Trindade - Parmenides Contra Parmenides

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    estudiosos que se dedicam reconstituio da mensagem integral de Parmnides e aquelesque se concentram na avaliao e interpretao da imagem fixada pela tradio imediata.

    esta ltima tendncia que se pode colher em Sexto Emprico, na manifestao doconflito entre Razo e sentidos com que abre seu o comentrio ao Poema:

    Parmnides desprezou o discurso opinativo(doxastou logou), digo, o que seapoia em suposies(hypolepseis) fracas, para suportar como critrio a Razo(epistemonikon) infalvel, renunciando crena nos sentidos ( Adv. Math. VII111-114).

    transcrio de B1.1-30, que o cptico interpreta alegoricamente (112-114),reforando a sua crtica sensibilidade, seguem-se sem interrupo os fragmentos 7.2-6a e

    8.1, at uma coda, que repete 7.2-6a. Num registo menos polmico, trs sculos depois, oaristotlico Simplcio ecoa ainda este ponto de vista, inserindo nos seus comentrios atranscrio de B6, B8.6-57 ss., 38 (in phys. 117,2; 78,2; 86, 25): Parmnides, passando dosinteligveis aos sensveis ou, como diz, da verdade opinio... (in phys. 30, 13).

    Para a secundarizao do alcance filosfico da Via da Opinio, concorrem, portanto,trs motivos:

    1. a nenhuma ateno que recebe da tradio imediata (com a excepo deAristteles);

    2. a falta de unidade, devido disperso temtica e carcter fragmentrio;3. o contexto polmico em que Parmnides a insere, bem como os mais importantescomentadores, na Antiguidade.

    Por essa razo, seguindo a linha maioritria da crtica, a partir de Diels e Zeller, ainterpretao aqui avanada concede prioridade ao estudo do argumento do Poema, fazendo-oa partir da influncia que exerceu na tradio imediata de Parmnides e no futuro da prpriafilosofia.

    No poema Da natureza, o Eleata coloca na boca de uma deusa um complexoargumento2 do qual ressalta a unidade lgica, epistemolgica e ontolgica de uma entidade

    englobante a que chama o ser. Com ela, funda uma nica realidade/verdade3

    (aletheia),

    2 Alguns estudos desvalorizam o aspecto argumentativo do Poema, concentrando-se na leitura em profundidadedos tesouros ocultos no seu rico e original vocabulrio. Justifico o meu menor interesse por essa opo pelofacto de a imensa influncia do Eleata na tradio ser devida, precisamente, aos incontornveis argumentoscom que fora os Gregos a aceitarem concepes, de todo contrrias tanto s doutrinas da tradio, quanto sua experincia do quotidiano (vide a justificao apresentada por Zeno para compor os seus argumentos:Plato,Parmnides 128c-e). Reconhecendo que a leitura que fao do argumento ser discutvel, remeto para acomparao com as quatro recentemente apresentadas, emThe Cambridge Companion to Early Greek Philosophy, A.A. Long (ed.), Cambridge 1999: David Sedley, Parmenides and Melissus (113-125), R.McKirahan Jr., Zeno (157, n. 15), D. W. Graham, Empedocles and Anaxagoras (165-166), J. H. Lesher,Early Interest in Knowledge (236-241).

    3 A traduo dealetheia por realidade/verdade antecipa a identificao da mensagem do Poema com a defesado ser (vide A. P. D. Mourelatos,The Route of Parmenides, New Haven and London 1970, 67).

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    correspondente a um nico pensamento(noein, noema) ou a uma nica coisa4 pensada edita: o ser. Esta unidade e identidade acha-se cunhada no fragmento 3 do Poema: Pois, omesmo pensar e ser5.

    O argumento no difcil de seguir, apesar de a sua interpretao ser controversa6. Sse pode pensar (B2.2): e no ; porque no h outra alternativa: negando um chega-se

    ao outro, negando este regressa-se ao primeiro (B2.3b, B2.5b). Mas no no pode (ouno para:vide n. 5) ser pensado, nem apontado (B2.7-8), por no ser informativo (B2.6),tambm porque ser e pensar so o mesmo (B3). Daqui se segue ser prprio que ser,dizer e pensar sejam (B6.1a), porque so possveis (B6.1b; so para ser); [enquanto]nada no (B6.2a).Ora os mortais ignoram esta disjuno7, por confundirem ser e no ser (afirmando e negando: 6.8), forados pelo hbito dos olhos sem alvo, ouvidos tonitruantes e lngua (7.3-5a).Por isso, h que, pelo argumento (B7.5a) opor-lhes a prova muito disputada (B7.5b): ,

    cujos sinais (B8.2b) so a seguir enumerados:

    4 O termo traduz o artigo definido grego neutro, usado para substantivar um adjectivo, um verbo, ou umapreposio, criando um termo e, s vezes, um conceito novo: no caso, o ser,to eon. Na continuao doPoema, ser aparece quer na forma infinitiva, no substantivada, em formas conjugadas (p. ex.estin ), querainda no infinitivo de outros verbos gregos homricos com o mesmo sentido(emmenai, pelein, pelenai). Alngua grega exprime esta entidade antepondo o artigo neutro to s formas do infinitivo ou do particpio doverbo: o ser, como em o pensar, o dizer, etc. Pode ainda criar substantivos: por exemplo,noema.

    5 Vide 6.1-2, 8.34-35. Uma traduo literal de B3, excessivamente spera, em portugus, seria Pois, o mesmo para pensar e ser. Mas h um curioso paralelo metafrico em Empdocles, que no costuma ser posto emcausa: poros esti noesai via para pensar: DK31B3.13.Vide ainda o estudo de C. Kahn, includo nestevolume Algumas questes controversas nas interpretaes de Parmnides. Para esta construo deeinai com infinitivo,vide A. Gomez Lobo,Parmenides, Buenos Aires 1985, 59, que atribui ao infinitivo um sentidofinal, apoiado em Khner-Gerth, Ausfrliche Grammatik der grieschichen Sprache, Zweiter Teil: Satzlehre,Vol. II, Hannover und Leipzig 1904, 473, 3, p. 9 sqq).Vide ainda A. Mourelatos,Op. cit., 55-56, n. 26.Contra, C. KahnThe Verb Be and its Synonyms Dordrecht/Boston 1973, 292-296 (a obra fundamental parao conhecimento dos usos do verbo, a partir de Homero). tentador incluir B3 como concluso de B2, apesardo gar inicial. Parece, porm, difcil justificar o silncio de Simplcio por esta opo, sendo B3 apenasreportado por Clemente,Strom. VI, 23, Plotino, En. V 1, 8, e Proclo,in Parm. 1152, em contextosmarcadamente espiritualistas. Note-se ainda que DK sugere a ligao a B2 (vide J. Mansfeld, Die Offenbarungdes Parmenides und die Menschliche Welt, Assen 1964, 82, que sugere a interpolao de um verso, entre B2.8e 3).

    6 Provavelmente, reagindo presena do referidogar, P. Curd,Op. Cit. nega a possibilidade de ler B2-B3 comoum argumento conclusivo contra a via negativa, embora lhe reconhea a forma de um silogismo disjuntivo(15-23). Sem decididamente encadear estes dois fragmentos, lendo-os como um argumento, a interpretaoaqui apresentada regista a excluso da via negativa (B2.6-8a;vide G: Owen, Eleatic Questions, 55-61), qual associada a identidade de ser e pensar (B3).

    7 Parece-me excessiva a conjectura de N.-L. Cordero, Les deux chemins de Parmnide, Paris 1984, 132-175,cujo maior mrito reside em ter mostrado que a interpretao tradicional repousa sobre no mais que umaconjectura! A proposta dearxei em vez do consensualeirgo, de Diels, tem a desvantagem de substituir umaconjectura fundada num paralelo indiscutvel (7.2), do qual h sinais em Simplcio (in phys. 117,2), delaresultando uma leitura andina de 6.3, por uma outra,sobre a qual repousa toda a sua interpretao da Via daVerdade. Seja como for, a leitura de N.-L. Cordero apresenta dois mritos incontestveis: insistir na estruturadual da argumentao, e impossibilitar o apoio na proposta de Diels, salientando o seu carcter conjectural.

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    A8. ingnito e indestrutvel (B8.3), compacto, inabalvel, sem fim (B8.4), eternamentepresente, homogneo, uno, contnuo (B8.5-6a), pois no tem origem, nem razo de ser (B8.9-10) no nada (B8.6b-10);

    B. 1) ou no (B8.9, 11, 16), pois, [tambm] no nasce a partir do ser, ao lado dele (B8.12-13): no nasce, nem morre (B8.13b-14a); 2) pois no impensvel e inexprimvel (B8.17-18), enquanto autntico (B8.19); e como nasceria ou morreria? (B8.19); no era, nemvem a ser, pois se nasceu, ou ser, no (B8.20);C . indivisvel (B8.22a), homogneo, contnuo, cheio, consigo (22b-25);D. imvel/imutvel (B8.26), sem princpio nem fim (B8.27), pois ingnito e indestrutvel(B8.27b-28): o mesmo, imvel e firme (B8.29);E . no incompleto (B8.32), pois de nada carece, enquanto, no sendo, de tudo careceria(B8.33); sendo limitado, completo (B8.42), equilibrado como uma esfera (B8.43-45),invarivel, inviolvel, igualmente nos limites (B8.46-49).

    Esta srie de concluses, resultantes da aceitao de 9, por fim reintegrada na tese quesumaria o argumento inicial:F. O mesmo o pensamento e a causa-fim(houneken) do pensamento (B8.34), pois sem oser no h o pensar10 (B8.35-36); s o ser : inteiro e imvel (B8.36-38a) e a ele [se referem]todos os nomes postos pelos mortais, iludidos (B8.38b-41).

    Sobre esta leitura do argumento e em relao aos seus pressupostos e finalidades, h

    duas observaes a registar. Ao invs dos seus antecessores na tradio que explicam agnese do cosmo pela emergncia dos contrrios a partir de uma natureza original11(physis) ,na Via da Verdade, Parmnides no presta qualquer ateno ao mundo exterior. A, o seuponto de partida a experincia humana do pensamento e da linguagem12.

    8 Pargrafos introduzidos para facilitar a leitura.9

    A. Mourelatos,Op. cit., 90-93, contesta que possa ser encarado como a premissa sobre a qual assenta arefutao dos atributos superficialmente positivos (134; refutados com termos negativos:agenneton,anolethron, akineton, adiaireton, ouk ateleuteton ). As duas vias de B2 constituiriam duas linhas de pesquisasobre a verdadeira essncia das coisas, a segunda das quais conduz dos mortais, caracterizada pela confusodas duas primeiras. A vantagem desta perspectiva proporcionar a passagem daaletheia doxa.

    10 Complementando B3, 8.34-36 desfaz a simetria da identidade, apontando o ser como a causa dopensamento.

    11 Aristteles Met. A3, 983b6 sqq. Na continuao feita referncia a Tales, mas o incio do texto aponta osque primeiro filosofaram, implicitamente os Milsios. No ser excessivo encar-los como alvo implcito dascrticas, de Heraclito noo de contrrios, e, de Parmnides ignorao dos sinais do ser, acimaenumerados.

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    Esta concluso decorre simplesmente da abordagem doesti do Poema como ... a forma de juzo, ou daafirmao. (A. Mourelatos,Op. Cit., 51 sqq. A interpretao remete explicitamente para G. Calogero,StudisullEleatismo, Roma 1932.Vide ainda M. Furth, Elements of Eleatic Ontology,The Pre-socratics, A.P.D.Mourelatos (ed.), Garden City, New York 1974, 241-270.

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    existencial, por outro, no se vem, at Plato, sinais de ateno problemtica da existncia.De resto, parece inconsistente verter duas formas do mesmo verbo grego por dois verbosportugueses com sentidos e implicaes filosficas profundamente distintas: em expressescomo, por exemplo, o ser existe.

    Da prolongada convivncia com as obras citadas de Charles Kahn e AlexanderMourelatos19, acompanhada pelo estudo das recepes que nestas trs dcadas tiveram,resultaram duas concluses:

    1. O reconhecimento, por todos, no s da ambiguidade dos sentidos deeinai, comoda dificuldade de fixar leituras definidas, em certas frmulas, capitais para ainterpretao do argumento do Poema, implica caracterizar o verbo grego pelafuso20de vrios sentidos, inseparveis;

    2. A natureza abrangente da entidade metafsica conjurada no Poema o ser corresponde perfeitamente polissemia do verbo grego, manifesta nas suas formasparticipial to eon , infinitiva einai e flectida:estin.

    Da inseparabilidade das leituras deeinai no ser difcil dar provas. Por exemplo, umbem conhecido argumento de Eutidemo, no dilogo platnico do qual epnimo, claro aeste respeito. Eis o texto: possvel mentir?... ...(1)21 Dizendo a coisa(to pragma) sobre a qual seja(ei) o discurso(logos), ou no adizendo?

    Dizendo.(2) Portanto, se algum a diz, no diz nenhuma outra das coisas que so(allo tn ontn), ano ser aquela que diz?... ...(3) E esta, que diz, uma s das coisas que so(hen tn ontn), separada das outras?... ...(4) Portanto, aquele que diz diz aquilo que (to on) ?

    19 C. H. Kahn, The Greek Verb To Be and the Concept of Being,Foundations of Language, 2 (1966), 245-265; TheVerb BE, 1973;Why existence does not emerge as a distinct concept in Greek Philosophy, Archiv

    fr Geschichte der Philosophie LVIII, 1976, 323-334; Some Philosophical Uses of To Be in Plato,Phronesis XXVI, 1981, 105-134. A.P.D. Mourelatos,The Route of Parmenides , 1970, especialmente 48-49;Heraclitus, Parmenides and The Nave Metaphysics of Things, Exegesis and Argument: Studies in Greek Philosophy Presented to Gregory Vlastos, Phronesis, suppl. Vol. 1, Assen and New York 1973, 40-46;Determinacy and Indeterminacy, Being and Non-Being, New Essays on Plato and the Presocratics, R. A.Shiner, J. King-Farlow (eds.), Ontario 1976, 45-60.

    20 Que eu saiba, a metfora da fuso foi cunhada por M. Furth,Pre-socratics, 243, restrita s leituraspredicativa e existencial. J. Barnes,The Presocratic Philosophers,1, London, Henley and Boston 1979, 160,nega veementemente a fuso, ou confuso ... dos dois usos do verbo, argumentando no encontrar traode um predicativo nessa caracterizao (acima atribuda a muitos estudiosos)

    21 Para facilitar o comentrio, numermos as falas. As reticncias indicam a aquiescncia do interlocutor. Atraduo de Adriana Nogueira,Plato, Eutidemo, Lisboa, 1999 (com pequenas modificaes).

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    ... ...(5) Mas a pessoa queverdadeiramente (ge) diz aquilo que (to on) e as coisas que so(taonta) diz a verdade(taleth legei) ( Eutid. 283e-284a).

    Seguindo a numerao acima:(1) liga o discurso coisa dita;(2) inclui-a na classe das coisas que so;(3) individualiza-a, separando-a dos outros membros da classe;(4) generaliza a identidade entre dizer e dizer aquilo que ;(5) identifica dizer aquilo que e coisas que so com dizer a verdade.

    O passo (1) identifica um acto de fala22 (mentir, falar, dizer) com a coisadita; to pragma confunde deliberadamente facto do discurso com o objecto do discurso(aquilo sobre o que ele ). O passo (2) comea por explorar o equvoco, incluindo esseobjecto na classe das entidades, coisas que so(ta onta); depois estabelece a identidadedessa entidade consigo prpria e a sua diferena em relao s outras. (3) refora a oposioda unidade e identidade da coisa dita s outras, das quais separada. (4) generaliza a partir daanterior, conferindo a todo o discurso o poder de referir entidades. (5), truncando a definiocorrente de verdade, apoiada em Parmnides B7.1 (no impors que so as coisas que noso; dizerque so as coisas que so: PlatoCrt. 385b; Sof. 263b), identifica dizerentidades(ta onta legein) com dizer a verdade(taleth legein).

    Passada a falcia inicial, a chave do argumento acha-se na convergncia de vriossentidos de ser nas formas conjugadas, acima assinaladas: o presenteestin e o conjuntivoi,alm dos particpiosto on, ta onta. O passo (3) confere unidade e identidade a toda a entidade,em (4), criada pelo discurso, da qual, em (5), deduzida a verdade.

    Vejamos como. Se algo, includo na classe das coisas que so, , assumido comouma entidade (algo que ). Sendo distinta e separada das outras coisas que so, por seraquilo que e no qualquer outra coisa, ganha uma identidade prpria.

    A atribuio ao discurso da capacidade de dizer aquilo que (4;vide a identificaode dizer, pensar e ser: Parmnides B6.1a), investindo-o do poder de criar entidades,

    constitui uma falcia (pois do facto de o discurso se referir a algo no se segue:

    1. que todo o discurso afirme que algo ;2. ou seja sobre algo que !).

    neste ponto que intervm a ambiguidade.

    22 Vide adiante Apndice.

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    Este que refere uma entidade idntica a si prpria e distinta das outras (3), a qualinevitavelmente existe. Embora nada no texto a convoque explicitamente, impossvelnegar existncia convergncia da entidade una com a identidade.

    A introduo da verdade, em (5), s vem reforar a segunda identidade: agora dodiscurso com aquilo que (4). O todo apoia-se em Parmnides B7.123. Portanto, a mentira impossvel e verdade, por nenhuma outra razo que a de ter podido ser dita!

    Da falcia inicial24 e do facto de dizer, o sofista deduz sucessivamente: a identidade eexistncia (aquilo a que chamamos realidade) das coisas ditas, e a verdade daquilo que dito. Ora, como seria possvel um ouvinte aceitar tal deduo, se as leituras identitativa,existencial e veritativa fossem percebidas separadamente? Como poderia passar de uma aoutra, se no fosse consensual a sua coincidncia na nica entidade que todas referem?

    Portanto, o respeito pela unidade semntica deeinai, em particular, em contextosfilosoficamente relevantes (aqueles que do origem a problemas filosficos de raiz, como osda identidade, da existncia, da predicao e da verdade), atesta o erro das tradues queseparam a leitura existencial do verbo grego, sempre que se verificar queipso facto cancelamtodas as outras (nomeadamente as identitativa e veritativa: as coisas como so, as coisasso assim).

    J quanto definio das leituras deeinai que coexistem no Poema, notrio odesacordo dos intrpretes. difcil decidir25 entre os sentidos que condicionam a traduo doverbo. Todavia, cabe perguntar: ser essencial chegar a um consenso sobre a interpretao decada ocorrncia?

    Em resposta, defendo que, mais importante que discernir os sentidos que o verboacumula, ser a constatao de que todos nele coexistem, inseparveis, at Plato iniciar, noSofista, a tarefa de desambiguao de cada um dos sentidos do verbo, condensando-o numdos sumos gneros Ser, Mesmo e Outro , resolvendo separadamente o problema daverdade.

    Consequentemente, as caractersticas salientes do verbo ser, em grego clssico, so:1. a ambiguidade do seu campo semntico, expressa na pluralidade de leituras que os

    textos documentam, em contextos muito relevantes, do ponto de vista filosfico;2. a impossibilidade deseparar essas leituras, na interpretao dos textos, quando

    no j na sua traduo.

    Em particular, a segunda nota merece maior ateno, pelo facto de exprimir a maissignificativa diferena do verbo ser, nos seus usos correntes, hoje, e na Grcia clssica.Descontando a especificidade do verbo existir para qualificar a leitura existencial, tambm overbo ser, em Portugus ou em qualquer outra lngua europeia, polissmico. A diferenagritante, em relao ao verbo grego, reside no facto de as diversas leituras do verbo serem

    23 A citao truncada deste verso, em 284c3, confirma a eliso deeinai, em einai ta me eonta. Note-se, pelocontrrio, a comparncia da clusulahos estin (que ) nas duas definies de verdade, em Plato (Crt. 385b;Sof. 263b).

    24 O equvoco entre falar e dizer (este, com o sentido de dizer a coisa dita: 283e9-284a1), ambostradues legtimas delegein.

    25 Como argumenta implicitamente C. Kahn, emThe Verb BE, Introduction, Indianapolis, 2003, VII-XXXIX;vide em especial VIII-XXXII.

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    separveis e inconfundveis por todos. claro que nenhum falante e pensante normal podehoje confundir-se com argumentos, como o de Eutidemo, atrs citado.

    Pois ningum supor que a atribuio de um predicado a um sujeito implique dealguma maneira a tenso entre a identidade de um com o outro e a diferena, patente nosnomes que os identificam. Ou que dizer uma verdade acarrete afirmar a existncia da entidadeda qual a alegada verdade afirmada. Ora, tudo isto natural porque as leituras predicativa,identitativa e veritativa se acham separadas na mente do sujeito.

    a constatao desta inseparabilidade, em muitos textos filosficos da Grciaclssica26, que me leva a avanar a hiptese de que o ser eletico uma entidade, cujanatureza reflecte ou reflectida pela unidade interna da gama dos sentidos lidos no termo quea refere. De acordo com essa unidade, a constituio do ser como uma entidade una, imutvel,completa e eternamente presente pode ser explicada pela reificao dos sentidos patentes noverbo grego, fundidos num referente abrangente27.

    Portanto, afirmar equivale a fazer convergir no ser a multiplicidade de leituras queo verbo inseparavelmente condensa, enquanto a mera considerao de algo que no evidencia o vazio referencial, patenteado pela sua incognoscibilidade e indeclarabilidade,tambm em todas as leituras do verbo (B2.5-8, B8.8-9, B8.16b-18a, B8.34-36a). dela queresulta a declarao da impensabilidade da via negativa, expressa em B8.16b-18a, a qual, porcontaminao, afectar ainda a via (B6.3-4) na qual vagueiam os mortais, que nada sabem(B6.4-5a), forados pelo costume a dizerem o que os sentidos lhes mostram (B7.3-5a).

    Terminada a fase refutativa do argumento (B2, B3, B6-7), a enumerao dos sinaisdo ser (resumidos acima: A-E, F28) exibe a gama dos sentidos deeinai, cuja proverbialambiguidade ser, primeiro, condensada por Plato na chamada verso cannica da teoria

    das Formas, depois, desfeita, noSofista, e, finalmente, afastada por Aristteles, com a tese deque o ser se diz de muitas maneiras (Fs. A185a22, passim ; vide Met. D7, 1017a22-35, e,em relao ao bem, EN A6, 1096a24-28, passim ).

    Se aceitarmos a interpretao acima, o argumento estabelece a ciso entre alinguagem/pensamento e a sensibilidade, contrastando o caminho do costume muitoexperimentado dos sentidos (B7.3-5a) prova muito disputada dologos (discurso, debate,argumento, razo: B7.5b), conducente ao caminho que (B8.1-2a;vide B2.3)29.

    Esta ciso foi to fortemente sentida na tradio, que pode reflectir-se num traoprofundo, comum aos pensadores identificados com a prtica da filosofia, nomeadamenteScrates e Plato. por ele que o saber deixa de residir na informao colhida e processada

    26 Por exemplo, nos fragmentos 3 e 3a, de Grgias; na concluso da Alegoria do Sol, na Repblica VI 508e-509b, em frmulas comoousia ontos ousa, no Fedro 247c, na exposio das diversas dimenses do dualismoplatnico, noTimeu 27d-28a.

    27 Com alguma plausibilidade, se a atitude perante o comportamento do verbo fosse uma criao de Parmnides,seria impossvel explicar o efeito que exerce na tradio e, como os dilogos platnicos atestam, nageneralidade dos gregos. Esta conjectura oferece a vantagem de explicar a relevncia crescente que a questoda unidade assumir, em Zeno, Plato e Aristteles (para quem Parmnides acima de tudo um monista eimobilista ;(Fs. A2, 184b15 sqq, Met. A3, 984a31, Da GC, A8, 325a3-4).

    28 Na sinopse acima, A, C, D-E exprimem a identidade, sob inmeros aspectos, positivos e negativos; B1), C) aunidade; B2) a verdade.

    29 No ser necessrio supor que Parmnides est a opor a Razo sensibilidade. Basta que nos concedam tersido nesse sentido que os seus continuadores o interpretaram.

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    atravs do complexo dadoxa, para se estabelecer no domnio inteligvel, ao qual s a almapode aceder, atravs do auto-conhecimento, mas nunca definitivamente possuir.

    Resta uma dificuldade. Considerando os sentidos fundidos na afirmao identitativo e veritativo, ou outros mais subtis

    30, manifesta a impossibilidade de umaleitura predicativa de ser, nos termos correntemente usados pelos homens31. A questo

    abordada em 8.38-39 e 19.3. Se todos os nomes que os mortais instituram so acercadele [o ser] (ti: B8.37-39), essa instituio no poder proceder seno da crena/opinio32 (19.1-3), j que a afirmao do ser no pode violar a identidade deste com o pensar, logo,consigo prprio33.

    A tese problemtica enquanto pensamento e ser se identificarem no uno, mas torna-se num programa de pesquisa, quando entre um e outro plos se interpe aquilo mesmo cujainconsistncia o Eleata pretende denunciar: a aparncia sensvel34. E ainda mais quando setorna claro que a tarefa da filosofia passa por explic-la. Foi para tal que Plato recorreu

    hiptese das Formas (vide Plato,Parmnides 134d-135d).Aqui a leitura de Parmnides se torna platonizante, j que as injunes da deusa sorecebidas e recontextualizadas no programa de pesquisa, contido no projecto epistmico dafilosofia platnica. No creio, contudo, que possa ser encarada como anacrnica ou redutora, j que o Plato dos dilogos contm uma boa parte do ncleo daquilo que constitui a prpriaactividade filosfica; sendo, por outro lado, indisputvel o lugar que a problemtica do ser ecom ela, o tratamento que a noo recebe, de Parmnides a Aristteles ocupa na tradio,at contemporaneidade.

    No h, portanto, uma leitura platonizante de Parmnides, mas o inverso que ocorre:a constante presena do Eleata na obra platnica. Esta profunda associao foi mascarada pela

    tradio, iniciada por Espeusipo, na Academia antiga, reforada tanto pelo mdio, como peloneo-platonismo, acabando com o Plato de A.E. Taylor, o ltimo a defender a aproximao dePlato aos Pitagricos.

    Em Plato, a influncia de Parmnides trabalhada de perspectivas convergentes,como:

    30 Vide A. Mourelatos, Determinacy and Indeterminacy, Being and No-Being, 47-53.31 difcil no ler o par deestin de 8.3, 4 predicativamente. Todavia, antecipando o argumento imediatamente a

    seguir, claro que toda a predicao que tem no horizonte um nico sujeito tende para a identidade. A.Mourelatos designa-a de predicao especulativa(The Route of Parmenides, 57-60).

    32 A interpretao legitimada pela assimilao da opinio instituio dos nomes pelos homens B19.1-3 ,que retroage sobre B8.38-39.

    33 A interpretao apia-se na citada leitura deesti como uma moldura proposicional, desenvolvida porMourelatos,The Route, 51-73. A vigncia desta reduo da predicao identidade, na Antiguidade, atestadapor numerosos passos (PlatoParm. 127e, DK29A13:vide R. Turnbull Zenos Stricture and Predication inPlato, Aristotle and Platinus, How Things are, Bogen & Maguire (eds.), Dordrecht 1985, 21-58), alm doconceito da predicao que Aristteles ( Met. D29, 1024b32-33) refere a Antstenes, usando a expressoenunciado prprio:oikeios logos. No Sofista, Plato menciona aqueles que sustentam que no se deve dizerque o homem bom, mas apenas que o bom bom e o homem homem (251b-c), visandoprovavelmente o mesmo Antstenes.

    34

    Vide Zeno DK29A13; Melisso DK30B8; Ps. Aristteles De Gorgia 24-28: DK68B3a. O problema nasce como debate sobre o lugar da Via da Opinio perante o argumento da deusa (vide a defesa dadoxa, por G.Casertano,Parmenide, il metodo, la scienza, lesperienza, Napoli, 1989); com a avaliao de Parmnides,como um fsico; ou com a dvida sobre a identificao do ser com o mundo real.

  • 7/28/2019 Trindade - Parmenides Contra Parmenides

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    ANAIS DE FILOSOFIA CLSSICA, Vol. 1 n 1, 2007Santos, Jos TrindadeParmnides contra Parmnides

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    1. contextualizao do saber no no saber, na obra socrtica;2. estruturao do projecto filosfico, na obra sobre a TF;3. desambiguao da unidade semntica deeinai, na obra crtica.

    Embora este texto se concentre na problemtica do ser, como exposta na Via daVerdade, cabe fazer uma breve referncia Via da Opinio. Defendo que a finalidade doargumento colocar os homens perante a escolha a que os obriga a deciso entre e no (ou e no ), decorrente da inconsistncia da segunda alternativa.

    O desafio (ou prova elenchos B7.5) parece pr-se entre dois modos,opostosou complementares, de considerar o real (vide B4): o pensamento e a sensibilidade. Oproblema que s o ser real, pois a regressividade (o palintropos keleuthos 6.9)caracteriza as prprias aparncias (ta dokounta: 1.31), no menos que a sensibilidade que as

    capta.Portanto, da preferncia do Eleata pela primeira alternativa, resultam a secundarizao

    da cosmologia e a correspondente exortao prtica da dialctica, pelo exerccio dologos (B7.5); de que B8-B9 constitui o paradigma (vide o eco, no poly ergon, do Parm. 136d1).

    Mas a denncia da ciso, por si, provoca uma imensa inovao. Atravs da deusa,Parmnides mostra aos homens a duplicidade da sua natureza, bem como o caminho para sairdela (vide a justificao oferecida por Zeno para o seu livro:Parm. 128a-e).

    Passo segunda questo. Nesse sentido, a Via da Opinio visar complementar oargumento da Via da Verdade muito mais do que exemplificar um erro. Mas a tarefa de ascompatibilizar no cabe deusa. O desafio ser aceite pelos ps-eleatas e consistir emmostrar como possvel pensar criticamente o cosmo, superando a atraco dos semelhantes(Empdocles DK31B109;vide o contexto do fragmento em Aristteles), pois a afinidadeelectiva da mistura(krasis) no pode sobrepor-se identificao do pleno com opensamento (B16.4).

    A concluso responde j terceira questo. A relacionao do ser com as aparncias,atravs do pensamento (B1.28-32, B8.34-41, B19.1-3), ser o programa a implementar pelapesquisa, mas no mais. Como muitos, penso que a esfera no representa as aparncias, poisnada tem de espacial, no sentido fsico. No passa de um smile, convocado para representariconicamente o real35, tal como o argumento o descreve. Mas, neste ponto, recamos, maisuma vez, em Plato.

    35

    Note-se a prolongada ateno, conferida por Guthrie, ao exame da questo dos peirata, no final inconclusiva:o ser ser espacialmente extenso, como as figuras usadas por Euclides, nos Elementos ( A History of Greek Philosophy II, Cambridge 1965, 35-49;vide ecos da questo no debate que ope D. Sedley a R. McKirahan eD. Lesher.