PRIORIDADES

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Atendendo as considerações e sugestões anteriores, que aspectos são merecedores de especial atenção na imple- mentação de programas de intervenção precoce?

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1. Quanto mais cedo melhor. De entre as várias etapas cronológicas, caracterizadas por mudanças específicas, que uma criança vai atravessando desde a sua concepção até aos 7 ou 8 anos de idade, deve ser dada prioridade ao período que antecede o segundo aniversário. Durante esta fase, o desenvolvimento e a aprendizagem processam-se a um ritmo extraordinariamente rápido, e os resultados deste processo constituem a base de sustentação da maior parte das aprendizagens efectuadas ulteriormente.

De um ponto de vista do desenvolvimento intelectual, social e emocional, é inegável que esta primeira fase da vida tem sido negligenciada. Contudo, u m a vez que o desenvolvimento está, nos primeiros anos de vida, intimamente interligado com o estado de saúde e nutrição, e que estas dimensões têm sido alvo de u m a atenção considerável, existem inúmeras oportunidades de incorporação de uma dimensão psicossocial e m programas de saúde e de nutrição já e m curso.

2. Apoio e formação dos pais e de outros membros da família. Dado que o meio familiar, e m toda a sua diversidade de formas, constitui o primeiro e mais importante contexto de desenvolvimento da criança durante os primeiros anos de vida, o principal objectivo destes programas deverá consistir na assistência a família no desempenho da sua função educativa. No Capítulo IV, enunciámos algumas das vantagens e dos riscos deste tipo de abordagem, e apre- sentámos vários exemplos de modalidades de intervenção susceptíveis de a operacionalizar. Entre estas, incluíam-se o apoio domiciliário, programas que incluíam uma componente de formação de adultos (por exemplo, de educação para a saúde e para a alimentação) e ainda programas de alfabetização; foi feita igualmente referência a programas Criança-a-Criança, que têm, entre os seus objectivos, a formação de futuros pais.

3. A transição da criança do quadro familiar para o meio escolar. O meio familiar e o meio escolar apresentam,

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O QUE DEVEMOS FAZER?

frequentemente, diferenças marcantes, não somente do ponto de vista das suas características físicas, ou do tipo de pessoas com quem se espera que a criança interaja, mas também e m termos das actividades, expectativas, regras de conduta e estilos de aprendizagem, a que a criança é suposto adaptar-se.

Também existem diferenças entre as organizações e serviços responsáveis pelo funcionamento das escolas e os organismos que trabalham, no domicílio e na comunidade, com a criança e o seu meio familiar, durante o período pré- -escolar. Esta demarcação artificial contribui para acentuar, e m vez de atenuar, as diferenças, e provoca u m a desarticulação de iniciativas, que não serve nem os interesses das crianças que efectuam a transição para a escola, nem os das instituições envolvidas.

Mesmo dentro do sector da educação, constata-se u m a dicotomia entre a “educação pré-primária” e o “ensino primário”, quando, efectivamente, faria mais sentido reuni- -los num só nível (que abarcasse, pelo menos, o primeiro ou os dois primeiros anos de escolaridade). Esta estrutura organizacional vigente justifica uma reformulação. No mínimo, dever-se-ia criar, no âmbito do Ministério da Educação, uma equipa, semiautónoma, responsável pelos programas destinados ao grupo etário dos 3 aos 8 anos (ou mesmo dos 1 aos 8 anos). Assumindo um carácter multidisciplinar, esta equipa integraria técnicos das áreas da saiíde, nutrição, educação de adultos e desenvolvimento comunitário. Os técnicos de áreas exteriores ao sector da educação poderiam ser “requisitados”, com a condição implícita de actuarem como agentes de ligação aos programas dos sectores da saúde, nutrição ou outros, conforme a sua especialidade de origem. Esta equipa deveria funcionar sob a tutela de uma comissão interministerial.

Constata-se u m a certa tendência das pessoas para pensarem que a criança se deveria adaptar a escola que vai frequentar. No entanto, as escolas deveriam assumir um compromisso idêntico, ou mesmo superior, de procurarem adaptar-se, elas próprias, aos diversos tipos de crianças que

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se propõem receber. Assim, a transiçáo da família para a escola deveria ser concebida como um processo de interacção entre a maturidade específica da criança para o ingresso na escola e a maturidade da escola para a receber. U m a equipa, com as características referidas, poderia actuar como elemento facilitador nesta interacção, funcionando nos dois sentidos. Outras funções de que esta equipa se poderia incumbir:

- implementação de programas de formação de pais, e m articulação com as instituições de ensino pré-primário e com as escolas primárias; - integração de conteúdos sobre práticas educativas e

desenvolvimento da criança, nos programas de alfabetização de adultos; - escolha de locais próximos de escolas primárias para

instalação de escolas pré-primárias, o que permitiria que crianças dos níveis mais avançados do ensino primário se encarregassem de acompanhar os seus irmãos mais novos a pré-primária, levando-os de volta ao lar, no final do seu dia escolar. Um tipo de esquema deste género contribuiria, certamente, para elevar a taxa de frequência do ensino primário (principalmente das crianças do sexo feminino) e possibilitaria a inclusão, nos curricula dos níveis primários mais avançados, de um programa Criança-a-Criança, destinado a desenvolver nos alunos da escola primária competências para desempenhar um papel auxiliar na educação das crianças mais jovens; - criação, a título experimental, de um “Ano O , que

teria por função facilitar a transição para a escola primária, através da combinação de u m conjunto de actividades lúdicas com actividades de pré-aprendizagem da leitura e da matemática; - desenvolvimento de um programa de educação bilíngue,

faseado no tempo, que incidisse, nos primeiros anos, na aprendizagem da língua materna; - organização de grupos de trabalho mistos, compostos

quer por professores do ensino primário e pré-primário, quer por pais e professores do ensino primário.

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4. Programas de cuidados e desenvolvimento destinados a crianças de famílias com menores recursos económicos em que a mãe trabalha ou em que se constata a ausência do pai. As crianças que vivem nestas condições devem ser alvo de u m a atenção particular. U m a vez mais, destacamos a necessidade de articulação de programas que dependem de diferentes enquadramentos burocráticos, designadamente os programas de incentivo ao emprego das mulheres e as iniciativas de promoção do desenvolvimento da criança e m escolas pré-primárias e infantários.

UM APELO A ACÇÃO

Nesta última década do século XX, a situação de que desfrutamos, quando comparada com a que se verificava e m 1979, Ano Internacional da Criança, afigura-se bem mais auspiciosa, relativamente as possibilidades de um progresso continuado e significativo, no domínio da promoção dos cuidados e do desenvolvimento da primeira infância.

O corpo de conhecimentos e de experiência, a que podemos recorrer, é hoje mais sólido e abundam metodologias adequadas. O aumento das taxas de sobrevivência provocou uma crescente mobilização e m torno de iniciativas cujo alcance ultrapassa a mera sobrevivência. Esta onda de mobilização encontra-se patente e m muitas nações e comunidades, na expansão dos programas destinados a primeira infância, cujo incremento desafia a própria recessão económica e os inerentes ajustamentos. N o entanto, a reacção da maioria das organizações internacionais, face ao investimento neste domínio, pode ser apelidada, na melhor das hipóteses, de pouco entusiasta. Desejo, pois, endereçar o meu apelo a comunidade internacional para que acolha, com maior abertura, novas e meritórias iniciativas e que avance, sem mais delongas, na implementação, durante a década de 90, de um programa esclarecido de sobrevivência e desen- volvimento da criança, cujos frutos poderemos colher no ano 2000.

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O desafio com que nos confrontamos no domínio da intervenção na sobrevivência, cuidados e desenvolvimento da criança, tem uma dimensão simultaneamente imediata e a longo prazo. N a recta final deste século, serão certamente ainda publicados muitos documentos sobre as medidas a tomar para nos prepararmos para a entrada no século XXI, e elaboradas inúmeras análises, associadas a sonhos de um futuro melhor. Neste contexto, parece oportuno lembrar que a geração, que no ano 2000 irá concluir a escola primária, já nasceu, e já está a ser formada para o futuro. Os bebés e as crianças de hoje serão os homens e as mulheres que, no século XXI, irão liderar, construir e sonhar o mundo de amanhã. A eles incumbirá prosseguir a luta pela justiça económica e social, travar o processo de devastação do nosso meio ambiente e construir u m mundo e m que a coexistência pacífica de povos e nações seja u m a realidade.

Este futuro, que nos parece ainda tão longínquo, está já hoje a tomar forma. I?, por isso, chegada a altura de agir, se pretendemos assegurar a formação dos cidadãos de amanhã, num mundo que se quer mais justo, humano, .produtivo e pacífico. 13, pois, com alguma urgência que lanço este apelo.

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Alva, Margaret, “Keynote Address to the Conference of the South Asian Association for Regional Cooperation on South Asian Children” in Children First, Nova Deli, India, UNICEF, 1986.

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