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Trovadores diaspóricos: tensões civilizatórias entre o sertão e a cidade na Música Popular
Brasileira (1964-1985)
ANDRÉ ROCHA LEITE HAUDENSCHILD1
Introdução
E se você examinar direito, de onde vem esse contingente de criadores? [...] Eles já
comeram tudo e já chegam aqui prontos pra explodir, mesmo. É aqui que começa a
batalha. [...] Os caras chegam nômades, entram na tua cozinha pra comer, devorar o
que tiver lá. E os assentados querem que você peça licença, que tenha paciência, que
tenha vergonha de pedir, seja humilde, entendeu? Mas já não somos como na
chegada de Caetano, calados e magros esperando o jantar. Este pessoal que chega
pensa muito melhor que o pessoal que já tá aqui. Chega de todo lugar, Minas, Bahia,
Manaus, Recife, Pernambuco. Chega de tudo quanto é interior. Chega como nuvem
de gafanhoto devorando tudo (CAPINAN, 2008, p. 127).
O depoimento do poeta e compositor baiano José Carlos Capinan, realizado em 1972,
é oportuno para refletirmos sobre o impacto da chegada de toda uma geração de cantores e
compositores nordestinos ao tão almejado “Sul maravilha”, durante as décadas de 1960 e 70.2
Sua indagação sobre “de onde” vêm esses “criadores” que “já comeram de tudo e já chegam
aqui prontos pra explodir”, alude antropofagicamente ao conceito de locus de enunciação
(BHABHA, 2005, p. 37-38), o qual constata que a construção do sujeito discursivo não é
apenas uma relação entre um “eu” e um “outro”, mas se dá através de um processo de
hibridização entre as diferentes culturas do sujeito “colonizador” e do “colonizado”, criando
um “terceiro espaço” ambivalente inerente ao próprio ato de tradução cultural do discurso
criativo. Ora, não seria o terreno de nossa canção popular ao longo do século XX, um terceiro
espaço discursivo entre as culturas rurais provindas do campo (de certo modo, “colonizado”)
e as metropolitanas gestadas pelo mundo urbano (“colonizador”), local dá onde emerge o
hibridismo de diversas identidades poético-musicais em trânsito?3
1 Professor com doutorado em Literatura pela UFSC/Universidade Federal de Santa Catarina atuando em
projetos de pesquisa voltados ao universo da História Social e da Música Popular Brasileira. Realiza atualmente
estágio de pós-doutorado, com apoio do CNPq, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da
UFU/Universidade Federal de Uberlândia, sob a supervisão do Prof. Dr. Adalberto Paranhos. 2 A expressão “Sul maravilha”, cunhada pelo cartunista mineiro Henfil no jornal “O Pasquim”, em meados dos
anos 1970, alude ao imaginário social de toda uma geração de migrantes provindos, majoritariamente, das
regiões Norte e Nordeste do país. Sujeitos em trânsito que se transladavam para as capitais do Sudeste movidos
pelo desejo de condições melhores de sobrevivência e pela atração da propaganda desenvolvimentista do regime
militar nesse período. 3 O processo de constituição da identidade abarca múltiplas interpretações de pesquisadores contemporâneos,
tais como Stuart Hall, que afirma que “na situação da diáspora, as identidades tornam-se múltiplas” (HALL,
2008, p. 27) por serem, socialmente e culturamente, “celebrações móveis” (HALL, 2001, p. 13). Nesse sentido,
deve-se entender a fecunda versatilidade destes cantores-compositores nordestinos como tradutores de múltiplas
identidades, pois assim como os mediadores culturais afrodescendentes advindos das novas diásporas criadas
2
A afirmação de Capinan de que “já não somos como na chegada de Caetano, calados e
magros esperando o jantar”, alude à experiência diaspórica de toda uma geração de músicos e
compositores nordestinos, fazendo referência a dois dos principais clássicos do disco-
manifesto Tropicália ou panis et circenses (Philips, 1968), as canções: “Panis et circensis”, de
Caetano Veloso e Gilberto Gil, e “Miserere nobis”, de sua própria autoria em parceria com
Gilberto Gil. A primeira delas tem como pano de fundo uma refeição doméstica embalada
pelo tilintar de pratos, talheres e pela conversa em família. Uma ambientação que remonta
ironicamente ao cotidiano das famílias brasileiras de classe média deste período histórico,
acomodadas na zona de conforto de suas próprias vidas privadas (“Mas as pessoas na sala de
jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”), quando, logo em seguida, seus versos irão
transgredir violentamente essa situação de conformidade (“Eu quis cantar/ Minha canção
iluminada de sol/ Soltei os panos sobre os mastros no ar/ Soltei os tigres e os leões nos
quintais), Uma canção cujo sujeito discursivo pretende se rebelar contra o “pão e o circo” de
cada dia, ao implodir o conformismo romântico das relações afetivas (“Mandei fazer/ De puro
aço luminoso um punhal/ Para matar o meu amor/ E matei”) e semear sua vontade de
transformação desta realidade (“Mandei plantar/ Folhas de sonho no jardim do solar/ As
folhas sabem procurar pelo sol/ E as raízes procurar, procurar”), enquanto a passividade
familiar se perpetua dialeticamente pela repetição dos versos iniciais (“Mas as pessoas na sala
de jantar/ São ocupadas em nascer e morrer”).4
Já a segunda canção, “Miserere nobis”, faixa inaugural deste álbum antológico,
aparenta ser uma resposta à composição anterior. Ao ouvirmos seu refrão entoado
melancolicamente por Gilberto Gil: “Miserere nobis/ Ora pro nobis (“Tende misericórdia de
nós/ Orai por nós”)/ É no sempre será, ô iaiá/ É no sempre, sempre serão”, e em seguida: “Já
não somos como na chegada/ Calados e magros, esperando o jantar/ Na borda do prato se
limita a janta/ As espinhas do peixe de volta pro mar”, reconhecemos que esses versos
revelam a difícil realidade da “chegada” destes mediadores culturais - em trânsito diaspórico
entre as duas principais metrópoles do país (Rio de Janeiro e de São Paulo) e, ao mesmo
pelas migrações pós-coloniais, eles “devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas
linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas” (Idem, ibidem, p. 89). 4 Persiste um propalado sentimento de resistência do sujeito poético-musical nas canções de protesto deste
período, que se manifesta como uma forma soteriológica de se acreditar coletivamente nos dias melhores que
ainda “virão” em meio à total supressão dos direitos civis imposta pela ditadura militar instaurada neste período,
o propalado “Dia-que-virá” (cf. GALVÃO, 1976, p. 95).
3
tempo, apontam para alguns dos princípios da “Estética da fome” (1965) de Glauber Rocha.5
Canção que denuncia a necessidade de alimento cultural, assim como de uma emergente e
necessária utopia revolucionária em total sintonia com os preceitos glauberianos. Afinal, os
tropicalistas (e Capinan era, por excelência, um deles) queriam aguçar a relação entre arte,
política e sociedade, ao levar ao limite as possibilidades de se fazer música popular em nosso
país e de se produzir significações que não eram imediatamente consumíveis por seus
ouvintes (FAVARETTO, 2003). Como alude de forma alegórica o seu final enigmático: “Bê,
rê, a: bra/ Zê, i, lê: zil/ Fê, u: fu/ Zê, i, lê: zil/ Cê, a: ca/ Nê, agá, a, o, til: nhão/ Ora pro nobis”,
formando cifradamente as palavras “Brasil, fuzil, canhão”, ao som intermitente de canhões de
guerra.
Antecedentes históricos e musicais
“Vou me embora pro sertão/ Oh viola meu bem, viola...
Que eu aqui não me dou bem/ Oh viola meu bem, viola...
Sou empregado da leste/ Sou maquinista do trem”
(“Viola meu bem”, Samba de roda de domínio público)6
O processo de industrialização nacional no decorrer do século passado foi marcado por
um intenso movimento migratório em direção às principais capitais do Sudeste. Desde o final
do século XIX, os habitantes rurais das regiões Norte e Nordeste do país foram
gradativamente desalojados de suas terras pelas condições precárias de subsistência (a
estagnação econômica, a perpetuação do coronelismo político e as constantes secas), enquanto
eram atraídos pela prosperidade econômica de outras regiões do território nacional. Tais
5 Segundo Glauber, a “fome latina” não é apenas um sintoma, ela “é o nervo de sua própria sociedade”. Sendo
que a “trágica originalidade” do Cinema Novo diante do cinema mundial está no fato de que “nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”
(ROCHA, 1981, p. 30). Como ele ainda explica: “De Aruanda a Vidas Secas, o cinema novo narrou, descreveu,
poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo
raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens sujas, feias,
descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras; foi esta galeria de famintos que identificou o cinema novo
com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos
produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. [...] Estes são os filmes
que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria
moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem
esconder a fome que está enraizada na própria incivilização” (Idem, ibidem, p. 30-31). 6 Gravado por Dona Edith de Oliveira, mas sendo mais conhecida como “Dona Edith do Prato” (em VELOSO,
Caetano. LP Araçá Azul, Philips, 1973).
4
fatores foram determinantes para a aceleração do processo migratório sertanejo e nordestino a
partir das décadas de 1930 e, especialmente, a partir da primeira metade da década de 1950
durante o período do segundo governo Vargas, quando essa migração torna-se ainda mais
intensa (SINGER, 1976; DURHAN, 1978). Segundo os dados demográficos, o êxodo rural
brasileiro acentua-se a partir da década de 1930 com a dinamização da indústria nacional,
quando o número de migrantes nacionais ultrapassa o número de imigrantes estrangeiros e,
assim, vai ganhando mais intensidade a partir de meados dos anos 1950, até atingir seu ápice
entre as décadas de 1960 e 80. Cabendo ressaltar que no decorrer das décadas de 1960 e 80,
mais de 30 milhões de pessoas abandonaram a vida rural para viver nas cidades, sendo que em
1970, mais da metade da população nacional já era urbana.7 Entretanto, a maioria da
população camponesa vivia ainda mergulhada na mais absoluta pobreza, enquanto “o grosso
dos trabalhadores comuns pode se incorporar, ainda que mais ou menos precariamente, aos
padrões de consumo moderno” (MELLO; NOVAIS, 1998, p. 622).
O fenômeno da migração rural-urbana foi um elemento transformador da sociedade
brasileira como um todo “na medida em que ele se reflete em transformações no nível do
comportamento dos sujeitos que vivem esse processo. Em certo sentido, pode-se dizer que o
migrante vive e realiza de modo concentrado modificações nos padrões de comportamento e
nas relações sociais” (DURHAN, Op. cit., p. 8).8 Sendo assim, o impacto causado pelo êxodo
rural acarreta, na maioria das vezes, em detrimento dos sujeitos sociais que precisam se
adaptar à nova realidade dos centros urbanos, pois, como sabemos, a experiência urbana é
capaz de desagregar os valores conquistados pela práxis coletiva da vida deixada para trás.
Como assim irão entoar paradigmaticamente os versos de “Lamento sertanejo” (1975), de
Dominguinhos e Gilberto Gil, ao explicitarem o sentimento de desassossego destes
mediadores culturais ao tomarem consciência de seus próprios desenraizamentos: “Por ser de
lá/ Do sertão, lá do cerrado/ Lá do interior do mato/ Da caatinga do roçado/ Eu quase não
saio/ Eu quase não tenho amigos/ Eu quase que não consigo/ Ficar na cidade sem viver
7 Conforme as Estatísticas Históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1950 a 1988 (Rio
de Janeiro: IBGE, 1990, p 36-7) e o Anuário estatístico do Brasil (Rio de Janeiro: IBGE, 2001, p. 2-15). 8 O êxodo rural gerou estudos da historiografia social brasileira que se tornaram referência para o entendimento
de nossas migrações internas, tais como: “A Sociedade Industrial no Brasil” (1971) e “Desenvolvimento e
mudança social” (1976), de Brandão Lopes; o artigo de Paul Singer, “Migrações internas: considerações teóricas
sobre o seu estudo” (1976) e “A caminho da cidade”, de Eunice Durhan (1978). Tais obras baseiam-se no
paradigma histórico-estrutural de que as migrações foram resultados de fatores de expulsão e de atração,
expressando as transferências de populações de regiões consideradas “estagnadas” e “arcaicas” para regiões em
desenvolvimento.
5
contrariado”. E, também, em “Quero ir” (1971), de Raul Seixas e Sérgio Sampaio: “Quero,
quero, quero/ Quero ir/ O sol daqui é pouco/ O ar é quase nada/ A rua não tem fim/ Eu volto
prá Bahia/ Ou para Cachoeiro de Itapemirim”.9
Como veremos, entre a resistência ao regime militar e a necessidade de adaptar ao
novo mundo cosmopolita do “Sul maravilha”, emergirá uma renovada experiência diaspórica
vivenciada pelos compositores nordestinos da canção popular brasileira – experiência
entendida como trânsito físico e metafórico entre os mundos culturais do “sertão” e da
“metrópole”.10 Uma experiência que será determinante para as múltiplas elaborações que irão
se estabelecer criativamente em suas obras, pois ao entendermos o modo como que as
representações dialéticas dos mundos culturais do “sertão” e da “metrópole” se disseminam
na canção popular brasileira desse período, poderemos compreender muitos dos atuais
dilemas da nossa cultura contemporânea. Aliás, o conflito entre o campo e a cidade tem sido
central para a interpretação da vida social na modernidade ocidental, funcionando como uma
chave interpretativa que nos possibilita a “adquirirmos consciência de uma parte central de
nossa experiência e das crises de nossa sociedade” (WILLIAMS, 2011, p. 471): uma
antinomia crucial que está atrelada ao próprio modo de produção capitalista que vem
transformando a paisagem cultural do mundo há alguns séculos.
Neste sentido, entendemos a experiência diaspórica nordestina como uma prolífera
tensão civilizatória entre as regiões supostamente arcaicas do Norte/Nordeste e as principais
capitais desenvolvimentistas do Sudeste. Tensão que, por sinal, remonta a uma tradição
temática bastante longeva em nosso cancioneiro popular, como comprovam os versos da
“Canção da seca” (1928), do poeta e cantador potiguar, Jorge Fernandes: “Entrou janeiro e o
verão danoso/ Sempre aflitivo pelo sertão.../ As cacimbas secas nem merejavam.../ E o moço
triste disperançado/ Fez uma trouxa de seus trens.../ De madrugada, sem despedida/ Foi pra
cidade// Foi pra São Paulo/ Pras bandas do sul.../ Foi pra São Paulo/ Foi pra um São Paulo/
9 Essa canção, gravada por seus próprios autores, foi lançada como última faixa do lado A, do inusitado LP
Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10 (CBS, 1971), cujo grupo homônimo era integrado
pelo cantor, dançarino e artista plástico baiano, Edy Star, a cantora paulistana Míriam Batucada, o cantor e
compositor soteropolitano, Raul Seixas, e o cantor e compositor capixaba, Sérgio Sampaio. 10 A origem epistemológica do termo é grega, diasporein, cuja palavra significa “semear” e está relacionada à
“dispersão”. O termo define o deslocamento migratório de grandes massas populacionais originárias de uma
zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas (BONNICI, 2005, p. 23), sendo que chamamos de
“diáspora intracontinental” o movimento migratório produzido especialmente pela fome e/ou por melhores
condições de vida, como no caso dos retirantes nordestinos brasileiros (Idem, ibidem, p. 30).
6
Que ninguém sabe não...”.11 E essa é uma tópica lítero-musical que vai se propagar com
propriedade na canção popular brasileira a partir dos anos 1940 e 50, principalmente, através
da vasta produção musical do nosso “rei do baião”, o cantor, sanfoneiro e compositor, Luiz
Gonzaga, que, “circulando no eixo das cidades mais modernas do Brasil, tocando nas
emissoras de rádio e gravando discos, entrou com o Brasil sertanejo país adentro” (RISÉRIO,
2013, p. 6) e logrou reinventar a cultura musical nordestina em plena sociedade urbano-
industrial brasileira de meados do século passado. Mesmo que para isso, ele precisasse
conceber uma representação identitária vinculada a uma romantização de seu próprio
tradicionalismo sertanejo (TROTTA, 2010, p. 19).12 Aliás, sua obra soube creditar um olhar
renovado aos estereótipos da vida cultural sertaneja propagado há décadas pela literatura
regionalista das primeiras décadas do século XX, indo além das mazelas da seca e do
coronelismo, almejando cantar a “grandeza natural” do homem sertanejo.13
[...] Assim, como que acompanhando o movimento dos retirantes, no ir-e-vir destes,
entre sertão-cidade-sertão, o baião termina por traduzir-se também como um “lá-e-
cá”, e, em meio a tais processos, vai incorporando outras linguagens, introduzindo
outros valores nesse sertão, afirmando as distintividades do mesmo, enfim, vai
construindo interpretações que o distanciam, significativamente, de representações
de outros sertões... (VIEIRA, 2005, p. 02).
Como sabemos, o “sertão” é um construto cultural e uma “alteridade geográfica e
social” assentada por poderosa tradição narrativa do pensamento social brasileiro (VIDAL E
SOUZA, 1997), estando presente no imaginário nacional há muito tempo e fazendo parte da
própria invenção de nosso país. A partir de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, obra que
pode ser considerada como a pedra fundamental do pensamento social nacional sobre a busca
de uma autêntica “brasilidade sertaneja”, estabelecer-se-á a valorização da tipologia do 11 Canção recolhida em Natal, Rio Grande do Norte, em 19 de dezembro de 1928, na segunda viagem
etnográfica de Mário de Andrade pelo Norte e Nordeste do país, entre os anos de 1927-29. O comentário do
poeta modernista é pertinente para compreendermos a vitalidade desta diáspora nordestina já no início do século
XX: “Ultimamente no alto sertão do Rio Grande do Norte, e muito no Ceará também, a emigração pra S. Paulo
está grassando. Centenas de homens, do dia para a noite resolvem partir. Partem, sem se despedir, sem contar pra
ninguém, partem buscando o eldorado falso que nenhum deles sabe o que é... Vão-se embora, rumando pra sul...
Isso Jorge Fernandes está vivendo agora. E isso floresce em poemas de dor, que nem esta marchada”
(ANDRADE, 1976, p. 238). 12 Como aludem, por exemplo, os versos de seu xote “No meu pé de serra” (1945), em parceria com Humberto
Teixeira: “Lá no meu pé de serra/ Deixei ficar meu coração/ Ai que saudade que eu tenho/ Eu vou voltar pro meu
sertão// No meu roçado trabalhava todo dia/ Mas no meu rancho eu tinha tudo que queria”. 13 A obra de Luiz Gonzaga é pródiga em “canções diaspóricas”. Além da canônica, “Asa Branca” (1947),
composta também com H. Teixeira, pode-se elencar entre muitas outras: “Pau de arara” (1952), com Guio de
Moraes, “Triste partida” (1964), com o poeta Patativa do Assaré, “Vozes da seca” (1953) e “A volta da Asa
Branca” (1950), ambas com Zé Dantas (MARCONDES, 2000, p. 342-343).
7
sertanejo como forma de idealização arquetípica, cuja dimensão será considerada apenas no
seu aspecto positivo: um sertão bom e genuíno povoado por seres generosos, fortes e puros
(tipologias gestadas pelo propalado determinismo social do final do século XIX).14 E esse
sertão do homem valente, rude e honrado, onde sopra sempre o vento da liberdade, ficará
impresso nos discursos sertanejos ao longo do século XX e, em boa parte, em nossa canção
popular (assim como nos “baiões gonzaguianos”) como um sentimento coletivo de saudade de
um tempo original, naquilo que é chamado como “o mito do sertão” (PROENÇA, 2004, p.
xlii). Aliás, será esse mesmo sertão mítico que vai se propagar na poética musical de nossa
canção popular. Desde a clássica toada “Luar do sertão” (1914), cujos versos de Catulo da
Paixão Cearense escritos para uma antiga melodia folclórica, recolhida por João Pernambuco,
assim entoam: “Ai que saudade do luar da minha terra/ Lá na serra branquejando folhas secas
pelo chão/ Este luar cá da cidade tão escuro/ Não tem aquela saudade do luar lá do sertão...”,
ao lamento caipira de “Saudade de minha terra” (1966), de Belmonte e Goiá: “De que me
adianta viver na cidade/ Se a felicidade não me acompanhar/ Adeus paulistinha do meu
coração/ Lá pro meu sertão eu quero voltar...”. Cabendo apontar que a “invenção do sertão”
em nosso regionalismo literário da década de 1930 irá contribuir significativamente para a
ratificação do estatuto regional de um “território-sertão”, cujas obras O Quinze (1930), de
Raquel de Queiroz, São Bernardo (1934) e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, irão
cristalizar a imagem da seca e propalar os espaços sertanejos como áreas de domínio de
homens rústicos, sertanejos brutalizados e animalizados pelo ambiente e, sobretudo, pela
miséria e a exploração (LEITÃO JR., 2012, p. 02-07), em total compasso com o referido
sertão mitológico. Sendo que, a partir da produção musical de Luiz Gonzaga, o discurso
imagético do sertão se potencializará ainda mais como forma de representação identitária de
um amplo imaginário social nordestino, como nos informa Jonas de Moraes:
[...] na institucionalização do Nordeste e na criação de uma “identidade” da figura
do nordestino que a musicalidade de Luiz Gonzaga torna-se mnemônica, porque
produz significados, ganhando concretude na memória coletiva do ouvinte, criando
sociabilidades e interagindo no cotidiano como elemento de aprendizagem cultural.
Na esteira histórica de suas produções musicais, Gonzaga traz um enunciado de
14 E não é por acaso que nesta obra: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos
mestiços neurastênicos do litoral” (CUNHA, 2001, p. 207). Segundo essa “lógica euclidiana”, há uma antinomia
entre o jagunço (o “sertanejo”) e o homem do litoral, pois para o primeiro viver em meio às adversidades da
paisagem sertaneja, ele precisa ser “mais tenaz”, “mais resistente”, “mais forte” e “mais duro” do que o homem
do Sul (Idem, ibidem, p. 215).
8
práticas simbólicas performáticas caracterizadas pelo hibridismo cultural da região
Nordeste (MORAES, 2012, p. 89).
Por este viés, podemos compreender os renovados processos identitários das
representações culturais a partir do discurso musical desses mediadores culturais nordestinos
como “práticas simbólicas” e “performáticas” de sujeitos sociais portadores de uma alteridade
(SAID, 2007), que, ao ousarem reinventar as imagens estereotípicas do universo sertanejo,
vivenciaram intensamente os dilemas de seus próprios desenraizamentos na tentativa de
demarcar suas alteridades como forma de resistência à desagregação de suas próprias
identidades.15 Como aludem, por exemplo, os versos de “Disparada” (1965), de Geraldo
Vandré e Théo de Barros: “Prepare o seu coração/ Pras coisa que eu vou contar/ Eu venho lá
do sertão/ E posso não lhe agradar”, ao exprimirem a vontade deste bravo “sertanejo” –
sujeito melopoético da canção – em revelar a total alteridade de seu lugar de origem: o sertão
como seu “lugar de memória”.16 Assim como, os versos iniciais de “Morro velho” (1967), de
Milton Nascimento: “No sertão da minha terra/ Fazenda é o camarada que ao chão se deu/ Fez
a obrigação com força/ Parece até que tudo aquilo ali é seu”. Aliás, não seria esse “sertão”,
mítico e, ao mesmo tempo, real, a própria expressão manifesta de uma experiência diaspórica
que insiste em se alojar no cerne do imaginário social brasileiro? Como assim ecoa a voz
narrativa de Riobaldo Tatarana: "O sertão está em toda parte...” (ROSA, 2001, p. 24).
“O sul, a sorte, a estrada me seduz...”
O impacto causado pela experiência diaspórica acarretou, na maioria das vezes, em
profundas transformações da vida de seus atores sociais que precisavam se adaptar à nova
15 O sentimento identitário de pertencimento ao próprio lugar de origem está onipresente em toda canção
popular, desde os sambas de roda como, por exemplo, “Eu vim de lá” (1980), de Dona Ivone Lara (“Eu vim de
lá/ Eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou/ Pra pisar nesse chão devagarinho”), ao coco de Jackson e
Buco do Pandeiro, “Cantiga do sapo” (1959), (“É tão gostoso morar lá na roça/ Numa palhoça na beira do rio/
Quando a chuva cai e o sapo fica contente/ Que até alegra a gente com seu desafio”) e às modas de viola como,
“Encantos da natureza” (1968), de Tião Carreiro e Luiz de Castro (“Deixa a cidade e vem conhecer/ Meu sertão
querido/ Meu reino encantado”). 16 O conceito sociológico de “lugar de memória”, nos ajuda a investigar as representações dialéticas do “sertão”
a da “metrópole”. Enquanto a “metrópole” pode ser reconhecida como o território real e palpável da
modernidade, o “sertão” constitui-se em nossa cultura popular como sendo um “lugar de memória” físico e,
principalmente, mítico e imaterial. Pois o lugar de memória é a representação de “toda unidade significativa, de
ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez um elemento simbólico do
patrimônio da memória de uma comunidade qualquer" (Pierre Nora apud ENDERS, 1993, p. 133).
9
realidade dos centros urbanos nacionais. Dialeticamente, a experiência urbana nessas
metrópoles também exercia uma forte atração social, cultural e financeira, com a necessidade
profissional destes artistas se estabelecerem profissionalmente no mercado fonográfico
nacional, sediado principalmente no eixo Rio-São Paulo. Neste sentido, é bastante sintomático
o nome do primeiro LP do cantor e compositor cearense Ednardo: Meu corpo minha
embalagem todo gasto na viagem – Pessoal do Ceará (Continental, 1973), cuja primeira faixa
“Ingazeiras”, composta em homenagem ao artista plástico Aldemir Martins, anuncia a
vontade de seu enunciador em partir para o Sul: “Nascido pela Ingazeiras/ Criado no ôco do
mundo/ Meus sonhos descendo ladeiras/ Varando cancelas, abrindo porteiras/ Sem ter o
espanto da morte/ Nem do ronco do trovão/ O sul, a sorte, a estrada me seduz/ É ouro, é pó, é
ouro em pó que reluz”.17 Um sentimento diaspórico associado a esperança de uma vida
melhor, como também se encontra no LP, O Romance do Pavão Mysteriozo (RCA Victor,
1974), do mesmo cantor e compositor. Esse álbum, inspirado em obra homônima da literatura
de cordel nordestina, tem como abertura a canção, “Carneiro”, de Ednardo e Augusto Pontes:
“Amanhã se der o carneiro/ O carneiro/ Vou m'imbora daqui pro Rio de Janeiro.../ As coisas
vêm de lá/ Eu mesmo vou buscar/ E vou voltar em vídeo tapes/ E revistas supercoloridas/ Pra
menina meio distraída/ Repetir a minha voz/ Que Deus salve todos nós/ E Deus guarde todos
vós”.18 Sendo que outro disco sintomático da experiência migratória nordestina neste mesmo
período é o álbum, O Último Pau-de-arara (Polygram, 1973), primeiro long-play gravado
pelo cantor e compositor cearense Raimundo Fagner, onde em sua primeira faixa, "Último
Pau-de-Arara", de Venâncio, Corumbá e J. Guimarães, ele nos anuncia a contrariedade
trasitória de sua própria experiência diaspórica: “Tomara que chova logo/ Tomara/ Só volto
pro meu Cariri/ No último pau-de-arara...”.
17 No texto da capa dupla interna deste mesmo disco, Ednardo e seu parceiro musical Rodger Rogério deixaram
um recado aos ouvintes sobre o processo de criação de seu próprio “banquete antropofágico”: “Meu corpo,
minha embalagem, todo gasto na viagem. Enfim comemos muito a cultura nacional e sempre querendo que a
“comida” fosse melhor. Continuamos nesse banquete, mas, começamos a botar os pratos na mesa para distribuir
o nosso angu...”. Palavras que confirmam o depoimento de Capinan, realizado no ano anterior, sobre esse
“contingente de criadores” que “chegam nômades”, “de tudo quanto é interior” e entram na tua cozinha pra
comer, devorar o que tiver lá. Pois chegam “como nuvem de gafanhoto, devorando tudo” (CAPINAN, Op. cit.). 18 Essa atração pela metrópole também está expressa em “E que Deus ajude” (1979), de autoria de outro
“trovador diaspórico”, o cantor e compositor alagoano Djavan: “Eu vou mudar de profissão/ Eu vou ser cantor/
Eu vou pro Rio de Janeiro/ No Expresso Brasileiro/ pelo mês de fevereiro/ Já cansei de ser ferreiro/ Seu doutor,
oh seu doutor...”, samba gravado em seu primeiro LP, A voz – O violão – A música de Djavan (Som Livre,
1979).
10
Outro “trovador diaspórico” desta geração é o cantor e compositor paraibano, Zé
Ramalho, que chegou ao Rio de Janeiro em 1974, para integrar a banda de apoio do
compositor pernambucano Alceu Valença, no show “Vou danado pra Catende”, que então
estreava no Teatro Tereza Raquel, em Copacabana. Cabendo notar que a inicial sedução das
metrópoles do Sul também exerceria uma força contrária nesses mediadores culturais ao se
transformar em um relativo estranhamento com a experiência urbana naquilo que podemos
denominar de “mal-estar civilizatório”. A canção de Alceu Valença que dá nome a esse show
- inspirada no poema modernista “Trem de Alagoas”, do poeta pernambucano Ascenso
Ferreira -, explicitam o desassossego de seu anunciador em relação à aceleração da vida
cosmopolita: “Ai, Telminha/ Ouça esta carta/ Que eu não escrevi/ Por aqui/ Vai tudo bem/
Mas eu só penso/ Um dia em voltar/Ai, Telminha/ Veja a enrascada/ Que fui me meter/ Por
aqui/ Tudo corre tão depressa/ As motocicletas se movimentando/ Os dedos da moça/
Datilografando/ Numa engrenagem/ De pernas pro ar”.19 Assim como, os versos de “Virgem
Virgínia”, de Alceu e Geraldo Azevedo: “Virgem Virgínia se acabou/ Essa cidade atropela,
atropela, atropela...”.20 Assim como, a “psico-neuro-violência” mental causada pela nova
experiência metropolitana, em “Planetário”, de Alceu Valença: “Esperei no planetário o meu
amor/ Ela foi ao analista e ainda não voltou/ Esperei no planetário o meu amor/ Ela foi ao
analista e ainda não voltou// Os ruídos dos carros/ A moral, a ciência/ A psico-neuro-
violência”, ambas registradas no primeiro álbum desta dupla de compositores nordestinos, o
LP Quadrafônico (Copacabana, 1972).
Conforme comentado, constatamos que foi a partir da produção musical de Luiz
Gonzaga (1912-1989), a partir dos anos 1940 e 50, que a experiência diaspórica vai se
manifestar com um legado de grande expressão poética-musical em nossa canção popular,
19 O LP Molhado de Suor (Som Livre, 1974), primeiro disco solo de Alceu Valença, foi reeditado no ano
seguinte com a inclusão dessa faixa devido à sua participação no Festival Abertura da TV Globo, realizado no
Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1975. Neste evento, essa canção conquistaria o inusitado prêmio
de “incentivo à pesquisa” ao ser interpretada por Alceu Valença (voz e violão), Zé Ramalho (viola), Lula Côrtes
(tricórdio), entre outros músicos nordestinos, em uma formação bastante inusitada para os padrões da MPB na
época com muita influência do rock progressivo, naquilo que o próprio Alceu Valença definiria mais tarde como
"uma banda de pífanos elétrica". 20 O cantor e compositor pernambucano Geraldo Azevedo nos ajuda a entender a contrariedade de sua chegada
ao “Sul maravilha”: “Todo mundo queria vir para o Rio de Janeiro. Porque, naquele tempo, não havia o que há
hoje, as gravadoras. Só existia Rio e São Paulo. Rio de Janeiro, então, era um encanto, Copacabana, aquelas
coisas todas, e eu não queria vir. Eu só sei que eles [Naná Vasconcelos, Teca Calazans e Lizete Margarida] se
reuniram, clandestinamente, compraram um enxoval, duas calças, três camisas, uma mala, marcaram minha
passagem, me empurraram para dentro do avião. Vim e nunca mais voltei” (entrevista para o programa
televisivo, O som do vinil, Canal Brasil, 2010).
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passando a adquirir novos contornos melopoéticos durante as décadas de 1960 e 1970, através
das mãos e da voz de uma safra de músicos - cantores e compositores nordestinos -
pertencentes a uma mesma geração, naquilo que podemos chamar como “os herdeiros de Luiz
Gonzaga”. Trovadores diaspóricos que migraram e desenvolveram suas carreiras musicais no
eixo Rio-São Paulo, entre os anos 1960 e 1970, tais como: Dominguinhos, Geraldo Vandré,
Torquato Neto, Ednardo, Belchior, Vital Farias, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Fagner, Tom
Zé, Alceu Valença, Capinan, Raúl Seixas, Sérgio Sampaio, Raimundo Sodré, Djavan,
Gilberto Gil, entre tantos outros artistas. Cabendo ressaltar que no processo de constituição
desta “diáspora nordestina” haverá sempre uma vinculação estreita entre a experiência
diaspórica e a construção das identidades culturais, a partir de significados e posições
relacionais em constante transformação (cf. HALL, 2008, p. 33).21
O “mal-estar civilizatório” na canção popular brasileira
A obra freudiana, O mal-estar na civilização (1929), que nos impulsiona a refletir a
cerca dos conflitos entre o indivíduo e a sociedade moderna ao apontar para o sentimento de
“desconforto” (unbehagen) dos indivíduos inseridos culturalmente na civilização ocidental,
como informa seu título original alemão: Das Unbehagen in der Kultur . Para esse autor
existem três fontes implacáveis do sofrimento humano: o poder devastador da natureza, a
ameaça da deterioração e da fragilidade de nosso corpo, e a insuficiência das normas que
regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade. Como ele mesmo explica,
“boa parte da culpa por nossa miséria vem do que é chamado de nossa civilização”, pois “tudo
aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes do sofrer é parte da civilização”
(FREUD, 2011, p. 31). Sendo que essas especulações partem da ideia que há uma hostilidade
generalizada à vida civilizada, manifesta pelo conflito entre o “princípio do prazer” - como a
busca incessante da felicidade individual - e o “princípio da realidade” - como força
21 E os exemplos musicais desse processo são bastante diversos, como em “Coragem pra suportar” (1964), de
Gilberto Gil: “Lá no sertão quem tem/ Coragem pra suportar/ Tem que viver pra ter/ Coragem pra suportar...//
Ou então/ Vai embora/ Vai pra longe/ E deixa tudo/ Tudo que é nada/ Nada pra viver/ Nada pra dar/ Coragem
pra suportar...”. Assim como, em “Chegança” (1964), composta por Edu Lobo e Oduvaldo Viana Filho para
integrar o roteiro musical do histórico show Opinião: “Estamos chegando daqui e dali/ E de todo lugar que se
tem pra partir/ Trazendo na chegança/ Foice velha, mulher nova/ E uma quadra de esperança...”. Assim como, já
na década seguinte, em “Curvas do rio” (1977), de Elomar Figueira Mello: “Vô corrê trecho/ Vô percurá uma
terra preu podê trabaiá/ Prá vê se dêxo/ Essa minha pobre terra véia discansá// [...] Tá um aperto/ Mais qui
tempão de Deus no sertão catinguêro/ Vô dá um fora/ Só dano um pulo agora/ Em Son Palo/ Triângulo Minêro”.
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repressiva pautada pelas regras, normas, leis e tabus construídos pela civilização, e capazes de
restringir a livre satisfação das pulsões intrínsecas a todos os indivíduos. Portanto, a plena
realização do “princípio do prazer” revela-se inalcançável, levando-nos a um crescente
sentimento de insatisfação perante a nossa vida civilizada. Mas será que se esse “desconforto
cultural” não seria um dos primeiros sintomas da própria crise do projeto moderno de
civilização, gestado pelo Iluminismo europeu, no século XVIII, e disseminado, nos dois
séculos seguintes, pelo liberal-capitalismo e pelo socialismo?22
De fato, este mal-estar vai se disseminar nos chamados “países periféricos” ao longo
do século XX e será prontamente diagnosticado pelas mediações culturais de nossa canção
popular como uma progressiva suspeita face ao processo civilizatório nos trópicos. Como, por
exemplo, em “Pequeno mapa do tempo” (1977), do cantor e compositor cearense, Belchior:
“Eu tenho medo de abrir a porta/ Que dá pro sertão da minha solidão/ Apertar o botão: cidade
morta/ Placa torta indicando a contramão”.23 E como uma desconfiança absoluta frente ao
progresso material da modernidade, entre o “mar” e o “sertão”. Como expressa o baião,
“Sobradinho” (1977), de Sá & Guarabyra: “O homem chega e já desfaz a natureza/ Tira a
gente põe represa, diz que tudo vai mudar/ O São Francisco lá prá cima da Bahia/ Diz que dia
menos dia vai subir bem devagar/ E passo a passo vai cumprindo a profecia/ Do beato que
dizia que o sertão ia alagar// O sertão vai virar mar/ Dá no coração/ O medo que algum dia/ O
mar também vire sertão”. O referido diagnóstico freudiano nos interessa na medida em que
desvela as contradições do ideal ocidental de modernidade que, ao invés de possibilitar bem-
estar e satisfação das necessidades humanas para todos os dos indivíduos, se perpetua em um
sistema baseado na produtividade, na ênfase sobre os processos de produção de mercadorias e
no consumo, cujas privações materiais impostas às classes menos favorecidas constituem um
intenso mal-estar repressivo, como fonte de uma generalizada frustração para a maioria da
população mundial (ROUANET, Op. cit. p. 115). Em suma, um pontual sentimento de
22 Conforme alude Rouanet, ao apontar sobre o colapso de nosso atual projeto civilizatório: “Não se trata de uma
transgressão na prática de princípios aceitos em teoria, pois nesse caso não haveria crise de civilização. Trata-se
de uma rejeição dos próprios princípios, de uma recusa dos valores civilizatórios propostos pela modernidade.
Como a civilização que tínhamos perdeu sua vigência e como nenhum outro projeto de civilização aponta no
horizonte, estamos vivendo um vácuo civilizatório” (ROUANET, 1993, p. 11). 23 Como notado anteriormente, subexiste uma ambígua contrariedade nesse mal-estar em relação ao universo
metropolitano, como no trecho da canção “Como nossos pais” (1976), do próprio Belchior: “Eu vou ficar nessa
cidade/ Não vou voltar pro meu sertão/ Pois vejo vir vindo no vento/ Cheiro da nova estação/ Eu sinto tudo na
ferida viva/ do meu coração”, canção registrada como terceira faixa de seu segundo LP, Alucinação (Polygram,
1976).
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distopia e desconfiança em relação ao processo de modernização nacional pautado pela
cultura hegemônica dos centros urbanos, como explicitam os versos do já referido baião de
Dominguinhos e Gilberto Gil, “Lamento sertanejo” (1975): “Por ser de lá/ Do sertão, lá do
cerrado/ Lá do interior do mato/ Da caatinga do roçado/ Eu quase não saio/ Eu quase não
tenho amigos/ Eu quase que não consigo/ Ficar na cidade sem viver contrariado”.
De modo que a invenção e constante reinvenção de um “sertão mítico” - como um
sempre fecundo lugar de memória na canção popular brasileira do século passado - estão
pautadas por um sentimento cuja existência individual será movida pelo desejo de um retorno
àquela coletividade original da vida sertaneja com a qual nos identificamos, mesmo não sendo
sertanejos, por estarmos fadados à barbárie crescente do mundo cosmopolita. Como nos ajuda
a entender a marcha, “Retirante” (1976), de Nivaldo Lima e Manoel Pedro, interpretada
euforicamente por Jackson do Pandeiro: “Vim do mato, cansado e com fome/ Retirante
fugindo ao sertão/ Mas agora choveu lá pra riba/ E eu volto cantando e dançando baião”,
assim como, o baião de Chico Buarque, “Assentamento” (1995): “Zanza daqui/ Zanza pra
acolá/ Fim de feira, periferia afora/ A cidade não mora mais em mim/ Francisco, Serafim/
Vamos embora”. Canções que representam a experiência diaspórica do caminho de volta para
o sertão ao inverterem o vetor do êxodo rural para o urbano, expressando a constante errância
de seus sujeitos diaspóricos. Afinal, no meio deste mal-estar da civilização mora uma
profunda vontade de “voltar para o sertão”.
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