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TRUQUENOLOGIA – ELEMENTOS PARA SE PENSAR UMA TEORIA DA GAMBIARRA TECNOLÓGICA Ricardo Rosas Liberdade é jogar contra o aparelho.Vilém Flusser, Filosofia da Caixa Preta. O mito da neutralidade A idéia de que a tecnologia e o processo que lhe dá origem sejam neutros é um mito. Como já demonstraram diversos teóricos que se voltaram para a produção da tecnologia, as relações que se dão entre o contexto social e a produção tecnológica não são nem um pouco neutras, mas sim influenciadas por fatores tão diversos como hábitos culturais, a economia, a ideologia, a religião e a tradição. Esforços de trazer a tecnologia para um campo de adequação ética que localizasse a produção de tecnologia numa perspectiva de desenvolvimento própria aos países periféricos, como a teoria da tecnologia apropriada (appropriate technology, também denominada TA), bem como constructos teóricos mais recentes que conformam o aparecimento de uma sociologia da tecnologia (1), como o construtivismo social de Wiebe Bijker e Trevor Pinch, ou ainda a teoria crítica da tecnologia formulada por Andrew Feenberg, entre outros, sinalizam tentativas de mudar a visão de que a tecnologia se daria como um processo neutro e independente de fatores sociais. Essa visão parcial, corrente em muitos círculos acadêmicos, principalmente aqueles voltados ao mercado de trabalho ou a pesquisas corporativas, não deixa de revelar, por certo, uma ausência quase absoluta de politização neste campo onde a produção e a pesquisa se dão tanto por necessidades da demanda produtiva, quando não por uma participação, nada neutra, em pesquisas de governo na área militar. O contexto da sociedade onde determinada tecnologia se desenvolve ou se reconfigura pode ser absolutamente determinante em como ela ali se estabelecerá. Mais do que isso, e é o que pretendo ensejar neste ensaio, fatores culturais advindos da criação espontânea e popular, da reutilização leiga, de propósitos de reapropriação, de intenções de intervenção no social, da criação artística no interior da tecnologia, ou da inovação cultural, podem sobre- determinar novos usos destas mesmas tecnologias, reaproveitá-las em outros contextos, adaptá-las e mesmo subvertê-las. A intenção aqui é adicionar mais um elemento de complexidade num campo de estudos já tão vasto por si só, o da tecnociência, cujo usual distanciamento de uma perspectiva mais cultural - enquanto produção criativa, não necessariamente artística – corre o risco de ignorar determinados fenômenos de produção tecnológica que, se marginais em comparação com o grosso do que se produz na área, nem por isso deixam de ter ressonância, mesmo que mínima, nessa mesma produção ou na sociedade em geral. Para tanto, o que se pretende aqui não é exatamente formular uma teoria unificada desta criação cultural espontânea, a gambiarra tecnológica (seja por parte das camadas populares, seja por parte de artistas e ativistas), mas fornecer elementos para que uma tal teoria possa ser pesquisada e aprofundada. Neste sentido, o que faremos por ora é traçar caminhos de investigação, sugerir autores e teóricos, citar algumas produções e projetos. Desde já, um tal intento – vale ressaltar – está despido de qualquer neutralidade,

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  • TRUQUENOLOGIA ELEMENTOS PARA SE PENSAR UMA TEORIA DA GAMBIARRA TECNOLGICA Ricardo Rosas Liberdade jogar contra o aparelho. Vilm Flusser, Filosofia da Caixa Preta. O mito da neutralidade A idia de que a tecnologia e o processo que lhe d origem sejam neutros um mito. Como j demonstraram diversos tericos que se voltaram para a produo da tecnologia, as relaes que se do entre o contexto social e a produo tecnolgica no so nem um pouco neutras, mas sim influenciadas por fatores to diversos como hbitos culturais, a economia, a ideologia, a religio e a tradio. Esforos de trazer a tecnologia para um campo de adequao tica que localizasse a produo de tecnologia numa perspectiva de desenvolvimento prpria aos pases perifricos, como a teoria da tecnologia apropriada (appropriate technology, tambm denominada TA), bem como constructos tericos mais recentes que conformam o aparecimento de uma sociologia da tecnologia (1), como o construtivismo social de Wiebe Bijker e Trevor Pinch, ou ainda a teoria crtica da tecnologia formulada por Andrew Feenberg, entre outros, sinalizam tentativas de mudar a viso de que a tecnologia se daria como um processo neutro e independente de fatores sociais. Essa viso parcial, corrente em muitos crculos acadmicos, principalmente aqueles voltados ao mercado de trabalho ou a pesquisas corporativas, no deixa de revelar, por certo, uma ausncia quase absoluta de politizao neste campo onde a produo e a pesquisa se do tanto por necessidades da demanda produtiva, quando no por uma participao, nada neutra, em pesquisas de governo na rea militar. O contexto da sociedade onde determinada tecnologia se desenvolve ou se reconfigura pode ser absolutamente determinante em como ela ali se estabelecer. Mais do que isso, e o que pretendo ensejar neste ensaio, fatores culturais advindos da criao espontnea e popular, da reutilizao leiga, de propsitos de reapropriao, de intenes de interveno no social, da criao artstica no interior da tecnologia, ou da inovao cultural, podem sobre-determinar novos usos destas mesmas tecnologias, reaproveit-las em outros contextos, adapt-las e mesmo subvert-las. A inteno aqui adicionar mais um elemento de complexidade num campo de estudos j to vasto por si s, o da tecnocincia, cujo usual distanciamento de uma perspectiva mais cultural - enquanto produo criativa, no necessariamente artstica corre o risco de ignorar determinados fenmenos de produo tecnolgica que, se marginais em comparao com o grosso do que se produz na rea, nem por isso deixam de ter ressonncia, mesmo que mnima, nessa mesma produo ou na sociedade em geral. Para tanto, o que se pretende aqui no exatamente formular uma teoria unificada desta criao cultural espontnea, a gambiarra tecnolgica (seja por parte das camadas populares, seja por parte de artistas e ativistas), mas fornecer elementos para que uma tal teoria possa ser pesquisada e aprofundada. Neste sentido, o que faremos por ora traar caminhos de investigao, sugerir autores e tericos, citar algumas produes e projetos. Desde j, um tal intento vale ressaltar est despido de qualquer neutralidade,

  • pois a inteno explorar o fenmeno da gambiarra tecnolgica em seu aspecto exatamente menos neutro, o de sua insero e interferncia no campo social. Tecnologia e sociedade afinidades eletivas? Poder-se ia escrever toda uma histria dos inventos que, a partir de 1830, surgiram apenas como armas do capital contra os motins operrios Karl Marx, O capital, vol. I Dentro do recorte a que pretendemos nos ater, seria interessante primeiramente nos voltarmos queles autores e agentes que tocam na delicada questo das relaes entre a tecnologia e a sociedade, sem adentrarmos ainda na esfera cultural propriamente dita. J Marx ressaltava, em certas passagens dO capital, como a escolha de alternativas tcnicas, ou tecnologias, se baseava no em funo de critrios tcnicos, mas sociais (2). A escolha era tomada para reforar o poder do empresrio, seu controle sobre o processo de produo, e no apenas a acumulao de capital. Ou seja, a posse da iniciativa tcnica era to determinante quanto a do capital. Mas a teoria marxista tradicional, no geral, considerava o avano tecnolgico a fora motriz da histria, como diz Renato Dagnino (3). No controlada pelo homem, seria a tecnologia que moldaria a sociedade mediante as exigncias de eficincia e progresso. J para os autores da Escola de Frankfurt, a tecnologia, conquanto entidade autnoma, seria ameaadora e malvola, controlando, de forma cada vez mais imperialista, cada domnio da vida social, ou seja, uma viso extremamente pessimista do impacto da tecnologia na sociedade. Ser uma figura histrica como Gandhi quem, na ndia dos anos 1920, direcionar a viso das relaes entre a tecnologia e a sociedade para um adequamento tico mais voltado para a transformao social, especialmente em pases e regies pobres e perifricas, como a sociedade hindu de sua poca. Ao invs de uma conservao esttica de tecnologias tradicionais, Gandhi defendia a idia de um crescimento orgnico atravs do melhoramento das tcnicas locais, da adaptao da tecnologia moderna ao meio ambiente, para identificar e resolver problemas imediatos. Suas idias tambm seriam aplicadas na Repblica Popular da China e influenciariam o economista alemo E. F. Schumacher, que cunharia a expresso tecnologia intermediria, uma forma tecnolgica de baixo custo e pequena escala mais adequada a pases pobres. Schumacher, atravs tanto de seu famoso livro Small is beautiful: economics as if people mattered (O pequeno lindo: economia como se as pessoas importassem), de 1973, como de seu Grupo de Desenvolvimento da Tecnologia Apropriada, foi de essencial importncia para o movimento da TA e sua disseminao pelo mundo. Entre outras coisas, o movimento da TA pretendia minimizar a pobreza nos pases do terceiro mundo, tratar a questo ambiental com fontes alternativas de energia, permitir a participao comunitria no processo de deciso da escolha tecnolgica, o uso intensivo de insumos naturais, a simplicidade de implantao e manuteno, o respeito cultura e

  • capacitao locais, bem como diminuir a dependncia em relao aos fornecedores usuais de tecnologia do Primeiro Mundo.Embora inovadora, em termos principalmente da teoria do desenvolvimento econmico, dando vazo tanto ao compromisso social quanto originalidade na pesquisa, e resultando em significativa produo de artefatos tecnolgicos baseados em sua filosofia, a grande proliferao de pesquisadores partidrios da TA se deu muito mais nos pases avanados, tendo produzido escassas pesquisas cientficas ou tecnolgicas em TA por pesquisadores de pases perifricos. Alm disso, a TA, ingnua em seu pressuposto, como afirma Dagnino (4) e apesar de centrada no desenvolvimento social, tinha uma postura defensiva, adaptativa e no-questionadora das estruturas de poder dominantes tanto global quanto localmente, sem contar o fato de que seus defensores no foram capazes de conceber processos de gerao e difuso de conhecimentos alternativos que pudessem (...) fazer com que a TA fosse, de fato, adotada. (5) O movimento da tecnologia apropriada perde fora nos anos 1980, em parte devido expanso global do pensamento neoliberal. Ainda em 1974, o terico David Dickson, com seu livro The politics of alternative technology, mostraria uma dupla face da tecnologia, cujos problemas adviriam no apenas dos usos para os quais ela empregada, mas de sua prpria natureza: no nvel material, mantendo e promovendo os interesses de grupos sociais dominantes na sociedade em que desenvolvida, e no nvel simblico, apoiando e propagando a idia legitimadora desta sociedade, sua interpretao de mundo e a posio nele ocupada (6). As duas ltimas dcadas assistiram, no mbito da dita nova sociologia da cincia, ao surgimento de um novo campo de estudos sobre a tecnologia: a sociologia da tecnologia ou sociologia da inovao. Usando ferramentas analticas de estudos de caso e privilegiando a observao, este novo campo, conforme a viso geral que nos d Dagnino sobre o tema (7), englobaria diversas correntes que demonstrariam, como no caso de teoria dos sistemas tecnolgicos de Thomas Hughes, que a tecnologia socialmente construda por grupos sociais relevantes no mbito do tecido sem costuras (metfora da interseco da tecnologia com a sociedade, a poltica e a economia) do corpus social, ou, como na teoria do ator-rede, por Michel Callon, Bruno Latour e John Law, que os atores-rede - abarcando um conjunto heterogneo de elementos, de inventores e pesquisadores a gerentes, trabalhadores, agncias de governo, consumidores e usurios ou mesmo os objetos materiais - se relacionam de modo diverso, durante um tempo relativamente longo, sendo responsveis pela transformao ou consolidao da rede por estes conformada, permitindo entender como se configura a sociedade e a tecnologia. As redes, logo, seriam ento conformadas pela prpria estrutura dos artefatos criados e utilizados, que proporcionariam uma espcie de plataforma para outras atividades. Dagnino destaca com maior nfase a teoria do construtivismo social que, com sua concepo da construo social da tecnologia, englobaria as abordagens do sistema tecnolgico e do ator-rede, tendo em vista as redes que expem as relaes entre os atores sociais e os sistemas tcnicos (8). Segundo o construtivismo, que comeou a se estabelecer em 1984, as tecnologias seriam construes sociais na medida em que grupos de consumidores, interesses polticos e outros similares influenciariam no apenas a forma final que a tecnologia toma, mas seu contedo. Estas tecnologias, bem como suas teorias, no seriam determinadas por critrios tcnicos ou cientficos, pois sempre haveria um

  • excedente de solues factveis para qualquer problema dado, e os atores sociais seriam os responsveis pela deciso final acerca de uma srie de opes tecnicamente possveis, assim como a definio mesma do problema mudaria ao longo do processo de sua soluo. Desta forma, conforme o prprio procedimento dos fundadores do construtivismo, Bijker e Pinch, ao estudarem a evoluo tcnica da bicicleta, identificar e seguir os grupos sociais relevantes implicados no desenvolvimento de um determinado artefato o ponto de partida das pesquisas realizadas pela abordagem do contexto que considerariam a possibilidade de a tecnologia ser uma construo social e no o fruto de um processo autnomo, endgeno e inexorvel. Da tambm a nfase que o movimento construtivista dar a ao conceito de conjunto (ensemble) sociotcnico, ou seja, os arranjos entre elementos tcnicos e sociais que do origem a um novo objeto de estudo, usado para explicar tanto a condio tecnolgica da mudana social quanto a condio social da mudana tecnolgica. As diversas maneiras pelas quais grupos sociais interpretam e utilizam um objeto tcnico no lhe seriam extrnsecas, mas produziriam, ao longo de seu processo de construo sociotcnica, mudanas na natureza dos objetos, bem como seriam determinadas pelo grupo mais poderoso na definio do que vir a ser quando for projetado e melhorado, s sendo possvel entender o desenvolvimento de um artefato tecnolgico estudando o contexto sciopoltico e a relao de foras entre os diversos grupos com ele envolvidos (9). Numa orientao mais prxima da filosofia da tecnologia, dialogando com o construtivismo social e refutando o pessimismo da Escola de Frankfurt, Andrew Feenberg formular o que chama de teoria crtica da tecnologia. Atravs do caminho aberto pelos construtivistas, de que o desenvolvimento tecnolgico envolve conflito e negociao entre grupos sociais com concepes diferentes dos problemas e solues envolvidos e no podendo mais ser entendido como determinado apenas por uma lgica tcnica inerente, Feenberg aprofundar essa viso politizando sua anlise numa linha de argumentao radical (no sentido de ir raiz da questo) que explicita o contedo de classe que medeia o estudo da construo social da tecnologia e que ali ficava relativamente obscurecido. Descartando a primazia dos imperativos funcionais nos processos sociais de maturao de uma dada tecnologia, ressaltando a importncia dos mtodos e tcnicas de controle do capitalista sobre o processo de trabalho, ou seja, o poder tecnocrtico (10), e investigando o processo com que se d a autonomia operacional formada pela escolha das tcnicas viveis de maximizao da capacidade de iniciativa tcnica que est no cerne da acumulao de poder da empresa e de sua hegemonia na sociedade, a teoria crtica da tecnologia deixa s claras como se d o conflito social na esfera tcnica, bem como as implicaes em termos da distribuio do poder e do controle dos processos tcnicos escolhidos. Especialmente interessante ser a viso de Feenberg do que denominar indeterminismo, servindo para assinalar a flexibilidade e capacidade de adaptao a demandas sociais diferentes que possuem os sistemas tcnicos (11), e permitindo perceber por que o desenvolvimento tecnolgico no unilinear e pode se ramificar em diversas direes e prosseguir ao longo de mais de uma via. Os imperativos tecnolgicos, ento, no estabelecem a hierarquia social existente, e a tecnologia pode ento ser compreendida como um espao de luta social em que esto em combate projetos polticos alternativos, enquanto o desenvolvimento tecnolgico delimitado pelos hbitos culturais enraizados na economia, na religio, na tradio e na ideologia. A teoria crtica, assim, v na tecnologia uma promessa de liberdade. Humanamente controlada e portadora de valores, a tecnologia, conforme Feenberg, emolduraria no apenas um estilo de vida, mas vrios estilos possveis, cada um refletindo

    giseli vasconcelos

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  • diferentes escolhas de design e diferentes extenses da mediao tecnolgica. Na viso da teoria crtica, tecnologias no seriam ferramentas, mas suportes para estilos de vida. Mais recentes, os estudos em torno da tecnologia social (tambm denominada TS), que tem fundamentado diversas investigaes acadmicas sobre a questo, particularmente investigaes como as de Renato Dagnino, e de uma rede de instituies por todo o Brasil, abarcam diversas das teorias aqui j abordadas, partindo de alguns de seus pressupostos e adicionando elementos mais concernentes propriamente a uma realidade como a brasileira. A tecnologia social vista como um processo social e poltico, tendo em sua constituncia tanto um cariz ideolgico quanto um elemento de operacionalidade. Enfatizando mais o processo que a construo, a TS no se pretende ter um ponto de chegada definido, pois no segue a idealizao ingnua da tecnologia apropriada, e visa ser pensada como um processo desenvolvido no lugar onde a tecnologia ser utilizada, pelos autores que vo utiliz-la (12). Para tanto, utiliza-se de um conceito crucial que lhe d a dimenso processual, o de adequao sociotcnica, a qual abarca modalidades como a apropriao, a revitalizao ou repontenciamento de mquinas e equipamentos, alternativas tecnolgicas, a incorporao de conhecimento cientfico-tecnolgico j existente ou novo, entre outros. Intersectando saberes tradicionais, populares e cientficos, assim como um conhecimento enraizado em prticas, medidas e experincias partilhadas, a TS visa soluo de demandas sociais concretas, vividas e identificadas pela populao, e se define como um conjunto de tcnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interao com a populao e apropriadas por ela, que representam solues para incluso social e melhoria das condies de vida (13). Entra a gambiarra Da adversidade vivemos! Hlio Oiticica, Esquema Geral da Nova Objetividade De especial interesse para este ensaio o conceito estabelecido por Dagnino e Gomes de inovao social. Utilizado para caracterizar um outro contexto que no necessariamente o da TS mas igualmente importante em sua constituio, como o demonstrar, Dagnino define a inovao social referindo-se ao conhecimento intangvel ou incorporado a pessoas ou equipamentos, tcito ou codificado que tem por objetivo o aumento da efetividade dos processos, servios e produtos relacionados satisfao das necessidades sociais (14). Imbricada no processo produtivo, pois engloba desde a pesquisa e desenvolvimento tecnolgico, at a introduo de novos mtodos de gesto da fora de trabalho, entre outras atividades, a inovao social, como de resto parte majoritria de quase todas as teorias at aqui analisadas (da tecnologia apropriada, passando pelo construtivismo social at a tecnologia social), se volta para questes como o grau de desenvolvimento de uma sociedade, a aplicabilidade de tecnologias, a adaptao local, a sustentabilidade, entre outras questes similares. O intento aqui pretendido inicialmente mudar o foco dessa abordagem. Sair, digamos, do campo da produtividade tcnica enquanto processo de desenvolvimento social e focar numa esfera ainda pouco explorada, pelo menos dentro do espectro da sociologia da tecnologia, qual seja, a cultural, da produo criativa envolvendo a tecnologia e implicando na sua

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  • interferncia social. Para tanto, poderamos ento pensar no exatamente em inovao social nos termos expostos por Dagnino, mas em inovao cultural. O imperativo da inovao cultural estaria no propriamente em uma priorizao do processo produtivo per si, no desenvolvimento da estrutura social que ela implica, mas na prpria trajetria cultural que engendra a criao, modificao ou adaptao de uma dada tecnologia, na criatividade envolvida em alterar determinada tecnicalidade inerente quela tecnologia tal como foi programada por seus criadores originais. De certa forma, essa mudana de foco tambm reflete, no por acaso, uma mudana de pressupostos interpretativos com respeito s teorias at aqui abordadas, sem o prejuzo, vale ressaltar, de sua importncia no raciocnio deste texto - em relao ao modo de produo da economia capitalista vigente, nomeadamente, uma mudana de foco da economia fordista para a ps-fordista. Sem nos adentrar nas especificidades da diviso mundial do trabalho, o que demandaria um estudo aprofundado, muito alm dos propsitos deste ensaio, partimos do pressuposto de que a base da economia, mesmo em pases em desenvolvimento como o Brasil, tem paulatinamente passado da produo braal, fordista, para a produo imaterial, cognitiva, como teorizado por muitos tericos do ps-fordismo, como Antonio Negri, Michael Hardt, Paolo Virno e Maurizio Lazzarato. Tendo como fundamento a produo de linguagem, o trabalho da criatividade estaria passando ao primeiro plano na produo de bens e sua reproduo no mercado capitalista corrente. Sendo assim, tanto a idia de inovao cultural quanto da criatividade como atividade produtiva fundamental nos servem como balizas para introduzir aqui a questo principal deste ensaio que discutir a produo da gambiarra tecnolgica e seus usos na esfera social como interveno, seja nas alteraes tecnolgicas espontneas e cotidianas efetuadas pelas camadas populares, com implicaes ilcitas ou no, seja nas adaptaes e reciclagens realizadas por grupos envolvidos em incluso tecnolgica ou digital, seja nas subverses tcnicas realizadas por artistas ou ativistas visando interferncias na esfera social. Antes de qualquer coisa, no entanto, preciso entender o que chamamos aqui de gambiarra. O que , afinal, gambiarra? Definies de dicionrio como o Houaiss, vinculam a gambiarra ao famoso puxadinho, ou gato, extenso puxada fraudulentamente para furtar energia eltrica ou a definio, mais comportada, de extenso eltrica, de fio comprido, com uma lmpada na extremidade (15). A gambiarra, no entanto, aplicada correntemente, pelo senso comum, para definir qualquer desvio ou improvisao aplicados a determinados usos de espaos, de mquinas, fiaes ou objetos antes destinados a outras funes, ou corretamente utilizados em outra configurao, assim postos e usados por falta de recursos, de tempo ou de mo de obra. Mais do que isso, porm, a gambiarra tem um sentido cultural muito forte, especialmente no Brasil, usada para definir uma soluo rpida e feita de acordo com as possibilidades mo. Esse sentido cultural no escapou, igualmente, esfera artstica, com vrias criaes, no terreno prprio das artes plsticas, que tm se dado na contemporaneidade, e desta seara que podemos captar mais alguns conceitos reveladores da natureza da gambiarra e seu significado simblico-cultural. Em um ensaio sobre o tema da gambiarra nas artes brasileiras, O malabarista e a gambiarra, Lisette Lagnado sugere que a gambiarra uma pea em torno da qual um tipo de discurso est ganhando velocidade. Articulao de coisas banidas do sistema funcional, a gambiarra, tomada como conceito, envolve trangresso, fraude, tunga sem jamais abdicar de uma

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  • ordem, porm de uma ordem muito simples (16). O mecanismo da gambiarra, para Lagnado, teria alm disso, um acento poltico alm do esttico. Baseada na falta de recursos, a gambiarra no se faz sem nomadismo nem inteligncia coletiva. A gambiarra est igualmente muito prxima do conceito de bricolagem formulado por Claude Lvi-Strauss em O Pensamento Selvagem. Pensando o bricoleur como aquele que trabalha com suas mos, utilizando meios indiretos se comparado ao artista (17), seu conjunto de meios no definvel por um projeto, como o caso do engenheiro, mas se define apenas por sua instrumentalidade, com elementos que so recolhidos e conservados em funo do princpio de que isso sempre pode servir. O bricoleur cria usando expedientes e meios sem um plano preconcebido, afastado dos processos e normas adotados pela tcnica, com materiais fragmentrios j elaborados, e suas criaes se reduzem sempre a um arranjo novo de elementos cuja natureza s modificada medida que figurem no conjunto instrumental ou na disposio final. A totalidade dos meios disponveis deve estar implicitamente inventariada ou concebida, para que se possa definir um resultado que sempre ser um compromisso entre a estrutura do conjunto e a do projeto. A bricolagem, equivalente, no plano intelectual, ao pensamento mtico e mgico, fala atravs das coisas. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si (18). Organizador de resduos de obras humanas, pois nada mais tem mo, o bricoleur monta uma composio heterclita formada por utenslios e materiais de segunda mo, onde os antigos fins passam a ter o papel de meios. A diferenciao que Lvi-Strauss faz entre o bricoleur e o engenheiro essencial para se entender a gambiarra, essa livre criao mais alm dos manuais de uso e das restries projetuais da funcionalidade, como uma prtica essencialmente de bricolagem: O bricoleur est apto a executar um grande nmero de tarefas diversificadas porm, ao contrrio do engenheiro, no subordina nenhuma delas obteno de matrias-primas e de utenslios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental fechado, e a regra de seu jogo sempre arranjar-se com os meios-limites, isto , um conjunto sempre finito de utenslios e materiais bastante heterclitos, porque a composio do conjunto no est em relao com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mant-lo com os resduos de construes e destruies anteriores (19). Truquenologia Por uma teoria da gambiarra tecnolgica A lngua sem arcasmos, sem erudio. Natural e neolgica. A contribuio milionria de todos os erros. Como falamos. Como somos. Oswald de Andrade, Manifesto Pau Brasil Visto ento o seu potencial simblico e subjetivo, e face mesmo a seu enorme escopo de abrangncia, seja como prxis informal, seja como criao artstica, entre outras, devemos ento tentar pensar agora que caractersticas nos interessa abordar na prtica da gambiarra. Primeiramente, iremos nos ater gambiarra tecnolgica, isto , gambiarra que englobe aparatos ou aparelhos que envolvam alguma tecnologia, sejam estes dispositivos eletrnicos, de baixa ou alta tecnologia, e mquinas em geral, conquanto as caractersticas

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  • bsicas de uma gambiarra, isto , a alterao, transgresso ou improvisao estejam presentes. Normalmente, se d o uso da baixa tecnologia (low tech), pois a falta de recursos um fator usual mas no necessariamente, em se tratando, por exemplo, de criaes tecno-artsticas. Um outro recorte aqui intencionado de que tais prticas visem a uma interveno na esfera do social, o que pode significar desde o uso pblico de determinado aparato no necessariamente visando o desenvolvimento econmico e produtivo -, a interveno no espao urbano, a incluso digital ou participao social, o protesto ou contestao, o ativismo. Afinal, como j disse Lagnado, em se tratando de gambiarras, o poltico vai alm do esttico, e, poderamos acrescentar, do meramente utilitrio. Pensar aqui um alm do utilitrio no de maneira nenhuma descart-lo mesmo por que, como veremos, este ser um fator presente em todas as produes e teorias abordadas daqui pra frente mas incluir qui uma dose de ironia, de questionamento, de dvida, de indeterminao, ou seja de componente subjetivo propcio reflexo, coisa que muitas gambiarras trazem consigo mesmo que espontaneamente, mas que poucas vezes percebida. Por fim, como definiramos uma tal teoria da gambiarra tecnolgica, se possvel tal teoria? Esta teoria deriva, claro, de um contexto determinado. Inspirada durante a organizao de um festival de mdia ttica que pretendia abordar entre outras coisas, a prtica da gambiarra na cultura eletrnica brasileira, o festival Digitofagia, realizado em outubro de 2004, um germe de tal teoria surgiu na lista de discusso do festival (20) e gerou diversos debates em torno desta prtica to brasileira e to pouco estudada. Ao contrrio de equivalentes culturais como o carnaval, o malandro ou mesmo o famoso jeitinho, a gambiarra, como a prtica dos camels (outro tema de certa forma marginal), era, ao que parece, elemento tabu nas teorizaes sobre a cultura eletrnica no Brasil. Totalmente esquecida num ambiente em que reina com absoluta normalidade, a teorizao da gambiarra surgia num momento em que se tentava justamente abrasileirar discusses em torno do ativismo de mdia e mdias tticas, trazendo-se tona diversos temas comumente omitidos ou postos embaixo do tapete. Um termo surgido na lista, ento, foi truquenologia, ou tecnologia do truque, tentando traduzir a questo do improviso tcnico prprio da gambiarra. Claro que truquenologia no equivalia, por exemplo, ao uso anglo-saxo de tricknology, um termo mais corrente em prticas esotricas da comunidade negra americana, ou gria (de gueto), nesse caso mais prxima do sentido cultural de gambiarra, para um jeitinho, mesmo assim a palavra do ingls no correspondia a uma teoria da gambiarra tecnolgica. Claro h que outros termos seriam possveis a se pensar, o caminho est aberto para isso, embora nos parea que truquenologia um termo fcil de recordar, e j conhecido em certos crculos. Este, no entanto, um primeiro passo no esboo de uma teoria da gambiarra tecnolgica, de forma que muitos elementos novos e desenrolares inesperados podem ento surgir daqui pra frente. Importante ter em mente os diversos usos e aplicaes possveis das tecno-gambiarras bem como as inovaes culturais nelas envolvidas, e sobre esta questo que nos voltaremos agora. Neste sentido, dividimos o campo basicamente em trs vertentes principais, as quais viro com algum vislumbre de possveis teorias e produes a serem

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  • estudadas e aprofundadas, caso se pretenda dedicar ao estudo da truquenologia. Ressalto igualmente que as bases dadas principalmente pela sociologia da tecnologia, como vistas no incio deste ensaio, podem ser de fundamental auxlio para alicerar conexes com o aspecto mais acentuadamente cultural do que ser discutido a seguir. 1. Power to the people! Da gambiarra tecnolgica como fruto da criatividade popular A rua acha seus prprios usos para as coisas. William Gibson, Burning Chrome A gambiarra indubitavelmente popular, por sua natureza e origem. Nasce nos meandros da espontaneidade, da escassez financeira, da criatividade cotidiana, do improviso dirio para a sobrevivncia, algumas vezes no terreno da ilegalidade, do pirateado, outras vezes dando um adicional criativo no meio do caos e da pobreza diria. Fazer um inventrio de tecno-gambiarras populares surgidas do saber espontneo, das tentativas nem sempre bem-sucedidas, nem sempre funcionais (no sentido produtivo do termo), pode ser uma tarefa rdua e sempre incompleta, pois a cada dia esto a surgir novos artefatos, novas configuraes. O escopo imenso, mas podemos pensar aqui numa ainda incipiente cartografia de aparatos e configuraes: Gatos, ou puxadinhos, ou seja, as fiaes de energia eltrica ilegais; as TVs a gato, pegando ilegalmente programaes de TVs a cabo; a clonagem de celulares e de cartes de crdito; as assemblages populares com bicicleta, por exemplo a turbinete do seu Otaclio, no Rio Grande do Sul, que mistura uma bicicleta, caixa de depsito para alimentos e motor, ou ainda as montagens de bicicletas com caixas de som para propaganda popular em Belm do Par, chamadas bikes eltricas; as reinvenes de carros de catadores de rua em So Paulo, misturando luzes e caixas de som com os carrinhos; O Triciclo Amarelinho do seu Pel, no Rio de Janeiro, conforme Gabriela Gusmo (21), que junta aparelho de som 3 em 1, TV, farol, baterias, capa de chuva, despertador e luzes de natal; O Mitsbich, do Z, tambm no Rio, juntando um carrinho de supermercado e aparelho de som com rdio e toca-fitas (22); os j estabelecidos trios eltricos, como sua mistura de caminho e caixas de som de sound-system; as cmeras de vigilncia infravermelhas instaladas na favela de Helipolis em So Paulo por uma quadrilha de narcotrfico local (23); ou ainda os Ncleos de Produo de Tecnologias Populares (ou Projeto Fabriquetas), inspirados por Sebastio Rocha, que adaptou mais de 1.700 tecnologias populares de baixo custo criando instrumentos de organizao coletiva e auto-gesto, no interior de Minas Gerais (24); as transformaes de sound systems em verdadeiros painis de controle de naves espaciais nas aparelhagens do tecnobrega paraense e nos bailes funk cariocas, entre outras variantes. Reinterpretaes mais sofisticadas do universo da gambiarra tecnolgica popular tm sido feitas, por exemplo, por um coletivo brasileiro como o Bijari, que utiliza muito do imaginrio popular em pesquisas com camels, catadores e gambiarras, entre as quais se destaca seu atual projeto de pesquisa, de tecnologias resistentes. Outro coletivo que incorpora a gambiarra, neste caso das TVs a gato, o grupo ativista argentino Pinche

  • Empalme Justo que, sob a faceta de uma grande empresa de TV a cabo, na verdade ensina a fazer gatos para conseguir a programao de graa (25). Como podemos ver, o nmero e a multiplicidade de gambiarras tecnolgicas pode ser muito grande. Limitamo-nos a fornecer alguns exemplos que uma pesquisa mais detalhada pode com certeza ampliar consideravelmente. Importa notar a variedade de aplicaes e seu uso, que tanto pode ser lcito como ilcito (aqui nos abstemos de emitir juzos morais a tal respeito), ldico ou srio. Em muitos casos, envolvem prticas prximas da pirataria, da violao dos cdigos estabelecidos, das economias e mercados paralelos. As gambiarras tecnolgicas de cunho popular podem ser consideradas construes sociotcnicas, seguindo a expresso de Bijker e Pinch, uma vez que as mudanas efetuadas na natureza dos objetos se do pelos grupos sociais envolvidos. Elas tambm possuem uma dose de indeterminismo em sua evoluo, conforme a teoria crtica de Feenberg, se adaptando s demandas sociais que o contexto lhes impe, sem desenvolvimentos unilineares, mas mltiplos e rizomticos. E poderiam igualmente se enquadrar como tecnologias sociais, embora em muitos casos no se destinem exatamente ao desenvolvimento produtivo da sociedade. Mas, seguindo a proposta deste ensaio, como analisar a tecno-gambiarra focando o substrato cultural, criativo? Para tanto, deveramos recorrer a autores que interpretam os modos como o pblico (ou camadas populares, consumidores) reutiliza ou modifica mquinas, artefatos e produtos pensados e programados para outros usos, produzindo, assim, inovao cultural. Criador de uma antidisciplina, uma teoria das prticas cotidianas que se apropriam (ou reapropriam) dos produtos impostos por uma ordem econmica dominante, Michel De Certeau pode ser um bom recurso neste sentido. Seu livro A inveno do cotidiano: 1. As artes de fazer se volta justamente para como a cultura popular, os consumidores, fabricam um outro uso dos produtos, um consumo astucioso, disperso, quase invisvel, distinto da produo racionalizada e expansionista do mercado. Essa fabricao configuraria uma potica, colocando em jogo uma ratio popular, uma maneira de pensar investida numa maneira de agir, uma arte de combinar indissocivel de uma arte de utilizar (26). As tticas populares de apropriao (ou reapropriao) desviariam para fins prprios a ordem efetiva das coisas, insinuando assim um estilo de trocas sociais, um estilo de invenes tcnicas e um estilo de resistncia moral, configurando, ento uma economia do dom (de generosidades como revanche), uma esttica de golpes (de operaes de artistas), e uma tica de tenacidade (mil maneiras de negar ordem estabelecida o estatuto de lei, de sentido ou fatalidade) (27). Sintoma de um tempo em que, frente crescente expanso tecnocrtica dos sistemas tcnicos, ou seja, cada vez mais coagido e menos envolvidos nesses amplos enquadramentos, ao indivduo s lhe resta a astcia no relacionamento com eles, dar golpes, encontrar na megalpole eletrotecnizada e informatizada a arte dos caadores ou rurcolas antigos. Tais maneiras de fazer desenham as astcias de interesses diversos e de desejos que no so nem determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolveram. Atividades no assinadas, no legveis, mas simbolizadas, as formas de reapropriao do sistema produzido

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  • visariam ento a uma teraputica de socialidades deterioradas. Pois estas prticas do heri comum, o homem ordinrio, annimo, produzem sem capitalizar e revelam uma uma criatividade to tenaz como sutil, incansvel, mobilizada espera de qualquer ocasio, espalhada nos terrenos da ordem dominante, estranha s regras prprias da racionalidade e que esta impe com base no direito adquirido de um prprio (28). Da ento, igualmente, a nfase de De Certeau na ttica como oposta estratgia, por aquela ser uma arte do fraco, um movimento dentro do campo de viso do inimigo, onde o ato de dar um golpe depende do senso de ocasio, operando lance por lance, atuando com base na surpresa, na mobilidade e imprevisibilidade dos movimentos. Afinal, toda a cultura destas prticas se elabora nos termos de relaes conflituais ou competitivas entre mais fortes e mais fracos, sem que nenhum espao, nem legendrio ou ritual, possa instalar-se na certeza de neutralidade (29). As tticas de desvio se distinguiriam basicamente das estratgias tecnocrticas por que enquanto estas ocupam os espaos com operaes que elas produzem, mapeiam e impem, as tticas, por sua vez, utilizam estes espaos, manipulando e alterando. Os conhecimentos e simblicas impostos so, assim, o objeto de manipulaes pelos praticantes e no por seus fabricantes. Na realidade, diante de uma produo racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produo de tipo totalmente diverso, qualificada como consumo, que tem como caracterstica suas astcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasies, suas piratarias, sua clandestinidade, seu murmrio incansvel, em suma, sua quase-invisibilidade, pois ela quase no se faz notar por produtos prprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe so impostos (30). Ao se voltar para o uso, as maneiras de fazer, De Certeau pretende justamente restituir a legitimidade lgica e cultural s prticas cotidianas, e reconhecer em tais prticas de apropriao os indicadores da criatividade que pulula exatamente onde desaparece o poder de se dar uma linguagem prpria. A estatstica, por exemplo, consegue captar - classificar, calcular e tabular o material dessas prticas, mas no a sua forma, ou seja, baliza os elementos utilizados, e no o fraseado devido bricolagem, inventividade artesanal, discursividade que estes elementos combinam (31). De Certeau tambm detecta nos campos prprios da anlise cientfica e nos gabinetes de estudos uma distncia crescente das prticas efetivas e cotidianas, uma hierarquizao social que organiza o trabalho cientfico sobre as culturas populares e ali se repete (dado que as instituies cientficas pertencem ao sistema que estudam e mesmo uma ideologia crtica no muda nada ao seu funcionamento, pois a crtica cria a aparncia de uma distncia no seio da pertena [32] ), da o propsito de repensar todas essas tticas at agora to negadas pela epistemologia da cincia e de estender a anlise dessas operaes cotidianas a setores cientficos aparentemente regidos por outro tipo de lgica. Para pensar a gambiarra tecnolgica popular de acordo com De Certeau poderamos, ento, desvelar como essas prticas cotidianas reinterpretam os aparelhos e mquinas ou suas sucatas, como surge e como se efetua a criatividade ttica dos fracos que as manipulam e alteram, como se do os golpes e a astcia da inventividade artesanal e seus contextos de

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  • surgimento, e mesmo buscar um dilogo com a sociologia da tecnologia que poderia abrir campo a outras reas de dilogo epistemolgico. Ron Eglash outro estudioso que se volta para os usos populares da tecnologia no que chama de apropriao de tecnologias (33). Eglash professor de estudos de cincia e tecnologia no Instituto Politcnico Rensselaer, no estado de Nova York, e pesquisa, entre outras coisas, a etnomatemtica africana e os usos da tecnologia pelas comunidades negras nos territrios da dispora africana. Importante para os objetivos deste ensaio o livro que Eglash editou em 2004, Appropriating Technology, que rene textos de diversos autores sobre apropriao tecnolgica e, numa perspectiva mais sociolgica e cultural, se debrua sobre como grupos e minorias como as comunidades indgenas, negras, gays e lsbicas ou de ativistas ecolgicos utilizam e readaptam tecnologias pensadas para outros fins. Particularmente esclarecedora a introduo, escrita por Eglash, onde nos apresenta a questo das apropriaes de tecnologia. Entendendo que boa parte dos estudos sociais sobre a cincia e a tecnologia tem se voltado ou para a produo nesta rea por profissionais consagrados, ou para o impacto dela sobre o pblico em geral, Eglash se pergunta: e quanto ao pblico leigo como produtores de cincia e tecnologia? (34) Dos engenheiros espontneos dos Lowriders latinos nos EUA (35) s praticas ambientalistas de mulheres em reas rurais, grupos fora dos centros de poder cientficos constantemente desafiam a viso de que sejam meros receptores passivos de produtos tecnolgicos e do conhecimento cientfico. Pelo contrrio, em muitos casos eles reinventam tais produtos e repensam esses sistemas de conhecimento, freqentemente sob formas que incorporam a crtica, a resistncia ou mesmo a plena revolta. A importncia de se estudar a apropriao de tecnologias estaria no fato de ela ser um rico manancial permitindo combinar uma anlise crtica de questes sociais com o foco voltado na direo de uma aplicao positiva da cincia e seus artefatos. Relatos de apropriao tecnolgica, conforme Eglash, so multifacetados, podendo ser dolorosos ou alegres, tranqilizadores ou chocantes. Sua contribuio crucial se d na direo da resistncia scio-poltica e da reconfigurao social. Baseando-se nas diferenas entre os variados tipos e graus de apropriao tecnolgica, bem como nas nuances possveis de consumo-produo, Eglash desenvolveu trs categorias analticas: - Reinterpretao: O caso mais fraco de apropriao se daria por uma mudana na relao semntica, com pouca ou nenhuma alterao no uso ou na estrutura. Eglash nos d o exemplo das tags (assinaturas) do grafite que, sem modificar os aspectos fsicos ou funcionais de um edifcio, fazem uma reivindicao semntica de possesso, denotando tanto uma forma de resistncia cultural quanto uma guerra criminal de gangues por territrio; - Adaptao: O segundo caso se definiria por uma mudana tanto na relao semntica quanto no uso. O exemplo dado dos bedunos no Egito, uma minoria tnica no pas, quando descobriram que os toca-fitas que eram vendidos para a maioria da populao egpcia para o consumo de msica, tambm tinham a possibilidade, ali insuspeitada, de

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  • gravao. Eles ento comearam a gravar suas canes, e isso eventualmente levou ao surgimento de um pop star beduno e criao de novas oportunidades econmicas e culturais. A adaptao requer duas caractersticas tecno-sociais. Primeiro, um atributo da relao usurio-tecnologia referido como flexibilidade por exemplo, uma calculadora seria menos flexvel que um processador de texto, por sua vez menos flexvel que um computador pessoal (36). Em segundo lugar, requer a violao da proposta original pretendida por aquela tecnologia. Tal proposta original no deveria, como nos alerta Eglash, ser atribuda unicamente aos criadores dessa tecnologia, mas igualmente levar em conta as intenes do marketing, o senso comum, as premissas populares. No caso dos toca-fitas bedunos, a flexibilidade pr-existente para a gravao, pretendida por seus criadores, tinha sido obscurecida pelo foco marketeiro direcionado somente capacidade de reproduo dos aparelhos. A adaptao pode ser descrita como a descoberta de uma funo latente, definio no entanto a ser problematizada da mesma forma que os filsofos debatiam se a matemtica uma inveno ou descoberta (37). Para Eglash, a criatividade requerida para ver alm das funes admitidas de uma dada tecnologia e enxergar novas possibilidades uma poderosa fora de mudana social, mas que recebe insuficiente ateno terica; - Reinveno: O caso mais marcante de apropriao tecnolgica seria aquele que Eglash denomina reinveno, no qual a semntica, o uso e a estrutura de uma tecnologia so todos alterados. Se a adaptao requer a descoberta de uma funo latente, a reinveno pode ser definida como a criao de novas funes atravs da mudana estrutural. Os lowriders seriam uma clara demonstrao desta combinao. Embora os amortecedores de impacto nos carros tivessem sido originalmente projetados para a reduo de choques, a mecnica latina desenvolveu mtodos de conect-los a bombas de ar, transformando amortecedores de impacto em produtores de impacto. Os lowriders violam tanto as intenes do design original quanto do marketing, e novas funes foram introduzidas na estrutura original, ao invs de funes latentes terem sido descobertas no artefato original. A distino entre graus de apropriao da tecnologia no pressupe avaliaes de teor ideolgico ou de efetividade. Numa dada circunstncia, pode ocorrer mais xito poltico, por exemplo, num caso de reinterpretao do que de reinveno. Eglash alerta igualmente para a necessidade de se evitar, em anlises como esta, o relativismo multiculturalista, que pe todos os grupos sociais como apenas mais uma fatia do bolo global, bem como o perigo de cair em vitimizaes ou hierarquias de opresses. Uma forma de fugir deste dilema seria ter em mente a natureza multidimensional das categorias de poder social, e analisar grupos e indivduos envolvidos em termos histricos, contextuais, no como uma essncia fixa, o que implica considerar a relao historicamente especfica entre estas posies culturais e as turbulentas misturas de pessoas, artefatos, tcnicas e textos que compem a tecnocincia (38). Eglash tambm faz um apanhado do que se tem feito de estudos na rea da apropriao tecnolgica. Entre outras questes, destaca pontos como a conexo do consumo, mostrando como a fora coletiva de consumidores pode moldar a criao de tecnologias; os sistemas nativos de conhecimento e as possibilidades advindas de snteses do conhecimento popular com a tecnologia; a ambiguidade do uso, estudando as inesperadas adaptaes de usos tcnicos na evoluo de determinados aparelhos; o mau uso criativo (creative misuse)

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  • (39), com a refuncionalizao popular de tecnologias alheias, como o caso dos fazendeiros vietnamitas transformando crateras de bomba em tanques de peixes, ou ainda as subverses da boneca Barbie pelo grupo ativista Barbie Liberation Organization, trocando a voz da boneca pela do boneco G.I Joe, e recolocando a boneca em lojas de todo os EUA; ou o entendimento pblico da cincia, sobre a apropriao da cincia e seu conhecimento e dados por grupos populares. Algumas questes interessantes relativas prtica da apropriao so levantadas por Eglash. Entre outras, que a apropriao pode ser uma resposta marginalizao, mas que se tais apropriaes podem contribuir para fortalecer a democracia, isso depender de como seus atributos positivos podem vir a ter xito. Obstculos como as campanhas e polticas apoiadas pelas grandes corporaes devem ser compreendidas, na medida em que desencorajam ou refreiam a apropriao. Mais que claramente, gambiarras tecnolgicas so apropriaes de tecnologias pensadas para outros fins, seja em reinvenes de bicicletas, carrinhos de catadores ou caminhes nos trios eltricos, seja nas adaptaes dos puxadinhos, TVs a gato, na clonagem de celulares e de cartes de crdito ou nas instalaes de cmeras de vigilncia infravermelhas por grupos marginalizados, seja nas reinterpretaes dos sound systems (sistemas de som) nas aparelhagens e bailes funks, entre outros casos. Em vrios destes exemplos, esto muitas vezes envolvidos e misturados sistemas de conhecimentos nativos, ambigidades de uso, o mau uso criativo ou um entendimento pblico (e laico) da cincia. Um outro elemento terico interessante neste ponto pode ser encontrado nas idias de Christian Pierre Kasper, doutorando da Unicamp em Cincias Sociais e participante do grupo de pesquisas CTeMe da mesma universidade, sobre a questo do desvio de funo, que enseja um dilogo oportuno com os pontos levantados por Eglash. Teorizado em torno da apropriao de tecnologia, o desvio de funo contraria o imperativo normativo de uma dada tecnologia, ao se dar de trs formas: transgredindo uma norma de uso, normalmente implcita, incorporando o artefato a um novo contexto, e, finalmente, como percepo de virtualidades do objeto (40). A transgresso do uso seria uma espcie de abuso da funo normativa do objeto, dando nova aplicabilidade, antes impensada a uma determinada tecnologia. A recontextualizao do objeto se daria, por exemplo, em diferentes aplicaes deste mesmo em diferentes contextos culturais ou geogrficos, por exemplo, com o surgimento de novas propriedades no artefato ao se encontrar num contexto totalmente diferente de onde foi produzido. As virtualidades de um dado objeto seriam por sua vez, usos talvez latentes, desapercebidos porm possveis, talvez mesmo impensveis primeira vista, mas que com determinadas alteraes, passam a valer para outros usos. O conceito de desvio de funo pode ser aplicado em qualquer dos tipos de tecno-gambiarra aqui estudados, especialmente nos de cunho artstico, como se ver na ltima seo. A gambiarra por princpio um desvio de funo, perfazendo tanto uma recontextualizao do objeto, caso dos sistemas de som adaptados a realidades locais especficas brasileiras, ou do uso de cmeras de vigilncia na favela, que igualmente uma evidente (e ilegal) transgresso do uso normativo, caso tambm dos gatos, assim como a turbinete, o Mitsbich, o Triciclo Amarelinho e outras assemblages similares seriam descobertas de virtualidades de uso at ento pouco aventadas quanto aos artefatos originais.

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  • Em relao s categorias sugeridas por Eglash, vale notar a nfase que este d ao processo em si de alterao do artefato, enquanto Kasper se volta mais para o contexto cultural onde esta alterao se d. Nesse sentido, interessante frisar a importncia que Kasper d importncia da capacidade de interpretar o mundo sua volta como requisito para se chegar a um desvio de funo bem como num modo de pensar s avessas, dados culturais fundamentais quando se leva em conta o substrato criativo inerente s gambiarras tecnolgicas, mas cujo propsito de pesquisa vai alm das intenes deste estudo. A figura do bricoleur, do criador popular e sua inventividade ttica ou capacidade de apropriao, esse heri annimo cujas gambiarras passam desapercebidas em grande parte dos gabinetes de estudo sobre cincia e tecnologia, tambm tem aparecido, em estudos mais voltados cultura da internet e ao funcionamento das redes de mdia, sob outras formas, principalmente em se tratando da produo envolvendo o trabalho imaterial, mediado por computadores. Nessa nova e recente configurao, tal figura ordinria mais que o consumidor que altera um produto, mas ele mesmo visto como uma parte essencial da cadeia produtiva, pois mesmo o consumo se torna produo. Da a criao, pelo prprio mercado, da figura do prosumer (ou prosumidor), o produtor-consumidor, expresso que, das mos de Alvin Tofler, se popularizou entre empresas de marketing. E sobre a figura do prosumer que o terico independente Pit Schultz investiga essa nova formatao da criatividade popular, agora generalizada pela disseminao do trabalho cognitivo e pela Internet. Schultz, em seu ensaio The producer as power user, se volta justamente para o prosumer, tambm conhecido como power user (algo como usurio especializado). O power user, pois, seria o anti-heri psindustrial por excelncia. Nem profissional, nem amador, algumas vezes expert, outras vezes diletante, ele consome o poder e consumido por ele (41), seja ele um manaco por videogames, um viciado em computadores, um linux-hacker, sendo movido por um desejo de conhecer e ganhar controle sobre o poder que por outro lado o controla. O que distinguiria o power user de um usurio normal de computadores seria justamente a profundeza de sua experincia prtica com reas de tecnificao relativamente desconhecidas ou no-sistematizadas. Na atual disseminao da modernizao ciberntica, ele/ela faz as vezes de pesquisador no-remunerado e unidade de desenvolvimento, de mediador com a cultura popular de mdia e de sensvel prottipo da explorao sociotcnica. O power user indica um estado transitrio de alfabetizao digital, que suaviza socialmente as imperfeies das tecnologias correntes, mas tambm gera um tipo de conhecimento dormente no qual um potencial econmico gerado sem a necessidade de compensaes financeiras (42). Por outro lado, a linha divisria entre este e seu equivalente especialista altamente remunerado j no mais determinada pelas instituies tradicionais de produo de conhecimento, pois a rede global se tornou ela mesma um ambiente educacional para aqueles sem acesso direto a tais instituies. O tipo de conhecimento e expertise distribudo aqui de um tipo mais pragmtico e imanente, envolvido como est em projetos abertos e gratuitos, mais conectado aos tecidos sociais, onde o power user constri uma reputao e ganha habilidades cruciais. Os power users, com seu massivo auto-didatismo, criam uma nova e crescente classe de intelectuais do Google (43), cujas contribuies aos meios de produo so uma parte necessria da arquitetura miditica geral do sistema e cada vez mais requeridas pela cincia acadmica, que passa a depender do seu conhecimento, ainda que este permanea como dados livres e

  • acessveis que geram o resduo sobre o qual outros cercos e servios avanados podem ser construdos. Para Schultz, a ambigidade deste info-comunismo barateado, no olho do furaco do capitalismo integrado e globalizado em rede, se tornou um dos maiores recursos para a economia de conhecimento neoliberal e pode ser descrito tanto como revolucionrio quanto reacionrio. O power user seria tanto um consumidor especializado (power consumer) participando da economia real e atualizando seus equipamentos constantemente, quanto faria uma subverso parasitria participando de redes peer-to-peer, trocando softwares piratas, dicas e truques, estimulando a mera distribuio de mercadorias (digitais), e transformando-as numa forma participatria e economicamente reprodutvel de estilo de vida digital (44). Schultz v dois tipos principais de power users, os afirmativos e os crticos. O afirmativo opera como uma entidade singularizada de uso intensificado e de micro-auto-publicao, que, sempre aprendendo mais, participa de agrupamentos dispersos e interligados. Como crtico, o power user apia a comunidade de semelhantes com planos de mudar o sistema hospedeiro, contra e dentro deste, e a crtica se torna uma expresso da crescente auto-conscincia de sua prpria classe. Muitas vezes, o power user as duas coisas juntas, transmutando taticamente entre a multiplicidade e a singularidade, e sua oscilante condio mental se torna idntica aos modos de produo que o definem. Agente ativo de mediao, o power user atua nas confluncias de velhas e novas mdias, e testa os limites das novas interfaces entre internet, televiso, rdio, telefonia e outros gadgets. Como participante de uma nova economia autoral coletiva, ele/ela remixa modos de produo, de consumo e distribuio, maximizando a participao comunicativa. Dessa forma, o power user se torna o novo ideal de educao numa cultura democrtica de mdia. No estando nem dentro nem fora do sistema, o power user busca apenas aprofundar seu conhecimento. Mas, entranhado nas redes de autoria coletiva e compartilhada, o power user, em ltima instncia, se fortalece distribuindo o poder do conhecimento. Como poderamos ento enquadrar as tecno-gambiarras seguindo a idia do power user? Em primeiro lugar, teramos de mudar o enfoque para gambiarras tecnolgicas relacionadas mais diretamente produo digital. Neste sentido, poderamos, ainda que de maneira incipiente, catalogar algumas prticas como a pirataria digital, o crackeamento de programas, o war-driving (invaso de redes sem fio desprotegidas), utilizando, por exemplo, tubos de batatas Pringles, a troca de drives usando gravadores antigos de CDs para copiar escapando de sistemas de proteo anticpia, o phone phreaking (invaso hacker via telefone para fazer ligaes gratuitas), o durex pirata que, colado no trecho inicial de discos protegidos por certos sistemas anticpia, permite que o CD toque normalmente em drives de CD-ROM, certos vrus de computador, trojan horses e spywares que repassam informaes de usurios, entre outras. Em segundo lugar, a prpria prtica do power user de remixar modos de produo, distribuio e consumo torna-o idealmente um tpico introdutor/criador de novas gambiarras digitais. Por outro lado, se Schultz recusa associar a figura do hacker do power user (45), nem por isso os hackers deixam de ser usurios especializados, compartilhando seu conhecimento entre si, e parasitando e retro-alimentando o sistema no qual atuam, gravitando muito proximamente numa, seno na mesma, galxia de produo. Hackers, por sua vez, seriam igualmente legtimos e exmios produtores/programadores de gambiarras digitais.

  • O mesmo raciocnio vale para a crescente comunidade de desenvolvedores de software livre e open source. Baseados numa rede de intensa troca de informaes e de cdigos, seus criadores - mesmo pelo atual estgio de desenvolvimento e usabilidade, algumas vezes precria, dos aplicativos em linux e open source esto sempre criando, improvisando configuraes, inventando novas modalidades de uso, de aplicao, verdadeiras gambiarras de cdigos, sempre em processo de mutao e modificao, abertas interferncia e ao aprimoramento do programa por quem se habilitar a faz-lo. Dentro do domnio das redes e da produo digital e de novas mdias, ento, a prtica da gambiarra tecnolgica popular adquire diferentes feies e formatos. A Internet, mesmo com a enorme excluso digital que caracteriza sua atual condio, ainda assim se configura como uma espcie de gora popular. Por seu lado, o power user, bem como o hacker, pode muito bem ser aproximado quele personagem criativo popular que inspira De Certeau, dando seus golpes frente ao sistema dominante e taticamente dentro do seu campo de viso, ainda que trafegando num outro meio, eletrnico por natureza. Tambm podemos compar-lo figura, to cara aos estudiosos ps-fordistas, da intelectualidade de massas, quando o conhecimento especfico do intelectual j no propriedade de felizardos indivduos ilustrados mas de uma parcela significativa da fora produtiva, e o intelecto geral (general intellect) (46) passa a ser fonte, processo e produto de um conhecimento coletivo e compartilhado. 2. Engenharias reversas e solidariedades maqunicas Da gambiarra tecnolgica como reapropriao socializada das mquinas No se trata mais de confrontar o homem e mquina para avaliar as correspondncias, os prolongamentos, as substituies possveis ou impossveis de um e de outro, mas de faz-los comunicar para mostrar como o homem forma pea com a mquina, ou forma pea com outra coisa para constituir uma mquina. Deleuze e Guattari, Anti-dipo O segundo tipo de gambiarras tecnolgicas a que nos voltamos aqui se diferencia da gambiarra de vis propriamente popular por dois aspectos. Em primeiro lugar, por sua prtica no ser fruto exatamente do conhecimento espontneo, de uma criatividade popular, mas por parte de indivduos com um conhecimento especfico mnimo de suas atividades, ou seja, com um relativo domnio das tecnicalidades em jogo, para efetuar as alteraes que caracterizariam uma gambiarra. Em segundo, pelo visvel propsito de incluso social, no necessariamente de matiz ideolgico ou ativista, mas assim mesmo com uma clara perspectiva de incluir setores da populao sem acesso a tais tecnologias, excludos ou desfavorecidos. Mais do que isso, porm, o que caracteriza os projetos a serem vistos em seguida como legtimas prticas de gambiarra sua reutilizao de material descartado pela sociedade, de sucata tecnolgica reapropriada para fins outros que no aqueles para os quais tinham sido originalmente pensadas.

  • Um exemplo claro destas prticas o projeto brasileiro MetaReciclagem, cuja prtica visa, entre outros objetivos, reciclar computadores descartados para possibilitar a montagem de centros e laboratrios com mquinas usando software livre, de preferncia em reas desfavorecidas e perifricas das grandes cidades. Como descrito no site do projeto, MetaReciclagem uma metodologia descentralizada de reapropriao tecnolgica para a transformao social (47). Os laboratrios criados seriam ConecTAZes, numa clara referncia ao conceito de TAZ de Hakim Bey (48), no que denominam instncias temporrias ou permanentes de uso de tecnologia metareciclada. O MetaReciclagem surgiu da rede do Projeto Metfora, espcie de chocadeira colaborativa, como descrito no livro verde do MetaReciclagem (49), que propunha gerar projetos independentes voltados educao, tecnologia, arte e design, em vista da necessidade de uma estrutura tecnolgica livre e autnoma. A idia do MetaReciclagem se baseia, ento, nos princpios: de reapropriao tecnolgica, desmistificando a mquina-computador como um quebra-cabeas simples, que deve ser aberto e exposto, desmistificado, reapropriado; de tecnologia social, como meio de agregar pessoas, promovendo o intercmbio de idias e cooperao; do software livre, por entender o conhecimento como bem coletivo, aproprivel; e a descentralizao integrada, por listas de discusso, perfazendo a troca de conhecimento e oportunidades entre os membros dos diversos esporos do projeto. Alm disso, a possibilidade de replicao do modelo, a valorizao da autonomia e do aprendizado, fazem do MetaReciclagem, sobretudo, um facilitador de troca de aes, de disseminao atravs do compartilhamento social das aes. Uma das formas pelas quais isso se d e que mais aproximam o projeto dos propsitos deste ensaio a intimidade gerada em relao s mquinas, principalmente durante a feitura de oficinas e instalao de laboratrios com comunidades pouco ou nada afeitas ao uso de computadores. Normalmente distanciados em sua assepsia e frieza de design, os computadores so aqui redecorados, literalmente apropriados e modificados em sua aparncia externa, permitindo uma maior proximidade com o pblico que o utilizar. Ao estimular a pintura das carcaas das CPUs e monitores por parte dos participantes, com suas prprias temticas pessoais ou comunitrias, bem como promovendo o conhecimento do mecanismo e estrutura interna das mquinas, sua reciclagem e manuteno, o MetaReciclagem no apenas compartilha socialmente um conhecimento e propicia uma intimidade antes pouco aventada em relao a computadores, como redesenha a prpria noo de incluso digital, cuja abordagem por parte de certas estratgias de governos locais de desenvolvimento social no Brasil poucas vezes atentou para detalhes mais subjetivos daqueles que acessariam estas mquinas ou mesmo que o conhecimento de sua estrutura interna, funcionamento ou reciclagem poderia gerar novas possibilidades profissionais ou similares. Semelhante ao projeto do Metareciclagem o ingls Redundant Technology Initiative (RTI), que trabalha igualmente com reciclagem de computadores, com criao de instalaes artsticas low-tech usando material descartado de computadores (tambm uma prtica de seu equivalente brasileiro), e prov espaos de acesso como o Access Space, com mquinas recicladas rodando linux (50). Para os membros do RTI, fundamental trabalhar com tecnologias de custo zero, e o problema criativo seria, ento, fazer algo estimulante a

  • partir disso. Como pensa James Wallbank, fundador do RTI, alta tecnologia no significa alta criatividade, alm da sucata tecnolgica tambm ter seus upgrades todo ano, devido mesmo rapidez autofgica da indstria informtica. Desmistificando a tecnologia, Wallbank acredita que se possa fazer coisas belas (e baratas) reaproveitando a tecnologia de uma forma para a qual ela no foi pensada: ns simplesmente ignoramos as idias do fabricante quanto para qu estas mquinas foram planejadas (51). Estes projetos, bem como outros semelhantes certamente h dezenas deles por todo o mundo, sob facetas as mais diversas -, tentam mostrar que a tecnologia no um bicho de sete cabeas, mas que pode ser abordada, desconstruda e re-construda com criatividade e de forma ldica. No por acaso, a noo de engenharia reversa (ou seja, o procedimento, normalmente corporativo, de desmontagem de uma mquina pela companhia concorrente para descobrir os segredos de fabricao), ou sua metfora, so constantemente invocadas por participantes destes grupos como procedimento inspirador em refletir a prxis da reciclagem. Que mais seria a reciclagem de computadores para depois rod-los em software no-proprietrio seno uma engenharia reversa da prpria lgica do mercado? Alm disso, tais projetos se aproximam muito das idias de hardware livre ou open hardware, que englobam uma mirade de organizaes, grupos e coletivos (52) interessados em trazer a filosofia do software livre para a da produo de hardwares. Ocorrem, no entanto, algumas dificuldades bsicas em relao a este movimento, conforme diz o prprio Richard Stallman, qual seja, o de que copiar um hardware no o mesmo que copiar um software, dada a materialidade mesma dos hardwares (obviamente, no existem copiadoras automticas de hardware), e que no se pode baixar um hardware pela net (53). Alm disso, h certa confuso corrente em relao ao free do software livre, ou seja, confundindo-se o livre com o grtis (que significam a mesma palavra em ingls), diferena que, em se tratando de hardware, fica muito mais evidente. Avanos nesse sentido tm se dado muito mais na liberao do design do hardware do que na maquinaria propriamente dita. O que projetos como Metareciclagem e RTI fazem dar um passo alm dando um passo atrs, ou seja, utilizando material descartado (literalmente, livre ou grtis), e reutilizando-o. As prticas do MetaReciclagem, do RTI e projetos similares so tambm parte de uma construo sociotcnica, conforme o viam os tericos do construtivismo social, uma vez que se encontram entranhados num processo que envolve a negociao de diversos sujeitos sociais, numa cadeia que vai do descarte de mquinas por empresas, da sua coleta, at a montagem dos laboratrios e o processo de aprendizado compartilhado gerado pela reciclagem em si. Se no produzem exatamente mquinas adaptadas aos propsitos socialistas como o pretendia Feenberg (54), produzem mquinas socializadas. E, como assumido pelo prprio MetaReciclagem, o que desenvolvem so tecnologias sociais. Se seguimos as modalidades de adequao sciotcnica, prprias da tecnologia social (TS) conforme expe Renato Dagnino, muitas so aqui perceptveis, como a apropriao, a revitalizao de mquinas e equipamentos, uso de alternativas tecnolgicas (a prpria reciclagem), ou a incorporao tanto de conhecimento cientfico-tecnolgico existente quanto novo.

  • Enquanto inovao cultural, tais projetos realizam uma reinveno de uma tecnologia existente, como teorizou Ron Eglash, modificando-lhe tanto a semntica e o uso quanto a estrutura, alterada durante e por meio da reciclagem. As tecno-gambiarras recicladas tambm efetuam um desvio de funo, ao transgredir o uso corporativo antes pensado para angariar lucros e rodar software proprietrio e recontextualizando as mquinas ao socializ-las em comunidades de forma barateada ou gratuita e rodando software livre. Seus agentes so igualmente power users na medida em que tem acesso s informaes e ao meio digital e as compartilham nas comunidades em que trabalham. Uma outra modalidade de reciclagem se deu nas ocupaes de fbricas abandonadas em vrios pases da Amrica Latina ao longo da ltima dcada e comeo deste sculo. Em face das instabilidades econmicas que afligem o continente e das falncias que fecharam diversas fbricas, tanto na Argentina, no Brasil, como no Uruguai, os trabalhadores de vrias dessas fbricas decidiram ocupar seus antigos locais de trabalho e voltar a produzir, neste caso, sem a presso de um patro, muitas vezes sem a chancela por vezes repressora (ou alienante) de engenheiros ou tecnocratas, e, conseqentemente, sem a diviso salarial, ou seja, praticando a repartio igualitria dos salrios. Em vrios casos assumindo a autogesto, esse fenmeno novo e recente abalou algumas crenas dadas como indubitveis na atual configurao do neoliberalismo globalizado. Entre as diversas questes interessantes levantadas pelo movimento das fbricas recuperadas, Henrique Tahan Novaes, economista da Unicamp, em ensaio sobre o tema, nos revela, por exemplo, o compartilhamento que se deu de conhecimento na manuteno das mquinas, a produo de novos produtos, pequenas adaptaes no maquinrio, um aumento substancial da vida til dos equipamentos e instalaes, inovaes sociais como a criao de espaos de recreao e produo cultural, mas acima de tudo um aumento da criatividade, o florescimento da inventividade, a estabilidade no emprego e um trabalho mais tranqilo (55). O que para muitos engenheiros e economistas era algo invivel, ao se basear numa tecnologia defasada e obsoleta vem no apenas mantendo postos de trabalho, mas tambm gerando pequenas inovaes. Um fenmeno mais que curioso se deu no caso das fbricas recuperadas na Argentina, onde a intensidade dos conflitos foi relativamente maior que no Brasil, e que assistiu a uma espcie de ludismo s avessas. Visando impedir o controle das fbricas pelos trabalhadores, muitos patres comearam a ordenar a destruio dos equipamentos centrais e das instalaes, a retirada de peas, roubos, saques de mquinas e sabotagem, muitas vezes feitos por pessoal altamente qualificado. Para impedir que as empresas fossem totalmente saqueadas ou destrudas pelos patres, os trabalhadores muitas vezes optaram por acampar frente fbrica ou mesmo dormir no local de trabalho, guardando os seus meios de produo. Curiosamente, o que nos diz um fato como esse? Patres utilizando tticas de trabalhadores enfurecidos, praticando sabotagem, remontando s prticas luditas de destruio do maquinrio industrial de sculos atrs? As contradies aqui abundam. Mas os fatos no so mais paradoxais do que a contradio mesma da economia neoliberal, exposta em toda sua nudez totalitria e insolvel. A grande novidade trazida pelos trabalhadores das fbricas ocupadas, ao defenderem suas mquinas contra a fria dos patres e da polcia, nos aporta dois fatos importantes. Primeiro, a inverso que aqui se d acrescenta muito mera constatao de que seu uso seja

  • uma espcie de reciclagem, como j dito, da maquinaria utilizada. Tal reciclagem, afinal, no engloba apenas uma reapropriao do aparato de produo, mas igualmente sua utilizao com sinais invertidos. Em que pesem todas as fraquezas e riscos do movimento das fbricas recuperadas, como os apontados por Novaes em seu estudo, seja o perigo de burocratizar o conhecimento, de voltar s velhas hierarquias organizacionais de antes da recuperao, de cair numa anarquia produtiva de cada trabalhador por si ou de virar uma via de controle social dos pobres, a questo que os fatos falam mais alto. Socialismo de mercado ou no, tais ocupaes com certeza permitiram a apropriao, mesmo que ilegal na maioria das vezes, das foras produtivas, a ampliao dos conhecimentos das fases de produo pelos trabalhadores e modificaes na organizao do processo de trabalho. Em segundo lugar, as fbricas recuperadas viraram tambm espaos de produo de tecnologia social. No apenas se d uma nova configurao scio-tcnica, com as tecnologias aqui sofrendo um processo de adequao ao interesse de grupos sociais relevantes distintos daqueles que as originaram, como o processo mesmo de apropriao das fbricas gera a incluso social, revitaliza mquinas e equipamentos, usa tecnologias alternativas convencional, e incorpora conhecimento cientfico tecnolgico novo ou j existente. Podemos tambm notar, partindo de De Certeau, como as fbricas recuperadas fazem parte de uma economia de dom (de doao, de compartilhamento), como taticamente efetuam uma esttica de golpes (por exemplo, as tticas de defesa e conservao do maquinrio), ou como representam uma tica de tenacidade (negando a ordem estabelecida, fazendo as fbricas funcionarem mesmo que na ilegalidade, defendendo arduamente seu territrio). A reciclagem do maquinrio fabril seria igualmente uma adaptao (Eglash), alterando tanto a relao semntica quanto o uso, no caso, passando do controle do empresariado para os trabalhadores, numa inverso absoluta do seu uso corrente. A incorporao a um novo contexto, por sua vez, denota um desvio de funo, como vimos com Kasper. As fbricas recuperadas, ento, so gambiarras tecnolgicas na medida em que no apenas recuperam material que em outra circunstncia viraria sucata industrial, indo parar num ferro velho ou vendida a preo irrisrio, como transformam totalmente a lgica de uso das mquinas e o contexto circundante. Como resume Novaes, uma coisa certa: fazer parte do processo de tomada de uma fbrica e coloc-la em marcha novamente, alm de desnudar uma realidade aparentemente natural, a melhor aula que um trabalhador pode ter da concepo de Estado, da luta de classes (56). 3. O artista como produtor Da gambiarra tecnolgica como prtica artstico-ativista O mundo atual apresenta ao artista exigncias inteiramente novas: espera dele no quadros ou esculturas de museus, mas objetos socialmente justificados por sua forma e destinao Nikolai Tarabukin, O ltimo Quadro do Cavalete Mquina Ligaes entre prticas artsticas e a inveno/alterao de mquinas no so nenhuma novidade. Engenhocas imaginadas ou tentadas por artistas povoam a imaginao humana j de longa data, se pensamos em criadores como Leonardo da Vinci ou Athanasius Kircher (57), para ficarmos em exemplos bem remotos. Por sua vez, os campos cada vez mais

  • amplos da chamada arte e tecnologia, da mdia-arte e da arte digital, com intensificado desenvolvimento desde o fim da segunda grande guerra, nos oferecem incontveis exemplos de experimentos, invenes, e intervenes em mquinas e aparelhos, permitindo novas configuraes, muitas efetivas unicamente no campo restrito das artes. Como ento pensar experimentos e criaes que pudessem ser vistos no apenas como criaes artsticas de mquinas, mas como gambiarras e, consequentemente, como experimentos sociais? Conquanto a dose especulativa e visionria das elucubraes de precursores como os j citados (Da Vinci, Kircher, entre outros), permitisse uma margem de improviso e de erro que poderia mesmo se imaginar suas criaes como proto-gambiarras, a abundncia da espontaneidade criativa era proporcional distncia da realidade social sua volta, no que muitos destes experimentos tm em comum com boa parte da abundante criao maquinal das recentes artes tecnolgicas. Se o isolamento criativo dos primeiros haver sido uma circunstncia das pocas em que viveram, ou de seu estgio tecnolgico, e tenha impedido a aplicabilidade de suas criaes na vida concreta, o mesmo no se pode dizer dos criadores atuais, a quem um libi como o de que a tecnologia seja um processo neutro, como se tem visto desde o incio deste texto, no somente insustentvel, como no justifica uma quase generalizada ausncia de qualquer ligao com a realidade scio-poltica de seu tempo. Mas esse distanciamento nem sempre ter sido assim, ou permanecido assim at a contemporaneidade. Um percurso significativo pode ser iniciado, tanto em termos tericos quanto prticos, em princpios do sculo vinte, mais precisamente na Rssia ps-revolucionria. Um movimento pouco estudado, sucedneo do construtivismo russo, iria aproximar artistas e mquinas de uma forma ainda no vista. Ao contrrio da exaltao dos futuristas italianos, do pessimismo niilista e anti-militarista dos dadastas, ou ainda das idlicas vises de Lger na pintura ou as mquinas celibatrias de Duchamp, entre inmeros outros exemplos, aproximaes entre a arte e a mquina aqui no seriam apenas tpicas ou temticas, mas entrariam na prpria tecnicalidade da produo da mquina, em seu design, constituio ou criao, bem como em sua interferncia no campo social. O movimento produtivista que surge como uma ciso do grupo construtivista INKhUK no incio da dcada de 1920, envolvendo artistas como Aleksandr Rodchenko, Varvara Stepanova, Karl Ioganson ou os tericos Boris Arvartov e Nikolai Tarabukin, acreditar aposentar o cavalete de pintura como obsoleto, pois os artistas entrariam agora na esfera da produo (58). Abandonar a pintura e se voltar para a produo (entenda-se aqui como produo industrial) foi um ponto de intensa e abundante discusso neste grupo, sobre como os artistas participariam deste processo. Como nos mostra a pesquisadora Maria Gough, as formulaes mais usuais variavam entre o construtivista como um ativista ou estudante de politcnicas (Boris Arvatov), o construtivista como artista informado mas tecnicamente inexperiente (Stepanova), o construtivista como membro de um novo grupo de engenheiros-artistas dedicados a revigorar a engenharia industrial sovitica, de acordo com o terico Boris Kushner, ou ainda a formulao do construtivista como inventor. Como dir um de seus membros, Ioganson, os Construtivistas, como so to incorretamente chamados, rejeitam a arte em nome da tcnica e da inveno (59). Para Boris Arvatov, o individualismo da sociedade burguesa no admitia nem sequer a idia, na arte, de uma tcnica mecnica ou de uma tcnica cientfica de laboratrio, pois

  • (s)egundo a esttica burguesa, cairia por terra a liberdade de criao. Pelo contrrio, o problema do instrumento um problema social; s numa sociedade individualista o pincel, o violino etc., so instrumentos de criatividade monopolsticos, objeto de fetichismo. Para o proletariado, classe de produtores conscientemente coletivos, esta limitao cai. Nas suas mos, a mquina, o torno na poligrafia e na tinturaria, a eletricidade, o rdio, o transporte motorizado, a tcnica da luz e assim por diante podem transformar-se em instrumentos de trabalho to artsticos quanto maleveis, mas infinitamente poderosos, pelas suas possibilidades. Portanto o fim da luta revolucionria da arte proletria a aquisio de todos os tipos de alta tcnica com os seus instrumentos, a sua diviso do trabalho, a sua tendncia para o coletivismo, as suas leis. Uma eletrificao original da arte, a engenharia na obra artstica, eis o fim formal da prtica proletria moderna (60). J Nikolai Tarabukin, outro importante terico do produtivismo, demarcar, em seu texto seminal O ltimo Quadro, do Cavalete Mquina, posicionamentos fundamentais para se entender o amalgamento dos artistas com a produo, pensando o artista como uma espcie de mestre, de uma maestria produtivista, onde o contedo est representado pela finalidade e pela utilidade do objeto, por seu tectonismo, os quais condicionam sua forma e sua construo e justificam sua funo e seu destino social. A maestria produtivista se realiza com as mquinas e aqueles que a exercem so artistas-engenheiros ou artistas-operrios no sentido mais amplo desta palavra (61). O conhecimento do artista produtivista, no entanto, no est voltado para criar objetos num sentido estrito, pois a falta de conhecimentos especializados e de experincia prtica pem o artista numa situao embaraosa quando seu trabalho confrontado com o de um engenheiro. Mas Tarabukin nos mostra que a questo no o artista tomar o lugar do engenheiro, conquanto nada o tenha a ensinar do ponto de vista estritamente profissional, j que, desde um ponto de vista metodolgico, o artista no parte de uma tcnica artesanal, mas da coordenao criadora de dois elementos fundamentais do contedo do objeto: seu destino e sua forma. Atravs de uma concepo particular do contedo, inerente s condies da criao artstica, o trabalho do artista engenheiro se diferencia do engenheiro-arteso, e o objeto da maestria produtivista do objeto simplesmente industrial (62). Na produo, a maestria no um fim em si mesma, como na arte pura, mas um meio para alcanar fins utilitrios. Alm disso, no so objetos acabados o seu resultado mais palpvel, mas o processo e sua organizao e a que incide a grande contribuio do artista produtivista, conforme pensa Tarabukin: O problema da maestria produtivista no pode ser resolvido atravs de uma ponte superficial entre a arte e a produo, mas unicamente por sua relao orgnica, pelos vnculos entre o prprio processo de trabalho e a criao (63). Num utopismo visionrio que em muito antecipa a atual indiferenciao que atinge a esfera do trabalho, conforme pensado pelos tericos do trabalho imaterial, onde todo o trabalho intelectual, artstico, a criao mental em suma, vira a base da produo capitalista, Tarabukin no concebe o papel do artista como um emprego especial, mas como um participante no processo geral de produo nos empregos j conhecidos, do engenheiro ao operrio, empregos desempenhados por todos os que participam no processo de produo coletiva, no de uma fbrica isolada, mas do complexo sistema da indstria em sua totalidade, e que elaboram os valores da cultura material em seu conjunto. A noo de artista na produo abarca desde o engenheiro que dirige o andamento geral do processo

  • at o operrio especializado que trabalha com sua mquina. O fim do posto de trabalho na fbrica em seu sentido amplo engloba a todos os participantes, e no futuro todos os participantes devero ser artistas, cada um em sua especialidade (64). Dentro da perspectiva revolucionria a que se prope Tarabukin, mesmo uma noo de arte proletria superada frente aplicabilidade do produtivismo artstico: Nas condies do estado socialista russo, considero que a idia progressista no a da arte proletria, mas a maestria produtivista, que parece a nica capaz de organizar no apenas nossas possibilidades de orientao atuais, mas tambm nossa atividade real. Nela a arte e a tcnica se confundem. A tcnica se transforma em arte quando tende conscientemente para a perfeio. Franklin definia o homem como um animal que fabrica ferramentas (tool-making animal). Pode-se definir o artista produtivista como um animal que se esfora conscientemente para criar as ferramentas mais perfeitas. A maestria produtivista, como atividade tcnica, uma atividade utilitria. A arte antiga era um luxo que embelezava a vida. Sua forma era individualista e impressionista. A maestria produtivista funcional, construtivista em sua forma e coletivista no ato processual-criativo(65). Boris Kushner, pensador contemporneo de Tarabukin e Arvatov, pensar a figura do engenheiro-artista. Para ele, o artista deveria tomar o lugar do engenheiro no processo produtivo. Em seu importante ensaio Os organizadores da Produo, Kushner apresentar uma taxonomia de engenheiros na indstria de sua poca, composta do engenheiro de oficina, que fica no cho de fbrica; os engenheiros de clculo e os engenheiros-construtores, que se encontram no escritrio tcnico da fbrica; e, finalmente, os engenheiros-organizadores, que so responsveis pela organizao da prpria produo (66). Nem essencial nem imutvel, cada categoria de engenheiro sugerida por Kushner apresentada como emergente e histrica. O objetivo de introduzir tal taxonomia seria abrir um espao para o artista de sua poca na produo industrial: O artista deve entrar na produo. Temos propagandizado esta idia, que est sendo agora amplamente popularizada, j por mais de dois anos. E mesmo hoje, os artistas, mesmo os mais dialeticamente sofisticados e marxistas, esto perguntando espantados: Mas como entraremos na produo e o que faremos quando estivermos l? Vocs sabem que l h engenheiros que, em relao a questes de produo, conhecem tudo e sabem como fazer tudo, que organizam e dirigem todo o servio do comeo ao fim. O que podemos adicionar ao conhecimento, ao know-how vasto e universal dos engenheiros? Devemos nos dirigir s instituies relevantes e nos tornarmos ns mesmos engenheiros? Mas vocs sabem, ento deixaramos de ser artistas. Tais so falsos problemas. Isso uma fetichizao da engenharia (67). Para Kushner, seus colegas estariam perdidos nesse dilema por conta de idealizarem ou glorificarem o engenheiro. Ao pensarem dessa forma, no conseguiam compreender as fraquezas dos engenheiros-construtores (segundo lugar na sua taxonomia e a mais relevante para os construtivistas russos) e assim tambm no conseguiam compreender que eles tambm tinham potencialmente muito para contribuir: O pior de tudo o estado das coisas em relao aos engenheiros-construtores. E este fato tem importncia decisiva para nosso problema fundamental da entrada do artista na produo. Os engenheiros-construtores so os inventores de objetos, os organizadores de materiais, os trabalhadores da forma. O mbito de sua atividade em princpio o mesmo daquele dos artistas representacionais [...]

  • Para a tarefa de dar forma a objetos, os engenheiros-construtores no estabeleceram nenhuma cincia, nem qualquer tipo de sistema emprico, tal como, por exemplo, a tecnologia ou o estudo da resistncia dos materiais. A experincia prtica e a tradio so seus nicos recursos; desenvoltura e inventividade so seus nicos mtodos [de trabalho]. Estes so exatamente os mesmos recursos e mtodos que so usados por artistas em seu trabalho. A diferena que no caso de artistas, sua experincia prtica e tradio so mais amplas, mais qualificadas e mais variadamente informadas...Portanto, artistas j poderiam agora, com grande sucesso, substituir os engenheiros-construtores. Obviamente, para assim faz-lo, necessitariam preliminarmente dominar aqueles conhecimentos auxiliares essenciais para a construo produtiva [...]. Em outras palavras, eles devem se tornar engenheiros-artistas [...].(68) O produtivismo certamente no produziu uma viso nica entre seus participantes. Da mesma forma que as diferentes teorias formularam modos diversos de participao dos artistas na produo, as criaes mesmas de seus artistas tiveram nuances e resultados os mais variados. Embora os trabalhos mais conhecidos de Rodchenko sejam na rea do design grfico e da fotomontagem, ele tambm criou, por exemplo, estruturas desmontveis e funcionais destinadas a espaos pblicos com o fim de exibir e transmitir propaganda visual e auditiva, como o Projeto para um Quiosque de Rua, de 1919. Varvara Stepanova tambm se destacou na criao de designs e padres, particularmente na criao destes para tecidos e roupas, bem como Liubov Popova. As colaboraes de Stepanova e Popova com a indstria sovitica, se transitrias, foram importantes como os nicos objetos produtivistas/construtivistas realmente fabricados em massa. Os casos especficos de Rodchenko, Stepanova e Popova so interessantes, como pensa a estudiosa Christina Kiaer, porque, ao invs de interferir nos meios de produo como era pensado por boa parte do grupo produtivista (recorde-se aqui, por exemplo, a nfase de Tarabukin mais no processo que no objeto final), eles se voltaram a esse componente essencial de qualquer economia de mercado, a mercadoria, na esperana de que mudando sua prpria natureza alterariam fundamentalmente seu modo de consumo (69). Segundo Kiaer, em seu livro Imagine no Possessions: The Socialist Objects of Russian Constructivism, os trs artistas tentaram imaginar como seria uma mercadoria comunista, e seu sonho era criar um novo tipo de coisa, algo que no pudesse ser possudo por si, por que livre participante da vida social, um contrafetiche. Indo na direo oposta do que Marx via como o fetichismo da mercadoria capitalista, esse novo objeto revelaria seu processo de produo, apelaria ao sentido de jogo e teria mltiplos usos, ou seja, despertaria seu consumidor. Outro artista que tambm criaria estruturas e dispositivos de uso social pronunciado seria Gustav Klucis, que produziu, entre outros, quiosques de propaganda desmontveis, torres de propaganda para festividades revolucionrias, algumas com alto-falantes e outros implementos para chamar a ateno das massas, em especial seu Radio Orador, de 1922, que misturava o uso do rdio, alto-falantes e estrutura desmontvel flexvel, e propagava programas de rdio em praas pblicas na Unio Sovitica (poucas pessoas possuam rdio naquela poca), como os discursos do 4 Congresso do Cominterm e o 5 aniversrio da Revoluo de Outubro.

    giseli vasconcelos

    giseli vasconcelos

  • Foi de Vladimir Tatlin que, embora no sendo parte integrante do grupo produtivista mas ainda assim compartilhando o zeitgeist ele tambm desenhara uniformes de trabalho e um fogo, planejado para ser facilmente fabricado em caso de escassez de materiais de qualidade na poca -, que ficou um dos mais emblemticos testemunhos do esprito utpico incorporado nesta poca. Seu Letatlin, a bicicleta area do povo, supostamente uma mquina de vo a ser manejada por um homem, mostra economia na construo e se baseia em materiais facilmente encontrveis, com sua estrutura graciosamente curvilinear to prxima dos desenhos de Da Vinci, numa peculiar combinao do pragmtico com o visionrio. A mquina de vo pessoal indicava, por exemplo, que todo cidado sovitico poderia ser mvel e viajar livremente. Um caso particularmente interessante e significativo de artista produtivista seria o pouco conhecido Karl Ioganson. Membro do INKhUK, Ioganson foi um pioneiro em muitos sentidos. Como nos mostra a terica Maria Gough, j entre suas contribuies aos estudos visuais do grupo, Ioganson proporia estruturas flexveis ligadas e equilibradas por fios que ele chamaria de Construes Espaciais, um invento/experimento - a palavra escultura estava banida do vocabulrio do grupo, como de resto quaisquer outras referncias dita arte pura que anteciparia em trs dcadas os sistemas de tensegridade tal como conhecidos hoje na engenharia de construo, redescobertos em 1948 por Kenneth Snelson e desenvolvidos nos anos 1950 pelo arquiteto Buckminster Fuller. Ioganson inventou uma forma de construo dinmica, econmica e aplicvel a vrios tipos de estruturas, de pontes a diversas outras formaes arquitetnicas. Mas Ioganson levaria ainda mais longe o ideal produtivista ao ir trabalhar numa fbrica ao final de 1923 como cortador de metal. Ali Ioganson participaria ativamente da implementao tecnolgica da fbrica criando vrios dispositivos para o aprimoramento do processo produtivo, mquinas de tratamento de metais no-ferrosos que aceleravam e racionalizavam a produo (70). A experincia de Ioganson leva a aspirao produtivista a graus to somente sonhados no movimento, e seu trabalho consciente como inventor (ele se denominar konstruktor) (71) ampliar o conceito mesmo de inveno como um processo aberto, um processo sem fim determinado, que no prev de forma definitiva o resultado ou os usos que venham a ser feitos da criao. Tambm ilumina um dos aspectos mais significativos do produtivismo enquanto artistas intervindo na produo tecnolgica de seu tempo. Conquanto no tenham sido experincias de grande alcance, tanto o trabalho de Ioganson na fbrica quanto as produes de Stepanova e Popova com seus desenhos e padres para roupas produzidas em massa servem para trazer luz a forma peculiar e original com que o produtivismo artstico juntou questes como a posse e controle dos meios de produo, a urgncia na produtividade do trabalho, a alienao do trabalho (tema caro aos produtivistas), a viso de que a arte pura j estava obsoleta e no supria as necessidades mais candentes de sua poca, e um uso e manipulao da tecnologia e das mquinas e aparatos como nenhum movimento artstico anterior j tinha feito. Mas como a arte produtivista se aproxima da prtica da gambiarra? As aproximaes possveis so inmeras. A gambiarra pode ser tanto uma inveno com materiais pr-existentes quanto uma reinveno ou reapropriao. J vimos como a inveno desempenha um papel importante no movimento russo. A gambiarra tecnolgica, tanto quanto a criao produtivista efetua uma alterao no meio de produo, e, dependendo de quem a

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