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by Tiago Camarinha Lopes
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MARX 2014| Seminário Nacional de Teoria Marxista – Uberlândia, 12 a 15 de maio de 2014
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Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica à URSS:
um contraponto
Tiago Camarinha Lopes1
Resumo
A análise de Trotsky sobre a Revolução Russa e sua crítica aos problemas da URSS são
apresentadas de acordo com suas principais obras que tratam destes dois temas. Um
contraponto é feito em relação à reprodução da avaliação de Trotsky sobre o processo
histórico em questão: da mesma forma que o marxismo oficial soviético, uma corrente
específica do marxismo, se transformou em dogma e se estranhou em relação à filosofia
da práxis, o trotskysmo, outra corrente específica do marxismo, também se distanciou do
método revolucionário para se automultiplicar como forma de se opor à primeira corrente
citada. É proposto o estudo cuidadoso do processo histórico que gerou a cisão do
movimento comunista internacional após a morte de Lenin como maneira de estimular a
consideração dos revolucionários leninistas clássicos nos estudos científicos sobre a
História mundial do século 20.
Palavras-chave: Revolução Russa, trotskysmo, internacionalismo, história
1 Professor de economia política da UFG, Goiânia, GO. [email protected]. Este brevíssimo ensaio
organiza minhas notas sobre o tema da Revolução Russa debatido no grupo de estudos Rosa Vermelha Núcleo
Uberlândia entre 2011 e 2012. Agradeço a todos os participantes pela construção coletiva desta linha de estudo, em
especial, ao prof. Paulo Gomes. Todo o argumento se refere à minha interpretação particular.
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Introdução
Depois da sistematização de Marx e Engels sobre a produção intelectual do socialismo
utópico, o socialismo científico passou a ser extensa e intensivamente popularizado em todos os
meios de organização dos trabalhadores na segunda metade do século 19. Um dos pontos mais
difundidos do materialismo histórico ficou arquivado em um esquema exposto de forma mais
direta por Marx em seu escrito Prefácio para a Crítica da Economia Política. Este esquema
enfileirava ao longo de uma linha do tempo o que passou a ser designado como “modo de
produção”. Feudalismo, capitalismo e socialismo apareciam então como uma sequência
relativamente fixa no processo de avanço histórica da jornada dos trabalhadores rumo ao
comunismo. Mas ao mesmo tempo em que este esquema dava uma direção lógica à História de
forma didática, ela tornava a série de determinações complexas analisadas por Marx uma coisa
excessivamente simples.
De forma muito resumida, a linha colocava a sequência feudalismo, capitalismo e
socialismo como uma série temporal muito simplista, o que gerou uma interpretação
excessivamente estreita sobre o que Marx pensava do processo revolucionário concreto no plano
geográfico mundial. Foi atribuída a ele a noção de que a Revolução Socialista só poderia ocorrer
no centro do sistema capitalista, onde as forças produtivas eram suficientemente desenvolvidas.
De fato, a expectativa de Revolução na Alemanha, que ultrapassa a Inglaterra e a França na
fronteira dos acontecimentos políticos, era muito grande no final do século 19. No entanto, a
gigantesca falha da social democracia alemã em evitar a Primeira Guerra Mundial e encaminhar
a destruição da Era dos Impérios para a construção do socialismo pôs em debate esta visão
simplificada do processo de mudança de modo de produção.
O sucesso da Revolução Socialista na Rússia começa, portanto a avaliar de que modo a
leitura linear, não-dialética das descobertas de Marx precisa ser superada para que as estratégias
de Revolução possam brotar de qualquer ponto do globo a partir dos problemas concretos da
população trabalhadora local. Uma das vertentes do socialismo marxista que defende esta
perspectiva é aquela que decorre das análises e propostas de Leon Trotsky.
Com este ponto de partida, este artigo apresenta o resumo de Marx sobre seu eixo
conclusivo de investigações que inauguram a sistematização de seu método de estudo da história
(sessão 2), a análise de Trotsky sobre os motivos da Revolução Socialista ter acontecido na
Rússia e não na Europa Ocidental (sessão 3) e suas principais críticas à formação da União
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Soviética que não conseguiu dar continuidade ao processo revolucionário com segurança rumo
ao comunismo (sessão 4).
Ao final, atrelado à apresentação da lei do desenvolvimento desigual e combinado, é feito
um contraponto à visão difundida entre a corrente trotskysta de que os descaminhos da
Revolução Russa decorrem exclusivamente de opções políticas livres, chamando atenção para as
condições objetivas que bloquearam o desabrochar da Revolução em nível internacional (sessão
6). A conclusão é a de que, após maior difusão do pensamento de Lenin na academia, os
historiadores, cientistas sociais, filósofos e economistas devam voltar sua atenção para os estudos
sobre os fatores que criaram uma cisão profunda no movimento comunista internacional e que
emperram atualmente uma maior compreensão tanto sobre o sistema soviético quanto da História
geral da ação política da classe trabalhadora que se liberta para sempre da Europa para rondar
todo o globo já na primeira metade do século 20.
2 Eurocentrismo e materialismo histórico
Após concatenar os resultados mais desenvolvidos da filosofia alemã, da política
socialista francesa e da Economia Política Inglesa em uma série de investigações (Lenin
([1913]), Karl Marx encontrou um eixo-guia para a compreensão das transformações da
organização da sociedade ao longo da história que poderia auxiliar no processo de atuação
consciente sobre o desenrolar desta. No Prefácio para a Crítica da Economia Política, esta linha
é apresentada de forma muito resumida para situar o leitor no contexto em que se insere a
contribuição de Marx à ciência econômica, que vinha sendo sistematicamente apropriada pelo
movimento socialista após sua aderência irrestrita à ideologia burguesa dos então chamados
economistas. Por ser um texto amplamente utilizado para a popularização do Marxismo (ou da
corrente Marxista de socialismo), é importante relembrar um único ponto dele como maneira de
fixar na memória como o eurocentrismo sucumbe frente ao novo critério de fronteira geográfica
da história da civilização humana exposto por Marx.
Em determinados momentos do processo histórico, de acordo com Marx, as relações
sociais de produção entram em contradição com as forças produtivas existentes. Isto gera uma
época de revolução social, onde os membros da sociedade assimilam a contradição dentro da
estrutura no âmbito superstrutural, onde as ideias, costumes, regras sociais entram em conflito
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aberto. A relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e as novas formas ideológicas é
um processo dialético, sem determinação unilateral. Marx utiliza expressões delimitantes deste
nexo e não termos que indiquem uma direção única de causalidade. Por esta razão, é adequado
concluir que as forças produtivas apenas condicionam a amplitude em que podem se desenvolver
as mais diversas expressões ideológicas, ou seja, as forças produtivas fornecem apenas a base
material que permite o desabrochar e expansão de certas ideias no imaginativo coletivo. A
reinterpretação do esquema apresentado por Marx no Prefácio para a Crítica da Economia
Política é importante para superar o padrão rígido em que o materialismo histórico foi
reproduzido após o estabelecimento de uma linha “oficial” do movimento comunista. Isto é
fundamental, também, para a superação do eurocentrismo como um dos passos específicos de
ultrapassagem do paradigma do iluminismo que serve de base para a elaboração do socialismo
científico.
O curso histórico analisado até o século 19 indicava que a civilização da Europa
Ocidental se encontrava em um ponto de domínio sobre a forças da natureza que não tinha
paralelo na história conhecida. Em outros termos, o uso da ciência de maneira sistemática no
processo de produção criou forças produtivas gigantestas, que combinavam a força de trabalho
de extensões consideráveis de trabalhadores. A separação definitiva e ampla dos trabalhadores de
seus meios de produção libertou as forças do dinheiro que pode a partir daí se converter em
capital sistematicamente, o que revoluciona de alto a baixo todo o aparato produtivo tecnológico.
Em combinação com o esboço de Marx sobre a relação entre a produtividade e as formas de
organização social para a produção e distribuição, difundiu-se a noção de que a transição para o
modo de produção socialista teria seu início nesta região onde as tecnologias eram as mais
avançadas. Depois da consolidação das relações sociais burguesas, expressa na Revolução
Francesa, os olhares se voltaram para a Alemanha, onde a continuação do processo
revolucionário que já transitava com relativa liberdade dentro da Europa parecia ter um caráter
mais transformador.
Marx e Engels, assim como os adeptos do socialismo científico, não se prendiam aos
estratagemas teóricos na hora de avaliar a situação concreta do presente ou o fluxo dos
acontecimentos políticos. Para eles, o método de estudo e ação do qual a classe trabalhadora
deve se apropriar não tem o objetivo de fazer previsões sobre o futuro, mas de guiar a prática
para que se atinja os objetivos almejados. A atenção sobre a Alemanha como lócus geográfico
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relevante na cadeia da Revolução Socialista tinha respaldo empírico e teórico. Em nenhum
momento o método de estudo e de suporte ao movimento socialista desenvolvido por Marx se
compromente a fazer previsões fixas descoladas das mudanças das condições concretas na
correlação de forças da luta de classes. É justamente uma das diferenças entre os socialismos
não-marxistas e o socialismo científico a incorporação plena da filosofia da práxis para o
cumprimento do objetivo do movimento: a edificação do comunismo. Assim, a linha de ação não
está presa à teoria, mas o contrário: a teoria é elaborada a partir da prática de luta pela conquista
deste objetivo. Desta forma, ao invés de fazer previsões e se surpreender a cada instante quando
se percebe que nem tudo o que fora previsto ocorreu (o que é inevitável devido justamente ao
fluxo mutante constante do movimento real), os comunistas avaliam a cada instante as mudanças
na realidade para que o movimento nunca perca sua direção rumo ao objetivo final, que é a
consolidação do modo de produção comunista em todo o globo e a definitiva superação do
capitalismo.
Com o fracassso da social-democracia alemã em 1914 e o sucesso da Revolução Russa
em 1917, ficou evidente que o espectro comunista rondava um raio territorial mais amplo do que
aquele indicado no Manifesto do Partido Comunista. A Revolução não deveria ocorrer no centro
capitalista desenvolvido? Apenas uma leitura presa ao esquema cartesiano do iluminismo
poderia gerar uma interpretação tão estreita do que Marx quis dizer quando explicitou que a
época de revolução social explicita uma transformação na organização social da reprodução
material. O processo revolucionário após a formação do capitalismo tem amplitude geográfica
cada vez maior, pois a sociedade mundial foi totalmente interligada pelas forças produtivas
desenvolvidas sob o capital. A Revolução Russa de 1917 não pode ser vista como uma surpresa,
mas como uma oportunidade de avaliar como o movimento comunista deixa para sempre o
círculo estreito do Velho Continente para se espalhar com velocidade enorme sobre todo o resto
do mundo no século 20. O materialismo histórico, compreendendo os condicionantes concretos
que fizeram do ponto geográfico europeu o pontapé definitivo para a conquista do capitalismo
em escala mundial é ao mesmo tempo o ápice da perspectiva europeia da história humana e sua
completa destruição devido ao reconhecimento de que a transição do capitalismo, que possui um
centro de sistema, para o socialismo, que é um sistema heterogêneo integrado por todos os povos
de maneira não exploradora, já é uma realidade.
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3 O triunfo da Revolução na Rússia segundo Trotsky
Trotsky analisa com profundidade teórica e histórica o sucesso da Revolução Socialista
na Rússia em sem livro “História da Revolução Russa” de 1936. Resumidamente, o processo de
conquista do poder pelo Partido Bolchevique sob liderança de Lenin pode ser dividido em três
etapas.
A primeira etapa tem início com as revoltas de 1905 e se encerra em Fevereiro de 1917. É
a última fase do domínio do antigo regime na Rússia, ou seja, o período final da Duma Estatal do
Império Russo. As transformações na Rússia que indicavam o esgotamento deste regime
apareceram na superfície inicialmente em 1905. Segundo Lenin, foi um ensaio geral para a
revolução de 1917. O ano de 1905 pode ser contemplado como o início do processo que gera
1917. Na visão plástica de Trotsky, a sociedade russa estava “vomitando” o velho regime.
Diferente dos casos europeus, em que o regime de organização feudal foi sendo eliminado ao
longo de vários anos, a Rússia teve de fazê-lo rapidamente, no primeiro quarto do século 20. Já
então aparecem os primeiros sinais de esgotamento do regime monárquico. Houve uma
manifestação de milhares de trabalhadores em São Petersburgo que foi reprimida pelo tsar. Os
marinheiros do couraçado Potemkim também se revoltaram em 1905 por conta da decisão do
governo de atacar o Japão. Houve também uma greve geral, quando os trabalhadores começaram
a se organizar em sovietes, forma de governo inventada e praticada pela primeira vez na Comuna
de Paris. Como reação a estes distúrbios, o tsar Nicolau II formou a Duma (Duma Estatal do
Império Russo em 1905). Na Duma enfrentavam-se os partidos que podem ser alinhados na
escala linera típica esquerda - direita. Este modelo funcionou então até Fevereiro de 1917, e é
possível ver o período de 1905 até Fevereiro 1917 como de aprendizado das massas sobre o
processo de revolução em curso.
A segunda etapa é a formação do que Trotsky chama de duplo poder, ou a conclusão da
fase anterior pela Revolução de Fevereiro de 1917. Aqui há a derrubada do tsar e a tentativa de
formar uma República liberal. O Palácio de Tauride é tomado por soldados e trabalhadores. Era
neste local que a Duma se reunia. A partir daí, dois poderes irão se formar em instituições
separadas: o Governo Provisório (contendo Kerenski, um dos líderes da Revolução de Fevereiro,
preocupado em segurar o processo na etaba burguesa, mas que não conseguiu conter a
Revolucao de Outubro) e o Soviete de Petrogrado (continuando a formação dos sovietes de 1905
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pelos trabalhadores organizados em sua busca pela conquista do Estado). Essas duas formações
ilustram o que Trotsky chama de “duplo poder”, fenômeno que ocorre em momentos de
Revolução. O duplo poder emerge quando a tensão entre a reação e revolução é muito grande, de
tal forma que um único poder não consegue conter todas as forças sociais em disputa pelo
Estado. São de fato duas forças paralelas que lutam para se consolidar como a única que controla
o Estado.
Figura 1: Esquema do duplo poder
Reação ← [antiga dominante ← nova dominante → povo (trabalhadores)] → Revolução
“nobreza” “burguesia” “trabalhadores/camponeses”
Governo provisório Soviete de Petrogrado
A terceira etapa é a conquista definitiva do poder pelo Partido Bolchevique, tendo como
base social de apoio os operários das cidades e os camponeses pobres. Este é o momento do
movimento militar final em que os Bolcheviques cercam e tomam Petrogrado (Golpe dos
Bolcheviques). Chamada também Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha, é a
derrubada do governo provisório e início da formação do governo sem compromisso com a
classe capitalista. A partir daqui começa a Guerra Civil Russa e depois, a formação da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922.
Qual é o significa histórico da Revolução Russa de acordo com a análise de Trostky
(1936)? A tese central de Trotsky é a de que a Revolução Socialista ocorreu na Rússia devido às
características específicas de sua economia e sociedade. Devido ao elevado grau de
desenvolvimento capitalista nos países europeus ocidentais, o tsarismo russo vai se aprofundando
em contradições cada vez mais graves e agudas. Este processo de apodrecimento do tsar torna-se
visível a partir de 1905. Trotsky afirma que o atraso funcionou como criador de condições de
Revolução, pois este atraso era combinado com os elementos avançados do Ocidente. A
disparidade de avanço ideológico de ponta (simbolizado na rápida assimilação do marxismo na
Rússia, que atropela com nítida velocidade todas as formas locais de socialismo utópico) com
atraso material e cultural geral evoca a solução explosiva da contradição que é resolvida com
base no reformismo do Ocidente. É de certa forma consensual admitir que as particularidades da
Rússia, dentro da cadeia dos imperialismos que se defrontam na Primeira Guerra Mundial, são os
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fatores que possibilitaram a eclosão da Revolução Socialista ali. Mais importante do que fazer
esta averiguação é fixá-la na teoria para que se possa moldar as ações revolucionárias dali em
diante. Aqui começa a trajetória de Trotsky para sistematizar a lei do desenvolvimento desigual e
combinado e a revolução permanente.
O apêndice ao capítulo 1 de História da Revolução Russa (pg. 429 - 437) contém uma
exposição muito bem resumida da tese de Trotsky sobre a Revolução Russa. É uma resposta de
Trotsky a Pokrovsky, que defendia a linearidade em Marx como esboçada criticamente na sessão
anterior. Aqui, Trotsky salienta que o dogmatismo a partir da leitura de Marx já aparece com
muita volúpia. Já no século 19 os russos estão tentando entender as peculiaridades do país e de
seu capitalismo. Inicialmente, os pensadores se apóiam nos narodniks2, que argumentam que há
um “desvio do capitalismo”. Depois, com a introdução do marxismo, diversos pensadores
atacam os narodniks, argumentando que não é possível haver desvio do capitalismo. Nesta ânsia
por desmontar os narodniks, caiu-se na mecanização dogmática, que teve enorme influência na
tradição marxista inicial. Este “massacre” dos nadodniks que leva ao efeito colateral de gerar
aquela linearidade no materialismo histórico é apontado por Rosa Luxemburgo como uma das
explicações objetivas para a formação do marxismo oficial da URSS.
Considerando o aspecto estratégico de difusão do método de Marx, o tratamento que
deveria ser dado aos utópicos de origem camponesa é diferente desta reação truculenta dos
marxistas russos, que culminou em linearidade. De acordo com Trotsky, Lenin revelou o genuíno
significado histórico do movimento agrário russo, o que possibilitou o apoio do camponês ao
operário. Sem este “ajuste fino” de meio de campo entre as duas principais classes que formam o
povo russo (proletariado assalariado e camponeses probres), a Revolução Russa não teria
triunfado. É consenso entre historiadores que Lenin foi o principal responsável por conseguir
asseguar esta aliança para derrotar os representantes do capital em seu país. Ele soube ler as
condições concretas locais e elaborar as tarefas práticas que davam conta destes problemas
concretos.
Com isso em mente e, amparados pela tese de Trotsky publicada anos depois, torna-se
possível interpretar por que a revolução ocorreu na Rússia: não é necessário o desenvolvimento
das forças produtivas no local (nação), pois isto já ocorre em alguma outra parte do mundo.
2 Conhecidos também como populistas russos, uma espécie de socialistas utópicos que queriam imputar seus ideais
aos camponeses. Agiram com força nos anos 1860 e 1870, e atuaram no debate sobre a Questão Agrária.
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Assim, quando o fim do feudalismo se delinea, a revolução neste local tem forte potencial para
avançar além da Revolução Burguesa. Por isso, a Revolução de Fevereiro não conseguiu ser
paralizada e descambou para a Revolução de Outubro. Trotsky, por outro lado, seguindo Marx,
enfatiza que se o resto do mundo não acompanhar a revolução mundial socialista apenas iniciada
na Rússia, não haverá sucesso. Daí deriva uma parte do que virá a ser o “trotskysmo”, ou seja, a
centralidade metodológica do desenvolvimento desigual e combinado junto com o
internacionalismo revolucionário. De modo muito enfático, Trotsky conclui que Outubro de
1917 já entrou na História como conquista e que nenhum esforço reacionário poderá apagar este
episódio de avanço da memória do povo.
4 Traição da Revolução na visão de Trotsky
A conquista do poder pelos bolcheviques não significava, no entanto, o fim da construção
do comunismo. Era apenas o primeiro passo do processo de edificação da ordem socialista na
Rússia. Dito de outra forma, 1917 é um avanço, mas marca apenas a continuação do processo
revolucionário socialista amplo que foi iniciado com a Comuna de Paris em 1871. Mas o
domínio do Estado revela que todos os problemas da transição devem ser ainda solucionados. De
1917 até a morte de Lenin, em 1924, muitos problemas concretos apareceram, colocando o
triunfo da Revolução Socialista em risco. De modo muito resumido, após o Comunismo de
Guerra, momento em que a economia russa se organizou para repelir os inimigos do povo e
consolidar o poder bolchevique, houve um retorno estratégico ao uso do mecanismo do mercado
para assegurar o apoio dos camponeses à Revolução. A NEP (Nova Política Econômica) agia
como um recuo consciente para permitir o aprofundamento da organização econômica e social
do socialismo. Este aprofundamento, de fato veio, ainda que em um formato rígido da
planificação econômica central já sob a liderança de Stálin. Neste intervalo, Trotsky começou a
apontar para problemas sistemáticos da construção em curso que impediam, em sua visão, a
realização do ideal contido no movimento comunista, agora já avançando para os confins da
periferia capitalista. Para ele, estes problemas eram muito fundamentais em diversos aspectos da
organização que o Partido assumia e colocavam em risco o caminho para o comunismo.
Trotsky reuniu suas avaliações sobre este descaminho da União Soviética no livro
intitulado A Revolução Traída. Sua intenção era fazer uma análise com base no próprio método
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de Marx de investigação da história para verificar o caráter verdadeiro do processo de
transformação após os anos 1920. Seguindo seu prefácio, aprendemos que o interesse pela URSS
era já na época muito grande em todo o mundo. O ocidente, por exemplo, inicialmente fingiu não
ver o avanço econômico que se operava sob a nova ordem anti-capitalista. Depois, segundo ele,
diversos livros pró-URSS surgiram apreciando e idealizando a economia soviética de modo
muito bajulativo, ou seja, sem avaliação crítica. Até então, ou seja, até 1936, Trotstky afirma que
nenhuma análise científica sobre o que acontecia na União Soviética havia sido feita. As obras
dos “amigos da URSS” (Trotstky usa esse termo para designar poderes políticos que simpatizam
com o burocratismo) ficaram no âmbito de estudos não-científicos, podendo ser classificadas
como formalismo amador, comunismo humanitário e socialismo universitário. Segundo Trotsky,
são análises que revelam “veneração contemplativa e harmoniosa com o mundo burguês”. Esta
modalidade de estudo da sociedade formada a partir da Revolução de 1917 poderia ser
considerada condizente com a “máscara” do sistema, ou seja, ela mesma refletia que o
socialismo em curso ali era apenas de aparência. A proposta de Trotsky vai na direção contrária:
ele quer fazer uma exposição crítica, revelando e explorando as contradições e os problemas da
URSS, mostrando assim, o “rosto” por trás da referida máscara.
A linha de argumento de Trotsky para concluir que o processo revolucionário está em
degeneração segue toda a análise efetuada na explicação da própria Revolução Russa.
Inicialmente, ele aborda o legado que os socialistas herdam da Rússia tsarista. Em uma palavra,
este legado é de baixo desenvolvimento econômico e material, ideia transmitida plasticamente
pela noção de passado pesado e sombrio da Rússia. Como forma de ilustrar esta inferioridade na
técnica, Trotsky usa dados para explicitar que o patamar de conforto material atingido até então
não atinge o nível encontrado nos países capitalistas. E aqui entra o argumento de que a
Revolução foi possível justamente por conta deste atraso no desenvolvimento da Rússia. Esta
idéia é desenvolvida abstratamente pela lei do desenvolvimento desigual e combinado: a
sociedade periférica, ao se ver impelida a transformar, põe em movimento não a revolução já
realizada pelo centro, mas a revolução seguinte e mais avançada. Trotsky salienta que essa
recuperação da técnica deve “durar todo um período histórico”, em que o novo regime deve
assimilar as conquistas técnicas e culturais do Ocidente.
Em seguida, Trotsky explica como o processo de direção teve a trajetória de zigue-zague:
primeiro centralizando fortemente para assegurar a operação do Exército Vermelho contra o
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exército branco dos capitalistas e imperialistas entre 1918 e 1921. Esta organização contou com a
contribuição de Bukharin e Preobrajenski e o plano econômico era basicamente a solução do
problema de abastecimento das cidades sob domínio do exército vermelho. Trotsky lembra que o
assim chamado Comunismo de Guerra servia para sustentar as indústrias de guerra e combater a
fome, e que a direção central fez baixar a produção consideravelmente (o esforço empregado na
Guerra Civil resultou na escassez, devido, principalmente, à necessidade de requerer o excedente
do trabalhador camponês à força). Houve um regresso econômico brusco por conta destas novas
relações sociais de produção. Esperava-se avidamente pela revolução no Ocidente, com o que os
problemas de escassez estariam solucionados. Mas a falha da social-democracia, como
mencionado, impediu o triunfo da Revolução nas economias avançadas. Devido a esse cenário
de escassez e à fragilidade a que chegou a aliança operário-camponese, base de todo o sucesso da
Revolução Russa, Lênin percebeu a necessidade reestabelecer o mercado e iniciou a NEP (Nova
Política Econômica). Assim, num segundo momento, os camponeses foram liberados para
produzirem mercadorias, ou seja, a direção revolucionário admitiu a operação mais livre do
mecanismo de produção e distribuição via mercado. O Comunismo de Guerra era uma forma de
controle total da economia que violava a lei do valor. Logo no início, tentou-se abolir
imediatamente a lei do valor.3 Os planos não obedeciam os limites técnicos ou as condições de
demanda. Trotsky escreve portanto que “a experiência mostrou depressa que a própria indústria,
embora socializada, tinha necessidade dos métodos de cálculo monetário elaborados pelo
capitalismo” (p. 71). Isso demonstra que cedo foi notada a necessidade de enfrentar o problema
do cálculo econômico no socialismo. Numa terceira virada, finalmente, há o retorno para a
centralização econômica com o advento dos Planos Quinquenais em 1928 para a realização da
industrialização.
Neste ponto, Trotsky segue uma pergunta que servirá para seu julgamento sobre a
situação em que se encontra a URSS dos anos 1930: o socialismo já está realizado na URSS? Ao
buscar uma resposta, ele faz uma prévia teórica, apresentando os conceitos do materialismo
histórico e detalhando as diferenças entre a teoria e a realidade.
Com base no resumo de Marx no Prefácio para a Crítica da Economia Política, ou seja,
com base na teoria elaborada pelo estudo cuidadoso de Marx de toda história até então, o período
3 Essa tentativa será posteriormente assimilada na teoria produzida pelos economistas soviéticos como se a
passagem da lei do valor para a organização comunista fosse (ou pudesse ser) imediata. Ver por exemplo o Manual
de Economia Política da URSS: Academia de Ciências da URSS (1961).
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de transição se encontra claramente entre a sociedade burguesa, o passado, e a sociedade
comunista, o futuro. Este estágio de transição pode ser pensado como um estágio inferior do
socialismo (ou mesmo como estágio superior da sociedade burguesa) onde a igualdade ainda é
colada nas normas sociais de trocas de equivalentes. Apenas na sociedade comunista este
princípio é superado e substituído pela regra social de produção e distribuição explicitada por
Marx na Crítica ao Programa de Gotha (Marx ([1891] 1973) condizente com os interesses da
classe trabalhadora assalariada em harmonia com as forças produtivas mais avançadas: de cada
um de acordo com suas capacidades, para cada um de acordo com suas necessidades.
Mas, na realidade, os revolucionários se deparam com uma situação que não se enquadra
com facilidade no esquema de Marx. A Revolução Socialista triunfou na Rússia, uma economia
cujo desenvolvimento não está naquele período de transição, mas ainda antes do próprio estágio
burguês. Esta circunstância peculiar da história criou contradições que foram sendo solucionadas
na formação do Estado soviético. Teria sido assim que surgiu o aparelho burocrático, um
elemento imprevisto na teoria original e que entrava o avanço para o socialismo. Esta
discrepância é uma primeira indicação para tentar explicar objetivamente o que Trotsky chama
de degenerência burocrática, que pode ser analisada pelo fator econômico (o que ele faz no
capítulo 4) e pelo fator político (capítulo 5).
Pelo lado econômico, Trotsky explica como a luta pelo rendimento do trabalho engendra
as contradições dos limites e superação da organização social burguesa. O dinheiro, lembra ele,
deve cumprir sua missão histórica antes de virar um “meio de contabilidade cômodo para a
estatística e para o plano” (p. 104). Este lembrete faz parte de sua explicação direcionada aos
elementos anarquistas que querem a abolição imediata do dinheiro e do Estado, com o que fica
visível que havia inicialmente uma tentativa de burlar a lei do valor de modo direto, como
previamente aludido. Trotsky caçoa dos “professores obedientes” sob Stalin (dos economistas da
União Soviética) porque eles querem que os preços sejam diretamente determinados pelas
diretrizes, pelo plano, sem qualquer limite imposto pelas condições objetivas (Trotsky ([1936]
2008), p. 110), lembrando com Marx que “nunca o direito poderá se elevar acima do regime
econômico” (p. 115). O núcleo do argumento de Trotsky aqui é que a URSS não possui o nível
de desenvolvimento necessário para que ela possa erguer um estágio de transição que seja
superior ao capitalismo encontrado no Ocidente. Ou seja, ainda que o socialismo com o qual se
lida seja um estágio inferior e tenha de seguir padrões de distribuição da sociedade burguesa, ele
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deve ser superior ao capitalismo concreto do Ocidente (culturalmente, materialmente, etc…), e é
justamente isso o que não ocorre na URSS.
Já o fator político tem a ver com o que Trotsky designa de termidor soviético. Além deste
fator econômico para explicar o descaminha da Revolução, existe um outro elemento que
completa o cenário para fundamentar a impossibilidade objetiva da continuação da Revolução
Socialista na Rússia. Segundo Trotsky, não só o baixo desenvolvimento das forças produtivas
explica a degenerência burocrática na URSS, pois, além disso, há um fator político relevante que
se expressa na defesa de privilégios (p. 138) e no afastamento da burocracia em relação aos
trabalhadores. A burocracia, uma construção imposta pelas condições adversas em que a
conquista do poder se deu, tornou-se cada vez mais autônoma do movimento comunista
sustentado pelo povo trabalhador. Esta separação cria a possibilidade da dogmatização do
marxismo num movimento espantosamente inverso ao pretendido pela transformação do
socialismo utópico em ciência. Depois de explicitar como a defesa de privilégios reproduz a
existência das desigualdades sociais por meio de uma separação muito brusca entre uma elite
dirigente e os trabalhadores que obedecem, Trotsky avalia a produção de ideias e de cultura na
URSS como forma de tentar entender como este movimento espantoso ocorre.
Segundo Trotsky, inicialmente, a Revolução abriu caminho para transformações
profundas na estrutura familiar. No entanto, devido aos problemas mencionados (nível de
desenvolvimento histórico baixo), a instituição família se mantém e a mulher não adquire a
liberdade conforme os princípios do socialismo. Apesar da vontade de destruir a família
tradicional, havia desconfiança sobre as creches e jardins de infância do Estado. Com o tempo,
percebeu-se as vantagens da educação coletiva e da socialização da economia familiar, mas “a
sociedade mostrava-se demasiadamente pobre e pouco civilizada” (p. 164) permanecendo muito
resistente a esse tipo de mudança. Em relação à juventude frente ao revolucionamento da
sociedade, Trotsky é muito crítico: as gerações jovens não cresceram em liberdade, sendo
acostumadas a seguir fiéis ao superior, obedecendo sem discussão. Este padrão inviabiliza a
cultura socialista e a crítica ao estabelecido. Seu reflexo na sociedade é capturado por Trotsky
quando diz que “o ensino e a vida social dos escolares e estudantes estão profundamente
penetrados de formalismo e de hipocrisia” (p. 176). A juventude é na verdade “generosa,
intuitiva e empreendedora” (p. 178), mas a estrutura do Estado degenerado e o conflito de
gerações impede o florescimento da cultura jovem revolucionária, com o que ela se torna uma
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força social incógnita (p. 181). A própria arte, expressão das ideias de fronteira, está posta sob
completo controle, sendo incapaz de replicar a essência revolucionária.
Em vista disso, Trotsky explica que o dogmatismo encontra um ambiente propício para se
desenvolver na URSS. E o Marxismo não escapa a isso. Por esta razão, em termos teóricos,
Trotsky acha que nada de interessante foi publicado desde Lenin e afirma que “a produção
marxista não sai dos limites de compilação escolástica” (p. 191). A partir daí se tem os elementos
para entender o que foi o processo de conversão do socialismo de Marx em uma doutrina oficial,
que se espalhou mundialmente como a estrutura absoluta de interpretação dos escritos de Marx,
Engels e Lenin.
Em relação à política externa, Trotsky argumenta que “teoria” do socialismo em um só
país de 1924 significou o desvínculo da política externa com a Revolução Mundial e que a
Política Externa da URSS de cultivar “amigos” pacificistas não resolverá os problemas de
avanço da Revolução. O que ocorre? A Revolução Internacional não se desenvolve, e a
Burocracia apenas “neutraliza” a burguesia integrando a URSS no status quo. Resultado: a
Revolução Russa fica isolada da Revolução Internacional. É gerado assim um pacto perpétuo de
não-agressão entre capitalismo e socialismo. Por esta razão, Trotsky dá extrema importância ao
movimento internacional para dar prosseguimento à Revolução. Mas a ajuda do Ocidente não
vem, ficando nítido que a formação do fascismo/nazismo é um fenômeno espelhado do stalismo
segundo Trotsky, do ponto de vista do descaminho do processo da revolução. Apesar desta
comparação (que pode e é largamente usada pelos inimigos do povo trabalhador) Trotsky é
sempre muito enfático em admitir que a URSS é um sistema progressista, enquanto a Alemanha
nazista é um sistema reacionário, ou seja, na sua visão, é inaceitável igualar os dois sistemas sem
qualificação.
Finalmente, para fundamentar sua conclusão crítica a respeito da trajetória da União
Sovietica, Trotsky indaga de forma muito direta: o que é a URSS? As transformações ocorridas
entre 1905 e 1917 não deixam dúvidas de que houve um avanço em direção à configuração de
relações sociais distintas daquelas que dominam o mundo capitalista. A propriedade privada está
sendo efetivamente contestada nesta experiência, embora sua completa abolição não tenha sido
concluída. Em outras palavras, todo o povo ainda não controle de modo direto os meios de
produção e por isso não se pode dizer que o comunismo está implantado na URSS. A
propriedade está “no meio do caminho”, presa na forma de estatização: “a propriedade do Estado
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só se torna de “todo o povo” na medida em que desapareçam os privilégios e as distinções
sociais e, consequentemente, o Estado perca a sua razão de ser” (p. 233). De forma contundente,
para Trotsky, o que existe não é o socialismo de interesse da classe trabalhadora, mas de um
grupo de privilegiados:
“A famosa palavra de ordem: “os quadros tudo decidem”, caracteriza, muito mais
abertamente do que Stalin desejaria, a sociedade soviética. Os quadros são
chamados, por definição, para exercer a autoridade. O culto dos quadros
significa, primeiramente, o da burocracia. Na formação e educação dos quadros,
como em outros domínios, o regime soviético cumpre uma tarefa que a
burguesia, há já muito tempo, terminou. Mas como os quadros soviéticos
aparecem sob a bandeira do socialismo, exigem honras quase divinas e
emolumentos sempre mais elevados. De maneira que a formação de quadros
“socialistas” é acompanhada por um renascimento de desigualdade burguesa.”
(Trotsky ([1936] 2008), p. 234).
Trata-se, então de um capitalismo de Estado? Não, pois isto colocaria a URSS no mesmo
lugar que o Estatistmo na Alemanha de Hitler, nos Estados Unidos de Roosevelt e na França de
Leon Blum, sistemas cujo objetivo do controle é a manutenção da propriedade privada e do
capitalismo. A similaridade entre os dois sistemas (controle capitalista e União Soviética sob
Stalin) decorre da estrutura burocrática que afasta o povo trabalhador das instâncias de decisão
política. Esta burocracia é o que há de comum, pois “(...) a burocracia da URSS assimilou os
costumes burgueses sem ter a seu lado uma burguesia nacional” (p. 242). Outra evidência da
diferença que sustenta a opinião de Trotsky de que a URSS não é um capitalismo de Estado é o
fato de que “o funcionário não pode transmitir aos seus herdeiros o seu direito à exploração do
Estado” (p. 242). Os objetivos dos sistemas são completamente distintos: no Ocidente, o Estado
associado ao capital intenta manter o sistema econômico e social capitalista, enquanto o que
parte da Rússia tem a meta de superar este sistema. Mas devido aos problemas concretos de
efetivação da Revolução Socialista em escala internacional sua forma é similar, devido ao fato
do nexo histórico da Revolução em curso, de transição do capitalismo para o modo de produção
comunista não-primitivo, ser essencialmente global e não nacional.
Portanto, para Trotsky, se a ditadura burocrática cair e não houver a substituição pode um
poder socialista, o capitalismo irá voltar a dominar a estrutura social que foi modificada com a
Revolução de 1917. Em que medida o poder soviético se apóia no poder socialista? indaga
Trotsky. Em sua visão, em pouca mais de uma década, a modificação das ideias dos líderes do
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processo de revolução foi tão intensa que esta é uma questão séria que deve ser analisada pelos
comunistas de todo o mundo. A burocracia é a camada social na URSS que encontra-se
completamente satisfeita, e que por isso, tem resistência em alterar a situação. Mas como a
edificação da ordem comunista não está concluída, esta burocracia se torna um entrave à
continuação do processo revolucionário. Neste sentido, Trotsky anota que “como força política
consciente a burocracia traiu a revolução” (p. 244).
Em uma palavra, de acordo com Trotsky, a Revolução Russa estabeleceu novas relações
sociais de produção. Mas, por conta de especificidades históricas (isolamento internacional,
refluxo da revolução internacional, atraso econômico e cultural da Rússia entre outros), houve
uma contra-revolução política. Esta contra-revolução não vai contra as novas relações de
produção, mas ela tira o poder político do proletariado para transmití-lo a uma burocracia, cujos
interesses não coincidem com os da classe trabalhadora. A partir daí forma-se o Estado da URSS
e uma camada social que busca manter os privilégios. A URSS se encontra, portanto, numa
bifurcação: ou a contra-revolução progride e o sistema volta ao capitalismo ou a Revolução
Mundial avança e quebra o burocratismo, tanto dos sistemas fascistas quanto do sistema
soviético degenerado.
5 Internacionalismo: solução teórica, problema prático
O internacionalismo revolucionário defendido por Trotsky contra a tese de socialismo em
um só país de Stálin é uma das noções mais difundidas de popularização sobre a divergência do
movimento comunista que emerge com o fim da liderança de Lenin. Na tentativa de chamar a
atenção para os fatores objetivos que complicavam a realização do comunismo na URSS,
Trotsky acabou produzindo uma série de análises que foram incoporadas ao corpo teórico
iniciado por Marx, Engels e continuado por Lenin. Um dos principais pontos desta produção
intelectual é a oposição à interpretação rígida do esquema de sucessão dos modos de produção
apresentado por Marx no Prefácio para a Crítica da Economia Política.
Para Trotsky, a visão linear do processo histórico dava subsídio a ideia de que seria
possível construir o socialismo em um só país dentro de um mundo capitalista. Por conta disso,
sua crítica ao marxismo “oficial” difundido pela URSS sob Stalin é muito severa. Assim, por um
lado, é necessário de fato incorporar a totalidade da dialética no sistema mental que resume a
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evolução da economia humana, evitando com isso a queda no determinismo economicista ou o
retorno à utopia. A dialética impede a visão linear-homogênea, e todos com domínio do método
concordam com isso. Qualquer um que estude com seriedade os escritos de Marx e Engels em
associação com os fatos históricos de sua época concordará com a perspectiva de que o processo
histórico de vitória do comunismo depende da dissolução das localidades nacionais na integração
proletária de todo o mundo. Como poderia o chamado final do Manifesto ser esquecido assim?
Por outro lado, é necessário perceber que a contraposição de Trotsky à difusão de um marxismo
oficial criou ele mesmo uma outra corrente dogmática de estudo do método de Marx e Engels.
Por esta razão, é necessário separar com muito cuidado o autor (Trotsky) do Trotskysmo, assim
como é fundamental distinguir toda forma de -ismo da personalidade que deu início à escola.
A contraposição de Trotsky em relação à URSS não é absoluta, e seria um erro
extremamente grave interpretar que ele não considerava a experiência iniciada ali como a mais
avançada de toda a história no que tange à construção do socialismo. É também importante não
interpretar a análise de Trotsky como se fosse possível reduzir os elementos de causa do desvio
às decisões deliberadamente equivocadas de um grupo dirigente, pois estas decisões estão
atreladas à análise concreta da situação atual. No entanto, como em toda esfera da ciência, estas
decisões não podem extrapolar as condições de restrição objetivas que delimitam o raio de ação
em cada momento específico.
Aqui entra o contraponto que demanda atenção de todos os interessados em compreender
os primeiros passos após a conquista do poder pela classe trabalhadora na Rússia. A intenção
original de Trotsky era realizar uma investigação sobre a situação presente da URSS com base
no método do materialismo histórico, ou seja, a partir do estudo sobre as forças sociais em
disputa em torno do controle de reprodução econômica na região politicamente dominada pelo
poder bolchevique. Mas, conforme ficou nítido que a dependência do sucesso da Revolução
Internacional, ou seja, na Europa e, de modo mais direto, no globo todo, era enorme, parece que
alguns dos seguidores de Trotsky tiveram a tendência de achar que a opção política de
isolamento era uma escolha livre. Desta maneira, como resultado desta interpretação apressada
da avaliação de Trotsky, o socialismo em um só país aparece como uma opção ilógica conforme
a própria teoria de Marx e Engels, que nunca titubearam em afirmar que a definitiva
consolidação do socialismo só pode ocorrer em escala mundial e nunca de maneira separada por
uma nação com economia integrada ao desenvolvimento capitalista.
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Considerando isto é que se deve indagar: como explicar esta opção “irracional” de
relevância geopolítica tremenda? Assim como a NEP foi posta em prática devido aos empecilhos
concretos de avanço, a tática de isolamento parece ter sido muito mais uma necessidade do que
uma escolha. Quando as condições de ação se estreitam, é preciso agir militarmente conforme o
método para que os objetivos não sumam e para que a batalha não seja imediatamente perdida.4
A derrota da Revolução na Alemanha teve um preço de repercussão temporal que nunca pode ser
subestimado. Ela inviabilizou a progressão do sucesso da Revolução Russa e forçou o
desabrochar torto de um socialismo que se aproximou limitadamente da trajetória rumo à
definitiva libertação econômica e política da classe trabalhadora. Este fenômeno é um processo
histórico concreto e não o resultado da ação de indivíduos descolados do processo de
desenvolvimento real, com o que se é impelido a concluir que a crítica de Trotsky à URSS se
refere à descoberta dos movimentos concretos da história que permitiram determinadas ações
políticas serem adotadas como diretrizes gerais, e não às ações políticas em si.
A necessidade da Revolução Mundial é um fato objetivo que culmina na rejeição da tese
de socialismo em um só país. Mas quais foram as condições que permitiram a adoção desta
estratégia política, visto que ela é, teoricamente, contraditória com a consolidação do socialismo
em todo o mundo? Para responder isto de modo satisfatório é preciso estudar com maior cuidado
o momento histórico em que a Revolução Russa se descola do Ocidente, o que possibilitará
explicar diversas coisas como a formação do reformismo a partir da social-democracia alemã, a
ascensão do fascismo, a Segunda Guerra Mundial e a própria estrutura burocrática da URSS que
não correspondia perfeitamente aos anseios da classe trabalhadora mundial.
O internacionalismo é uma solução teórica, mas o problema prático está em outro
patamar. O processo Revolucionário europeu falhou e se expandiu sob formas não contempladas
pelo esquema geral que Marx pôde construir pelo estudo da ascensão do capitalismo. O terceiro
mundo entrou em cena cedo, mas a linha diretiva oficial do movimento comunista não conseguiu
absorver todas as mudanças que permitissem contornar a dificuldade do isolamento. Em que
medida este isolamento era contornável? Em que medida ele era absolutamente impossível de
evitar? São estas questões que devem ser atacadas caso se pretenda entender melhor porque a
Revolução Russa de 1917 não conseguiu desencadear em nível global o processo derradeiro de
superação da ordem capitalista. A simples apresentação de uma solução abstrata para um
4 Ver a apresentação de Harnecker (2004) sobre o domínio da técnica militar de Lenin.
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problema concreto não poderá ir além do que a mera constatação de que a URSS não deu certo
porque a Revolução Mundial não avançou.
Trotsky certamente não se contentou com esta constatação, e por isso, toda recuperação
de seu estudo sobre a Rússia e a Revolução Socialista deve incluir a minuciosa análise da
situação histórica que impedia a efetivação da solução teórica de fazer a Revolução se espalhar
pelo mundo (ou de apoiar as Revoluções independentes que começam a pipocar na periferia
capitalista). Esta é a preocupação indicada neste contraponto para que se possa adotar as ações
corretas de multiplicação efetiva do internacionalismo revolucionário quando as oportunidades
históricas se abrirem outra vez no século 21. O vínculo entre a periferia (anti-imperialista) e o
centro (imperialismo) será crucial para que as dicotomias afastantes do desenvolvimento
desigual e combinado sejam usadas em proveito do socialismo. A associação dos trabalhadores
destas duas partes que compõem a unidade do modo de produção capitalista mundial está no
âmago do problema revolucionário supranacional.
Transportando isso para a situação presente de nosso país, só se pode concluir que,
conforme o imperialismo brasileiro se fortalece, mais necessária é a educação revolucionária
internacionalista que internaliza a postura anti-imperialista em relação ao próprio Estado
brasileiro. Contrapor-se, portanto, ao imperialismo capitalista do Brasil é o mínimo que se pode
fazer de dentro da nação para atuar hoje com efetividade na cadeia da luta anti-capitalista global.
As manifestações desde 2013 ilustram que há a oportunidade de realizar esta educação e que, se
não for aproveitada, pode ser substituída pelo perigo de um arrebatamento pró-imperialismo
nacional cuja eventual vitória será motivo de vergonha ao povo trabalhador brasileiro por todo o
resto da História.
Referências
Academia de Ciências da URSS. (1961). Manual de Economia Política. Instituto de
Economia. Traduzido do russo por Jacob Gorender e Josué de Almeida, terceira
edição de Moscou, 1959. Rio de Janeiro: Vitória.
Harnecker, Marta. (2004). Estratégia e Tática. Expressão Popular: São Paulo.
Lenin, V. I. ([1913]). As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: Obras
Completas de V.I. Lénine, 5. ed. em russo, t. 23, pp. 40 – 48. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/tresfont.htm [15/02/2014].
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Marx, K. ([1859] 1982). Prefácio. Para a Crítica da Economia Política. Edições
Progresso Lisboa. Disponível em:
http://www.marxists.org/portugues/marx/1859/01/prefacio.htm [14/02/2014].
Marx, K. ([1891] 1973). Kritik des Gothaer Programms. Marx-Engels-Werke (MEW
19,4). Berlim: Dietz Verlag. Publicado orignalmente em Die Neue Zeit, Nr. 18, 1.
Band, (1890 – 1891). Disponível em português em:
http://www.marxists.org/portugues/marx/1875/gotha/ [16/09/2013].
Trotsky, L. ([1930] 2007). História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann.
Trotsky, L. ([1936] 1980). A Revolução Traída. Global Editora Brasil.