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T.S.Eliot - Notas para uma definição de cultura-1

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T.S.ELIOTT

NOTAS PARA UMA DEFINIO DE CULTURA

Editora Perspectiva 1988

T.S.Eliott Notas para uma definio de cultura Prefcio de Nelson Ascher Editora Perspectiva Ttulo do original em ingls: Notes Towards the Definition of Culture Copyright Faber and Faber Limited Equipe de realizao Traduo: Geraldo Gerson de Souza; Reviso: Plnio Martins Filho; Produo: Plnio Martins Filho e Cristina Ayumi Futida

Coleo Debates Dirigida por J. Guinsburg Debates 215 Direitos de lngua portuguesa reservados EDITORA PERSPECTIVA S.A Av. Brigadeiro Lus Antnio, 3025 01401 So Paulo SP Brasil Telefones: 885-8388/885-6878 1988

A PHILIP MAIRET Com gratido e admirao

SUMRIO

O Conservadorismo de Eliot ....................................................................... 9 Prefcio Edio de 1962 ........................................................................... 19 Prefcio Primeira Edio .......................................................................... 21 Introduo ................................................................................................... 23 1. Os Trs Sentidos de Cultura ................................................................ 33 2. A Classe e as Elites ................................................................................. 49 3. Unidade e Diversidade: a Regio ............................................................ 67 4. Unidade e Diversidade: Seita e Culto ..................................................... 87 5. Uma Nota Sobre Cultura e Poltica .........................................................105 6. Notas sobre Educao e Cultura: e Concluso ........................................119 APNDICE: A Unidade da Cultura Europia ............................................137

O CONSERVADORISMO DE ELIOT

Depois das quase infinitas reavaliaes a que a sujeita cada nova vertente crtica, a poesia de T. S. Eliot parece ter seu lugar assegurado entre os pontos culminantes da imaginao criativa deste sculo. Embora as opinies se dividam a respeito de quais sejam seus melhores poemas os radicais da juventude ou os elaboradamente meditativos da meia idade , certo que a revoluo representada por Prufrock (1917), Poems (1920), The Waste Land (1922) e The Hollow Men (1925) marcou um indiscutvel ponto de inflexo na curva da poesia de lngua inglesa e, sendo esta particularmente influente, abriu tambm vrios caminhos inovadores para a arte potica ocidental. Not with a bang but a whimper, no com um estrondo, mas com uma espcie de lamria silenciosa, Eliot tornou corriqueiras comparaes estranhas 9 como a de um fim de tarde com um paciente anestesiado sobre a mesa (de operao), habituou ouvidos sequiosos de cadncias melodiosas aos ritmos speros da fala, frustrou as expectativas dos que viam na poesia um divertimento fcil, minando-a com citaes eruditas e requerendo, devido a sua sintaxe elptica, uma ateno exaustiva. Se The Waste Land sua obra mais famosa dessa fase, The Hollow Men o poema que expressa de modo mais conciso, discretamente alusivo e desesperado, a viso de mundo do poeta jovem. Journey of the Magi (1927) j reverbera um pensamento diferente, um pensamento que, buscando esperanas (segundo a declarao famosa) na igreja anglicana, na monarquia britnica e no classicismo artstico, atingiria sua mais ambiciosa materializao potica em Four Quartets (concludos em 1942), e conquistaria para seu autor as mais variadas antipatias. No que Eliot no estivesse acostumado a ataques. Seu programa esttico, to anticonvencional quanto o dos dadastas e surrealistas (mas mais realizado que o deles), rendeu-lhe a desaprovao e desconfiana dos meios literrios tradicionalistas. Sucede que, ao tomar essas posies que manteria at o fim

da vida, Eliot rompeu certo pacto tcito de acordo com o qual inconformismo artstico e progressismo social e poltico deveriam desenvolver-se paralelamente, endossando, de modo involuntrio, aqueles que, como o Lukcs stalinista, gostariam de ver simplisticamente correlacionados modernismo literrio e poltica reacionria. Com isso ele criou um problema, posteriormente agravado pela adeso de seu amigo Ezra Pound ao fascismo italiano, que est longe de ter sido adequadamente discutido. Sua prosa crtica oferece problemas semelhantes, demandando uma discusso prpria. Tais problemas no esto contidos tanto em sua crtica literria cuja contribuio para o desvelamento do fenmeno potico foi capital e cuja influncia continua forte o bastante para levar um ensasta como George 10 Steiner a afirmar que Eliot teria sido provavelmente o ltimo dos grandes crticos a no lanar mo das descobertas da lingstica moderna quanto em seus escritos mais genericamente voltados para a crtica social. Estes compem uma parte apenas minoritria do conjunto de sua prosa, sendo que seu texto central, onde suas preocupaes sociais e, at certo ponto, polticas aparecem mais claramente delineadas, precisamente Notes Towards the Definition of Culture, publicado originalmente em 1948, ano em que seu autor recebeu o Prmio Nobel de Literatura. No se trata, seguramente, do melhor livro do poeta, nem tampouco pode ser considerado uma obra-prima ou, ao menos, um apanhado abrangente e elucidativo do iderio conservador. Ainda assim, um volume imprescindvel. H vrias razes para tanto. Em primeiro lugar, trata-se de uma tentativa de definio do conceito de cultura realizada por algum que contribuiu de fato e positivamente para a cultura. Em segundo, porque procura ensaiar as bases tericas mais amplas de toda uma obra potica, ensastica, dramtica cuja complexidade segue aberta e convidativa a uma srie infindvel de exegeses. Finalmente, porque vrios tpicos no necessariamente aqueles que o autor julgava os mais relevantes desenvolvidos no livro so defensveis e merecem ser levados em considerao. Convm, contudo, situar T. S. Eliot no mbito do pensamento poltico e social contemporneo. A um tal exerccio, de resultados forosamente provisrios, subjazem riscos inevitveis, entre os quais o mais grave , sem dvida, a tentao de reduzir a poesia mera formulao de um rol pr-determinado de

idias. Essa tentao costuma ser agravada pelo hbito que certas vertentes interpretativas sociologicamente orientadas possuem de descobrir, implcitas em cada poema, aquelas mesmas idias que j haviam sido, de forma mais ou menos feliz, explicitadas na prosa, sobretudo a de carter mais efmero, do poeta. No caso especfico do escritor anglo11 americano, tal atitude implicaria uma reduo simplificadora de sua poesia ao seu posicionamento ideolgico (deduzido, freqentemente, das formulaes empobrecidas que Eliot lhe dava em declaraes intempestivas), ao invs da leitura mais nuanada que a prpria riqueza da poesia permitiria realizar dos referidos posicionamentos. Ler uma das poesias mais densas do sculo como se fosse a manifestao ataviada de uma mentalidade autodefinida como conservadora em poltica, classicista em literatura e anglo-catlica em religio, muito mais fcil do que interpretar, na arquitetura e nas filigranas dos Four Quartets, o sentido e a verdade de cada uma dessas tomadas de posio. Mas nem sempre a melhor crtica segue os atalhos do menor esforo. A evoluo do pensamento eliotiano percorreu caminhos e descaminhos inusitados. Descendente de uma famlia unitarista da classe mdia alta da Nova Inglaterra radicada no Estado sulista de Missouri, Eliot desdenhou desde cedo a seita da qual seu av paterno havia sido pastor (uma seita que, sob um ponto de vista ortodoxo, pode ser considerada hertica por rejeitar o dogma da encarnao de Cristo) e, ainda criana, chegou a simpatizar com o catolicismo romano. Nos seus anos de ps-graduando em filosofia, estudou o snscrito e interessou-se pelo budismo, fato que transparece em The Waste Land. Por outro lado, j durante sua estada na Frana, no perodo imediatamente anterior Primeira Guerra, manifestara interesse pelas idias de Charles Maurras, um anti-Dreyfusard, anti-semita e, posteriormente, pr-fascista. Contudo, a grande virada que, no final dos anos 20, marcaria a direo definitiva de seu pensamento e de sua vida foi, para todos os efeitos, menos radical, consistindo na adoo da cidadania britnica e na converso ao anglicanismo. Cabe observar que essas foram atitudes conscientes e longamente pensadas de um norte-americano voluntariamente exilado na Europa e que elas se originaram no s nas angstias individuais do poeta, como tambm em uma longa reflexo acerca dos destinos da cultura ocidental. 12

Segundo o crtico Northrop Frye, tal reflexo teria levado Eliot a uma teoria do declnio dessa cultura: De acordo com esta, o pice da civilizao foi alcanado na Idade Mdia, quando a sociedade, a religio e as artes expressavam um conjunto comum de critrios e valores. Isso no quer dizer que as condies de vida eram melhores ento um item cuja importncia deveria ser minimizada mas que a sntese cultural da Idade Mdia simboliza um ideal de comunidade europia. Toda a histria posterior representa uma degenerescncia desse ideal. O cristianismo se decompe em naes, a Igreja em heresias e seitas, o conhecimento em especializaes, e o fim do processo o que o escritor est pesarosamente observando em seu prprio tempo a desintegrao da cristandade, a deteriorao de uma crena comum e de uma cultura comum.Essa viso, embora sustentada to esquerda quanto estava William Morris, mais congenial a apologistas catlicos tais como Chesterton, e a crticos literrios como Ezra Pound, cujo conceito de usura resume boa parte de sua demonologia. A crtica social de Eliot, e muito de sua crtica literria, enquadra-se nesse esquema. Ele, uniformemente, ope-se a teorias do progresso que recorrem autoridade da evoluo, e despreza escritores que, como H. G. Wells, tentam popularizar um ponto de vista progressista. A desintegrao da Europa comeou pouco depois da poca de Dante; uma reduo de todos os aspectos da cultura tem atormentado a Inglaterra desde a rainha Anne; o sculo XIX foi uma era de progressiva degradao; nos ltimos cinqenta anos as provas do declnio so visveis em cada setor da atividade humana. Eliot adota tambm o recurso retrico, presente em Newman e outros, de afirmar que H duas e apenas duas hipteses sustentveis a respeito da vida: a catlica e a materialista. O que quer que no seja uma das duas, incluindo o protestantismo, os princpios dos whigs, o liberalismo e o humanismo, est no meio, e forma conseqentemente uma srie de nauseantes hesitaes de transio, cada uma pior que a anterior (Northrop Frye, T. S. Eliot An Introduction).

E a definio que o poeta Stephen Spender d ao reacionarismo de Eliot no destoa da de Frye:Eliot era, no sentido mais rigoroso do termo, um reacionrio. Ele reagiu contra o no-conformismo, o liberalismo, as idias de progresso e de perfectibilidade do homem. Melhor

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considerar o homem como vil e cado do que deix-lo ouvir a voz de sua prpria conscincia e julgar-se segundo seus prprios critrios humanos. Ele era um reacionrio tambm no promover sua idia da Europa da Idade Mdia, na qual havia unidade de crena nos valores compartilhados por toda a sociedade, em detrimento do ocidente moderno, com suas metas e valores fragmentados. Contudo, apesar de ter pontos de vista morais e religiosos que erram medievalistas, ele no tinha nostalgia por esse passado (Stephen Spender, Eliot).

Em face das evidncias desenterradas pela historiografia, seria difcil, mesmo para o mais empedernido conservador (que tivesse, entenda-se bem, a integridade e a inteligncia de Eliot), sustentar hoje uma imagem to idlica da Idade Mdia europia. Contudo, apesar do prprio Eliot, sua crena acabou adquirindo, em seus poetisas e ensaios, uma funo heurstica, tomando-se uma hiptese de trabalho que, por contraste, permitia-lhe observar seu prprio mundo. A produtividade desse mtodo atinge o mximo nos melhores poemas, diminuindo medida que os temas de sua prosa se tomam mais e mais genricos. O decrscimo da produtividade no , no entanto, contnuo, pois varia de acordo com o meio de expresso em que o mtodo empregado, e segundo a capacidade do autor em cada momento durante a elaborao de seus trabalhos. Assim, sua viso da histria enquanto declnio no o impede de observar, num ensaio de juventude, Tradition and the Individual Talent (1919), que cada nova obra relevante altera a configurao de toda uma tradio, ou seja, que no s o passado determina o presente, mas que o inverso tambm ocorre. O papel da tradio na sua poesia e crtica literria assumido, em seus escritos sociais, pela histria, com a diferena de que esta aparece como uma construo na qual o autor acredita. Ao contrrio de tantos que projetaram suas utopias redentoras no futuro, Eliot imaginou a sua no passado, descartando-se, de passagem, de suas eventuais funes 14 consoladoras e aceitando a carga de carregar uma imagem negra do presente. Foi isso que lhe permitiu elaborar uma viso devastadora de seu mundo, que conseguiu formular com maior ou menor sucesso em diferentes partes de sua obra. A despeito de inmeras descontinuidades, essa viso aparece tanto em The Waste Land quanto em Notes Towards the Definition of Culture. Pondo de

lado o conjunto de valores que lhe serviram de instrumento para o diagnstico do paciente, o quadro que surge suficientemente aterrador para induzir reflexo, e se peca por algo conforme notou George Steiner pela omisso. Afinal, dificilmente se pode aceitar que um livro voltado para a idia de cultura e sua decadncia deixe de fazer qualquer referncia a tudo o que, durante a Segunda Guerra, ocorreu com as populaes europias. Talvez seja esse seu principal ponto cego. Para muitos, outra de suas falhas graves ser o completo desprezo que o autor manifesta pelas concepes que mostram a cultura e a civilizao como entidades profundamente clivadas por conflitos internos, derivados de interesses antagnicos. Conceda-se, entretanto, a uma anlise conservadora o mrito de procurar nessas entidades algum tipo de unidade ou de continuidade, procura habitualmente relegada ao esquecimento pelos que vem no conflito o nico mvel da histria. O livro passvel de crtica mais dura no que diz respeito aos seus desnveis, seus altos e baixos. No que tem de melhor, ele consegue oferecer um conceito de cultura mais compreensivo que o da mdia de conservadores e progressistas, definindo tambm com agudeza as relaes entre culturas regionais e as centrais, bem como destas todas com unidades culturais maiores, entremostrando-se, no geral, menos elitista que exigente. No que tem de pior, desce ao nvel de um panfleto poltico e a um fraseado dogmtico. Essas caractersticas decorrem do modo como o livro foi elaborado, ou seja, como uma 15 tentativa a ltima do poeta de conciliar vrias idias, formuladas em distintos planos de abstrao e nem sempre exaustivamente trabalhadas, num conjunto que pende para a heterogeneidade (cujo carter est expresso no termo notes do ttulo original). O saldo positivo do livro a anlise devastadora que revela, mais que um encadeamento causal, a desolao de uma realidade com a qual Eliot nunca fez as pazes. Como observa o estudioso Raymond Williams, num ensaio sobre o poeta:A desolao, que um tipo de disciplina, inteiramente salutar: o Novo Conservadorismo, ora em moda, tem sido muito indulgente. Se Eliot, quando lido atentamente, tem o efeito de refrear as complacncias do liberalismo, ele tem tambm, quando lido criticamente, o efeito de tornar impossvel o conservadorismo complacente. O prximo passo, ao se pensar sobre esses assuntos,

deve ser dado numa direo diferente, pois Eliot fechou quase todos os caminhos existentes (Raymond Williams, Culture and Society).

Nelson Ascher 16

Definition: 1. The settin of bounds; limitation (rare) 1483 - Oxford English Dictionary

PREFCIO EDIO DE 1962

Estas Notas comearam a tomar forma por volta do fim da Segunda Guerra Mundial. Quando me foi sugerido reedit-las em brochura, reli-as pela primeira vez depois de alguns anos, esperando ter que reconsiderar algumas das opinies nelas expressas. Para surpresa minha, descobri que no tinha nada a subtrair, e nada havia que estivesse disposto a acrescentar. Uma nota, p. 91, reescrevi: pode ser ainda que tenha tentado dizer muita coisa de forma resumida demais, e o conceito necessita de uma elaborao melhor. Aqui e acol tentei melhorar uma frase sem alterar-lhe o sentido. A um amigo, o falecido Richard Jennings, devo a correo de uma ortografia que conduz a uma falsa etimologia (autarchy corrigida para autarky na p. 145). 19 Ultimamente, tive oportunidade de rever minha crtica literria atravs de mais de quarenta anos e examinar os desenvolvimentos e mudanas de opinio, e tenciono um dia submeter minha crtica social ao mesmo exame. Pois, medida que um homem amadurece e adquire maior experincia do mundo, cabe esperar que os anos tragam mudanas ainda maiores em sua viso dos problemas sociais e polticos do que em seus gostos e opinies no campo da literatura. Hoje, por exemplo, no me intitularia um realista tout court, como fiz uma vez; diria que sou a favor de manter a monarquia em todo pas em que ainda exista uma monarquia. Porm essa questo, assim como outras sobre as quais meus pontos de vista ou meu modo de express-los tenham mudado ou se desenvolvido, no abordada no presente ensaio. T.S.E. Outubro de 1961 20

PREFCIO PRIMEIRA EDIO

Este ensaio foi iniciado quatro ou cinco anos atrs. Um esboo preliminar, sob o mesmo ttulo, foi publicado em trs nmeros sucessivos do The New English Weekly. A partir desse esboo tomou forma um trabalho intitulado Cultural Forces in the Human Order, publicado no volume Prospect for Christendom, editado por Maurice B. Reckitt (Faber, 1945); uma reviso desse trabalho constitui o primeiro captulo deste livro. O segundo captulo reviso de uma artigo publicado no The New English Review, em outubro de 1945. Incorporei, na forma de apndice, o texto em ingls de trs palestras radiofnicas para a Alemanha, impressas sob o ttulo Die Einheit der Europaeischen Kultur (Carl Habel Verlagsbuchhandlung, Berlim, 1946). 21 Ao longo deste estudo, reconheo uma dvida especial para com os escritos do Cnego V. A. Demant, de Christopher Dawson e do falecido Prof. Karl Mannheim. sumamente necessrio reconhecer esta dvida em geral, j que no me referi, em meu texto, aos dois primeiros escritores, e para com o terceiro a minha dvida muito maior do que aparenta o contexto em que discuto sua teoria. Aproveitei-me tambm da leitura de um artigo de Dwight Macdonald em Politics (New York), de fevereiro de 1944, intitulado A Theory of Popular Culture; e de uma crtica annima desse artigo na edio de novembro de 1946 do mesmo peridico. A teoria de Macdonald surpreende-me como a melhor alternativa minha prpria que eu vi. T.S.E. Janeiro de 1948 22

INTRODUO

Acho que nossos estudos devem ser tudo menos despropositados. Querem ser realizados com pureza como a Matemtica. ACTON

Meu propsito, ao escrever os captulos que seguem, no , como poderia parecer a um exame ocasional do ndice, delinear uma filosofia poltica ou social; nem pretendo que o livro seja simplesmente um veculo de minhas observaes sobre vrios tpicos. Meu objetivo ajudar a definir uma palavra, a palavra cultura. Assim como uma doutrina s precisa ser definida aps o aparecimento de alguma heresia, tambm uma 23 palavra no necessita desse cuidado at que tenha sido mal empregada. Tenho observado com crescente ansiedade a carreira desse vocbulo cultura, nos ltimos seis ou sete anos. Podemos achar natural, e significativo, que durante um perodo de destrutividade sem paralelo essa palavra devesse assumir um papel importante no vocabulrio jornalstico. Sua atuao, naturalmente, compartilhada pela palavra civilizao. Neste ensaio, no tentei de maneira nenhuma determinar a fronteira entre os significados desses dois termos pois cheguei concluso de que qualquer tentativa nesse sentido somente poderia produzir lema distino artificial, peculiar ao livro, que o leitor teria dificuldade em reter; e que, fechado o livro, abandonaria com uma sensao de alvio. Usamos uma das palavras, com bastante freqncia, num contexto onde a outra se teria sado igualmente bem; existem outros contextos onde uma palavra obviamente se encaixa e a outra, no; e no creio que isso deva causar embarao. J existem obstculos inevitveis em demasia, nesta discusso, sem levantarmos outros desnecessrios.

Em agosto de 1945, foi publicado o texto de um esboo de constituio para uma Organizao Educacional, Cultural e Cientfica das Naes Unidas (UNESCO). A finalidade dessa organizao era definida no artigo I como segue:1. Desenvolver e manter o entendimento mtuo e a considerao da vida e da cultura, das artes, das humanidades e das cincias dos povos do mundo como base para uma efetiva organizao internacional e paz mundial. 2. Cooperar na ampliao e na extenso a todos os povos, a servio das necessidades humanas comuns, de todo o cabedal de conhecimento e cultura do mundo, e na garantia de sua contribuio para a estabilidade econmica, a segurana poltica e o bem-estar geral dos povos do mundo.

24 No momento, no estou preocupado em extrair um significado dessas sentenas; cito-as apenas a fim de chamar ateno para a palavra cultura e sugerir que, antes de influenciar tais resolues, deveramos tentar descobrir o que significa essa palavra. Este apenas um dos inmeros casos que poderamos citar, em que usada uma palavra sem que ningum se preocupe em examinar. Em geral, a palavra empregada de duas maneiras: por uma espcie de sindoque, quando quem fala tem em mente um dos elementos ou evidncias de cultura tal como arte; ou, como na passagem acima citada, como uma forma de estimulante ou anestsico emocional1.O uso da palavra cultura, por aqueles que, segundo me parece, no ponderaram profundamente sobre o significado da palavra antes de empreg-la, pode ser ilustrado por inmeros exemplos. Uma outra passagem pode ser suficiente. Cito-a do Times Educacional Supplement, de 5 de novembro de 1945 (p. 522): "Por que deveramos introduzir em nosso esquema de colaborao internacional mecanismos referentes educao e cultura?" Era essa a pergunta que se fazia o Primeiro-Ministro quando falava aos delegados de quase 40 naes presentes Conferncia das Naes Unidas com o intuito de estabelecer uma Organizao Educacional e Cultural em Londres, na quinta-feira noite, apresentando-lhes as saudaes do Governo de Sua Majestade... O Sr. Attlee conclua com um argumento: se temos de conhecer nossos vizinhos, devemos compreender sua cultura, atravs de seus livros, jornais, rdios e filmes. O ministro da Educao comprometeu-se ao seguinte: "Agora estamos todos juntos: trabalhadores da educao, da pesquisa cientfica, dos variados campos da cultura. Representamos aqueles que ensinam, aqueles que descobrem, aqueles que escrevem, aqueles que expressam sua inspirao na msica e na arte...1

No comeo do primeiro captulo, esforcei-me por distinguir e relacionar os trs principais usos da palavra; e por deixar claro que, ao usarmos o termo numa dessas. 25 trs maneiras, deveramos ter conscincia das outras. Tento ento mostrar a relao essencial entre cultura e religio, e tornar claras as limitaes da palavra relao como expresso dessa relao. A primeira afirmao importante que nenhuma cultura apareceu ou se desenvolveu a no ser em conjunto com uma religio; segundo o ponto de vista do observador, a cultura parecer ser o produto da religio; ou a religio, o produto da cultura. Nos trs captulos seguintes, discuto o que me parecem ser trs condies importantes para a cultura. A primeira uma estrutura orgnica (no apenas planeja da, mas em crescimento), que alimentava a transmisso hereditria de cultura dentro de uma cultura; e isso requer a persistncia das classes sociais. A segunda a necessidade de que uma cultura seja decomponvel, geograficamente, em culturas locais: isso levanta o problema do regionalismo. A terceira o equilbrio entre unidade e diversidade na religio isto , universalidade de doutrina com particularidade e culto e devoo. O leitor deve ter em mente que no estou pretendendo explicar todas as condies necessrias para o florescimento de uma cultura; discuto trs que especialmente me chamaram a ateno2. Ele deve tambm lembrar-seFinalmente temos cultura. Alguns podem argir que o artista, o msico, o escritor, todos os criadores nas humanidades e nas artes no podem organizar-se nacional ou internacionalmente. O artista, j o disseram, trabalha para agradar a si mesmo. Isso pode ter sido um argumento defensvel antes da guerra. Mas aqueles de ns que se recordam da luta no Extremo Oriente e na Europa nos dias que antecederam a guerra aberta sabem o quanto a luta contra o fascismo dependeu da determinao de escritores e artistas em manterem seus contatos internacionais que podiam estabelecer atravs das barreiras fronteirias que se erguiam rapidamente." oportuno acrescentar que, quando se falam tolices sobre cultura, no h escolha entre polticos de uma corrente ou de outra. Tivesse a eleio de 1945 levado ao poder o partido alternativo, teramos ouvido o mesmo pronunciamento nas mesmas circunstncias. A atividade poltica incompatvel com uma ateno estrita aos significados exatos em todas as ocasies. O leitor, portanto, deve abster-se de ridicularizar o Sr. Attlee ou a falecida Miss Wilkinson. Num suplemento ilustrativo ao Christian News-Letter de 24 de julho de 1946, Marjorie Reeves apresenta um pargrafo muito sugestivo sobre "A Cultura de uma Indstria". Embora tenha ampliado de algum modo seu significado, o que ela diz condiria com meu prprio modo de usar a palavra "cultura". Diz ela, da cultura de uma indstria, o que acredita dever ser apresentado2

26 de que aquilo que ofereo no um conjunto de instrues para fabricar uma cultura. No digo que, ao comear a produzir essas condies, ou algumas outras adicionais, possamos esperar seguramente melhorar nossa civilizao. Digo apenas que, at onde vo minhas observaes, improvvel que haja uma civilizao de alto nvel onde estejam ausentes tais condies. Os dois captulos restantes fazem uma leve tentativa de desembaraar a cultura da poltica e da educao. Ouso dizer que alguns leitores iro tirar dedues polticas desta discusso; o mais provvel que determinadas mentes lero em meu texto a confirmao ou o repdio de suas prprias convices e preconceitos polticos. O prprio autor no est isento de convices e preconceitos polticos; mas imp-los no faz parte de suas intenes atuais. O que tento dizer isto: aqui esto o que acredito serem as condies essenciais para o crescimento e a sobrevivncia da cultura. Se elas conflitarem com alguma convico arraigada do leitor se, por exemplo, ele achar chocante que cultura e igualitarismo devam bater-se, se lhe parecer monstruoso que qualquer um deva ter trunfos de nascena no peo a ele que modifique sua convico, apenas que pare de tagarelar sobre cultura. Se o leitor disser: o estado de coisas que desejo organizar correto (ou justo3, ou

totalmente ao jovem operrio: "inclui a geografia de suas matrias-primas e mercados finais, sua evoluo histrica, invenes e cabedal cientfico, sua economia e assim por diante". Inclui tudo isso, certamente; mas uma indstria, se quer cativar o interesse de mais do que a mente consciente do operrio, deveria ter um modo de vida algo puculiar aos seus iniciados, com suas prprias formas de festividade e observncias. Menciono esse interessante lembrete da cultura de indstria, contudo, como evidncia de que tenho conscincia de outros ncleos de cultura alm dos discutidos nesse livro. 3 Devo introduzir aqui um parnteses, num protesto contra o mau emprego correntemente do termo "justia social". Do significado "justia nas relaes entre grupos ou classes", pode-se escorregar para outro significado: a presuno particular de como deveriam ser tais relaes; e pode-se apoiar um curso de ao porque representava o objetivo de "justia social", que no era correto do ponto de vista da "justia". O termo "justia social" corre o risco de perder seu contedo racional que seria substitudo por uma forte carga emocional. Acho que eu mesmo usei o termo: nunca deveria ser empregado a menos que o usurio estivesse preparado para definir com clareza o que significa para ele a justia social, e por que ele a acha justa.

27 inevitvel);. e se isso deve levar a uma deteriorao ulterior da cultura, devemos aceitar essa deteriorao ento no posso me desavir com ele. Poderia at, em certas circunstncias, sentir-me obrigado a apoi-lo. O efeito de uma tal onda de honestidade seria que a palavra cultura deixaria de ser mal empregada, deixaria de aparecer em contextos a que no pertence; e resgatar essa palavra o mximo de minha ambio. Do modo como esto as coisas, para algum que defenda alguma mudana social, ou alguma alterao de nosso sistema poltico, ou alguma expanso da educao pblica, ou algum desenvolvimento do servio social, normal que com confiana que isso levar melhora e ao aumento de cultura. s vezes a cultura, ou civilizao, posta em primeiro plano, e nos dito que aquilo que necessitamos, devemos ter e obteremos, uma nova civilizao. Em 1944, li um simpsio no The Sunday Times (31 de novembro) onde o Prof Harold Laski, ou seu redator, afirmava que lutamos a guerra passada por uma nova civilizao. Laski afirmou pelo menos isto:Se concordamos em que aqueles que procuram reconstruir o que o Sr. Churchill gosta de chamar a Gr-Bretanha tradicional no tm esperanas de cumprir esse objetivo, segue-se que deve ser uma nova Gr-Bretanha numa nova civilizao.

Poderamos resmungar no concordamos, mas seria fugir ao meu desgnio. Laski tem razo at o seguinte ponto: se perdermos algo de modo absoluto e ir reparvel, deveremos arranjar-nos sem ele; mas acho que ele quis dizer algo mais do que isso. Laski est, ou estava convencido de que as mudanas sociais e polticas especficas que ele deseja intro28 duzir, e que acredita serem vantajosas para a sociedade, iro, por serem to radicais, resultar numa nova civilizao. Isso bastante concebvel: o que no temos justificativa para concluir, com respeito s suas ou quaisquer outras mudanas na estrutura social que algum defende, que a nova civilizao seja em si desejvel. Por outro lado, no podemos ter idia de como ser a nova civilizao: tantas outras causas atuam, alm daquelas que podemos ter em mente, e to incalculveis so os efeitos de todas elas em conjunto, que

no podemos imaginar como nos sentiramos vivendo nessa nova civilizao. Por outro lado, as pessoas que viverem nessa nova civilizao sero, pelo fato de pertencerem a ela, diferentes de ns, e igualmente diferentes de Laski. Toda mudana que fazemos tende a produzir uma nova civilizao, de cuja natureza somos ignorantes, e na qual deveramos todos ser infelizes. Na verdade uma nova civilizao se est formando o tempo todo: a civilizao de nossos dias pareceria realmente novssima a qualquer homem civilizado do sculo XVIII, e no posso imaginar o reformador mais ardente ou radical daquela poca muito satisfeito com a civilizao que veria hoje. Tudo o que um cuidado com a civilizao pode levar-nos a fazer aperfeioar a civilizao que temos hoje, pois no podemos conceber outra. Por outro lado, sempre houve pessoas que acreditaram serem certas mudanas positivas em si mesmas, sem se preocuparem com o futuro da civilizao, e sem acharem necessrio recomendar suas inovaes pelo brilho especioso de promessas sem sentido. Sempre est sendo feita uma nova civilizao: o estado de coisas que desfrutamos hoje ilustra o que acontece s aspiraes de cada poca por uma era melhor. A questo mais importante que podemos colocar se existe algum padro permanente pelo qual possamos comparar uma civilizao com outra, e pelo qual possamos arriscar um palpite sobre a melhora ou o declnio 29 da nossa. Temos que admitir, ao comparar uma civilizao com outra, e ao comparar os diversos estgios da nossa, que nenhuma sociedade em nenhum perodo compreende todos os valores da civilizao. Nem todos esses valores podem ser mutuamente compatveis: o que ao menos igualmente certo que, ao captarmos alguns, perdemos a noo de outros. No obstante, podemos distinguir entre culturas superiores e inferiores; podemos distinguir entre avano e retrocesso. Podemos afirmar com certa segurana que o nosso perodo de declnio; que os padres de cultura so mais baixos do que eram cinqenta anos atrs; e que as evidncias desse declnio so visveis em cada departamento da atividade humana4. No vejo razo por que a decadncia da cultura no devesse ir muito mais longe, nem por que no possamos prever um perodo, de alguma durao, do qual se pudesse dizer que no tem cultura. Ento, a cultura ter de recomear do zero; e quando digo que ter dePara uma confirmao, de um ponto de vista muito diferente daquele a partir do qual foi escrito este ensaio, ver Our Threatened Values de Victor Gollancz (1946).4

recomear do zero, no quero dizer com isso que ser criada por alguma atividade de demagogos polticos. A questo levantada por este ensaio se existem algumas condies permanentes, em cuja ausncia no se possa esperar uma cultura superior. Se conseguirmos, mesmo parcialmente, responder a essa questo, deveremos ento nos pr em guarda contra a iluso de tentar realizar essas condies a fim de melhorar nossa cultura. Pois, se deste estudo resultarem algumas concluses definidas, uma delas ser certamente que a cultura algo que no podemos visar deliberadamente. o produto de uma mirade de atividades mais ou menos harmnicas, cada qual exercida por sua prpria finalidade: o artista deve concentrar-se em sua tela, o poeta em sua mquina de escrever, o servidor pblico 30 na correta resoluo de problemas particulares medida que caem sobre sua mesa, cada um de acordo com a situao em que se encontra. Mesmo que essas condies com que me preocupo paream ao leitor representar metas sociais desejveis, no deve ele saltar concluso de que essas metas podem ser atingidas unicamente atravs de organizao deliberada. Uma diviso da sociedade em classes, planejada por uma autoridade absoluta, seria artificial e intolervel; uma descentralizao sob um comando central seria uma contradio; uma unidade eclesistica no pode ser imposta na esperana de trazer unidade de f, e uma diversidade religiosa cultivada por si s seria absurda. O ponto ao qual podemos chegar o reconhecimento de que essas condies de cultura so naturais aos seres humanos; que, embora pouco possamos fazer para encoraj-las, podemos combater os erros intelectuais e os preconceitos emocionais que se lhe deparam no caminho. Quanto ao restante, deveramos buscar o aperfeioamento da sociedade, do mesmo modo que procuramos o nosso individualmente, em detalhes relativamente diminutos. No podemos dizer: Vou tornar-me uma pessoa diferente; podemos apenas dizer: Vou largar este mau hbito, e esforar-me por adquirir este bom. Assim, da sociedade podemos dizer apenas: Tentaremos melhor-la neste aspecto ou naquele, onde evidente um excesso ou falha; devemos tentar ao mesmo tempo ter uma viso to ampla que possamos evitar, ao endireitar alguma coisa, fazer estragos noutra. Mesmo isso equivale a expressar uma aspirao maior do que podemos alcanar: pois tanto, ou mais, por aquilo que

fazemos pouco a pouco sem entender ou prever as conseqncias, que a cultura de uma poca difere da de sua predecessora. 31

1. OS TRS SENTIDOS DE CULTURA

O termo cultura tem associaes diferentes segundo tenhamos em mente o desenvolvimento de um indivduo, de um grupo ou classe, de toda uma sociedade. Parte da minha tese que a cultura do indivduo depende da cultura de um grupo ou classe, e que a cultura do grupo ou classe depende da cultura da sociedade a que pertence este grupo ou classe. Portanto, a cultura da sociedade que fundamental, e o significado do termo cultura em relao com toda a sociedade que deveramos examinar primeiro. Quando se aplica o termo cultura manipulao de, organismos inferiores obra do bacteriologista, ou do agriculturalista o significado bastante claro, pois possvel alcanar unanimidade com respeito aos objetivos a atingir, e podemos concor33 dar quando os atingimos ou no. Quando aplicado melhoria da mente e do esprito humanos-,,estamos menos aptos a concordar com o que a cultura. O prprio termo, com o significado de algo a ser objetivado conscientemente nas questes humanas, no tem uma histria muito longa. Como algo a ser realizado por esforo deliberado, a cultura relativamente inteligvel quando estamos diante do auto-desenvolvimento do indivduo, cuja cultura vista contra-o background cultural do grupo e da sociedade. Tambm a cultura do grupo tem um significado definido em comparao com a cultura menos desenvolvida da massa da sociedade. Pode-se entender melhor a diferena entre as trs aplicaes do termo se indagarmos at que ponto, com relao ao indivduo, ao grupo e sociedade como um todo, tem algum significado o objetivo consciente de conseguir cultura. Poder-se-ia evitar uma boa parcela de confuso, se nos abstivssemos de colocar para o grupo o que pode ser o objetivo apenas do indivduo; e para toda a sociedade o que pode ser o objetivo unicamente de um grupo O sentido geral, ou antropolgico, da palavra cultura, tal como o usou, por exemplo, E.B. Tylor no ttulo de sua obra Primitive Culture, distinguiu-se

independentemente dos outros sentidos: mas se estamos considerando sociedades altamente desenvolvidas, e especialmente nossa prpria sociedade contempornea, temos de levar em conta o relacionamento entre os trs sentidos. Nesse ponto, a antropologia ultrapassa a sociologia. Entre os homens de letras e moralistas, era usual discutir a cultura nos dois primeiros sentidos, e especialmente o primeiro, sem qualquer relao com o terceiro. O exemplo dessa escolha que nos vem mente com mais facilidade Culture and Anarchy, de Matthew Arnold. Este autor est preocupado primordialmente com o indivduo e com a perfeio que ele deveria almejar. verdade que, em sua famosa classifi34 cao de brbaros, filisteus e populaa, ele se envolve com a crtica de classes; mas sua crtica se limita a uma, acusao contra essas classes por causa de suas deficincias, e no chega a considerar o que seria a funo adequada ou a perfeio de cada classe. O efeito, portanto, 4 exortar o indivduo que atinja o tipo peculiar de perfeio que Arnold denomina cultura, a elevar-se acima das limitaes de qualquer classe, em vez de realizar seus mais altos ideais atingveis A impresso de delgadeza que a cultura de Arnold transmite ao leitor moderno se deve, em parte, ausncia de background social para seu quadro. Mas eu acho que se deve tambm sua omisso em explicar um outro modo de usar a palavra cultura, alm dos trs j mencionados. Existem vrios tipos de realizaes que podemos ter em mente em contextos diferentes. Podemos pensar em refinamento das maneiras ou urbanidade e civilidade: nesse caso, pensaremos primeiramente numa classe social, e no indivduo superior como representante do melhor dessa classe. Podemos pensar em erudio e muita intimidade com a sabedoria acumulada do passado: nesse caso, nosso homem de cultura o erudito, o scholar. Podemos estar pensando em filosofia no sentido mais amplo um interesse por, e alguma capacidade em manipular, idias abstratas: nesse caso, podemos referir-nos ao intelectual (reconhecendo o fato de que esse termo usado agora muito frouxamente para abarcar muitas pessoas no muito notveis pela fora do intelecto). Ou podemos estar pensando nas artes: nesse caso, queremos indicar o artista e o amados ou diletante. Mas raramente temos em mente todas essas coisas ao mesmo tempo. No achamos, por exemplo, que entender de msica ou de

pintura figure explicitamente na anlise, por Arnold, do homem culto: no obstante, ningum poder negar que tais coisas tm sua parte na cultura. 35 Se examinarmos as diversas atividades culturais arroladas no pargrafo anterior, devemos concluir que a perfeio em qualquer uma delas, com excluso das outras, no pode conferir cultura a ningum. Sabemos que boas maneiras sem educao, inteligncia ou sensibilidade para as artes, tendem a ser mero automatismo; que erudio sem boas maneiras ou sensibilidade pedantismo; que a capacidade intelectual sem os atributos mais humanos to admirvel quanto o brilho de uma criana-prodgio em xadrez; e que as artes sem o contexto intelectual vaidade. E se no encontramos cultura em qualquer dessas perfeies isoladamente, no devemos esperar que alguma pessoa seja perfeita em todas elas; podemos at inferir que o indivduo totalmente culto uma iluso; e iremos buscar cultura, no em algum indivduo ou em algum grupo de indivduos, mas num espao cada vez mais amplo; e somos levados, afinal, a ach-la no padro de toda sociedade. Isso me parece uma reflexo bastante bvia, porm negligenciada com muita freqncia. Sempre somos propensos a considerar-nos pessoas de cultura, com base numa competncia, quando somos no s faltos de outras, mas cegos s que nos faltam. Um artista de qualquer tipo, mesmo um artista renomado, no por essa nica razo um homem de cultura; os artistas no somente so insensitivos s outras artes que no aquelas que praticam, mas tambm, s vezes, tm pssimas maneiras e dons intelectuais escassos. A pessoa que contribui para a cultura, por mais importante que possa ser sua contribuio, nem sempre uma pessoa culta. No decorre da que no tenha sentido falar da cultura de um indivduo, ou de um grupo ou classe. Queremos dizer apenas que a cultura do indivduo no pode ser isolada da do grupo, e que a cultura do grupo no pode ser abstrada da sociedade inteira; e que nosso conceito de perfeio deve considerar ao mesmo tempo os trs sentidos de cultura. No se segue tam36 pouco que numa sociedade, qualquer que seja seu grau de cultura, os grupos envolvidos em cada atividade cultural sejam distintos e exclusivos: ao contrrio, somente mediante uma superposio e partilha de interesses, graas participao e apreciao mtua, que se pode alcanar a coeso

necessria cultura. Uma religio exige no s um corpo de sacerdotes que saibam o que esto fazendo, mas tambm um corpo de fiis que saibam o que est sendo feito. bvio que, entre as comunidades mais primitivas, as diversas atividades de cultura so inextricavelmente entrelaadas. O dayak que gasta a maior parte da estao modelando, escarvando e pintando seu barco com o desenho peculiar exigido pelo ritual anual de caa-de-cabea, est exercendo diversas atividades culturais ao mesmo tempo de arte e de religio, bem como de guerra anfbia. medida que a civilizao se toma mais complexa, revela maior especializao ocupacional: nas Novas Hbridas da idade da pedra, diz John Layard, alguns ilhus se especializam em artes e ofcios particulares, trocando seus produtos e exibindo suas habilidades para a satisfao recproca dos membros do arquiplago. Todavia, embora os indivduos de uma tribo, ou de um grupo de ilhas ou aldeias, possam ter funes separadas das quais as mais peculiares so as do rei e do feiticeiro somente num estgio posterior que a religio, a cincia, a poltica e a arte foram abstrata mente concebidas isoladas uma da outra. E, assim como as funes dos indivduos se tomam hereditrias, e a funo hereditria se cristaliza em distino de classe ou de casta, e a distino de classe desemboca em conflito, tambm a religio, a poltica, a cincia e a arte atingem um ponto em que surge uma luta consciente entre elas por uma autonomia ou dominao. Este atrito, em algumas fases e algumas situaes, altamente criativo; at onde o resultado, e at onde a causa, do aumento de conscincia no precisamos considerar aqui. A tenso 37 dentro da sociedade pode torna-se tambm uma tenso dentro da mente do indivduo mais consciente: o conflito de deveres em Antgone, que no simplesmente um conflito entre devoo e obedincia civil, ou entre religio e poltica, mas entre leis conflitantes dentro do que ainda um complexo poltico-religioso, representa um estgio bastante avanado de civilizao: pois o conflito deve ter significado na experincia da platia antes que possa ser articulado pelo dramaturgo e receba da platia a resposta que a arte do dramaturgo requer. A medida que a sociedade se desenvolve rumo a uma complexidade e diferenciao funcionais, cabe esperar a emergncia de diversos nveis culturais: em suma, apresentar-se- a cultura de classe ou de grupo. No ser

questionado, penso eu, que em qualquer sociedade futura, assim como toda sociedade civilizada do passado, deve haver esses nveis diferentes. No acho que os defensores mais ardorosos da igualdade social contestem isso: a diferena de opinio depende de ter sido a transmisso da cultura do grupo feita por herana se cada nvel cultural deve propagar-se ou se se pode esperar encontrar algum mecanismo de seleo, de modo que cada indivduo, no devido progresso, tomar seu lugar no mais alto nvel cultural a que qualifiquem suas aptides naturais. O que pertinente nesse ponto que o _surgimento de grupos mais cultos no deixa de afetar o resto da sociedade: ele mesmo parte de um processo em que toda a sociedade muda. E certo e especialmente bvio quando voltamos nossa ateno para as artes que, conforme aparecem novos valores, e o pensamento, a sensibilidade e a expresso se tornam mais elaborados, desaparecem alguns valores mais antigos. Isso quer dizer apenas que no podemos esperar ter todos os estgios de desenvolvimento ao mesmo tempo; que uma civilizao no pode produzir simultaneamente uma grande poesia popular num nvel cultural e o Paraso Perdido no outro. Na verdade, a nica coisa que o 38 tempo sempre est certo de realizar a perda: ganho ou compensao quase concebvel mas nunca certo. Embora o progresso na civilizao parea tornar mais especializados os grupos de cultura, no devemos esperar que este desenvolvimento seja desacompanhado de perigos. Da especializao cultural pode resultar a desintegrao cultural-: )e a desintegrao mais radical que uma sociedade pode sofrer. No o nico tipo, ou no o nico aspecto sob o qual se pode estudar a desintegrao; mas, qualquer que seja a causa ou o efeito a desintegrao da cultura a coisa mais sria e a mas difcil de consertar. (Estamos enfatizando aqui, claro, a cultura de toda a sociedade.) No se deve confundir com outra doena, ossificao em casta, como na ndia hindu, o que pode ter sido originariamente apenas una hierarquia de funes: mesmo que ambas as doenas tenham possivelmente alguma influncia sobre a sociedade britnica atual. Est presente a desintegrao cultural quando dois ou mais estratos se separam de tal modo que se tornam na verdade culturas distintas, e tambm quando a cultura no nvel superior do grupo se rompe em fragmentos, cada um dos quais representa sozinho uma atividade cultural. Se no me engano, j ocorreu, na sociedade ocidental, alguma desintegrao das classes em que a cultura est, ou deve estar, mais desenvolvida bem como

alguma separao cultural entre um e outro nvel da sociedade. Pensamento e prtica religiosos, filosofia e arte, todos tendem a tornar-se reas isoladas, cultivadas por grupos sem qualquer comunicao entre si. A sensibilidade artstica se empobrece, com seu divrcio da sensibilidade religiosa, a religiosa com sua separao da artstica; e o resqucio de maneiras pode ser deixado a uns poucos sobreviventes de uma classe em desaparecimento que, com a sensibilidade no-rei-nada pela religio ou pela arte e as mentes no-providas do material para uma conversao engenhosa, no ter contextura em suas vidas para dar valor a seu compor39 tamento. E a deteriorao nos nveis mais altos matria de interesse, no s para o grupo que afetado visivelmente, mas tambm para todo o povo. As causas de um declnio total da cultura so to complexas como variada a evidncia desse declnio. Entre as razes apresentadas, por diversos especialistas, como causas das doenas sociais mais prontamente apreendidas devem-se encontrar algumas para as quais precisamos continuar a procurar remdios especficos. No obstante, a cada vez tomamos maior conscincia da extenso com que o problema desnorteante da cultura a base dos problemas da relao de cada parte do mundo entre si. Quando nos interessamos pela relao das grandes naes entre si; pela relao das grandes naes com as pequenas5; pela relao das comunidades mescladas entre si, como na ndia; pela relao das naes-me com aquelas que dela se originaram na forma de colnias; pela relao do colonizador com o nativo; pela relao entre povos de reas como as ndias Ocidentais, onde a compulso e o induzimento econmicos criaram grande nmero de raas diferentes: por trs de todas essas questes desconcertantes, envolvendo decises a serem tomadas diariamente por muitos homens, existe a questo do que a cultura, e a questo de saber se algo que podemos controlar ouEste ponto aflorado, embora sem qualquer discusso do significado de "cultura", por E. H. CARR, Conditions of Peace, 1 Parte, cap. III. Diz ele: "Numa terminologia canhestra mas conveniente que teve origem na Europa Central, devemos distinguir entre `nao cultural' e 'naoestado'. A existncia de um grupo lingstico ou racial mais ou menos homogneo, ligado por uma tradio comum e pelo cultivo de uma cultura comum deve cessar de fornecer um caso prima facie para o estabelecimento ou a manuteno de uma unidade poltica independente". Contudo, Carr est mais preocupado aqui com o problema da unidade poltica, do que com o da preservao de culturas, ou com a questo de saber se so dignas de preservao, na unidade poltica.5

influenciar deliberadamente. Tais questes se nos deparam sempre que articulamos uma teoria, ou concebemos uma polti40 ca, de educao. Se levarmos a srio a cultura, vemos que uma pessoa no precisa simplesmente de comer o suficiente (mesmo que seja mais do que somos capazes de prover) mas de uma cozinha adequada e particular: um sintoma do declnio da cultura na Gr-Bretanha a indiferena pela arte de preparar alimentos. Podemos at descrever a cultura simplesmente como aquilo que toma a vida digna de ser vivida. E o que justifica outros povos e outras geraes quando dizem, ao contemplarem os resqucios e a influncia de uma civilizao extinta, que valeu a pena ter existido esta civilizao. J afirmei, na introduo, que nenhuma cultura pode surgir ou desenvolver-se salvo em relao com uma religio. Mas o uso do termo relao aqui pode facilmente induzir-nos a erro. A fcil presuno de um relacionamento entre cultura e religio talvez a maior fragilidade de Culture and Anarchy de Arnold. Este autor d a impresso de que a Cultura (como ele usa o termo) algo mais compreensivo que a religio; que essa ltima no passa de um elemento necessrio, que prov formao tica e algum matiz emocional, Cultura que o valor ltimo. Pode parecer estranho ao leitor que aquilo que eu disse sobre o desenvolvimento da cultura, e sobre os perigos de desintegrao depois que a cultura atingiu seu estgio mais desenvolvido, possa aplicar-se igualmente histria da religio. O desenvolvimento da cultura e o desenvolvimento da religio, numa sociedade no-influenciada de fora, no podem ser claramente isolados um do outro; e depender do ngulo de viso do observador particular descobrir se a causa do progresso na religio um refinamento da cultura, ou se a causa do refinamento da cultura o progresso na religio. O que talvez nos influencie a tratar a religio e a cultura como duas coisas diferentes a histria da penetrao da cultura greco-romana pela F crist penetrao que teve efeitos profundos tanto sobre essa cultura quanto 41 sobre o curso do desenvolvimento que assumiram o pensamento e a prtica cristos. Mas a cultura com que entrou em contato o Cristianismo primitivo (bem como a do meio em que se originou o Cristianismo) era, por si mesma,

uma cultura religiosa declinante. Desse modo, embora acreditemos que a mesma religio possa animar vrias culturas, podemos indagar se alguma cultura pode formar-se, ou manter-se, sem uma base religiosa. Podemos ir mais longe e perguntar se o que chamamos cultura, e o que chamamos religio, de um povo no so aspectos diferentes da mesma coisa sendo a cultura, essencialmente, a encarnao (por assim dizer) da religio de um povo. Colocar a matria deste modo pode esclarecer minhas reservas no tocante ao termo relao. A medida que a sociedade se desenvolve, surgiro maior nmero de graus e tipos de competncias e funo religiosas bem como de outras competncias e funes. Cabe notar que, em algumas religies, a diferenciao tem sido to ampla que, na verdade, resultaram duas religies: uma para o populacho e uma dos adeptos. Os males de duas naes religiosas so bvios. O Cristianismo resistiu a essa doena melhor que o Hindusmo. Os cismas do sculo XVI, e o subseqente pulular de seitas, podem ser estudados como a histria da diviso do pensamento religioso, ou como a luta entre grupos sociais opostos como a variao da doutrina, ou como a desintegrao da cultura europia. Todavia, embora sejam lamentveis essas amplas divergncias de crena no mesmo nvel, a F pode, e deve, achar lugar para muitos graus de receptividade intelectual, imaginativa e emocional s mesmas doutrinas, assim como pode adotar muitas variaes de ordem e de ritual. A F crist tambm, considerada psicologicamente como sistema de crenas e atividades em mentes especficas personificadas, ter uma histria: embora seja um erro grosseiro supor que o sentido em que se fala de seu desenvolvimento e mudana implica que uma santidade maior ou 42 uma iluminao divina se tornem disponveis aos seres humanos mediante o progresso coletivo. (No admitimos que haja, por um longo perodo, progresso mesmo na arte, ou que a arte primitiva seja, como arte, necessariamente inferior mais sofisticada.) Mas um dos aspectos do desenvolvimento, se estamos adotando o ponto de vista religioso ou cultural, o surgimento do ceticismo termo pelo qual, claro, no quero significar infidelidade ou destrutibilidade (muito menos a incredulidade que decorre da preguia mental), mas o hbito de examinar evidncias e a capacidade de retardar uma deciso. O ceticismo um trao altamente civilizado, embora, quando descamba para o pirronismo, seja algo que pode levar a civilizao morte.

Onde o ceticismo fora, o pirronismo fraqueza; pois precisamos no s de fora para adiar uma deciso, mas tambm de fora para tom-la. A concepo de que a cultura e a religio, tomado cada termo no contexto certo, so aspectos diferentes da mesma coisa, exige uma boa dose de explicaes. Mas gostaria de sugerir primeiro que ela nos fornece os meios de combater erros complementares. Um, mantido com mais amplitude, que a cultura pode ser preservada, estendida e desenvolvida na ausncia de religio. Tal erro pode ser sustentado pelo cristo em comum com o infiel, e sua refutao adequada necessitaria de uma anlise histrica mais fina, porque a verdade no imediatamente aparente e possvel mesmo ser contraditada pelas aparncias: uma cultura pode estar doente, e assim mesmo produzir alguns de seus mais brilhantes sucessos artsticos e outros, depois que a f religiosa caiu em declnio. Outro erro a crena de que a preservao e manuteno da religio no precisa adequar-se preservao e manuteno da cultura: uma crena que pode at levar rejeio dos produtos culturais como frvolas obstrues vida espiritual. Para rejeitarmos esse erro, tanto quanto o outro, ser necessrio que to43 memos alguma distncia, que recusemos aceitar a concluso, quando a cultura que observamos uma cultura em declnio, de que a cultura alguma coisa a que podemos dar-nos o luxo de ficar indiferentes. E devo acrescentar que ver dessa maneira a unidade da cultura e da religio no implica que todos os produtos de arte possam ser aceitos sem crtica, nem fornece um critrio pelo qual todos podem distinguir imediatamente entre eles. A sensibilidade esttica deve ampliar-se em percepo espiritual, e a percepo espiritual deve transformar-se em sensibilidade esttica e gosto disciplinado antes que estejamos qualificados a fazer um julgamento sobre decadncia ou diabolismo ou niilismo na arte. Julgar uma obra de arte a partir de padres artsticos ou religiosos, julgar uma religio segundo padres religiosos ou artsticos, no final das contas, viria a ser a mesma coisa, embora seja um fim a que nenhum indivduo pode chegar. O modo de encarar a cultura e a religio que estive tentando prefigurar to difcil que no estou certo de entend-lo eu mesmo a no ser em lampejos, ou de compreender todas as suas implicaes. tambm um modo que envolve o risco de erro a cada momento, por alguma alterao despercebida do

significado que um ou outro termo tem quando os dois esto acoplados dessa maneira, para algum significado que um ou outro possa ter quando tomado isoladamente. Isso se confirma apenas no sentido de que as pessoas so inconscientes tanto de sua cultura quanto de sua religio. Qualquer um dotado da mais leve conscincia religiosa deve-se afligir de tempos em tempos com o contraste entre sua f religiosa e sua conduta; qualquer um com o gosto que a cultura individual ou de grupo confere deve ter conscincia dos valores que ele no pode chamar religiosos. E tanto a religio quanto a cultura, alm de significarem coisas diferentes uma da outra, significariam para o indivduo e para o grupo alguma coisa pela qual 44 lutam, e no simplesmente alguma coisa que possuem. No obstante, h um aspecto onde podemos ver a religio como todo o modo de vida de um povo, do. nascimento sepultura, da manh noite e mesmo no sono, e esse modo de vida tambm sua cultura. E ao mesmo tempo devemos reconhecer que, quando essa identificao total, ela significa em sociedades atuais tanto uma cultura inferior como uma religio inferior. Uma religio universal pelo menos potencialmente superior quela que alguma raa ou nao reivindique exclusivamente para si mesma; e cultura que pratica uma religio igualmente praticada por outras culturas ao menos potencialmente uma cultura, superior quela que tem uma religio exclusivamente sua. De um ponto de vista, podemos identificar; de outro, devemos separar. Tomando agora o ponto de vista da identificao, o leitor deve lembrar-se, como o autor tem de faz-lo constantemente, do quanto abrange aqui o termo cultura. Inclui ele todas as atividades e interesses caractersticos de um povo: o Derby Day, a Henley Regatta, Cowes, o 12 de Agosto, a deciso da Copa, as corridas de ces, a mesa de pinos, o alvo de dardos, o queijo Wensleydale, o repolho cozido e cortado em pedaos, beterraba em vinagre, as igrejas gticas do sculo XIX e a msica de Elgar. O leitor pode elaborar sua prpria lista. E ento temos de enfrentar a estranha idia de que aquilo que parte de nossa cultura tambm o de nossa religio vivida. No devemos considerar nossa cultura como totalmente unificada minha lista acima foi planejada para evitar essa sugesto. E a verdadeira religio de qualquer povo no-europeu sempre tem sido puramente crist, ou puramente outra coisa. H sempre pedaos ou traos de crenas mais primitivas, mais ou

menos absorvidas; h sempre a tendncia a crenas parasitas; h sempre perverses, como no caso em que o patriotismo, que concerne religio natural e portanto lcito e mesmo em45 corajado pela Igreja, se toma exagerado a ponto de converter-se em caricatura de si mesmo. E fcil demais um povo manter crenas contraditrias e propiciar mutuamente poderes antagnicos. Algo que pode ser muito desconcertante, uma vez que permitamos que nossa imaginao brinque com isso, pensar que aquilo em que acreditamos no simples mente o que formulamos e subscrevemos, mas que o comportamento tambm crena, e que mesmo. o mais consciente e desenvolvido de ns vive tambm no nvel em que no podem ser distinguidos crena e comportamento. > Isso d uma importncia s nossas atividades mais triviais, ocupao de cada minuto nosso, que no podemos contemplar por muito tempo sem o horror do pesadelo. Quando consideramos a qualidade da integrao necessria para o pleno desenvolvimento da vida espiritual, devemos ter em mente a possibilidade de graa e os exemplares de santidade a fim de no mergulharmos no desespero. E quando consideramos o problema da evangelizao, do desenvolvimento de uma sociedade crist, temos razo em desanimar. Acreditar que ns somos uma pessoa religiosa e que os outros no tm religio uma simplificao que beira distoro. Pensar que, de um ponto de vista, religio cultura e, de outro, cultura religio pode ser muito perturbador. Indagar se o povo j no tem uma religio, em que o Derby Day e a pista de corrida de ces tenham seu papel, embaraoso; assim, a sugesto que parte da religio dos clrigos mais elevados so as botinas e o Ateneu. No conveniente que alguns cristos achem que, como cristos, no acreditam bastante, e que por outro lado eles, como todos os outros, acreditam em coisas demais: todavia, isso uma conseqncia da reflexo de que os bispos so uma parte da cultura inglesa, e os cavalos e ces so uma parte da religio inglesa. Admite-se comumente que existe cultura, mas que ela a propriedade de uma pequena parcela da socieda-

46 de; e a partir dessa admisso costuma-se derivar para uma de duas concluses: ou a cultura pode ser apenas a preocupao de uma pequena minoria, e portanto no h lugar para ela na sociedade do futuro; ou na sociedade do futuro a cultura que foi a posse de poucos deve ser colocada disposio de todos. Essa admisso e suas conseqncias lembram-nos a antipatia puritana pelo monasticismo e pela vida asctica: pois, assim como uma cultura que acessvel somente minoria censurada agora, tambm a vida contemplativa e fechada era condenada pelo protestantismo extremado, e o celibato considerado quase com tanto horror quanto a perverso. A fim de apreender a teoria da religio e da cultura que me esforcei por estabelecer neste captulo temos de tentar evitar os dois erros alternativos: o de considerar a religio e a cultura como duas coisas separadas entre as quais existe uma relao, e o de identificar religio e cultura. Num ponto falei da cultura de um povo como uma encarnao da sua religio e, embora esteja cnscio da temeridade de empregar um termo to exaltado, no posso pensar em outro que exprima to bem a inteno de evitar, de um lado, a reao e, de outro, a identificao. A verdade, a verdade parcial, ou a falsidade de uma religio no consiste nas realizaes culturais das pessoas que professam essa religio, nem se submete a ser exatamente testada por elas. Pois o que as pessoas dizem acreditar, como mostra a sua conduta, , como eu disse, sempre muito mais e muito menos do que a sua f professada em sua pureza. Alm disso, um povo cuja cultura foi formada conjuntamente com uma religio de verdade parcial, pode viver essa religio (ao menos, em algum perodo de sua histria) com maior fidelidade do que outro povo que tem uma luz mais verdadeira. Somente quando imaginamos nossa cultura como ela dever ser, se nossa sociedade fosse uma sociedade realmente crist, que nos atrevemos a dizer que a cultura crist a cultura mais elevada; somente nos re47 ferindo a todas as fases desta cultura, que foi a cultura da Europa, que podemos afirmar que a cultura mais elevada que o mundo j conheceu.

Comparando nossa cultura como ela hoje, com a de povos no-cristos, devemos estar preparados para descobrir que a nossa , sob um ou outro aspecto, inferior. No negligencio a possibilidade de que a Gr-Bretanha, se consumou sua apostasia reformando-se segundo as prescries de alguma religio inferior ou materialista, possa florescer numa cultura mais brilhante do que a que podemos mostrar atualmente. Isso no seria evidncia de que a nova religio era verdadeira e de que o Cristianismo era falso. Provaria simplesmente que qualquer religio, enquanto dura e em seu prprio nvel, d um significado aparente vida, fornece a estrutura para uma cultura, e protege a massa da humanidade do tdio e do desespero. 48

2. A CLASSE E AS ELITES

Segundo a apreciao de nveis de cultura evidenciada no captulo anterior, pareceria que, entre as sociedades mais primitivas, os tipos superiores exibem diferenciaes de funo mais acentuadas entre seus membros do que os tipos inferiores6. Num estgio mais elevado ainda, achamos que algumas funes so mais 49 honradas do que outras, e essa diviso promove o desenvolvimento de classes, nas quais honra e privilgio superiores so concedidos pessoa no apenas como funcionrio, mas como membro da classe. E a prpria classe possui uma funo, a de manter aquela parte da cultura total da sociedade que pertinente a essa classe. Devemos tentar ter em mente que, numa sociedade saudvel, essa manuteno de um determinado nvel de cultura vem em benefcio, no s da classe que o mantm, mas da sociedade como um todo. A conscincia desse fato evitar que imaginemos ser a cultura de uma classe superior algo suprfluo a toda a sociedade, ou maioria, e que pensemos ser algo que deveria ser compartilhado igualmente por todas as outras classes. Deveria tambm lembrar classe superior, na medida em que existe alguma, que a sobrevivncia da cultura na qual est particularmente interessada depende da sade da cultura do povo. Atualmente, tomou-se um lugar-comum do pensamento contemporneo dizer que uma sociedade assim articulada no o tipo mais elevado a que podemos as pirar; mas que de fato natural que uma sociedade progressista suprima eventualmente essas divises, e que est tambm dentro do alcance de nossa direo consciente, e portanto um dever que cabe a ns, estabelecer umaEstou preocupado em evitar de falar como se a evoluo da cultura primitiva para formas mais elevadas fosse um processo que conhecemos por observao. Observamos as diferenas, inferimos que algumas se desenvolveram a partir de um estgio similar aos estgios inferiores que observamos; mas, por legtima que seja a nossa inferncia, no estou preocupado aqui com esse desenvolvimento.6

sociedade sem classes. Todavia, embora geralmente se admita que a classe, em qualquer sentido que mantenha as associaes do passado, desaparecer, a opinio atual de algumas das mentes mais avanadas que devem ainda ser reconhecidas algumas diferenas qualitativas entre indivduos, e que os indivduos superiores devem ser reunidos em grupos adequados, dotados de poderes apropriados, e talvez com remuneraes e honras variadas. Esses grupos, formados de indivduos aptos aos poderes de governo e administrao, dirigiro a vida pblica da nao; os indivduos que os compem sero considerados lderes. Haver grupos ocupados 50 com a arte e grupos ocupados com a cincia, e grupos ocupados com a filosofia, assim como grupos constitudos por homens de ao: e esses grupos so o que chamamos de elites. bvio que, embora no estado atual da sociedade se encontre a associao voluntria de indivduos com mentes afins, e a associao baseada em interesse material comum, ou ocupao ou profisso comuns, as elites do futuro diferiro num aspecto importante de qualquer uma que conhecemos; elas substituiro as classes do passado, assumindo suas funes efetivas. Essa transformao nem sempre colocada explicitamente. H alguns filsofos que consideram intolerveis as divises de classe, e outros que as consideram meramente moribundas. Os ltimos podem simplesmente ignorar a classe, em seu projeto de uma sociedade governada por elites, e afirmar que as elites sero extradas de todos os setores da sociedade. Mas pareceria que, medida que aperfeioamos os meios de identificar em tenra idade, de educar para seu papel futuro e colocar em posies de autoridade os indivduos que formaro as elites, todas as distines de classe anteriores tornar-se-o uma simples sombra ou vestgio, e a nica distino social de grau ser entre as elites e o resto da comunidade; a no ser que, como pode ocorrer, deva haver uma ordem de prioridade e prestgio entre as prprias elites. Por mais moderada e suavemente que seja apresentada a doutrina das elites, implica uma transformao radical da sociedade. Superficialmente, parece objetivar no mais do que aquilo que todos devemos desejar: que todas as posies da sociedade devessem ser ocupadas por aqueles mais aptos a exercerem a funo dessas posies. Temos todos observado indivduos ocuparem situaes na vida para as quais no so qualificados nem por seu

carter nem por sua inteligncia, e so colocados apenas por simples educao nominal, ou nascimento ou consanginidade. Nenhum homem honesto 51 deixa de incomodar-se com tal espetculo. A doutrina das elites, porm, implica bem mais do que a retificao de semelhante injustia. Postula uma viso atmica da sociedade. O filsofo cujas observaes sobre o tema das elites merecem a maior ateno, tanto por seu prprio valor como pela influncia que exercem, o falecido Dr. Karl Mannheim. A propsito, foi o Dr. Mannheim quem traou o destino do termo elite neste pas. Devo salientar que a descrio de cultura do Dr. Mannheim diferente da que foi apresentada no captulo anterior deste ensaio. Diz ele (Man and Society, p. 81):A investigao sociolgica da cultura na sociedade liberal deve comear com a vida daqueles que criam cultura, i.e., a intelligentsia e sua posio dentro da sociedade como um todo.

De acordo com minha anlise, uma cultura concebida como a criao da sociedade como um todo; e isso, sob outro aspecto, o que a toma uma sociedade. No a criao de alguma parte dessa sociedade. A funo daqueles que o Dr. Mannheim chamaria de grupos criadores de cultura, conforme a minha anlise, seria antes realizar um desenvolvimento posterior da cultura em complexidade orgnica: cultura num nvel mais consciente, mas ainda assim a mesma cultura. Deve-se considerar que esse nvel mais elevado de cultura ao mesmo tempo valioso em si mesmo e enriquecedor dos nveis inferiores: desse modo, o movimento da cultura continuaria numa espcie de ciclo, cada classe nutrindo as demais. Essa j uma diferena de alguma importncia. Minha prxima observao que o Dr. Mannheim est preocupado mais com elites do que com uma elite.Podemos distinguir (diz ele, em Man and Society, p. 82), os seguintes tipos de elites: a poltica, organizadora, a intelectual, a artstica, a moral e a religiosa. Enquanto as elites poltica e or-

52ganizadora visam integrar um grande nmero de vontades individuais, a funo das elites intelectual, esttica e moral-

religiosa sublimarem essas energias psquicas que a sociedade, na luta quotidiana pela existncia, no exaurem plenamente.

Essa departamentalizao das elites j existe, at certo ponto; e at certo ponto uma coisa necessria e boa. Mas, na medida que se observa sua existncia, no uma coisa totalmente boa. Sugeri em outro lugar que uma crescente fraqueza de nossa cultura tem sido o progressivo isolamento mtuo das elites, de modo que a poltica, a filosfica, a artstica e a cientfica esto separadas para grande prejuzo prprio, no somente pela interrupo de qualquer circulao geral de idias, mas pela falta daqueles contatos e influncias mtuos a um nvel menos consciente, que so talvez mais importantes do que as idias. O problema da formao, preservao e desenvolvimento das elites , portanto, tambm o problema da formao, preservao e desenvolvimento da elite, um problema no qual o Dr. Mannheim no toca. Como uma introduo a esse problema, devo chamar ateno para outra diferena entre o meu ponto de vista e o do Dr. Mannheim. Ele observa, muna afirmao com a qual concordo (p. 85):A crise da cultura na sociedade liberal-democrtica se deve, em primeiro lugar, ao fato de que os processos sociais fundamentais, que anteriormente favoreciam o desenvolvimento das elites culturalmente criativas, tm agora o efeito oposto, i.e., tornaram-se obstculos formao de elites porque setores mais amplos da populao tomaram parte ativa nas atividades culturais.

No posso, claro, admitir a ltima clusula dessa sentena como est. De acordo com a minha viso de cultura, a populao toda deveria tomar parte ativa em atividades culturais nem todos nas mesmas atividades ou no mesmo nvel. O que essa clusula diz, em meus termos, que uma parte crescente da populao 53 est preocupada com cultura de grupo. Isso ocorre, creio que o Dr. Mannheim concordaria, atravs da alterao gradativa da estrutura de classes. Mas neste ponto, ao que me parece, o Dr. Mannheim comea a confundir elite com classe. Pois diz ele (p. 89):Se se lembrarem as formas essenciais de escolher as elites que at o presente surgiram na cena histrica, trs princpios podem ser distinguidos: a seleo com base no sangue, na propriedade e na realizao. A sociedade aristocrtica, especialmente depois que se

entrincheirou, escolhe suas elites primeiramente segundo o princpio do sangue. A sociedade burguesa introduziu gradualmente, como um suplemento, o princpio da riqueza, um princpio que prevalece tambm para a elite intelectual, j que a educao era mais ou menos disponvel apenas para a prole do abastado. Logicamente, verdade que o princpio da realizao se combinava com os dois outros princpio. nos perodos iniciais, mas a importante contribuio da democracia moderna, desde que seja rigorosa, que o princpio da realizao tende a tornar-se cada vez mais o critrio do sucesso social.

Estou pronto a aceitar, grosso modo, essa considerao de trs perodos histricos. Mas gostaria de salientar que no estamos preocupados aqui com as elites mas com as classes, ou, mais precisamente, com a evoluo de ma sociedade de classes para uma sociedade sem classes: Parece-me que tambm podemos distinguir uma elite no estgio da mais rgida diviso em classes. Deveremos crer que os artistas da Idade Mdia eram todos homens da nobreza, ou que a hierarquia e os estadistas foram todos selecionados por seus pedigrees? No acho que seja nisso que o Dr. Mannheim quer que acreditemos; mas. penso que ele est confundindo as elites com o setor dominante da sociedade ao qual as elites serviram, do qual tiraram seu colorido e no qual foram recrutados alguns de seus membros` O esquema geral da transio da sociedade, nos ltimos quinhentos anos ou tal, aceito normalmente, e no tenho interesse em question-lo. Proporia apenas uma modificao. Na 54 fase de dominao da sociedade burguesa (acho que seria melhor, com relao a este pas, dizer sociedade da classe mdia superior) h uma diferena que se aplica particularmente Inglaterra. Por mais poderosa que fosse pois agora se diz comumente que seu poder est passando no teria sido o que foi sem a existncia de uma classe acima dela, da qual tirou alguns de seus ideais e alguns de seus critrios, e a cuja condio seus membros mais ambiciosos aspiraram. Isso lhe d uma diferena em tipo da sociedade aristocrtica que a precedeu, e da sociedade de massa que se espera que a siga. Chego agora a outra afirmao na discusso do Dr. Mannheim, que me parece inteiramente verdadeira. A sua integridade intelectual impede-o de dissimular a obscuridade de nossa posio atual; mas ele consegue, at onde posso julgar,

comunicar maioria de seus leitores uma sensao de confiana viva, infectando-os com a sua prpria f arraigada nas possibilidades do planejamento. No obstante, diz ele de modo bem claro: No temos uma idia clara de como a escolha das elites agiria numa sociedade de massas aberta na qual prevalecesse apenas o princpio da realizao. possvel que, numa sociedade semelhante, a sucesso das elites ocorresse com demasiada rapidez e faltasse nela a continuidade social que se deve essencialmente ampliao lenta e gradual da influncia dos grupos dominantes7. Isso levanta um problema da primeira importncia para minha discusso atual, com o qual no creio que o Dr. Mannheimm tenha lidado de modo algum: o da transmisso de cultura. 55 Quando nos ocupamos com a histria de certas partes da cultura, como a histria da arte, ou da literatura, ou da filosofia, isolamos naturalmente uma classe particular de fenmenos; ainda que tenha havido um movimento, que produziu livros de valor e de interesse, para relacionar esses assuntos mais intimamente com uma histria social gerai. Todavia, mesmo tais consideraes so, normalmente, apenas a histria de uma classe de fenmenos interpretados luz da histria de outra classe de fenmenos e, assim com a do Dr. Mannheim, tendem a ter uma viso da cultura mais limitada do que a adotada aqui. O que temos que considerar so os papis que representam a elite e a classe na transmisso de cultura de uma gerao seguinte. Devemos recordar-nos do perigo, mencionado no captulo anterior, de identificar a cultura com a soma de atividades culturais distintas; e, se evitarmos essa identificao, deixaremos tambm de identificar nossa cultura de grupo com a soma das atividades das elites do Dr. Mannheim. O antroplogo pode estudar o sistema social, a economia, as artes e a religio de uma determinada tribo, pode at estudar as suas peculiaridades psicolgicas; mas no simplesmente observando em detalhe todas essas manifestaes, e reunindo-as, que ele se aproximar de uma compreenso dessa cultura. PoisProssegue o Dr. Mannheim, chamando a ateno para uma tendncia na sociedade de massa a renunciar mesmo ao principio da realizao. Essa passagem importante; mas, como concordo com ele em que seus perigos so ainda mais alarmantes, desnecessrio transcrev-la aqui.7

entender a cultura entender o povo, e isso significa uma compreenso imaginativa. Tal compreenso nunca pode ser completa: ou abstrata e a essncia escapa ou ento vivida; e, sendo vivida, o estudioso tender a identificar-se to inteiramente com o povo que estuda que perder o ponto de vista a partir do qual era compensador e possvel estud-lo. A compreenso envolve uma rea mais extensa do que aquela de que se pode ter conscincia; no se pode estar dentro e fora ao mesmo tempo. Aquilo que normalmente chamamos de compreenso de outro povo, logicamente, uma aproximao da compreenso que fica perto do ponto no qual o estu56 dioso comearia a perder alguma essncia de sua prpria cultura. O homem que, para compreender o mundo interior de uma tribo canibal, tenha aderido prtica do canibalismo provavelmente foi longe demais: nunca mais poder ser de fato um dos seus, novamente8. Levantei a questo, no entanto, unicamente em apoio minha objeo de que a cultura no simplesmente a soma de vrias atividades, mas um modo de vida. Ora, o especialista talentoso, que baseado em sua realizao vacacional pode ser perfeitamente qualificado a participar de uma das elites do Dr. Mannheim, pode muito bem no ser uma das pessoas cultas representativas da cultura de grupo. Como disse anteriormente, pode ser apenas um contribuinte altamente valorizado dela. Todavia, a cultura de grupo, como se pode observar no passado, nunca foi coextensiva com a classe, seja uma aristocracia ou uma classe mdia superior. Um nmero muito grande de membros dessas classes sempre foi notavelmente deficiente em cultura. Acredito que, no passado, o repositrio dessa cultura tenha sido a elite, cuja maior parte foi tirada da classe dominante daquele tempo, constituindo os consumidores primrios da obra de arte e de pensamento produzida pelos membros da minoria, que se originaram de vrias classes, inclusive a prpria classe dominante. As unidades dessa maioria sero, algumas delas, indivduos; outras sero famlias. Porm os indivduos da classe dominante que compem o ncleo da elite cultural no devero, por isso, ser cortados da classe a que pertencem, pois sem sua participao naquela classe no teriam seu papel a cumprir. sua funo, em relao com os produtores, transmitir a cultura que herdaram; assim como sua funo, em relao com o resto de sua classe, impedir8

Heart oj Darkness, de Joseph Conrad, d uma pista de algo semelhante.

57 que ela se petrifique. funo da classe como um todo preservar e comunicar padres de maneiras que so um elemento vital na cultura de grupo9. funo dos membros e famlias superiores preservar a cultura de grupo, assim como funo dos produtores alter-la. Numa elite composta de indivduos que nela se colocam unicamente por sua preeminncia individual, as diferenas de vivncia sero to grandes que estaro unidos apenas por seus interesses comuns, e separados por tudo o mais. Uma elite deve, portanto, estar atada a alguma classe, seja superior ou inferior; mas, enquanto houver classes, provvel que seja a classe dominante que atraia essa elite para si. O que aconteceria numa sociedade sem classes o que muito mais difcil de visualizar do que as pessoas imaginam nos leva rea da conjectura. H, no entanto, algumas suposies que me parecem valer a pena ventilar. O canal primrio de transmisso de cultura a famlia: nenhum homem escapa do tipo, ou ultrapassa totalmente o grau, de cultura que adquiriu de seu ambiente primitivo. No insinuo que seja esse o nico canal de transmisso; numa sociedade de alguma complexidade, suplementado e continuado por outros condutos da tradio. Mesmo em sociedade relativamente primitivas assim. Em comunidades mais civilizadas de atividades especializadas, nas quais nem todos os filhos seguiriam a ocupao de seus pais, o aprendiz (teoricamente, pelo menos) no servia apenas a seu mestre, nem apenas aprendia com ele como se aprende numa escola tcnica ele se integrava a um modo de vida que condizia com aquele ofcio ou arte; e talvez o segredo perdi58 do do ofcio seja que era transmitido no somente uma habilidade, mas todo um modo de vida. A cultura discernvel do conhecimento sobre cultura era transmitida pelas universidades mais antigas: l aproveitaram jovens que tinham sido estudantes sem proveito, e que no adquiriram gosto peloPara evitar uma mal-entendido neste ponto, dever-se-ia observar que no suponho que as "boas maneiras" deveriam ser peculiares a qualquer camada da sociedade. Numa sociedade saudvel, boas maneiras de veriam ser encontradas em toda parte. Mas, assim como distinguimos entre os significados de "cultura" nos vrios nveis, tambm distinguimos entre os significados de "boas maneiras" mais e menos conscientes.9

aprendizado, ou pela arquitetura gtica, ou pelo ritual e cerimnia do colgio. Suponho que algo da mesma espcie seja transmitido tambm por sociedades do tipo manico; pois a iniciao uma introduo a um modo de vida, de viabilidade ainda que restrita, recebida do passado e para ser perpetuada no futuro. Mas o canal mais importante de transmisso de cultura permanece, de longe, a famlia; e, quando a vida familiar deixa de cumprir seu papel, deveremos esperar que nossa cultura se deteriore. Ora, a famlia uma instituio da qual quase todos falam bem, mas recomendvel lembrar que esse um termo que pode variar em tamanho. Na era atual, significa pouco mais do que os membros viventes. Mesmo assim, uma rara exceo um anncio mostrar uma famlia grande ou trs geraes; a famlia comumente representada consiste de dois pais e um ou dois filhos pequenos. O que se venera no a devoo a uma famlia, mas o afeto pessoal entre seus membros; e quanto menor a famlia, mas facilmente esse afeto pessoal pode ser exprimido. Mas quando falo da famlia, tenho em mente um lao que abrange um perodo de tempo maior do que esse: uma devoo para com os mortos, no importa quo obscuros, e uma solicitude para com os nonascidos, no importa quo distantes. A menos que essa reverncia para com o passado e o futuro seja cultivada no lar, no poder jamais passar de uma conveno verbal na comunidade. Esse interesse pelo passado diferente das vaidades e pretenses da genealogia; essa responsabilidade pelo futuro diferente da do construtor de programas sociais. Eu deveria dizer ento, que numa sociedade vigorosa estaro presentes tanto a classe como a elite, com 59 uma certa sobreposio e interao constante entre elas. Uma elite, se for uma elite governante, e desde que o impulso natural de passar prole o poder e o prestgio no seja artificialmente reprimido, tender a se estabelecer como uma classe essa metamorfose, penso eu, que conduz ao que me parece ser um descuido da parte do Dr. Mannheim. Mas uma elite que assim se transforme tende a perder sua funo como elite, pois as qualidades pelas quais os membros originais adquiriram sua posio no sero todas transmitidas igualmente a seus descendentes. Por outro lado, temos de considerar qual seria a conseqncia se se verificassem o oposto, e tivssemos uma sociedade na qual as funes das classes fossem assumidas pelas elites. O Dr. Mannheim parece ter acreditado que isso ocorrer; mostrou-se, como o

demonstra uma passagem que citei, ciente dos perigos; e no parece ter estado pronto a propor salvaguardas definitivas contra eles. A situao de uma sociedade sem classes, e dominada exclusivamente por elites , admito, uma, sobre a qual no temos evidncia confivel. Por tal sociedade, suponho que devamos compreender uma na qual cada indivduo comea sem vantagem ou desvantagem; e na qual, por algum mecanismo armado pelos melhores projetistas de tal maquinaria, todos sero dirigidos, ou encontraro o caminho, para aquele posto na vida que esto mais aptos a preencher, e toda posio ser ocupado pelo homem ou mulher mais adequado a ela. Naturalmente, nem mesmo o mais confiante esperaria que o sistema funcionasse to bem assim; se, grosso modo, parecesse chegar mais perto de colocar as pessoas certas nos lugares certos do que qualquer sistema anterior, deveramos todos estar satisfeitos. Quando digo dominado, em vez de governado, por elites, quero dizer que uma tal sociedade no deve contentar-se em ser governada pelas pessoas certas; deve certificar-se de que os artistas e arquitetos mais capacitados subam ao topo, 60 influenciem o gosto e executem os trabalhos pblicos importantes; deve fazer o mesmo pelas outras artes e pela cincia; e deve sobretudo, talvez, ser tal que as mentes mais capazes encontrem expresso no pensamento especulativo. O sistema no deve fazer tudo isso pela sociedade apenas numa situao especial deve continuar a faz-lo, gerao aps gerao. Seria tolice negar que, numa determinada fase do desenvolvimento de um pas, e por um propsito restrito, uma elite possa fazer um trabalho muito bom. Expulsando um grupo governante anterior que, em comparao consigo mesmo, pode ser uma classe, ela pode salvar ou reformar ou revitalizar a vida nacional. Coisas assim aconteceram. Mas temos muito pouca evidncia sobre a perpetuao do governo por uma elite, e a que temos insatisfatria. Um intervalo considervel deve escoar-se antes de podermos ter um exemplo na Rssia. A Rssia um pas rude e vigoroso; tambm um pas muito grande; e precisar de um longo perodo de paz e desenvolvimento interno. Trs coisas podem ocorrer. A Rssia pode mostrar-nos como um governo estvel e uma cultura florescente podem ser transmitidos apenas atravs de elites, pode cair em letargia oriental, ou a elite governante pode seguir o rumo de outras elites governantes e tornar-se uma classe governante. Tampouco podemos confiar em qualquer evidncia dos Estados Unidos da Amrica. A verdadeira

revoluo naquele pas no foi aquela que se chama Revoluo nos livros de histria, mas uma conseqncia da Guerra Civil; aps a qual surgiu uma elite plutocrtica; aps a qual a expanso e o desenvolvimento material do pas foram acelerados; aps a qual foi admitida aquela onda de imigrao mista, trazendo (ou antes, multiplicando) o perigo do estabelecimento de um sistema de castas10 que ainda no foi total61 mente afastado. Para o socilogo, o testemunho da Amrica ainda no est maduro. Nosso outro testemunho de um governo de elite vem principalmente da Frana. Uma classe governante, que por um longo perodo em que o Trono era todo-poderoso deixou de governar, foi reduzida ao nvel ordinrio de cidadania. A Frana moderna no teve classe governante: sua vida poltica na Terceira Repblica, no importa o que mais digamos dela, foi transtornada. E neste ponto podemos frisar que, quando uma classe dominante, no interessa quo mal desempenhou sua funo, removida fora, sua funo no inteiramente assumida por nenhuma outra. O vo dos gansos selvagens talvez seja um smbolo do mal que a Inglaterra causou Irlanda mais srio, sob este ponto de vista, do que os massacres de Cromwell, ou quaisquer das outras ofensas que os irlandeses alegremente relembram. Pode tambm ser que a Inglaterra tenha feito mais mal a Gales e Esccia atraindo suas classes superiores a certas escolas pblicas do que pelos males (alguns verdadeiros, outros imaginrios, outros ainda mal entendidos) clamados pelos seus respectivos nacionalistas. Mas, aqui novamente, quero reservar um julgamento sobre a Rssia. Esse pas, poca de sua revoluo, poderia estar ainda num estgio to inicial de seu desenvolvimento que a remoo de sua classe superior no apenas no impediu esse desenvolvimento como o estimulou. H, entretanto, alguma base para acreditarmos que a remoo de uma classe superior num estgio mais desenvolvido pode ser um desastre para um pas; e quase certamente se essa remoo for devida interveno de uma outra nao. Tenho falado, nos pargrafos precedentes, principalmente da classe governante e da elite governante. Mas devo lembrar novamente ao leitor que, ao nos preocuparmos com a classe versus a elite, nos preocupamos com aAcredito que a diferena essencial entre um sistema de castas e um sistema de classes que a base do primeiro uma diferena tal que a classe dominante passa a se considerar uma raa superior.10

cultura total de um pas, e isso envolve bem mais do que governar. Podemos nos entregar, com alguma 62 confiana, a uma elite governante, assim como os romanos republicanos concediam poder aos ditadores, desde que tenhamos em mente um propsito definido durante uma crise e uma crise pode durar muito_ tempo. Esse propsito limitado toma tambm possvel escolher a elite, pois sabemos para que a estamos escolhendo. Mas se estivermos procurando um meio de selecionar as pessoas certas para constituir cada elite, para um futuro indefinido, por qual mecanismo o faremos? Se nosso propsito for apenas levar as melhores pessoas, em cada rumo da vida, ao topo, no temos um critrio para apontar as melhores pessoas; ou, se impusermos um critrio, ele ter um efeito opressivo sobre a inovao. O trabalho novo de um gnio, seja na arte, na cincia ou na filosofia, encontra freqentemente oposio. Tudo o que nos preocupa no momento se podemos, apenas atravs da educao, garantir a transmisso de cultura numa sociedade em que alguns educadores pare cem indiferentes s distines de classe, e da qual outros educ