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MARX 2014| Seminário Nacional de Teoria Marxista Uberlândia, 12 a 15 de maio de 2014 1 Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica à URSS: um contraponto Tiago Camarinha Lopes 1 Resumo A análise de Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica aos problemas da URSS são apresentadas de acordo com suas principais obras que tratam destes dois temas. Um contraponto é feito em relação à reprodução da avaliação de Trotsky sobre o processo histórico em questão: da mesma forma que o marxismo oficial soviético, uma corrente específica do marxismo, se transformou em dogma e se estranhou em relação à filosofia da práxis, o trotskysmo, outra corrente específica do marxismo, também se distanciou do método revolucionário para se automultiplicar como forma de se opor à primeira corrente citada. É proposto o estudo cuidadoso do processo histórico que gerou a cisão do movimento comunista internacional após a morte de Lenin como maneira de estimular a consideração dos revolucionários leninistas clássicos nos estudos científicos sobre a História mundial do século 20. Palavras-chave: Revolução Russa, trotskysmo, internacionalismo, história 1 Professor de economia política da UFG, Goiânia, GO. [email protected] . Este brevíssimo ensaio organiza minhas notas sobre o tema da Revolução Russa debatido no grupo de estudos Rosa Vermelha Núcleo Uberlândia entre 2011 e 2012. Agradeço a todos os participantes pela construção coletiva desta linha de estudo, em especial, ao prof. Paulo Gomes. Todo o argumento se refere à minha interpretação particular.

Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica à URSS: um contraponto

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Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica à URSS:

um contraponto

Tiago Camarinha Lopes1

Resumo

A análise de Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica aos problemas da URSS são

apresentadas de acordo com suas principais obras que tratam destes dois temas. Um

contraponto é feito em relação à reprodução da avaliação de Trotsky sobre o processo

histórico em questão: da mesma forma que o marxismo oficial soviético, uma corrente

específica do marxismo, se transformou em dogma e se estranhou em relação à filosofia

da práxis, o trotskysmo, outra corrente específica do marxismo, também se distanciou do

método revolucionário para se automultiplicar como forma de se opor à primeira corrente

citada. É proposto o estudo cuidadoso do processo histórico que gerou a cisão do

movimento comunista internacional após a morte de Lenin como maneira de estimular a

consideração dos revolucionários leninistas clássicos nos estudos científicos sobre a

História mundial do século 20.

Palavras-chave: Revolução Russa, trotskysmo, internacionalismo, história

1 Professor de economia política da UFG, Goiânia, GO. [email protected]. Este brevíssimo ensaio

organiza minhas notas sobre o tema da Revolução Russa debatido no grupo de estudos Rosa Vermelha Núcleo

Uberlândia entre 2011 e 2012. Agradeço a todos os participantes pela construção coletiva desta linha de estudo, em

especial, ao prof. Paulo Gomes. Todo o argumento se refere à minha interpretação particular.

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Introdução

Depois da sistematização de Marx e Engels sobre a produção intelectual do socialismo

utópico, o socialismo científico passou a ser extensa e intensivamente popularizado em todos os

meios de organização dos trabalhadores na segunda metade do século 19. Um dos pontos mais

difundidos do materialismo histórico ficou arquivado em um esquema exposto de forma mais

direta por Marx em seu escrito Prefácio para a Crítica da Economia Política. Este esquema

enfileirava ao longo de uma linha do tempo o que passou a ser designado como “modo de

produção”. Feudalismo, capitalismo e socialismo apareciam então como uma sequência

relativamente fixa no processo de avanço histórica da jornada dos trabalhadores rumo ao

comunismo. Mas ao mesmo tempo em que este esquema dava uma direção lógica à História de

forma didática, ela tornava a série de determinações complexas analisadas por Marx uma coisa

excessivamente simples.

De forma muito resumida, a linha colocava a sequência feudalismo, capitalismo e

socialismo como uma série temporal muito simplista, o que gerou uma interpretação

excessivamente estreita sobre o que Marx pensava do processo revolucionário concreto no plano

geográfico mundial. Foi atribuída a ele a noção de que a Revolução Socialista só poderia ocorrer

no centro do sistema capitalista, onde as forças produtivas eram suficientemente desenvolvidas.

De fato, a expectativa de Revolução na Alemanha, que ultrapassa a Inglaterra e a França na

fronteira dos acontecimentos políticos, era muito grande no final do século 19. No entanto, a

gigantesca falha da social democracia alemã em evitar a Primeira Guerra Mundial e encaminhar

a destruição da Era dos Impérios para a construção do socialismo pôs em debate esta visão

simplificada do processo de mudança de modo de produção.

O sucesso da Revolução Socialista na Rússia começa, portanto a avaliar de que modo a

leitura linear, não-dialética das descobertas de Marx precisa ser superada para que as estratégias

de Revolução possam brotar de qualquer ponto do globo a partir dos problemas concretos da

população trabalhadora local. Uma das vertentes do socialismo marxista que defende esta

perspectiva é aquela que decorre das análises e propostas de Leon Trotsky.

Com este ponto de partida, este artigo apresenta o resumo de Marx sobre seu eixo

conclusivo de investigações que inauguram a sistematização de seu método de estudo da história

(sessão 2), a análise de Trotsky sobre os motivos da Revolução Socialista ter acontecido na

Rússia e não na Europa Ocidental (sessão 3) e suas principais críticas à formação da União

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Soviética que não conseguiu dar continuidade ao processo revolucionário com segurança rumo

ao comunismo (sessão 4).

Ao final, atrelado à apresentação da lei do desenvolvimento desigual e combinado, é feito

um contraponto à visão difundida entre a corrente trotskysta de que os descaminhos da

Revolução Russa decorrem exclusivamente de opções políticas livres, chamando atenção para as

condições objetivas que bloquearam o desabrochar da Revolução em nível internacional (sessão

6). A conclusão é a de que, após maior difusão do pensamento de Lenin na academia, os

historiadores, cientistas sociais, filósofos e economistas devam voltar sua atenção para os estudos

sobre os fatores que criaram uma cisão profunda no movimento comunista internacional e que

emperram atualmente uma maior compreensão tanto sobre o sistema soviético quanto da História

geral da ação política da classe trabalhadora que se liberta para sempre da Europa para rondar

todo o globo já na primeira metade do século 20.

2 Eurocentrismo e materialismo histórico

Após concatenar os resultados mais desenvolvidos da filosofia alemã, da política

socialista francesa e da Economia Política Inglesa em uma série de investigações (Lenin

([1913]), Karl Marx encontrou um eixo-guia para a compreensão das transformações da

organização da sociedade ao longo da história que poderia auxiliar no processo de atuação

consciente sobre o desenrolar desta. No Prefácio para a Crítica da Economia Política, esta linha

é apresentada de forma muito resumida para situar o leitor no contexto em que se insere a

contribuição de Marx à ciência econômica, que vinha sendo sistematicamente apropriada pelo

movimento socialista após sua aderência irrestrita à ideologia burguesa dos então chamados

economistas. Por ser um texto amplamente utilizado para a popularização do Marxismo (ou da

corrente Marxista de socialismo), é importante relembrar um único ponto dele como maneira de

fixar na memória como o eurocentrismo sucumbe frente ao novo critério de fronteira geográfica

da história da civilização humana exposto por Marx.

Em determinados momentos do processo histórico, de acordo com Marx, as relações

sociais de produção entram em contradição com as forças produtivas existentes. Isto gera uma

época de revolução social, onde os membros da sociedade assimilam a contradição dentro da

estrutura no âmbito superstrutural, onde as ideias, costumes, regras sociais entram em conflito

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aberto. A relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e as novas formas ideológicas é

um processo dialético, sem determinação unilateral. Marx utiliza expressões delimitantes deste

nexo e não termos que indiquem uma direção única de causalidade. Por esta razão, é adequado

concluir que as forças produtivas apenas condicionam a amplitude em que podem se desenvolver

as mais diversas expressões ideológicas, ou seja, as forças produtivas fornecem apenas a base

material que permite o desabrochar e expansão de certas ideias no imaginativo coletivo. A

reinterpretação do esquema apresentado por Marx no Prefácio para a Crítica da Economia

Política é importante para superar o padrão rígido em que o materialismo histórico foi

reproduzido após o estabelecimento de uma linha “oficial” do movimento comunista. Isto é

fundamental, também, para a superação do eurocentrismo como um dos passos específicos de

ultrapassagem do paradigma do iluminismo que serve de base para a elaboração do socialismo

científico.

O curso histórico analisado até o século 19 indicava que a civilização da Europa

Ocidental se encontrava em um ponto de domínio sobre a forças da natureza que não tinha

paralelo na história conhecida. Em outros termos, o uso da ciência de maneira sistemática no

processo de produção criou forças produtivas gigantestas, que combinavam a força de trabalho

de extensões consideráveis de trabalhadores. A separação definitiva e ampla dos trabalhadores de

seus meios de produção libertou as forças do dinheiro que pode a partir daí se converter em

capital sistematicamente, o que revoluciona de alto a baixo todo o aparato produtivo tecnológico.

Em combinação com o esboço de Marx sobre a relação entre a produtividade e as formas de

organização social para a produção e distribuição, difundiu-se a noção de que a transição para o

modo de produção socialista teria seu início nesta região onde as tecnologias eram as mais

avançadas. Depois da consolidação das relações sociais burguesas, expressa na Revolução

Francesa, os olhares se voltaram para a Alemanha, onde a continuação do processo

revolucionário que já transitava com relativa liberdade dentro da Europa parecia ter um caráter

mais transformador.

Marx e Engels, assim como os adeptos do socialismo científico, não se prendiam aos

estratagemas teóricos na hora de avaliar a situação concreta do presente ou o fluxo dos

acontecimentos políticos. Para eles, o método de estudo e ação do qual a classe trabalhadora

deve se apropriar não tem o objetivo de fazer previsões sobre o futuro, mas de guiar a prática

para que se atinja os objetivos almejados. A atenção sobre a Alemanha como lócus geográfico

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relevante na cadeia da Revolução Socialista tinha respaldo empírico e teórico. Em nenhum

momento o método de estudo e de suporte ao movimento socialista desenvolvido por Marx se

compromente a fazer previsões fixas descoladas das mudanças das condições concretas na

correlação de forças da luta de classes. É justamente uma das diferenças entre os socialismos

não-marxistas e o socialismo científico a incorporação plena da filosofia da práxis para o

cumprimento do objetivo do movimento: a edificação do comunismo. Assim, a linha de ação não

está presa à teoria, mas o contrário: a teoria é elaborada a partir da prática de luta pela conquista

deste objetivo. Desta forma, ao invés de fazer previsões e se surpreender a cada instante quando

se percebe que nem tudo o que fora previsto ocorreu (o que é inevitável devido justamente ao

fluxo mutante constante do movimento real), os comunistas avaliam a cada instante as mudanças

na realidade para que o movimento nunca perca sua direção rumo ao objetivo final, que é a

consolidação do modo de produção comunista em todo o globo e a definitiva superação do

capitalismo.

Com o fracassso da social-democracia alemã em 1914 e o sucesso da Revolução Russa

em 1917, ficou evidente que o espectro comunista rondava um raio territorial mais amplo do que

aquele indicado no Manifesto do Partido Comunista. A Revolução não deveria ocorrer no centro

capitalista desenvolvido? Apenas uma leitura presa ao esquema cartesiano do iluminismo

poderia gerar uma interpretação tão estreita do que Marx quis dizer quando explicitou que a

época de revolução social explicita uma transformação na organização social da reprodução

material. O processo revolucionário após a formação do capitalismo tem amplitude geográfica

cada vez maior, pois a sociedade mundial foi totalmente interligada pelas forças produtivas

desenvolvidas sob o capital. A Revolução Russa de 1917 não pode ser vista como uma surpresa,

mas como uma oportunidade de avaliar como o movimento comunista deixa para sempre o

círculo estreito do Velho Continente para se espalhar com velocidade enorme sobre todo o resto

do mundo no século 20. O materialismo histórico, compreendendo os condicionantes concretos

que fizeram do ponto geográfico europeu o pontapé definitivo para a conquista do capitalismo

em escala mundial é ao mesmo tempo o ápice da perspectiva europeia da história humana e sua

completa destruição devido ao reconhecimento de que a transição do capitalismo, que possui um

centro de sistema, para o socialismo, que é um sistema heterogêneo integrado por todos os povos

de maneira não exploradora, já é uma realidade.

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3 O triunfo da Revolução na Rússia segundo Trotsky

Trotsky analisa com profundidade teórica e histórica o sucesso da Revolução Socialista

na Rússia em sem livro “História da Revolução Russa” de 1936. Resumidamente, o processo de

conquista do poder pelo Partido Bolchevique sob liderança de Lenin pode ser dividido em três

etapas.

A primeira etapa tem início com as revoltas de 1905 e se encerra em Fevereiro de 1917. É

a última fase do domínio do antigo regime na Rússia, ou seja, o período final da Duma Estatal do

Império Russo. As transformações na Rússia que indicavam o esgotamento deste regime

apareceram na superfície inicialmente em 1905. Segundo Lenin, foi um ensaio geral para a

revolução de 1917. O ano de 1905 pode ser contemplado como o início do processo que gera

1917. Na visão plástica de Trotsky, a sociedade russa estava “vomitando” o velho regime.

Diferente dos casos europeus, em que o regime de organização feudal foi sendo eliminado ao

longo de vários anos, a Rússia teve de fazê-lo rapidamente, no primeiro quarto do século 20. Já

então aparecem os primeiros sinais de esgotamento do regime monárquico. Houve uma

manifestação de milhares de trabalhadores em São Petersburgo que foi reprimida pelo tsar. Os

marinheiros do couraçado Potemkim também se revoltaram em 1905 por conta da decisão do

governo de atacar o Japão. Houve também uma greve geral, quando os trabalhadores começaram

a se organizar em sovietes, forma de governo inventada e praticada pela primeira vez na Comuna

de Paris. Como reação a estes distúrbios, o tsar Nicolau II formou a Duma (Duma Estatal do

Império Russo em 1905). Na Duma enfrentavam-se os partidos que podem ser alinhados na

escala linera típica esquerda - direita. Este modelo funcionou então até Fevereiro de 1917, e é

possível ver o período de 1905 até Fevereiro 1917 como de aprendizado das massas sobre o

processo de revolução em curso.

A segunda etapa é a formação do que Trotsky chama de duplo poder, ou a conclusão da

fase anterior pela Revolução de Fevereiro de 1917. Aqui há a derrubada do tsar e a tentativa de

formar uma República liberal. O Palácio de Tauride é tomado por soldados e trabalhadores. Era

neste local que a Duma se reunia. A partir daí, dois poderes irão se formar em instituições

separadas: o Governo Provisório (contendo Kerenski, um dos líderes da Revolução de Fevereiro,

preocupado em segurar o processo na etaba burguesa, mas que não conseguiu conter a

Revolucao de Outubro) e o Soviete de Petrogrado (continuando a formação dos sovietes de 1905

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pelos trabalhadores organizados em sua busca pela conquista do Estado). Essas duas formações

ilustram o que Trotsky chama de “duplo poder”, fenômeno que ocorre em momentos de

Revolução. O duplo poder emerge quando a tensão entre a reação e revolução é muito grande, de

tal forma que um único poder não consegue conter todas as forças sociais em disputa pelo

Estado. São de fato duas forças paralelas que lutam para se consolidar como a única que controla

o Estado.

Figura 1: Esquema do duplo poder

Reação ← [antiga dominante ← nova dominante → povo (trabalhadores)] → Revolução

“nobreza” “burguesia” “trabalhadores/camponeses”

Governo provisório Soviete de Petrogrado

A terceira etapa é a conquista definitiva do poder pelo Partido Bolchevique, tendo como

base social de apoio os operários das cidades e os camponeses pobres. Este é o momento do

movimento militar final em que os Bolcheviques cercam e tomam Petrogrado (Golpe dos

Bolcheviques). Chamada também Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha, é a

derrubada do governo provisório e início da formação do governo sem compromisso com a

classe capitalista. A partir daqui começa a Guerra Civil Russa e depois, a formação da União das

Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922.

Qual é o significa histórico da Revolução Russa de acordo com a análise de Trostky

(1936)? A tese central de Trotsky é a de que a Revolução Socialista ocorreu na Rússia devido às

características específicas de sua economia e sociedade. Devido ao elevado grau de

desenvolvimento capitalista nos países europeus ocidentais, o tsarismo russo vai se aprofundando

em contradições cada vez mais graves e agudas. Este processo de apodrecimento do tsar torna-se

visível a partir de 1905. Trotsky afirma que o atraso funcionou como criador de condições de

Revolução, pois este atraso era combinado com os elementos avançados do Ocidente. A

disparidade de avanço ideológico de ponta (simbolizado na rápida assimilação do marxismo na

Rússia, que atropela com nítida velocidade todas as formas locais de socialismo utópico) com

atraso material e cultural geral evoca a solução explosiva da contradição que é resolvida com

base no reformismo do Ocidente. É de certa forma consensual admitir que as particularidades da

Rússia, dentro da cadeia dos imperialismos que se defrontam na Primeira Guerra Mundial, são os

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fatores que possibilitaram a eclosão da Revolução Socialista ali. Mais importante do que fazer

esta averiguação é fixá-la na teoria para que se possa moldar as ações revolucionárias dali em

diante. Aqui começa a trajetória de Trotsky para sistematizar a lei do desenvolvimento desigual e

combinado e a revolução permanente.

O apêndice ao capítulo 1 de História da Revolução Russa (pg. 429 - 437) contém uma

exposição muito bem resumida da tese de Trotsky sobre a Revolução Russa. É uma resposta de

Trotsky a Pokrovsky, que defendia a linearidade em Marx como esboçada criticamente na sessão

anterior. Aqui, Trotsky salienta que o dogmatismo a partir da leitura de Marx já aparece com

muita volúpia. Já no século 19 os russos estão tentando entender as peculiaridades do país e de

seu capitalismo. Inicialmente, os pensadores se apóiam nos narodniks2, que argumentam que há

um “desvio do capitalismo”. Depois, com a introdução do marxismo, diversos pensadores

atacam os narodniks, argumentando que não é possível haver desvio do capitalismo. Nesta ânsia

por desmontar os narodniks, caiu-se na mecanização dogmática, que teve enorme influência na

tradição marxista inicial. Este “massacre” dos nadodniks que leva ao efeito colateral de gerar

aquela linearidade no materialismo histórico é apontado por Rosa Luxemburgo como uma das

explicações objetivas para a formação do marxismo oficial da URSS.

Considerando o aspecto estratégico de difusão do método de Marx, o tratamento que

deveria ser dado aos utópicos de origem camponesa é diferente desta reação truculenta dos

marxistas russos, que culminou em linearidade. De acordo com Trotsky, Lenin revelou o genuíno

significado histórico do movimento agrário russo, o que possibilitou o apoio do camponês ao

operário. Sem este “ajuste fino” de meio de campo entre as duas principais classes que formam o

povo russo (proletariado assalariado e camponeses probres), a Revolução Russa não teria

triunfado. É consenso entre historiadores que Lenin foi o principal responsável por conseguir

asseguar esta aliança para derrotar os representantes do capital em seu país. Ele soube ler as

condições concretas locais e elaborar as tarefas práticas que davam conta destes problemas

concretos.

Com isso em mente e, amparados pela tese de Trotsky publicada anos depois, torna-se

possível interpretar por que a revolução ocorreu na Rússia: não é necessário o desenvolvimento

das forças produtivas no local (nação), pois isto já ocorre em alguma outra parte do mundo.

2 Conhecidos também como populistas russos, uma espécie de socialistas utópicos que queriam imputar seus ideais

aos camponeses. Agiram com força nos anos 1860 e 1870, e atuaram no debate sobre a Questão Agrária.

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Assim, quando o fim do feudalismo se delinea, a revolução neste local tem forte potencial para

avançar além da Revolução Burguesa. Por isso, a Revolução de Fevereiro não conseguiu ser

paralizada e descambou para a Revolução de Outubro. Trotsky, por outro lado, seguindo Marx,

enfatiza que se o resto do mundo não acompanhar a revolução mundial socialista apenas iniciada

na Rússia, não haverá sucesso. Daí deriva uma parte do que virá a ser o “trotskysmo”, ou seja, a

centralidade metodológica do desenvolvimento desigual e combinado junto com o

internacionalismo revolucionário. De modo muito enfático, Trotsky conclui que Outubro de

1917 já entrou na História como conquista e que nenhum esforço reacionário poderá apagar este

episódio de avanço da memória do povo.

4 Traição da Revolução na visão de Trotsky

A conquista do poder pelos bolcheviques não significava, no entanto, o fim da construção

do comunismo. Era apenas o primeiro passo do processo de edificação da ordem socialista na

Rússia. Dito de outra forma, 1917 é um avanço, mas marca apenas a continuação do processo

revolucionário socialista amplo que foi iniciado com a Comuna de Paris em 1871. Mas o

domínio do Estado revela que todos os problemas da transição devem ser ainda solucionados. De

1917 até a morte de Lenin, em 1924, muitos problemas concretos apareceram, colocando o

triunfo da Revolução Socialista em risco. De modo muito resumido, após o Comunismo de

Guerra, momento em que a economia russa se organizou para repelir os inimigos do povo e

consolidar o poder bolchevique, houve um retorno estratégico ao uso do mecanismo do mercado

para assegurar o apoio dos camponeses à Revolução. A NEP (Nova Política Econômica) agia

como um recuo consciente para permitir o aprofundamento da organização econômica e social

do socialismo. Este aprofundamento, de fato veio, ainda que em um formato rígido da

planificação econômica central já sob a liderança de Stálin. Neste intervalo, Trotsky começou a

apontar para problemas sistemáticos da construção em curso que impediam, em sua visão, a

realização do ideal contido no movimento comunista, agora já avançando para os confins da

periferia capitalista. Para ele, estes problemas eram muito fundamentais em diversos aspectos da

organização que o Partido assumia e colocavam em risco o caminho para o comunismo.

Trotsky reuniu suas avaliações sobre este descaminho da União Soviética no livro

intitulado A Revolução Traída. Sua intenção era fazer uma análise com base no próprio método

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de Marx de investigação da história para verificar o caráter verdadeiro do processo de

transformação após os anos 1920. Seguindo seu prefácio, aprendemos que o interesse pela URSS

era já na época muito grande em todo o mundo. O ocidente, por exemplo, inicialmente fingiu não

ver o avanço econômico que se operava sob a nova ordem anti-capitalista. Depois, segundo ele,

diversos livros pró-URSS surgiram apreciando e idealizando a economia soviética de modo

muito bajulativo, ou seja, sem avaliação crítica. Até então, ou seja, até 1936, Trotstky afirma que

nenhuma análise científica sobre o que acontecia na União Soviética havia sido feita. As obras

dos “amigos da URSS” (Trotstky usa esse termo para designar poderes políticos que simpatizam

com o burocratismo) ficaram no âmbito de estudos não-científicos, podendo ser classificadas

como formalismo amador, comunismo humanitário e socialismo universitário. Segundo Trotsky,

são análises que revelam “veneração contemplativa e harmoniosa com o mundo burguês”. Esta

modalidade de estudo da sociedade formada a partir da Revolução de 1917 poderia ser

considerada condizente com a “máscara” do sistema, ou seja, ela mesma refletia que o

socialismo em curso ali era apenas de aparência. A proposta de Trotsky vai na direção contrária:

ele quer fazer uma exposição crítica, revelando e explorando as contradições e os problemas da

URSS, mostrando assim, o “rosto” por trás da referida máscara.

A linha de argumento de Trotsky para concluir que o processo revolucionário está em

degeneração segue toda a análise efetuada na explicação da própria Revolução Russa.

Inicialmente, ele aborda o legado que os socialistas herdam da Rússia tsarista. Em uma palavra,

este legado é de baixo desenvolvimento econômico e material, ideia transmitida plasticamente

pela noção de passado pesado e sombrio da Rússia. Como forma de ilustrar esta inferioridade na

técnica, Trotsky usa dados para explicitar que o patamar de conforto material atingido até então

não atinge o nível encontrado nos países capitalistas. E aqui entra o argumento de que a

Revolução foi possível justamente por conta deste atraso no desenvolvimento da Rússia. Esta

idéia é desenvolvida abstratamente pela lei do desenvolvimento desigual e combinado: a

sociedade periférica, ao se ver impelida a transformar, põe em movimento não a revolução já

realizada pelo centro, mas a revolução seguinte e mais avançada. Trotsky salienta que essa

recuperação da técnica deve “durar todo um período histórico”, em que o novo regime deve

assimilar as conquistas técnicas e culturais do Ocidente.

Em seguida, Trotsky explica como o processo de direção teve a trajetória de zigue-zague:

primeiro centralizando fortemente para assegurar a operação do Exército Vermelho contra o

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exército branco dos capitalistas e imperialistas entre 1918 e 1921. Esta organização contou com a

contribuição de Bukharin e Preobrajenski e o plano econômico era basicamente a solução do

problema de abastecimento das cidades sob domínio do exército vermelho. Trotsky lembra que o

assim chamado Comunismo de Guerra servia para sustentar as indústrias de guerra e combater a

fome, e que a direção central fez baixar a produção consideravelmente (o esforço empregado na

Guerra Civil resultou na escassez, devido, principalmente, à necessidade de requerer o excedente

do trabalhador camponês à força). Houve um regresso econômico brusco por conta destas novas

relações sociais de produção. Esperava-se avidamente pela revolução no Ocidente, com o que os

problemas de escassez estariam solucionados. Mas a falha da social-democracia, como

mencionado, impediu o triunfo da Revolução nas economias avançadas. Devido a esse cenário

de escassez e à fragilidade a que chegou a aliança operário-camponese, base de todo o sucesso da

Revolução Russa, Lênin percebeu a necessidade reestabelecer o mercado e iniciou a NEP (Nova

Política Econômica). Assim, num segundo momento, os camponeses foram liberados para

produzirem mercadorias, ou seja, a direção revolucionário admitiu a operação mais livre do

mecanismo de produção e distribuição via mercado. O Comunismo de Guerra era uma forma de

controle total da economia que violava a lei do valor. Logo no início, tentou-se abolir

imediatamente a lei do valor.3 Os planos não obedeciam os limites técnicos ou as condições de

demanda. Trotsky escreve portanto que “a experiência mostrou depressa que a própria indústria,

embora socializada, tinha necessidade dos métodos de cálculo monetário elaborados pelo

capitalismo” (p. 71). Isso demonstra que cedo foi notada a necessidade de enfrentar o problema

do cálculo econômico no socialismo. Numa terceira virada, finalmente, há o retorno para a

centralização econômica com o advento dos Planos Quinquenais em 1928 para a realização da

industrialização.

Neste ponto, Trotsky segue uma pergunta que servirá para seu julgamento sobre a

situação em que se encontra a URSS dos anos 1930: o socialismo já está realizado na URSS? Ao

buscar uma resposta, ele faz uma prévia teórica, apresentando os conceitos do materialismo

histórico e detalhando as diferenças entre a teoria e a realidade.

Com base no resumo de Marx no Prefácio para a Crítica da Economia Política, ou seja,

com base na teoria elaborada pelo estudo cuidadoso de Marx de toda história até então, o período

3 Essa tentativa será posteriormente assimilada na teoria produzida pelos economistas soviéticos como se a

passagem da lei do valor para a organização comunista fosse (ou pudesse ser) imediata. Ver por exemplo o Manual

de Economia Política da URSS: Academia de Ciências da URSS (1961).

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de transição se encontra claramente entre a sociedade burguesa, o passado, e a sociedade

comunista, o futuro. Este estágio de transição pode ser pensado como um estágio inferior do

socialismo (ou mesmo como estágio superior da sociedade burguesa) onde a igualdade ainda é

colada nas normas sociais de trocas de equivalentes. Apenas na sociedade comunista este

princípio é superado e substituído pela regra social de produção e distribuição explicitada por

Marx na Crítica ao Programa de Gotha (Marx ([1891] 1973) condizente com os interesses da

classe trabalhadora assalariada em harmonia com as forças produtivas mais avançadas: de cada

um de acordo com suas capacidades, para cada um de acordo com suas necessidades.

Mas, na realidade, os revolucionários se deparam com uma situação que não se enquadra

com facilidade no esquema de Marx. A Revolução Socialista triunfou na Rússia, uma economia

cujo desenvolvimento não está naquele período de transição, mas ainda antes do próprio estágio

burguês. Esta circunstância peculiar da história criou contradições que foram sendo solucionadas

na formação do Estado soviético. Teria sido assim que surgiu o aparelho burocrático, um

elemento imprevisto na teoria original e que entrava o avanço para o socialismo. Esta

discrepância é uma primeira indicação para tentar explicar objetivamente o que Trotsky chama

de degenerência burocrática, que pode ser analisada pelo fator econômico (o que ele faz no

capítulo 4) e pelo fator político (capítulo 5).

Pelo lado econômico, Trotsky explica como a luta pelo rendimento do trabalho engendra

as contradições dos limites e superação da organização social burguesa. O dinheiro, lembra ele,

deve cumprir sua missão histórica antes de virar um “meio de contabilidade cômodo para a

estatística e para o plano” (p. 104). Este lembrete faz parte de sua explicação direcionada aos

elementos anarquistas que querem a abolição imediata do dinheiro e do Estado, com o que fica

visível que havia inicialmente uma tentativa de burlar a lei do valor de modo direto, como

previamente aludido. Trotsky caçoa dos “professores obedientes” sob Stalin (dos economistas da

União Soviética) porque eles querem que os preços sejam diretamente determinados pelas

diretrizes, pelo plano, sem qualquer limite imposto pelas condições objetivas (Trotsky ([1936]

2008), p. 110), lembrando com Marx que “nunca o direito poderá se elevar acima do regime

econômico” (p. 115). O núcleo do argumento de Trotsky aqui é que a URSS não possui o nível

de desenvolvimento necessário para que ela possa erguer um estágio de transição que seja

superior ao capitalismo encontrado no Ocidente. Ou seja, ainda que o socialismo com o qual se

lida seja um estágio inferior e tenha de seguir padrões de distribuição da sociedade burguesa, ele

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deve ser superior ao capitalismo concreto do Ocidente (culturalmente, materialmente, etc…), e é

justamente isso o que não ocorre na URSS.

Já o fator político tem a ver com o que Trotsky designa de termidor soviético. Além deste

fator econômico para explicar o descaminha da Revolução, existe um outro elemento que

completa o cenário para fundamentar a impossibilidade objetiva da continuação da Revolução

Socialista na Rússia. Segundo Trotsky, não só o baixo desenvolvimento das forças produtivas

explica a degenerência burocrática na URSS, pois, além disso, há um fator político relevante que

se expressa na defesa de privilégios (p. 138) e no afastamento da burocracia em relação aos

trabalhadores. A burocracia, uma construção imposta pelas condições adversas em que a

conquista do poder se deu, tornou-se cada vez mais autônoma do movimento comunista

sustentado pelo povo trabalhador. Esta separação cria a possibilidade da dogmatização do

marxismo num movimento espantosamente inverso ao pretendido pela transformação do

socialismo utópico em ciência. Depois de explicitar como a defesa de privilégios reproduz a

existência das desigualdades sociais por meio de uma separação muito brusca entre uma elite

dirigente e os trabalhadores que obedecem, Trotsky avalia a produção de ideias e de cultura na

URSS como forma de tentar entender como este movimento espantoso ocorre.

Segundo Trotsky, inicialmente, a Revolução abriu caminho para transformações

profundas na estrutura familiar. No entanto, devido aos problemas mencionados (nível de

desenvolvimento histórico baixo), a instituição família se mantém e a mulher não adquire a

liberdade conforme os princípios do socialismo. Apesar da vontade de destruir a família

tradicional, havia desconfiança sobre as creches e jardins de infância do Estado. Com o tempo,

percebeu-se as vantagens da educação coletiva e da socialização da economia familiar, mas “a

sociedade mostrava-se demasiadamente pobre e pouco civilizada” (p. 164) permanecendo muito

resistente a esse tipo de mudança. Em relação à juventude frente ao revolucionamento da

sociedade, Trotsky é muito crítico: as gerações jovens não cresceram em liberdade, sendo

acostumadas a seguir fiéis ao superior, obedecendo sem discussão. Este padrão inviabiliza a

cultura socialista e a crítica ao estabelecido. Seu reflexo na sociedade é capturado por Trotsky

quando diz que “o ensino e a vida social dos escolares e estudantes estão profundamente

penetrados de formalismo e de hipocrisia” (p. 176). A juventude é na verdade “generosa,

intuitiva e empreendedora” (p. 178), mas a estrutura do Estado degenerado e o conflito de

gerações impede o florescimento da cultura jovem revolucionária, com o que ela se torna uma

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força social incógnita (p. 181). A própria arte, expressão das ideias de fronteira, está posta sob

completo controle, sendo incapaz de replicar a essência revolucionária.

Em vista disso, Trotsky explica que o dogmatismo encontra um ambiente propício para se

desenvolver na URSS. E o Marxismo não escapa a isso. Por esta razão, em termos teóricos,

Trotsky acha que nada de interessante foi publicado desde Lenin e afirma que “a produção

marxista não sai dos limites de compilação escolástica” (p. 191). A partir daí se tem os elementos

para entender o que foi o processo de conversão do socialismo de Marx em uma doutrina oficial,

que se espalhou mundialmente como a estrutura absoluta de interpretação dos escritos de Marx,

Engels e Lenin.

Em relação à política externa, Trotsky argumenta que “teoria” do socialismo em um só

país de 1924 significou o desvínculo da política externa com a Revolução Mundial e que a

Política Externa da URSS de cultivar “amigos” pacificistas não resolverá os problemas de

avanço da Revolução. O que ocorre? A Revolução Internacional não se desenvolve, e a

Burocracia apenas “neutraliza” a burguesia integrando a URSS no status quo. Resultado: a

Revolução Russa fica isolada da Revolução Internacional. É gerado assim um pacto perpétuo de

não-agressão entre capitalismo e socialismo. Por esta razão, Trotsky dá extrema importância ao

movimento internacional para dar prosseguimento à Revolução. Mas a ajuda do Ocidente não

vem, ficando nítido que a formação do fascismo/nazismo é um fenômeno espelhado do stalismo

segundo Trotsky, do ponto de vista do descaminho do processo da revolução. Apesar desta

comparação (que pode e é largamente usada pelos inimigos do povo trabalhador) Trotsky é

sempre muito enfático em admitir que a URSS é um sistema progressista, enquanto a Alemanha

nazista é um sistema reacionário, ou seja, na sua visão, é inaceitável igualar os dois sistemas sem

qualificação.

Finalmente, para fundamentar sua conclusão crítica a respeito da trajetória da União

Sovietica, Trotsky indaga de forma muito direta: o que é a URSS? As transformações ocorridas

entre 1905 e 1917 não deixam dúvidas de que houve um avanço em direção à configuração de

relações sociais distintas daquelas que dominam o mundo capitalista. A propriedade privada está

sendo efetivamente contestada nesta experiência, embora sua completa abolição não tenha sido

concluída. Em outras palavras, todo o povo ainda não controle de modo direto os meios de

produção e por isso não se pode dizer que o comunismo está implantado na URSS. A

propriedade está “no meio do caminho”, presa na forma de estatização: “a propriedade do Estado

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só se torna de “todo o povo” na medida em que desapareçam os privilégios e as distinções

sociais e, consequentemente, o Estado perca a sua razão de ser” (p. 233). De forma contundente,

para Trotsky, o que existe não é o socialismo de interesse da classe trabalhadora, mas de um

grupo de privilegiados:

“A famosa palavra de ordem: “os quadros tudo decidem”, caracteriza, muito mais

abertamente do que Stalin desejaria, a sociedade soviética. Os quadros são

chamados, por definição, para exercer a autoridade. O culto dos quadros

significa, primeiramente, o da burocracia. Na formação e educação dos quadros,

como em outros domínios, o regime soviético cumpre uma tarefa que a

burguesia, há já muito tempo, terminou. Mas como os quadros soviéticos

aparecem sob a bandeira do socialismo, exigem honras quase divinas e

emolumentos sempre mais elevados. De maneira que a formação de quadros

“socialistas” é acompanhada por um renascimento de desigualdade burguesa.”

(Trotsky ([1936] 2008), p. 234).

Trata-se, então de um capitalismo de Estado? Não, pois isto colocaria a URSS no mesmo

lugar que o Estatistmo na Alemanha de Hitler, nos Estados Unidos de Roosevelt e na França de

Leon Blum, sistemas cujo objetivo do controle é a manutenção da propriedade privada e do

capitalismo. A similaridade entre os dois sistemas (controle capitalista e União Soviética sob

Stalin) decorre da estrutura burocrática que afasta o povo trabalhador das instâncias de decisão

política. Esta burocracia é o que há de comum, pois “(...) a burocracia da URSS assimilou os

costumes burgueses sem ter a seu lado uma burguesia nacional” (p. 242). Outra evidência da

diferença que sustenta a opinião de Trotsky de que a URSS não é um capitalismo de Estado é o

fato de que “o funcionário não pode transmitir aos seus herdeiros o seu direito à exploração do

Estado” (p. 242). Os objetivos dos sistemas são completamente distintos: no Ocidente, o Estado

associado ao capital intenta manter o sistema econômico e social capitalista, enquanto o que

parte da Rússia tem a meta de superar este sistema. Mas devido aos problemas concretos de

efetivação da Revolução Socialista em escala internacional sua forma é similar, devido ao fato

do nexo histórico da Revolução em curso, de transição do capitalismo para o modo de produção

comunista não-primitivo, ser essencialmente global e não nacional.

Portanto, para Trotsky, se a ditadura burocrática cair e não houver a substituição pode um

poder socialista, o capitalismo irá voltar a dominar a estrutura social que foi modificada com a

Revolução de 1917. Em que medida o poder soviético se apóia no poder socialista? indaga

Trotsky. Em sua visão, em pouca mais de uma década, a modificação das ideias dos líderes do

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processo de revolução foi tão intensa que esta é uma questão séria que deve ser analisada pelos

comunistas de todo o mundo. A burocracia é a camada social na URSS que encontra-se

completamente satisfeita, e que por isso, tem resistência em alterar a situação. Mas como a

edificação da ordem comunista não está concluída, esta burocracia se torna um entrave à

continuação do processo revolucionário. Neste sentido, Trotsky anota que “como força política

consciente a burocracia traiu a revolução” (p. 244).

Em uma palavra, de acordo com Trotsky, a Revolução Russa estabeleceu novas relações

sociais de produção. Mas, por conta de especificidades históricas (isolamento internacional,

refluxo da revolução internacional, atraso econômico e cultural da Rússia entre outros), houve

uma contra-revolução política. Esta contra-revolução não vai contra as novas relações de

produção, mas ela tira o poder político do proletariado para transmití-lo a uma burocracia, cujos

interesses não coincidem com os da classe trabalhadora. A partir daí forma-se o Estado da URSS

e uma camada social que busca manter os privilégios. A URSS se encontra, portanto, numa

bifurcação: ou a contra-revolução progride e o sistema volta ao capitalismo ou a Revolução

Mundial avança e quebra o burocratismo, tanto dos sistemas fascistas quanto do sistema

soviético degenerado.

5 Internacionalismo: solução teórica, problema prático

O internacionalismo revolucionário defendido por Trotsky contra a tese de socialismo em

um só país de Stálin é uma das noções mais difundidas de popularização sobre a divergência do

movimento comunista que emerge com o fim da liderança de Lenin. Na tentativa de chamar a

atenção para os fatores objetivos que complicavam a realização do comunismo na URSS,

Trotsky acabou produzindo uma série de análises que foram incoporadas ao corpo teórico

iniciado por Marx, Engels e continuado por Lenin. Um dos principais pontos desta produção

intelectual é a oposição à interpretação rígida do esquema de sucessão dos modos de produção

apresentado por Marx no Prefácio para a Crítica da Economia Política.

Para Trotsky, a visão linear do processo histórico dava subsídio a ideia de que seria

possível construir o socialismo em um só país dentro de um mundo capitalista. Por conta disso,

sua crítica ao marxismo “oficial” difundido pela URSS sob Stalin é muito severa. Assim, por um

lado, é necessário de fato incorporar a totalidade da dialética no sistema mental que resume a

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evolução da economia humana, evitando com isso a queda no determinismo economicista ou o

retorno à utopia. A dialética impede a visão linear-homogênea, e todos com domínio do método

concordam com isso. Qualquer um que estude com seriedade os escritos de Marx e Engels em

associação com os fatos históricos de sua época concordará com a perspectiva de que o processo

histórico de vitória do comunismo depende da dissolução das localidades nacionais na integração

proletária de todo o mundo. Como poderia o chamado final do Manifesto ser esquecido assim?

Por outro lado, é necessário perceber que a contraposição de Trotsky à difusão de um marxismo

oficial criou ele mesmo uma outra corrente dogmática de estudo do método de Marx e Engels.

Por esta razão, é necessário separar com muito cuidado o autor (Trotsky) do Trotskysmo, assim

como é fundamental distinguir toda forma de -ismo da personalidade que deu início à escola.

A contraposição de Trotsky em relação à URSS não é absoluta, e seria um erro

extremamente grave interpretar que ele não considerava a experiência iniciada ali como a mais

avançada de toda a história no que tange à construção do socialismo. É também importante não

interpretar a análise de Trotsky como se fosse possível reduzir os elementos de causa do desvio

às decisões deliberadamente equivocadas de um grupo dirigente, pois estas decisões estão

atreladas à análise concreta da situação atual. No entanto, como em toda esfera da ciência, estas

decisões não podem extrapolar as condições de restrição objetivas que delimitam o raio de ação

em cada momento específico.

Aqui entra o contraponto que demanda atenção de todos os interessados em compreender

os primeiros passos após a conquista do poder pela classe trabalhadora na Rússia. A intenção

original de Trotsky era realizar uma investigação sobre a situação presente da URSS com base

no método do materialismo histórico, ou seja, a partir do estudo sobre as forças sociais em

disputa em torno do controle de reprodução econômica na região politicamente dominada pelo

poder bolchevique. Mas, conforme ficou nítido que a dependência do sucesso da Revolução

Internacional, ou seja, na Europa e, de modo mais direto, no globo todo, era enorme, parece que

alguns dos seguidores de Trotsky tiveram a tendência de achar que a opção política de

isolamento era uma escolha livre. Desta maneira, como resultado desta interpretação apressada

da avaliação de Trotsky, o socialismo em um só país aparece como uma opção ilógica conforme

a própria teoria de Marx e Engels, que nunca titubearam em afirmar que a definitiva

consolidação do socialismo só pode ocorrer em escala mundial e nunca de maneira separada por

uma nação com economia integrada ao desenvolvimento capitalista.

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Considerando isto é que se deve indagar: como explicar esta opção “irracional” de

relevância geopolítica tremenda? Assim como a NEP foi posta em prática devido aos empecilhos

concretos de avanço, a tática de isolamento parece ter sido muito mais uma necessidade do que

uma escolha. Quando as condições de ação se estreitam, é preciso agir militarmente conforme o

método para que os objetivos não sumam e para que a batalha não seja imediatamente perdida.4

A derrota da Revolução na Alemanha teve um preço de repercussão temporal que nunca pode ser

subestimado. Ela inviabilizou a progressão do sucesso da Revolução Russa e forçou o

desabrochar torto de um socialismo que se aproximou limitadamente da trajetória rumo à

definitiva libertação econômica e política da classe trabalhadora. Este fenômeno é um processo

histórico concreto e não o resultado da ação de indivíduos descolados do processo de

desenvolvimento real, com o que se é impelido a concluir que a crítica de Trotsky à URSS se

refere à descoberta dos movimentos concretos da história que permitiram determinadas ações

políticas serem adotadas como diretrizes gerais, e não às ações políticas em si.

A necessidade da Revolução Mundial é um fato objetivo que culmina na rejeição da tese

de socialismo em um só país. Mas quais foram as condições que permitiram a adoção desta

estratégia política, visto que ela é, teoricamente, contraditória com a consolidação do socialismo

em todo o mundo? Para responder isto de modo satisfatório é preciso estudar com maior cuidado

o momento histórico em que a Revolução Russa se descola do Ocidente, o que possibilitará

explicar diversas coisas como a formação do reformismo a partir da social-democracia alemã, a

ascensão do fascismo, a Segunda Guerra Mundial e a própria estrutura burocrática da URSS que

não correspondia perfeitamente aos anseios da classe trabalhadora mundial.

O internacionalismo é uma solução teórica, mas o problema prático está em outro

patamar. O processo Revolucionário europeu falhou e se expandiu sob formas não contempladas

pelo esquema geral que Marx pôde construir pelo estudo da ascensão do capitalismo. O terceiro

mundo entrou em cena cedo, mas a linha diretiva oficial do movimento comunista não conseguiu

absorver todas as mudanças que permitissem contornar a dificuldade do isolamento. Em que

medida este isolamento era contornável? Em que medida ele era absolutamente impossível de

evitar? São estas questões que devem ser atacadas caso se pretenda entender melhor porque a

Revolução Russa de 1917 não conseguiu desencadear em nível global o processo derradeiro de

superação da ordem capitalista. A simples apresentação de uma solução abstrata para um

4 Ver a apresentação de Harnecker (2004) sobre o domínio da técnica militar de Lenin.

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problema concreto não poderá ir além do que a mera constatação de que a URSS não deu certo

porque a Revolução Mundial não avançou.

Trotsky certamente não se contentou com esta constatação, e por isso, toda recuperação

de seu estudo sobre a Rússia e a Revolução Socialista deve incluir a minuciosa análise da

situação histórica que impedia a efetivação da solução teórica de fazer a Revolução se espalhar

pelo mundo (ou de apoiar as Revoluções independentes que começam a pipocar na periferia

capitalista). Esta é a preocupação indicada neste contraponto para que se possa adotar as ações

corretas de multiplicação efetiva do internacionalismo revolucionário quando as oportunidades

históricas se abrirem outra vez no século 21. O vínculo entre a periferia (anti-imperialista) e o

centro (imperialismo) será crucial para que as dicotomias afastantes do desenvolvimento

desigual e combinado sejam usadas em proveito do socialismo. A associação dos trabalhadores

destas duas partes que compõem a unidade do modo de produção capitalista mundial está no

âmago do problema revolucionário supranacional.

Transportando isso para a situação presente de nosso país, só se pode concluir que,

conforme o imperialismo brasileiro se fortalece, mais necessária é a educação revolucionária

internacionalista que internaliza a postura anti-imperialista em relação ao próprio Estado

brasileiro. Contrapor-se, portanto, ao imperialismo capitalista do Brasil é o mínimo que se pode

fazer de dentro da nação para atuar hoje com efetividade na cadeia da luta anti-capitalista global.

As manifestações desde 2013 ilustram que há a oportunidade de realizar esta educação e que, se

não for aproveitada, pode ser substituída pelo perigo de um arrebatamento pró-imperialismo

nacional cuja eventual vitória será motivo de vergonha ao povo trabalhador brasileiro por todo o

resto da História.

Referências

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Economia. Traduzido do russo por Jacob Gorender e Josué de Almeida, terceira

edição de Moscou, 1959. Rio de Janeiro: Vitória.

Harnecker, Marta. (2004). Estratégia e Tática. Expressão Popular: São Paulo.

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Marx, K. ([1859] 1982). Prefácio. Para a Crítica da Economia Política. Edições

Progresso Lisboa. Disponível em:

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Marx, K. ([1891] 1973). Kritik des Gothaer Programms. Marx-Engels-Werke (MEW

19,4). Berlim: Dietz Verlag. Publicado orignalmente em Die Neue Zeit, Nr. 18, 1.

Band, (1890 – 1891). Disponível em português em:

http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/ [16/09/2013].

Trotsky, L. ([1930] 2007). História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann.

Trotsky, L. ([1936] 1980). A Revolução Traída. Global Editora Brasil.