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UM POUCO DE HISTÓRIA DE CADERNOS NEGROS PERÍODO DE 1978 A 2008 UMA HISTÓRIA QUE ESTÁ APENAS COMEÇANDO Por ocasião das três décadas de Cadernos Negros foi lançado um volume especial que incluiu um texto com o histórico da série. Reproduzimos a seguir esse texto para que quem se interessa pela série conheça um pouco mais sobre sua criação e as bata- lhas que envolvem a sua manutenção.

Um Pouco da História de Cadernos Negros - período de 1978 a 2008

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Texto publicado no volume especial Cadernos Negros Três Décadas e que fala sobre a criação e a batalha para a manutenção da série Cadernos Negros

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UM POUCO DE HISTÓRIADE CADERNOS NEGROS

PERÍODO DE 1978 A 2008

UMA HISTÓRIA QUE ESTÁ APENAS COMEÇANDO

Por ocasião das três décadas de Cadernos Negros foi lançado um volume especial que incluiu um texto com o histórico da série. Reproduzimos a seguir esse texto para que quem se interessa pela série conheça um pouco mais sobre sua criação e as bata-lhas que envolvem a sua manutenção.

UMA HISTÓRIA QUE ESTÁ APENAS COMEÇANDO

Aline Costa

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Em um país como o Brasil, com o histórico de ausência de identidade,de servidão à cultura estrangeira, dificilmente uma manifestação como

os Cadernos Negros sobreviveria. Mas sobreviveu.Já se vão trinta anos da publicação do primeiro exemplar da antologia

literária afro-brasileira Cadernos Negros. Não se pode negar a importânciadesse aniversário, que deve ser comemorado não apenas pelos idealizadorese participantes diretos do projeto, mas por toda a comunidade afro-bra sileira.Sim, comunidade, conforme a definição de Hugo Ferreira: “Você vive emuma comunidade quando tem idéias comunitárias, quando é algo entre ir-mãos”.

A primeira edição dos Cadernos foi lançada em 1978; ano de muitasmudanças no Brasil, como a revoga, pelo então presidente Ernesto Geisel,do Ato Institucional N– 5 (AI-5), pondo um suposto fim aos anos de chumboque se instalaram no Brasil com a ditadura militar em 1964. 1978 tambémera ano de eleição e os sindicatos e movimentos estudantis viviam um períodode reconstrução da luta política e de suas ideologias. Além disso, 1978 mar-cava noventa anos de assinatura da Lei Áurea.

No mundo, a década de 70 viu vários países africanos, como Angolae Moçambique, deixarem de ser colônias de países europeus; a ONU ele-gia o ano de 1978 como o “Ano Internacional Anti-apartheid” e nos EUA,ao mesmo tempo em que se discutiam ações afirmativas, ainda ecoavammovimen tos como o dos “Black Panthers” e o “Black Arts Movement”,este últi mo preconizando uma estética negra na arte. A luta contra a dis-criminação estava em curso. No Brasil, nasciam movimentos como oMNU (Movimento Negro Unificado), formado no CECAN (Centro deCultura e Arte Negra), espaço onde os jovens se reuniam e participavamde discussões políticas.

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Lançamento do Cadernos Negros 1 na livraria Teixeira (centro de São Paulo).

Reunião do Quilombhoje na casa do Cuti, no bairro da Bela Vista, em São Paulo, com Sônia, Oubi,Chicão, Esmeralda, Regina Helena, José Alberto, Cuti e Jamu. Sentadas, em primeiro plano, estão Miriame Vera Alves.

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Era nesses espaços e grupos que a juventude negra, engajada emmovimentos de caráter político-social, gestava seus próprios meios de co-municação. Jovens como Jamu Minka se envolviam cada vez mais com mí-dias alternativas: “Eu vinha de uma experiência alternativa, um tablóidemuito famoso na época: Versos. Era um tablóide de esquerda que criticavatodas as ditaduras do Cone Sul. Em seguida fui para o CECAN para fazero jornal dessa entidade, o Jornegro”.

Havia outras publicações, como o “Árvore de Palavras”, também idea li zado e produzido por Jamu Minka, que eram distribuídas no cen-tro de São Paulo. O movimento Soul explodia e essa juventude estavaentão se reunindo no centro da cidade – no viaduto do Chá – e tambémnos bailes blacks, tomados nessa época pelo movimento soul, que ex-plodira na metrópole desde meados da década de 70.

O jovem negro, nesse momento, começava, em quantidade, a entrarnas universidades, acessando a produção cultural: cinema, literatura, teatro– diferentemente de gerações anteriores, que tinham mais dificuldade deingressar num curso superior e acessar os bens culturais pertencentes aesse universo. Eram jovens negros que estavam se destacando da reali-dade já há tanto tempo tradicional: analfabetismo, exclusão, subempregos,marginalidade.

Nesse momento de engajamento político e envolvimento com osbens culturais, conseqüentemente, nasceu a necessidade de auto-reco -nhecimento, de encontro com as raízes, de busca de identidade, logo, deícones nos quais se espelhar, como relata Hugo Ferreira: “Eu confesso queeu nunca cheguei, até 1975, a pegar um livro do Solano Trindade. Só tivecontato em 1976, porque eu participei do Teatro Popular SolanoTrindade, com a Raquel Kambinda. (...) Aí você chega, por exemplo, em78, tem a comemoração dos 80 anos de Solano Trindade e todos aquelesnegros velhos estavam ali, vivos, como o seu Correia Leite, um cara ínte-gro, honesto (...)”.

Entretanto, esses jovens universitários eram exceções; a grande massada juventude negra continuava não tendo acesso aos bens culturais e essamesma população estava sendo sistematicamente levada, cada vez mais,para as periferias da cidade a partir dos projetos de habitação popular dogoverno. Em meio a esse contexto de exclusão espacial, econômica e cul-tural, associada a uma conscientização política, que então renascia, omovimento negro tomava força.

Aquele jovem negro chegando à universidade e não encontrando re -pre sentações de seu povo na literatura, nos estudos históricos e socioló -

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Lançamento do Cadernos Negros 2. Da esquerda para a direita: pai do Paulo Colina, os autores NeuzaMaria Pereira, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Aristides Barbosa.

Lançamento do Cadernos Negros 1 na livraria Teixeira. Jamu Minka (autor) e o sociólogo FlorestanFernandes.

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gicos, se pergunta: por quê? Tinha-se até então a imagem – o sensocomum – de que o negro não produzia literatura e conhecimento, is sotambém nos relata Hugo Ferreira: “Em 1978 aconteceu muita coisa;aconteceu essa contestação do 13 de maio pelo MNU. O MovimentoContra a Discriminação Racial surgiu em função de quê? Em função de barrarem os atletas negros no (clube) Tietê. Porque era aquele negócio: negro era bom pra correr, mas para ir pra piscina, não. Não podiaentrar (...) Negro não era bom pra nadar. Como você pode não ser bompra nadar se você não pode entrar na piscina? E até hoje eu vejo oseguinte: o negro não é escritor por quê? Porque não tem oportunidadede es cre ver”.

Apesar de existirem exemplos eminentes de produção literária dequalidade, como Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Lino Guedes,entre outros, não era o bastante. Não bastava ser exceção, o jovem negroansiava por ser agente da construção de sua trajetória na literatura: “Onegro estava presente na literatura tradicionalmente como tema e nãocomo agente”, afirma Márcio Barbosa. Cuti completa: “Porque faltou efalta ainda dentro dessa literatura brasileira feita por brancos os traços danossa subjetividade. Nós estamos representados nessa literatura pela visãoque o branco tem de nós”.

Havia necessidade de ser a própria voz e ser também a voz daquelesque não tinham voz, conforme Jamu Minka: “Fui percebendo a questãoda falta de identidade negra mais crítica, de personagens mais de acordocom o que a gente vivia”. O clima geral, porém, era de “deixa disso”. Nauniversidade, Cuti encontrou quem dissesse que no Brasil não havia pre-conceito; assim, dentro dessa noção, por que fazer uma literatura comoque denunciando um racismo em tese inexistente? Dentro dessa idéia,esses estudantes que queriam fazer literatura não deixando de lado suavivência da questão racial encontraram vários opositores, nas palavras deHugo Ferreira: “A direita, que eram os deputados, vereadores, falava quenão existia preconceito no Brasil. A esquerda, que era o Partido Comu-nista, virava pra gente e falava: ‘vocês estão dividindo a luta de classes’”.

Mesmo dentro do movimento negro houve quem se opusesse àquelamobilização literária idealizada pelos Cadernos usando o argumento deque literatura era coisa de burguês. Ainda que em meio a tanta oposição,Cuti, Hugo e seus companheiros seguiram em frente: “Nosso país nãopodia mais viver sem a nossa experiência de vida colocada em forma deliteratura por duas razões: nós negros precisávamos estar representados etambém o branco precisava ser visto de outra maneira”, segundo Cuti.

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Cuti no lançamento do Cadernos Negros 4.

Hamilton Cardoso declama em roda de poemas doCadernos Negros 4.

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Em meio a essa necessidade de auto-retratação e efervescência político-cultural nasce um projeto de vida. Cuti, então estudante de Letras, ciente daescassa produção literária feita por negros que reproduzisse seu cotidiano,suas dores, amores e ideais, sente a necessidade de produzir mais e agregar aesse projeto outros autores negros: “A idéia de Cadernos era exatamente aidéia de experimentação, a gente poder estar livres para experimentar esti-los, formas de literatura. E aconteceu que lá no CECAN (Centro de Cultura e Arte Negra), que ficava no Bexiga, nós tínhamos um jornalchamado Jornegro e nesse jornal reuniam-se várias pessoas que escreviampoesia. Daí nasceu a idéia”.

Outro idealizador, o jovem Hugo Ferreira, que na época fazia mestradoem História, uniu-se a Cuti na estruturação do projeto: “Eu fiz um projetoque era uma tese, o Cuti entrou com a antítese dele e surgiu uma síntese quesão os Cadernos (...) Então a minha idéia era criar um coletivo de escritores.Como? Primeiro publicando. Ter uma publicação que publicasse quemquisesse ser publicado”.

Mas por que Cadernos Negros? Hugo Ferreira, o “inventor” do nome,explica: “Em 1977 tinha morrido a Carolina (Maria de Jesus), e ela es-crevia em cadernos; a gente também escrevia nossas poesias em cadernos,somos da geração anterior ao computador e muita gente não tinhamáquina. Uma coisa muito simples se tornou uma coisa muito forte, oscadernos eram algo nosso”.

Então, a antologia de poesias feita por afro-descendentes chamou-seCadernos Negros. O primeiro número contou com a participação deCelinha, Oswaldo de Camargo, Eduardo de Oliveira, entre outros. Para reu nir os textos Cuti comunicou a respeito do livro para alguns poetas quejá conhecia, reuniu os poemas, orçou o valor da publicação com a gráficae repassou aos autores aguardando o dinheiro para imprimir os livros.

O lançamento do primeiro número dos Cadernos aconteceu no Fe-conezu (Festival Comunitário Negro Zumbi), em Araraquara, onde sereu niram quase duas mil pessoas naquele ano de 1978. O que muita gentenão sabe é que alguns dias depois foi feito um segundo lançamento, só queagora na famosa, na época, Livraria Teixeira, situada na Rua Marcondes,centro velho de São Paulo, e contou com presenças importantes, como ade Florestan Fernandes: “O lançamento na Livraria Teixeira foi por in-termédio do professor Eduardo de Oliveira, que era amigo do dono daLivraria e propôs o lançamento lá. A livraria foi muito receptiva e houveaté uma exposição dos livros lá fora. Foi como um lançamento tradicio -nal em que os autores autografam os livros, algum fala alguma coisa.

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Carlos de Assumpção faz performance sobre o poema"Protesto".

Quilombhoje em 1985. Foto da quarta capa dolivro Reflexões sobre a Literatura Afro-brasileira. Da esq. para a dir.: Márcio Barbosa,Esmeralda Ribeiro, Oubi Inaê Kibuko, Cuti eMiriam Alves. Sentados no chão: Sônia Fátima,Abílio Ferreira e Jamu Minka.

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O discurso foi feito por Aristides Barbosa, jornalista hoje já falecido”,relembra Cuti.

Há que se destacar o paradoxo desses dois eventos de lançamento. Oprimeiro, mais popular, voltado para um público em sua maioria de negros,em um evento do movimento negro, sem caráter unicamente literário. E osegundo, para um público bem menor, em torno de 50 pessoas, em um am-bi ente freqüentado pela elite cultural. Talvez nesse momento estivessem seevidenciando, para cada um dos participantes dos Cadernos, as escolhas queteriam de fazer mais tarde.

Apesar da inicial afinidade ideológica que Hugo Ferreira e Cuti man-ti nham, houve o momento de trilharem caminhos diferentes. Hugo eravisto, por outros integrantes do grupo, como panfletário por não desagre-gar a lite ratura (arte) da ideologia (política), por seu desejo de que os Cader-nos fossem mais populares no sentido de alcançar o público não-formadoapenas por universitários e de que os textos publicados não fossem de au-tores já conhecidos e possuidores da técnica literária já reconhecida, masde homens comuns que desejassem escrever: “Eu recebi muitas críticasdizendo que meu texto era panfletário. (...) Mas eu não sou escritor, eu soumilitante”, declara Hugo.

* * *

Mas como os Cadernos poderiam sobreviver? “No primeiro númerodos Cadernos, se você pegar, já anuncia o segundo e o segundo já anuncia oterceiro. Já coloquei ali anunciando o próximo porque eu queria que as pes-soas se empenhassem em realizar um trabalho a longo prazo”, relata Cuti.

Fazendo todo o trabalho praticamente sozinho, Cuti contava even-tualmente com auxílio de algumas pessoas. Oswaldo de Camargo revisavatextos, Sônia Fátima cuidava da parte financeira e ajudava na organizaçãodos textos (na época não havia seleção de textos): “Na segunda edição o Cutiveio me chamar e fui participar e ajudar na organização e na parteeconômica”. Mas ninguém o amparou tanto quanto sua esposa, Marinete.Durante todos os anos em que Cuti se dedicava à produção dos Cadernos,Marinete, a Nete, o auxiliava de várias maneiras, buscando novos leitores,nos lançamentos, enfim, segurava as “pontas” em casa enquanto esposa e,apesar de não ser escritora, teve um papel muito importante na história dosCadernos: “Eu acompanhei o levantamento e recolhimento do material. OCuti ficava atrás das pessoas, era aquela dificuldade de fechar o livro, eu viao sofrimento dele, eu sentia isso dentro da minha casa”, relembra.

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Lançamento do Cadernos Negros 5. Ao centro, aparecem Vera Lúcia Barbosa em pé, (autora no CN24) e o colaborador Toninho. À direita está o artista plástico Luiz Cláudio Barcellos, autor da capa.

Felipeta de divulgação de lançamento de livro.

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Os autores participantes dos Cadernos se reuniam para discutir ospróprios textos, que seriam publicados na antologia, e textos de outros autores, como Solano Trindade, Lima Barreto, enfim, basicamente discu-tiam literatura. Esse grupo de discussão era formado por Cuti, Oswaldo deCamargo, Abelardo Rodrigues e Paulo Colina; os encontros aconteciam nacasa do Cuti ou em bares da região do Bexiga.

Desses encontros nasceu o nome Quilombhoje para o grupo que tinhacomo diretriz a discussão do papel do negro na Literatura Brasileira. OQuilombhoje tinha atividades separadas da publicação dos Cadernos, porémas relações eram estreitas, pois os autores escreviam para os Cadernos e dis-cutiam suas produções no Quilombhoje.

Com o passar do tempo, novas pessoas tomavam contato com osCadernos e se interessavam em participar: “O Oubí (Inaê Kibuko) me apre sentou os Cadernos Negros, eu já participava de algumas atividades políti-cas do movimento negro, eu tinha vindo do movimento Soul da década de70, tinha feito parte de um movimento chamado Black São Paulo, que eramais de entretenimento, música, mas era um movimento que tinha cono-tação étnico-racial (...) Como eu escrevia algumas coisas também, comeceia pensar que poderia escrever mais coisas nesse sentido. Foi um estímuloconhecer os Cadernos Negros”, relembra Márcio Barbosa.

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Oubí Inaê Kibuko autografa o livro Cadernos Negros 10, em lançamento no Sesc. À direita,de terno, está o poeta Marcílio Nascimento.

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Márcio Barbosa autografa livro. À esquerda aparece Márcio Damázio, responsável pela pioneiraLivraria Eboh.

Éle Semog autografa livro.

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Assim como Márcio, outros “novatos”, já no início dos anos 80,começavam a se aproximar do grupo que já existia, como Esmeralda Ribeiro,que chegou ao Quilombhoje também nessa época: “Eu sempre estava nasreu niões na casa do Cuti, mas sem muito compromisso, era o momen to tãofa la do da entrada dos novatos. Eu particularmente estava com mui ta garra,muita força, querendo aquela descoberta. Estando no Qui lom b hoje nóscomeçamos a pensar em como ajudar o Cuti, pois sabíamos que ele fazia osCadernos Negros sozinho”.

Os novos integrantes, Miriam Alves, Oubí, Márcio e Esmeralda,traziam consigo um vigor jovem associado a uma enorme vontade de fazerliteratura e espalhá-la por todos os cantos, como nos relata Márcio: “A idéiaera divulgar mais a literatura para as pessoas que curtiam baile, que curtiamescola de samba e que não freqüentavam o CECAN. Isso foi dando certo,íamos no Vai-Vai para fazer o pessoal se interessar pelos Cadernos e ir noslançamentos, assim muita gente passou a se interessar.”

Porém, esse sangue novo tinha opiniões que divergiam do que já estavaestabelecido pelo ideário dos integrantes mais “antigos” do Quilombhoje,enquanto grupo de discussão literária e produtor dos Cadernos Negros: “Agente sentiu um certo choque de como encarar a literatura, a gente enca ravade uma forma mais política, de forma que ela podia trazer alguma transfor-mação real para ajudar as pessoas, mobilizar outras pessoas. E eles não davam

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Reunião na casa do Cuti. Regina Helena (à esquerda), Cuti e José Alberto.

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Lançamento do Cadernos Negros 16 no Sindicatos dos Bancários de São Paulo, em 1993.

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tanto peso a essa parte mais de militância, embora a atuação deles fosse im-portante”, conclui Márcio.

Esse “eles” a que Márcio, que hoje divide com Esmeralda Ribeiro agestão do Quilombhoje e da publicação anual dos Cadernos Negros, sere fe re eram Oswaldo de Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues, estesque participaram ativamente das primeiras publicações e rodas de discussãoliterária, todos com formação acadêmica e visão que dividiu o Quilombhojeem duas frações: uma que priorizava as discussões literárias mais “fechadas”e outra formada pelos novos integrantes, que ansiavam por uma maiorpopu larização do Quilombhoje e dos Cadernos no sentido de que esses tra-ba lhos fossem mais divulgados e contassem com maior participação da co-munidade. “A gente achava que a literatura podia ter um papel muito maior.Eles tinham uma preocupação mais formal, estética, mais intelectual, nosentido tradicional da palavra, então deu esse choque”, revela Márcio.

No meio dessa divergência de idéias, do racha que aconteceu no grupo,estava Cuti. Vivia o dilema de ficar ao lado de seus antigos companheirosacadêmicos Oswaldo Camargo, Paulo Colina e Abelardo Rodrigues e osnovos integrantes, jovens ávidos por dar nova direção aos Cadernos. Cutientão fez a escolha que, naquele momento, achou que era a melhor: “Elessaíram e me deram um xeque-mate para eu escolher com quem eu iria ficar.E eu resolvi ficar com os novos e eu acho que fiz o certo. Fiquei com osnovos que na época eram o Jamu, Miriam Alves, Esmeralda e depois o Már-cio e o Oubí. Foi bom porque a partir daí os Cadernos Negros evoluíram, poiso trabalho em equipe dá muito mais resultado”.

Então o Quilombhoje iniciou, em 1983, uma nova formação. Ao longodo tempo, pessoas entraram e saíram. As reuniões passaram a ocorrer na casada Sônia, foram criadas regras de disciplina rígidas e isso teve como conse-qüência a saída de membros como Jamu Minka e Miriam Alves. Em 1994foi Oubí Inaê Kibuko que se retirou do grupo.

* * *

Em 1993, Cuti, por motivos pessoais, deixou de fazer parte do grupo,mas continuou publicando seus textos nos Cadernos. Durante o período emque trabalharam, houve muitos obstáculos, principalmente financeiros, parase manter a publicação dos Cadernos. Porém o caráter cultural do coletivo semantinha, continuavam a discutir literatura nas reuniões e a divulgá-la nas“rodas de poemas”, com direito a música e declamações: “O poema já chegou,o poema já chegou, veio do quilombo, o poema já chegou”, declama Cuti,

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Arnaldo Xavier e leitoras.

Leitores conversam sobre o livro.

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relembrando a época das rodas de poemas. Em 1999, Esmeralda Ribeiro eMárcio Barbosa passaram a ser os únicos remanescentes da formação inicialdo grupo.

Mas os componentes que saíram continuam colaborando com osCadernos e discutindo literatura dentro do Quilombhoje. Co-fundadores,como Abelardo Rodrigues, trilham seus próprios caminhos. Oswaldo deCamargo continua atuando ativamente e é um intelectual respeitadíssimo.“Oswaldo é um grande amigo e suas opiniões são sempre enriquecedoras”,afirma Márcio.

Antes, com o amadurecimento do Quilombhoje, tinham vindo as res -ponsabilidades: era necessário cuidar das questões burocráticas; disso seocupou Esmeralda, enquanto os outros se dividiam entre selecionar os tex-tos, revisar, mandar para a gráfica etc. Cada membro do grupo teve a opor-tu nidade de publicar seu livro individual e isso, segundo Cuti, fez com queos integrantes do grupo se sentissem valorizados. Tantos os Cadernos Negrosquanto os livros individuais eram feitos de forma cooperativa, sem patrocínio.Essa postura perdura até nossos dias, o que faz com que qualquer pessoaque escreva e tenha desejo de publicar seu texto possa participar do processode seleção da coletânea. Esse processo de seleção é coletivo. Nos primeirosvolumes de Cadernos não havia seleção, os textos enviados eram automati-camente publicados.

Essas publicações têm sido importantes também para dar visibilidade

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Almoço com Toni Morrison, escritora afro-americana ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de1993. Do lado esquerdo estão Miriam Alves e Toni Morrison; à direita está Esmeralda Ribeiro.

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Divo (à esquerda), da Editora Anita, e o professor Eduardo de Oliveira (ao centro) confraternizam-secom participantes do lançamento do Cadernos Negros 17.

Dj Hum toca no lançamento do Cadernos Negros 25.

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à produção literária da mulher negra, esta que foi e é tão importante noMovimento Negro e que nas primeiras edições esteve presente em pequenonúmero e que, no Cadernos Negros volume 30, aparece em maior quantidade,demonstrando assim que a escrita da mulher negra vem se articulando eocupando seu espaço único e específico dentro da literatura afro-brasileira:“Os Cadernos são de grande importância porque eu não conhecia mulhernegra que tivesse um trabalho (literário), exceto a Carolina de Jesus. Maspoetisa negra que falasse do nosso amor, da nossa vida, dos nossos filhos, dasnossas coisas, não era comum. E hoje a gente vê Elizandra, EsmeraldaRibeiro, Conceição Evaristo, Miriam Alves e tantas outras. Então eu achoque tem um sabor diferente, a gente está aí, as mulheres negras estão falandode suas angústias, suas belezas, estão escrevendo e isso é importante”, asse -vera Marinete Silva, a Nete.

Sendo assim, o lançamento deste volume especial dos Cadernos revelaa força e importância histórica e social da literatura afro-brasileira e o papelque a série tem tido em sua divulgação, nas palavras de Cuti: “Eu já acredi-tava que só as coisas que duram é que criam raízes. As coisas efêmeras nãocriam raízes, portanto não dão frutos.”

A permanência e resistência dos Cadernos é uma das conquistas, assimcomo a publicação de uma versão em inglês nos EUA e a inclusão de umaedição especial de Cadernos, “Melhores Poemas”, na lista de livros indica-

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Miriam, Tico e Lia no lançamento do Cadernos Negros 28 no Masp, em São Paulo.

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Banca com Cadernos Negros em oficina de literatura com jovens na Zona Norte de São Paulo.

Esmeralda Ribeiro e Cristiane Sobral no lançamento do Cadernos Negros 24 em Brasília.

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dos para o vestibular da UFBA (Universidade Federal da Bahia), desde 2006,além de a série ser material e objeto de pesquisas acadêmicas no Brasil e foradele.

Através do Quilombhoje e dos Cadernos Negros, mulheres e homensnegros têm perpetuado sua cultura e suas raízes, nesse sentido ambos exer -cem o papel de ferramenta de resistência: “Os Cadernos são uma arma prin-ci palmente”, conclui Márcio.

Arma de luta não só no âmbito da comunidade negra do Brasil, mas navida de cada pessoa que passou ou passará pelo Quilombhoje.

Todos os que se dedicaram, escreveram e acreditaram merecem para -béns pelas três décadas de vida, perseverança e união dos Cadernos Negros.E que venham mais 30 anos!

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Lançamento do Cadernos Negros 26 no Sesc Paulista.

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