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Design, Arte, Moda e Tecnologia. São Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 67
Resumo O presente artigo estuda a relação entre a ilustração e o design
gráfico no projeto gráfico de um livro ilustrado, a discussão
acontece através de um estudo de caso do livro de Fernando
Vilela, Lancelote e o Lampião. O estudo é desenvolvido utilizando
como ferramenta de análise a semiótica Peirciana lida pelo livro
Matrizes da Linguagem e pensamento da autora Lúcia Santaella e
o objetivo é compreender através do estudo de linguagem algumas
relações entre o ilustrador e o designer na construção do signo
das páginas do livro.
Palavras-Chave: ilustração; inguagem; design gráfico
Um estUdo sobRe a lingUagem da ilUstRação e o design
gRáfiCoJorge Paiva; Mestrando em Design: Universidade Anhembi Morumbi
Design, Arte, Moda e Tecnologia. São Paulo: Rosari, Universidade Anhembi Morumbi, PUC-Rio e Unesp-Bauru, 2010 68
Um estudo sobre a linguagem da ilustração e o design gráfico
Há um consenso entre os autores LOOMIS (1947), DONDIS (2007) e ZEEGEN (2009)
de que ilustrar é transmitir uma mensagem através de imagens e, é a partir deste pensamento
que comumente a ilustração é definida como uma arte figurativa. O objeto de estudo deste
artigo é a ilustração narrativa, este termo é empregado por autores reconhecidos, como por
exemplo, E. H. Gombrich no livro Arte e Ilusão. Embora o autor, não Forneça uma definição
do termo, fica claro que ele refere-se à obras que contam uma história através de imagens. O
mesmo termo, ilustração narrativa, foi definido pelo brasileiro Rui de Oliveira como um gênero
da ilustração:
A ilustração narrativa está sempre associada a um texto, que pode ser literário ou musical, como é o caso das ilustrações para capa de CDs e DVDs. No entanto, o que fundamentalmente caracteriza esse gênero são o narrar e o descrever histórias através de imagens, o que não significa em hipótese alguma uma tradução visual do texto. A ilustração começa no ponto em que o alcance literário do texto termina, e vice-versa (Oliveira, 2008, p.44).
Os livros infantis são o tema da linha de pesquisa de Rui de Oliveira, e a ilustração
narrativa que ele se refere é a ilustração que tem o intuito de contar uma história, de narrar
uma cena, para Oliveira “Ilustrar é a arte de sugerir narrativas” (Oliveira, 2008, p.60). Outros
gêneros de ilustração foram definidos por Rui, como a ilustração informativa e a ilustração
persuasiva. A ilustração informativa é típica dos livros de medicina e botânica e a ilustração
persuasiva utilizada pela publicidade. Evitando reducionismos, vale colocar as palavras de Rui
quanto ao caráter híbridos destes gêneros, “As três divisões tem acima de tudo um aspecto
didático, uma vez que esses gêneros agem muitas vezes ao mesmo tempo, influenciando-se
mutuamente. No entanto, do ponto de vista formal, em termos conceituais, comportam-se
de maneira distinta” (Rui de Oliveira, 2008, p.44). Portanto, as ilustrações em geral possuem
níveis diferenciados de informatividade, persuasão e narrativa.
Toda esta responsabilidade de expressar um pensamento ou contar uma história
sem dizer uma única palavra requer que o ilustrador tenha um conhecimento específico de
articulação da linguagem visual. Durante seu processo de formação o ilustrador aprende a
trabalhar com o ponto, linha, plano, composição, ritmo visual, teoria das cores, dramatização e
caracterização dos personagens, cenários e diversos outros conceitos específicos à profissão.
Quando a ilustração é inserida em um projeto gráfico a responsabilidade do designer não é
menor.
Embora a linguagem visual seja um eixo comum entre o ilustrador e o designer, o
pensamento em articular a linguagem ou as linguagens é diferenciado, independente se o
ilustrador e o designer são ou não o mesmo individuo. Podemos configurar uma linha de
pensamento através da autora Lúcia Santaella, que alicerçada por Décio Pignatari compara a
poesia ao design: “Por aí se vê por que o poeta é um configurador de mensagens, um designer
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da linguagem, no dizer de Jakobson e a poesia um diagrama de sentidos e ressonâncias que
acabam por se assemelhar à aquilo que conotam” (Santaella, 2009B, p.302). Deste ponto
de vista, uma vez que ilustrar é comunicar uma mensagem através de imagens, poderíamos
comparar o ilustrador ao poeta como alguém que configura a mensagem de uma imagem.
Parece assim, mais justo separar as diferenças entre as profissões do designer e do ilustrador
por meio da forma como é pensada ou articulada a linguagem visual em cada profissão.
Através desta definição de que o ilustrador é articulador da mensagem, e designer articulador
das linguagens, que surge o argumento de que ambos os de processos trabalho caminham
indissociáveis na formação da mensagem visual.
Antes de iniciarmos a análise, cabe introduzir brevemente a semiótica Peirciana que
conheci através do livro Matrizes da linguagem e Pensamento da pesquisadora Lucia Santaella.
Digo brevemente, pois seria inviável em um artigo descrever todo modelo de matrizes híbridas
de Lúcia Santaella e todo seu embasamento na semiótica de Charles S. Peirce. Portanto,
a introdução dos conceitos serve muito mais como uma guia para o leitor buscar maiores
informações, do que uma literatura esclarecedora do tema. Lúcia Santaella definiu que “o
estudo da imagem é, assim, um empreendimento interdisciplinar” (Santaella, 2009A, p.13).
Com a ilustração, de modo específico, isso não é diferente. Há uma vasta bibliografia sobre
linguagem visual, história da arte e estudo da imagem pronta para ser acessada pelos
estudantes e interessados em ilustração. A busca pela semiótica Peirciana como ferramenta
para um estudo de linguagem da ilustração é proveniente da necessidade de empregar uma
metodologia de análise. Além disso, a pesquisa de Santaella sobre linguagem visual dentro
das matrizes fornece uma espinha dorsal para análise da ilustração e um modo de organizar
a leitura da imagem, o que auxilia no pensar e repensar a ilustração. A lógica de análise
de Santaella nos fornece um panorama das possibilidades, decompondo uma imagem em
diferentes nichos de análise, e compondo assim, um pensamento fluído e ao mesmo tempo
estruturado.
Peirce definiu a semiótica como a teoria geral dos signos, ele “dedicou toda a sua vida
ao desenvolvimento da lógica entendida como teoria geral, formal e abstrata dos métodos de
investigação utilizados nas mais diversas ciências” (Santaella, 2002, p.XII). É importante dizer
que o estudo dos signos é muito antigo, e sua história poderia ser aqui reconstruída desde o
mundo grego até o século XX quando a semiótica ficou conhecida como ciência dos signos. A
semiótica não é uma ciência com objeto de estudo delimitado, e é apenas uma das disciplinas
que compõem a extensa obra de Charles S. Peirce, e ainda existem outras correntes da
semiótica que não serão abordadas aqui.
A lógica de análise de Peirce é anticartesiana, partindo do princípio de que a lógica
deve estabelecer uma tabela formal e universal de categorias a partir da mais radical análise de
todas as experiências possíveis. Este pensamento surgiu a partir da insatisfação de Peirce dos
modelos de categorias aristotélicas, consideradas mais gramaticais que lógica, e também com
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as teorias kantianas e hegelianas. Peirce dedicou-se intensamente à elaboração de categorias
universais à todos os fenômenos. Na base da teoria analítica de Peirce está o Signo, o Objeto
e o Interpretante. O Signo é determinado pelo objeto, e é o que representa o objeto para um
interpretante, por isso mesmo é signo. O Objeto não é sinônimo de coisa, mas, é o que se
presentifica ao interpretante graças á mediação do signo. O interpretante não é o sinônimo
de interpretação, mas o processo inteiro de geração de interpretantes. Assim fica claro na
semiótica Peirciana que é impossível falar de signo sem que haja objeto e interpretante. Existem
ainda, nas categorias de Peirce outra tríade que foram usadas pra distinguir três espécies de
signos ou representações: Ícone, índice e símbolo. O ícone é um signo capaz de representar
seu objeto meramente em função de qualidades que possui, independente da existência ou
não do objeto. O índice é um signo que está existencialmente conectado com um objeto que
é maior do que ele. O símbolo é um signo que funciona como tal objeto, porque é estabelecido
por convenção, usado e entendido como representado. Outra tríade na obra de Peirce refere-
se ao interpretante como remático, dicente e o interpretante como argumento, que não serão
abordadas aqui. Peirce definiu ainda muitas outras tríades que partem para decomposições
cada vez mais refinadas. Estas classificações são fluídas, sobrepondo-se uma as outras e as
rápidas definições aqui são mais um modo de refrescar a memória de alguns, sendo ideal um
conhecimento prévio para uma compreensão mais profunda dos conceitos.
Foi embasada na semiótica de Peirce que Lúcia Santaella desenvolveu seu modelo de
matrizes híbridas. Segundo seu modelo existem três matrizes da linguagem e do pensamento,
a matriz sonora, a visual e a verbal, sendo elas híbridas. A lógica da matriz verbal por exemplo
não necessariamente precisa estar manifesta em palavras, assim como a lógica da matriz
sonora não necessariamente deva estar manifesta como som. Assim sendo Santaella enfatiza
que:
Quando se trata de linguagens existentes, manifestas, a constatação imediata é a de que todas as linguagens, uma vez corporificadas, são híbridas. A lógica das três matrizes e suas 27 modalidades, desdobradas em 81, nos permite inteligir os processos de hibridização de que as linguagens se constituem. Na realidade, cada linguagem existente nasce do cruzamento de algumas submodalidades de uma mesma matriz ou do cruzamento entre submodalidades de duas ou três matrizes. Quanto mais cruzamentos se processarem dentro de uma mesma linguagem, mais híbrida ela será. Desse modo, por exemplo, a linguagem verbal oral, a fala, apresenta fortes traços de hibridização tanto com a linguagem sonora quanto com a linguagem visual na gestualidade que a acompanha. (Santaella, 2009B, p.379)
A hibridização acontece de diversas maneiras nas matrizes. No caso da ilustração
inserida na matriz da linguagem visual, podemos pensar na fala de Santaella “A visualidade,
mesmo nas imagens fixas, também é tátil, além de que absorve a lógica da sintaxe, que vem
do domínio sonoro. A verbal é a mais misturada de todas as linguagens, pois absorve a sintaxe
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do domínio sonoro e a forma do domínio visual” (Santaella, 2009B, p.371).
A lógica das três matrizes e suas modalidades engendradas por Santaella tem como
objetivo criar um “patamar intermediário entre os conceitos Peircianos e as linguagens
manifestas, de modo que as modalidades verbal, visual e sonoro possam servir de mediação
entre a teoria Peirciana e a semiótica aplicada” (Santaella, 2009B, p.29) uma vez que o nível de
abstração dos conceitos de Peirce é muito elevada e dificulta à aplicação direta dos conceitos
nas linguagens manifestas ou processos concretos de signos. Cada uma das três matrizes,
como vimos, foram divididas em 27 modalidades que podem ser usadas como uma espécie
de mapa guia de uma análise. Evidentemente não vou comentar cada uma delas aqui, mas,
estas serão abordadas durante à análise de forma explicativa, cabe ainda adicionar alguns
critérios de Lúcia Santaella quanto ao caráter híbridos destas modalidades:
A classificação é uma espécie de rede para ser utilizada na elucidação das formas visuais. Evidentemente, essas formas, quando manifestas, dificilmente apresentam como casos puros de cada uma das modalidades ou submodalidades. Ao contrário, a maior parte das formas de representação visuais nasce da mistura e da intersecção de algumas das submodalidades. Isso significa que a classificação não deve funcionar como uma itemização estática e monovalente, mas como focos da inteligibilidade que sejam capazes de despertar o olhar e de funcionar como bússolas de orientação para leitura dos princípios lógicos que comandam as configurações da linguagem visual (Santaella, 2009B, p.260).
Assim, a utilização da classificação das matrizes funcionam mais como uma guia da
lógica abstrata que deve atentar mais à manifestação do objeto do que na classificação pura
e simples, sendo assim um processo flexível para apoio.
A matriz da linguagem visual no modelo de Santaella está alicerçada na forma, assunto
que foi desenvolvido amplamente pela Gestalt, ou, teoria da forma que surgiu na Alemanha
no princípio do século XX. A autora deixa claro que os estudos da Gestalt contribuíram para
formulação de seu modelo. Santaella dividiu as formas visuais em três modalidades, as formas
não-representativas, as formas figurativas e as formas representativas. Definindo as formas
não-representativas da seguinte forma:
dizem respeito à redução da declaração visual a elementos puros: tons, cores, manchas, brilhos, contornos, formas, movimentos, ritmos, concentrações de energia, textura, massas, proporções, dimensão, volume, etc (Santaella, 2009B, p.210).
As formas figurativas foram explicadas da seguinte maneira:
Assim sendo, formas figurativas dizem respeito às imagens que basicamente funcionam como duplos, isto é, transpõem para o plano bidimensional ou
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criam no espaço tridimensional réplicas de objetos preexistentes e, o mais das vezes, visíveis no mundo externo. São formas referenciais que, de um modo ou de outro, com maior ou menor ambigüidade, apontam para objetos ou situações em maior ou menor medida reconhecíveis fora daquela imagem. Por isso mesmo, nas formas figurativas, é grande o papel desempenhado pelo reconhecimento e pela identificação que pressupõem a memória e a antecipação no processo perceptivo. Nessas formas, que buscam reproduzir o aspecto exterior das coisas, os elementos visuais são postos a serviço da vocação mimética, ou seja, produzir a ilusão de que a imagem figurada é igual ou semelhante ao objeto real (Santaella, 2009B, p.227).
E por último as formas representativas:
As formas representativas, também chamadas de simbólicas, são aquelas que, mesmo quando reproduzem a aparência das coisas visíveis, essa aparência é utilizada apenas como meio para representar algo que não está visivelmente acessível e que, via de regra, tem um caráter abstrato geral” (Santaella, 2009B, p.246).
Segmentei meu processo de análise em três partes, a imagem, o diagrama e a mensagem.
Esta divisão foi inspirada na divisão de Peirce, dos signos icônicos em imagem, diagrama e
metáfora. Na separação de Peirce “A imagem estabelece uma relação de semelhança com
objeto puramente no nível da aparência” (Santaella, 2002, p.18), “O diagrama representa
seu objeto por similaridade entre relações internas que o signo exibe e as relações internas
do objeto que o signo visa representar” (Santaella, 2002, p.18) e por último, “A metáfora
representa o objeto por similaridade no significado do representante e no representado. Ao
aproximar o significado de duas coisas distintas, a metáfora produz uma faísca de sentido que
nasce de uma identidade posta à mostra” (Santaella, 2002, p.18)
A estrutura e motivos da minha classificação diferem dos motivos Peirce,
consequentemente o sentido do uso das palavras, imagem e diagrama não devem ser utilizados
em comparativos a semiótica Peirciana. Na minha organização de análise a mensagem é a
parte do processo que vou relacionar a mensagem da ilustração ao texto ou contexto ao
qual ela se refere. É um primeiro contato com a ilustração, como um vôo de reconhecimento
do terreno. O diagrama, visa descrever a hierarquia, o significado e a relação dos elementos
diagramados na página e também a concepção do projeto gráfico e sua influência visual na
ilustração. A imagem, é a ilustração em si, neste ponto do processo a análise foca-se em
estudar as formas não-representativas, as formas figurativas e as formas representativas na
ilustração e sua relação com o diagrama. Como as tríades de Peirce o meu modelo é fluído,
sendo que Imagem, Diagrama e Mensagem influenciam-se entre si.
Após a descrição prévia do método de análise, vamos ao objeto de estudo. O livro
Lancelote e o Lampião de Fernando Vilela que recebeu menção honrosa no Prêmio Bolonha
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Ragazzi em 2007. O livro foi escolhido devido a sua linguagem que valoriza a relação entre o
projeto gráfico e a ilustração.
Figura 1. Esta é a capa do livro de Fernando Vilela, as cores metálicas foram feitas através do processo de hot stamping. Vilela (2006)
a mensagemTendo em vista o argumento apresentado acima – do designer como configurador
das linguagens – é necessário agora apresentar o termo designer da linguagem, do autor
Décio Pignatari. O Designer da Linguagem é descrito por Pignatari como: “aquele capaz de
perceber e/ou criar novas relações e estruturas de signos” (Pignatari, 2002, p.18). O designer
da linguagem está inserido na sociedade contemporânea, onde as diferentes mídias entram
em atrito, contaminação, interferência e mesclam umas às outras interferindo de modo global
no comportamento da comunidade:
Daí que o nosso século é o século do planejamento, do design e dos designers: o desenho industrial e a arquitetura passam a ser estudados e projetados como mensagens e como linguagens; escritores, poetas, jornalistas, publicitários, músicos, fotógrafos, cineastas, produtores de rádio e televisão, desenhistas, pintores e escultores começam a ganhar consciência de designers, forjadores de novas linguagens (Pignatari, 2002, p,18).
Neste processo de inovar as linguagens insiro também os ilustradores, que através
da necessidade de expressar uma idéia visualmente, nas últimas décadas utilizam-se cada
vez mais de diferentes materiais, técnicas mistas, e recebem influências de outras mídias e
suportes. Tomemos como exemplo, o caso de Fernando Vilela, ilustrador e escritor do livro
Lancelote e o Lampião. A narrativa do livro parte do possível encontro entre Lancelote, o
guerreiro dos contos da Távola Redonda do Rei Arthur e Lampião o famoso cangaceiro do
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sertão nordestino. No texto do livro existem duas referências de linguagem que caracterizam
cada um dos dois personagens. A narrativa em prosa e em tom épico evocam e refere-se à
Lancelote. As estrofes compostas em sextilha – ou seja seis versos – referem-se à Lampião,
sendo a estrutura de sextilha típica da literatura de cordel que é famosa na terra natal do
cangaceiro. O embate entre os dois guerreiros é também um embate cultural, de quem faz o
melhor repente. Nas ilustrações a hibridização de linguagens continua, entretanto vamos nos
aprofundar neste efeito no tópico da imagem.
Figura 2. Páginas seis e sete do livro de Lancelote e o Lampião. Vilela (2006)
Definido o universo macroscópico do livro, vamos focar nossa análise em um universo
microscópio na página seis e sete do livro. Por fins didáticos, foi escolhida uma ilustração do
livro para análise. Uma vez que, a relação entre a ilustração e o projeto gráfico é continua ao
longo de todo o livro, qualquer ilustração do livro poderia ter sido escolhida. Embora o artigo
não tenha a pretensão de formular uma análise semiótica do texto é interessante ressaltar
algumas relações importantes. O texto que acompanha a imagem é uma poesia, encaixa-
se na modalidade de descrição qualitativa da matriz verbal de Santaella. “As palavras aí não
representam, elas são aquilo que querem dizer, são aquilo de que falam”(Santaella, 2009B,
p.298). No primeiro parágrafo há uma qualidade metafórica, “Viviane a grande flor”. A metáfora,
para Aristóteles, consiste em transportar para uma coisa o nome de outra. Os três parágrafos
seguintes estão nos domínios da qualidade imagética, que se refere à imagem mental que
temos a partir dos estímulos do texto. Estes estímulos que vemos no texto tornam a relação
de texto e imagem muito mais interessante, uma vez que as imagens mentais se misturam à
imagem da ilustração criando uma fluída sensação de imersão. Temos nas imagens mentais
invocadas pelo texto a alma do cavaleiro da ilustração, sua história, sua aura. No ponto que as
imagens mentais mesclam-se a imagem da ilustração é como se o personagem da ilustração
ganhasse vida através do estímulo do texto sobre um interpretante.
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Figura 3. Zoom no texto de Fernando Vilela (2006).
No texto da página sete não é dito que o herói anunciado pelo texto é o personagem
Lancelote da lenda do rei Arthur, mas, o leitor que seguir a sequência desde as primeiras
páginas terá lido esta informação anteriormente, ou mesmo na capa do livro. Abaixo estão as
duas primeiras páginas duplas, e o padrão de páginas duplas acontece todo o livro. O livro
fechado tem um tamanho de 35x24 centímetros, e aberto o livro chega a ter 70 centímetros.
Figura 4. Páginas dois e três. Vilela (2006)
Figura 5. Páginas quatro e cinco. Vilela (2006)
Aprofundando-se nas camadas da relação texto e imagem, abordaremos agora
classificações de dois autores. O primeiro deles é um autor teórico e prático da ilustração
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americana, Andrew Loomis. Conhecido por sua série de livros sobre ilustração Loomis seguiu
os passos do famoso ilustrador Norman Rockwell. Em seu livro Creative Illustration (1947)
Loomis define três gêneros de ilustração:
O primeiro tipo é a ilustração que conta uma história por completo, sem um título, texto, ou qualquer mensagem escrita para ajuda. Este tipo é encontrado em capas, cartazes, ou calendários. O segundo tipo é aquele que ilustra o título, ou, o que visualiza e leva adiante uma linha, um slogan, ou alguma mensagem escrita usada em junção com a imagem. Esta função emprega força à mensagem. Neste grupo são comuns temas que levam um curto tempo para serem lidos, como cartazes, displays e anúncios de revistas. A história e a imagem funcionam juntas com unidade.O terceiro tipo é aquele que a história da imagem é incompleta, é obviamente intencional, aguçando a curiosidade, intrigando o leitor a achar a resposta no texto. O terceiro tipo é a ilustração que poderia dizer “vem aqui” ou “advinha o que”. Muitos anúncios são construídos neste plano, para assegurar a compreensão do leitor. Caso a história fosse completamente contada o propósito seria um fracasso, e o texto poderia facilmente passar despercebido. (Loomis, 1947, p.178)
Estas classificações poderiam ser cruzadas com os conceitos de Redundância,
informatividade e complementaridade, abordados por Santaella, que se alicerça de
Kalverkämper:
As formas de relação imagem-texto aqui comentadas caracterizam os dois pólos extremos de um contínuo que vai da redundância à informatividade. Kalverkamper (1993: 207) diferencia, nessa escala, três casos: (1) a imagem é inferior ao texto e simplesmente o complementa, sendo, portanto, redundante. Ilustrações em livros preenchem ocasionalmente essa função, quando, por exemplo, existe o mesmo livro em uma outra edição sem ilustrações. (2) A imagem é superior ao texto e, portanto, domina, já que ela é mais informativa do que ele. Exemplificações enciclopédicas são frequentemente deste tipo: sem a imagem, uma concepção do objeto é muito difícil de ser obtida. (3) Imagem e texto têm a mesma importância. A imagem é, nesse caso, integrada ao texto. A relação texto-imagem se encontra aqui entre redundância e informatividade. (Santaella, 1997, p.54)
A classificação abordada por Santaella parece ser melhor reconhecível pelas
nominações, já as definições de Loomis são mais familiares à ilustração. No fundo as duas
classificações estão apontando para as mesmas relações entre palavra e imagem e podemos
utilizar ambas como guia de análise. “O caso da equivalência entre texto e imagem é descrito
como complementaridade” (Santaella, 1997, p.54). É o que acontece na ilustração de Fernando
Vilela, texto e imagem estão interagindo juntas como uma unidade. Assim durante a leitura é
como se texto e imagem se completassem como amalgama na mente do interpretante.
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o diagramaPodemos iniciar este tópico com a definição da designer e escritora Ellen Lupton:
Um diagrama é a representação gráfica de uma estrutura, situação ou processo. Os diagramas podem descrever a anatomia de uma criatura, a hierarquia de uma corporação ou um fluxo de idéias. Eles nos permitem enxergar relações que não viriam à tona numa lista convencional de números, nem numa descrição verbal” (Lupton, 2008, p.199).
A citação de Lupton define bem o que é um diagrama. Casualmente o termo diagramação
remete ao designer gráfico e aos menos entendidos pode parecer que o designer gráfico é o
profissional que organiza o texto na página, porém o designer da linguagem vai muito além.
Lupton diz que em um diagrama “Marcas gráficas e relações visuais adquirem significados
específicos, codificados no diagrama para representar aumentos numéricos, tamanho relativo,
mudança temporal, ligações estruturais e outras circunstâncias” (Lupton, 2008, p.199). Criar
marcas gráficas e relações visuais são os recursos utilizados pelo designer da linguagem para
expressar idéias, organização ou desorganização, sinestesias e sentimentos.
Neste tópico a preocupação da análise é identificar as relações existentes entre texto
e imagem e dos elementos gráficos dentro de um diagrama, é perceber na configuração dos
espaços, a hierarquia, a função e das forças perceptivas, no ritmo, e nas marcas gráficas
o valor agregado ao signo. Enfim compreender a configuração das linguagens em prol de
identificar o trabalho do designer das linguagens. Vamos então, retomar a relação de texto
e imagem por outro ponto de vista. A relação entre texto e imagem no espaço da página foi
abordada por Lúcia Santaella e chamada de relação no plano de expressão:
Ao contrário das relações entre texto e imagem até aqui discutidas, que se referem, em primeiro lugar, ao plano de conteúdo, Kibédi-Varga(1989: 39-42) sugere uma tipologia das relações entre a palavra e a imagem que se relaciona mais com a forma de expressão visual comum à linguagem (na forma escrita) e à imagem. Seus três tipos são: (1) Coexistência: palavra e escritura aparecerem numa moldura comum; a palavra está inscrita na imagem. (2) Interferência: a palavra escrita e a imagem estão separadas uma da outra espacialmente, mas aparecem na mesma página (por exemplo, em ilustrações de textos como comentários textuais). (3) Co-referência: palavra e imagem aparecem na mesma página, mas se referem ao mundo uma independente da outra. Como uma outra possibilidade da relação espacial entre texto e imagem, devemos acrescentar a esta tipologia o caso da auto-referencialidade, como ela é conhecida na poesia visual. Como exemplo, temos o poema de Robert Herrick sobre o altar, que é impresso tipograficamente em uma figura mostrando o esboço de um altar. (Santaella, 1997, p.56)
No caso da ilustração de Fernando Vilela, texto e imagem estão em uma relação de
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coexistência no plano de expressão, ou seja, o texto está sobrepondo o fundo da imagem,
interferindo no espaço pictórico. A relação sugere que o texto está saltando ou inserido no
universo representado na ilustração. A relação de texto e imagem transmuta-se em uma relação
entre imagem e imagem, falo da relação da ilustração com os blocos de texto. Entramos nos
domínios das formas representativas.
Há um outro conceito que poderia corroborar nessa relação de texto e imagem no
plano de expressão, me refiro ao texto lido como imagem que foi abordado por Will Eisner.
Embora o autor fale sobre a narrativa nos quadrinhos o comentário é pertinente a ilustração:
“O letreiramento, tratado “graficamente” e a serviço da história, funciona como extensão da
imagem. Neste contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de
som” (Eisner, 1999, p.10). Ainda nesta questão de empregar sonoridade a palavra impressa,
Richard Hollis fornece algumas informações importantes:
As palavras e imagens normalmente são utilizadas em conjunto; pode ser que um dos dois – texto ou imagem – predomine, ou que o significado de cada um seja determinado pelo outro. Alguns dos exemplos mais sofisticados de design gráfico recorrem à precisão das palavras para dar sentido exato a imagens ambíguas.A palavra, quando impressa, na forma de registro da fala, perde uma extensa variedade de expressões e inflexões. Os designers gráficos contemporâneos (especialmente seus precursores, os futuristas) têm tentado romper essa limitação. Ampliando ou reduzindo os tamanhos, os pesos e a posição das letras, seu tipografismo consegue dar voz ao texto. Instintivamente, existe um anseio não só de transmitir a mensagem, mas também de dar a ela uma expressão única. (Hollis, 2005,p.1)
Na intenção de transpor para um suporte impresso a sonoridade, na diagramação
da página do livro de Fernando Vilela há alternância da altura e inclinação na disposição das
caixas de texto, que sugerem instabilidade, dão ritmo sonoro ao texto e sugerem passagem
de tempo, impregnando o texto impresso com a mímica da linguagem falada. Esta mímica da
visualidade evoca na imaginação do interpretante que sente a sinestesia dos sons e caracterize-
se na modalidade representação imitativa. Neste caso a representação imitativa evoca não
apenas os tons da sonoridade no texto, mas, também se refere à visualidade do movimento
do galope do cavalo que o herói está montado. A sinestesia do galope do cavalo, embora,
sugerido em outros elementos na ilustração da pagina sete – que serão abordados mais
especificamente no próximo tópico – pode ser melhor compreendida quando o leitor estiver
seguindo a sequência do livro, uma vez que só podemos visualizar um pequeno pedaço do
pescoço do cavalo no canto inferior direito da página. Assim podemos ver que é um efeito que
depende do encadeamento das imagens. O leitor aqui poderá voltar e rever as figuras 5 e 6.
Quando falamos de perceber o galope do cavalo na ilustração através dos indícios
rítmicos sugeridos pelos elementos visuais, estamos falando das formas representativas, na
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sub-modalidade cifra de relações existenciais onde “Fragmentos, recortes visuais de situações
vividas são deslocados de seu contexto habitual para fazerem parte de uma nova sintaxe
engendrada” (Santaella, 2009B, p.255). Assim podemos perceber que antes que estes
fragmentos de memória visuais sejam ativados eles devem existir como referência, vivência
armazenada e repertório na mente do interpretante para que ele relacione o galope do cavalo
ao estímulo recebido pelo ritmo visual da ilustração. Assim, vemos que a ilustração comumente
dependente da experiência humana armazenada para ser interpretada.
O fato de perceber o movimento em si através da configuração das formas e objetos
de uma ilustração está no domínio das formas não-representativas, assim percebemos que
mesmo que o leitor esteja ciente do movimento do cavalo, envolvido pelo encadeamento das
páginas, e já tenha percebido a relação dos elementos gráficos com este movimento, esta
percepção só é acessada no momento que a distinção entre o real e a cópia desaparece.
Esta característica existe na relação entre o movimento sugerido das formas abstratas e o
momento de presentificação da imagem na imaginação do leitor. Santaella caracteriza este
tipo de acontecimento entre as formas não-representativas, a qualidade como possibilidade.
A tipografia exerce primeiramente uma questão de leitura, é serifada e preenche sua
forma no branco do papel, sobre um fundo preto. É relevante colocar a citação de Donis A.
Dondis sobre a relação de cores que aparece nas caixas de texto do livro de Vilela, “Elementos
claros sobre fundo escuro parecem expandir-se, ao passo que elementos escuros sobre fundo
claro parecem contrair-se (Dondis, 2007, p.49). Este tipo de relação presente na cor, está nas
formas não representativas, e é caracterizada por Santaella como a qualidade materializada:
É uma simples presença, presentidade ou qualidade de presença, anterior a qualquer representação ou referência, anterior até mesmo a qualquer relação de similaridade, pois a pura qualidade do vermelho, ou do amarelo, ou qualquer que seja a cor, não se assemelha a nada em particular ou definitivo, pelo simples fato de que pode se assemelhar a todas as coisas vermelhas ou amarelas do mundo (Santaella, 2009B, p.214).
Neste tópico vimos o quão a relação de coexistência de texto e imagem contribuem na
construção e na leitura do signo, mesclando o ritmo sonoro do texto e da imagem em uma
sensação única, imantadas uma à outra elas tornam-se parte de um mesmo universo dentro
da mente do leitor. Antes de nos precipitarmos em maiores conclusões vamos analisar melhor
a ilustração.
a imagemAs hibridizações de linguagens que caracterizam os designers da linguagem, não se
restringem apenas ao texto, como vimos no tópico sobre a mensagem. O estilo visual de
Fernando Vilela como ilustrador provém de seu trabalho com matrizes móveis e independentes,
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feitas de borracha plástica, que funcionam como carimbos. Seu estilo tem sido característico em
diversos livros infantis ilustrados pelo autor, como Eros e Psiquê e Desafios de Cordel. No final
do livro Lancelote e o Lampião há uma descrição sobre as referências de Vilela para compor as
ilustrações de Lancelote, que envolvem desde iluminuras medievais, pinturas renascentistas,
além de armas e armaduras de época. Para compor o personagem Lampião as referências
foram a xilogravura popular, e as fotografias da época do cangaceiro, além de cenas de filmes
brasileiros como Deus e o diabo na terra do sol (1963) de Glauber Rocha. Em relação às cores
da ilustração, há duas cores especiais que separam, caracterizam, identificam e comunicam
com cada uma das personagens. A cor prata para armadura e utensílios metálicos de Lancelote
e a cor cobre para os anéis, espingarda e apetrechos de Lampião. Estas cores contrastam
com o fundo escuro, comuns à quase todas as páginas do livro.
É interessante começarmos a análise da ilustração pela marca qualitativa do gesto que
a ilustração carrega. Esta marca diz respeito aos vestígios derivados do processo de produção
desta imagem. Percebemos, que a ilustração possui elementos que foram carimbados diversas
vezes na página deixando seus vestígios. Entretanto por ser um produto da era industrial não
chegou a nós como uma gravura tradicional, a ilustração foi muito provavelmente escaneada
e tratada no computador. Este processo é mais evidente quando nos deparamos com as
cores da ilustração, temos o preto impresso, o branco da folha de papel preservado, e temos
uma cor especial metálica. Os elementos de cor metálica provavelmente não estavam na
mesma página dos outros elementos quando a gravura foi artesanalmente impressa, afinal a
cor metálica foi uma característica do processo de impressão mecânico e a separação desta
cor muito provavelmente foi feita no computador. Vemos por ai como o processo de trabalho
do ilustrador hibridiza-se com ferramentas manuais e digitais. Quanto às cores especiais é
interessante dizer que na área de agradecimentos do livro Fernando Vilela agradece a um
colaborador – Sérgio Sister – pela pesquisa sobre cores especiais, o que nos mostra uma
visão do processo de criação e de resolução de um projeto gráfico de livro.
A personagem representada na ilustração, Lancelote, carrega em si a figura como
esteriótipo. Esta modalidade é definida por Santaella como “uma imagem tópica extraída do
conjunto de seus estereótipos mentais” (Santaella , 2009B, p.230). Este estereótipo foi retirado
da imaginação do autor “Não é de uma mera impressão visual que o desenhista parte, mas de
uma idéia ou conceito visualmente representável” (Santaella, 2009B, p.230). O conceito, ou,
idéia que o artista expressou foi a sua visão da série de mitos recorrentes dos guerreiros da
Távola redonda. A figura não tem a pretensão de representar o mundo real externo, possuindo
uma lógica própria de representação criada pelo ilustrador para o universo desta ilustração.
Quando falo de figura me refiro às formas figurativas da ilustração, o personagem, o cavalo,
a lança, o elmo, a armadura de placas e a capa, repletas de grafismos medievais. Todos os
objetos e características citadas dentro da linguagem de expressão e representação do artista
formam o estereótipo. O estereótipo comunica através de símbolos gráficos que carrega em
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si a síntese de informações e leis estabelecidas por convenções culturais, evocando assim um
estereótipo reconhecível pelo interpretante.
A figura como estereótipo é uma sub-modalidade das formas figurativas, sendo que,
uma de suas características é que não existe figura sem um fundo. Pensando nisso, a primeira
relação que encontramos entre a figura e o fundo é a relação de coexistência do texto e
imagem evidenciada no outro tópico. O caso dessa coexistência pode ser explicada pela
citação de Andrew Loomis:
O espaço em branco fala mais na página do que o tom. Isto permite que o desenho da área em branco receba outros desenhos em uma unidade pictórica. Isto isola o material importante para que possa ser lido com facilidade (Loomis, 1947, p.202)
Na ilustração o espaço em branco – mencionado por Loomis – corresponde ao fundo
preto, que formado de uma cor chapada, libera espaço para o texto e também puxa o foco de
atenção para a figura, uma vez que o olhar é guiado pelos focos de maior complexidade de
informação e pelos contrastes. Enquanto relação figura e fundo, o fundo funciona dentro das
leis naturais das qualidades, ou seja, através das leis que configuram a percepção humana,
o fundo tem o papel de facilitar a organização dos elementos envolvidos e criar uma unidade
entre eles. A cor do fundo é uma qualidade materializada, uma vez que não se assemelha a
nada, ou, assemelha-se à todas as coisas de cor preta do universo. Esta escolha em criar
relações entre a figura, o fundo e o texto – assim como já foi comentado – está no âmbito do
diagrama, nota-se ai que o ilustrador, neste caso, tem papel fundamental na concepção do
diagrama.
Ainda falando das leis naturais das qualidades, podemos incluir nesta relação o ponto
focal e a posição do observador. Andrew Loomis nos adverte que “A posição do observador
irá determinar muito do efeito dramático” (Loomis, 1947, p.179). Na página anterior do livro
temos o herói visto em um plano geral (figura 5 e 6), na página que estamos analisando
(Figura 3), o autor por conveniência dramática do encadeamento da narrativa aproxima a visão
do observador para próximo do rosto do herói, o que faz com que o contato emocional da
personagem para com o leitor aumente. Este objetivo de dramatização buscada pelo ilustrador
pode ser caracterizada como o espírito por trás da imagem. “A imaginação é contagiosa, o
humor é contagioso e o espírito por de trás da imagem é noventa por cento da imagem. Você
deve estar alerta para o drama todo o tempo” (Loomis, 1947, p.200). Corroborando para
as palavras de Loomis, temos a importância do ponto focal para a narrativa, que depende
fundamentalmente da composição da cena, como vemos na fala de Rui de Oliveira:
A finalidade da composição, além de obter o equilíbrio plástico da página, é favorecer a leitura e a apreensão da narrativa. Portanto, o ato de compor está vinculado diretamente ao ato de contar histórias visuais (Oliveira, 2008, p.60)
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A composição depende não apenas dos elementos que inserimos na ilustração, mas,
sobre tudo da relação em que os elementos exercem uns sobre os outros, ou seja, uma
linha que guia a estrutura destes elementos direcionando o olhar e hierarquizando as formas.
Acrescentando a citação de Rui de Oliveira, esta é uma estrutura fundamental na construção
da narrativa:
Somente com um olhar interessado percebemos que a linha estrutura a ilustração, por exemplo, o direcionamento do olhar – um recurso decisivo para se contar uma história, além de prender a atenção do leitor. Esse caminho visual conduz à leitura gráfica por meio de uma hierarquia de elementos descritivos e narrativos conscientemente organizados pelo artista (Oliveira, 2008, p.124).
O ponto focal da ilustração de Vilela está localizado no elmo da personagem, uma vez
que, por sua qualidade figurativa, o elmo exerce uma relação importante de semelhança e de
identificação com o interpretante que toma o olhar do personagem como seu, e como ponto
de equilíbrio dentro da lógica da ilustração. Virtualmente criamos uma linha do horizonte na
altura do olhar do personagem para guiar nossa percepção daquele universo. O nosso olhar
continua sendo guiado por outras forças perceptivas, como o movimento das placas metálicas
da armadura se desprendendo juntamente com os blocos de texto. Na lança encontramos
uma força ascendente que nos guia para fora da página, poética pura, lirismo mimético em
relação à ascensão na invocação do herói pelo texto. Outro efeito que caracteriza o ponto
focal no elmo é que esta é a área com o maior peso visual da ilustração, o branco, neste caso
chama atenção por sua luminosidade em meio ao fundo escuro.
Figura 6. Vilela (2006)
O personagem, seu elmo, a lança e corpo brilham na cor branca que se expandem
sobre o preto que predomina na página e só é quebrado pela cores metálicas. Todas as
formas são preenchidas por cores chapadas e não há profundidade sugerida nas formas
separadamente. Andrew Loomis refere-se a esta organização do espaço: “O senso do
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ilustrador de organização do espaço é a primeira indicação de criatividade” (Loomis, 1947,
p.30). Esta relação da imagem quase sem profundidade de campo, configura um caso de
codificação qualitativa do espaço pictórico, descrita por Santaella:
Quanto mais a superfície do quadro não permite “ver através”, mas se apresenta a si mesma como superfície à ser preenchida, quanto mais as formas, destacando-se sobre um fundo neutro, dispõe-se umas ao lado das outras ou em superposição, em um contexto imaterial, mas sem lacunas, no qual a alternância rítmica de cores, ou alternâncias rítmica de claro e escuro criam uma unidade intrínseca apenas colorística ou iluminística, mais a construção figurativa tende para uma codificação meramente qualitativa (Santaella, 2009B, p.243).
As formas metálicas, e em alguns casos as formas em preto, são carimbadas diversas
vezes em cima da figura, sobrepondo elementos e agregando uma idéia de profundidade e
movimento no espaço, que se caracteriza como uma lei natural das qualidades, contribuindo
para configuração do espaço e organização dos elementos envolvidos através das leis da
percepção humana.
O movimento das placas de metal da armadura e da capa de Lancelote, funcionam
como uma qualidade como possibilidade, uma vez que se realiza apenas no instante em que
nos perdemos na diferenciação entre o mundo real e o universo da ilustração. O movimento
também é uma representação imitativa, uma vez que imita ritmo e a reação do movimento
do galope do cavalo. Cria também, a sinestesia de placas de metal batendo umas sobre
as outras, neste caso uma cifra de relações existenciais, uma vez que o interpretante só
terá essa sensação sinestésica caso já tenha previamente registrado um determinado tipo
de experiência. Além desta sinestesia de movimento, temos neste caso, da cifra de relação
existências, uma sugestão onírica em que as placas estão se descolando do corpo do herói
em um movimento constante, como se houvessem placas infinitas que se deslocassem para
dar brilho ao herói, para envolver em uma aura mística, sendo que, estas colocações atingem
maior ou menor grau de percepção do interpretante dependendo talvez, de aspectos pessoais
e culturais.
A singularização das convenções, o estilo, é a ultima modalidade das formas figurativas
que vamos abordar aqui, esta modalidade diz respeito ao estilo do artista. A série de
convenções pictóricas repetidas no trabalho do artista que, não são de forma alguma uma
característica do estilo de época, mas sim, a marca do artista. No caso de Fernando Vilela
seu estilo, sua marca é primeiramente relacionado ao modo de produção artesanal aliado à
produção industrial que o permite uma configuração única em seu trabalho. Este híbrido entre
tradicional e contemporâneo são as primeiras impressões em seu estilo, que continuam sendo
construídas pela sua configuração do espaço pictórico, e suas formas repletas de movimento,
sinestesias e evocativas de um universo de sonhos. Todas estas características de articulação
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da linguagem, híbrida, pessoais e inovadoras vão de encontro ao pensamento dos designers
da Linguagem.
Conclusão É evidente no trabalho de Fernando Vilela a relação do hibridismo de linguagens entre o
projeto gráfico, ilustração e texto. As imagens mentais evocadas pelo texto unem se a ilustração
compondo uma imersão imaginativa ao leitor. A linguagem do texto também caracteriza os
personagens confirmando sua procedência e adicionando referência cultural. No diagrama,
texto e imagem dividindo o espaço na página aproximam a linguagem verbal da linguagem
visual. O movimento do texto cria ritmo de leitura criando marcas gráficas que impregnam a
página de sonoridade. O estilo e o estereótipo da ilustração evocam imagens de um repertório
cultural ocidental que dão forma aos estímulos textuais. Assim, vemos o como as linguagens
são por si só híbridas. Vimos também que a escolha das cores especiais no projeto gráfico
adicionou características de linguagem que valorizaram, distinguiram e enriqueceram os
personagens. Assim, vemos que o designer gráfico não é apenas o profissional que cria uma
hierarquia de leitura, mas que criar marcas gráficas que agregam significados à mensagem, são
assim designers da linguagem e inseridos na realidade contemporânea, o ilustrador, também
participa da produção dos designer da linguagem, um pensamento propulsor da inovação.
Figura 7. Páginas vinte e vinte um. Vilela (2006)
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Figura 8. Páginas trinta e trinta e um. Vilela (2006)
Figura 9. Páginas trinta e oito e trinta e nove. Vilela (2006)
Figura 10. Páginas quarenta e dois e quarenta e três. Vilela (2006)
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