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António Ribeiro Sanches Tratado da Conservação da Saúde dos Povos Universidade da Beira Interior Covilhã – Portugal 2003

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António Ribeiro Sanches

Tratado da Conservação daSaúde dos Povos

Universidade da Beira InteriorCovilhã – Portugal

2003

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Conteúdo

Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2Da Conservação da Saúde dos Povos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4Da natureza do Ar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4Das qualidades do Ar e dos seus efeitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4Causas da elevação dos vapores e das exalações. . . . . . . . . . . . . . . . . 6

Da transpiração insensível. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7Segunda causa da elevação dos vapores e exalações. . . . . . . . . . . . 8

Da podridão dos corpos e dos seus efeitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Dos ventos e dos seus efeitos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

Efeitos da temperatura do Ar entre os trópicos. . . . . . . . . . . . . . . 12Dos efeitos da atmosfera alterada ou podre no corpo humano. . . . . . . 14Da influência do Ar corrupto na constituição do corpo humano e das do-

enças que vêm a padecer. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16Dos sítios mais sadios para fundar cidades e mais povoações. . . . . . . . . . 18Precauções contra os danos que causam as inundações e meios para preveni-los23Males que causam as águas encharcadas naqueles lugares onde se cultiva o arroz

e meios para remediá-los. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Dos bosques e dos arvoredos considerados favoráveis ou prejudiciais à Saúde. 25Do interior das cidades e como devem ser os seus edifícios para a conservação

da Saúde. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25Da limpeza necessária nas vilas e cidades para conservar o Ar puro. . . . . . . 27Das qualidades das águas saudáveis e como se devem entreter os poços, os rios

e os portos do mar para a conservação do Ar sadio. . . . . . . . . . . . . 29Da pureza do Ar e da limpeza que se deve guardar nas Igrejas. . . . . . . . . . 30Da necessidade de renovar o Ar frequentemente nos Conventos e em todas as

comunidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33Da necessidade de renovar o Ar frequentemente nos Hospitais e da limpeza que

neles se deve conservar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36Considerações sobre estas três sortes de Hospitais, suas utilidades para os enfer-

mos, para o bem público e para os benfeitores. . . . . . . . . . . . . . . 38Remédios para emendar o Ar dos Hospitais e corrigir a infecção dos móveis e

vestidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40Do sumo cuidado que se deve ter nas prisões para purificar o Ar delas e renová-

lo cada dia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43Da pureza do Ar que se deve conservar nas casas. . . . . . . . . . . . . . . . 46Da causa das doenças dos Soldados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

Meios para prevenir as doenças referidas. . . . . . . . . . . . . . . . . . 54Meios para prevenir a corrupção do Ar no Campo, nos Hospitais e nas Casernas57

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iv António Ribeiro Sanches

Digressão sobre a comida e a bebida dos Soldados. . . . . . . . . . . . . . . . 60Do ócio e do exercício dos Soldados considerados para a Conservação da Saúde64

Da limpeza e do asseio que deveria observar o Soldado para a Conservaçãoda sua Saúde. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Da corrupção do Ar dos Navios e dos meios para preveni-la. . . . . . . . . . . 66Precauções para impedir a corrupção do Ar dos Navios e dos alimentos e

bebida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68Métodos para conservar o Ar puro dos navios à vela. . . . . . . . . . . . . . . 75Situação e estado da Saúde dos marinheiros e dos navegantes no navio à vela. 77

Meios para ocorrer a estes males. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78Considerações sobre os Terramotos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82Considerações sobre a causa dos Terramotos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85Experiências com os licores químicos e outros corpos. . . . . . . . . . . . . . 85Força do Ar encerrado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86Força dos vapores e das exalações no interior da Terra. . . . . . . . . . . . . . 87A causa dos Terramotos, dos relâmpagos e trovões é uma mesma. . . . . . . . 88Notícia do Terramoto que se sentiu na Europa, África e América depois do 1 de

Novembro de 1755. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

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Tratado da Conservação da Saúde dosPovos:

Obra útil e, igualmente, necessária aosMagistrados, Capitães Generais, Capitães de Mar e

Guerra, Prelados, Abadessas, Médicos e Pais deFamílias:

Com um Apêndice

Considerações sobre os Terramotos, com a notíciados mais consideráveis, de que faz menção a

História, e dos últimos que se sentiram na Europadesde o I de Novembro 1755.

em Paris,

E se vende em Lisboa, em casa de Bonardel e DuBeux, Mercadores de Livros.

M. DCC.LVI.

Ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

Dom Pedro Henrique de Bragança, Sousa, Tavares,Mascarenhas, Da Silva

Duque de Lafões. Regedor das Justiças do Reino,&c. &c.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

Pertence somente a V. Excelência dedicar-se-lheesta obra que contém os conhecimentos de que ne-cessitam os Magistrados para conservar, e aumentaros Povos Portugueses; não só porque goza do Pri-meiro do Reino, com tanta utilidade e aplauso dele,mas também porque sempre quis amparar tão benig-namente todas aquelas Ciências, que têm o mesmoobjecto. Estes motivos me pareceram tão poderosos,que teve neles a minha obrigação mais parte do que omeu arbítrio, para imprimi-la, e dedicá-la a V. Exce-lência. E se tiver a ventura de uma tão grande protec-ção, será esta para a Obra o maior crédito, como parao meu reverente obséquio o maior merecimento, por-que espero das Heróicas virtudes de V. Excelência,queira aceitá-lo com o mais cabal respeito.

Deus guarde a V. Excelência muitos anos,

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor,

De Vossa Excelência,

o mais obediente; e humilde criado,Pedro Gendron

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2 António Ribeiro Sanches

Prólogo

Se este Tratado não desempenhar o título, que lhepus, pelo menos espero que o intento de ser útil àque-les a quem estão encarregados os Povos, desculparáa temeridade de escrevê-lo. Nele pretendo mostrar anecessidade que tem cada Estado de leis, e de regra-mentos para preservar-se de muitas doenças, e con-servar a Saúde dos súbditos; se estas faltarem todaa Ciência da Medicina será de pouca utilidade: por-que será impossível aos Médicos, e aos Cirurgiões,ainda doutos, e experimentados, curar uma Epide-mia, ou outra qualquer doença, numa cidade, onde oAr for corrupto, e o seu terreno alagado. Nem a boadieta, nem os mais acertados conhecimentos nestasartes produzirão os efeitos desejados; sem primeiroemendar-se a malignidade da atmosfera, e impedir osseus estragos. Somente os Magistrados, os CapitãesGenerais nos seus exércitos, e os Capitães de mar eguerra, serão aqueles que pelo vigor das leis decreta-das poderão remediar em semelhantes ocorrências adestruição daqueles, que estiverem a seu cargo.

Nesta consideração é que me atrevi escrever destaOrdem Política, desta Medicina Universal, tão aten-dida dos Legisladores, fundada nas leis da Natureza,e nos incontestáveis conhecimentos que temos daboa Física. Juntei aqui todos aqueles, que o meuestudo, e experiência me sugeriu, tanto para pouparo trabalho dos que se quiserem instruir, como paraservirem de base às leis, que devem decretar aque-les, a quem está encarregada a conservação e o au-mento dos Povos. Poderão também ser úteis aos Pre-lados dos Conventos, Abadessas, e aos Inspectoresdos Hospitais, e a cada Par de famílias. Estes mo-tivos me obrigaram a compor este Tratado em estilotão claro, que todos o pudessem entender, para sa-tisfazer o intento que me propus de ser útil a quemo quisesse ler; e se não adquirir por este trabalho osaplausos de erudito, bem premiado ficarei, se aque-les para quem escrevo, retirarem toda a utilidade, quedele concebi.

Até agora parece que esta sorte de Medicina Polí-tica não entrou, como deveria, na consideração dosTribunais da Europa, ainda que vejamos nos Rei-nos mais civilizados dela manterem-se algumas leispara a Conservação da Saúde dos Povos, é certo se-rem defeituosas, o que mostrará todo este Tratado.Fundaram-se as Escolas de Arquitectura Civil e Mi-litar, mas não vemos que os Arquitectos instruídosnelas, façam caso da Física geral na prática destasartes. Aprendem com perfeição como deve ser edi-ficada uma cidade, uma praça, um templo, ou outroqualquer edifício público com toda a majestade, dis-tribuição, e ornato, mas não vemos praticadas as re-

gras, que contribuem à Conservação da Saúde. Estedefeito geral é o que se pretende remediar, porquenão só tratarei do mais saudável ou pernicioso sítiode uma Cidade, Igreja, Convento, Hospital, ou Prisãopública, mas ainda indicarei os meios para se conser-varem saudáveis. Esta mesma razão obrigou-me atratar da Conservação da Saúde dos Soldados, tantonas guarnições, como em campanha, e como o Do-mínio Português se estende nas três partes do mundofoi-me preciso, como agradável tratar com algumadiligência da Conservação da Saúde dos Marinhei-ros, como da dos navegantes.

Na mesma consideração poderia pretender o Lei-tor que indicasse neste Tratado, o método de estudara Medicina, e como deviam os Médicos, e os Cirur-giões aprendê-la nas Escolas, e nas Universidades;porque tanto que estas artes não contribuírem à Con-servação dos Povos, é força que lhes serão fatais: oserros das mais artes, e ciências raras vezes arruinammais do que a fazenda; mas quem erra na Medicinamata, e vêem por último esta ciência mal adminis-trada a mais perniciosa de um Estado. E como nãosomente pertence aos Magistrados conservarem a sa-lubridade dos quatro Elementos, mas ainda por todosos meios velarem na Conservação da Saúde dos Po-vos, parece ser da sua obrigação ordenarem o maisacertado, e efectivo método para que os Médicos, eos Cirurgiões aprendam a curar as enfermidades.

É coisa notável que nenhuma República consintaque oficial algum exercite a sua arte sem havê-laaprendido, e que só seja lícito aos Médicos exercitara sua arte sem haverem aprendido a curar as doenças!Seis ou sete anos gastam nas Universidades orando, eargumentando, e em outros exercícios literários, e nofim deles ficam autorizados a tratar toda a sorte de en-fermidades, sem haverem dado provas evidentes quesabem curar um enfermo. Comparou Hipócrates1 aarte Médica à arte de navegar; e quem seria tão teme-rário, e tão negligente da sua vida, que se entregasseà disposição de um Piloto, que jamais tivesse nave-gado, ainda que fosse o maior Astrónomo conhecido!Seria logo na verdade mais decoroso para os Médi-cos, e mui útil para os Povos, que a Medicina, comotambém a Cirurgia, se aprendesse à imitação da arteNáutica: nesta a teoria se aprende no mesmo tempoque se adquire a prática. Tanto necessita o Piloto sa-ber a Cosmografia, e a Astronomia, como o Médicoa Anatomia, a Fisiologia, e a Patologia: mas o Pilotono mesmo tempo aprende a prática navegando; se oMédico desde o primeiro dia que entrasse nas aulas,começasse logo a visitar enfermos num Hospital, eali aprendesse a conhecer os seus males, e a curá-

1De veteri Medicina, Sect. XVII, Edit. Vanderlinden.

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Tratado da Conservação da Saúde dos Povos 3

los, enquanto aprendia a teoria da Medicina, é certoque por este método alcançaria maiores conhecimen-tos na sua arte que aqueles que hoje se aprendem nasUniversidades.

Todos sabem que a mais sólida base de um pode-roso Estado consiste na multidão dos súbditos, e noseu aumento, e que desta origem resultam as suasforças, poder, grandeza, e majestade: nenhum re-ceia tanto no tempo da paz, como da guerra dispen-der a maior parte dos seus rendimentos na educaçãode Teólogos, Jurisconsultos, Militares, e Pilotos; enão têm outro fim estas imensas despesas do que oaumento da Religião, a santidade dos costumes, e aconservação, e o aumento dos bens. Mas como po-derá aumentar-se sem leis, e regramentos a Conser-vação da Saúde dos Povos, e curar as enfermidades aque estão expostos?

Admiro-me muitas vezes do excessivo número deColégios, Escolas, Academias, e Universidades quese estabeleceram na Europa depois do Século XVI,onde se aprendem não somente as Letras humanas,mas ainda todas as Ciências, e Artes, que servempara a defensa, comodidades, e ornato da vida civil,e que nenhuma destas até agora se fundasse de pro-pósito para ensinar a conservar a Saúde dos Povos, ea curar as suas enfermidades?

Mas é já tempo de satisfazer àqueles que notarãoas faltas deste Tratado: todos o acusarão de publicar-se numa língua sem a elegância, ornato, e majestadede que é dotada: todos estes defeitos confesso, por-que me foi impossível evitá-los, por muitas causas,que não satisfariam o Leitor, se as relatasse: se oque adquiri nas Línguas estrangeiras compensar dealgum modo os defeitos que contraí na minha, fica-rão, poderá ser, os meus Censores satisfeitos: masnem ainda da matéria, que trato pretendo escreversem erros, sem embargo que tudo o que pude indagara este intento procurei empregar nesta obra, para verse podia um dia satisfazer o desejo, que tenho de serútil a uma terra onde nasci. Não duvido portanto quemuitos louvarão este trabalho, porque a douta con-versação, e os grandes conhecimentos na Física, eMatemáticas de José Joaquim Soares de Barros têma maior parte do acerto, que lhe considero; e seriaingratidão criminosa ocultar o que benignamente mecomunicou este honrado, e amoroso patriota.

Também me acusarão das frequentes repetições, eque pelas mesmas palavras refiro, às vezes, os mes-mos casos e experiências. Mas não foi descuido, foide propósito, por não obrigar a ler todo este Tratadoa toda a sorte de pessoas, para quem o dediquei: quisque cada qual achasse no Capítulo que escolhessetudo aquilo que era necessário para compreendê-lo.

Não me persuado que mereci censura por haver

traduzido muitos lugares que contém este Tratado: ascitações à margem, me absolverão do crime de pla-giário: como na Língua Portuguesa não haja Livroaté agora impresso desta matéria, não reparei valer-me do que achei escrito dela, compreendendo numvolume, o que estava disperso em muitos Autores: ecomo preferi com Plínio2 ser mais útil ao Público doque agradar-lhe com a amenidade do estilo, e propri-edade da Língua, espero achar ainda algum amantedo bem comum, que aprovará pelo menos o trabalhoe a fadiga que tomei para publicar este Tratado.

2Ego ita sentio, peculiarem in studiis causam eorumesse, qui difficultatibus victis, utilitatem juvandi præ tule-runt gratiæ placendi. In Prœfatione Libri primi Historiœnaturalis.

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4 António Ribeiro Sanches

Da Conservação da Saúde dosPovos

Capítulo I

Da natureza do ArTodos sabem que ninguém pode viver sem Ar: maspoucos sabem que entra no nosso corpo misturadocom os alimentos, que se comunica pelos bofes, epela superfície dele: estamos rodeados do Ar quenos abraça e comprime, como aquele que estivessedebaixo da Água: é tão necessário à vida, e temtanta parte nela que Hipócrates, tão excelente Médicocomo Filósofo o considerou como o soberano Se-nhor, o árbitro de tudo o que experimentava o nossocorpo de salutar ou de nocivo3.

É o Ar um corpo fluído, que cerca todo o globoterráqueo: é transparente, invisível, elástico, e so-noro. Foi criado pelo Altíssimo para que quase todasas operações da natureza se fizessem com sua assis-tência. Nenhum vivente pode conservar a vida, quepor alguns instantes. Sem Ar; nenhum fogo arde, ne-nhuma planta cresce, nenhum mineral aumenta, ne-nhum animal se gera, cresce, ou apodrece, nenhumvegetal fermenta sem a ajuda deste elemento.

As suas propriedades são as depesarsempre paraa terra, e também de serelástico: todos sabem o quese entende pela gravidade: uma telha, que se despegado telhado, cabe com impulso à terra. E este serátanto maior quanta maior for a altura de onde cair:por esta propriedade é que o Ar penetra todos os maisíntimos seios da terra, pela mesma comprime todo onosso corpo com um peso, e com uma força incrível,se não fora demonstrado pelas experiências4.

3Libro de Flatibus, Arbuthnot, An Essay concerning Air.London. 8o. Pág. 146.

4O peso do Ar sobre o nosso corpo é de 39900 lb,quando o barómetro está a 30 polegadas. Ninguém se per-suadirá de tal se não compreender a demonstração seguinte.O peso do Ar comparado com o da água é como 1 a 5000com pouca diferença. Sabe-se que o peso de um cilindrode Ar da altura da atmosfera, é de uma base determinada éigual a um cilindro de água da mesma base, e de altura de35 pés Ingleses; mas cada pé cúbico de água pesa 76 arra-téis, ou libras Inglesas, e um homem de uma estatura bemproporcionada tem 15 pés quadrados de superfície: logoeste homem deve suster um peso igual ao de um cilindro deágua de 15 pés quadrados de base, e de altura de 35 pés:logo o produto continuado destes três números 35,15 e 76,nos dará o peso da parte da atmosfera, que este homem sus-tenta igual a 39900 libras Inglesas, que é igual a uma colunade Mercúrio da mesma base, ou superfície, e de altura de

Temos um arrátel de lã, ou de algodão postos emcima de uma mesa. Comprima-se qualquer destasmatérias com uma tábua, e um grande peso em cima,reduzir-se-á o seu volume à terça parte pelo menos:tiremos-lhe o peso, e deixemo-las na sua liberdade,adquirirão por si mesmas o volume que tinham antesde comprimidas. Esta virtude, este poder de restituir-se ao seu antigo estado, é o que se chama elasti-cidade: esta virtude tem o Ar; pode-se comprimircomo a lã, e deixado em liberdade, pode por si sóadquirir o mesmo volume que tinha. Quem quiserinformar-se cientificamente destas propriedades re-correrá à excelente obra,Recriação Filosófica, tom.III. tarde XIII. e seguintes. Pelo P.e Almeida; Lisboaem 8.o.

Estas propriedades são as constantes deste ele-mento; veremos agora as variáveis. Que chamamqualidades: estas conhecemos pelas sensações do ca-lor, do frio, humidade, e secura; como a sua origemnão procede do Ar, essa é a causa porque muitas ve-zes observamos existir sem alguma delas.

Capítulo II

Das qualidades do Ar e dosseus efeitos

Pelas observações astronómicas sabe-se que a luzdesce do sol até à terra pelo tempo de oito minutoscom pouca diferença: parece que a luz é o mesmoque aquele fogo elementar espalhado por toda a at-mosfera, e por todo o globo terráqueo, e os corposque se contêm nele; esta luz, ou fogo elementar éaquele que faz mover, e dilatar todos os corpos; estapropriedade é tão constante em todos, que jamais seviu variável: o espírito de vinho, ou aguardente nosmeses do Estio ocupam maior espaço que no Inverno:o ferro em brasa, e todos os metais na fornalha acesa

30 polegadas. Mas a variação da atmosfera indicada pelagraduação do barómetro é de três polegadas Inglesas compouca diferença: e esta variação corresponderá a um peso3/30 da dita coluna de Mercúrio; isto é = 39900/10 arratéis= 3990 arratéis ou libras Inglesas, que é igual à diferençade peso com que a atmosfera comprime, ou carrega sobre onosso corpo em diferentes tempos. Não sentimos este pesoporque somos comprimidos igualmente por todo o nossocorpo, da mesma sorte que o não sentimos, quando nosachamos dentro da água: logo que esta compressão falta,ou se exerce desigualmente em alguma parte da superfíciedo nosso corpo, a carne incha, e vem vermelha, como se vêquando se aplicam as ventosas; e desta variedade de pesoda atmosfera provêm muitas moléstias aos nossos corpos,principalmente aos achacados; mas também provêm váriasutilidades, o que tudo se exporá neste tratado.

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adquirem maior volume. Pelo contrário, todos oscorpos com o frio encolhem, e ocupam menor es-paço; o mesmo Mercúrio sendo tão sólido, e pesadosencolhe com ele, do mesmo modo que os corpos hu-manos, os vegetais, e os licores espirituosos5.

Somos dotados de maior calor do que a atmos-fera: quanto mais o homem está perto do nasci-mento mais partículas de fogo tem: um moço devinte e cinco anos não tem tanto deste calor elemen-tar como um menino. As aves têm mais deste calor,que os homens; as plantas, os metais e os sais têm omesmo calor que o da atmosfera. Considerados emsi mesmos: e a atmosfera ordinariamente nunca é tãoquente como o nosso corpo6.

O calor que sentimos não é a medida do calor daatmosfera: nas calmarias debaixo da linha equino-cial apenas podem os navegantes respirar; vêm fra-cos, languidos, e nauseiam: portanto naquela alturao calor da atmosfera não é tão grande como em Pe-tersburgo não obstante ficar tanto para o norte aquelacidade7? Estejamos no tempo do Estio sentados auma varanda; sentiremos o vento, ou do sul, ou doocidente fresco, e mesmo às vezes frio; portanto otermómetro que estiver ao lado não mostrará dimi-nuição de calor, ficará na mesma altura que estava:se sentimos o vento frio, a causa é porque sacudiua nossa atmosfera, e se aplicou imediatamente aonosso corpo. Abaixo trataremos com maior distin-ção o que é a nossa atmosfera.

Os efeitos do grande calor do Ar, ou dos lugarestão quentes como o nosso corpo são causar enfer-midades, ou doenças: dissipam-se os humores maissubtis; saiem pela transpiração, pelo suor, e pelaurina em abundância: fica o sangue seco, térreo eespesso, geram-se enfermidades melancólicas, lepra,vómitos pretos, câmaras de sangue; e febres arden-tes8; se este calor demasiado se juntar com sufoca-

5Herman Boerhaave, Elementa Chemiæ, tom. I, tract.de igne per totum.

6Dissertations sur la chaleur par M. Martene, traduitesde l’Anglois. Paris, 1751. 8.o, pág. 143. Ordinariamenteo calor da atmosfera não excede o calor do corpo humano:este é de 96 a 98 no termómetro de Fahrenheit. Sucedeuque o calor da atmosfera chegou a 103 graus; mas então énocivo, principalmente se o Ar estiver sufocado ao mesmotempo.

7Journal Britannique, par M. Maty, 1750 tom. 2.r. pág.444, a S. Petersburgo a 60 degr. Lat. O termóm. de Fah-renheit a 96 graus de calor. Na Ilha de Bourbon entre ostrópicos o calor não excede 85 graus. VideMémoires de l’Académie des Sciences, 1733, pág. 580, & 1734 pág. 759.

8Relacion historica del viage a la America Meridionalpor D. António de Ulloa. Madrid 1748, tom. I, pág. 59& 62. Ali se lê que em Cartagena a gr. 9 latit. os caloressão insuportáveis: ali começaram aquelas febres chamadas“vomito prieto”; e a “lepra ali é commua”.

ção do Ar então apodrecem todos os humores, e podecausar mesmo a peste9.

Esta luz, este fogo elementar que conhecemos poraquela sensação de nos alumiar e aquecer, já disse-mos, estava espalhado por toda a atmosfera. E todoo globo terráqueo; mas os vegetais, os sais, os mi-nerais, e os animais têm diferentes graus de calor:a terra na sua superfície, as pedras, os metais, e osvegetais, e os cadáveres têm igual calor ao da atmos-fera: nos animais porém é muito diferente: os in-sectos, e os peixes têm alguns graus mais de calorque o Ar. O corpo humano ordinariamente sempretem mais que o da atmosfera, ainda no tempo do Es-tio. Os quadrúpedes têm mais calor que os homens,e mais que todos, as aves.

Mas o que é mais particular na natureza é que cadacorpo retém mais calor, ou maior frio conforme a suadensidade e peso. O maior calor do Estio conhecidonão excedeu até agora o do corpo humano; se exce-der cairá enfermo. A água posta a ferver adquire ocalor dobrado de um homem em Saúde: o leite fer-vendo muito mais; o azeite ainda muito mais; umseixo, o chumbo derretido, o Mercúrio fervendo, ad-quirem à proporção dos seus pesos muito maior ca-

9O Pa. André Pereira Mandarim do Tribunal das Mate-máticas de Pequim escreveu ao Ex.mo Bispo Policarpo deSousa estando em Macau, a carta seguinte datada de 30 deJulho 1743, a qual me comunicou o mesmo Ex.mo Bispopela remarcável observação que contém. Diz ele «a Provi-dência Divina livrou a v. Ex.& de experimentar a calami-dade que nestes dias padecemos nesta corte por causa doscalores excessivos...os calores têm o único refrigério daschuvas, que ordinariamente caem neste tempo com abun-dância; estas porém faltaram este ano; e por isso crescendocada dia mais o calor, se acendeu tanto o Ar, que pareciaqueimava, nem havia refrigério em lugar algum; o calorgrande começou no princípio de Julho, porém dos 15 até os25 foi intolerável... o pior foi que começou a gente a morrerde calor: aos primeiros dias poucos, depois inumeráveis,que caíam mortos pelas ruas, e muito mais nas casas... eda corrupção se levantou tão pestilento cheiro pelas ruas,que acrescentou o mal; e a isso atribuo eu a maior parte damortandade que houve... e este é o modo com que dava estaEpidemia, ficavam logo sem sentidos, e poucos depois mor-riam... denique na noite do dia de S. Tiago para o de S. Anade repente se levantou um vento com tal fúria que pareciaum tufão, e tão quente que assava; mas a força do dito ventobastou para mover o Ar, e no mesmo dia... caíram algumaspoucas pingas de chuva, e refrescou o tempo, e começou agente a respirar, e logo cessaram as mortes &c.» preferi estaverídica, e judiciosa relação a todas as que li nesta matéria;e confirma tudo o que, disse Prospero Alpino das doençasdo Egipto, e que cessam logo que aparecem as primeiraspingas de chuva. Desta observação se poderá considerar obem que fará. Disparar peças de artilharia no tempo dascalmarias debaixo da linha, e queimar muita pólvora; repi-car os sinos quando o Ar estiver inflamado e embichorno: osacudir, e agitar o Ar será então o mais saudável remédio.

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lor. E o mesmo sucede com o frio: no Estio as pe-dras, os montes, e as árvores adquirem maior calorque o da atmosfera, porque as pedras, e os metaissão mais pesados que o Ar10: o ferro exposto à ge-ada, o chumbo, e a prata, como os rochedos, e osbosques adquirem mais frio do que produz aquela ci-são: daqui vem que uma queimadura feita com águafervendo não é tão perigosa, como se fosse feita comleite: aquela feita com azeite será pior, com ferroderretido, ou com chumbo será muito pior, por queaqueles corpos retêm o fogo à proporção do seu peso,e assim aplicados uma vez ao nosso corpo produzemmaiores efeitos. Vi eu o ferro, e a prata gelar-se detal modo que quem lhe pegava sentia uma viva dorlogo na mão, princípio da gangrena, a que sucede sea mão ficar pegada naqueles metais assim gelados11.Abaixo daremos o uso destas leis da natureza.

Conhecidos os efeitos do calor, mais facilmentese conhecem os do frio: com esta qualidade do Artodos os corpos ocupam menor lugar na sua massa;todos perdem o movimento; estas mudanças contí-nuas, regradas e sucessivas de calor e frio dão vigorao nosso corpo: as súbitas e as grandes mudançaso destroem. O homem exposto aos raios do sol noEstio de pé ou deitado, ficará ofendido até morrerapopléctico: posto à sombra não sofrerá a metade docalor12: os dias entre os trópicos quentes, moderam-se pelo fresco das noites; em algums lugares pertodas altas serras cobertas de neve, de vastos e altíssi-mos arvoredos. Perto de lagoas e rios caudalosos, oucatadupas, as noites são mais frias mais húmidas, oorvalho é abundante; estas súbitas mudanças são asperniciosas, se não houver reparo contra elas. As sú-

10O calor da atmosfera nos climas temperados entre 33& 45 gr. lat. no termómetro de Fahr. Na Primavera é or-dinariamente de 50 a 65: no Estio chegou muitas vezes a90 gr. se crescer o seu ardor causará doenças. O calor docorpo humano é de 96 a 98. Os míninos o fazem subir a 99e, a 100 gr. O calor da água fervendo muito mais. Quandoo dito termómetro descer ao grau 32 então a água começa agelar. O maior frio na Europa Meridional foi a 6 gr. do ditoterm.: o maior conhecido até agora foi de 120 gr. debaixo0. Eu o sofri de 25 gr. abaixo de 0. Veja-se desta maté-ria Boerhaave, Chemia, tom. I.tract. de igne, & Martene,Essais sur la chaleur, Paris 1751, desde a pág. 126.

11Boerhaave e Martene. Nos lugares citados acima.12M. Maty observou que o termóm. de Fahrenh. a 8 do

mês de Abril em Inglaterraposto à sombra marcava . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 gr.posto ao sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67abrigado do vento norte contra uma parede . . . . . . . . . . 76E a 19 do mesmo mês od. termóm.posto à sombra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 gr.ao sol . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50abrigado do norte junto da parede . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63Journal œconomique de Paris. Juin 1754, p. 161.

bitas mudanças do calor para o frio excessivo, do friopara o calor causam doenças inflamatórias, esquinên-cias, pleurises, catarros, e reumatismos; e na Índia adoença Mordechim.

A maior parte do nosso globo consiste de água,que conhecemos pelo nome de Mar. No interior daterra existem cavernas, lagos, e rios; em toda a super-ficie dela a observamos: nenhum corpo conhecido, omais duro, o mais seco tratado quimicamente peladestilação se isenta desta lei: quem dissera que dotronco do guaiaco, seco por muitos anos, sai umaágua volátil azeda pela destilação13?

Thales, e Helmontio afirmaram com muitas pro-vas que a água era o princípio universal da geração:é certo que este elemento com o fogo elementar, ou aluz são aqueles agentes primários da geração, conser-vação, e corrupção de todos os corpos criados. Ne-nhum há conhecido que não vapore; nenhum que nãoexale14. A chuva, e o orvalho não são mais que os va-pores condensados em maior quantidade, do mesmomodo que o fumo, os relâmpagos, e os raios sãoas exalações que saiem das matérias sulfúreas, for-madas ordinariamente no centro da terra, ou na suasuperfície pela quantidade de matérias que apodre-cem. Daqui vem, que tanto mais húmidas e baixassão as terras principalmente cobertas de arvoredos,tanto mais frequentes são as chuvas, e mais abun-dantes, se ficam perto de altas serras. No Peru nãochove, mas em seu lugar as exalações no centro da-quelas terras são em tão grande abundância, que cau-sam estragos infinitos pelos contínuos terramotos. Seestas se comunicarem à atmosfera então dissipam-see desvanecem-se por relâmpagos, e por raios.

Todos os vapores e exalações depositam-se porum certo tempo no Ar, que nos rodeia: cheio destadiversidade de partículas, então é que lhe chamamosatmosfera.

Vejamos agora qual é a causa da elevação dos va-pores, e das exalações.

Capítulo III

Causas da elevação dos vapo-res e das exalações

Vimos que a luz, ou o fogo elementar está espalhadopor toda a atmosfera, e que entra na composição decada corpo, ou seja sensível, ou insensível. Este éo agente primário de todos os vapores e exalações,

13Boerhaave, Chemia, tom. I. de aqua.Essai sur lesmontagnes, par Bertrand. A Zurich, 1754, 8. cap. 14.

14Histoire de l’ Acad. des Scienc.1742, pág. 18.

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como também os ventos. Edmundo Halley para sa-ber a quantidade de vapores que se levantam do marcom o calor do Estio fez a experiência seguinte15,tomou uma certa quantidade de água, por exemplo,trinta e nove arráteis de água comum, desfez nela umarrátel de sal, porque sabia, que 40 arráteis de águado mar deixam no fundo um arrátel dele, depois deevaporada, a pôs em cima do fogo naquele calor domês de Julho, regrado pelo termómetro. Por meiahora de tempo nem fumo, nem vapor se observavalevantar-se dela. Mediu depois esta água, e achouque em 24 horas que evaporava uma polegada cúbicade água, de dez polegadas quadradas que tinha a su-perfície da água salgada, e que cada pé quadrado damesma superfície deveria no mesmo tempo evapo-rar um quartilho, ou um arratel com pouca diferença.Pelo que concluiu, calculando a superfície do mar,das lagoas, e dos rios, juntamente o calor do Estio,com o do Inverno, que se levantavam tantos vapores,que bastavam para abundar a terra com fontes, lagos,e rios.

Esta lei da evaporação é tão universal que até amesma neve, até o caramelo evapora. Na força doInverno quando morrem os animais expostos ao frio,vi eu que posto o caramelo no braço de uma balançae no outro peso igual para ficar em equilíbrio, dezarráteis em uma noite evaporaram, um: portanto nãoestava exposto ao vento. Era uma câmara fechadasem fogo, nem perto o havia: a neve exposta ao Arlivre evapora muito mais: sinal certo que na neve eno caramelo ainda reside o fogo elementar. É certoque no centro da terra existe este fogo. Sabemos queno subterrâneo do Observatório Real de Paris, feitode propósito para as experiências da Física, o termó-metro de Fahrenheith sempre se conserva a 53 graus;nem de Verão nem de Inverno há mudança neste ca-lor; e portanto a adega não tem mais que oitenta equatro pés de profundo: este calor é semelhante ao daPrimavera: se a neve, e o caramelo evapora, quandoo termómetro está a trinta e dois graus, quanto maisevaporará a terra, as águas das cavernas, as árvores eos bitumes16?

Que a terra evapore muito mais que as águas,mostram-no as experiências de M. Bazin17: encheu

15Philosophic. Transact. n.o¯

189.M. de Mairan, Disser-tation sur la glace, de l’Imprimerie Royale, cap. 2, pág. 12e 13.

16Dissertation sur la glace de M. de Mairan del’Imprimerie Royale, cap. II, pág. 57. O termóm. de Fah-renh. ficou a 53 no subterrâneo do observatório real, pro-fundo de 84 pés. E nas minas de Alsácia profundas de 222pés o mesmo termómetro marcava 58 graus: indício quetanto mais se penetrar na terra maior será o calor.

17Histoire de l’Académ. Royale des Sciences, 1741, pág.17.

dois vasos de igual abertura de boca, um deles comágua, outro de terra ordinária: cada dia lançava par-tes iguais de água pura em ambos; em poucos dias,o vaso com água não podia conter nenhuma mais,mas aquele com terra, podia receber água nova semficar ensopada, nem feita em lodo: continuando a ex-perimentar o mesmo, concluiu que a terra evaporavamuito mais que a água.

Tantas cavernas subterrâneas que recebem água dachuva, das neves, e os orvalhos, tantos rios subterrâ-neos dão matéria à terra para evaporar por meio dofogo elementar que nela existe.

Estevão Hales18 por muitas, e várias experiênciasconcluiu que todas as plantas e árvores transpiravamà proporção do calor da atmosfera; e que compara-das com a transpiração do corpo vivente achara queos vegetais transpiravam duas terças partes menosdo que os animais. De Gorter19 depois de calculara transpiração insensível nos habitantes de Itália, In-glaterra e Holanda achou pelo menos ser de 30 onças:em vinte e quatro horas. É força que em Portugaltranspirem muito mais os homems.

Logo uma planta, ou uma árvore de igual super-fície à de um homem transpirará sendo o calor daatmosfera igual, dez onças e alguma coisa mais nomesmo tempo.

Não quero insistir na imensidade das exalaçõesque se levantaram continuamente dos sais, bitumes,e minerais, porque pela sua natureza mais apta paraevaporar devem ser mais consideráveis. Devemoslogo considerar o Ar como o armazém universal donosso globo, onde se deposita tudo o que se exaladele. Vimos acima que os animais têm mais calorelementar do que os vegetais; transpirarão logo à pro-porção do calor que os anima.

§I.

Da transpiração insensível

Tantas vezes seremos obrigados a falar da transpira-ção insensível dos corpos viventes, que me parecenecessário dá-la a conhecer aos leitores sem conhe-cimento algum da Física, ou da Medicina. Se umhomem moço e robusto depois de fazer algum exer-cício, mas sem suar, se puser diante de um grandeespelho côncavo, que aumentará os objectos seis ve-zes mais verá sair de toda a sua superfície um fumoque sobe em ponta, como a luz de uma vela: sobe

18Statical, Essays vol. I, London 1731, 8.ocap. I.19De perspiratione insensibli, Lugd. Batav. 1736, 4.ocap.

2, pág. 13. «Quotidie corpora perspirant in Itália Ib V. siveuncias sexaginta; in Britannia 31 & 41 uncias; in Hollandiainter 46 & 56».

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esta, e a chama, porque o Ar contíguo se rarefaz, eadelgaça; aquele que está mais distante é mais frioe pesado, e vem cair no lugar daquele mais ligeiro,e quente, deste modo é força que comprima a trans-piração pelos lados, e que suba para onde o Ar temmenor resistência, que é na parte superior.

Um homem suando ponha a sua mão perto de umpedaço de caramelo, verá sair dela um fumo contí-nuo: este fumo, que sai por toda a nossa superfície, éo que chamamostranspiração insensível. O bafo, outranspiração do bofe é tão considerável como aquelada pele: de Inverno quando o Ar está mais frio quede ordinário, vemo-la sair em forma de nuvem a cadaexpiração.

Esta transpiração e bafo são os últimos excremen-tos do nosso corpo: são tantas partes podres separa-das do sangue; são acres, salinas, e rudes, mais oumenos conforme a natureza de cada corpo. Destemodo é que estamos sempre cercados de uma nuvemde exalações podres, e fétidas: as quais se pelo Arnão se sacudissem e limpassem, se não se depositas-sem no Ar, em poucos instantes sentiríamos a perdada Saúde.

Mas os animais quadrúpedes têm mais calor doque os homems: as aves ainda muito mais20. Logo éforça que transpirem muito mais; mas aquele fumo,aquele bafo há-de ser mais acre, mais podre, maiscontrário à nossa vida, do que o dos homens. Da-qui se poderá conjecturar quanto mal fazem aquelesque dormem com gatos, e gozos, e que conservamno aposento onde dormem pássaros, bugios, e cães.Também todas as matérias apodrecendo, ou podres,como são os excrementos dos animais, e as suas par-tes, todas as matérias vegetais apodrecendo, e podres,expostas ao Ar livre transpiram continuamente, e emmaior quantidade do que as substâncias incorruptas.

Deste modo vemos que todos os corpos transpi-ram mais ou menos à proporção do calor que tiverem;e que todos estes vapores e exalações ficam deposita-das na atmosfera, que serve de amazém universal aonosso globo.

20Martene, Dissert. sur la chaleur, pág. 188. O calorhumano no termóm. de Fahrenh. é de 96 a 98: nos cães,nos gatos, carneiros, bois, e nos porcos é de 101 a 102, pág.189 e 190. «as aves são os animais mais quentes de todos,que se conhecem; têm mais calor que os quadrúpedes detrês a quatro graus».

§II.

Segunda causa da elevação dos vapo-res e exalaçõesOs ventos além dos muitos benefícios que causam atodo o globo terráqueo são os segundos agentes daevaporação dos líquidos e dos sólidos. Pelo ventoconhecemos um movimento do Ar impetuoso, o qualdilatando-se, passa de um lugar mais apertado paraoutro, onde se estende com mais facilidade.

Podem-se contar tantos ventos como há graus noHorizonte: em favor dos marinheiros determinou-seo seu número a trinta e dois: mas como neste tratadoos consideraremos favoráveis, ou contrários à Saúde,seguiremos a divisão dos ventos cardinais: são o Ori-ente, Sul, Ocidente, e Norte, e vulgarmente Norte,Sul, Eeste, Oeste.

Se em todo o nosso globo não houvesse montanhaalguma, e que tudo fosse coberto de água não have-ria mais que o vento Leste, ou do Oriente. Mas onosso globo tem muitas irregularidades naquela me-dida. Nele se levantam montes, altas serras, roche-dos, arvoredos dilatados; estes obstáculos ao ventodo Oriente, juntos com os vários terrenos, e exala-ções, ou da terra, ou do mar produzem a variedadede ventos, que observamos, e que reduzimos a qua-tro principais para melhor inteligência do que trata-remos.

Quando qualquer vento passa sobre o mar, lago,ou rio, arvoredos, ou outro qualquer corpo sacodee varre as suas atmosferas particulares: como cadacorpo transpira sempre, e está rodeado de partícu-las húmidas, ou sulfúreas, que o vento leva consigoe as depõe no Ar por último; deste modo todos oscorpos ou se diminuem, ou se limpam por este movi-mento impetuoso do Ar. Quando queremos enxugarum pano molhado depressa, começamos a sacudi-loe movê-lo diante do fogo, ou ao sol: com o calor seadelgaça, e rarefaz a humidade, e com agitação sedissipa logo. Mas aquela água convertida em vapo-res fica depositada no Ar: do mesmo modo vemos selevanta a poeira nos caminhos, a sua causa, e ondefica por último.

O vento agitado leva os vapores e exalações paralugares mais distantes daqueles de onde saíram; a suavelocidade é de correr o espaço de 24 pés em um se-gundo de tempo, quando é já bastante forte, que vema ser 216 braças em um minuto. Pode-se ver a vio-lência deste líquido, e quantas partículas dos vapo-res, e exalações levará consigo. Abaixo trataremosda causa dos ventos e dos seus efeitos, mas para osconhecer melhor, necessitamos de conhecer toda asorte de vapores e de exalações.

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Capítulo IV

Da podridão dos corpos e dosseus efeitos

Três graus conhecemos de podridão. Alteração, po-dridão, e corrupção. A alteração é o primeiro grau dadestruição de qualquer corpo; uma pêra, uma maçãalterada, ou tocada, não está podre, mas começa aapodrecer. A podridão é o segundo; um corpo vi-vente ou vegetal podre perdeu a vitalidade, mas nãoestá corrupto; a corrupção pressupõe a destruição daforma, e a geração de outra; dizemos que a águase corrompe quando nela observamos insectos nova-mente gerados; a podridão precedeu, continuou comvigor, e corrompeu-se. Neste sentido é que muitasvezes se achará neste tratado esta palavra corrupção,porque falando com propriedade filosófica devia serpodridão.

Pela fermentação e podridão desfazem-se edesvanecem-se todos os corpos: mas a fermentaçãoé uma operação puramente do artifício dos homens:a podridão é o único, instrumento da natureza peloqual se renovam as obras dela; quando um corpo apo-dreceu segue-se a corrupção, que é o mesmo que di-zer, outro fica em seu lugar21.

A podridão é um movimento intestino para o exte-rior, ou periferia, pelo qual se dissolve o corpo, e aspartes dele mais activas e voláteis desvanecem-se noAr gerando-se o mau cheiro e um sal volátil alcalinocáustico e rude: a humidade, e o calor semelhante àdo mês de Maio, são as condições necessárias parase gerar a podridão.

Qualquer corpo vegetal ou animal gelado não apo-drece, mas tanto que se degela, ou fica alterado, oupodre. As carnes secas, fumadas ou embalsamadas,nunca apodrecem. Os Tártaros secando as carnespostas entre a sela do cavalo a secam de tal modo,que nunca apodrece; o Ar de Cusco no Reino do Perué tão seco e frio que seca a carne como se fosse pau, edeste modo preparavam as provisões de guerra comorefere Garcilasso de la Vega22. De baixo de montesde área seca em África se conservam, como as mú-mias, os corpos incorruptos das caravanas, que nelespereceram23. O frio extremo de Spitzberg a setentae nove, e oitenta graus lat. conserva o pão e os ca-dáveres incorruptos24. No vácuo da pompa Boyle-ana nenhum corpo apodrece, nem metido dentro do

21Baco de Verulamio sylva sylvar. Cent. IV.22Historia del Peru, tom. I.23Voyages de Shaw, tom. II, pág. 79.24Recueil des Voyages au Nord, Rouen 1716, tom. I.

mel, da cera, do azeite, ou no fundo da terra, ou áreasequíssima.

Ponha-se ao Ar um prato de sangue ainda quentesaindo da veia do animal, unte-se o branco dos olhoscom ele, não se sentirá dor nem ardor, será no toquesemelhante ao leite: fique exposto ao Ar por cincoou seis dias no mês de Maio, ou em calor semelhanteao deste mês, vem salino, acre, e rude; se o brancodos olhos se untar com uma gota deste sangue os in-flamará, a dor será picante, e violenta; e o cheiro,fétido, e ingratíssimo: destile-se este sangue sai umespírito ardente que se inflama, e um sal volátil alca-lino.

Some-se um boi, fica exposto ao Ar do mês deAbril ou de Maio, em vinte e quatro horas come-çará a inchar o ventre, em poucos dias rebentará.Pouco a pouco vai-se exalando toda aquela corpulên-cia, desvanece-se no Ar, e ficam por último algumaspartes sólidas, e uma pouca de terra; e os ossos porúltimo é tudo o que deixam.

Mate-se outro boi, e degole-se exponha-se domesmo modo, não apodrecerá tão depressa; a podri-dão que contrair não será tão fétida, nem tão acre.Por essa razão todas as carnes destinadas para as pro-visões deviam ser bem sangradas.

As carnes nos fumeiros perdem toda a humidade,exala-se com o fogo, e com o fumo das chaminés,deste modo conservam-se por muitos anos enquantose conservarem assim secas.

Todas as plantas, árvores, frutos, sementes, encer-rados em lugar húmido, quente, e não ventilado apo-drecem ordinariamente: a mesma madeira molhadamuitas vezes, e outras tantas, secando-a vem a apo-drecer mais depressa. O feno ainda húmido postoem rolheiros, bem acalcado apodrece, e por últimoarde, e pega fogo. As mesmas azedas, limões, e la-ranjas bicais, remédios os mais soberanos contra apodridão se os machucarem, e puserem dentro de umbarril bem tapado, apodrecerão.

Do referido se vê claramente que para perseveraros corpos da podridão, é necessário impedir a humi-dade, e o aceso do Ar livre, e do calor semelhante aoda Primavera; secá-los e endurecê-los, embalsamá-los é o mais certo remédio, e sobretudo ventilar o Artemperado continuamente. O mesmo sangue que vi-mos acima apodrecer tão depressa, se logo que sairda veia se puser a secar no calor da água fervendo,dissipa-se toda a humidade, vem duro; conservar-se-á incorrupto por muitos anos: se o mesmo sangue sedesfizer na água, e se expor outra vez ao Ar livre,apodrecerá facilmente. Assim a humidade é o agenteprincipal da podridão: por essa razaõ não vemos queos metais apodrecem, nem as pedras: dissipam-se e

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desfazem-se pelo calor, e pelo peso do Ar, e sua elas-ticidade, como veremos em outro lugar.

Vimos de que modo apodrecem os viventes, ecomo desfeitos em exalações se desvanecem na at-mosfera: veremos agora a variedade das substânciaspodres, fétidas, e malignas que também acabam domesmo modo.

Nas minas de chumbo, cobre, e de carvão existeum vapor tão venenoso que mata num instante: osmineiros experimentados entram naqueles subterrâ-neos sempre com uma vela acesa, tanto que começaa encurtar-se a flama em forma de globo tornam paratrás, se, temeráriamente, vão adiante morrem25.

Do mar se levantam exalações semelhantes. Noano 1630 perto da Ilha Santorini lançou o mar forauma imensidade de pedras ponçes com ruído hor-rendo, e fumo tão insuportável, que muitos morreramde febres pestilentas: a prata mudou de cor, e os maismetais26.

O ar no fundo dos poços sujos, e principalmenteperto das latrinas, vem tão pestilento que mata aquem o respira; milhares de casos confirmaram es-tas funestas experiências27.

Em muitos lugares da Natolia e principalmente daItália saiem exalações de muitas fontes, e cavernasque matam todos os animais num instante; daGrotadel cane, e de infinidade delas se poderá ver Leo-nardo de Capoa no seu raro livro de Mofete28.

Todos sabem que os habitantes vizinhos dos cam-pos, onde se deram batalhas, caem em febres pesti-lentas; tanto mais depressa apodrecerão os cadáve-res, quanto os calores forem maiores: então infec-tarão o Ar que poderá causar mesmo a peste. Asexalações que saiem quando se abrem as sepulturas,aquelas que se sentem quando se passa pelos luga-res imundos, cobertos de animais apodrecendo, sãoas mais pestilentas, e os seus danos, e a sua quan-tidade se verão por todo este tratado, e também emArbuthnot29.

Temos mostrado que na atmosfera não só ficam to-dos os vapores que se levantam da água, mais aindadas plantas: temos mostrado a prodigiosa evapora-ção da terra, a transpiração das várias sortes de ani-mais; estes vapores, e exalações não são tão nocivasainda, enquanto não apodrecem. Mas já mostramos

25Joan. Caii de Ephemera Britanica, Lond. 1724, eAbridgement Philosophical Transact. vol. II, pág. 375.

26Thevenot. Voyages, tom. 1.27Histor. Acad. das Scienc. 1716. Schenkius, lib. li,

observat. capo de suffocatione.28Lezzione intorno alia natura de Mofete in Napoli,

1683, 4.o.29John Arbuthnot, an Essay concerning the effects of Air

in human bodies. London, 1733, 8.o, pág. 17.

a quantidade de corpos que se convertem em exala-ções feitas por esta operação universal da naturezatão contrária à conservação da vida.

Capítulo V

Dos ventos e dos seus efeitosVimos acima que os ventos são uma das causas daelevação dos vapores e das exalações, que ficam naatmosfera, ali vimos que não são mais que um Aragitado violentamente, e quão rapidamente corremtantos espaços. Agora trataremos da sua natureza, eefeitos quanto nos for necessário para compreendera salubridade do Ar e os seus danos.

Três sortes de ventos conhecem os navegantes res-pectivamente aos diferentes tempos do ano, e destesa primeira são os ventos constantes e uniformes queventam sempre do mesmo lado, que chamamosven-tos gerais: ventam do Oriente para o Ocidente entreos trópicos. A segunda são periódicos, ventam seismeses de uma parte, e seis meses da outra como seexperimenta no mar da Arábia, no golfo de Bengala,nos mares da China e do Japão, perto das Ilhas Mo-lucas, e da Sonda, e se chamamMonções. A terceirasão os ventos variáveis que ordinariamente se obser-vam na terra, pelos nomes que dissemos acima ventodo Norte, do Sul, de Leste, e de Oeste.

A causa dos ventos, e da sua irregularidade são ararefacção do Ar causada pelo calor do sol, e as ser-ras, rochedos, e arvoredos que se levantam sobre aterra. Já dissemos acima que se fosse perfeitamenteesférica, ou um globo perfeito de água, que só ha-veria o vento do Oriente. Porque o sol aquecendoo Ar imediato debaixo dele o estende, e o adelgaça:o Ar mais frio e mais denso por consequência quefica detrás do sol vem a cair e ocupar aquele lugarmais quente, e mais raro; este movimento rápido éo vento; e como o sol se move a cada instante rapi-dissimamente, daqui vem que no mesmo tempo tantaparte da atmosfera se aquece e se adelgaça, e queigualmente o Ar menos quente vem a encher aquelelugar para fazer o equilíbrio; porque o Ar é um corpofluído como a água, mas mais subtil e ligeiro mil ve-zes: lançamos uma pedra num tanque, perdeu-se aigualidade dele pelo golpe. Movem-se as águas paraos bordos do tanque, que vemos caminhar em on-das: resistem-lhe os mesmos bordos, e torna a água acair naquele vazio que fez a pedra: deste modo con-tinuam até que fique toda em equilíbrio: arde umforno com fogo violento; feche-se a porta, e fiquenela um postigo aberto, veremos que por ele entrao Ar tão violentamente, como se fosse vento: por-que o Ar dentro do forno adelgaçado, e subtilizado

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estando contíguo àquele fora do forno, que é frio,pesado e comprimido, vai com força restabelecer oequilíbrio perdido pelo calor do forno. Abaixo ve-remos o uso imenso desta lei da natureza; por agorabasta saber que do mesmo modo que entra o Ar emforma de vento pelo postigo do forno, assim o Ar frioda atmosfera vem sempre buscar e encher o Ar adel-gaçado e quente; o que conhecemos pelo nome deventoouviração.

Os ventos entre os trópicos são mais constantesque nas grandes latitudes do Norte ou do Sul. Todaa diferença que se observou até agora nos ventos ge-rais é ventarem do Nordeste e do Sudeste. Mas os na-vios que navegam perto da costa da África, depois dodécimo grau de latitude para o Norte, experimentamordinariamente calmarias e ventos tão inconstantesque em um quarto de hora observam toda a sorte deventos que chamamosTornadose que quase todas asnações mercantes adoptaram este nome. Depois dostrinta e três graus latitude do Norte até oitenta e qua-tro os ventos são muito variados e, geralmente, maisviolentos: porque aquele vento geral do Oriente parao Ocidente, achando obstáculo nas montanhas, serrase arvoredos, reflecte para a parte oposta do curso oucorrente que levava: como toda a terra está formadacom estes obstáculos em todas as dimenções, daquiprovém a diversidade dos ventos que experimenta-mos nela. Vejam-se os Autores alegados abaixo poraqueles que quiserem instruir-se desta matéria maisamplamente30.

Veremos agora os efeitos dos ventos tanto na at-mosfera como nos corpos particulares. Vimos acimaque na atmosfera contém-se todos os vapores e exa-lações que se levantam do nosso globo: e que cadacorpo ou vivente, ou insensível tem a sua atmosferaparticular: os ventos, e qualquer Ar agitado varrem,e sacodem aquelas atmosferas particulares, e destemodo renovando-se o Ar conservam o seu estado to-dos os que transpiram.

Todos assentaram até agora que o movimento é oque preserva as águas da podridão: do mesmo modoque a circulação do sangue no corpo humano é a quelhe conserva a vida. Mas é falso: a água no porãodo navio é agitada continuamente, e portanto apo-drece: se um homem tivesse a cabeça dentro de umatalha, mas também ajustada ao pescoço que o Ar da-quele vaso não tivesse comunicação alguma com oAr que o rodeava, é força que morresse em muitopouco tempo sufocado, e portanto morreria antes doque a circulação acabasse. Estevão Hales31 obser-

30Philosophic. Transact. n.o297 e 321.Deslandes, Traitédes vents, no tom. II. Traités de Physique, Paris, 1756, in8.o.

31Statical, Essays, cap. 5, pág. 283.

vou que respirando com a cabeça dentro de um vasoque continha setenta e quatro polegadas cúbicas deAr, não lhe bastavam para respirar sem cansaço meiominuto, e por um inteiro sem perigo de sufocar-se.

Deste modo vê-se claramente que o movimentodas águas não serve que para adelgaçar as partesgrosseiras e oleosas para evaporarem e exalarem; oAr agitado e os ventos varrem e limpam aquela trans-piração; e aquele Ar embebido com ela, outro purovem em seu lugar, e neste movimento contínuo e mu-dança da transpiração é que consiste a conservaçãodos corpos.

Do mesmo modo o homem que se sufoca dentrodaquele vaso não é porque lhe falte a circulação, quenão serve mais que para adelgaçar as partes que hão-de servir a nutrição e lançar pelo bofe e pela peleo supérfluo, mas porque o bafo que saiu do bofe fi-cou no Ar, e este o respira muitas vezes: as partí-culas podres, de que consiste o seu bafo o matarão;o Ar respirado muitas vezes fica incapaz de varrer elimpar as partículas podres que se separam no bofe,deste modo morre, e não morreria se o vento, ou oAr agitado varresse aquelas partículas, e outro frescoe puro viesse no seu lugar para continuar na mesmaoperação do primeiro.

Logo as águas do mar se conservam incorruptas,não só por aquelas regradas marés, mas principal-mente pelos ventos, que dissipam e limpam da suasuperfície imensidade de matérias podres e de exa-lações: tantos animais mortos neste elemento, tantasexalações geradas dos bitumes, que nele se contém,tantos e tão vastíssimos animais que transpiram con-tinuamente, sempre mais quentes que a mesma água,é força que apodrecessem se não se desvanecessemestas exalações impelidas dos ventos.

A atmosfera dos lagos, charcos, e paules, ou feitospor enxurradas dos caudalosos rios, ou pelas águassalgadas do mar, se não fosse sacudida e ventiladapelos ventos causariam a maior podridão. Destemodo é que a atmosfera vai recebendo toda a sorte devapores e exalações até que nela se juntam em tantaquantidade que se desatam em chuvas, em relâmpa-gos, trovões e raios. O que determina mais depressalimpar-se a atmosfera deles são os montes e os arvo-redos. Estes sempre retêm maior calor e maior frioque a atmosfera: no Estio as montanhas e os roche-dos de dia têm mais calor que o Ar junto deles: denoite têm maior frio também; chega a atmosfera agi-tada pelos ventos, carregada de vapores e exalaçõesbatem contra as montanhas e arvoredos mais frias denoite do que o Ar, condensam-se, formam-se nuvens,formam-se fumos, e fogos, e todos esses se desfazemem chuvas, relâmpagos, e raios.

Mas as chuvas limpam o Ar e o depuram das par-

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tículas podres, como também os relâmpagos, os tro-vões movendo e sacudindo o Ar, purificam-no, destemodo os ventos não só servem para varrer as partí-culas podres de tudo o que se exala no nosso globo,mas também para formarem as chuvas, os orvalhos,os relâmpagos e trovões que consomem e dissipam apodridão do Ar: eles são causa deste circulo admirá-vel pelo qual se conserva a natureza.

Ainda que por sua natureza nenhum vento sejaquente ou frio, a cada um dos quatro cardinais da-mos alguma destas qualidades. O vento que vem domar sempre é húmido: no tempo do Estio sentimo-lo frio e no Inverno quente. Em Lisboa o vento domar, depois do mês de Maio, refresca e começa aventar depois do meio dia: no Inverno tempera o Are sentimo-lo quente e húmido. A causa é como jádissemos que no tempo do Estio a terra, e os mon-tes conservam maior calor, do que o Ar, e a água; osvapores que se levantam então dela parecerão frios aquem os respirar no continente: do mesmo modo noInverno a terra e os montes são mais frios, que o Ar eágua, e os vapores que desta se levantarem se sentirãoquentes por aqueles que estão na terra. Vimos acimaque os corpos retêm o calor e o frio à proporção dasua densidade.

Todos os ventos da terra são secos, de Verão ossentimos quentes, e de Inverno frios: as mesmas cau-sas acima referidas mostram a evidência destes efei-tos; da terra coberta de montes, pedras, metais, e ou-tros corpos mais densos que a água, não se levantatanta quantidade de vapores, como da superfície domar: os ventos que levarem estes vapores parecerãosecos. Como a terra é corpo mais denso que a água, eo Ar, há-de conservar mais calor no tempo quente, emais frio no tempo de Inverno; daqui vem que expe-rimentamos em Lisboa os ventos de Castela no Estioardentes, e no Inverno frios.

Assim os ventos têm as qualidades dos vapores edos lugares por onde passam; e conforme for a situa-ção assim conheceremos a qualidade do vento32.

Conhecemos em Portugal o vento do Sul quentee húmido, por que vem, como aquele do Ocidentepor cima do mar. O vento Nordeste, e do Oriente,por seco e quente, porque vem da terra: mas nas co-marcas de Pinhel e de Viseu o vento do Sul é frio e

32Refere Thevenot no 2.otomo das suas viagens, que osque vão do Cairo a Suez, ou que viajam pela Arábia, encon-tram às vezes ventos tão ardentes e tão sufocantes que im-pedem a respiração: aumenta-se o perigo pela imensidadede areia que se levanta em nuvens, e que sepulta às vezes ca-ravanas de 6000 homens principalmente daquelas que vão aMeca: chamam a este ventoSamyel, que em língua Tártara,ou Persicana ordinária quer dizer vento pestilento; assim ovento leva consigo as qualidades do terreno por onde passa.

seco; passa este sobre a serra da Estrela, todo o anocoberta de neve, e toma a sua qualidade: assim osventos terão sempre as qualidades dos lugares pelosquais passarem, varrendo as exalações que deles selevantam33.

Capítulo VI

Efeitos da temperatura do Ar entreos trópicosEntre os trópicos estão sitas as colónias de Portugaldepois das Ilhas de Cabo Verde até à China: aque-las mais habitadas são as do Maranhaõ, Brasil, costada Mina, Angola, Moçambique, e na Índia: nestessítios o calor é contínuo; os dias são por todo o anoquase iguais às noites, são cortados por caudalosíssi-mos rios, cobertos de altíssimos arvoredos; bordadostodos pelo mar; às vezes separados por lagos: vê-se claramente que deve ser a sua temperatura a maiscálida, e a mais húmida, de todas aquelas que o solalumia.

Vimos acima quão potente seja a humidade, e ocalor para gerar a podridão; logo será facil persua-dir se naquelas terras as enfermidades terão todas aorigem desta qualidade adquirida.

Perto das Ilhas de Cabo Verde todos os navegan-tes sabem que se gera no mar uma sorte de erva,que chamamSarguassoem tão grande quantidade,e por tanto espaço, que retém muitas vezes o cursodos navios, se as velas não fossem cheias de vento:esta imensidade de vegetais pelos calores continua-dos vêm por último a apodrecer: levantam-se delespestíferas exalações, que fazem tão mal sadias àque-las Ilhas: e se não fosse pelas chuvas contínuas desdeo mês de Abril, Maio e Junho, mais tarde, ou cedo,se não fosse por aqueles ventos gerais, que ventamdo Sudeste, ao Nordeste, ninguém poderia viver pormuito tempo naquelas paragens34.

Entra pelos domínios de Portugal na América umdilatado, e considerável ramo da serraCordillera naaltura de 22 graus lat. Austral, continua Sudeste atéquase à Capitania do Espírito-Santo: nascem de umae outra parte dilatadíssimos rios, dos quais os maisfamosos conhecidos são o rio da Madeira, e dos To-cantins: o primeiro vai cair no dilatado rio das Ama-zonas, e o segundo no de Guanapu nos Estados doMaranhão: os dois rios que nascem no Brasil de umae outra parte desta serra, um é o de S. Francisco que

33Levinus Lemnius de miraculis occultis naturæ, 1574.Antuerpiæ, 8.olib. III, cap. 3. Tratou esta matéria excelen-temente.

34Histoire des Voyages, tom. III, pág. 146, edição daHaya.

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corre quase do Sul ao Norte; e o outro da parte opostachamado Paraná, levando o curso do Norte a Sul, eentra no rio da Prata.

Mas infinidade de rios menores entram por todosos lados nestes principais nomeados: com as contí-nuas chuvas depois do mês de Março todos saem doseu álveo, inundam muitas terras à roda, à distân-cia muitas vezes de três e quatro léguas: além des-tas continuadas chuvas até o mês de Agosto, o climaé inconstante, por todo o ano chove, mesmo no diamais sereno; o céu tempestuoso com trovões, relâm-pagos e raios. Mas estas inundações não são sim-plesmente de água; como todas levam consigo imen-sidade de árvores; ficam nos bordos, juntamente comimensidade de peixes e animais terrestres, quandoas águas entram no álveo dos rios os campos ficamcheios de charcos, com o calor apodrecem, morremneles os peixes, com os corpos dos mais animais evegetais; geram-se então imensidade de insectos, quetodos vêm a apodrecer; e como o calor é quotidiano,mais se subtilizam cada dia até que tudo convertidoem vapores e exalações podres se desvanece na at-mosfera35.

Desta podridão provém aquelas febres pestilentas,que chamamcarneiradasnas minas do Mato Grosso,Cuiabá, e Guaiazes. Da mesma origem vêm outrosmales tão comuns a todo o Brasil, como são os in-sectos mais nocivos à Saúde; e outras moléstias vul-gares.

Na costa da Guiné, no reino do Congo, em An-gola atravessam aquelas terras multidão de rios dosquais os mais caudalosos são o Cuilo, o Zaire, eo Cuanza: chove nelas depois do mês de Abril atéAgosto; tudo se inunda de uma e outra parte: ficamas dilatadas praias cobertas de infinidades de peixes,insectos, animais terrestres e vegetais; pelos ardoresdo sol tudo apodrece. É tal a imensidade de exala-ções podres com que a atmosfera está carregada, quemuitas vezes se observaram as primeiras chuvas ver-melhas, e os orvalhos tão corrosivos que geram bi-chos nos vestidos, se os fecham antes de secarem-se,e o que parece incrível, se a experiência quotidianao não ensinara, é que o mesmo orvalho gera bichosnos corpos daqueles que dormem descobertos ao se-reno, e também a morte. Aqueles, que se expõem nusdebaixo da linha equinocial às primeiras chuvas con-traiem uma sorte de sarna com comichão intolerável.Com pouca diferença se observa a mesma podridãoem Sofala, Mombassa e na Ilha de Java, onde a hu-midade causada pelos muitos rios e charcos e pelos

35Guilhelmi Pesonis de utriusque Indiæ libri IV. Amste-rodami, foI. lib. I, de Aere, aquis & locis Brasiliæ, cap.I.

calores continuados gera a podridão da atmosfera36.Ainda que o Egipto fique fora dos trópicos observam-se pelas inundações do Nilo, e os calores ardentes, asmesmas enfermidades geradas pela mesma causa37.

Se a natureza não tirasse dela mesmo o remédioseriam aqueles lugares inabitáveis, como se persua-diu a antiguidade, suspeitando os ardores do sol, masa podridão que se gera cada dia seria a causa da des-truição de todos os viventes, se no mesmo tempo nãose dissipasse. As grandes e continuadas chuvas, osabundantes orvalhos, os trovões, relâmpagos, e raios:os ventos constantes, e às vezes furiosos, e a imensi-dade das exalações aromáticas, são os remédios comque a natureza faz aqueles lugares habitáveis.

Discorramos de que modo produz a natureza estasoperações, não só para admirar a suma Providência,mas também para saber imitá-los, pois que tanto con-tribuem para a conservação do Universo.

Tanto que a atmosfera está carregada de vapores,pelo seu próprio peso os vemos cair na forma dechuva e de orvalho: limpa-se deste modo o Ar dapodridão que tinha: além deste primeiro modo, a at-mosfera cheia de exalações ou procedida das maté-rias sulfúreas, ou podres, pelos ventos são impelidascontra as montanhas e os arvoredos: as noites entreos trópicos, como são tão longas como os dias, sãofrias e húmidas: logo as montanhas e os arvoredoso serão muito mais que a atmosfera: tanto que che-gar perto delas, se condensarão, formam-se nuvensque se desatam em chuvas, formam-se relâmpagos,trovões, que se desatam em raios.

Se no tempo do Inverno pusermos uma garrafa ti-rada naquele instante de uma adega fria numa câ-mara quente veremos logo muitas gotas de humidadeà roda dela: porque no Ar quente da câmara nada ahumidade da atmosfera, como sempre está em mo-vimento perpétuo toca a garrafa fria, e ali se apegaa humidade, uma e mais vezes até que aparece emgotas de água. Assim a atmosfera menos fria queas montanhas de noite, agitada e movida, ou peloseu próprio movimento, ou pelos ventos, chegandoa eles a humidade se condensa, e se formam as nu-vens e as exalações igualmente, e deste modo se de-satam em chuvas, relâmpagos, trovões, raios e emabundantíssimos orvalhos: quanta maior for a eleva-ção dos vapores, e das exalações, tanta maior seráa quantidade das chuvas, dos relâmpagos e dos or-valhos. Essa é a razão porque entre os trópicos aschuvas são tão abundantíssimas e por tantos meses;igualmente as trovoadas, porque naqueles lugares ocalor, a humidade e a podridão é excessiva: vemos

36Histoire des Voyages, tom. VI, p. 386.37Prospero Alpinus de Medicina Ægyptior. 4.oLugd. Ba-

tav. lib. l, cap. 6, & seq.

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de que modo a natureza procura dissipar e limpar aatmosfera, pelas chuvas, e relâmpagos, que não sãomais que exalações feitas em chama, como os raios;mas o que emenda o Ar mais que tudo são os tro-vões, sacodem dele as exalações, restitui-lhe por estaagitação violenta a elasticidade que se perde às vezespelas calmarias e grandes calores.

Somente entre os trópicos nascem os aromas etoda a sorte de especiarias: é admirável a Providên-cia do Altíssimo que naqueles lugares onde se geracada dia, e cada hora a podridão pelo calor, e humi-dade exorbitante, naqueles somente se geram os maisfragantes aromas, e na maior abundância: daquelasárvores com o mesmo calor que dispõem a apodreceros viventes e os vegetais, o mesmo faz transpirar asplantas e as árvores aromáticas: sabemos por experi-ências certas que os aromas são um potente correc-tivo da podridão: tantas exalações destes arvoredosque dão a canela, a noz moscada, os bálsamos, a al-mécega, e outros infinitos corrigem ao mesmo tempoa podridão da atmosfera.

Abaixo veremos o uso destas observações univer-sais de que modo a natureza remedeia a podridão daatmosfera.

Capítulo VII

Dos efeitos da atmosfera alterada oupodre no corpo humano

O Ar cerca-nos por todos os lados; entra no estô-mago com os alimentos, entra no bofe para limparas partículas podres que se separam ali do sangue,que vemos sair em forma de bafo; comunica-se aomais íntimo do nosso corpo pela superfície dele.

Vejamos primeiro os efeitos do Ar puro no estô-mago, de que modo entra ali com a bebida e a co-mida. O Ar entra na composição de todos os corpos,mas existe neles do mesmo modo que existe na água:está tão sumamente dividido que não se mostra comoAr, e não tem dele nenhuma propriedade: se se me-ter a água na pompa Boyleana, faltando-lhe o pesoda atmosfera, aqueles elementos do Ar que não apa-reciam começam a unir-se uns aos outros; logo quemuitos estão unidos formam borbulhas de Ar, sobempela água, como se fervesse. O mesmo sucede comuma maçã, com um nabo, saiem destes frutos imen-sidade de Ar: mas as substâncias animais são aquelasnas quais entra muita maior quantidade de Ar que nasprecedentes: deste modo consideramos que em todosos corpos existem os elementos do Ar, não como o Arque respiramos, nem com as suas propriedades.

Quando mastigamos, o Ar exterior que respiramosmistura-se com os alimentos que comemos; quantomais mastigamos maior quantidade de Ar se amas-sará com eles, e será mais fácil a digestão: entram noestômago, mas nele o calor sempre é uma terça parte(ordinariamente) maior que na atmosfera. Sabe-seque o Ar se pode dilatar prodigiosamente pelo ca-lor, como vemos se dilata a água, o azeite, e o leite:logo aquele Ar amassado com os alimentos se dila-tará no estômago: ao mesmo tempo as partes ele-mentares do Ar que compunham os alimentos se di-latarão também; farão um movimento do centro paraa circunferência, como se faz na fermentação e napodridão; assim aqueles alimentos no estômago en-cerrados se dissolverão tão intimamente, que se con-verterão numa nata, igual, líquida e espirituosa; estaé a que chamam os Médicos quilo, esta é a que nossustenta, e desta é que se formam todos os licores donosso corpo, e as partes sólidas.

Suponhamos agora que um homem vivesse numaadega com portas e janelas fechadas, o pavimento eas paredes húmidas, sem luz, nem abertura algumapor onde pudesse entrar o Ar, é certíssimo que seriahúmido, retido, e podre; porque da terra e das pa-redes, e do corpo do mesmo homem sairíam exala-ções contínuas; estas se depositariam no Ar: se estehomem comer, este mesmo Ar entraria no estômagocom os alimentos: mas este Ar é podre; a sua diges-tão o será também e por consequência o quilo; masdeste formam-se todos os humores; todos os seus hu-mores por último reterão aquela qualidade: se se to-mar uma linha e se passar por uma gema de ovo po-dre, e se puser numa panela de caldo no calor, nãodigo do estômago, mas do mês de Maio, apodrecerátodo, virá fétido, e horrendo ao gosto: tão activa é amínima partícula de qualquer substância podre!

Entra o Ar no bofe a cada inspiração e serve aconservar e a prolongar a vida e a Saúde. EstevãoHales38 observou que a superfície interna dos bofesé muito maior que toda a externa do mesmo corpo:todo o sangue que entra neles fica exposto às impres-sões do Ar que respiramos: ali é que o Ar faz doisefeitos consideráveis, pelos quais unicamente vive-mos. O primeiro é de comunicar ao sangue aquelefogo elementar, aquela luz, aquela vitalidade comque anima as plantas e os animais; a segunda absor-ver e embeber as exalações que saem do sangue, domesmo modo que ele absorve a transpiração insen-sível que sai pela superfície do nosso corpo: mos-

38Statical, Essays, pág. 242.nPelo que a soma da super-fície interna dos bofes humanos é igual a 41635 polegadasquadradas ou a 289 pés quadrados. A qual é maior dezvezes do que a su+erfície de um homem ordinário, que seconta 15 pés quadradosz

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tramos acima que a transpiração são as partículasmais subtis, mais acres, como tantos excrementos donosso sangue; pois o bafo é a transpiração do bofe,e é da mesma natureza39. É necessário para viverque se separe do sangue esta transpiração interna dobofe e da pele: estes são os efeitos do Ar destinadoà respiração; enquanto o Ar for natural, elástico comhumidade, a proporção do fogo elementar, agitado esacudido pelos ventos e sua própria elasticidade faráconstantemente estes efeitos e conservar-se-á a vidado vivente.

Mas consideremos o Ar encerrado, húmido, cheiode partículas podres, como aquele de uma adega,como dissemos acima, ou pior ainda, como é o deuma enxovia: nele então não existirá aquele fogoelementar, ou luz, porque estando encerrado, e ja-mais ventilado, pelas partículas podres e húmidas,que saem dos corpos viventes, ou insensíveis se con-some e apaga: vimos que uma vela acesa apaga-se pelas exalações podres das minas que destroema elasticidade do Ar e encerrada em qualquer vaso,logo que lhe faltar a comunicação com o Ar livre;do mesmo modo se extinguirá no Ar encerrado a luz,aquele fogo elementar que nele existe naturalmente:se um homem respirar este Ar ficará privado daquelavitalidade que nele reside: como o mesmo Ar estájá corrupto, cheio de partículas podres não absorveráaquelas que se separam do seu sangue, e ficarão nele;mas como é obrigado a respirar para viver, tornará ainspirar o mesmo Ar já cheio das partículas da trans-piraçaõ insensível e do seu bafo; a cada inspiraçãologo aumentará a corrupção do Ar, e ao mesmo passoa sua mesma. Daqui vêm aquelas ânsias mortais,aquele cansaço, aquele querer respirar, e não poder,aquelas pungentes dores de cabeça, aquelas náuseassem poder vomitar: estes são os efeitos da podridãodo sangue no bofe, e no coração mesmo: assim co-meça a peste, o escorbuto, as terçãs perniciosas, asfebres pestilentas, mais ou menos agudas conformefor a actividade do veneno, que é o mesmo que a cor-rupção do Ar40.

39A matéria do bafo é tão subtil e tão espirituosa que seabsorve no Ar como o fumo ou a exalação do espírito devinho e flama: bafeje um homem sobre um espelho bemlimpo, turvar-se-á logo: mas em poucos instantes ficaráclaro como dantes: mas se no mesmo espelho puser a pontada língua ficará uma nódoa nele que não se dissipará pelaagitação do Ar, como se dissipou o bafo

40Nas dissertações da Academia de Edimburgo refere-seque desceram alguns mineiros a apagar uma mina de car-vão de pedra que ardia, profunda de trinta braças. Sobemlogo os últimos que desceram, quase sufocados, mas lá fi-cava o primeiro que descera. Resolvem-se os companheirosa ir buscar o companheiro, que trazem com trabalho mortonos braços; a cor da cara era natural, a boca aberta, nenhum

Não somente serve o Ar, que entra pela boca e na-rizes, para respirar mas ainda para outras muitas ac-ções da vida. Espirrar, assoar, tossir, escarrar, falar,rir, chorar, sorver, e engolir: todas estas serão vici-adas e diminutas. Veremos abaixo que se conheceo bom terreno pela voz clara, sonora, e agradáveldos seus habitantes: aqueles que vivem nos lugareshúmidos, charcos, paules, terras alagadas têm a vozrouca, pesada, e baixa.

O Ar entra também pela superfície do nossocorpo, não como Ar, mas atenuado e desfeito pelaspartículas húmidas ou podres de que estiver carre-gada.

Os corpos dos animais são tantas esponjas viven-tes que lançam de si e recebem tudo aquilo que nadana atmosfera. Quem se persuadirá que o ouro, metalmais denso, compacto e igual que conhecemos, temimensidade de poros tão grandes que pode por elessair água41? Se um vaso cilíndrico feito de ouro esti-ver cheio de água, e se comprimir igualmente com acoberta à força de uma imprensa, não se comprimiráa água, mas sairá pelos poros do vaso em forma deorvalho: quem se imaginaria que o Mercúrio, maisdenso e pesado do que a prata, posto dentro de umvaso deste metal, como de qualquer outro, que o atra-vessará e que sairá em forma de orvalho por todosos lados? Todos os dias vemos o Mercúrio, apli-cado ao corpo humano em unções, mover a saliva-ção, causar febre violenta, e inflamações: os emplas-tros de cantáridas produzem ordinariamente ardoresde urina. As folhas do tabaco pisadas com miolo depão e algumas gotas de vinagre aplicadas na boca doestômago causam vómitos. Logo o nosso corpo todoé como um ralo, uma esponja, e pode dar acesso amuitas substâncias para o penetrarem até o mais ín-timo dele.

Todos os sais têm a virtude de atraírem a humi-dade: ponha-se um prato com sal comum bem seco,outro com sal tártaro, dentro de uma adega fechada,em poucos dias o sal comum virá húmido, e o detártaro desfeito num licor que chamam óleo de tár-taro. Aqueles homens que se exercitam violenta-

sinal de vida no pulso e muito menos na respiração.M. Tos-sach, Cirurgião deita-se em cima dele, começa a assoprar-lhe na boca, tapando com uma mão as ventas do nariz, paraque por elas não saísse o Ar que assoprava, depois de al-guns minutos começa a observar a pulsação das artérias;então manda esfregar todo o corpo; começa a respirar, edeterminou-se a sangrá-lo; corre o sangue gota-a-gota con-tinuam as esfregações, e o assoprar; então o enfermo bo-ceja, veio a si e adquiriu perfeita Saúde. O mesmo se temfeito com os afogados na água depois de poucos minutos,às vezes com bom successo. Vide Medical Essays, tom. V,part. II, pág. 605, Edimb. in 8.o.

41Chambert, Cyclopaedia; verboPore.

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mente, como são os malhadores e segadores, fazem oseu sangue salgado e da natureza da urina: vem maisacre, mais apto para atrair a humidade: se dormiremao sereno atrairão maior quantidade de humidade daatmosfera, do que se estivesse o seu sangue no estadonatural.

A humidade da atmosfera tem maior actividade denoite que de dia para comunicar-se ao corpo humano:um homem exposto ao sol no mês de Julho sofrerá ocalor de oitenta graus: ponha-se à sombra, o calornela será de 20 graus menos: de noite o calor seráainda menor; se na atmosfera existirem muitas exa-lações e vapores, já vimos que estas se condensampelo frio, e que de noite serão mais activas para en-trarem no nosso sangue: quanto mais estiverem osporos abertos, quanto mais de noite estiver o corpoesquentado, ficará mais apto para absorver aquele se-reno e aquele orvalho. Admiremos o instinto dos na-turais do Brasil para se preservarem da humidade edo sereno da noite: todos ordinariamente se persu-adem que os tapuias, e nações semelhantes dormemnas hamacas sempre com fogo debaixo, e pelos la-dos, por temor dos bichos, e serpentes venenosas:a experiência mostrou-lhes que só dormindo levan-tados da terra, com fogo contínuo podiam conser-var a Saúde dissipando a humidade da atmosfera, tãoabundante e tão constante em toda a América Meri-dional: em Pequim todos dormem em cima do fornoou da chaminé onde fazem a cozinha; os lavradorese vilões em todo o dilatado Império da Rússia dor-mem do mesmo modo: por esta precaução se livramde muitas queixas, e na China da peste, como porcarta do Ilustríssimo Bispo Policarpo de Sousa fuiinstruído, porque naquele dilatado Império nunca seobservou este tremendo flagelo.

MM. Petit42 & Reaumur43 observaram que o Arse absorve e amassa com a água, e com todos os li-cores, se forem salinos: fica então neles como parteconstituinte: se o Ar for podre, húmido, ou dotado dealguma qualidade venenosa, o líquido onde entrar éforça que adquira aquelas qualidades.

Estevão Hales44 observou por repetidas experi-ências que as plantas embebem e chupam de noitea humidade do Ar. Pelas experiências que referi-mos acima, na pele humana observam-se poros pelosquais sai a transpiração, e por outros semelhantes,chamados dos Médicos veias bíbulas, entra a humi-dade pura ou infectada do Ar: são tão pequenos estesporos que Lewenhoek observou com o microscópioque o espaço da pele humana, coberta com um grãode areia ordinária, mostrava cento e cinquenta mil

42 Hist. Acad. Scienc., 1731,page premiere.43Ibidem,Mémoires, 1731, p. 282, & ano 1743, p. 77.44Statical, Essays, cap. 5.

poros: por esta infinidade é por onde saiem as exa-lações; e de noite ou quando estamos mais descan-sados, como no tempo do sono, entram em forma defumo por eles a humidade e as exalações da atmos-fera.

M. Bouillet45 mostrou a causa de muitas doen-ças observando somente as várias alterações do ca-lor, do frio e do peso da atmosfera considerando osefeitos que produziam nos elementos do Ar consti-tuintes dos nossos humores: estes dilatando-se, oucomprimindo-se alteram consideravelmente a nossaSaúde: mas poucos foram os Médicos que considera-ram os efeitos do Ar podre e sufocado no qual respi-ram e se movem os homens: deste trataremos agoranão só no Capítulo seguinte, mas por todo este tra-tado.

Capítulo VIII

Da influência do Ar corrupto naconstituição do corpo humano e dasdoenças que vêm a padecer

Toda a superfície da terra de altura mesmo de algunspés consta totalmente de matéria podre: tantos ani-mais e vegetais que apodrecem, e apodreceram desdea criação, todos ficaram nela. Há sítios que exa-lam tais vapores que mudam a cor da prata lavradae do estanho; outros onde o ferro o mais polido seenferruja: as cores vermelhas e azuis desmaiam, oque tudo provém da diferente sorte de sais que na-dam continuamente na atmosfera e que se levantamda terra: assim cada porção dela, cada distrito, cadacomarca e Reino, tem sua natureza particular: daquivem a compleição, as inclinações, a forma do corpo,as feições da cara e da sua cor, a vivacidade ou a es-tupidez do natural: destas qualidades do terreno par-ticipam os ventos: levam consigo os vapores e exa-lações e produzem efeitos diferentes daqueles que sepodiam esperar dos lugares onde chegam; Pequim, aquarenta graus latitude do Norte, é fria por extremoquando experimenta os ventos do Norte: passam es-tes por terras e por altíssimas serras cobertas de neve,e levam consigo as partículas frigoríferas. Vejamosagora os efeitos da grande humidade e do calor.

Vimos acima as causas da podridão: agora vere-mos os efeitos que produz nos corpos: onde houvera maior quantidade de humidade e o mais perdurávelcalor, ali será mais violenta. Temos a história das do-enças ordinárias da Ilha de Java, sita debaixo da linha

45Hist. Acad. Scienc.1742.

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equinocial, escrita pelo judicioso Médico Bontius46

como também da temperatura do Ar, e veremos queconfirma tudo o que temos relatado; é a minha inten-ção mostrar por ela as doenças que devem reinar emtoda a colónia do Maranhão, quase na mesma latitudetão húmida como Java, e o mesmo se deve enten-der de todas aquelas habitações que bordam aquelescaudalosos rios que atravessam os estados do Brasil.Diz Bontius citado que aquela Ilha é extremamentehúmida não só pelas chuvas de seis meses contínuoscada ano, mas também pelos muitos rios com que éregada; que os calores depois das nove horas são in-suportáveis, e que ninguém sai fora de casa, que detarde; deste modo gera-se tal podridão, e a atmos-fera adquire tanta corrosão que os vestidos fechadosapodrecem e os metais se enferrujam. Que quandoventam da terra certos ventos limpam a atmosfera, ea fazem saudável, os que se lhe faltasem não seriahabitável: que o terreno da Ilha é fértil, a terra negrae forte, que dela se levantam, como de todas seme-lhantes, exalações tão acres que se manifestam pelasdoenças que nomearemos logo: todo o ano se divideem duas sessões, uma que contém o Inverno e con-siste em chuvas abundantíssimas: o resto são caloresexcessivos: mas as manhãs e as tardes depois do solposto são frias, como as noites, os orvalhos abundan-tíssimos e nocivos, o resto do dia ardente.

As doenças ordinárias e uma sorte de paralisia quechamamBeriberi ou Bereberium: a causa é que ocorpo esquentado e relaxado ao mesmo tempo pelocalor foi penetrado subitamente pelo sereno da noite;acomete aqueles principalmente que se descobrem eque dormem com as janelas abertas, ou expostos aosereno: outra enfermidade semelhante reina nos mes-mos habitantes, espécie decatalepsis, que é a mesmaque reina em Goa e em todo aquele reino, a qual cha-mamos o Ar: provém da mesma causa: fica o corporígido, e imóvel como um marmote, os dentes fecha-dos, e morrem nesta convulsão universal, outetanosdos Gregos, em poucas horas.

No tempo dos calores as diarreias e as disente-rias aparecem e são mortais, e quanto mais a sessão

46De Medicina Indorum, lib. II. «Aër in circumvicina re-gione hic non admodum salubris existit, tum quod calor achumiditas, putredinis effectrices, ac genitrices Physicis di-cantur, tum propter stagna, ac loca paludosa hic frequentia;dum igitur venti e montibus spirantes, fretidos ac crassos,ne dicam propter multitudinem infectorum, venenatos va-pores supra urbem nostram adigunt, ac ita aërem inficiunt.Itaque ventus hic e Continenti oriundus, serio nobis caven-dus est ...propter subtilem ac penetrantem qualitatem corpusafficiunt ...hinc gravedines: penetrabilis æris natura misera-bilem illam Paralyseos speciem producit, quæ Beribery»,pág. 183 & 184, Editiones Lugd. Batav. cum Prosperi Al-pini de Med. Ægyptior. in 4.o.

dos calores estiver avançada maiores estragos fazemaquelas doenças; porque os ardores do sol têm apo-drecido já todas aquelas matérias das enxurradas, eestão já todas tão subtilizadas e espalhadas pela at-mosfera que ninguém se pode preservar da sua vio-lência: no mesmo tempo reina aquela terrível e fu-nesta doençacholera morbusna qual os doentes empoucas horas acabam a vida purgando e vomitandosem cessar até morrer: reinam também febres inter-mitentes, mas de natureza tão maligna que se termi-nam ordinariamente por hidropesias, e estas com amorte; muitas vezes convertem-se em febres arden-tes com delírios e morrem por parótides, pintas e car-búnculos.

Na mesma Ilha o leite das mulheres brancas é tãoacre, e amargo que as mães são obrigadas dar a criaros seus filhos às negras, porque só elas têm o leiteoleoso e doce capaz de nutrir os meninos ao peito47.

No Forte de S. Jorge na Índia oriental na altura dequatorze graus de latit. não longe de Goa, quandoo vento vem dos lados do Ocidente desde o mêsde Abril até o fim de Julho, o Ar vem tão ardente,tão seco e insuportável que, se não fora pela vira-ção do Sudeste depois do Meio-dia, os habitantesnão poderiam viver naquele Ar: os efeitos destescalores, secando o sangue e dissipando o mais sub-til dele, fazendo-o apodrecer por não poder circular,nem ventilar-se, são caírem nocholera morbus, fe-bres com frenesis; na doença da terra chamadaBe-ribery; desde meado de Outubro até o princípio deDezembro o vento começa, e continua entre Norte eEste: então começam as chuvas, e nesta cisaõ é quereinam as diarreias e disenterias: o resto do ano o Aré temperado e as enfermidades seguem aquela tem-peratura48.

Mas a causa mais universal e a mais pestilenta dasdoenças e Epedimias são as inundações: se escre-vesse este livro somente para os Médicos poderia re-latar aqui muitas e mui particulares observações, eainda minhas: bastará para o intento deste tratado as-sentar na universalidade desta causa, e citar no lugarconveniente os Autores que se poderaõ ler desta ma-téria.

Tanto em Portugal, em todos os lugares que bordao Tejo, em Angola onde inundam tantos rios aqueleReino, como em toda a América, depois das inunda-ções, logo que as matérias das enxurradas começama apodrecer, o Ar infecta-se e produz semelhante po-dridão nos corpos: manifesta-se por toda a sorte defebres podres, e sobretudo por disenterias; terminam-se em suores frios, em pintas, convulsões, carbúncu-

47Hist. Acad. Scienc.1707, p. 10.48Arbuthnot, An Essay concerning the effects of Air, pág.

139.

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los, raras vezes em parótidas e bubões que supurambenignamente, e muito mais raras por suores abun-dantes, e universais, que escapam à vida.

Temos tratado da natureza do Ar, suas qualidadesnaturais ou adventícias, quanto nos pareceu bastavapara a inteligência do que vou escrever: não foi omeu intento escrever tudo o que se podia dizer nestamatéria, porque determinei dar somente os princípiosnecessários para usar dos remédios que proporemoscontra a corrupção do Ar. Parece-me que qualquer,ainda que não seja instruído na Física, compreenderápelo que fica dito que o Ar, além das qualidades natu-rais, de quente, frio, húmido ou seco, adquire aquelade ser corrupto. Facilmente se compreende que ad-quirirá esta última logo que ficar encerrado; logoque a humidade e o calor for excessivo, sem ven-tos, nem ventilação da amosfera: vimos os efeitosdesta podridão não só em todos os climas, mas parti-cularmente entre os trópicos: vimos também que domesmo modo o globo terráqueo tem a sua atmosfera,assim como cada corpo vivente e vegetal, ou animaltem a sua: e que a podridão dela sabe vencer a natu-reza pelos ventos, pelas chuvas, trovões, relâmpagos,e raios, como também pelas exalações aromáticas; eque nós imitando-a, como devemos em tudo, deve-mos conservar a nossa atmosfera particular pela ven-tilação do Ar, pela humidade, e secura regrada, e portodos os meios que se descreverão neste tratado, por-que de outro modo deixando a apodrecer cairemosem toda a sorte de doenças.

Capítulo IX

Dos sítios mais sadios parafundar cidades e mais povoa-ções

Porque me pareceu que jamais se consultaram os Mé-dicos, nem pelo Magistrado, e muito menos pelos ar-quitectos, para fundar qualquer povoação, achei queseria útil juntar tudo aquilo que li nos Autores ale-gados abaixo para evitar os danos que se observamem muitas vilas e cidades; persuado-me que Portu-gal tem mais necessidade destes conhecimentos doque outra qualquer nação; porque tendo cada dia oca-sião de fundar novas povoações nos seus dilatadosdomínios poderá ser que evitaria por este meio mui-tos inconvenientes que necessariamente redundaramna perda dos seus vassalos.

Aristóteles quer que para fundar uma cidade duascoisas se devem atender. A primeira a conservação

dos habitantes e a segunda a sua utilidade49. O sítiomais adequado para satisfazer estas intenções, seráaquele virado para o Oriente, onde as águas sejamvivas e correntes; sítio que tenha muitas entradas, pe-las quais possam entrar embarcações, e carros, tantode Verão como de Inverno; que não seja húmido porextremo, nem árido como são os rochedos: que sejaventilado antes pelos ventos frios, como são os doOriente e do Norte, que pelos do Sul e Ocidente hú-midos e quentes ordinariamente. Porque os habitan-tes pela fábrica das casas, pelos vestidos, exercício, efogo facilmente se defendem do frio: que estes luga-res sempre devem ser preferidos aos quentes, e hú-midos por extremo, porque os naturais são fortes erobustos, magnânimos e industriosos; em lugar queos nascidos em climas suaves são de ordinário ocio-sos, negligentes e por extremo deliciosos.

Mas sucede às vezes que por razões de Estado énecessário fundar uma cidade em lugar menos conve-niente à conservação dos habitantes: talvez frio pelavizinhança de serras cobertas de neve por todo o ano;outras em lugares tão áridos que nem produzam ali-mentos, nem dêem águas para o comum uso da vida:também em vales dominados de serras e mais fre-quentemente em lugares baixos perto de rios e lagos.

Então é que a arte deve suprir estes defeitos da na-tureza: devem-se então fabricar as casas de tal modo,que os ventos frios as não ofendam. Por essa razão asruas não devem ficar viradas para aqueles lugares co-bertos de neve: devem as casas reparar os ventos quedali soprarem: como também as igrejas e as praçaspúblicas; na intenção que não haja interrupção nasfunções públicas, nem no trabalho dos habitantes50.

Dissemos acima que os ventos comunicam as qua-lidades dos lugares por onde passam. Se for pre-ciso fundar uma povoação perto de lagos, ou cam-pos alagados, com águas encharcadas devem as ruasser viradas com tal precaução, que impeçam os ven-tos que passam por aqueles lugares tão mal sadios.Tanto quanto for possível seja a cidade de tal modoconstruída que fique a maior parte dela exposta aosraios do sol do meio-dia. Nos lugares áridos, ou peloterreno ser de área, de cascalho ou de pedra viva,devem-se plantar neles tantas quantas árvores per-mitir o sítio: abrir poços, fazer cisternas, cascatasde água, fontes de repuxo, com regos, e canais pelomeio das ruas como se vê em Toledo.

Mas nenhum sítio é mais mal sadio que o dos va-les dominados por montes e serras altas: as chuvas osinundam; os nevoeiros não se dissipam, que por umou outro vento; quando qualquer deles ventar seráviolento e tempestuoso porque leva a força de um

49Politicorum, lib. VII, cap. II.50Vitruvius, lib. I, cap. 6.

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líquido agitado, como se fosse por um cano. A hu-midade será contínua: os vestidos fechados roem-sepela traça: as sementes nas tulhas e celeiros perder-se-ão pelo gorgulho: as carnes e peixes não se con-servarão, como também o pão, e mais comidas, oupelo mofo ou bafio: não havendo naqueles lugares aconstante ventilação do Ar todos os vapores e exala-ções lhe ficarão por tecto. Além destes inconvenien-tes, outros maiores são muitas vezes irremediáveis.Raras vezes se vêem vales dilatados sem que sejamregados e inundados por rios, que em certos tem-pos tudo alagam; ficam as terras cobertas de águasturvas, podres e que por último vêm a apodrecer ounas adegas ou em todos os lugares desiguais que bor-dam aquelas torrentes. Raras vezes os ventos são pu-ros; ordinariamente trazem consigo ou as partículasda neve do alto das serras ou os vapores dos lagos eterras alagadas: acumulam aqui os ventos tantas qua-lidades contrárias à Saúde como nos lugares levanta-dos se dissipam as nocivas. No Inverno estes sítiosserão sempre frios; no Estio ardentes pelo reflexo dosol que vier de uma e da outra parte dos montes quedominarem a povoação: daqui mesmo nascerá o Arsufocado, os bichornos e todas as doenças mortaisque produz uma tal atmosfera.

Se nestes sítios houver bosques espessos, arvore-dos altos, a humidade e o frio será maior: porque osventos trarão consigo a humidade contínua que eva-poram e o frio que adquirem, maior sempre que o daatmosfera. Por experiência sei que semelhantes lu-gares são infestados cada ano com febres intermiten-tes da pior sorte, com febres ardentes e pestilenciais.Abaixo indicaremos os remédios contra o Ar húmidodas campinas e campos rasos, e os mesmos poderãoservir a emendar o Ar corrupto dos vales.

As povoações plantadas nas vastas campinas, semvizinhança nem de montes nem de arvoredos, têmtambém muitas incomodidades: tanto mais húmidofor o terreno mais dificilmente se dissiparão os va-pores dele: porque faltando os montes, e os bosques,os ventos regulares são raros: também as águas se-rão de má qualidade; onde não há montes, nem ou-teiros, as fontes são raras, e se alguma existe não éde propriadades louváveis: mas as águas da chuva,não tendo corrente, ficarão encharcadas, apodrecerãoe não sendo ventiladas pelos ventos a atmosfera serásempre húmida e podre.

A corrente das águas e os fogos continuados sãoos únicos remédios que podem remediar o Ar húmidoe os nevoeiros tanto das povoações sitas nos valescomo nas campinas.

A corrente das águas adquire-se por canais ou fa-zendo tais reparos aos rios que aumentem a veloci-dade da sua corrente: não somente redunda em utili-

dade suma prevenir por eles as inundações, mas tam-bém purificar o Ar e secar o terreno: dissemos acimaque o Ar se mistura e se amassa com a água: se estafor corrente, a coluna de Ar que lhe tocar levará omesmo curso e por este movimento se ventila e serenova levando consigo os vapores e a humidade da-quele lugar. Gera-se pelo curso das águas um ventoartificial que é tanto mais sadio quanto ele for maisrápido.

Atravessa o rio Sena a populosa cidade de Paris;está de uma e outra parte bordado de dois cais for-tíssimos; correm as águas forçadas com tanta veloci-dade como se fossem por um canal: os fogos de umatão populosa cidade aquecem e agitam a atmosferadela; e como a coluna de Ar que cobre a água do rio émais fria, é força que se renove a cada instante, tantopara vir fazer o equilíbrio daquele da cidade, comopor ser levado pela corrente da água: deste modono meio de uma cidade tão habitada existe continua-mente um vento artificial que ventila e renova a suaatmosfera e é causa em parte da sua salubridade.

Se faltarem rios nestes sítios é necessidade indis-pensável mandar abrir canais para dar corrente pelomenos às águas da chuva e dos usos domésticos davida: ainda que o terreno seja seco quando se abrea terra, a certa altura, sempre se encontram olhos deágua, e muitas vezes fontes, e tão abundantes que po-dem servir a muitas fábricas. Por este artifício a Re-pública da Holanda, Veneza, e Batávia e o Impérioda China fizeram habitáveis lugares, pelo seu sítio,perniciosíssimos à Saúde.

O segundo meio de remediar os males que causaa grande humidade são os fogos contínuos. Todo ofogo atenua e rarefaz o Ar, e aquele vizinho mais frioe mais pesado vem fazer equilíbrio com ele; destemodo se agita continuamente, e se gera um ventoartificial que dissipa e ventila a humidade tanto dosvestidos como dos móveis de casa.

Está a pupolosíssima cidade de Pequim plantadanuma vastíssima campina: todas as casas são tér-reas; o terreno é húmido: o que preserva esta na-ção de muitos males é dormirem sempre sobre o fo-gão ou chaminé onde cozinham: secando-se cada diaos vestidos, dissipando-se a transpiração insensível,agitando-se e renovando-se o Ar cada dia; pelo me-nos uma vez por algumas horas emendam a má qua-lidade do terreno.

Na Rússia o terreno coberto de neve por oito me-ses, e de dilatadíssimos bosques, é sumamente hú-mido (a neve evapora muito mais que a água aindana força das geadas); todos os habitantes daqueledilatado Império vivem em casas térreas, ou muitobaixas por serem feitas de traves; raríssimos são osmontes, e contra a humidade exorbitante do terreno

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defendem-se somente dormindo de Verão e de In-verno sobre as chaminés feitas como os nossos for-nos. São robustos, vigorosos e raras são entre eles asenfermidades.

Poderia ser útil esta introdução na América prin-cipalmente naquelas povoações situadas junto dosgrandes rios e terras baixas, mostrando-lhes já os Ta-puias o exemplo de dormirem nas hamacas semprecom fogo debaixo.

Sei eu que na Província de Baku na Pérsia sita aSudeste do mar Cáspio jamais se viu a peste, semembargo haver devastado todas as províncias circun-vizinhas: todo o seu terreno está cheio de fontes deazeite de Bitume que chamam Nafta; muitas caver-nas ardendo continuamente; basta meter um bordãona terra e afincá-lo perto delas para começar a ar-der como se se pusesse numa fornalha. Olearius, eKemfer que visitaram estas maravilhas da naturezaconfirmam esta relação51.

Nestes sítios húmidos, aquosos e alagados serianecessário viver em casas altas, antes no segundo eterceiro andar que no primeiro: evitar a morada decasas térreas, nem lajeadas com tijolo ou pedra; se anecessidade obrigar seria melhor a sobradada com ofundamento de ossos queimados ou carvão feito empó e área grossa, o que embebe fortemente a humi-dade: as paredes, quanto mais espessas, sempre serãomais húmidas se resistem mais aos ardores do Sol,mais dificilmente se secam: as janelas, e as varandasdeviam ficar viradas para os ventos mais sadios, queseriam ali os secos e frios.

Há neste ponto uma regra geral: que o sítio ondese há-de fundar a povoação não tenha qualidade al-guma com excesso no calor, no frio, na humidade ena secura: logo que houver excesso em alguma delasé força que altere a nossa constituição gerada com talharmonia que não consente excessos para conservar-se. Hipócrates52 quer que as povoações estejam vi-radas para o Oriente, antes que para o Norte, antespara o Sul que para o Ocidente: nestes sítios os ca-lores e os frios serão moderados; além disto as águasexpostas aos raios do sol logo que nasce se depu-ram e aclaram; são mais leves, suaves, sem sabor, etransparentes; aqui os habitantes são de boas cores,de bela estatura, a voz é clara, e entoada: são maisactivos e engenhosos, do que aqueles que vivem ex-postos para o Norte: a fecundidade das mulheres émaior, e parem com menores perigos.

51Vide Kemfer, Amœnítates Exotícæ, fascícul. II.Rela-tion du voyage d’Adam Olearius, tom. I, lib. IV.

52De Aeribus, aquis & locis, sect. VIII, edito Vanderlin-den.

Leão-Baptista Alberti53 pode ser o mais judiciosoAutor nesta matéria, diz que uma cidade terá toda adignidade e formosura se se fundar em sítio medio-cremente levantado, que possa ser lavada de todos osventos, que sirva como de Atalaia aos campos fér-teis vizinhos, onde haja água e lenha; e que para sedeterminar o seu assento duas coisas se devem an-tes investigar; a primeira as qualidades do terreno e asegunda a bondade das águas.

Costumavam os antigos expor os fígados dos ani-mais ao Ar daquele lugar, não só para fundar algumapovoação, mas ainda para acampar: expunham aomesmo tempo os fígados dos animais daquele sítio;e quando observavam que os dos nascidos fora deleapodreciam em primeiro lugar o mudavam, tendoaquele lugar por suspeito: deve-se considerar tam-bém se a quantidade de insectos, e a sua má qua-lidade poderão impedir viver com segurança. Já seviu despovoarem-se Províncias e Ilhas inteiras pelaimensidade de ratos, de formigas, de serpentes, e oque é mais de admirar pela imensidade de coelhos.Deve-se também atender à abundância, ou à falta defrutos, e de sementes: a grandeza, e beleza dos ho-mens, como também dos animais, e das árvores da-queles contornos.

Há sítios infectados com exalações malignas queafectam não só o corpo, mas ainda o ânimo: é naturala muitas Províncias terem a maior parte dos homemsas pernas tortas, com chagas, inchadas, ou com cô-deas: em outras como no Egipto infinidade de cegos:em Cartagena, na América a lepra; em muitos luga-res do Norte a sarna; nos Alpes papos na garganta:mas o que é mais extraordinário que haja sítios queinduzam os homens a ser cruéis a si e aos seus seme-lhantes. No Japão mata-se pela mínima afronta. Alios castigos são os mais horrendos: houve já uma Epi-demia na qual todas as moças e raparigas se matavamsem causa manifesta54.

Não convém, diz Baptista Alberti55 citado, fun-dar tão perto do mar, cidade ou vila, que possa re-ceber dele o menor dano: pela violência dos ven-tos ficam às vezes as praias cheias de lismos e plan-tas marinhas, que em breve tempo vêm a apodrecer;aumentar-se-ão os danos se o sítio for baixo, todo deareal.

Além destes inconvenientes os habitantes serão

53De re ædificatoria, lib. I, cap. 4 & cap. 5. Argentorati,1541, in 4.o.

54Plutarchus, tom. II, de virtutibus mulierum. «Mile-sias virgines quodam tempore atrox animi & absurda inces-sit perturbatio, qua de causa incertum, nisi quod putabaturæris temperies veneno infecta, & ad insaniam excitandamparata».

55Lib. IV, cap. 1 & cap. 2.

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molestados dos olhos: o reflexo do sol dará nas ja-nelas e praças expostas para a praia; todos os ofi-ciais sofrerão este dano: a mesma cautela se deveráter quando for necessário fundar povoações perto dosgrandes rios, lagos ou tanques dilatados.

Sucede muitas vezes que pelas inundações doscaudalosos rios ficam muitos campos alagados:secam-se no mês de Julho e Agosto e ficam entãomuitos charcos, formam-se atoleiros imensos e pau-les, então apodrecem, e geram-se imensidade de in-sectos. Se desgraçadamente suceder que as águas domar por alguma tormenta, ou outra qualquer causavierem a misturar-se com aquelas encharcadas, aindaque doces de antes, então se formará a mais horrendapodridão, infestará todos os habitantes muitas léguasà roda com febres intermitentes perniciosas e febresardentes da mesma natureza. Veja-se nesta matéria oque escreveu aquele doutíssimo Físico-mor de Cle-mente XI. João-Maria Lancisi56. Mas a este intentoo que sucedeu nas praias de Languedoc é mais dignode se fazer menção.

Devastavam muitos lugares nas praias do mar deLanguedoc toda a sorte de febres, principalmente notempo do Estio e do Outono; M. Pitot observou comatenção a causa e achou que por haverem feito corta-duras naquela praia, e alguns tanques para guardarempeixe, se tinham feito muitas covas: sucedia que aságuas da chuva e dos regatos ficavam encharcadas eque as águas do mar agitadas às vezes pela violên-cia dos ventos vinham misturar-se com as mesmas e,detidas pelas cortaduras e desigualdade do terreno,apodreciam pelos calores que são naquelas paragensexcessivos: o remédio que se propôs foi o que ex-perimentou eficaz a vila deAigue-Mortefazendo umcanal de comunicação com o mar que dessecou todosos campos à roda; e se continua nos nossos dias estaobra digna do maior louvor. Vejam-se as Memóriasda Academia das Ciências de Paris ano 1746, pág.182.

O que se deve notar de mais particular nesta mis-tura das águas doces e salgadas, é que a água dasenxurradas ainda que apodreça, nem é tão depressa,nem a podridão que causa é tão horrenda, comoquando se mistura com a água salgada, e que ficaencharcada igualmente com a doce: então é que pro-duzem aquela pestilenta atmosfera que causa febresmortais, que ou matam logo ou terminam por quar-tãs perniciosas, por icterícias, por hidropesias, e porcursos de sangue mortais.

Estes efeitos devem experimentar e experimentamaqueles lugares perto de Lisboa alagados pelas águasdoces dos rios que desaguam no Tejo, como são o

56De paludibus, earumque effluviis, lib. I, cap. 5, pág.18, edit. Genevæ, in 4.o.

de zatas perto de Salvaterra, e outros muitos de umae outra parte: alagam-se aqueles campos no Invernoe na Primavera, ficam as águas encharcadas, e mis-turadas com as salgadas produzem naquele deliciosoclima as mais horrendas febres perniciosas que se ex-perimentam em todo o Reino.

À vista do referido procure-se quanto for possí-vel a praia onde houver penhascos, onde o fundo domar, não for muito alto, que seja de greda, ou de areiaviva; a praia mais levantada que baixa, sem rochedosásperos, que impedem desembarcar com facilidade:que na quebrada de encostados montes se levante nomeio deles com bastante campo raso para nele fundara cidade, ou fortaleza; que não fique dominada pe-los circunvizinhos montes: deste modo nem as vagasdo mar poderão lançar na praia ervas; nem matériasque apodreçam, nem os vapores que se levantaremdas águas ofenderão os habitantes, porque se dissi-parão antes de chegar aos edifícios. Funestas experi-ências mostraram que ainda o mar tem inconstâncianos seus limites: muitas praias e terras vizinhas fo-ram alagadas, como se vê hoje em muitas costas daBretanha, em França e na Holanda, e em outras omar se retirou, e ficaram praias novas, o que se vêcada dia no Reino da Suécia. Platão conheceu es-tas mudanças quando aconselhava fundar as cidadesperto do mar sempre na distância de quatro léguas.

Como nos vales tudo são extremos, ou de humi-dade ou de calor, e de frio, assim as povoações fun-dadas nos montes têm a violência e a variedade dosventos: se nele o Ar for puro e ventilado, se ne-nhuma enfermidade causada de podridão se deve te-mer, se não tem a moléstia das moscas, moscardos,lesmas, sapos e ratos com excesso, como são infesta-dos os lugares húmidos e baixos, têm perigo os tra-balhadores, e todos aqueles que vivem sempre ex-postos ao Ar, de caírem em enfermidades inflama-tórias, como são, esquinências, pleurizes e todos osmales do peito. Juntar-se-á a esta intemperança doAr frio, seco e ventoso, a insuportável moléstia dodifícil acesso, tanto por água como por embarcações,tanto a cavalo como por carros.

Todas as nações conhecidas buscam sempre osbordos dos rios para fundarem povoações: tiram oshomems deles o sustento; poupam navegando muitafadiga e trabalho: conduzem para a fertilidade dasterras; e é certo que se soubessem aproveitar-se desemelhantes sítios, que a natureza lhes oferece tãoliberalmente, fariam as suas habitações, e a vida, de-liciosas: mas ordinariamente pela negligência, e ig-norância de quem os habita, servem os rios, e prin-cipalmente os caudalosos, mais para a sua ruína, quepara a sua conservação.

Como todos querem usar da conveniência dos

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rios, todos fundaram as povoações em campos rasos;se alguma vila ou cidade tem a fortuna de ficar isentadas inundações, será a mais bem situada, se estivessevirada para o Oriente e Sul, como está Coimbra, e orio ficasse do mesmo lado, os ventos Nortes e do Ori-ente dissipariam os vapores dela, sem jamais ofende-rem gravemente os habitantes.

Têm também muitos danos as povoações sitasjunto dos rios: corrompem-se por muitas causas assuas águas, e as mais ordinárias são as seguintes, sea corrente for tão amena e branda, e os seus ladosforem tão cobertos de árvores que façam sombra atodas as águas do rio, jamais serão ventiladas: no Es-tio virão turvas, e por último corruptas: neste casoseria necessário desbastar estes arvoredos, e ter lim-pos os lados não só dos troncos e raízes podres, mastambém das águas que ficarem neles retidas e en-charcadas. Todos sabem que pelos meses de Agostoe Setembro apodrecem os juncos, as canas e outrasplantas aquáticas nos bordos dos lagos ainda de águaviva, como dos rios, e que desta causa as águas vêmverdes, fétidas e corruptas e que são a causa das fe-bres do Outono naquelas povoações, mais vizinhas,e mais cercadas daquelas exalações.

Neste mesmo tempo costumam os habitantes pôr olinho a curtir no meio dos rios fazendo de propósitono meio deles uma espécie de tanques, impedindoa corrente por reparos de pedra, ou de madeira: alicomeça a apodrecer, e já se vê que as águas parti-ciparão daquele vício. Disputaram muitos Médicosse esta operação infectava as águas e se contribuí-ria para infectar a atmosfera. João-Maria Lancisi,citado57 depois de haver examinado muitos parece-res diferentes nesta matéria assentou que se o linhose curtir nas águas correntes a podridão gerada nãoseria nociva porque logo se dissiparia pela sua cor-rente; mas se o linho ficar em tanques, ou covas fei-tas de propósito em águas encharcadas e mortas, queesta operação seria perniciosa à Saúde dos Povos cir-cunvizinhos, que sempre semelhante modo de cur-tir devia ser proibido por autoridade pública. Peloque vi em vários lugares observei que jamais o li-nho se pode curtir em águas correntes; é necessárioque fiquem retidas, e o mais certo para curti-lo é quefiquem encharcadas: Assim seria boa precaução seo Magistrado proibísse absolutamente esta operaçãoperto das povoações, ou nos rios que lhe dão água.Em alguns lugares da Flandres não se curte o linhona água; secam-no somente nas relvas, estendendo-ofêvera a fêvera, até que começe a abrandar, que é oprimeiro grau da podridão, e com esta operação ficaem estado de o tascarem e espadanarem. Se os jun-

57De noxiis paludum effluviis, cap. 8.

cos, as ervas e troncos das árvores que apodrecemnos bordos dos rios, como também curtir o linho ne-les, são tão noçivos à Saúde, quanto mais o será man-dar lançar as imundícies das vilas ou das cidades naspraias e nas ribeiras?

Não bastaria um grande volume para mostrar osmales que causam as inundações dos caudalosos rios.É certo que jamais peste, ou Epidemia consideráveldesolou cidade ou Província, sem precederem inun-dações extraordinárias. Leia-se Thomas Short58, Au-tor Inglês que juntou na obra citada a história de to-das as Epidemias conhecidas, e cada qual ficará per-suadido do referido. Além deste vejam-se os Auto-res citados abaixo, porque com especialidade tratarãoesta matéria59 os males que causam as inundaçõesnão consistem só na humidade; o principal é apodre-cerem as águas das enxurradas: trazem consigo osrios, quando saem fora do seu álveo, toda a sorte dematérias que por último apodrecem, ou sejam vege-tais, ou animais; ficam pelos campos, quando o rioentrou no seu costumado curso; o pior é que fiquemestas águas nas adegas, nos poços, e nas cisternas.Ordinariamente na Europa as inundações sucedemna Primavera até o mês de Maio: ainda que os ca-lores do mês de Junho sejam grandes, ainda não sesente a podridão; mas continuando pelos meses deJulho e Agosto evaporam pouco a pouco, e por úl-timo vêm a apodrecer todas aquelas águas encharca-das, e o que nelas se contém; geram-se imensidade deinsectos, cheiro insuportável, as águas vêm verdes,turvas, e cada dia aumentarão na malignidade quantomaior for a veemência dos calores, então aqueles Po-vos caem em toda a sorte de febres principalmenteintermitentes perniciosas, contínuas com delírios, eparótidas, que raras vezes supuram; disenterias, có-leras, quartãs, que se terminam ou por Icterícias, ouhidropesias. Em toda a Holanda se observa o referidoe para não ir mais longe observemos o que se passanos bordos do Tejo na Golegã, Santarém, e os lugarescircunvizinhos como Salvaterra, Benavente, Coruchee Samora. As inundações do Tejo e dos rios que desa-guam nele nestes lugares, alagam os campos, e peloOutono todas vêm a apodrecer; se desgraçadamentese vem a misturar água salgada naqueles charcos, en-tão a podridão será mais intolerável; mas parece que

58A General chronological History of Air, Weather, Sea-sons, &c. London, 1749, 2 vol. 8.o.

59Prosperus Alpinus de Medicin. Ægyptior. Lugd. Ba-tav. in 4.o, lib. I, cap. 25. Lancisii de noxiis paludum, &tractatu de nativis & adventitiis que Coeli Romani qualita-tibus. Inter ejus opera, Genevæ, 1718.

Vander Mye de morbis Bredanis, Antuerpiæ, 1627, pertotum in 4.o.

Kloekhof. Opuscula medica.Trajecti ad Rhenum, 1747,in 8.o.

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de sessenta anos a esta parte as inundações são mai-ores da parte do Alentejo; porque diminuindo-se oálveo do Tejo pela quantidade de imundícies que re-cebe da parte de Lisboa, é força que as águas debor-dem do outro lado: pode ser que esta seja a causaporque as febres intermitentes contínuas e pernicio-sas não se observaram em Lisboa senão depois da-quele tempo, como um experimentado Médico medisse em Lisboa no ano 1725.

Mas continuarei o começado e mostrarei todas asconsequências das inundações; todos observaram atéagora que a plebe e os mais pobres dela são os pri-meiros infestados com as Epidemias e com a peste:vivem ordinariamente em casas térreas, onde a lim-peza e as conveniências da vida têm a menor parte:são estas as primeiras que se alagam, ficam húmi-das, apodrecem nelas, além das imundícies, a mesmaágua; infecta-se o Ar e são as primeiras vítimas da-quela corrupção. A grande limpeza com que vivemos Chinas é uma das causas que os preserva da peste.

Poucos se persuadirão que as águas salgadasmisturando-se com as encharcadas, causarão maiorpodridão; porque todos vivem naquela fé que o martudo limpa e purifica; a experiência e a química en-sinaram o contrário. Silvio de le Boe atribuiu a pesteque devastou Leyde no ano 1660 à água do mar quese misturou com as águas encharcadas dos Canais deLeyde60 aquela horrenda Epidemia de Bois-le-Ducna Flandres foi pela mesma causa no ano 174261.Pela química sabe-se que logo que se mistura o es-pírito de sal comum com algum licor podre, vege-tal ou animal, que as partículas sulfúreas num ins-tante se desvanecem depois de uma leve efervescên-cia: quando a água do mar se mistura com as águasencharcadas, é verdade que as depura; mas a podri-dão que tinham levanta-se e fica na atmosfera: masnesta respiram os viventes, e se não for ventilada porventos fortes poderá causar a peste mesmo.

Mas não somente as águas do mar farão esteefeito; as águas minerais frias, ou quentes farão omesmo; volatilizarão a podridão das águas encharca-das e nunca a corrigirão. Veja-se Lancisi no tratadotantas vezes citado62.

60Praxis medica. Appendix Tract. X, edito Amstelodam.in 4.o.

61Pringley Diseases of the Army. London, 1750, in 8.o.62De noxiis paludum. Epidem. V, pág. 334 & seq.

Capítulo X

Precauções contra os danosque causam as inundações emeios para preveni-losEm muitos lugares costumam os habitantes deixaremcovas no campo à roda das povoações depois de ar-rancarem pedra ou cavarem barro ou por outra qual-quer causa: se se alagarem estes lugares seguir-se-ãoos danos que referimos: pelo que deveria o Magis-trado mandar aplanar aqueles desiguais terrenos, eseria melhor fazer os reparos contra todas as inunda-ções nos bordos dos rios. Em outro lugar indicare-mos outras maiores precauções.

Dentro da cidade onde ficaram as águas depois dainundação pelas ruas, lojas, adegas, e pátios, devetambém o Magistrado ordenar eficazmente que selimpem cada dia as ruas, que se dê êxito e curso àságuas; que se limpem os poços, as adegas, e lojas,até ficarem secas, com suma inspecção que não fi-quem estes lugares húmidos nem sujos: no mesmotempo seriam obrigados os moradores a acendereme conservarem fogo em suas casas feito de propósitopara secar e ventilar o Ar; perfumando-as com lou-reiro murta, alecrim e rosmaninho e, sobretudo, emcada quarto queimar uma leve porção de pólvora. Osumo Pontífice Clemente XI numa inundação extra-ordinária do Tibre ordenou semelhantes disposiçõesem Roma: como se poderão ler nas obras de Lanci-sio.63

S.

Males que causam as águasencharcadas naqueles lugaresonde se cultiva o arroz e meiospara remediá-losTemos dado a conhecer bastantemente os efeitos daságuas encharcadas e das enxurradas; mas aquelas queficam nos campos depois da cultura do arroz são asmais perniciosas; é constante que necessita aquelaplanta para dar fruto cobrir-se de água e alagar oscampos onde está semeada se os lavradores não tive-rem a precaução de dar curso a estas águas, logo quese acabar a sementeira, por Canais, pontes levadiças

63Epidemia Rheumatica, quæ Romæ pervagata ano 1709,pág. 162.

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e diques, então ficam expostas aos ardores do Estionos meses de Agosto e Setembro; infecta-se o Ar, oque pagam os habitantes com toda a sorte de febresque terminam ou pela morte, ou doenças que durampor toda a vida; e isto mesmo sucede nos Estados deVeneza, em Guilão, Pérsia, e no Reino de Sião naÁsia onde se cultiva o arroz em abundância.

Nenhuma vila ou cidade poderá jamais ser sadiase nos arredores houver paules, atoleiros e águas en-charcadas; porque não somente a atmosfera daqueleslugares será sempre perniciosa, mas ainda os lugarescircunvizinhos: os ventos trarão consigo aquelas exa-lações e as comunicarão a todos os lugares por ondepassarem: e as vilas ou cidades serão tão molestadaspor elas, como se estivessem sitas junto dos paules echarcos.

Os remédios certíssimos são fazer as águas cor-rentes misturando-lhes águas vivas, abrindo canais efazendo os reparos necessários para impedir as inun-dações dos Rios. Por exemplo, se se quisesse corrigirum charco ou paul devia-se abrir um canal que come-çasse em algum ribeiro, ou fonte abundante, e queatravessasse o lugar destinado, terminando-se em rioou lago de águas vivas; deste modo resultariam doisbens aos habitantes, e são os mais consideráveis davida; o primeiro a Saúde e o segundo a fertilidadedaquelas terras novas e bordadas por Canais.

Pedro Salio Diversus refere que na Itália haviauma praça de armas com profundos fossos que cer-cavam as muralhas, cheios de água da chuva; quepelos ardores dos meses de Julho e Agosto vinhamtão fétidas e tão podres que todos os habitantes delacaíam em febres pestilentas: felizmente houve quempensasse pelo bem público, mandando secar aquelesfossos: e foi tal o efeito que jamais naquele lugar seobservaram semelhantes febres64.

O segundo meio é mandar entupir as covas e luga-res desiguais dos campos sujeitos às enxurradas, ouinfestados com charcos, fazendo transportar dos ou-teiros vizinhos pedra e terra para aplanar os campos,de tal modo que possam dar corrente às águas: destemodo remediou Clemente XI com gastos imensos acampanha de Roma destruída até o seu tempo com

64De febre pestilente Tractatus. Francofurd. 1586, in 8.o,pág. 130. «Si autem vitiatus fuerit (Aër) a susceptis intrase pravis exhalationibus... Si occasione aquarum stagnan-tium hæ genitæ sint, vel eis superinducere aquas fluentes,vel easdem exsiccare; cujusmodi consultum fuit in patriamea (Faventia), circa cujus mœnia stagnabant aquæ in fos-sis publicis; unde hæ æstate putrescentes erant in causa, utin fine æstatis & autumni, plurimæ singulis annis vigerentpestilentes febres; his exsiccatis, experientia & rei eventuscomprobavit recte consilium fuisse, cum non amplius itavigeant, nec vagentur».

charcos e paules pela representação do seu Físico-mor João Maria Lancisi.

Acham-se campos cobertos com bosques de pi-nheiros e outras sortes de árvores, mas o fundo tãocheio de troncos e plantas que fica impenetrável: aosraios do Sol, gera-se neles toda a sorte de insectos notempo do Estio, aumentando-se a podridão cada dianão só pelo Ar encerrado, mas também pelas águascorruptas, sem ventilação alguma, nem pelos ventosnem pelas chuvas.

Agitou-se a questão entre os Naturalistas se seriamais conveniente para secar semelhante terreno cor-tar ou arrancar todas as árvores ou deixá-las atraves-sando canais por todo ele: a boa Física fundada naexperiência aconselhou a resolução seguinte. Não sedevem arrancar nem cortar todas as árvores daquelesterrenos: devem-se cortar parte delas, de tal modoque entre uma e outra árvore fique o terreno tão ex-posto aos raios do sol, que possa sentir a sua força:deste modo evaporará o terreno, e as árvores que fi-carem servirão como de pompas, que levantarão ahumidade supérflua; observou Estevão Hales que asplantas e as árvores embebem pelas raízes quarentavezes mais humidade para seu alimento, do que osanimais: de tal modo que uma árvore de igual super-fície no tronco, ramos, e folhas, à superfície do corpohumano, atrairá quarenta vezes mais humidade, doque o homem tomar por alimento: a comida, e a be-bida de um homem ordinariamente é de oito arráteisem vinte e quatro horas, logo uma árvore de igualsuperfície embeberá trezentos e vinte arratéis de hu-midade pelas raízes no mesmo tempo. Por este meiose secará o terreno, mas nunca virá tão enxuto, nemsadio, como quando ficam estes campos atravessadosde canais com descida bastante para dar corrente àságuas.

Quando se descobriram as Ilhas das Bermudas es-tavam todas cobertas de espessos bosques: começa-ram os habitantes a cortar sem economia todos eles,sem ficar árvore alguma, e algumas daquelas Ilhasvieram todas um puro areal, o que causa sumos ca-lores, e a mais deserta esterilidade, o que sucedeu ànossa Ilha do Porto Santo perto da Madeira. Se o ter-reno destas Ilhas fosse alagado, ou paul, coberto comárvores, ainda que todas elas se cortassem ou arran-cassem, o terreno ficaria sempre húmido, e alagado;mas o seu terreno era firme e de terra forte: faltando-lhe a humidade, que conservam os bosques, vierampelos ardores do sol areais. Estas reflexões poderãotalvez ser úteis àqueles habitantes das colónias.

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Capítulo XI

Dos bosques e dos arvore-dos considerados favoráveis ouprejudiciais à Saúde

Por bosques entendemos um dilatado campo ondetoda a sorte de árvores e plantas nasce, mas tão jun-tas umas das outras que o sol jamais penetra até o seutronco; porque aquele espaço que medeia entre umae outra árvore está coberto de tojos e carrascos e ou-tras plantas: daqui vem ficar sempre húmido aqueleterreno, e o Ar tão disposto a apodrecer. Os vapores,e exalações que se levantarem destes bosques é certoserão sempre húmidas e podres, e os ventos que poreles passarem terão as mesmas qualidades.

Por arvoredos entendemos um campo, monte, ouserra da qual o terreno está coberto de árvores, oude fruto, como são as oliveiras, castanheiros, &c. oupara madeira, mas com tal ordem que entre uma e ou-tra medeie um certo espaço exposto aos raios do sol;então o terreno é já seco, crescem nele várias plantas,e erva para pasto de diferentes gados. Estes arvore-dos nos climas quentes, não só são sadios mas aindamuito úteis aos Povos, e a sua plantação, e conserva-ção se devia promover por autoridade pública.

Não convém logo em campos rasos mandar arran-car, nem cortar totalmente os bosques: uma aldeia,ou uma quinta seria sujeita a mil achaques se fossefundada entre bosques espessos e em lugares húmi-dos, principalmente junto dos rios; situação que S.Bernardo procurava sempre para fundar os seus Con-ventos, na intenção de fazer os seus Religiosos acha-cados, para se lembrarem mais amiúde da salvação.Mas para satisfazer o intento deste tratado, uma tal si-tuação se deve evitar absolutamente. E se os bosques,ou arvoredos ficarem a uma certa distância da povo-ação fundada em montes, ou ramo de serras, comodissemos, é certo que no Estio lhes servirão de refri-gério, e no Inverno de abrigo, se ficarem para a partedo Norte.

Na campanha de Roma vê-se um dilatado bosque,que se estende pela praia do golfo de Astura, cha-mado de Cisterna, e Sirmineta. Determinou o DuqueCaetano mandá-lo cortar totalmente, como seu legí-timo Senhor; e quem dissera que o Físico-mor se ha-via de opor, por ser prejudicial à Saúde dos Povos?João-Maria Lancisi, tantas vezes citado, diante deuma junta de Cardeais delegados para deciderem estacausa, mostrou que o dito bosque não se devia cor-tar totalmente, senão com as condições que propôs,e foi tão poderosa a sua oposição, e tão piedoso o

ânimo daqueles Eminentíssimos Cardeais pelo bemComum, que cedeu o Duque do direito que tinha so-bre o seu bosque.

Alegava Lancisi que os lugares circunvizinhos dobosque estavam alagados e cheios de charcos, e queficando da parte do Sul servia de reparo aos ventosdaquela parte, impedindo as exalações das águas po-dres: que o bosque somente se havia de desbastar, fa-zendo cortaduras, ou caminhos, que o atravessassempara que o terreno ficasse enxuto: o que por últimose executou, e hoje existe cortado do modo referido:veja-se este notável processo, monumento do zelo dobem comum, no lugar citado abaixo65.

Capítulo XII

Do interior das cidades e comodevem ser os seus edifíciospara a conservação da Saúde

Só as nações civilizadas fundaram cidades, não sópara se utilizarem pela sociedade, mas também parase defenderem das injúrias do tempo e dos inimigos:mas como todas as artes úteis à vida sempre come-çam com muitas faltas, causadas, ou pela ignorância,ou precipitação dos que as exercitam: assim as pri-meiras povoações participaram de muitos defeitos,como ainda hoje vemos os restos nas mais antigascidades da Europa, onde as ruas são muito estreitas,sem direcção, nem termo nos lugares mais frequenta-dos dela: somente depois de trezentos anos começa-ram a cobrir as ruas de calçadas; nenhuma limpeza,nenhum aqueduto para se evacuarem as águas ou dachuva, ou do uso dos habitantes; as casas eram co-bertas de colmo, de ramos, ou de tábuas; o que tudocontribuía antes para infectar o Ar, que para conser-vação, e vigor dos habitantes: essa era a causa dasfrequentes pestes, e Epidemias que desolavam a Eu-ropa até o fim do Século passado, e principalmentenas cidades situadas nos vales, como Marselha, partede Génova, e Florença: além destes defeitos, as casaseram de taipa, ou de argamaça outras de madeira en-cruzilhada; a maior parte delas eram térreas: aquelesque moravam no primeiro, e segundo andar não ti-nham nem claridade nem ventilação do Ar, por causada pequenez das janelas, e portas: e desta sorte deedifícios usam ainda hoje os Turcos em Constanti-nopla, no Grão Cairo, e na maior parte do domínio

65Joh. Maria Lancisü, de sylva Cisternæ & Sirminetæcon nisi per partes excidenda, consilium. Ad calcem tracta-tus de noxiis paludum.

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Maometano, onde a peste faz horrorosos estragos tãoamiúde.

Mas depois que nas cidades e vilas mais cultas co-meçaram os Magistrados a reformar aqueles defeitos,ordenando fabricar as ruas largas, e direitas que ter-minam em grandes praças, depois que as mandaramcobrir de calçadas consistentes, como também as ca-sas de pedra e cal com telhados tão firmes que resis-tem à chuva, e com algerozes, e aquedutos para darsaída às águas, juntamente com a limpeza das ruas,corrigiu-se em muita parte a corrupção do Ar das ci-dades, de tal modo que depois de cento e cinquentaanos raras vezes se observou o estrago da peste naEuropa.

Contribuiu também para purificar o Ar das cidadeso estrondo dos carros, e principalmente das carroças,introduzidas geralmente de cem anos a esta parte;tantos sinos que dobram, e repicam, tantos ofícios in-ventados depois da descoberta do novo mundo, quenecessitam de fogo dia e noite, com agitação dos ins-trumentos: além disso aumentou-se o luxo da mesa, eao mesmo passo o fogo contínuo, e violento das cozi-nhas, como também em cada quarto para defender-sedo frio: todos estes estrondos agitando o Ar o venti-lam, e aumentam a sua elasticidade; os fogos venti-lam o Ar causando a cada instante um vento artificial.

Bacon de Verulamio66 observou que o estrondodos sinos rompia o Ar, e dissipava as trovoadas, eque devia diminuir a peste nas cidades populosas,agitando-o, e sacudindo-o violentamente. Na Histó-ria da Academia Real das Ciências de Paris proíbe-setocar os sinos quando a trovoada aparecer em cimado mesmo campanário, porque por infaustas expe-riências sabia-se que a nuvem rompia-se pelo es-trondo, lançando de si logo o raio: pelo que somentedeviam tocar os sinos quando aparecesse muito dis-tante do lugar onde se tocava.

Estes são os defeitos mais notáveis das cidadesantigas e as vantagens das modernas. Indicaremosagora a melhor forma de uma povoação, ou cidade,para ser a mais útil, e a mais sadia; e quantas menosqualidades tiver das que lhe determinarmos, mais no-civa será à Saúde e à conservação dos habitantes.

Já indicamos acima fundados na doutrina de Vi-trúvio e de Leão-Baptista Alberti que as ruas haviamde servir não só para conservar o Ar incorrupto, mastambém de reparo contra os ventos que infestassemaquele sítio. As vilas e as cidades situadas nos luga-res baixos e húmidos, ou nos vales sempre deveriamficar viradas para o Norte, se daquela parte não fi-cassem serras cobertas de neve, charcos, ou paules:porém se estiverem plantadas em sítio elevado, de-

66Sylva sylvarum, cent. II, exper. 127.

veriam estar viradas para o Sul, no caso que daquelaparte não houvessem águas corruptas, ou serras co-bertas de neve.

Os Romanos faziam as ruas, das cidades damesma largura que tinham as vias militares, ou es-tradas reais; terminavam-se nas portas delas, ou naspraças: a segunda sorte de ruas era mais estreita, ecorrespondia a sua largura à dos caminhos de tra-vessa, que saíam das vias militares.

É uma vila, ou cidade, diz Leão- Baptista, umagrande casa; e uma casa, uma pequena vila, ou ci-dade: necessita esta de praças, como aquela de des-pensas, ucharias, celeiros, adegas, e guarda-roupas.As praças devem ser os lugares para guardar e dis-tribuir as coisas necessárias à conservação dos habi-tantes. Devem estes edifícios ser fabricados não sócom majestade e grandeza proporcionada à povoa-ção, mas também com as conveniências necessárias,aos cidadãos.

Ponderaram muitos Autores se as cidades deviamser fundadas com tal termo, que fosse proibido nãoexceder os muros, ou as colunas de demarcação. Aresolução mais bem fundada achou-se ser aquela quedetermina a cada Reino, a cada Província e a cadaComarca, uma Capital proporcionada aos habitan-tes daqueles territórios: porque é certo que o Ar dasgrandes povoações sempre é contrário à conservaçãoda Saúde e ao aumento dos Povos. Thomas Short67

concluiu pelas listas dos enterros das freguesias deLondres, das aldeias e lugares de Inglaterra que nes-tes de cem que nascem nos primeiros dois anos mor-rem de vinte a vinte e oito: mas em Londres decem crianças no mesmo tempo, morrem ordinaria-mente trinta e três. Pelos livros dos Casamentos domesmo Reino concluiu que nas aldeias são mais fér-teis que nas cidades: deixo outras considerações po-líticas, alheias deste tratado, que todas persuadiríamo Magistrado a ordenar um certo termo de fabricarnas cidades ou vilas; como também de serem os edi-fícios e as ruas conformes ao plano que deve estardepositado em cada casa do Senado, ou da Câmara.

Poderá ser muitas vezes obrigar a irregularidadedo terreno fabricar as ruas e as praças de forma dife-rente daquela que referimos: mas todas as dificulda-des se devem vencer para que as ruas que atravessa-rem os vales ou lugares baixos da cidade sejam maislargas do que aquelas plantadas nos lugares levan-tados: todos os obstáculos devem dissolver-se paraque as ruas e as praças sejam cobertas de boas e fir-mes calçadas, como todos os lugares públicos: que aságuas da chuva, como as que servirão aos habitantes,tenham curso livre, e rápido por canais e cloacas.

67New Observations Natural. & Political. London, 1750,in 8.o.

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Não conheceu Dionísio Halicarnasso68 a gran-deza, e o poder do Império Romano que por trêssortes de edifícios dos quais todas as nações, aindacultas, se admiraram. A primeira da grandeza, e dasolidez dos caminhos públicos: a segunda dos aque-dutos, e a terceira das cloacas, das quais diz Plí-nio69 que podia navegar-se por baixo da cidade deRoma. Levantam-se continuamente vapores da terra,como vimos acima bem claramente. Se as ruas eas praças forem cobertas primeiramente de cascalho,greda, carvão em pó, pedras de cantaria, e tão gran-des que possam resistir por muitos anos à agitaçãodos animais, e ao peso dos carros, e carretas, impe-dirão quase todas as exalações da terra; darão êxitoàs águas, e se conservarão secas, e podem-se lim-par mais facilmente. Ninguém duvidará da neces-sidade que tem ainda a menor vila de cloacas e decanos que dêem êxito a toda a sorte de águas. Leão-Baptista quer que sejam fabricados de tal modo quea sua abertura fique sempre mais alta, do que os rios,mar, ou vales onde se esvaziarem: porque de outromodo, refluirão as imundícies, e causarão nos con-dutos a maior corrupção, do que refere algumas fu-nestas experiências.

Capítulo XIII

Da limpeza necessária nas vilase cidades para conservar o ArpuroPouco serviria todo o cuidado do Magistrado na fá-brica das ruas, praças, aquedutos e cloacas, se nãoinsistisse no quotidiano cuidado de conservar a Ci-dade limpa: já os Jurisconsultos concordaram comos Médicos nesta matéria; para ter crédito com todosalegarei o que determinaram Bovadilla e Delamare.

Quando avistamos de longe uma grande cidadecomeçamos a observar uma espessa nuvem que a co-bre, e tão constantemente que fica visível no dia maisclaro. Seria um admirável objecto para quem ob-servasse nos ares a atmosfera desta povoação. Ve-ria levantarem-se imensidade de vapores de tantaságuas, limpas e imundas: de tantas exalações dashortaliças, e frutos que apodrecem; passamos por ummercado de Couves, e desmaiamos com o cheiro de-las. Veria tanta imensidade de exalações dos excre-mentos de tantos e tão diferentes animais; outras de

68Lib. III, Antiquitatum Romanar.69Lib. XXXVI, cap. 15. «Cloacas, operum omnium,

dictu maximum suffossis montibus, atque ut paulo ante re-tulimus, urbe pensili subter navigata».

não menor podridão, que saem dos corpos viventes.Mas as mais fétidas seriam as dos cadáveres, das pri-sões e dos hospitais; se deitasse os olhos para as exa-lações que saem das casas dos tripeiros, surradores,tintureiros e de outras onde se fabrica mil sortes deartes mecânicas, se admiraria como pudessem vivernaquele lugar tantos homens juntos. Queixamo-noscada dia de tantas doenças crónicas, de tantas mortessúbitas, como vemos nas cidades, umas vezes acu-sando o luxo, outras a dissoluta vida, o mais comumas paixões violentas, e jamais pensamos a dar porcausa destes estragos o Ar infectado e corrupto querespiramos nelas a cada instante. Persuado-me quese algum Magistrado compreender estes danos, quedecretará leis para se conservar as cidades limpas portodos os meios possíveis.

Devem-se considerar as ruas como os repositóriosde todas as imundícies, ou que saem dos animais, ouque resultam das artes necessárias à vida civil: have-ria em cada cidade, vila ou lugar lei inviolável quecada morador tivesse limpa cada dia pela manhã afronteira da sua casa, com tanto rigor, que nemhumasorte de estado, nem ainda Eclesiástico ficaria isentodesta obrigação70.

Aquele cisco, lama ou imundícies varridasdeviam-se juntar contra a parede da mesma casa:não no meio da rua, ou no rego, para que as águaslevando-as consigo não entupissem os canos, ouaquedutos da cidade. Na mesma deveria um oficialautorizado, e perpétuo ter à sua ordem um certo nú-mero de carros feitos ao modo de cofres para nelesas transportarem fora da cidade nas covas, ou lu-gares baixos à roda: o que seria mais fácil do quetransportarem-se as lamas em seirões, no espinhaçode machos, e despejá-los na praia como se fazia emLisboa.

No tempo do Estio, quando os calores são insupor-táveis, a poeira vem a ser perniciosa aos olhos e aosbofes; esta é a causa porque no Egipto há imensidadede Cegos, e muitos males do peito, como têm aquelesque lavram as pedras, e que fazem a cal. Por evitarestes danos, que são tanto mais funestos, quanto me-nos neles se cuida, seria necessário mandar a cadamorador depois de haver limpo a fronteira da suacasa, regá-la; e se o Magistrado achasse impossibili-dade na execução, à custa do público teria carros compipas de água, que regassem as ruas naquele tempo:não só esta precaução impediria o dano da poeira,

70Hyeronimo del Castillo Bovadilla. Política para corri-gidores Midina del campo. 1608,2 vol. in fol. tom. II, lib.3.ocap. 6, pág. 128. «Aun que sean clerigos, se puede estoexecutar en sus bienes por la Justicia seglar».

Delamare, Traité de Police, tom. I, pág. 553, edit. 1713,in fol.

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mas ainda refrescaria a atmosfera, que não é de tãopouca consequência em Portugal nos meses de Julho,e de Agosto.

Seria proibido lançar pelas janelas de dia ou denoite água mesmo limpa ou imunda, cisco, ou qual-quer outra matéria: todos seriam obrigados a tra-zer estas imundícies, e lançá-las contra a parede damesma casa; a mesma severidade se devia ter comaqueles que lançassem nas ruas esterco, cascalho,calcinas, borras de vinho, azeite, bagaços, ou outraqualquer coisa fétida e hedionda, ou que causasseasco. O queimar palha, trapos, ou que causasse fumoingrato seria proibido com igual rigor: e esta mesmalimpeza se devia observar com especialidade nos lu-gares dos mercados e nas praças públicas.

Nenhum ofício que causasse podridão ou maucheiro deveria permitir-se na cidade; devia-se deter-minar nela lugar alto, elevado para exercitá-los: oscarniceiros que degolam, os tripeiros, curtidores, osque fazem velas de sebo, os louceiros que vidramlouça com chumbo, e outros minerais pestilentos,os que lavam e trabalham e fabricam as lãs; os quevendem peixes salgados, queijos, todos estes deviamviver nos arrabaldes em lugares determinados; e osmais altos e ventilados da cidade.

Nenhum animal se devia criar dentro da vila, oucidade: os mais perniciosos são os bichos da Seda: éo cheiro o mais intolerável, e a sua podridão a maisactiva: criar pombos, porcos, e permiti-los dentro daspovoações pelas ruas, coelhos, patos, gado de lã, oude pêlo, ou que cada noite se recolha dentro da vilaou cidade infectam o Ar, e as exalações dos animaissempre são nocivas. Bem sei que houve Médicos ig-norantes que aconselharam entrar gados nas vilas enas cidades aflitas de peste, ou com epidemias pesti-lentas na intenção de corrigir o Ar delas: mas é erro,que não necessita, para ficar convencido, que ler oque dissemos nos princípios deste tratado.

Sangram os ferradores os cavalos no meio dasruas, dão-lhes fogo nos seus males: nas esqui-nas consentem-se calceteiros, remendeiros; é notó-rio quão insuportáveis e hediondos sejam estes ofí-cios: merecia bem esta desordem remediar-se, deter-minando os celeiros das casas para a morada destes,e certos lugares retirados para os ferradores.

Nos mercados e praças onde se vende todo o co-mestível, os péssimos cheiros que saem das carnese do peixe e das hortaliças, é muito mais necessáriaa limpeza: todos os dias se deviam lavar os bancoscom água e vinagre ou pelo menos com água ondetivesse fervido cal: esta é o maior correctivo da po-dridão tanto do peixe como das mais substâncias.

Em cada casa existem duas origens de contínuapodridão; a primeira que provém dos excrementos

dos animais; e a segunda das águas da cozinha, ade-gas, e que serviu a outros usos da vida. Tanto os Ro-manos como os Franceses obrigaram os proprietáriosde cada casa a fazer latrinas, com tanto rigor que porautoridade pública se fizeram à custa dos mesmosproprietários: o modo de fazer estes depósitos tãonecessários sabem já os arquitectos: devem ser comchaminés fabricadas ao lado do suspiro. É verdadeque vem desta fábrica insuportável cheiro quando selimpam, faltando canos reais: mas o dano que resul-tará de lançar nas ruas as imundícies, é muito maiorque aquele de limpá-las uma vez por ano, podendo-se determinar o tempo do Inverno para esta operação,e da alta noite, circunstâncias que diminuirão a infec-ção que podem causar.

As águas corruptas também se podem gerar nospoços e cisternas cheias de lodo, e de outras matériasexcrementícias, ou por estarem perto das latrinas, oudos cemitérios. Também nas adegas existem mui-tas vezes águas, que por encharcadas se corrompem,e pelo Ar encerrado vêm pestilentas: vertem mui-tas vezes as paredes humidades, e águas, pela má fá-brica delas: há terrenos que brotam água. Todos estesdefeitos se deviam remediar por autoridade pública,elegendo o Magistrado um Arquitecto destinado a vi-sitar estes lugares subterrâneos, e deveria haver sem-pre neles uma janela, ou chaminé que comunicassemcom o Ar livre. Abaixo veremos os danos que resul-tam do Ar húmido e encerrado.

Seria aqui o lugar de tratar da necessidade da lim-peza, que cada qual é obrigado a ter do seu corpo;e mostrar com evidencia os danos de viver sem as-seio e sem agrado: mas reservamos esta matéria paraquando tratarmos da limpeza dos soldados, e comodevem conservar a Saúde.

É em suma o que determinou Bovadilla71 e Dela-mare72 nesta matéria, e se estas autoridades não fo-rem poderosas no ânimo dos que lerem estas deter-minações, não zombem dos Médicos para aconselha-rem o mesmo, e ainda com maiores particularidades.Se alguém se quiser instruir delas leia João-ZacariasPlatner, o Celso da Alemanha, e Lente de Medicinana Universidade de Leipsick73.

É coisa notável que nem os maus sucessos podemfazer mudar o costume que a ignorância e os mausexemplos introduziram. Tantas vilas e cidades devas-tadas pela imundície das ruas e das casas, pela negli-gência dos monturos, pelas águas encharcadas, e não

71Tom. II, lib. 3.ocap. 6, pág. 126, Medina del campo,1608.

72Traité de la Police, tom. I, pág. 553, edit. in fol. 1713,Paris.

73Opuscul. tom. I, Dissertat. III, de morbis ex immundi-tiis Lipsiæ, 1749, in 4.o.

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obstante vemos que raríssimas vezes os Magistradosremediaram estas desordens. Aquela Epidemia quedesolou Lisboa no ano 1724 pelos meses de Agostoe Setembro mostrou a sua violência nos lugares bai-xos da cidade desde a rua nova até o Rossio: noslugares altos dela raras foram as famílias que senti-ram aquele flagelo. É notório a todos a imundície e aestreiteza daquelas ruas, e quão mal edificadas sejamali as casas: todos atribuíam aquela mortandade aocontágio e a outras quiméricas causas, mas ninguémpensou na corrupção do Ar da cidade e dos arredores.

Capítulo XIV

Das qualidades das águassaudáveis e como se devementreter os poços, os riose os portos do mar para aconservação do Ar sadio

Se não podemos viver sem Ar que por alguns mo-mentos, assim mesmo sem água não podemos viverque por um até o outro dia. Já houve quem viveu so-mente com água por três semanas, e já se viu viveruma mulher setenta e dois dias com água somentecomo afirma Gaspar dos Reis Franco74: não é esteo lugar de tratar das várias propriedades das águassalobras ou salgadas, &c. conter-me-ei a mostrar so-mente as qualidades que as fazem saudáveis.

Todos os Autores, tanto Médicos como Económi-cos, com Hipócrates, Platner75, Columela76, e Palá-dio77, preferem as águas das fontes, as águas dos rios,dos poços, e das cisternas, contanto que nação juntodos sítios levantados, em terreno áspero, ou de areia;que sejam águas vivas, correntes, claras, que cozidasnão fique nos lados dos vasos onde ferveram por mui-tos tempos, nem sarro branco, nem de qualquer outracor: que fervidas não fique pé no fundo; que não te-nham gosto, nem sabor, nem cheiro; sem cor, semtez na superfície: que nela não nasçam insectos, san-guessugas, nem raízes, nem ervas: conhece-se tam-bém a bondade das águas pela Saúde dos habitantes;se forem de boa cor, com bons dentes, voz clara, semventre túmido, sem males dos rins, são indícios queas águas são boas, e por consequência o Ar também.

74Elysius campus, quæst. LVIII, Bruxell. 1661, in fol.75Dissertat. de morbis ex immunditiis citat.76De re rustica, lib. I, cap. 5.77De re rustica, lib. I, titulo 4.

Vimos acima que o Ar se comunica e amassa coma água; se este for puro, lhe comunicará a mesmabondade. Esta é a principal causa da salubridade daságuas, e por isso aquelas que são correntes por muitoespaço, expostas ao Ar são as melhores: a cada ins-tante se depuram, não só pelo que o Ar varre de-las, mas também pelo que recebem do mesmo ele-mento: já se vê que as águas dos poços e das cis-ternas faltando-lhes estes requisitos são inferiores àscorrentes por lugares limpos e desiguais como sãoaqueles cobertos de cascalho, e de seixos.

Agitou-se muitas vezes se os canos de chumbo,ferro ou cobre poderiam comunicar as suas qualida-des às águas que correrem por eles. É certo que aságuas puras jamais poderão embeber nem desfazerpartícula alguma daqueles metais; mas é impossívelque estejamos certos da pureza das águas em todoo tempo: poderá em certos tempos adquirir sais al-calinos, neutros, vitriolados, que existem na terra,e logo que estiverem nela poderá muito facilmentedesfazer e raspar partículas daqueles metais: nestadúvida, os canos de pedra se devem preferir; em se-gundo lugar os de pau, como de pinho e de carvalho;em terceiro de ferro, metal mais benigno ao nossocorpo, porque tem vigor bastante para desfazê-lo: osde chumbo sempre devem ser suspeitos, e os de co-bre muito mais, pelo temor que o verdete, que se geratão facilmente se misture com a água.

Pela química podem-se indagar as águas, se con-têm, ou não, sais de qualquer natureza que forem:mas sempre ficaremos na dúvida se conterão partí-culas arsenicais, para o conhecimento das quais nãotemos instrumento certo que as possa indicar78.

Foi notável o cuidado que tiveram os Romanos, naabundância, na pureza, e na bondade das águas, fun-dando com gastos e trabalho imenso dos seus exér-citos aquelas magníficas obras, das quais ainda hojearruinadas, conservam a Majestade daquele Império.Nenhuma nação necessita mais de imitar nesta maté-ria a Romana que a Portuguesa: as nações de quema sua bebida ordinária são várias sortes de Cerveja,água misturada com vinho, chá, café, continuamente,bebendo água cozida, não necessitam tão grande cui-dado na eleiçaõ das águas: mas a Portuguesa a suabebida ordinária é este elemento, e por essa razão

78Dissolve-se uma oitava de prata finíssima na água forte;quando toda estiver desfeita, deste licor deitam-se duas outrês gotas num copo daquela água que se quer examinar: secom aquelas pingas mudar de cor, e vier branca como se fazágua misturada com o leite, é sinal que tem alguma sorte deSal; e será nocivo bebê-la: mas se não mudar de cor, e ficarcomo estava antes da prova, é pura. É verdade que se nelaexistirem espíritos arsenicais que não se manifestaram poresta prova: mas raríssimas vezes se acham águas com eles.

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devem por todo o cuidado em procurá-la, em abun-dância, e a mais apurada.

Quando faltarem as fontes, a água dos rios poderásuprir esta falta: a da chuva, guardada em cisternas,cada ano limpas: em seu lugar a dos poços com amesma cautela, mas seria útil antes de bebê-las oumandar dar-lhe uma única fervura, ou serem passa-das por pedras pomes, como se costuma em Castelanospilones. Estas cautelas são escusadas nas águasdas fontes claras e correntes, como são as de Lis-boa; mas porque se acharam muitos lugares desti-tuídos daquele singular benefício, achei a propósitoindicar estes remédios.

Daqui se poderá conjecturar os danos que resulta-rão ao lançar todas as imundícies naqueles rios dosquais bebem os habitantes. Todos sabem os pernici-osos efeitos de beber águas encharcadas: e não obs-tante, pouco cuidado temos de mandar limpar fre-quentemente as fontes, os poços, e principalmente ascisternas. O lodo que se junta no fundo adquire asmesmas qualidades, que produzem os juncos, as ca-nas e outras plantas aquáticas que nascem nos bordosdos rios, e que pelos meses do Estio apodrecem e in-fectam a água. No lugar alegado abaixo79 ler-se-áestes mesmos danos. Se a ignorância e a indolên-cia dos moradores for causa da imundície das águas,pertence ao Magistrado com todo o rigor mandá-lasconservar de tal modo que sirvam à sua conservação.

Vimos acima que se as águas do mar se mistu-rarem com as encharcadas, já podres, que a podri-dão se exalará na atmosfera, mas que a fará perni-ciosa, como mostramos pelas funestas experiênciasdo Languedoc em França. E não se deve esperar amesma infecção se no mar se lançarem matérias po-dres, como são as imundícies de uma popolusíssimacidade, nas águas salgadas? Vimos também acimaque as Ilhas de Cabo-Verde são tão doentias por apo-drecerem perto das costas, tanta imensidade de Sar-guasso com que o mar está coalhado. É força logoque todas as matérias podres se exalem da água sal-gada e que infectem a atmosfera. Não quero apli-car estas reflexões a certos lugares, porque cada umperceberá o sumo descuido que tem neles o Ma-gistrado. Mas devem vencê-lo outras consideraçõesde maior importância. O álveo dos rios e dos por-tos entope-se cada dia pelos estercos, calcinas, lo-dos e lamas das vilas e das cidades que de propó-sito mandam lançar neles: daqui vem alagarem-seos campos, destruírem-se os cultivados, e os incultosconverterem-se em charcos: as pontes entopem-se,os arcos somem-se, e a ponte por último arruina-se:aquelas inundações, e destruições do Mondego não

79Mémoires de l’Académie Royale des Sciences, 1733,pág. 351.

provêm da área que traz consigo o rio; a maior partesão as imundícies das vilas, e dos lugares que o bor-dam.

Mas demos que pela agitação das mares aque-las matérias excrementícias não entupam o fundo doporto: demos que não corrompam a atmosfera, o queé positivamente falso: não é força que tanta matériasaia nas praias, e que ou alague campos cultivadosou que converta os incultos em paules, e em charcosvenenosos? Não seria mais útil que as imundícies deuma cidade servissem a aplanar o terreno à roda e fer-tilizar os campos com elas? Não seria este proveitobastante para recompensar o gasto que se fizesse paratransportá-los?

Capítulo XV

Da pureza do Ar e da limpezaque se deve guardar nas Igre-jasNenhum lugar dentro da cidade necessita tanta ven-tilação como o ar das Igrejas. Se considerarmos quea maior parte do dia natural estão fechadas: se con-siderarmos a imensidade de exalações que nelas fi-cam pela multidão dos que as frequentam, como tam-bém daquelas das sepulturas, facilmente concedere-mos que nenhum lugar público contém maior quan-tidade de exalações e de vapores podres. Não creioque se aumentarão jamais pela poeira, cisco ou hu-midade das paredes ou ruína dos tectos, porque seiquanto cuidado têm os Párocos e os Prelados da lim-peza, ordem e ornato destes lugares sagrados.

Toda a Religião Gentílica consistia em actos exte-riores, em festas, jogos e jantares: todo o ministériodos seus ministros se reduzia a regrar estas funçõespúblicas, inventadas para ligar os Povos na sociedadee obedecerem sem repugnância: não se estendia aobrigação do seu cargo a ensinar os ditames da cons-ciência, nem a regrá-la: esta imcumbência tinham osFilósofos, e a exercitavam publicamente. Pelo con-trário na Religião Cristã, todos os seus actos são tan-tas reflexões de amar o Soberano Criador, e imitá-loconservando-se a si, e a todos os mais da sua espécie:na meditação e exercício destas excelentes máximas,como na dos seus santos mistérios consiste toda a suaessência.

Como as Igrejas são os lugares destinados a es-tes santos exercícios, já se vê que todos disporão oentendimento dos fiéis à tranquilidade, a um reco-lhimento de ânimo, e compostura de acções, que to-das as potências internas da alma ficarão tão activas,

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como as corporais inertes e sossegadas: este estadoé o primeiro que induz à melancolia, e nele é queo corpo ficará mais susceptível às impressões da at-mosfera. Estas considerações induziriam os Médicosa aconselhar o Ar das Igrejas o mais claro e o maisventilado, mandando ter abertas sempre as janelas eos altos das abóbadas.

Portanto vemos que os Arquitectos afectam fabri-car os Templos mais escuros que claros: os mesmosSacerdotes e Pregadores têm cuidado, antes de admi-nistrarem aqueles santos exercícios, de diminuírem aluz dos Templos mandando fechar as janelas, correras cortinas: se considerarmos a moléstia que sofremos que ouvem um sermão no tempo do Estio, às vezesde missaõ, por algumas horas, é força que seja bemconsiderável em prejuízo da Saúde: a imensidade deexalações que saem dos seus corpos em lugar encer-rado, tão juntos e apertados, juntamente com aquelasque se levantarão das sepulturas, e que necessaria-mente devem respirar aquele Ar por tanto tempo, nãonos admiraremos de ver cair desmaiadas muitas ve-zes as pessoas de constituição delicada: o calor da at-mosfera excitado por tantos corpos juntos, por tantasluzes das velas, e lâmpadas, que a piedade aumen-tou, fará exalar a terra com maior excesso; e por estecírculo de exalações continuadas, e aumentadas, dosvivos e dos mortos, ninguém saíria dali com vida, seos obstáculos à corrupção do Ar que ali se acham,não remediassem tanto dano.

O pavimento das Igrejas de grandes pedras deCantaria, ou de campas às sepulturas impedem muitoas exalações dos cadáveres: os suaves cheiros quesaem dos turíbulos e caçoletas corrigem a podridãodo Ar: as cúpulas e abóbadas altas, ainda que edifica-das fora deste intento, servem para refrescar o Ar dasIgrejas, subindo nelas as exalações que se levantamdo fundo. A agitação do Ar continua pelo canto Gre-goriano, pelo estrondo dos orgãos, pelo repique dossinos, agitam o Ar, e restitui-lhe a sua elasticidade;e sobretudo pelo contínuo fogo, com que ardem asvelas, e os sírios. Não obstante estes remédios, nas-cidos da devoção e da Religião mais constante e apu-rada, é certo que fica bastante matéria de exalaçõese vapores podres para merecer de quem tem a seucargo a Saúde das almas, diminuí-las pelos meiospossíveis e praticáveis.

Duvidei muitas vezes se devia mostrar neste tra-tado os danos que causa à Saúde enterrar nos Tem-plos; previa o costume inveterado e autorizado peladevoção: mas considerando que tinha por mim al-guns Concílios e decisões dos Imperadores Cristãos,atrevi-me a propor que se proibísse enterrar nas Igre-jas e em todos os lugares sagrados destinados ao con-curso dos fiéis: como me fundo nas autoridades que

copio abaixo80 não receio ser censurado quando oânimo com que escrevo não é mais que o de ser útilao público.

Nem os Gregos nem os Romanos enterrarão ja-mais dentro das cidades; a lei das doze tábuas oproíbe claramente «intra urbem mortuum ne sepe-lito» cuidarão aquelas cultas nações da pureza do Ar,e na conservação da Saúde dos Povos. Introduziu-seem Roma queimar os cadáveres, sendo o primeiro odo Ditador Scilla e foi bastante este exemplo autori-zado para se introduzir universalmente, impedindo-se pela quantidade de aromas com que ardiam, todoo dano que podia resultar das exalações ingratas.

Até o tempo do Imperador Constantino é certoque nenhum cadáver, exceptuando aqueles dos san-tos Mártires, foi enterrado em sagrado: o mesmoConstantino o foi só no vestíbulo da Igreja de S. Pe-

80Concilium Bracarense primum currente Aera DCCIX,anno tertio Ariamiri Regis anno Christi DLXI, in tomo IIcollectionis maximæ Conciliorum omnium Hispaniæ, pag.292 & seq. ed. Cardinalisde Aguirre. Romæ.

Canon XVIII «item placuit ut corpora defunctorum nullomodo in Basilica Sanctorum sepeliantur, sed si necesse estdeforis circa murum Basilicæ, usque adeo non abhorret.Nam si firmissimum hoc privilegium usque nunc manetcivitates ut nullo modo intrà ambitus murorum cujuslibetdefuncti corpus humetur, quanto magis hoc venerabiliumMartyrum debebit reverentia obtinere.»

Ibidem, pag. 298, inter variorum notas, n.o35.«Deforis circa murum. Idem statuit Concilium Tiburi-

ense, cap. 17, de Laicis, ut non in Ecclesia, sed in com-muni cremiterio, seu dormitaria sepeliantur ... ConciliumMoguntinum cap. 52 excipit Episcopos, Abbates, & dignosPresbyteros. Pelagius II sic statuit, ut inter alia ejus decretalegi in libra manuscripto Bibliothecæ Divi Laurentii. Itemplacuit, ut corpora defunctorum nullo modo intrà Basilicamsepeliantur, sed si necesse est, Caris circa murum Basilicæ.Hunc morem Christiani religiose servârunt, ut in cappellis,aut in muro Ecclesiæ, & non intrà Ecclesiam, humarentur,quamvis essent proceres, & principes viri, ut observatum estin multis Basilicis Hispaniæ. Nunc vero tanta omnes homi-nes ambitio & fastus cœpit, ut lacera corpora, trunci, artus,putres formæ prope Christi Dei veri sacramentum adhibitismarmoreis imaginibus, superbe collocentur».

«Et n.o37, ibidem. Huic plane consonat Concilium Va-sense citatum cap. prrecipiendum 13, qu. 2, vetans intràEcclesias sepulturæ mandari Fidelium cadavera, sed vel inporticu, vel in atrio, vel in exedris, quâ voce intelligunturEcclesiarum contigua loca, qual claustra vulgo appellan-tur... lib. 2, cod. de sacro-santis Eccles. serius in Ecclesia-rum usum receptum est, ut Fidelium corpora intrà Templo-rum ambitum sepelirentur, præterquam illorum, quos Ec-clesia cultu publico veneratur. Reliquorum enim Fideliumcorpora in publicis cœmiteriis, aut in Templorum atriis con-debantur, ut in sacris vestibulis, Episcopum tamen, si Sazo-meno fidem habemus, lib. II, cap. ultimo in ipsis Ecclesiistumulari Episcopum mos fuit, &C.Cabassutius».

Também se poderão ler «Letres sur la sépulture dans l’Eglise à Monsieur le C.* Caën, 1745, in 8.o».

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dro e de S. Paulo que tinha edificado: correram ostempos, e concedeu-se esta graça somente aos Bis-pos, Abades e a todos aqueles que tinham fundadoIgrejas ou que tinham sido Protectores delas: a pi-edade dos fiéis e o ardente zelo de repousarem assuas cinzas nos lugares, onde jaziam as dos Márti-res, prevaleceu para introduzir um costume, contrá-rio, na verdade, à Saúde dos viventes, mas louvávelna intenção.

Nos Séculos IX e X introduziu-se sem distinçãoenterrarem-se todos os fiéis nas Igrejas: portantopercebendo-se em Itália e em França ou do abuso oudos danos que causava este costume, já inveterado,lembrando-se do que muitos Concílios ponderaram,e proibiram nesta matéria, começaram nestas partesda Cristandade a destruí-los e a remediá-los. Na Itá-lia depois de alguns Séculos a esta parte depositam oscadáveres nos lugares subterrâneos das Igrejas; e de-pois de algum tempo os transportam a certos cemité-rios, que chamamCampo-Santofora das cidades. NaFrança depois de dois séculos a esta parte raras são aspessoas, se não forem ilustres, ou pelo nascimento ouriquezas, que se enterram nas Igrejas. Vários escri-tos contra este costume se publicaram neste Século,mas o proveito que tiram dele as fábricas das Igrejastem sido a causa de perseverar ainda com bastantefrequência. Vários arbítrios se têm dado tanto paracompensar aqueles emolumentos, como para ocorreras dificuldades de enterrar fora da cidade, como sãoque custe mais dinheiro dobrar os sinos: que a rodadas vilas e cidades em lugares altos, e ventilados dosventos se erijam cemitérios cercados de muros altos,depois que na Igreja se fizessem as exéquias, e tudo omais que a Santa Madre Igreja ordena com os cadá-veres, antes de serem enterrados: mas estes arbítriossó com os pobres se executaram.

Assim se verifica, como se vê nos lugares abaixo,que enterrar nas Igrejas é contra certos Concílios, eespecialmente contra o de Braga, e as Constituiçõesdos Imperadores: além de ser prejudicial a todos osfiéis, especialmente é mais pernicioso aos Sacerdo-tes.

A podridão dos animais que se sustentam comerva não é tão activa nem tão perniciosa, como a da-queles que se sustentam com carnes: como o sustentodos homens consiste muita parte de matéria animal,é força que a podridão que se gerar dele seja a maisperniciosa de todas: já vimos que tanto maior for ocalor da atmosfera, tanto maior será a transpiraçãoda terra: o Ar das Igrejas sempre é mais quente, queo exterior: ordinariamente encerrado; será ordinaria-mente cheio de partículas húmidas, de exalações cor-ruptíssimas, as quais respirarão os viventes por mui-tas horas no mesmo sítio. Estes danos são eviden-

tes, e para que os Eclesiásticos tomem à sua contadestruir este abuso, quero mostrar aqui que eles sãoaqueles que sofrem mais por estas exalações que oresto dos fiéis.

Refere Ricardo Mead81 doutíssimo Médico Inglêsque tivera em seu poder um vaso cheio de um licortão claro como água, mas mais pesado, tão volátilque se desvaneceria pelos ares se ficasse aberto, tãocorrosivo, que a rolha com que se tapava se consu-mia: posto em cima de uma mesa junto da luz deuma vela, o vapor que se exalava era imperceptível,e tudo ia parar na flama. Diz que se um homem im-prudentemente se sentasse então junto da vela queficaria envenenado, e que perderia a vida lentamente:que sabia a composição, e que pelo bem do génerohumano a sepultára no esquecimento.

Carlos Pringley82 também Médico Inglês refereque julgando-se na Relação de Londres certos pre-sos que tinham saído da prisão naquele instante, osJuízes que estavam sentados diante de muitas velasacesas, com uma pequena janela detrás para refres-car o tribunal, que quatro deles morreram em poucosdias de febre pestilenta causada pelo cheiro horrendoque de si exalavam aqueles presos, detidos antes emenxovias; e que o resto dos circunstantes caíram namesma febre, da qual com muito trabalho escaparamà vida. Aquele sagacíssimo Médico ficou persuadidoser esta a causa da morte daqueles Magistrados porficarem junto das velas, e que como ali estava o Armais quente, por consequência estava mais raro, epara ali vinha dar aquele mais frio, e cheio de exa-lações húmidas e podres, as quais mostraram a suaviolência naqueles que estavam ali sentados.

Se as exalações que saem dos corpos viventes sãotão venenosas, que efeitos não produziram aquelasdos cadaáveres, que estão apodrecendo? Pois a es-tas é que estão sujeitos os Eclesiásticos que adminis-tram os santos Mistérios do Altar: ali o Ar está maisquente, ali é mais ligeiro, para ali há-de correr de to-das as partes o que estiver à roda, e este é o de toda aIgreja, onde se enterram os mortos, onde cada dia seabrem as sepulturas, onde entram tantas pessoas quetranspiram, e que podem transpirar exalações tão ve-nenosas como as daqueles presos.

Bem sei que estes danos foram previstos em Por-tugal porque ordinariamente, tanto quanto me lem-bro, costumam lançar cal nos cadáveres tanto queos metem nas sepulturas: método excelente, se fosseesta operação feita num cemitério fora da vila ou ci-dade exposto a todos os ventos: então aquelas exala-

81A Mechanical Account of Poisons. London, 1745, in8.o, pág. 225.

82Observations on Nature & Cure of Hospital & Jaylsfe-ver. London, 1750, in 8.o.

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ções podres que faz levantar a cal depois de consu-mir as partes mais líquidas e moles se desvaneceriampelos Ares, e jamais causariam o mínimo dano aosviventes: mas desgraçadamente consomem-se os ca-dáveres à força de cal nas Igrejas; a cal se é o correc-tivo da podridão não é domando-a nem embotando-a;é somente dissipando-a e fazê-la subir mais depressanos Ares; mas esta fica dentro da Igreja encerrada.Logo esta precaução não tem todos os requisitos deque necessitam aqueles lugares sagrados. Além dissonem tudo se dissipa com a cal, ficam os ossos, e ascartilagens que pouco a pouco vão apodrecendo: masque diremos daqueles cemitérios sem campas, juntodas Igrejas, com casas à roda? Que diremos daquelescarneiros, ou casas de ossos, cercados de moradas decasas, e às vezes dentro dos mosteiros? Não ficamneles bastante matéria para infectarem os lugares àroda? Destes conhecimentos evidentes, autorizadoscom os Concílios, norma das nossas acções, é quesaiu o atrevimento de censurar este abuso, ainda queescusável, por ter o seu fundamento numa piedadeexemplar.

Capítulo XVI

Da necessidade de renovar oAr frequentemente nos Con-ventos e em todas as comunida-desEnquanto as ordens Monásticas não dedicaram quasetodos os seus Religiosos a tomar Ordens Sagradas, ea administrar os santos Sacramentos, fundavam osconventos nos campos e entre bosques, sempre des-viados do povoado. Como o seu exercício consistiana oração e na meditação, e muita parte do dia no tra-balho corporal, cultivando a terra, estes eram os luga-res que escolhiam para empregar aquela santa vida.Mas depois que quase todos vieram Sacerdotes e co-meçaram a administrar os Sacramentos, foi precisofundarem os conventos nas vilas e nas cidades: ordi-nariamente poucos se acham fundados favoráveis àConservação da Saúde: raros os que pela sua estru-tura interior conservam o Ar seco e ventilado; des-tes defeitos resultam muitas enfermidades habituaise agudas: mas muitas mais poderão causar o exces-sivo número de Religiosos à proporçaõ do lugar quehabitarem, se não suprir a arte a purificar o Ar cadadia, e a renová-lo.

É notório que se nas coutadas se multiplicar a caçacom excesso, que morre muita parte dela a um certotempo, como se a peste desolasse aqueles animais;

é o que sucede nas lebres, coelhos, e veados: Duvi-dei muitas vezes se não eram supérfluas todas aque-las rigorosas penas impostas pelo Magistrado contraaqueles que trespassam gados das terras onde existemortalidade neles: A razão, e o sólido conhecimentoda natureza nos mostram que logo que num distrito,ou comarca houver tanto gado, que as suas exala-ções chegarem a infectar o Ar, tanto que o Ar estivertão corrupto delas, que os mesmos animais venhama respirar as suas exalações, é força que nasça entreeles uma peste e que persevere até que se dissipe eventile aquele Ar.

E não se ensoberbeçam os homems, o mesmo lhessucederá logo que viverem tantos juntos que venhama respirar o Ar infectado com a sua própria transpi-ração: abaixo veremos o que sucede nas prisões, noshospitais, e nos navios de Guerra. Nos conventos dasfreiras, onde a clausura é mais estreita que a dos Fra-des, estes danos são mais consideráveis, apesar dosmirantes e jardins, o Ar dos dormitórios está sem-pre sufocado, e muito mais o das celas, pelo estreitoespaço e pequenez das janelas com que estão edifica-das.

Observam-se nestes conventos tantas queixas ha-bituais, como são os males hipocondríacos, histé-ricos, artríticos, e reumáticos: tantas enfermidadesoriginadas das obstruções das glândulas, como cir-ros, cancers, febres hécticas, icterícias, todos acu-sam a clausura, ordinariamente as paixões da alma,buscam mil causas quiméricas, e não vi nem li autorque acuse o Ar encerrado, e corrupto destes lugares.Deveriam considerar aqueles que curam neles commaior indignação, como naqueles dos Frades, se oAr húmido e encerrado, se a multidão das Religiosasseria a causa da infecção do Ar. Quando observas-sem que a quarta, ou quinta parte das que ali habi-tam caíam na mesma enfermidade, ou que procedemda mesma origem, mostrando-se por diferentes sin-tomas, deveriam logo ponderar se a infecção do Arou as suas perniciosas qualidades adquiridas seriama causa.

Se o Convento não estiver fundado em sítio alto:se for dominado por outros edifícios, ou por arvore-dos, montanhas, lagos, ou terras alagadas: se os dor-mitórios não estiverem edificados de tal modo, queterminem em janelas rasgadas, e ficarem abertas poralgumas horas, cada dia, viradas para o Oriente, oupara o Norte; se os Religiosos ou Religiosas vive-rem nos quartos baixos do Convento: se o refeitório,claustros, cozinhas e adegas forem húmidas; que ospoços, cisternas e fontes de repuxo sejam causa dahumidade por estarem entre paredes que impedem aventilação do Ar: se as paredes dos dormitórios e es-pecialmente das celas, forem húmidas, então poderá

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o Médico persuadir-se que a atmosfera será a causadaquelas doenças, ou que pelo menos as fará rebel-des.

Entramos às vezes em semelhantes lugares, nãoestando acostumados a habitá-los, e sentimos logocomo se nos apertassem as fontes da Cabeça; senti-mos um não sei quê de ânsia na boca do estômago,custa-nos respirar; acusamos logo o cheiro de umarosa, de uma pastillha, de um lenço com água de flor;mas jamais pensamos nos efeitos do Ar encerrado esufocado por tantas grades, tantas portas, tantos ra-los: estes inumeráveis impedimentos à ventilação doAr, é guardá-lo puro e seco juntamente com a infec-ção dele causada pelas exalações dos viventes tam-bém encerradas, e o pior de tudo nas celas tão pe-quenas e tão estreitas e baixas são a causa que osConventos vêm a ser por fim tantos Hospitais.

Deve tanto o Médico como qualquer Prelado, ouAbadessa ter sumo cuidado das águas tanto para be-ber como para cozinhar, como também dos vasosonde se cozinha. A limpeza das fontes e das cisternasé uma das circunstâncias que fazem as águas conser-var a bondade natural; se lhe faltar é o mesmo quebeber águas encharcadas: não só as cisternas se de-vem mandar limpar no fim de cada Estio antes quecomecem as chuvas, mas também os telhados, os ca-nos, e os algerozes, por onde correm e passam. Omesmo se deve entender da Origem das águas e doscanos por onde passam. Lembro-me que num lugarperto de Coimbra devastava os seus habitantes umaEpidemia mortal: depois de terem tentado vários re-médios chamam por último aquele célebre Médicode Buarcos, Duarte Lopes: informa-se da causa daEpidemia, tudo examina, tudo pondera, e observouque a fonte da qual bebia todo o povo, nascia ao pé deum oiteiro, sobre o qual estava fundada a Igreja: sus-peita a corrupção das águas pela infecção que lhe co-municariam os cadáveres: proibiu que ninguém be-besse daquelas águas, ou que servisse para cozinhar,e em poucos dias cessou a Epidemia. Daqui vemosque não só se devem ter limpos os canos, e o tanqueou arca donde descansam as águas, mas é necessá-rio evitar que não se infectem ou pelas latrinas oucemitérios vizinhos: e esta seria também uma razãodemais para que os cadáveres não se enterrem nasIgrejas junto das quais houver fontes, ou chafarizes.

Os funestos sucessos, e bem frequentes, que ex-perimentaram muitas comunidades e casas particu-lares, em toda a Europa, ou por cozinhar em pane-las de cobre, ou outra qualquer sorte de vasos destemetal, tem sido a causa que na Suécia por autori-dade pública não se cozinha neles: em França vai-seintroduzindo cozinhar somente no barro e no ferro:tantos escritos contra este costume se têm publicado

em Latim, Francês e Alemão que acho supérfluo ci-tar mais que um dos primeiros Autores83. Apesar deestanharem cada mês os vasos de cobre, apesar queseja o cobre amarelo como é aquele das nossas cal-deiras, é certo que sempre comunicam à comida qua-lidades muito nocivas ao nosso corpo: mas o que éde sumo prejuízo é o cozinhar com vinagre, aindaque seja para tempero, nestes vasos, ainda mesmoestanhados; então é que dão qualidades venenosasà comida: as mesmas darão as comidas feitas comazeite se as deixarem esfriar neles: gerar-se-á ver-dete, veneno horrendo, que causa vómitos até mor-rer. O fazer doces em tachos de Cobre parece quenão tem mostrado qualidade perniciosa: mas depoisde feitos se, por ignorância ou negligência, os dei-xarem esfriar neles, certamente que o açucar, aindaque fique em ponto alto, atrairá partículas do cobreque não atraía enquanto fervia porque o fogo as dis-sipava: pelo que seria mais seguro desterrar de todasas cozinhas e confeitarias esta sorte de vasos, ou nãodeixar esfriar os doces neles.

Todos usam do estanho sem temor, como das pa-nelas vidradas, destas para cozinhar e daquele me-tal para comer; mas têm estas baixelas seu perigo; oestanho falsifica-se com o chumbo, e logo que o vi-nagre, ou sumo de limão tocar os pratos deste metalfalsificado causam muitos males; no estanho, mesmoque saia da mina, acham-se muitas partículas arsene-cais84. Quando se cozinhar em panelas vidradas comvinagre ou sumo de limão formar-se-á no fundo umpé que terá as mesmas qualidades do sal de Saturno:vidram os louceiros com chumbo; o sal dele, o qualse faz com vinagre, é venenoso: assim se deviam ab-solutamente desterrar das cozinhas esta sorte de va-sos, e nunca usar deles para fazer caldas ou salmou-ras com vinagre, sal, ou sumo de limão, porque oslicores ácidos são os que roem e desfazem estes me-tais, e comunicados assim produzem cólicas, doresde estômago, asmas, e outros males crónicos, que semostram por flatos, e dores de todo o ventre, e peito,não necessito citar Autores para provar a verdade doque digo; toda a utilidade consistiria em atemorizaros ânimos dos Leitores lendo os funestos efeitos des-tes metais nas cozinhas, e destinados a guardarem-se

83Schulze Dissertatio de morte in olla. Halæ, in 4.o.84Dissertatio de circunspecto usu vasorum stanneorum

ad potuum, ciborumque, speciatim ex ovis conficiendorum,præparationem necessario. A. Elia Bucnero. Halæ Magde-burgicæ, 1753, in 4.o. Neste escrito lêem-se muitas obser-vações que mostram o perigo de Cozinhar, ferver o caldoou ovos, com vinagre e sal em vasos de estanho, ou fazersaleiros deste metal, ainda mesmo o leite fervido neles, ad-quire qualidades venenosas: e tenham todos por certo quenenhum vaso de estanho é sem mistura de chumbo, ou deregulo de antimónio, como se faz na Inglaterra.

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neles salmouras, escabeches, e ervas a curtir com vi-nagre, como são pimentos, ameixas, azedas, e toma-tes.

Ficaram, creio, convencidos os Prelados e as Aba-dessas da necessidade de ventilar-se o Ar cada dia erenovar-se tanto nos dormitórios, coro, claustros, ca-pelas e oratórios como em cada cela: quando o Con-vento for edificado em lugares baixos e húmidos, eque pelos ventos não se possa renovar o Ar, então sedeve fazer artificial pelo meio do fogo; e ao mesmotempo cada dia mandar abrir as janelas das celas, ex-por nelas as camas, não só para secá-las do suor etranspiração que sempre fica nos lençóis, mas aindapara renovar o Ar de toda a roupa.

O melhor meio para fazer um vento artificial é ofogo: deve-se em cada corredor, ou dormitório, fazeruma chaminé da qual daremos abaixo85 uma circuns-tanciada descrição, e nela conservar fogo de Verãoe de Inverno pelo menos pelas manhãs por algumashoras. Em sua falta se devia mandar ferver vinagrenum grande alguidar de barro, sem ser vidrado, postoem cima de um grande fogareiro de fronte das jane-las dos dormitórios, coro ou lugares encerrados, fi-cando abertas enquanto fervesse o vinagre. Abaixono lugar citado daremos a razão desta operação quo-tidiana, de Verão e de Inverno. Se dentro das celasse sentir bolor ou mau cheiro, ou não tiver sido ha-bitada por muito tempo devia-se fazer o mesmo, oumandar queimar pólvora dentro porque o seu fumocorrige mais depressa, e com maior eficácia que o vi-nagre. O mesmo se deve entender nas enfermariasdos Conventos.

Também contribui muito para a salubridade do Armandar varrer, sacudir e esfoliar cada dia os sobra-dos, paredes e tectos, tanto dos dormitórios e celas,como dos mais lugares encerrados, obscuros e semventilação do Ar, ainda que não pareça necessário;por aquelas operações repetidas cada dia seca-se oAr, agita-se, adquire a sua elasticidade: e este cui-dado deve ser maior nas celas, e debaixo das camas;por estar ali o Ar mais encerrado, húmido, e infec-tado pela transpiração de quem ali habitar, que emoutra qualquer parte.

Sucede muitas vezes que as celas onde morreramFreiras tísicas, ou com cancers, ou outros males con-tagiosos, como são as bexigas, e as febres pestilentas,ficam fechadas para sempre: vários defumadourosse inventaram; também renovar as muralhas de ci-mento, e mandá-las caiar de novo muitas vezes; maso mais seguro e eficaz remédio, não só nestes casos,mas para purificar qualquer habitação, não habitadapor muito tempo, é o seguinte.

85No Capítulo que trata da renovaçaõ do Ar nos Hospi-tais.

Se sucedesse que Religioso ou Religiosa morressena sua cela, ou quarto pequeno, onde o Ar sempre fi-cava sufocado, todos os móveis dele, e tudo de quese compusesse a cama se devia pendurar em cordas,atravessadas pelo quarto: as janelas deviam fechar-sede tal modo que por elas não pudesse sair nem entraro Ar: logo depois, devia-se meter dentro uma panelade ferro, ou caldeira forte do mesmo metal com umarrátel de enxofre feito em pó, e por dentro uma balade artilharia, ou um pedaço de uma barra de ferro,feita em brasa e fechar imediatamente a porta, saindofora por temor de não sufocar-se pelo fumo, e tendoantes cuidado de pôr a panela de ferro em tal lugarque não pegasse o fogo à roda: este defumadouropoderia-se repetir três e quatro vezes, por tantos diascontinuados, até que dito lugar se pudesse habitar eusar dos móveis do defunto, sem receio. Bem seique por lei pública se queimam as camas e os ves-tidos dos que morrem de mal contagioso na cidadede Lisboa; mas não chegou a bondade desta lei man-dar corrigir a infecção do aposento onde morreu oenfermo, nem a purificar os móveis dele.

Devastava a peste a cidade de Génova pelos anosde 1656: queimavam-se os vestidos e as camas dosque morriam dela, e ao mesmo tempo cometiam-se mil roubos, o que aumentava mais o contágio.Ninguém considerava purificar os móveis, nem osaposentos empestados, e daqui resultava espalhar-semais a infecção. Um Frade Capucho chamado Fr.Mauricio de Tolon inventou um defumadouro com oqual purificava tanto os móveis como os vestidos ecamas, de tal modo que não era necessário queimá-los. Ao mesmo tempo se depuravam os aposentose as enfermarias, e foram tão poderosos aqueles de-fumadouros que abateram aquele terrível flagelo86.Abaixo quando tratarmos dos Hospitais daremos ouso e a composição dele, e ali se poderão ver as pre-cauções que se devem ter para que não cause incên-dio.

Não decidimos que as camas, colchões e colchas,daqueles que morreram de mal contagioso ficariampurificadas com os defumadouros do enxofre, semprimeiro mandar lavar a lã, e espalhá-la em forma develo, e pendurá-la sobre cordas; então devia ser per-fumada com as cobertas e lençóis; todos os vestidosde lã e de algodão são mais aptos para reterem as par-tículas podres da infecção, do que as de linho, ou deseda; e por essa razão se devia ter mais cuidado nasua depuração.

Se o Ar encerrado e sufocado dentro dos Conven-tos é tão nocivo, igualmente o será aquele mais hú-mido, se neles houver cercas, ou jardins com muitas

86Tratado Politico da pratticarse ne tempi de la peste Ge-nova, 1661, in 4.o.

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águas, e arvoredos, de tal modo que se sintam os efei-tos da humidade; nestes sítios húmidos e baixos nãoconvém fontes de repuxo, tanques, arvoredos tão al-tos e espessos que sejam mais bosques que pomares:nos lugares altos, secos, lavados dos ventos podemser úteis, e os regatos de águas vivas, e tantas árvoresque sirvam de refrigério, sem ficarem húmidos comexcesso.

Nas queixas crónicas que os Médicos tratam comremédios amargos, roborantes, emolientes, e antisép-ticos seria necessário mandar mudar de enfermariaou de cela a estes enfermos; umas vezes para os lu-gares mais altos, outras para onde houvesse melhorvista, e ventassem os ventos mais frios, ou quentes,comforme fossem favoráveis às enfermidades; na in-tenção de mudar de Ar, e de adquirir pela sua mu-dança vigor, e diversidade de objectos o enfermo:não é deste lugar propor, e introduzir nos Conventosdas Religiosas muitos exercícios honestos para curar,e preservarem-se de muitas enfermidades: persuado-me da capacidade, e da experiência dos Médicos, queterão introduzido os mais saudáveis, e que permitir oestado da Clausura. Não calarei um destes mui vul-gar e tido por inútil, e que é mondar as ervas nosjardins, cavar a terra, conforme as forças com ins-trumentos de ferro feitos a propósito nas queixas as-máticas; além do exercício moderado, e de receber obofe aquele espírito vital da terra (que não deve serestercada de novo) o ânimo distrai-se, e recria-se nanova aplicação e diversidade dos objetos.

Capítulo XVII

Da necessidade de renovar oAr frequentemente nos Hospi-tais e da limpeza que neles sedeve conservarAinda que os Hospitais gerais de todas as cidades daEuropa sejam a fundação mais necessária, e a maispiedosa, para a consolação e conservação dos habi-tantes pobres vemos, portanto, na sua fundação e re-gramentos muitos defeitos, não tirando deles o Es-tado o proveito que se podia esperar da caridade e pi-edade dos seus fundadores e benfeitores. É verdadeque esta instituição é digna do nome Cristão, aindaque a sua geral introdução fosse somente no SéculoXII: porque até aquele tempo a Europa governava-sedo modo que hoje se governa a Polónia: enquantonão houve mais que duas condições de vida, querodizer de Senhor, ou de escravo, não havia Hospitais

gerais: cada Nobre tinha cuidado de curar os seus es-cravos, porque cada Nobre era soberano da sua vilaou aldeia que lhe pertencia. Mas depois que os Reispouco a pouco deram a liberdade aos Povos, depoisque reclamaram os bens Eclesiásticos para socorrera pobreza, introduziram-se geralmente os Hospitaisgerais, e em Portugal, mais piedosamente que emReino algum da Cristandade, pelas casas da Mise-ricórdia estabelecidas nas vilas e nas cidades.

Estão ordinariamente fundados no meio das cida-des, ou pela facilidade de transportarem ali os enfer-mos ou porque aumentado-se o número dos habitan-tes o edifício que estava antigamente nos arrabaldesse acha hoje no meio delas: pela comodidade dos en-fermos estão fundados perto dos rios, ou em sítiosbaixos: às vezes com tão pouca precaução que aságuas que passarão ao lado do Hospital vêm servirtoda a cidade.

Mas a sua vastidão é o defeito mais considerável:e por consequência o número dos enfermos desde asua entrada neles até acabar-se a vida, ou a enfer-midade. Todos percebem os danos destes defeitos.Entramos num Hospital, logo o ingrato cheiro nosofende, logo se sente uma leve náusea, uma leve dorou peso de cabeça: sei por experiência certa que to-dos os Médicos, Cirurgiões e Enfermeiros que vivemdentro nos Hospitais, todos nos primeiros seis me-ses caem em febres, e às vezes mortais: se escapam,vivem por muitos anos sem moléstia: porque acostu-mado o corpo ao estímulo venenoso não fica sensívelaos seus novos efeitos.

Vimos acima a imensidade das exalações quesaem do nosso corpo, e quão nocivas sejam se asrespirarmos muitas vezes: ponderemos agora quantomais nocivas serão aquelas que exalam os enfermos,não só com febres, mas de feridas, de disenterias, dechagas e outras doenças de infecção. Desmaiamosmuitas vezes ao desatar uma chaga, ou gangrena comossos podres, e nem à força de cheirar vinagre pode-mos suportar o fétido daquelas exalações: mas todasestas ficam encerradas naqueles espaçosos edifícios;e naquele Ar comem, bebem, respiram e dormem osenfermos: é força logo que adquira nos Hospitais apodridão o degrau mais acre, mais activo e o maispernicioso.

Não somente se infecta o Ar pelo demasiado nú-mero dos enfermos, mas também pelo número dosque o servem. Tanto quanto pude calcular entre o nú-mero dos enfermos, e das pessoas destinadas ao ser-viço interior de um Hospital, achei que a cada qua-tro ou cinco enfermos correspondia um servente dele,contando desde o Confessor até o último que lava evarre, ou na cozinha ou na enfermaria e botica. Destemodo a cada mil enfermos correspondem duzentas a

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duzentas e cinquenta pessoas destinadas a servi-losdia e noite. Assim se aumenta ainda mais a corrup-ção do Ar daqueles edifícios.

É certíssima observação, que quantos mais en-fermos estiverem num Hospital muitos mais morre-rão: e que quanto mais os Hospitais forem pequenosmuito mais proporção guardada se curarão nele.

No Hospital Real de Paris, chamadoHôtel deDieu, há constantemente 1.300 camas ocupadas: noespaço de um ano entram nele ordinariamente de18.000 a 20.000 enfermos: comumente morre aquarta parte deste número, quero dizer de quatro mile quatrocentos: a cinco mil enfermos.

O Hospital dos Frades de S. João de Deus damesma cidade tem constantemente sessenta camasocupadas: no espaço de um ano entram ordinaria-mente nele de 2.200 a 2.300 enfermos: comumentenão morre mais que a oitava parte, quero dizer de275 a duzentos e noventa e um enfermos. Daqui sevê que as mortes nos Hospitais aumentam à propor-ção do maior número dos enfermos. Uma tão grandediferença não provém de outra causa do que da maiorou da menor corrupção do Ar; porque os Cirurgiõessabem evidentemente que podem curar nas casas par-ticulares da cidade feridas da cabeça e chagas daspernas, e que jamais as curarão nos Hospitais gerais,e se sucede às vezes é com grandíssima dificuldade.

Se Paris, onde se contam quase um milhão dehabitantes, necessita de dois Hospitais públicos quecontêm 1.360 camas é certo que se o Hospital Geralde Lisboa necessitar também de 1.300 camas que lheserão necessários, entre assistentes e enfermeiros de200 a 250: é força logo que cada ano pereça nele aquarta parte dos enfermos, pouco mais ou menos.

É difícil mudar os costumes introduzidos porquea maior parte dos homens vivem imitando o que vi-ram depois da mais tenra idade, e muito poucos sãoaqueles dotados do génio a reflectir no que vem in-troduzido: sem embargo da oposição que encontraráo que vou a propor, persuado-me que à vista dos da-nos que patenteio concorrerá a mesma piedade quefundou os Hospitais a remediá-los.

O Hospital já estabelecido na vila, ou na cidade,devia ser como o porto ao qual haviam de abordartodos os enfermos. Logo que as suas doenças fos-sem examinadas, à entrada haveria nele a disposiçãoseguinte. Ou a doença requer imediato socorro, ouela pode curar-se com mais vagar. Uma queda mor-tal, uma ferida, fractura, deslocação, apoplexia, febrecontínua, pleuris, queimadura grave, e outras doen-ças que chamam agudas, deviam ser tratadas no Hos-pital da cidade que supomos já fundado. Porém se aqueixa fosse crónica, como as hidropesias, febres in-termitentes, quartãs, chagas, e todas aquelas que o

Médico julgasse podiam curar-se sem imediato so-corro, deviam ser mandados a um segundo Hospitalfora da cidade.

Não só aqueles enfermos que chegam com quei-xas crónicas ao Hospital da cidade deviam ser trans-portados ao segundo Hospital dito, mas todos aque-les curados no Hospital principal, dos quais as quei-xas se convertessem em crónicas. Por exemplo: caium homem enfermo de um pleuris, é levado ao Hos-pital da cidade: requer cura imediata a sua queixa:cura-se ali mesmo: mas este pleuris terminou-se emabcesso do peito, que ameaça morrer tífico: nestecaso passados os vinte e um dias da doença agudaaos vinte e dois, ou vinte e três da doença, deviaser transportado ao segundo Hospital fora da cidade,com o seu número, e a relação da doença feita peloMédico; e da mesma forma devia fazer o Cirurgiãonas queixas de Cirurgia: chegado o enfermo àquelesegundo Hospital ali devia ser curado até o tempoque determinaremos logo. Escrevo esta matéria nointento que possa ser entendida e compreendida dosbem-feitores dos Hospitais, e não só para os Médicose Cirurgiões.

Já considero as dificuldades que me oporão, eprincipalmente quando vou a propor o terceiro Hos-pital, fora da cidade, diferente daquele segundo,destinado somente para os convalescentes. Nestedeviam-se receber os enfermos dos dois Hospitaispor exemplo: curou-se um enfermo de pleuris comque entrou no Hospital da cidade: entrou no estadode convalescente aos vinte e dois ou vinte e três dias,havia de ser logo mandado para o terceiro Hospitaldos Convalescentes, determinado fora da cidade: domesmo modo aquele enfermo curado de queixa cró-nica no segundo Hospital, v. g., uma icterícia, entrouno estado da convalescença devia ser transportado aoHospital dos Convalescentes.

Deveria haver nestes três Hospitais um regimentoexactamente observado, o que seria fácil: não seriapermitido aos dois Hospitais fora da cidade receberenfermo algum sem ser mandado pelo Hospital dacidade; mas o Hospital dos Convalescentes havia dereceber os enfermos tanto do mesmo Hospital da ci-dade, como do segundo, destinado a curar as queixascrónicas: deste modo seria o Hospital da cidade oporto, ou a porta daqueles dois Hospitais nomeadostantas vezes.

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Considerações sobre estastrês sortes de Hospitais, suasutilidades para os enfermos,para o bem público e para osbenfeitoresSe os Médicos fossem consultados pelos fundadorese benfeitores dos Hospitais é certo que evitariam acu-mular muitos enfermos num mesmo lugar. Os da-nos são patentes e são os seguintes: a infecção do Arsempre é tão grande como o número daqueles que orespiram no mesmo lugar: daqui vem que morre ametade mais num grande Hospital do que num pe-queno: vejamos agora os danos que sofrem aquelesmesmos que escapam: todas as queixas crónicas tra-tadas num Hospital até o fim delas é força que au-mentem o número, e que ocupem o lugar daquelesenfermos de queixas agudas, ou que sejam obrigadosa deitarem dois e três na mesma cama, ou dormirempor terra sem cama apropriada, e com muito desar-ranjo: convalescerem no mesmo Hospital é a maiordestruição da vida dos doentes, e dos cabedais dosbenfeitores: cura-se num Hospital geral um pleurí-tico a quem sangraram por exemplo nove vezes: ficaexausto e fraco: fica convalescente depois de duas se-manas; mas como há-de convalescer encerrado numvasto Hospital onde as exalações causam outra se-gunda enfermidade? Como recuperará as suas for-ças? E no caso que as recupere será por muito tempo:daqui maior gasto: ocupa pela sua demora a camaque outro poderia ocupar.

Mas demos que saia este enfermo do Hospital;chega a sua casa, mas é obrigado ou a trabalhar paraviver, ou destituído dos socorros humanos, com a mí-nima desordem, causada forçosamente pela miséria,recai: e que sucede? É tornar ao Hospital: todos sa-bem as consequências das recaídas, por último vemacabar a vida, que poderá escapar com menor custodo Hospital, e proveito do Estado; ficando por estemeio frustada a intenção do fundador.

Mas estes não são os maiores danos dos Hospitaisgerais: os maiores e os mais mortais é a febre pesti-lenta e o escorbuto, ou mal de Luanda, que se geraneles pela corrupção do Ar respirado pelos enfermose cheio das suas exalações: poucos Médicos conhe-ceram estas duas doenças e a sua causa: e por issopoucos procuraram o remédio conveniente: queroaqui tratar desta matéria, porque tenho dela toda aexperiência, como enfermo, e como Médico. Não

me creiam somente pelo que digo, mas leiam JoãoPringley, Doutíssimo Médico Inglês, e verão quantoas suas experiências concordam com as minhas87.

Digo pois que nos Hospitais gerais, principal-mente no tempo do Estio, ou do Outono os enfermosentram, por exemplo, com uma febre intermitente,com uma ferida, com uma fractura e que depois doquinto, ou sétimo dia que vivem no Hospital nasceneles uma febre, da qual os sintomas são os seguin-tes.

Começa esta febre sem outra maior moléstia, quequeixar-se o enfermo de arrepios vagos: uma sensa-ção de frio, outras de calor ou lavaredas, mas passa-geiras, e inconstantes: no pulso nenhuma febre: masobservam-se nas mãos uns leves tremores, os braçosvêm pesados e tão fracos que apenas os podem levan-tar; outras vezes não os sentem, ainda que os possammover: têm sumo fastio, dores de cabeça nas fontes.Mas de noite o calor é acre, o pulso frequentíssimo,pequeno, e profundo; de dia nenhuma febre aparece:queixam-se de um não sei quê, o que só indicam pe-las ânsias, cansaço na respiração, peso na boca doestômago, como se apertassem o coração: a línguano princípio é branca, depois amarela, com gretas, osdentes e beiços com côdeas negras; quando mostrama língua observa-se trémula, e sai de um, ou do outrolado: a sede é tolerável; deste modo passam os pri-meiros cinco, ou sete dias, nos quais o Médico nemconhece a queixa nem o enfermo considera estar do-ente: porque muitas vezes levanta-se, e não podendoaplicar-se pelo cansaço a coisa alguma, deita-se nacama, e nestas alternativas passa alguns dias: este éo primeiro estado desta febre.

Aumentam-se todos estes sintomas equívocos, etodos de uma vez se mostram assim: o fastio é maior,tem náuseas: dores de cabeça mais vivas e contínuas,principalmente na testa: o juízo turbado de noite,deliram levemente; perguntados respondem a propó-sito, mas logo caem naquela demência; os tremoresdas mãos são maiores quando se lhes toca o pulso re-tiram o braço, o pulso então é mais frequente, maisduro, mais pequeno, e mais sumido: as urinas poucodiferentes das do estado de Saúde, se não é no fim dadoença, quando aparecem turvas, e com sedimentosemelhante a polme de farinha, mas estes sintomassão maiores depois das onze da noite até à madru-gada: suam de meio corpo: os olhos são turvos evermelhos. Ordinariamente o ventre no princípio éconstipado, e quando a doença é mortal acabam pordisenteria fetidíssima, o que indica a gangrena dosintestinos.

Como esta febre dura muitas vezes até os trinta e

87Diseases of the Army. London, 1751, in 8.o, pág. 108.

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cinco dias, os sintomas aumentam por degraus: uni-versalmente a pele é áspera, dura e ardente: quemapertar com toda a mão todo o pulso do enfermo(não por alguns minutos) sentirá um calor ardente eadurente; nas polpas dos dedos por algum tempo, oque já observou Galeno88. Se o delírio for contínuoentão as faces vêm vermelhas; e se a disenteria co-meçar, então os suores são profusíssimos, e fétidos,levanta-se pelo corpo como brotoeja, e uma forte desarampaõ: então a cara é cadaverosa e morrem placi-damente: se estes sintomas não são tão mortais esca-pam por icterícias, por suores de todo o corpo, e porexcreções erisipelatosas.

Como vi e tratei esta febre nos Hospitais muitasvezes, como eu mesmo a tive, e que escapei por umaicterícia crónica, fui mais difuso na sua descrição.Lamentei muitas vezes que os enfermos que entra-vam feridos nos Hospitais, sem outra queixa alguma,outros somente com febres simples, caíam nesta fe-bre podre, (que chamam maligna) depois de cincoou sete dias: ignorei por muito tempo a causa, se oacaso não mo ensinasse: havia no campo de Azoftantos feridos que no Hospital não havia já lugarpara admiti-los: propus mandar oitenta deles com umbom Cirurgião para um lugar duas léguas distante docampo principal: cada dia tinha a relação destes en-fermos, algumas vezes os visitava, e em três sema-nas de tempo todos se curaram à excepção de doisque morreram pela grandeza das feridas, que eram debala. Considerei logo que era força que no Hospitalnascesse aquela febre podre, e que se gerava pela cor-rupção do Ar, independentemente das doenças comque entravam os enfermos no Hospital.

Outra doença gera-se mais nos Hospitais causadapela podridão do Ar, e vem a ser o escorbuto, que nóschamamosmal de Luanda, doença mais conhecidados navegantes89 que dos que habitam em Portugal.Nesta doença apodrecem as gengivas e beiços; todoo corpo é fraco, aparecem nódoas roxas nas pernas,no peito; querem sempre dormir, não têm febre, nemsede, mas estão tórpidos; morrem por fluxos de san-gue, por disenterias, e pela gangrena da boca. Emtodos os Hospitais que vi, sem limpeza, sem renova-ção de Ar, observei esta doença, às vezes com sinto-mas horrendos, como são a contractura dos tendões

88Lib. Progn. in medio Comment. II. «Cæterum conve-nit immorari diutius attrectando omnem manum, non solumcorpus ægri, sed etiam superiores partes diligenter animad-vertentes, si non solum acriorem, sed etiam substantiæ co-piam, una secum & quidem corpulentam reportet, veluti fla-mulam quamdam pervadentem cutem tuæ manus, qua cu-tem ægri contingis, seque insinuantem perspicue pin pro-fundum».

89Abaixo falaremos outra vez nesta matéria.

dos joelhos, e dos braços ficando estropiados, às ve-zes por toda a vida: mas nos climas do Norte estaenfermidade é mais terrível.

Estes são os danos que resultam dos Hospitais ge-rais onde se acumulam muitos enfermos. Vejamosagora as utilidades da separação destes mesmos en-fermos em três Hospitais, do modo que propusemosacima.

Quando o Hospital da cidade fosse como portoonde todos os enfermos haviam de tocar, e que sónele ficassem aqueles que requerem socorro imedi-ato é força que o número havia de ser menor, e queseriam mais bem curados, porque os Médicos e Ci-rurgiões adquiririam conhecimentos mais determina-dos e certos por aquela prática constante das queixasagudas: a confusão seria menor: o Ar mais puro, aordem mais bem observada, porque tudo com maiorfacilidade se poderia ver e observar. Esta é a pri-meira utilidade que tiraria o mesmo Hospital e o Es-tado, que se reduz a salvar a vida a muitos enfermos,e serem curados mais depressa.

Quando fora da cidade houvesse um Hospital des-tinado unicamente para curar os males crónicos nãosó resultariam as mesmas utilidades que no da ci-dade, mas ainda as seguintes: todos sabem que oAr do campo é mais próprio para curar as enfermi-dades crónicas do que o das povoações: não have-ria tantos entrevados, pouparia o Hospital tantos gas-tos, que são hoje inevitáveis nos Hospitais gerais; osMédicos e Cirurgiões vivendo numa aldeia, como deduas léguas fora da cidade não se distrairíam por ou-tra prática que pela do Hospital; e como estes enfer-mos ordinariamente são os mais mal atendidos dosMédicos, tanto porque a sua prática lhes leva a maiorparte do tempo como por preverem não haver perigopresentâneo, daqui vem que muitos seriam neste se-gundo Hospital curados, que seria impossível curá-los no primeiro: aqui não se geraria jamais infecção,e estes enfermos se ficassem no Hospital da cidade écerto que a gerariam pelo seu número, e pelas suasdoenças.

O terceiro Hospital destinado somente para osconvalescentes pouparia muitas despesas, e salvariamuitas vidas. Quando saíssem deste Hospital se-riam em estado de trabalharem, e prover às neces-sidades da vida, evitando a recaídas, que tantos porelas acabam a vida: neste Hospital haviam de con-valescer todos os que fossem curados, no da cidade,e naquele onde se curariam as enfermidades cróni-cas: todos ficarão persuadidos quão mais facilmenteconvalesceriam aqui os enfermos, e quão depressa;considerando viverem no Ar do campo; dentro doHospital sem maus cheiros, com alimentos apropri-ados; em lugar que os convalescentes nos Hospitais

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de hoje cometem mil desordens; porque o amigo, amulher, a irmã, e a Mãe, levam nas algibeiras ali-mentos, e doces para consolar, e alimentar o conva-lescente, que sempre se queixa da fome: estando nocampo este Hospital ficava preservado deste maiordano. Outras muitas considerações deixo, porquequalquer instruído dos Hospitais as poderá conside-rar. Contanto que neste último Hospital não pudesseentrar convalescente algum sem haver passado pelosdois Hospitais nomeados, contanto que se fosse forados arrabaldes da cidade uma légua de distância écerto que o gasto seria muito menor, e que a metadedos que hoje morrem poderiam salvar a vida por estemeio.

Mas a maior utilidade seria preservar-se daquelafebre originada nos hospitais e do escorbuto. Só fun-dando os três ditos hospitais é que se pode conservaro Ar puro e ventilado: por todo este tratado vere-mos os efeitos do Ar podre, e corrupto nas prisões,nos navios, e nas casernas; para ali deixo de referir emostrar, o que aqui suprimo: respondamos por agorasomente às dificuldades que me farão os fundadorese benfeitores dos Hospitais.

Dirão que esta ideia de três Hospitais, ainda quecom dependência tal que fazem um composto, é qui-mérica: porque em nenhuma parte da Europa se pra-tica: dirão que os gastos serão excessivos para fundartrês Hospitais, quando as rendas deles são destina-das a favorecer os pobres, e não a fazer edifícios, e asustentar Capelães, Médicos, Cirurgiões, Boticários,Cozinheiros, e Enfermeiros: enfim que nossos Paisfizeram assim: e tudo o mais que sai deste pensa-mento.

O que se propõe é para ser ponderado por pessoasque não vivem por imitação do vulgar: quanto aosgastos de fabricar ainda dois Hospitais é terror, pâ-nico: qualquer quinta velha, ou convento, qualquerpalácio nos arredores da cidade poderá servir: noque toca aos salários dos Médicos, Boticários, é detão pouca consideração esta despesa, considerandoo proveito de tantos como escaparam, que não me-rece reparo: Além disso, eu me persuado que se sefizer bem a conta estes três Hospitais regrados comodevem ser haviam de custar menos uma quarta partecada ano do que custa o actual Geral; não incluindo oprimitivo gasto dos dois novos edifícios ou das repa-rações que seriam necessárias para consertar os edi-fícios velhos destinados a este fim.

Porém considerando o curso das coisas humanas,e que é mais difícil introduzir-se uma coisa útil, doque trinta que servem de perda ao bem da sociedade,porei aqui aqueles meios que parecem eficazes paraconservar o Ar puro, e ventilado nos Hospitais ge-rais do modo que hoje existem, ou pelo menos para

que neles se não origine aquela febre pestilenta, e oescorbuto.

Capítulo XVIII

Remédios para emendar o Ardos Hospitais e corrigir ainfecção dos móveis e vestidos

A dificuldade de corrigir e renovar o Ar dos Hospi-tais gerais consiste que como estão sitos no meio dasCidades e que o Ar destas sempre está carregado departículas húmidas e podres ficará incapaz para ab-sorver e ventilar aquele dos Hospitais já por si podrepelas exalações dos enfermos. Portanto, se o edifíciofor tal como indicaremos que pelo fogo, fornos, ouchaminés se inventar vento artificial dentro de cadaenfermaria, então se poderá esperar que aquela febrepestilenta e o escorbuto não tenha lugar.

Logo todo o cuidado do Arquitecto deve serquando edificar um Hospital fazê-lo perspirável eareado por todos os lados, e pelas janelas principal-mente das enfermarias: é já supérfluo determinar osítio, depois que tratamos acima do melhor das Cida-des: deve-se com maior cuidado secar o terreno dosHospitais; e ao mesmo tempo pôr canos, canais, ecloacas dando corrente às águas tanto da chuva comoàs que servirão ao uso do Hospital para conservá-losempre seco. Tanto quanto permitir o sítio, todas asjanelas e escadas deviam ser claras, e corresponden-tes para que o Ar e o vento pudessem entrar por umlado e sair pelo outro: tendo por máxima principalnestes edifícios a salubridade do Ar para a conserva-ção da Saúde, a qual deve ser preferida neles à ele-gância, ornato e sumptuosidade.

Mesmo aqueles Hospitais já fabricados poderãoremediar-se no caso que neles o Ar fique encerrado,pela má arquitectura das janelas, escadas, e portas.As janelas das enfermarias, e especialmente dos cor-redores principais, deveriam ser rasgadas, e tão altas,que deveriam chegar ao tecto da enfermaria: cada diapela manhã os postigos mais altos deviam abrir-se, etambém os correspondentes das outras janelas paraque o Ar varresse as exalações delas: as janelas nosHospitais deviam ser abertas muito diferentementenas casas particulares; nestas são para dar claridade,e ver o que se passa nas ruas, as dos Hospitais hão-de ser só para dar claridade, e que a luz, e o Ar frionão ofenda os doentes quando estiverem deitados, ousentados na cama: por isso deviam ser mais altas dosobrado até à sua abertura.

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O primeiro e o segundo, e pode ser o terceiro an-dar, deviam ser destinados para os enfermos: todosos quartos, e aposentos térreos, ou ao primeiro ser-viço da casa, onde estão as cozinhas, a botica, a casade lavar, devia ser destinado para habitarem as pes-soas destinadas ao serviço do Hospital: já repetimostantas vezes que tanto mais o sítio para habitar foralto, mais puro, e mais elástico será o Ar e por con-sequência seco.

Cada enfermaria, ou aposento grande e alto, se-ria destinado a uma sorte de doenças: por exemplo,um às febres, outro às disenterias; outro aos malescrónicos: esta distribuição convém muito aos Médi-cos, e Cirurgiões, e os enfermos curam-se mais fa-cilmente: mas como o nosso intento não é escreverregramentos para hospitais, deixaremos esta matériaa quem pertencer: o que prometi são indicar os meiosde conservar o Ar puro neles e prevenir aquela febrepestilenta.

Todos os dias deviam-se mandar varrer as salasdas enfermarias e esfoliar as paredes e os tectos,ainda que parecesse supérfluo pela limpeza daque-les lugares: este trabalho faz mover o Ar, agitando-o,faz-lhe adquirir a elasticidade que perde por ficar en-cerrado: logo depois deviam todas as salas e enfer-marias tanto de Verão como de Inverno serem borri-fadas com metade de água e metade de vinagre. E aomesmo tempo no tempo quente abrir todos os pos-tigos das janelas correspondentes, e no frio os posti-gos de cima, enquanto ardem dois grandes fogareirosdiante de cada janela, alguns passos dentro da enfer-maria, sobre os quais estariam alguidares de barrocheios de vinagre branco fervendo: o vento e o Arfrio entrando pela janela lançaria o vapor do vinagrepor toda a sala e corrigiria os vapores e exalaçõesdela; e como pelo fogo se geraria um vento artificial,não há dúvida que se renovaria, e ventilaria o Ar: emtodas as salas dos Hospitais estas precauções são ne-cessárias: mas são inevitáveis nas salas dos feridos,dos disentéricos, e dos febricitantes.

Mas no tempo de Inverno são os frios às vezes tãopenetrantes que seria temeridade mandar abrir as ja-nelas cada manhã ainda com fogareiros acesos: poressa razão indicarei aqui a invenção de M. Duhamelpara purificar e renovar o Ar dos conventos, hospi-tais, prisões, e todos os lugares onde se necessita doAr puro e seco. E consiste na máquina seguinte queé de pouco custo90.

Suponhamos uma enfermaria comprida de ses-senta passos e larga de dez: num canto dela far-se-á uma chaminé; e se for mais extensa do dobrado,

90Histoire & Memoires de l’Acad. Royale des Sciences,1748, p. 24, & p. 1.

no canto correspondente do lado mais comprido, far-se-á outra. As chaminés ordinárias abrem-se na pa-rede, e o seu canudo, ou abertura vai subindo atésair fora do telhado, pelo meio da parede: mas es-tas chaminés que propomos, como pompas do Ar in-fecto hão-de ser feitas do modo seguinte. Naquelecanto já determinado levantar-se-ão duas ombreirasfeitas de ladrilho desde o sobrado até o tecto da en-fermaria da largura de dois até três palmos e meio, eque fiquem pegadas à parede. Serão juntas por outraombreira de ladrilho de altura de três palmos, e quechegará ao tecto, ficando deste modo, como se fosseuma grande chaminé de cozinha de campanha. Todoaquele espaço do tecto que ficasse compreendido porestas ombreiras havia de cortar-se e ficar aberto: esobre os quatro lados levantar uma pirâmide, ou ca-nudo de ladrilho quadrado até sair fora do telhado,altura de uma vara: bem se vê que este canudo ouabertura será mais larga três ou quatro vezes, que oscanudos das chaminés ordinárias. Aquela aberturado tecto da enfermaria seria fechada com um alça-pão a registros, na intenção de podê-lo abrir mais oumenos, conforme fosse necessário, refrescar o Ar daenfermaria.

Dentro desta chaminé, no sobrado, que seria entãocoberto de pedra, ou com uma tábua de ferro, juntoda parede se poria um forno de ferro: o qual se de-veria acender pela parte de fora, fazendo uma janelaou abertura na parede da enfermaria, que correspon-desse à boca do forno; por esta abertura se meteriaa lenha, ou o carvão; e o canudo de ferro pelo qualhavia de sair o fumo seria posto defronte da porta,e deveria ser tão alto que subisse pela abertura qua-drada da chaminé até sair por ela fora do telhado dealtura de duas varas, e mais que o canudo, ou aber-tura de ladrilho, uma vara.

Vejamos agora os efeitos desta chaminé e desteforno. Nenhum se persuadirá que um forno aceso re-frescará o Ar e que fará as salas ou enfermarias tãofrias, às vezes, que será necessário mandá-lo apagar.O Ar daquela nova chaminé, ou pompa, se aquecerá,virá mais ligeiro e mais raro; então o Ar das enfer-marias estando mais frio e mais pesado, é força quevenha todo dar ali: mas o Ar do tecto daquela cha-miné ainda estará mais quente, pelo calor do canudode ferro que sai do forno, e que leva o fumo, logo oAr quente subirá por esta razão, além daquela, que oAr quente sempre sobe: como este canudo de ferrosobe até o telhado, até lá o Ar estará quente à roda;logo o Ar das enfermarias irá subindo até se desva-necer nos ares. Deste modo gerar-se-á um vento arti-ficial, mesmo no tempo do Estio; e será necessário àsvezes, ou no Inverno mandar fechar um, ou dois pos-

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tigos do grande alçapão que tapar a grande aberturado tecto da chaminé.

Por este meio mesmo no Inverno sem defumadou-ros, nem abrir as janelas, se poderá renovar o Ar cadadia, e mesmo de noite: estas chaminés seriam ne-cessárias nos dormitórios dos Conventos, principal-mente das Freiras, e seria o melhor remédio contratantas queixas crónicas que padecem ordinariamente:Podiam-se introduzir nos celeiros de trigo e semen-tes; nos armazéns das armas e das fardas e tambémdas provisões de mar e guerra; e em todos os lugaresbaixos, húmidos e térreos; dissipar-se-ia a humidade,e as partículas podres que se geram continuamentecomo os insectos naquelas matérias.

Mas vejo já quantas dificuldades me farão os Go-vernadores dos Hospitais, os Provedores dos arma-zéns, e os rendeiros, e sobretudo as Abadessas. Eque sabemos nós, dirão eles, de fornos de ferro, oude canudos de ferro? Isso são coisas de Estrangei-ros, e só eles podem usar delas. Ao que se respondeque é muito fácil haver em Lisboa destes fornos,mandando-os vir de qualquer porto de França, ou daHolanda, pô-los em seu lugar, e conservá-los acesos,porque estou certo achar-se-ão em Lisboa duas milalmas pelo menos, que saberão mostrar este simplesartifício.

Persuado-me pelo que fica referido da natureza doAr, que todos os que desejarem conservar a Saúdedas pessoas em comunidade, que introduzirão noslugares referidos as ditas chaminés, tão fáceis defazerem-se, e de tão pouco custo para se conserva-rem: mas para que com maior prontidão, e ânimo asmandem fazer, quero fazer-lhe compreender o bemconsiderável que causam.

Entramos num Hospital, enfermaria, ou lugar en-cerrado com muita gente logo sentimos um cheiro in-grato, uma ânsia, um não sei quê nos impede respirar:suba um homem por uma escada de mão até o tectodela, e lá no cimo não poderá sofrer o mau cheiro; esobretudo o calor; e quanto mais alto for o aposento,ou a sala, mais fétido será o cheiro e mais quente:sinal certo que os vapores e as exalações sempre so-bem. Seja assaltado um homem de repente com umaviolentíssima dor, ou com um desmaio, a naturezabusca refrigério, deita-se logo por terra, e deita-se demodo que todo o seu corpo a toque e a abraçe; porqueo sobrado e a terra sempre estão mais frios do que olugar superior. Esta é a razão porque as abóbadasnas Igrejas e nos grandes edifícios são tão saudáveis,servem de pompa às exalações e às partículas podresque sempre são mais leves e quentes e naquelas al-turas ficam, livrando-se o Ar inferior deste modo dainfecção.

Logo estas chaminés postas no canto das grandes

salas, enfermarias, ou dormitórios hão-de atrair todosos vapores, e exalações que nelas houver; e o lugarcompreendido por elas estando quente é força quetodas ali venham dar, e por último dissiparem-se, edesvanecerem-se pela abertura que sai pelo telhado.

Pode ser que esteja introduzido nos Hospitais Ge-rais de Portugal lavarem e purificarem as camas, osleitos, os vestidos e mesmo os quartos, ou aposen-tos onde morreram, ou viveram enfermos com malesde chagas, cancers, carbúnculos, e outras semelhan-tes queixas: não digo de Galico, por saber que nãose cura neles esta queixa; se com razão, decidam ahumanidade, e piedade Cristã.

Em cada Hospital, ou em cada comunidade ondehouvesse enfermaria, haveria um quarto determinadopara purificar as camas, os leitos, os vestidos, e osmais móveis, ou dos defuntos, ou dos que padecerammales pestilentos ou contagiosos.

Vimos acima como por um defumadouro inven-tado por um Frade Capucho se abateu a peste de Gé-nova, e também o modo de purificar: abaixo dare-mos a composição deste defumadouro91 que consistea maior parte de enxofre e simples antisépticos. Logoque o Médico, ou Cirurgião, tiverem determinado anatureza da doença e que necessitam de purificar-se acama e os vestidos daquele enfermo, ou defunto, de-viam todos ser transportados à câmara, ou aposentodestinado a esta função: estender sobre cordas pen-duradas todas as cobertas, roupa de linho, colchões,(depois de lavados) e do mesmo modo o leito, e corti-nas: fechadas as janelas, que por elas não pudesse en-trar nem sair Ar, pôr-se-ia uma caldeira de ferro forteem cima de um fogareiro, sem fogo, para que ficasse

91RECEITA dos pós para purificar o Ar corrupto, e osvestidos, camas, mercancias na quarentena, quartos, e salasonde estiveram enfermos de males contagiosos.

Tomam-seDe Enxofre doze arráteis.Rena de pinhoFolhas de tabacoPimento secoCominhosBagas de zimbroGengibreIncensoRaiz de erva bicha, ou de aristolóquia redonda.De cada um destes simples um arrátel,Sal amoníaco meio arrátel.Faça-se tudo em pó.CORRECÇÃO dos ditos pós, e de menor custo.Tomam-seDe Enxofre doze arráteis.Folhas de tabaco.Pimento em pó.De cada um três arráteis,Folhas de alecrim quatro arráteis,Faça-se tudo em pó.

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bem segura somente, e que não tocasse o sobrado:dentro se meteriam dois ou três arráteis dos pós ditospara o defumadouro e sobre esta caldeira pendurar-se-ia uma ordinária ou bacia; mas muito maior, comabertura inclinada para a primeira na altura de umcovado (logo veremos o uso desta segunda caldeira,ou bacia) ao mesmo tempo devia uma bala de artilha-ria, uma relha, ou um pedaço de barra de ferro estarfeita em brasa num fogareiro à porta do aposento:este ferro em brasa se lançaria dentro da caldeiraonde estivessem os pós, imediatamente devia-se fe-char a porta, por temor de não sufocar-se pelo fumo;eles causam flama, e para que não se comunicasse aotecto mandou-se pôr por cima aquela grande caldeira,ou bacia pendurada na altura de um covado, ou qua-tro palmos. Depois de vinte e quatro horas abrir-se-áeste aposento; e continuará o defumadouro, ainda porduas vezes; e suspeita-se que o mal pelo qual se pu-rifica era contagioso deveriam defumar por sete diase continuados os ditos móveis, roupa e vestidos pen-durados do modo que dissemos.

Se estes defumadouros se introduzissem nos por-tos do mar naqueles lugares onde se fazem, tão inad-vertidamente, as quarentenas, se se fizessem nos ves-tidos dos que morrem tísicos, nos aposentos onde vi-veram, e em todos os seus móveis, tudo por autori-dade pública, poderia ser que fosse supérfluo mandá-los queimar: é certo que nenhum insecto resiste àforça deste defumadouro, nenhum veneno pestilento,nem vapor, nem ainda o da peste: todo o ponto estáque o vestido ou móvel fique embebido e penetradodeste fumo: se o ficar é impossível que conserve amínima partícula de infecção ou de veneno vaporoso.

Capítulo XIX

Do sumo cuidado que se deveter nas prisões para purificar oAr delas e renová-lo cada diaMuitas leis têm cada estado para castigar os delin-quentes, e muito poucas para prevenir os crimes:daqui vem a necessidade das prisões públicas, eamontoarem-se nelas infinitos presos, ou pela mul-tidão dos delitos, ou pela forma longa, e enfadonhade processar as causas civéis e criminais ainda quenelas haja lugares mais cómodos, e mais asseados,em todos o Ar está encerrado e a limpeza sempre épouca: como é preciso tapar as aberturas por ondehavia de entrar o Ar puro, e a luz, todos se convence-rão da miséria daquele estado: estão ordinariamente

as prisões no meio das vilas, e das cidades, ou parafalar mais certo sempre perto dos Tribunais, ou porcómodo dos Juízes, ou pela segurança da sua guarda:a Arquitectura não falta nesta parte de fazer o edi-fício o mais mal sadio: as paredes são grossas, asjanelas pequenas, os tectos baixos, e de abóbada; enão falemos das enxovias, onde nem há a piedade demandarem lajear o terreno, nem secá-lo.

Se consideramos a limpeza daqueles lugaresadmiro-me que na Cristandade se tolere tanta tira-nia. Não quero representá-la, considere-a quem en-trou naqueles lugares, ou por obrigação, ou por pie-dade. Vivem os presos, e ainda nos aljubes, sepul-tados no Ar corrupto, fétido, sem luz, sem refrigé-rio, e faltosas vezes com que possam sustentar aquelavida de cadáver vivente. Muitos deles seriam bastan-temente castigados somente por viverem nestas pri-sões, e, portanto, Jerónimo Castillo de Bovadilla dizdelas o seguinte «y siendo la carcel, como regular-mente es, para guarda y seguridad de los prezos, y nopara grave tormento, y pena, no deven ser metidos encalabossos soterraneos, o masmorras escuras, lobre-gas y fetidas, como le previno el Emperador Cons-tantino (L. I. de custodia Reorum) privados de lus,y en occasion de enfermidades92». E que diferente-mente são tratados os presos hoje? Antes de seremjulgados, já são castigados com a perda da Saúde,e muitas vezes, com a vida. Muitos Jurisconsultoscondenaram o tirano uso dos tratos, e em alguns Po-tentados da Europa já estão abolidos: mas que tra-tos mais cruéis que viver na imundície, respirá-la, emisturada com os miseráveis alimentos, ou água fé-tida? Aquelas febres pestilentas nascidas no Limo-eiro de Lisboa, que causaram a morte ainda a muitoshabitantes vizinhos daquela prisão, não tiveram outracausa que o Ar podre, encerrado, cheio das exalaçõesdaqueles cadáveres viventes: como nos Hospitais segera aquela febre pestilenta que vimos, muito dife-rente das doenças com que entram, assim nas prisõespela mesma causa se geram a mesma sorte de febrescontagiosas.

Francisco Baco de Verulamio93 diz que no seutempo não só os Juízes que julgaram certos presosem Inglaterra morreram da infecção que exalavam,mas ainda muitos circunstantes: Citarei abaixo as

92Loco citato, tom. II, lib. 3, pág. 411.93Sylva Silvar. Centur. X, exper. 914. «Perniciosissimus

est fœtor carceris, qui captivos diu, arctè & squalidè ha-buit: experientia apud non bis, terve notabili, neque supramemoriam meam cum tam Judicum nonnulli, qui carcereconsederant, quamplurimi ex iis, qui negotio intererant, autex spectatoribus ingruente morbo excesserunt è vita; quareprudenter omninò tali casu carcer ventilaretur, antequamcaptivi producerentur».

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palavras do Aristóteles dos nossos tempos, para quepelo menos sejam os Juízes mais cautos tratar comaqueles tão desamparados da humanidade, e com Bo-vadilla, posso dizer, da justiça94. Vimos acima nocapítulo que trata de renovar o Ar das Igrejas de quemodo morreram os Juízes que julgavam na Relaçãode Londres os presos que tinham saído dantes da pri-são pública, o que tudo confirma o pernicioso Ar da-queles lugares, sendo supérfluo indagar a causa destainfecção por ser patente e notória.

Leão-Baptista Alberti95 diz que na mesma prisãohaveria três lugares diferentes para as três sortes depresos mais remarcáveis, o primeiro seria destinadopara os crimes contra os costumes. O segundo se-ria para os que por dívidas merecem castigo público.O terceiro para os malfeitores pestes vivas da soci-edade: mas que seria tirania e injustiça dar-lhes aprisão por tratos e castigo: que deviam ser tratadoscom humanidade, e comodidades tais da vida, quepossam conservar as forças, e o vigor, que se há-deempregar um dia no serviço do comum: que contrao frio deviam ter fogo, contra o calor refrigério; semmau cheiro, ou corrupção, ou causado pelas imundí-cies, ou pelas exalações dos seus corpos.

Seria loucura ridícula propor de que modo se de-via construir uma prisão pública, ao mesmo tempocom as condições de conservar nela o Ar puro, e ven-tilado. A piedade, e o amor do bem comum que de-vem ter aqueles a quem estiverem as prisões a cargoporão em execução, pelo menos, o que se fez emLondres na prisão pública daquela cidade, chamadaNewgate; tudo consiste em conservar o Ar puro eventilado, com a segurança ao mesmo tempo.

Considerando o Senado de Londres a infecçãoda prisão pública, como vimos acima, consultou oMédico João Pringley, e o excelente Filósofo, Este-vão Hales de que modo se deveria purificar habitu-almente: visitaram estes dois Filósofos aquele lugar:assentaram em fabricar um moinho de vento em cimado telhado, com tal artificial que por um cano en-trasse o Ar da cidade movido pelo moinho, e pelo ou-tro saísse o Ar corrupto das enxovias, e de cada lugarda prisão saísse um canudo de metal, e atravessandoos tectos, e sobrados viessem a terminar num grandecano no telhado: este era de madeira, e comunica-seao moinho de vento: ao lado deste está outro o qualatravessa todos os sobrados até às enxovias: logo queo moinho de vento roda, o Ar entra por um cano atéàs enxovias, e sai por todos os outros canos meno-res, terminados no maior, por onde sai o Ar podre

94Ibidem loco modò citato.95De re ædificat. lib. V, cap. 13. «Sed nos Veterum mo-

res secuti... carceribus adesse oportere ubi ventri pareant,ut foco refocillentur absque fumi, & fretoris injuria».

misturado com o puro que entrou pelo dito cano: poresta circulação se conserva a Saúde daqueles presos.Esta máquina não é mais que oventiladorinventadopor Estevão Hales referido, que publicou a sua des-crição em Inglês, e se acha traduzido em Françês96,juntando-lhe o moinho de vento.

Feito este moinho com o ventilador, econtinuando-se já a limpar e a renovar o Ar daprisão, sucedeu que o carpinteiro que trabalhavana boca do canudo, que trazia o Ar corrupto dasenxovias, caiu numa febre maligna, que se comuni-cou à sua família, com tanta violência que algunsdeles morreram. O Doctor Pringley teve particularcuidado deles, e publicou a História nas TransacçõesFilosóficas97 ali se poderá ver com energia, e a maisverídica Física e Medicina a natureza do pestilentoAr das prisões, e quão pouco os Magistrados, tantoseculares como Eclesiásticos, pensaram até agora nasalubridade delas.

É certo que para renovar o Ar dos Hospitais aquelemoinho de vento junto com o ventilador é o mais efi-caz: mas prevendo as dificuldades de mandar vir deInglaterra obreiros para fazerem esta máquina, pre-vendo que é necessário repará-la muitas vezes, pen-sei que em Portugal será difícil a sua introdução: peloque imaginei que seria mais fácil introduzir o forno,ou fogão de M. Suton Inglês para purificar e reno-var o Ar daqueles lugares: se o Magistrado for tãoamante do bem público e quiser preservar parte deLisboa daquelas febres do Limoeiro, estou certo quemandará fabricar o fogão, do qual darei a descrição;e mais particularmente quando tratarmos abaixo dapureza e ventilação do Ar dos navios.

Não temo ser notado de prolixo se me demorar emfazer compreender de que modo o forno que vou des-crever limpará o Ar corrupto das prisões; se cada Ma-gistrado, juiz, e mesmo o carcereiro não ficar persu-adido da sua eficácia, e de que modo operará, receioque o tratem de quimérico e de invenção estrangeira,imprópria para se usar dela nas prisões do Reino:permitam-me os leitores que lhe renove a memóriacomo o fogo produz uma sorte de vento ou agitação.

Dizíamos acima que quando arde um forno, porexemplo, de cozer pão, se se lhe tapar a boca, e sedeixar um postigo ou buraco nela, que o Ar entrarápor ele com zunido como se fosse vento. A razãoé: porque o Ar dentro do forno estando ardente vemmais raro e mais ligeiro; que sucede? O Ar de fora, epelos lados do forno fica frio, e pesado, pelo menos

96Description du Ventilateur, par le moyen duquel onpeut renouveller l’air des Mines, des Prisons, des Hôpitaux,&c. par M. Hales, traduit de l’ Anglois. Paris, chez Poirion,1744, in 8.o.

97Vol. XLVIII, part. I, art. 6, pág. 42.

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sempre muito mais, do que aquele dentro do forno;então o Ar pesado vai cair no lugar onde o Ar esti-ver mais leve, e com tanta força, quanto mais quenteestiver o Ar dentro do forno: daqui vem que entrapelo postigo soprando e fazendo um estrondo comose fosse vento verdadeiro.

E deste modo é que se limpa e purifica o Ar dahumidade e das partículas podres: quero secar, porexemplo, o Ar de uma adega que esteve fechada pormuitos anos; quero tirar-lhe o mau cheiro e a corrup-ção que nela se gerou: o que devo fazer é mandarfazer uma chaminé nela, do modo ordinário: mandoacender fogo vivo, e com lenha seca que faça flamacontinuamente, com as janelas abertas: que sucede?O Ar dentro da chaminé e do respiro até o telhadovirá tão quente, como estava aquele do forno acima:logo o Ar da adega mais frio há-de ir a cair, e en-cher aquele lugar onde estiver mais leve e raro; maseste se aquecerá logo; pois logo virá o Ar do meio daadega a compensá-lo; e deste modo gerando-se umvento artificial do Ar daquela adega, todo virá a sairpela chaminé: mas fechemos as janelas, e as portasdesta adega de tal modo que por ela não possa en-trar um sopro de vento: neste caso logo que o Ar daadega estiver tão quente como o que estiver dentroda chaminé, se apagará o fogo, porque já o Ar estaráigualmente quente em toda a parte: suponhamos quese abra um postigo defronte da chaminé então entrarápor ele o Ar com tanta força como se fosse vento, irábuscar o Ar leve da chaminé e subirá pelo suspiro; edeste modo se secará por último, e ficará a adega semcheiro algum.

Pois o forno de ferro, ou fogão, que descrevere-mos faz o mesmo efeito que a chaminé. No celeiroda prisão, o mais sólido, perto do telhado, três ouquatro varas se havia de pôr uma caixa de ferro qua-drada, como são os fogões dos navios. O vão destefogão devia ser separado por uma grelha de ferro so-bre a qual havia de arder o carvão, ou lenha: no cimoteria um canudo assaz largo pelo qual sairia o fumo,como pelo suspiro de uma chaminé.

Aquele fogão havia de ter duas portas de ferro bemajustadas: a primeira seria tão grande como a metadeda abertura da grelha para cima: a outra tão grandecomo a abertura da grelha para baixo, que é o lugaronde cabem as cinzas: com estas duas portas abertasacenda-se fogo naquela grelha, arderá pouco: feche-se a porta de cima; que sucederá? O Ar mais frio emais pesado do celeiro virá com força ocupar aquelevazio, e ligeiro dentro do fogão, entrará pela portaaberta do lar, subirá pela grelha, arderá o fogo vio-lentamente, e todo o Ar do celeiro ainda que estivessepodre e húmido se mudaria, e limparia, e sairia com

violência, atravessando a grelha, e o fogo, sairía pelachaminé.

Pois no fundo deste fogão, onde caem as cinzas,neste lar que supomos será uma boa tábua de ferro,faço quatro buracos do diâmetro de duas ou três pole-gadas, e meto-lhe a cada um canudos de cobre, ou dechumbo, mas tão longos, que atravessem os sobradosdo edifício até às adegas, ou enxovias. Postos estescanudos bem ajustados a cada canto do lar, cerro aporta da grelha para baixo, do mesmo modo que estácerrada a porta da grelha para cima; que sucederá éforça que o Ar entre pela boca daqueles canudos eque venha a ocupar aquele lugar vazio e quente dofogão; é força que suba das enxovias, e de todos osquartos, e salas onde se terminarem aqueles quatrocanudos, ou de maior número se tantas aberturas es-tiverem no lar onde se terminarem. Uma vez queo Ar destes lugares baixos subir, do que não há dú-vida, enquanto houver fogo no fogão, levará consigoas partículas podres, a humidade, e as exalações dospresos, e este Ar se renovará pelo Ar da cidade queentrará pelas portas e janelas, ainda que com gradesda prisão: por este artifício fácil, e pouco custoso, sesalvará a vida, e a Saúde dos presos, dos Juízes, etambém da cidade, porque não se gerará a febre doLimoeiro. Deus queira que haja tanta piedade comos presos das prisões civis e Eclesiásticas de todo oReino que queiram entender os efeitos desta máquinatão simples, e que cada dia vemos e experimentamosna cozinha do mais pobre rústico.

Bem sei que me oporão o custo dos canudos de co-bre, ou de chumbo que atravessaram desde o celeiro,a cada sala, ou enxovia; bem sei que me oporão ocusto do fogão, do carvão, e da lenha, quotidiano:mas a piedade exemplar del Rei Dom Manuel, fun-dando as Misericórdias em cada vila e cidade, não re-parou nos gastos para socorrer os Povos: e este custode conservar o Ar das prisões sadio é para salvar asvidas de muitos súbditos, às vezes inocentes, aindaque presos.

Não só nas prisões se deviam introduzir estes fo-gões, mas ainda nos Hospitais, nos Conventos, emesmo nas Igrejas que são pequenas e muito fre-quentadas: e em Portugal onde o clima é mais quentepela maior parte do ano, é que se requer este refrigé-rio contínuo.

Já se poderá considerar o sumo cuidado que sedeve ter na limpeza das prisões, e sobretudo na cons-trução das latrinas ou cloacas; ou tais canos que dêemcorrente às imundícies, mandando cada dia lançarágua nelas para este efeito: abaixo falaremos de quemodo devem ser fabricadas. Seria necessário haverem cada prisão uma constante ordem da limpeza,obrigando a varrer cada dia os lugares onde habi-

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tassem os presos, borrifar o sobrado com água e vi-nagre, e o melhor seria com vinagre puro: pendu-rar em cada sala panos molhados nele; e nas entra-das defronte das grades queimar-se cada dia sem in-termissão certa porção de pólvora, para que o fumopenetrasse até à prisão: são estes defumadouros fá-ceis e pouco custosos, e os efeitos saudáveis; sãotão eficazes, que podem preservar a Saúde dos pre-sos e dos vizinhos. Persuado-me que haverá tantapiedade para conservar o Ar puro das prisões, e livredos maus cheiros, como se exercita com os presos,sustentando-os, e vestindo-os.

Capítulo XX

Da pureza do Ar que se deveconservar nas casasDepois que se descobriram as Índias Orientais, e serenovaram as ciências e as artes pela destruição doImpério Grego, começaram os habitantes da Europaa mudar parte do estado de vida que tinham conser-vado por muitos séculos. Alargaram as ruas das ci-dades, que nos tempos antigos eram muito estreitas:eram naquele tempo tantos atoleiros como ainda hojese vê na Polónia, que remediaram com calçadas; ascasas de pobres choupanas, vieram a ser de dois etrês, e ainda mais andares: de taipa que eram, co-bertas de palha, e de tábuas vieram casas de pedra,capazes de resistirem ao frio, ao calor, e à chuva: ostectos não só são de telhas sustidas com cimento, masainda cobertas de lajes: cresceu a indústria, as artes,e o comércio, e cresceram também as riquezas; daquise seguia viverem os homens com maiores conveni-ências e, por consequência, com maior limpeza: osexo, e ainda os rústicos, usam e mudam mais fre-quentemente de roupa de linho que nos tempos anti-gos; em parte compensa hoje a Saúde, que causavamos banhos públicos, dos quais usou toda a Europa atéquase o século XIV.

De todas estas causas provém que raras vezes seobserva hoje a peste na Europa, em lugar que esteflagelo destruia cada vinte e cinco, ou trinta anos aoitava, ou décima parte dos habitantes até os sécu-los XIV e XVI: como na dominação Maometana estemodo de fabricar as casas e entreter as ruas é aindaà antiga, como se vê em Constantinopla, e no grãoCairo, daqui se vê naqueles lugares, e outros muitosdaquele dilatado Império, destruir a peste tão amiúdemuita parte daquelas nações.

Além da melhor fábrica dos edifícios, e de lim-peza, os habitantes mais civilizados da Europa, ou

por luxo, ou por hábito têm mudado a dieta que ti-nham os seus antepassados, para outra mais sadia, emenos sujeita à corrupção. Porque a arte da cozi-nha prepara os alimentos de tal modo que se dige-rem mais facilmente: introduziram-se tantas bebidasquentes, como são o chá, o café e o chocolate, onde oaçucar serve de adubo abundante; tanta variedade dedoces: e como por experiências certas se sabe hojeque o açucar resiste à podridão dos nossos humo-res, daqui provém em parte que raras vezes observamaquelas terríveis epidemias de febres pestilentas.

Não obstante estas vantagens do século em quevivemos é certo que os Magistrados não decretaramaté agora todas aquelas leis que são necessárias paraa conservação da Saúde dos Povos. Por esta razãoexporemos aqui o que acharmos ser necessário paraque uma casa não cause doenças agudas, ou crónicas,e que cada qual saiba o que lhe convém para conser-var no seu domicílio a Saúde.

Não achei na antiguidade conselho mais acertadopara construir uma casa do que o de Sócrates, e querelata Xenofonte98. Dizia ele, quem quiser construiruma casa deve considerar duas coisas na sua cons-trução; a primeira que sejam úteis e a segunda agra-dáveis; consiste a utilidade que no Estio seja fresca,e de Inverno quente; o que se alcançará se o edifícioestiver virado para o meio dia; porque de Inverno osol aquece-as, e no Estio ficam à sombra; mas o edi-fício deve ser mais alto do que o daquelas que esti-verem viradas para o Norte: sirva a casa pela alegria,e pela vista dela, de divertimento, e de recreio, ondepossa contentar-se com todo o estado que lhe ofere-cer a fortuna. Ainda que os Arquitectos cuidem só daconstrução de uma casa, raras vezes houve tais quenos seus edifícios considerassem o que deviam fazerpara conservar a Saúde: se estivessem instruídos nosimportantes avisos que nos deixou Leão-Baptista Al-berti satisfariam a utilidade, e a elegância da Arqui-tectura99 quer este autor que as paredes sejam de la-drilho seco ao sol por dois anos, e que não sejam ca-lafetadas de gesso porque ofende o bofe e a cabeça:pelo menos ninguém devia habitar casa novamentefabricada, e antes que as paredes calafetadas com ocimento feito de cal e areia ou de gesso, e os tectosdas câmaras estivessem secos: sabe-se quantos ma-les causaram as exalações e os vapores da cal e parti-cularmente do gesso. Viram-se paralisias, estupores,apoplexias: e eu mesmo vi cair uma mulher sã e ro-

98De factis & dictis Socrat. lib. III, edit. Stephan. Pág.332.

99De re ædificator. lib. X, cap. 14, pág. 163. «Pa-ries omnium erit commodissimus valetudini, qui fiet crudolatere per biennium ante exsiccato, crusta ex gypso indutaærem & pulmonibus & cerebro, noxium reddit».

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busta com uma lepra por haver habitado numa casanovamente fabricada; e poderá ser que daqui saiu oprovérbio Português,casa feita, pega morta.

As paredes das casas ou de ladrilho, ou de boapedra devem ser medíocremente espessas: as muitoestreitas nem defendem do calor, nem resistem à su-cessão do tempo, as muito espessas como muralhasde castelo, são ordinariamente frias, e se não foremmuito ventiladas são húmidas: a mais sadia tapeçariaé de madeira sem pintura; depois há de panos de lã elinho; a pior de panos encerados, as casas caiadas porfora são mais frescas, que as de cantaria: pintadas denegro ou amarelo; e devem-se considerar estas cir-cunstâncias para habitá-las constantemente de Veraõou de Inverno.

Costumam em Portugal em algumas partes doReino ou por delícia, ou por necessidade construíremquartos baixos nas entradas das casas, tanto para ha-bitarem, como para evitarem os ardores do sol. Omelhor seria sempre o primeiro andar: mas quemnão tiver cómodo para viver que nos quartos baixosmande-os construir pelo menos de modo seguinte.

O sobrado deles seja sempre forrado de madeira:seria melhor que de baixo houvesse uma abóbada quecobrisse uma adega: se a não houver seja o primeiroassento de ossos queimados, ou de carvão de alturade um palmo; depois areia das bordas de rio, e umacamada por cima de greda ou de barro amassado, co-berto também com areia, e por último o sobrado demadeira. O pior pavimento para a Saúde é aquele quefaz pó e poeira; ofende a vista e o bofe; o segundo éde lajes, ou pedra de cantaria.

Que em casa alguma não haja adega sem suspiroassaz grande para que por ele possa entrar e sair o Ar;que nenhuma seja húmida, nem tenha vertente; quenelas se conserve a limpeza e a secura do Ar: há ade-gas com tal propriedade que sempre fazem tornar ovinho de mil modos, e convertê-los com menos mal,em vinagre: outras como também as casas onde apo-drecem todas as carnes salgadas: mete-se o bolor nopão, e nas mais comidas, e poucos reparam no sítio,na humidade, e na renovação e pureza do Ar, sendoa negligência delas a que faz perder aqueles bens.

Poucas casas se vêem nas províncias sem tulhas,ou celeiros para conservar as sementes: raros sãoaqueles nos quais se conserva o trigo, a cevada, aservilhas, por dois anos; daremos aqui o método de osguardar por muito tempo se os possuidores quiseremexecutar o que aqui exporei tirado de vários Autores,e da minha experiência.

Nenhuma sorte de sementes poderá jamais criarinsectos, ou ser comida de gorgulho, como tambéma farinha, e as carnes salgadas, sem humidade su-pérflua, e sem calor semelhante ao do mês de Maio.

Deste modo todas as sementes que se devem guar-dar devem secar-se bem, como a farinha, não so-mente antes que se recolham nas tulhas ou celeirosmas ainda depois de estarem encerrados. Por artifí-cio pode-se secar, e dissipar a humidade, para pre-venir a corrupção das sementes: mas nenhum seriabastante, como todos sabem, para impedir os caloresdo Estio.

Vários modos se acham nos Autores que trata-ram da economia para impedir a corrupção do Ardas tulhas e dos celeiros, ou renovando o Ar, oupurificando-o; aqui porei também alguns ao mesmointento. Consistem que a humidade que contraem assementes encerradas se dissipe, e que haja comuni-cação entre o Ar dos celeiros e o Ar exterior.

O sobrado da tulha ou celeiro devia ser sempre oude ladrilho ou de lajes: também pode ser de madeira,mas requer mais circunspecção a sua fábrica: devianeles haver uma separação por um tabuado, entre aparede e o dito tabuado, que serviria de andar: de-via sempre haver um lugar naquele celeiro vazio paraali se volverem, joeirarem e repassarem as sementes:antes que se usasse destes lugares deviam estar bemsecos, e logo depois untá-los com a mistura seguinte.

Toma-se uma grande quantidade de urina que semeterá numa talha ou tonel até apodrecer, quandoestiver podre então se lhe deitará dentro cinco mãoscheias de losna pisada; pimento em pó um arrátel,ou pimentos vermelhos feitos em pedaços o mesmopeso: uma dúzia de cabeças de alhos machucados,seis mãos cheias de arruda pisada; tudo ficará por al-guns dias coberto, e depois se lhe ajuntarão borras deazeite parte igual da urina podre; e com esta misturase lavará todo o sobrado, e todo o espaço que tivera tulha ou celeiro untando a parede até à altura deum homem; o que se fará cada mês contando desde oprincípio de Abril até o mês de Novembro, naqueleslugares que não estiverem ocupados pelas sementes.

Esta mistura impede que se não gerem insectos,como são o gorgulho e outros. Mas ao mesmo tempose requer bandejar e mover as sementes passando-asde um lugar para o outro: pelo menos cada semanano tempo dos calores acima ditos: é verdade que mo-vendo assim o trigo a poeira se levanta, e a maiorparte dela vem outra vez a cair nele: por essa razãocostumam em França fazer uma sorte de joeira planae inclinada composta de fios de ferro, tão juntos quedeitando-se o trigo com a pá em cima não passa parabaixo; passa somente o pó que cai num saco de couropregado aos caibros da dita joeira, e o trigo poucoa pouco vem descendo, e escorregando até cair nomesmo celeiro onde está o mais; deste modo o pósepara-se do trigo, e fica encerrado no saco, do qualse lança fora facilmente.

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Bem sei que será difícil compreender esta sortede joeira a quem nunca viu aqueles ralos nos quaisos jardineiros e hortelãos joeiram a terra, ou os pe-dreiros a cal; quem conceber este modo tão fácil deconservar as sementes sem poeira as guardará incor-ruptas por muitos anos, se usarem dele amiúde comodissemos.

Costumam brear as pás com que bandejam as se-mentes, do modo seguinte: tomam quatro ou cincoarráteis de pés e põem-no a derreter numa caldeira:então ali metem as pontas das pás até o meio: quandoaquela untura estiver seca então começam a padejar,ou bandejar as sementes: todas estas precauções con-correm para preservá-las dos insectos.

Mas o mais certo modo de preservar os celeirosda podridão seria abrir neles uma ou duas chaminésde M. Duhamel, das quais demos a descrição quandotratamos da pureza do Ar dos Hospitais; ou o fornocom canudos posto no celeiro perto do telhado, comestas chaminés ou fogões se renovaria o Ar dos ce-leiros; quando se passaria, e bandejaria o trigo, o pósaíria por ela: seriam tão necessárias estas chaminéscomo é necessário guardar sempre as janelas e as por-tas daqueles lugares fechados; e muito mais eficazesseriam para preservá-las se no alto deles se mandassefazer fogo no forno que descrevemos naquele lugar.

Deve compreender quem quiser guardar os seusceleiros, sem corrupção, e sem insectos, que o Arque fica entre as sementes, se se não mover e expuserao Ar livre, seco e puro, que entre eles apodrecerá; eapodrecendo já se vê que alterará as sementes, e quenelas se gerarão insectos: pelo que deve por todos osmeios cuidar que aquele Ar se mude e se renove; eque o pó que se gera nas tulhas e celeiros cada diaaumenta, e que este levando consigo humidade po-dre altera as sementes: aquela mistura prevê que senão gerem insectos, mas não é bastante para impedira alteração, ou o princípio da podridão; por isso é ne-cessário movê-lo, expô-lo ao Ar puro, e para renovar-se, ficando as janelas fechadas, requerem-se aquelaschaminés que dissemos.

Outro modo há mais fácil de preservar as sementesdo gorgulho, dos ratos e outros insectos; é enxofrá-lo, ou defumá-lo como dissemos acima se deviampurificar os vestidos e as camas dos enfermos nosHospitais. Mas é necessário saber que Estevão Ha-les100 observou que as sementes defumadas com en-xofre que perdem a virtude de produzir: semeoutrigo, cevada, aveia, e outras sementes que tinha dan-tes defumado com enxofre; semeando-as depois, ne-nhuma nasceu; daqui concluiu com razão que aqueleque quiser semear que não deve enxofrar as sementes

100 Expériences Physiques traduit de l’Anglois.Paris,1741, in 8.ochez Rollin fils. Dissertat. III, pág. 115.

do modo que dissemos: mas no caso que as queiramandar fazer em farinha que poderá seguramentedefumá-las uma e muitas vezes com enxofre sem lhecausar a mínima alteração, porque o pão que dela sefizer será tão bom como outro qualquer.

Com esta advertência quem quiser defumar comenxofre uma tulha ou celeiro pode usar do modo quedissemos acima se purificavam os vestidos dos en-fermos, não sendo mais necessário que pôr dentro dacaldeira de ferro o enxofre em pó, e meter dentro umabala de artilharia ou um grande ferro em brasa; fecharportas e janelas, tão cerradas, que o vapor do enxo-fre penetre por tudo: tendo cuidado de sair quantoantes daquele lugar para não sufocar-se, pelo fumoreferido101.

M. Delamare102 traz os decretos que obrigam osproprietários de cada casa em Paris a fazer latrinas eoutros mais para que ninguém deite das janelas imun-dície alguma, nem águas sujas. É tão necessária, etão útil a limpeza em cada casa que não necessita-ria o Magistrado cuidar nesta matéria se cada Pai defamílias cuidasse tanto na conservação da Saúde dasua como em governá-la. Quaisquer inconvenientesque esta limpeza tenha, são muito maiores aqueles deperder a Saúde, e o vigor. Quem tiver a peito a suaconservação e da sua família deve mandar fazer latri-nas em sua casa: qualquer pedreiro as saberá fazer,advertindo porém que sejam feitas de modo que de-las se levante um canudo quadrado feito de ladrilhoe que suba até o telhado, para que sirva de suspiro,como uma chaminé, não só para sair por ele o maucheiro, mas também para se limpar; e o modo é muitofácil.

Quando uma tal latrina for construída com sus-piro, ou chaminé que saia do lugar mesmo, e quesuba até o telhado, não há mais que lançar dentro da-quele lugar onde se juntam as imundícies um bucho

101Depois de estar escrito este tratado li, noJournal deVerdun, que se publica cada mês em Paris, na pág. 281 e282,daquele que se publicou no mês de Outubro 1755, oque comunicou ao público M. Revel cura de Ternay contraos danos que causa ogorgulho: lê-se no lugar citado, quequando as tulhas, ou celeiros estiverem vazios, depois delimpos, se devem juncar com bastante quantidade de ramos,e folhas da árvoreBuxo, e deixá-las assim ficar até o tempode enchê-las: então amontoar-se-ão ao longo das paredes,pendurando das traves, caibros e portas, muitos ramos damesma árvore, e entupir as fisgas e buracos das paredes comas folhas verdes: as suas exalações, não só matam o gorgu-lho, mas ainda preservam as tulhas dele; o Autor afirmaque por seis anos tivera experiência deste efectivo remédio,e que não necessitara de outro para conservar o seu trigoisento destes insectos. Deve-se renovar cada ano os ramose folhas da dita árvore, e que fiquem sempre na tulha ouceleiro cheio, ou vazio.

102Traité de la Police, tom. I, pág. 530.

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de carneiro, ou dois, cada dois ou três dias, ou pelomenos cada semana: toda aquela matéria converte-seem poucos dias em exalações que sairão pela cha-miné, e deste modo se conservará quase limpa portodo o ano: quem considerar que os excrementosdos carneiros, detidos ainda nas tripas não são maisque erva, não totalmente alterada pelo animal, e quemisturando-se com matéria podre que há-de ferverlogo, e subtilizar-se, conceberá facilmente que tudose dissipará em exalações: mas a experiência é a quedecide, e por experiência é que me atrevo a escreveresta notícia.

Se a Academia Real das Ciências não conside-rasse a utilidade imensa que retira o público da lim-peza e da pureza do Ar não mandaria imprimir oque M. Duhamel sócio ilustre dela lhe comunicounesta matéria, que parecerá aos ignorantes indignade nomear-se. No lugar citado abaixo103 ver-se-ão asprecauções que se devem ter quando se mandaremconstruir as latrinas: tudo consiste que o buraco doassento delas não corresponda em linha direita coma cova: que a cova há-de ter dois buracos, ou comu-nicações; um com o buraco do assento, e que há-deser mais estreito do que o outro que comunicará coma chaminé que sair da mesma cova. Deste modo omau cheiro não se fará sentir, nem molestará jamaisa quem habitar muito perto.

É impossível que o bom ou mau Ar de uma casanão contribua para a boa, ou má saúde: deve ter tan-tas janelas, chaminés, e portas que possa no Estiofazer a casa prespirável, e no Inverno agasalhada: or-dinariamente em Portugal poucas são as salas, e ascâmaras com chaminés, considerando os Arquitectosnão serem necessárias, quando o clima é tão tempe-rado: mas é engano, elas não só podem servir paraaquecer, mas também para refrescar e renovar o Ar:no grão Cairo, clima ardente não há casa sem umasorte de chaminé para renovar, e refrescar o Ar, deoutro modo sufocariam os habitantes: já dissemospara que lado deviam estar as janelas viradas para sercasa quente, ou fresca: já dissemos que não convémestarem viradas para tanques de água, rios, ou mar,e tão perto, que o reflexo da luz do sol dê nos olhosdos moradores, o que faz grande prejuízo à vista.

Ordinariamente às câmaras para dormir e habitarnão são proporcionadas as salas: todos por se repa-rarem contra o frio as querem pequenas e baixas: oque é nocivo; porque o frio jamais pode causar tantomal como o Ar sufocado: devem ser as câmaras prin-cipalmente para dormir assaz espaçosas, à proporçãodas salas, e com o tecto à proporção da grandeza doquarto: se forem pequenas e de tecto baixo, é impos-

103Histoire & Memoires de L’Académie des Sciences,1748, pág. 8.

sível que o Ar não se corrompa, principalmente notempo de doença, ou se nelas habitar muita gente.

A casa que for continuadamente habitada, o Arserá nela mais quente, mais puro e mais seco do quese o não fosse; enquanto se habita uma casa os habi-tantes fazem fogo nela, a humidade dissipa-se; a lim-peza é maior, o Ar sempre se move, sacode e renova,ou pela limpeza ou pelas janelas, portas e chaminésabertas: já se vê quão erradamente fazem aqueles queentram numa casa que esteve por algum tempo cer-rada, ainda que seja por uma semana, sem primeiroa mandar limpar, fazer fogo nela, ainda que seja notempo dos maiores calores: é força que ali o Ar sejahúmido, corrupto, e sufocado, e que pela respiração esuperfície do corpo se comuniquem estas perniciosasqualidades.

Tanto mais perniciosa será uma casa que esteveencerrada, quantas mais adegas, poços, cisternas,tanques, fontes de repuxo e arvoredos tiver dentro ouperto dela: aqueles que têm quintas sem precauçãoalguma vão morar nelas na intenção muitas vezes derestabelecer a sua Saúde: e ordinariamente nelas ga-nham febres intermitentes, e outros males, sendo acausa o Ar corrupto daquelas casas ou palácios. Setivessem a precaução de mandar abrir todas as jane-las de dia; mandá-las limpar desde as adegas até osúltimos quartos, esfoliar paredes, e os tectos, lavaros sobrados, e esfregá-los, mandando acender fogopor todo o dia nos lugares onde se pudesse acen-der, ou queimar pólvora cada dia em cada quarto, ouperfumá-las com enxofre, é certo que não deviam te-mer os certos danos que causarão sem estas precau-ções.

Servem as quintas para divertimento e desenfado,e por esta razão se edificam sempre com negligênciapara conservar a Saúde: como tenha varandas, eira-dos, jardins com tanques, fontes de repuxo, e cas-catas, como esteja cercada de bosques, de pomares,de matos para a caça; como tenha rios, e lagos nosquais se possa pescar, ou ver pescar das varandas;esta quinta passará por deliciosa; e na verdade o será,se as delícias contribuíssem igualmente para a Saúde:mas vimos acima quando falamos dos sítios mais ap-tos para fundar vilas, e cidades, quão perniciosas se-jam estas vantagens artificiais, ou da natureza parapreservar-se de doenças.

Refere Cheyne104 que passeando Guilherme ter-ceiro Rei de Inglaterra numa deliciosa quinta emHaya, na Holanda, sua pátria, dissera para o seu Mé-dico chamado Ratlieff, olhando para um dilatado ca-nal de água todo coberto de árvores pelos lados, queaquele sítio era o mais admirável do mundo: e que

104Tractatus de infinnorum sanitate tuendâ. Londini,1724, in 8.o.

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o Médico respondera «se eu fora um Senhor comovós havia de mandar cortar aquelas árvores deitá-lasdentro, entupir o canal, e fazer dele um bom jardim».Falava o Rei como quem não pensava mais que no di-vertimento, e o Médico como quem só tinha a peitoa Saúde.

Deste modo se poderá responder a todos aquelesque amarem as quintas por delícia e com razão por-que a primeira da vida é a Saúde vigorosa: sem elaque servem não só as quintas dos nossos tempos, masainda aquelas casas de campo de Luculus, Crassus, eCícero?

Temos até agora mostrado aqueles meios com osquais se pode conservar o Ar puro das vilas, das cida-des, das Igrejas, dos Conventos, dos Hospitais, pri-sões, e das casas particulares; que é o mesmo quetratar do principal ponto da conservação da Saúdedos Povos no tempo da paz: mas como o legisladordeve dar leis aos seus súbditos com que se possamgovernar e sustentar tanto no tempo da paz como noda guerra, assim o Médico como legislador do corpohumano deve indicar os meios mais eficazes, maisfáceis para conservar a Saúde dos seus compatriotasno tempo da paz e no tempo da guerra; ainda que umestado viva muitos anos sem este flagelo do génerohumano, deve sempre estar preparado como se a ti-vesse: porque a defensa é de todo o tempo, como aprecaução, para não cair no precipício: por esta razãotratarei de que modo se deve conservar a Saúde dossoldados, tanto nas guarnições como em campanha.

Capítulo XXI

Da causa das doenças dosSoldadosA Vida dos Soldados tanto em campanha, guarni-ções, ou nos quartéis sempre é diferente da dos maisvassalos de um Estado. Geralmente ou estão expos-tos às inclemências do Ar, ou vivem juntos. Destasduas causas procedem as doenças que os destroem; aprimeira que produz os males causados pelas altera-ções do Ar, e a segunda as febres do contágio.

Já que tive bastante experiência da vida militarcomo Médico permita-se-me que seja mais difuso re-latar os perigos dela: ou porque sofri parte deles, oupor humanidade. Verei se posso indicar os meios,que os faça mais toleráveis; e estou certo que os Mé-dicos ou Directores dos Hospitais, e se me permiti-rem os mesmos Generais, acharão aqui, se não o re-médio dos males que virem e experimentarem, pelomenos as advertências de os evitarem.

A temperatura do Ar que reina ordinariamente naPrimavera em quase toda a Europa é quente e hú-mida: pela manhã, e, ao pôr do sol, ordinariamente,fria: daqui provêm as doenças inflamatórias, reu-matismos, febres intermitentes inflamatórias e esqui-nências. As mudanças contínuas do Ar quente e hú-mido pelo espaço de vinte e quatro horas fazem au-mentar e suprimir no mesmo tempo a transpiraçãodos corpos humanos. Como o Ar naquela quadra doano está cheio de vapores, como os Soldados estãodia e noite expostos a ele, nas sentinelas, nas guar-das, nas rondas, e nas patrulhas; como as barracassempre estão húmidas, ainda mesmo as camas nosquartéis ou casernas, daqui vem que estas continua-das alterações tanto do Ar como dos corpos precipi-tam os Soldados em doenças inflamatórias.

Daqui se sabe quanto mais cedo sair um exércitoem campanha, tantos mais enfermos haverá nele atéos fins de Maio, ou meado de Junho; que quanto maistarde começar mais raros serão os enfermos.

A segunda temperatura do Ar que experimentamos Soldados continuamente é aquela depois dos prin-cípios do mês de Maio, até quase os fins do mês deJulho: os calores então são continuados; as noites porpequenas não são frias: nesta cisão nunca se obser-vam nevoeiros: os orvalhos são moderados, e aque-les que caem então não são ordinariamente nocivos;o calor não é misturado com humidade notável, nempodridão. Daqui vem que nestes meses os exérci-tos são os mais sadios, mais capazes de fadigas, e desofrer todos os trabalhos da guerra: por acidentes ex-traordinários, como se estes meses fossem frios, ouchuvosos, poderá haver mais doenças do que referi-mos: como também se acamparem em lugares ala-gados, perto de paules, ou águas encharcadas, ou de-baixo de bosques, é certo que a atmosfera adquiriráqualidades nocivas.

As doenças nestes meses são ordinariamente fe-bres, reumatismos; mas sem malignidade; e se os en-fermos forem tratados com método e ciência poucose podem temer os maus sucessos.

Os grandes calores, como os grandes frios sem-pre começam depois dos solstícios: os grandes calo-res, ou grandes frios continuados por si sós não sãotão nocivos como se crê vulgarmente; mas raríssi-mas vezes se observam, sem serem acompanhadosde humidade considerável: por esta razão os mesesde Agosto, Setembro, e em Portugal os princípios deOutubro, são os mais doentios, e fatais aos exércitos.

As noites dos meses de Agosto, Setembro, e Ou-tubro são já maiores, que as de Junho; são mais friase húmidas à proporção do calor dos dias daquelesmeses: em vinte e quatro horas sofre o Soldado umcalor ardente, relaxa-se o corpo; e com a humidade,

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sereno, e orvalho, e frio depois de pôr-se o sol até àmadrugada, suprime-se a transpiração.

Vimos acima quando falamos das qualidades doAr que duas coisas eram potentíssimas para gerar apodridão: a primeira o calor tão intenso como o docorpo humano; a segunda a humidade. Estas duascausas vemos constantemente juntas num exércitonesta quadra do ano em campanha: todos sabem osardores que experimentam então os Soldados; maspoucos a humidade que reina nas barracas, os va-pores, e exalações que se levantam da terra cobertadelas esta humidade, com a transpiração, que saidos corpos dos Soldados, fica detida e encerrada namesma barraca: mas o Soldado é obrigado a dormire respirar aquele mesmo Ar.

Muito pior será se o Soldado suado e fatigado sedeitar em cima das relvas à sombra, e muito pior coma cabeça e o corpo expostos ao sol: vimos acimaque a terra, e principalmente com erva, transpira umaterça parte mais do que a água exposta ao mesmo ca-lor da atmosfera. Enquanto os campos conservarem averdura, e as árvores folhas verdes; enquanto os rios,as fontes, e os lagos, ou lagoas, conservarem águasfrescas, e sem serem alteradas pelos insectos ou po-dridão, sempre se levantarão assaz de vapores que fa-çam a atmostera húmida, e o calor daquela quadra doano, não disporá os corpos a apodrecer. Os sítios le-vantados, os montes, e as serras onde ordinariamentereinam os ventos ou pela manhã, ou depois do meiodia, poderão diminuir em parte as impressões que fa-zem nos corpos humanos os ardores do sol com aatmosfera húmida. Logo que faltam os ventos, logoque os bichornos começam, apenas podemos respi-rar, sentimos uma grande fraqueza, sendo a causa quea atmosfera não se ventila; então começam os nossoshumores a apodrecer; aparecem então pelos fins deJulho, ou princípios de Agosto febres intermitentes,febres ardentes,cholera morbus, disenterias, doen-ças, todas filhas da podridão dos humores.

A secura do clima, junta com os ardores do solnestes mesmos meses do Estio, causam outros malesmais violentos, mas que são sempre acompanhadoscom a podridão dos humores. Se os campos vieremsecos, se a terra se abrir com gretas tão profundasàs vezes, como se vêem no Alentejo, que parecemabismos; todas as árvores sem folhas, ou tão secas,como se fossem torradas; se o terreno for de areia,rochedos, sem ladeiras, nem montes, rios, nem la-gos, então os ardores do sol secam e destroem a fá-brica dos nossos corpos, dissipa-se o mais subtil doshumores, vêm acres, apodrecem por último, muitasvezes sufocam-se num instante, ou fazem-se conges-tões mortais no cérebro e nos bofes: cada dia vêem-se desastres nos segadores, e malhadores que se dei-

tam a dormir expostos ao sol: morrem apoplécticos,ou com uma inflamação violenta do bofe. Nos deser-tos da Arábia, e em alguns lugares do Golfo da Pér-sia, são os ardores do sol tão activos que se gera umAr, ou vento tão adurente que mata num instante; oshabitantes chamam-lheSamiël, ou vento pestilento:como todos aqueles lugares são secos áridos, a maiorparte areais, não recebe deles a atmosfera a humidadenecessária à respiração salutar do corpo humano.

Ou que o exército sitie uma praça, ou que estejaacampado, ou ainda mesmo em guarnição nesta qua-dra do ano é força que se gere muita corrupção no Are, por consequência, doenças e enfermidades.

Já vimos os efeitos do calor e da humidade da at-mosfera; como cada dia se vai aumentando até osfins de Agosto a podridão será maior: as águas porse haver delas evaporado o mais subtil vêm turvas,limosas, com os excrementos da roupa que se lavanelas e outra infinidade de matérias animais que ne-las se juntam, como são o resto da comida de uma ar-mada, os animais mortos, os seus excrementos; todoo terreno coberto de barracas, onde o Ar sempre éimpuro, daqui vem que cada dia se aumenta a podri-dão, ao passo que os calores acharem as disposiçõesque relatamos.

Neste tempo, quero dizer, pelos fins de Agosto ouprincípios de Setembro todas as doenças que reinamsão causadas da podridão dos humores; as feridas asfracturas e deslocações vêm mortais porque os hu-mores do corpo ou estão já sumamente alterados, ouquase podres: neste tempo digo a mortandade de umexército sempre é maior: neste tempo poderá calcu-lar o General que terá pelo menos a décima parte en-ferma e incapaz de pelejar: às vezes viu-se mais daquarta parte de todo o exército.

A quadra do ano mais fatal para um exército é ado Outono. Começa desde os fins do mês de Agostoaté os princípios de Novembro. Neste tempo os diase as noites são com pouca diferença iguais: daquivem que as noites são sempre mais frias que os dias:ao passo que os dias são mais quentes; o sereno eos orvalhos são à proporção mais frios e abundantes:os nevoeiros, às vezes, juntam-se a aumentar a hu-midade e a podridão da atmosfera, principalmente seo exército estiver acampado nos bordos baixos dosrios, junto de lagos ou águas encharcadas, em cam-panhas rasas, e longe de montes ou serras, debaixoou junto de bosques.

As chuvas moderadas por um dia ou outro refres-cam o Ar e principalmente depois de alguma trovo-ada, renova-se e purifica-se: mas as chuvas continua-das aumentarão mais a podridão dos humores. A hu-midade das barracas, dos vestidos, dos sapatos, dor-mir e estar exposto ao sereno, e aos orvalhos, às ve-

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zes obrigados os soldados a dormirem por terra, hú-mida e molhada, todas estas alterações aumentarãoas enfermidades e doenças que dissemos acima.

Poderá considerar o Médico do exército a facili-dade, ou dificuldade, que terá para curar as feridaspela disposição que terão os humores para apodre-cer: quando observar calores continuados por trêsmeses com humidade excedente e podridão da at-mosfera pelo terreno, águas, bosques, charcos, pau-les, ou falta deles, então poderá calcular não só onúmero dos enfermos que terá neste tempo, mas adificuldade ou facilidade de os curar.

Poucos foram os Autores que escreveram comaplauso da Conservação da Saúde dos exércitos, eda cura das doenças que os destruíam. Muitos Médi-cos escreveram da febre Hungárica, ou das doençasque destruíram os Exércitos Imperiais, que militaramcontra os Turcos naquele Reino. Mas somente JoãoPringley, Físico-mor do Exército Inglês, na Guerrada Flandres em 1742. Foi aquele que desta matériacom sumo proveito do género humano escreveu o li-vro citado abaixo105.

É notório a todos aqueles que militaram na Hun-gria, Rússia, Flandres, e em Itália que a maior partedos exércitos perecem depois do meado de Agostoaté os princípios de Outubro pelas febres ardentes,terçãs dobres, perniciosas e disenterias, e que o nú-mero destas doenças sempre excede a metade daque-les mortos na guerra, e dos feridos. Até agora foiopinião constante dos Oficiais Gerais, e mesmo dosMédicos militares, que os frutos verdes, ou maduros,a grande quantidade de vinho e de aguardente, de queusavam os Soldados, eram a causa daquela mortan-dade; o que é engano manifesto; e que a experiênciame fez ver evidentemente.

Se considerarmos atentamente na natureza e efei-tos dos frutos do Outono, são antes contra a podridãodos humores que para produzi-la, principalmente co-midos com pão. Eu vi no ano de 1736 no sítio deAzoff cair em disenterias, e febres remitentes mor-tais a terça parte do exército Russo sem haver comidonaquele deserto o mínimo fruto do Outono. Sei quenas duas campanhas pelos bordos dos rios Niepper eNeister até quase os bordos do mar Negro, que fize-ram os Russos, mais da terça parte dos Soldados, oumorreram ou adoeceram de disenterias mortais, semhaverem tocado fruto algum do Outono.

É falsíssimo que o vinho e a aguardente, nemainda bebida com excesso, causem disenterias e fe-bres castrenses: estas bebidas tomadas com modera-ção são o melhor remédio contra elas; e se com ex-

105Diseases of the Army. London, 1751, in 8.o.

cesso se beberem poderão causar outros males, masjamais disenterias, e febres podres.

Aumentará a mortandade dos Soldados nestetempo do Outono se acamparem no mesmo lugar pormuitas semanas; e muito mais se se prolongar a cam-panha até começarem as chuvas, e as noites frias:sendo uma regra geral para a conservação dos exérci-tos sair em campanha o mais tarde, e acabá-la o maiscedo, quero dizer pelos fins de Setembro.

Não consideraremos o Inverno pela quadra doano, mas só pelo tempo que o exército ficar nos quar-téis; estende-se ordinariamente depois de quinze deOutubro, até quinze de Março ou de Abril. A tempe-ratura então dominante do Ar é fria e húmida: massaudável se for moderadamente fria e seca, sendo ahumidade dominante em todas as sessões a qualidademais contrária à Saúde dos Soldados.

As enfermidades neste espaço de tempo são ge-ralmente inflamatórias; mas misturadas com as en-fermidades do Outuno, muitas são recaídas das fe-bres intermitentes ou quartãs, que aparecem no In-verno debaixo da forma de diarreias, icterícias e hi-dropesias: destas duas sortes de doenças, quero dizeragudas, quais são os pleurizes, esquinências, tosses ecatarros inflamatórios, e crónicas estão os Hospitaismilitares ocupados então.

Terminam ordinariamente estas doenças por su-cessos funestos, ou estendem-se até o mês de Maio.Aqueles enfermos com disenterias, febres ardentes,e febres intermitentes, que escaparam no Outono, fi-cam sempre dispostos a recaírem no Inverno logoque se esfriam subitamente, ou que se expuseram aovento e à chuva; então aparecem estas doenças com-plicadas de inflamação causadas do frio e de podri-dão que ficou adormecida com a mudança do Ar doInverno: então sucedem tosses contínuas que termi-nam em supurações do bofe, em hidropesias, às ve-zes em febres intermitentes, que aparecem pelos finsde Fevereiro, e se curam às vezes pelo vigor da natu-reza, com o calor constante da Primavera por todo omês de Abril e Maio.

Temos mostrado a que doenças estão sujeitos osSoldados em todas as quadras do ano, ou eles estejamem campanha, ou em quartéis. Agora veremos asdoenças a que estão expostos, e que se geram porestarem juntos tanto nos quartéis, como na campanhaem barracas, e por último nos Hospitais.

Vimos acima que o Ar, que uma vez foi respiradopor um animal, fica destituído daquela vitalidade quetem, e que serve para prolongar a vida. Vimos que seum homem respirar dentro de uma talha tão tapadapelo pescoço que não dê acesso ao Ar exterior quenão respirará sem ânsia por um minuto de tempo: secontinuar a respirar o mesmo Ar morrerá sufocado

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em dois ou três minutos. As experiências relatadasde Estevão Hales confirmam o que venho a dizer.

Morre o homem sufocado por duas causas, a pri-meira porque o Ar uma vez respirado fica destituídodaquele fogo elementar que está espalhado por toda aatmosfera. A segunda que o Ar que foi uma vez res-pirado trouxe consigo o bafo, trouxe consigo aque-las partículas podres que se separam no bofe, de talmodo que fica incapaz de prolongar a vida ao animal,se o respirar segunda vez: morre porque o sangue nobofe não se depura dos hálitos podres que a cada pul-sação saem do bofe: morre porque no Ar já não háaquele espírito de vida que vivifica os animais: morreporque as partículas podres com que está o Ar embe-bido aumentam a podridão do animal quando as tornaa respirar.

Quisera, sem comover-me, pôr diante dos Médi-cos, dos Cirurgiões e, sobretudo, diante dos Gene-rais, o estado eminente da morte a que estão tão sujei-tos os Soldados, ainda muito longe do inimigo: mascomo o vi e lamentei muitas vezes, perdoe-me quemler este capítulo se nele tiver mais parte a humani-dade do que a ciência. Consideremos dez, vinte, e, àsvezes, uma companhia inteira de Soldados dormindonum aposento, ou caserna, com as portas e janelasfechadas; consideremos os hálitos e vapores que selevantarão daqueles corpos, ordinariamente moços,robustos, com camisas sujas, meias, com sapatos mo-lhados, e às vezes os vestidos; que insuportável seráo cheiro por toda a noite; que hediondo pela manhãlogo que se abrem as janelas?

Consideremos na campanha dez ou doze Soldadosencerrados numa barraca abotoada, em lugar tão es-treito, que cada um toca ao outro, depois de havercumprido de dia as obrigações de Soldado, cheio desuor, de poeira, sem mudar, nem descobrir parte al-guma do seu corpo, consideremos o Ar daquela bar-raca; estará cheio de exalações fetidíssimas, ingratas,e que farão nausear ainda a quem estiver acostumadoa semelhante vida.

Mas o mais lamentável é ver e tratar os Hospi-tais tanto nos quartéis, como da campanha: estessão sempre com excesso infinito mortíferos, se neleshouver muitos feridos, e reinarem disenterias. Quemviu mil enfermos metidos em quatro ou cinco salas,sem limpeza do suor, com sangue coalhado das feri-das, de matéria, e das matérias podres delas, às ve-zes misturada com os excrementos de todo o corpo,quase todos febricitando, sem mudar nem de sítio,nem de cama, nem de Ar, enjoando a cada instante,é força que considere que naquele lugar para acabara vida, não se necessita de outra doença, que respiraraquele Ar.

Quem considerar atentamente que o Ar uma vez

respirado fica não só incapaz de continuar a vida dequem o respira, mas que além daquele defeito, temoutro que é fazer apodrecer tudo o que tocar, verálogo como os humores dos Soldados estão expostospor esta única causa, mais facilmente a apodrecer,que pelas fadigas, pelos ardores do sol, e pelas neves,e chuvas. Lamentei muitas vezes que não tinha pala-vras assaz enérgicas para persuadir este dano de dor-mirem, e comerem muitos juntos, fechadas as por-tas e as janelas: lamentei que não aprendiam a evi-tar estes danos pelos funestos sucessos, que sempreatribuíam a outras causas, por exemplo que a farinhaera podre, que o pão era mal cozido; que as marchasforam forçadas, ou pelos calores, ou pelas neves: écerto que destas causas poderão resultar muitas do-enças; mas nenhuma tem, nem terá jamais a maligni-dade do Ar respirado, do Ar já podre, que faz apodre-cer o mais subtil, e o mais activo dos nossos corpos,se viverem em quartéis, barracas, ou Hospitais comovivem ordinariamente os Soldados.

Do Ar respirado, do Ar destituído da vitalidade,do Ar embebido do bafo e vapores do bofe como dofumo ou transpiração que sai de toda a pele humana,das partículas podres que se levantam das feridas, eprincipalmente dos excrementos dos disentéricos, segera aquela indomável, e mortífera febre de contágio,do qual demos a história no capítulo como se deviacorrigir o Ar das prisões.

O que faz perecer tantos Soldados desta febre é onão ser conhecida pelos Médicos; entra no Hospital,por exemplo, um Soldado com uma terçã, observao Médico dois acessos dela, regulares, e conformea sua natureza; aplica-lhe os remédios, que lhe con-vém, e depois do quinto ou sexto dia repara que esteenfermo está muito abatido, que delirou, e não dor-miu, que começa a tremer, pensou o Médico em febrecontagiosa? Não. Cuida que é uma febre intermi-tente, que aqueles sintomas mostram ser perniciosa,e que não mudam a primeira indicação; miserável en-fermo? Entrou com uma febre benigna, e o Ar cor-rupto do Hospital, do campo, ou da prisão, produziunele em quatro ou cinco dias outra febre diferente daprimeira, e tão diferente, como ela é mortal, e a pri-meira benigna.

Assim entram os feridos sem perigo de vida: masno Hospital vêm adquirir esta febre contagiosa cau-sada pelo Ar respirado e podre: depois dos primeirosdias caem na febre da prisão ou contágio, vêm a mor-rer dela, e o cirurgião e o oficial acusa a letalidadeda ferida. É verdade que as feridas nestes Hospitaisonde reside esta febre, facilmente caem em gangrena;os ossos descobertos do pericrânio, ou do periósteo,como os tendões secariam em poucos dias; parecemferidas ervadas, e principalmente aquelas de tiros de

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bala, porque o Ar respirado e podre tudo converte empodridão.

Parece-me que qualquer ficará persuadido dosumo dano que causa o Ar respirado, podre e encer-rado para viverem nele e convalescerem os Soldadosou nos quartéis ou na campanha; e se universalmenteno moral é verdadeiro o judicioso reparo de Plínio106

com maior razão se pode dizer «Meu Deus quantosmales provêm ao homem, nascidos do mesmo ho-mem»!

Capítulo XXII

Meios para prevenir as doenças refe-ridasÉ superior a toda a precaução regrar uma multidãode homens, ainda na mais estrita disciplina, sem queneles haja doenças e enfermidades. O que se podepretender é que pelos meios mais a propósito, execu-tados pelo poder da disciplina militar, a maior partedeles fique isenta dos maiores males ou da morte.Não será jamais bastante toda a diligência e capa-cidade dos Médicos e Cirurgiões se o exército não ti-ver regramentos de guerra determinados a este efeito,como tinham os Romanos e têm hoje algumas naçõesque conheço107. Nem estes bastarão ainda se os Ca-pitães Generais não insistirem na observância; consi-derando que nenhuma empresa poderão intentar, ouconseguir, sem o vigor dos Soldados; sem conhecerem que tempo, em que clima, em que sítio, terá oexército mais ou menos combatentes.

Já todos os Oficiais militares têm cuidado não sóde evitarem o ardor do sol depois das nove horas damanhã, até às cinco da tarde; mas ainda o ordenamaos Soldados: por essa razão exercitam-se, e mar-cham depois de nascer o sol até que seja molesto oseu calor, e a mesma temperatura de Ar observamde tarde. Já castigam levemente àqueles que se dei-tam nas marchas pelos caminhos, ou nas relvas, ouque dormem fora das suas barracas. Copiarei Vege-cio108, Autor tão instruído das leis militares de Roma,

106At Hercules homini plurima ex homine sunt mala! lib.VII, præfatione.

107Ordonnance du Roi portant Réglement concernantles Hôpitaux militaires, du 1 Janvier 1747. Paris, del’Imprimerie Royale, 1747, in 12.o.

108Nunc... «quemadmodum sanitas custodiatur exercitusadmonebo; hoc est, locis, aquis, tempore, medicina, exer-citio... Ne aridis, & sine opacitate arborum, campis, autcollibus, non sine tentoriis, æstate milites commorentur. Netardius egressi, & calore solis, & fatigatione itineris con-trahant morbum, sed potius in æstate, luce, coepto itineread desinata perveniant». Lib. III, cap. 2

como judicioso, nesta parte pertencente à conserva-ção da Saúde, mais comentando-o neste tratado doque traduzindo-o.

Mas os ardores do sol ainda que sofridos por pou-cas horas sempre são mais insuportáveis nas marchasque no campo: o peso das armas, bandoleiras e mo-chila esquenta e fadiga tanto o Soldado como o Ardo mês de Abril ou de Maio: todo o cuidado con-siste, então, no Soldado não se esfriar de repente: jáse sabe o dano que causa beber água fria, e mesmo ovinho, suando, se imediatamente deixar de caminharou exercitar-se violentamente; por precaução acer-tada seria melhor não beber naquele estado, mais doque alguma colher de aguardente, ou misturada comágua: abaixo falaremos mais largamente da bebidados Soldados.

Parar de repente, desabotoar os vestidos, exportodo o corpo coberto ou descoberto ao vento e Arfresco, vindo fatigado e suado, é tão nocivo comobeber frio naquela postura. Mas o que sucede cadadia aos Soldados nas marchas é de igual prejuízo àsua Saúde. Chegam a uma vila dão-lhe o bilhete dequartel, já o patrão nomeado o aceita, já vai requererdo Juiz a sua preeminência ou imunidade, já por va-lia muda o bilhete entregue e dá outro aos Soldados,em lugar do quartel em primeiro lugar assinado.

Por todo este tempo está o pobre Soldado deitadoou sentado na rua, cansado, fatigado e suado, ordina-riamente ao sereno por uma, e às vezes mais horas,enquanto o patrão prova que é nobre, e que deve ficarisento da passagem: o que sucede é que o miserávelSoldado ganha uma febre diária pelo menos, às vezesuma febre contínua, e outras um reumatismo.

Vi eu também em outro Estado que logo que daCapital da Província se ordenava ao Juiz do lugar,vila, ou cidade aquartelar por uma ou duas noites,um ou dois Regimentos com tantos Soldados e Ofi-ciais, que o Juiz era obrigado dois dias antes de che-garem escrever em cada porta principal de cada casacom um pedaço de greda branca o número dos Sol-dados edos Oficiaisque se aquartelariam nelas, como nome do Regimento. Entrava na vila, ou cidade oRegimento, ou Regimentos marchando, e sem desfi-lar iam entrando tantos em cada casa, como estavamescritos nas portas, e do mesmo modo os Oficiais.Deste modo, poupava-se a Saúde e o tempo do pobree fatigado Soldado.

Tanto quanto o serviço militar o permitir seriaconveniente que todo o trabalho militar começasseantes de nascer o sol: aquele fresco da manhã for-tifica o corpo, já relaxado no dia antecedente pelocalor. Todo o trabalho então ainda que penoso serámais suportável que no resto do dia. Esta será, podeser, a razão porque disparam uma peça de artilharia e

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soam a alvorada ao romper da alva nos campos mili-tares.

Como nos climas setentrionais se mudam as sen-tinelas cada quarto de hora nos rigores do Inverno,assim seria necessário mudá-las tão amiúde nos cli-mas austrais, como são os das Espanhas e de Itáliameridional, quando os calores são intensos.

Como também nos mesmos climas frios dão capo-tes às sentinelas contra a inclemência do frio, assimtambém seria necessário dar tais chapéus forrados debarretes de couro, ou feitos de papel branco em pasta,que servissem de casquete; o que defende a cabeçaadmiravelmente dos raios ardentes do sol.

Não é só por honra que os Orientais cobrem a ca-beça com aquele avultado turbante branco: é tambémpara defendê-las dos ardores do sol. Um homem ves-tido desta cor não sente tanto calor como aquele queestiver vestido de negro ou de outra qualquer. Osraios do sol espalham-se na cor branca, e na negraconcentram-se.

O soldado de sentinela que estiver parado e imóvelsentirá os ardores do Sol com muito maior dano daSaúde do que passeando ou caminhando. Nenhumasorte de vestido defende mais o corpo do excessivocalor do que o couro, ou peles curtidas; todos sa-bem quão estimados são para este efeito os coletesde anta: os Calmucos, Nação Tártara que vive pe-los bordos do rio Volga, clima ardentíssimo no Estio,defendem-se dos ardores do Sol com vestidos de pe-les com o cabelo, ou lã para fora, e o carnaz para den-tro, e a cabeça do mesmo modo. Seria muito poucaa despesa se cada Soldado tivesse a sua véstia for-rada até às cadeiras de peles de cabra, ou carneirocurtidas, e surradas em branco; sorte de vestido queo defenderia também contra o frio do Inverno. Nocampo deveriam-se cobrir as barracas com ramos deárvores, com erva, fazendo esteirões dela torcida, oque defenderia eficazmente os ardores do Sol.

Ainda que em Portugal e nos seus dilatados domí-nios poucas precauções sejam necessárias contra aseveridade do frio, poderá suceder que pelo dilatadosítio de uma praça, ou outra qualquer importante ope-ração militar, seja necessário que o exército fique portodo o Inverno em campanha.

O frio começando por graus, sem nevoeiros nemchuva, não é tão prejudicial à Saúde como vulgar-mente se considera: o que ofende sensivelmente sãoas súbitas mudanças de calor para o frio e de frio parao calor; e, principalmente, quando depois das chuvasestando a atmosfera temperada, subitamente come-çam a ventar os ventos Nortes e Nordestes; estas mu-danças causam os pleurizes, males inflamatórios dopeito, e esquinências.

Nenhum Soldado ainda que forte, e valeroso é ca-

paz de empresa alguma tremendo de frio109. Paraocorrer a esta tão ingrata e sensível moléstia, serianecessário que cada Soldado tivesse uma palmilhade baeta forte simples, ou forrada de pele como dis-semos acima, tão longa que entrasse nos calções; quetrariam vestida até o fim da Primavera. Sendo cons-tante observação dos Médicos que para conservar aSaúde vigorosa se devem vestir cedo os vestidos quedefendem do frio, e deixá-los o mais tarde, quero di-zer nos fins de Abril ou Maio. Os sapatos deviam serde sola forte, com palmilhas ou de palha tecida, oude abas de chapéu para defender-se da humidade.

Nem os Oficiais nem os Soldados confiem nas bo-tas ou borzeguins de couro para defender-se do frio:qualquer parte do nosso corpo coberta de couro, con-tanto que não seja dobrada de baeta ou pano, sofremais frio, ou gela-se mais depressa, do que se esti-vesse coberta só de pano ou baeta. Assim, ter a ca-beça coberta com casquetes de couro para defender-se do frio e aumentá-lo: deve-se cobrir com outro depano, ou com uma carapuça. Nas marchas poderão-se mandar acender fogos na retaguarda, se o serviçomilitar não permitir encobri-las.

Se o frio for junto com a humidade, será mais sen-sível e pernicioso: depois de molhado aquele que fi-car quieto exposto ao frio ou ao vento Norte não hádoença, principalmente do peito, que não possa ternesta alteração a sua origem.

O tempo húmido sempre é o mais nocivo de to-dos, tanto no Inverno como no Estio. Vimos acimaque logo que o calor se juntar com a humidade de-masiada, que se gera podridão, e por consequênciaque a atmosfera se infecta: no Inverno a humidade éigualmente nociva; o frio penetra então mais profun-damente o nosso corpo e geram-se todas as doençasinflamatórias tanto do peito, como de todo o corpo,como são os reumatismos. Não só no tempo das chu-vas a humidade é notória, mas muito mais quando oscampos estão cobertos de neve, ou de geada, entãoé que se requer o quarto, a cama, e o vestido maisquente e seco do que em qualquer outro tempo; por-que o Ar então é extremamente húmido; não se ig-noram os danos dos nevoeiros, e quão mal sadios sãoos bordos dos rios, e dos campos alagados, onde sãomais frequentes.

Vimos acima os danos das habitações baixas,como viver e dormir nas adegas, em casas térreas,sem calçadas, nem sobrado; e que é engano conside-rar serem mais sadias por estarem reparadas do friopelas portas e janelas; a humidade destes lugares bai-

109«Ne sævâ hyeme iter per nives ac pruinas noctibus faci-ant, aut lignorum patiantur inopiam, aut minar illis vestiumsuppetat copia. Nec sanitati enim, nec expeditioni idoneusmiles est, qui algere compellitur».Vegetius, ibidem.

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xos é mais perniciosa, do que o frio dos quartos aoprimeiro e segundo andar, desguarnecidos de portase de janelas: os palheiros devem ser preferidos àscasas dos lavradores ordinários, térreas e sem seremforradas.

Vimos acima que as casas e todos os edifícios quenão foram habitados por muito tempo que são osmais contrários à Saúde, por serem húmidas e con-servarem um Ar corrupto e infectado; e que não sedevia dormir nem habitar nelas sem primeiro mandarantes acender fogo, defumando-as com muita pól-vora ou enxofre.

Com estes conhecimentos poderão dar tais ordensos Oficiais ou nas marchas ou nas guarnições quepossam os Soldados preservar-se da humidade dosquartéis, escolhendo os lugares mais altos para habi-tar, mandando purificar, secar e limpar antes as ca-sernas, e outros edifícios não habitados, que de ordi-nário servem para aquartelar os Soldados.

Quando os quartéis são os mais incómodos e no-civos é quando o número dos prisioneiros aumenta onúmero de quem os ocupa: como lhes faltam cami-sas, meias e sapatos para se mudarem, como vivemencerrados, como não podem ter limpeza alguma, en-tão gera-se a podridão do Ar, e por consequência ados seus humores; daqui nascem doenças que vêmcontagiosas aos mesmos vencedores.

Vimos acima, falando dos Hospitais e das prisões,os perniciosos efeitos de viverem encerrados muitosjuntos: se os Generais não tiverem a providência deprevenir estes males nos quartéis serão mais destrui-dores do seu exército do que a espada do inimigo.Consiste na limpeza daquelas casas onde estiverem,ordenada com vigor e castigo, e que haja abundân-cia de vinagre e de pólvora. O vinagre para lavaremas mãos, borrifarem amiúde o sobrado com ele: es-tenderem panos, ou farrapos de linho, ou lã ensopa-dos nele continuamente. Queimar porções de pól-vora para defumar duas ou três vezes por dia e, so-bretudo, ainda que seja no Estio fazer fogo pela ma-nhã em cada quarto onde dormirem muitos Soldadosjuntos, e que sejam obrigados a viverem encerrados:mandar abrir chaminés em cada quarto, ou buracos,no seu tecto, ou descobrir algumas telhas no telhado.

O comum dos homens quando vivem no camponão consideram outros inimigos da Saúde que o calorexcessivo ou o severo frio: mas raras vezes pensama humidade se não é quando chove: o que é enganoporque a humidade, tanto no tempo do Estio comodo Inverno, gera-se continuamente pelas exalaçõesde muitos corpos viventes encerrados no mesmo lu-gar.

Dentro das barracas a humidade é notável pelaevaporação do terreno, pelas exalações dos corpos

dos Soldados e pela sombra que as mesmas fazem.Dormem oito até doze Soldados em cada barraca quefecham e abotoam contra o frio ou contra a chuva,então não só a humidade do terreno é maior, porqueevapora mais pelo calor dos corpos, mas é mais per-niciosa porque fica no Ar encerrado e respirado mui-tas vezes.

Logo que os Soldados forem obrigados a dormirpor mais tempo, que o de uma noite num lugar, de-veriam fazer um rego à roda de cada barraca e aterra, ou a areia que dele cavassem, deveria servirpara aplanar e cobrir o terreno que a barraca cobre:este mesmo havia de ser coberto de palha, de ramos,de feno, de tábuas, ou qualquer outra matéria quepudesse servir de cama e impedisse a humidade daterra.

Ao mesmo tempo por todo o dia deveria estar abarraca aberta por baixo, e pela porta, para que o Arpassasse livremente, e se ventilasse. Cada dia deve-riam expor a secar ao Sol tudo aquilo que servissede cama, renovando-a ou fosse de palha, ou de feno;não só para secá-la, mas também para dissipar as par-tículas podres da transpiração e do suor que se lhecomunicasse.

Costumam os Oficiais terem as suas barracassempre fechadas e bem guardadas com sentinelas,contentam-se com mandar abrir só e levantar as mar-quesas: não cuidando que do terreno coberto por elasse levantam vapores, e principalmente se estiver co-berto com erva, ou torrões com os quais erradamentemandam igualar o terreno, o que seria mais acertadocom areia grossa; a mesma precaução de mandá-las abrir por todo o dia se devia ter, como aconse-lhamos naquelas dos Soldados, e mandando cobrirtoda a área onde habitarem com panos encerados, emesmo de muito pouco custo; se mandarem meteralgumas varas de pano grosso de estopa em cera der-retida com pouco azeite: estes panos assim encera-dos resistem eficazmente aos vapores e exalações doterreno, como a experiência nos convence cada dia,da repugnância que tem a água para misturar-se como azeite, ou com a cera.

Nos sítios das praças, é obrigado às vezes o exér-cito acampar sobre atoleiros, campos alagados, e àsvezes em cima da água mesma. O pobre Soldado mo-lhado de dia tem por cama então o lodo e a humidade:para prevenir a destruição certa desta sorte de vida,deveria entrar na despesa das barracas mandar fazeruma certa quantidade destes panos encerados sobreos quais dormiriam os Soldados dentro delas. Todosacusarão a despesa e o aumento da bagagem; masa quem pertencer fica a considerar se o custo destaprovisão é tão prejudicial como a perda do Soldado.

Os Oficiais que quiserem sofrer menos frio den-

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tro das barracas poderão fazer queimar uma pequenaporção de aguardente de cabeça, ou espíritos, com asportas abotoadas; o Ar se modera a uma temperaturatal, semelhante à do mês de Maio.

O império da moda estendeu-se ainda àqueles quenão devem ter outra destinação que defender a suapátria. Vemos hoje todos os regimentos vestidos efardados à Francesa, mais por costume que por ci-ência militar. Nas marchas, nas sentinelas, fazendoexercício, e em todo o serviço militar está o pobreSoldado exposto à neve e à chuva: quanto mais co-vados de pano tiver supérfluos em cima de si maiorpeso e maior provisaõ de doença e de pena ganhará:aquelas pregas da casaca, aquelas abas dela tão inú-teis para aquecê-los ou repará-los, dobrando-as paratrás e atando-as com colchetes, aquelas mangas des-garradas, tudo são tantas esponjas inúteis para se en-soparem na chuva, nas águas dos rios que passam apé, ou a nado. Parece que devia entrar na conside-ração também o vestido dos Soldados, e fazê-lo tãocurto, ou tão longo, tão estreito e apertado, como ossapatos, com os talões que viessem a meia perna, queservissem para defender o corpo do frio, e não paraluxo, nem adorno.

Daqui se vê quão necessário é o conhecimento doslugares ao General para mandar acampar neles, e es-colher aqueles para este efeito, os mais enxutos, osmais secos, os mais areados, os mais distantes dosespessos bosques, paules, campos alagados e bordosde rios e ribeiras baixas e húmidas.

Capítulo XXIII

Meios para prevenir a corrup-ção do Ar no Campo, nos Hos-pitais e nas CasernasAté agora consideramos prevenir os danos que resul-tam somente da intempérie das sessões: todos se per-suadiram preveni-los, porque cada um sente o calor,o frio e a humidade: mas muito poucos conhecemcomo se corrompe o Ar e como se gera a corrupçãodele nos lugares mencionados no título deste Capí-tulo.

Parece supérfluo repetir aqui como se gera o Arcorrupto e como faz apodrecer os humores do corpo;o que temos por todo este tratado já repetido muitasvezes.

É certo porém que tanto mais tempo estiver umexército acampado num sítio, ainda o mais sadio;quanto mais tempo estiver exposto pelos meses de

Julho, Agosto e Setembro aos ardores do Sol, princi-palmente se a humidade ou da atmosfera, ou do ter-reno se juntar com o calor, que nesse caso é impos-sível que não sofra o exército enfermidades causadasda podridão dos humores, como são febres remiten-tes, ardentes e disenterias.

Por essa razão deve considerar o General mudaramiúde o acampamento se quiser conservar o exér-cito com Saúde; se o não fizer será obrigado a fazê-lodepois de estar já o contágio radicado nos Soldados,que se mostrará pela mortandade. É bem natural pen-sar que um campo habitado por qualquer exército,por um mês ou seis semanas, que há-de cair enfermonaqueles meses do Estio: considerem-se as imundí-cies que contraem as águas tanto dos rios como dasfontes de que usam aqueles Soldados: considere-sea podridão daqueles cadáveres, dos animais, das fe-ridas, dos excrementos do corpo humano, de tantasmatérias vegetais e animais que cada dia apodrecemnaquele campo depois de servirem ao uso dele, e en-tão qualquer se persuadirá que aquele Ar virá cor-rupto e, por último, pernicioso a todo aquele que orespirar. Vegecio110 diz que estes males não se po-dem remediar que pela frequente mudança do campo,o que merece a maior reflexão do General que quiserconservar o seu exército.

As águas encharcadas, os tanques e os lagos ja-mais começam a apodrecer sem que precedam calo-res intensos que as obrigam a evaporar; então vêmturvas, grossas, limosas e de cor verde: seria entãobem conveniente alagar todos aqueles lugares comáguas vivas, deste modo se emendaria aquela podri-dão.

As chuvas moderadas, mas repetidas antes que asfontes e os rios se sequem e as águas venham podresrefrescam o Ar e dissipam as exalações dele princi-palmente depois das trovoadas: mas aquelas primei-ras chuvas que vêm depois dos prolongados calores,quando a terra está já seca e aberta com gretas, e queas águas começam a apodrecer, são nocivas; o cheiroque se levanta então da terra é ingrato, sulfúreo, oucomo de fumo de carvão; e todos os que cuidam dasua Saúde em Portugal não saem fora de casa naqueledia. Estas chuvas devem-se evitar, tanto quanto per-mite a vida do Soldado do mesmo modo que o se-reno da noite uma ou duas horas antes e depois doSol posto.

A disciplina exacta na limpeza seria o remédio efi-caz contra a corrupção do Ar. Um leve castigo a todo

110«Si autumnali æstivoque tempore diutius in iisdem lo-cis militum multitudo consistat, ex contagione aquarum &odoris ipsius freditate vitiatis haustibus & ære corrupto per-niciosissimus nascitur morbus, qui prohiberi aliter non po-test nisi frequenti mutatione castrorum». Lib. III, cap. 2.

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o Soldado que evacuasse fora das latrinas que se de-veriam abrir de propósito nos lugares convenientes àproporção dos Soldados, seria necessária precaução:aquelas que se abrissem depois do mês de Junho atéo fim de Setembro deveriam ser mais profundas quenos outros meses: uma vez cada dia teriam o cuidadode mandar deitar uma cama de terra por cima, até queas covas ficassem quase cheias; e ultimamente de-viam ser amontoadas de terra, tanto para sinal, comopara impedir a exalação: em seu lugar então se abri-riam outras.

Deve-se ter particular cuidado que os Soldados se-quem e enxuguem e exponham ao Sol tudo o quetêm nas barracas e tudo o que lhes servir de cama,limpando e renovando o Ar e o mesmo terreno dabarraca.

Ainda que nos campos militares raras vezes se po-derá aproveitar quem tiver o mando de acampar, dosaudável, ou do nocivo dos ventos, contudo seria útilque o General tivesse este conhecimento; como tam-bém o mal ou o bem que lhe redundará, se montanhasou serras, bosques ou alagoas estiverem detrás ou de-fronte do campo. Na introdução deste tratado parece-me que dissemos o que é necessário saber para tirardeste conhecimento alguma utilidade.

Quando considero os meios que proponho paraprevenir a febre contagiosa dos Hospitais e das pri-sões, persuadindo dividi-los e aumentar o númerodeles, lembro-me então do célebre dito daquele ex-celente e ilustre Médico Ricardo Mead Inglês«quecusta muito mais fazer bem à sua pátria, do quefazer-lhe mal»sei que a maior parte dos homemstudo o que obram é por imitação: nunca até agora vi-ram nem ouviram que numa cidade devia haver umHospital Geral como porto no qual entrassem todosos enfermos que se deviam curar nele, que só os ca-sos de premura se deviam ali curar e o resto mandá-los para o Hospital fora da cidade; e que os con-valescentes destes dois Hospitais seriam mandadosrestabelecer-se num terceiro também fora da povoa-ção: como isto não tem exemplo, apesar da demons-tração que amontoados todos num Hospital Geral éperdê-los, temo, não obstante o referido, que tudo fi-cará como começou.

O mesmo temor me acompanha em declamar con-tra os Hospitais gerais dos exércitos e ainda das guar-nições se forem numerosos: ainda que tenha por mimo sufrágio de meu condiscípulo João Pringley citadotantas vezes nesta obra, ainda que demonstre não só aperda dos Soldados, mas ainda de todos os assisten-tes deles, como Cirurgiões, Confessores e enfermei-ros, não me persuado que haverá General que con-sinta que cada regimento tenha seu Hospital particu-lar. Mas ficar-me-á a satisfação que pensei na con-

servação do género humano, fundado na experiênciaque tenho, e na razão com que demonstro esta neces-sidade.

É o costume dos exércitos em campanha estabele-cerem um Hospital Geral para o qual mandam todosos doentes e todos os feridos: podemos contar queum exército de vinte e cinco mil homens, depois domeado de Julho até os fins de Setembro, terá entrea sexta e oitava parte de enfermos, quero dizer entretrês a quatro mil homens pouco mais ou menos.

Consideremos agora qual será a cidade, ou vila deProvíncia que tenha edifício tão espaçoso que possaconter mil e quinhentos enfermos somente, e commuita pena. Consideremos quantos enfermeiros, cri-ados, cozinheiros, Médicos e Cirurgiões serão neces-sários: já vimos acima, quando tratamos dos Hos-pitais Gerais das cidades, o número competente dosdomésticos e oficiais a cada certo número de enfer-mos. Veremos logo a impossibilidade de serem bemassistidos os enfermos que saem de um exército setodos se amontoarem num Hospital: naquele estado,naquela confusão, a morte parece o mais doce e omais desejado tormento.

Determinam a este Hospital Geral um Médico so-mente: um Cirurgião maior e dois ou três ordinários,e até uma dúzia de aprendizes. Eu tenho a experiên-cia de que nenhum Médico, o mais diligente, o maiszeloso e activo pode ver com reflexão, das cinco damanhã até às onze horas, mais do que cem enfermos.Tenho experiência que nenhum Cirurgião com iguaisvirtudes pode dar os socorros da sua arte mais quea sessenta por dia. Mas o mal é que o Médico ze-loso, o Cirurgião diligente, a todos os mais Oficiaiscom a fadiga, com o Ar corrupto do Hospital, todoscaem enfermos e raras vezes escapam à vida: mor-rem os Confessores, morrem os enfermeiros e ficamos miseráveis enfermos destituídos de todo o socorrohumano.

Quœque ipse miserrima vidi:

Este é o retrato formidável dos Hospitais Geraisda Campanha; e qualquer se persuadirá se leu commedíocre atenção o que está escrito neste tratado.

O remédio consiste em aumentar o número dosHospitais, e o modo é que cada regimento deve terum particular com um Cirurgião Maior e dois ordi-nários com alguns aprendizes. Em alguns Potenta-dos da Europa este método está já introduzido, e paraeles não será novidade. Toda a dificuldade será indi-car em que lugar do regimento se deve estabelecero seu Hospital, quem será aquele que o governará equem terá cuidado da sua economia e transporte de

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um lugar a outro; não pertence a este tratado tratardo governo dos Hospitais, mas pela importância damatéria indicarei de passo do que tenho experiência.

Antes que começasse a campanha devia-se dar or-dem aos Médicos e Cirurgiões que fizessem uma listade tudo o que fosse necessário para um Hospital Ge-ral e para um particular a cada regimento. Cada Co-ronel havia de ter uma cópia destas listas; e o mesmoter o dinheiro que fosse necessário para conservardez carretas com os machos necessários nos quais setransportariam as camas e os instrumentos de cadaHospital: ele poderia determinar um oficial que ti-vesse cuidado da economia de tudo o que necessita-ria o dito Hospital: cada regimento seria provido comuma caixa de remédios, cuja lista seria determinadapelos Médicos e Cirurgiões do exército.

Suponhamos o regimento, ou em guarnição ou nacampanha; todo o Soldado que caísse enfermo iriapara o seu Hospital particular: as queixas que reque-rem imediato socorro, e todas aquelas que se pudes-sem ali curar, não deviam os Soldados enfermos de-las passar ao Hospital Geral: somente se mandariamaqueles os quais ou necessitassem de operações maiscomplicadas de Cirurgia ou males crónicos. Qual-quer casa espaçosa, palheiro, celeiro dentro das vilas,podiam ser destinadas para estes Hospitais particula-res: e em campanha, qualquer aldeia, ou lugar ser-viria ao mesmo fim: estabelecendo o Hospital Geralno centro destes Hospitais particulares, quero dizer omais perto que pudesse ser do corpo do exército.

Toda a dificuldade de estabelecer estes Hospitaisparticulares nos campos militares é o perigo de seremassaltados pelo inimigo e ficarem expostos a maioresdesolações que aquelas do Hospital Geral, se nele to-dos os enfermos se juntassem.

Na guerra da Flandres entre os Franceses no ano1742 e os Ingleses se fez uma convenção entre o Du-que de Noailles e Milord Stairs, Generais de ambosos exércitos, para que os Hospitais de um e outro fos-sem privilegiados de todo o insulto militar: de talmodo que os Soldados, enfermos e quem tinha cui-dado deles tinham socorro dos inimigos e dos seusnaturais.

Não é tão alheia deste lugar a digressão que venhoa fazer porque levo sempre no pensamento impedir acorrupção do Ar dos Hospitais e livrá-los daquela fe-bre pestilenta que nasce neles e que se junta de novoàs doenças primitivas.

Já vimos acima como se devem entreter limpos eperfumados os Hospitais Gerais das cidades e vilas,como também as prisões públicas: parece supérfluorepetir aqui as mesmas precauções: não obstante ha-ver dito bastante, repetirei sumariamente o referido,e acomodando tudo ao tempo de guerra.

Sucede muitas vezes que se não acha edifício apropósito naquelas vilas, ou lugares perto do CampoGeral para estabelecer nele um Hospital Geral; nessecaso busca-se o edifício mais espaçoso, e todas as pa-redes do meio, separações feitas de taipa, ladrilho, oumadeira se mandam tirar, e fazer salas espaçosas: omesmo se deve fazer nos celeiros, nas grandes estri-varias, e palheiros: buscando sempre os lugares maisaltos, mais secos, mais areados; ainda que as janelas,e as portas não sirvam de reparo suficiente contra asinjúrias do tempo, não se deve reparar nesta falta nasquadras do ano quentes: maior dano provém a umHospital estabelecer-se em casas térreas, em adegas,e lojas, ainda que pareçam mais agasalhadas, do queo frio, ou o vento que poderão sofrer os enfermos noslugares secos, e altos. A necessidade à mais potentedas leis obrigou muitas vezes a usar de todas aquelasIgrejas para este efeito que não são Paroquiais.

Nem o tumulto da guerra, nem a precipitação debuscar estes lugares serão bastantes para meter os en-fermos em lugares que nunca foram habitados, ouque o foram interpoladamente, sem primeiro se lim-parem, varrerem, esfoliarem, e se perfumarem comos perfumadores acima, ou com muita pólvora quei-mada, e vinagre fervido. Operações que se deviamcontinuar por regramento expresso em cada HospitalGeral ou particular, cada dia pelo menos uma vez;sendo necessário às vezes no tempo das disenterias,e quando houver feridos três, e quatro vezes.

O número dos enfermos que deverá conter cadasala, câmara, ou aposento se deverá determinar domodo seguinte: metem-se, por exemplo, dez enfer-mos numa câmara: suponhamos que entrava a vê-loso oficial que cuidaria da economia e que insistia queainda podiam entrar nela outras dez camas: o Mé-dico, ou o Cirurgião, representaria que os enfermosdevem ocupar em cada Hospital pelo menos três lu-gares que ocupam três Soldados no campo: não sópara haver espaço para servi-los, mas também paraque as exalações dos seus corpos não ofendam mu-tuamente: esta seria a regra de meter as camas tantonos Hospitais gerais como nos dos regimentos.

A mesma ordem se havia de observar para esta-belecer os Hospitais de cada regimento que já dis-semos se havia de observar nos gerais, tanto no quepertence à limpeza e perfumaá-los antes de entraremneles os enfermos como depois que neles estiverem.Mas nestes se requer mais conhecimento como se de-vem remediar os defeitos que se acharão nas aldeias,e nos lugares, e herdades: ali será necessário man-dar limpar o terreno de um palheiro, mandá-lo co-brir de palha, de tábuas, de canas, ou chamiços: seránecessário mandar abrir o telhado, ou fazer trapei-ras, por não haver janelas, não só para dar curso ao

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Ar, e renová-lo, mas também para aclará-lo; tudo istoserá necessário que conheça o Médico, o Cirurgião,e também os Oficiais, e pelo menos o económico,não só para submeter os Soldados a estes regramen-tos, mas os habitantes, a que consintam, e contribuamcom tudo o que for necessário para o provimento dosditos Hospitais.

Os Hospitais gerais dissemos que devem estar fi-xos e serem como o centro dos Hospitais dos regi-mentos: os enfermos do principal não necessitam se-guirem o exército, mas os doentes dos menores de-vem seguir os seus regimentos. Somente depois doprincípio do mês de Julho até começarem os friose as chuvas do Outono: o movimento de carros, decarretas, e de cavalo não é nocivo às enfermidadesdo Estio, por serem causadas de podridão: mas qual-quer movimento é nocivo às enfermidades inflama-tórias, como são catarros ferinos, tosses convulsivas,esquinências, inflamações dos olhos, pleurizes, pe-ripneumonias, reumatismos, inflamações de rins: es-tas enfermidades reinam depois do mês de Novem-bro até os fins de Maio: e por esta razão os enfermosdos Hospitais dos regimentos não deviam segui-los:deveriam ficar no lugar onde adoecessem. Com estaprecaução nenhum dano se poderia seguir que cadaregimento tivesse o seu Hospital particular.

Por repetidas experiências feitas nas campanhasda Hungria, Itália e Flandres, sabe-se que no fim de-las se acha um exército diminuto de quarta ou quintaparte somente pelas doenças: o que sucedeu princi-palmente quando começou a campanha cedo, e queo exército se pôs em quartéis quando começavam osfrios: como também quando todos os enfermos seamontoavam num Hospital geral.

Pela observação do Doutor Pringley, Físico-mordo exército Inglês em Flandres depois do ano 1742até 1746, achou que só a décima parte dos Soldadosmorreram naqueles anos quando a campanha come-çou pelos princípios de Maio e que acabou pelos finsde Setembro: cada regimento ordinariamente tinhaseu Hospital; o que foi de sumo proveito a todo oexército: como se poderá ler no seu doutíssimo livrotantas vezes citado neste tratado.

Do referido poderá escolher o General mandarexecutar o que aqui se propõe fundado em muitas ex-periências, e não sem razões aparentes.

Capítulo XXIV

Digressão sobre a comida e abebida dos SoldadosQuem tiver experiência dos costumes dos Soldadosjamais se persuadirá que se conformem à boa or-dem de comer e beber, que lhe for ordenada: segui-rão apesar dos castigos a sua inclinação e os seusapetites. Nesta suposição deve-se considerar maiscomo se hão-de remediar os danos da má dieta doque prescrever-lhe uma saudável.

O meio mais eficaz que se achou até agora emFrança e Alemanha tem sido obrigar os Soldados acomerem por ranchos, de oito até dez em sociedade,e bolsa comum. Mas necessita então o Estado pagar-lhes muito regularmente cada mês, ou quinze dias,provendo o campo, ou as guarnições com mercadosregulares onde se vendam carnes e hortaliças; porquede outro modo sempre vivem em desordem, ou fur-tando, ou comendo o que acidentalmente encontram.Se o Soldado cada dia for provido de pão, de muni-ção, se viver em ranchos, comendo de oito até dozede uma caldeira, é força que dispenda a sua limitadapaga no seu sustento, por este meio fica impossibili-tado a dispender em vícios, ou outra qualquer desor-dem contrária à sua conservação.

Quando nos campos militares se examinam as lis-tas dos Hospitais, e que nelas aparece o número ex-cessivo de mortos, os Oficiais Gerais acusam entãoordinariamente os frutos do Outono, quais são ospepinos, melões, e as uvas, como causa da mortan-dade. Outras vezes acusam a quantidade de vinho, ede aguardente que bebem, e que destas desordens seoriginam as febres ardentes, e as disenterias, enfer-midades que levam à sepultura tantos Soldados nascampanhas do Outono.

Mas é engano manifesto que os frutos, verdes oumaduros do Outono sejam a causa da destruição dosexércitos, nem ainda o vinho, nem a aguardente. Sebem se considerar a natureza dos frutos eles são pre-servativo contra as doenças causadas da podridão,como são todas as do Outono: do mesmo modo ovinho e a aguardente são um excelente remédio paraprevenir estas enfermidades, tomado com medida e aseu tempo; e se o beberem com demasia jamais pro-duzirá as enfermidades mortais do Outono, ainda quepoderão produzir outras.

Considerando o clima de Portugal e aquele dassuas conquistas e as enfermidades que provêm doscalores continuados e ardentes, juntos com a humi-dade indispensável tanto da atmosfera como do ter-reno, proporcionarei a dieta que convém tanto aos

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Soldados Portugueses no Reino como nas conquistascom pouca diferença.

O principal da comida e bebida do Soldado de-via ser aguardente, vinho, vinagre, sal, pimento, epão111.

Observam os políticos que depois que o consumodo vinho começou a ser mais comum que as epide-mias e as pestes são mais raras entre as nações queusam dele quotidianamente: é certo que aqueles ho-mens que estavam acostumados a beber vinho, se derepente o deixaram e em seu lugar lhe substituemágua que caem em febres mortais causadas de po-dridão.

Todos os licores fermentados resistem à podridão:as carnes frescas metidas dentro de vinho, da aguar-dente e do vinagre se conservam incorruptas: não sóresistem à podridão, mas fortificam e embalsamam,de algum modo, para não contrair esta qualidade des-truidora. Largarão com pouca reflexão os Médicosdos nossos tempos o costume louvável dos MédicosGregos de dar vinho puro, ou misturado com água, naquantidade que sabiam determinar em toda a sorte defebres e enfermidades: erradamente condenam todoshoje dar vinho, nem ainda aguado nas febres e nasferidas, ou que o enfermo esteja acostumado a bebê-lo ou que jamais o gostasse: e portanto cada dia dãoinfusões e cozimentos da quina, feitos com toda asorte de vinhos: toda a virtude atribuem à quina, eninguém reparou na virtude do vinho. Mas este nãoé o lugar de notar esta pouca atenção da maior partedos Médicos.

É certo que o Soldado não tem paga suficientepara beber vinho cada dia: o oficial poderá usar delecom moderação sempre, e muito melhor misturadocom água, e principalmente no tempo do Estio e Ou-tono.

A provisão de vinagre num exército havia de sertão considerável que igualasse a da farinha, azeite esal. É erro que o vinagre é o vinho podre ou corrupto.O vinagre não é mais que o mesmo vinho fermentadouma vez mais: o mesmo mosto fresco metido na pipafermenta: em seis ou sete semanas, (e às vezes maisconforme a qualidade das uvas) vem vinho perfeito:este mesmo vinho movido, aquecido, excita-se nelenova fermentação vem vinagre e quanto mais fortefor mais o vinagre o será.

É erro introduzido vulgarmente nos Médicos ig-norantes da Química que o vinagre coalha o sangue:pelo contrário dissolve-o; só os espíritos ácidos mi-nerais, como são o de vitríolo, e o do aûme, &c. o co-alham: o vinagre misturado com o vinho, ou algumaporção de aguardente, ou só, ou desfeito na água, é o

111«Frumenti vero vini, aceti, nec non etiam salis omnitempore vitanda. necessitas». Lib. III, cap. 3.

mais universal e soberano remédio em todos os ma-les que tratam os Cirurgiões; nas feridas, fracturas,deslocações, fluxos de sangue, herpes, &c. interior-mente resiste à podridão do fel e dos mais humores,é sudorífico principalmente misturado com alcânforajuntando-lhe mel ou qualquer xarope para beber-sea colheradas: nas dores de cabeça, ou outras quais-quer violentas dores aplicado em panos todos sabemos seus saudáveis efeitos.

Vimos acima quão necessário seja o seu uso nosHospitais e nas prisões para corrigir o Ar; agora ve-remos as suas virtudes como alimento: quem qui-ser instruir-se de todas as medicinais que possui leiaDioscorides112 Galeno113 e principalmente Boerha-ave114.

Os exércitos Romanos usavam do vinagre mistu-rado com água por bebida ordinária que chamavamPosca. Piscenius Niger Imperador ordenou-o, as-sim por lei militar como refere Spartiano115. Deveriao Soldado levar consigo nas marchas um frasco devinagre como leva ordinariamente outro com água:serviria-lhe para refrescar-se e corrigir as águas àsvezes encharcadas e impuras, que é obrigado a be-ber por todo o tempo da campanha; além de ser tãoútil e necessário para a bebida lhe serviria tambémde alimento.

Costumam os nossos regadores e malhadoresrefrescarem-se com migas frias, as quais chamam osCastelhanosGuaspachopode ser que não seja o seuuso conhecido nas Províncias da Beiramar, e por essarazão direi que se fazem do modo seguinte. Depoisque o pão, ou o biscoito estiver ensopado na água eamolecido num alguidar, escorre-se a água; adoba-secomo a salada com sal e azeite e vinagre: com estacomida se fortificam os lavradores contra os ardoresdo Sol, de tal modo que usando dela três e quatro ve-zes por dia, podem trabalhar e resistir à dissipaçãocausada pelo trabalho, e pelo calor da atmosfera.

Não só o vinagre serve aqui de remédio a refres-car e resistir à podridão, é necessário considerar asvirtudes do azeite. Todas as carnes, principalmentemeias assadas, para que se dissipe parte da humi-dade que têm, conservam-se dentro do azeite: resisteàs impressões do Ar, abranda e amolece as fibras donosso corpo, embota a acrimónia dos nossos humo-res, e principalmente misturado com vinagre: todossabem que se comem com gosto e sem dano as car-

112Lib. v, cap. 21, Edit. Sarraceni.113Lib. I, Simplicium, cap. 19.114Elementa Chemiæ, tom. II, processu L.115Aelius Spartianus in Piscen. Nigro «Idem jussit vinum

in expeditione neminem bibere, sed aceto universos conten-tos esse».

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nes salgadas com azeite e vinagre como também opeixe.

Estas são as propriedades do azeite fresco, ou seja,de azeitonas, amêndoas doces, de avelãs, ou de se-mente de nabos; mas todas as sortes de azeites queservem na comida pelo calor demasiado vêm ranço-sos e cáusticos: e aquecem e destroem tanto o nossocorpo, como lhe é saudável enquanto estiver fresco: agordura dos animais tem a mesma propriedade, comovemos no toucinho. Se coméssemos, ou bebésse-mos o azeite por si só pelo calor do estômago po-deria vir ranço e causar inflamações da mesma parte,como dos intestinos e da garganta: sabe-se quantasmoléstias sofrem aqueles que comem muita gordura,ou manteiga, que não se digeriu no estômago. Masquando se comer o azeite misturado com vinagre nãose teme que venha jamais ranço no estômago; prin-cipalmente se for temperado com sal: o vinagre re-siste a que venha ranço, serve-lhe de veículo paracomunicar-se ao sangue e circular por todas as ar-térias e veias, amolecer as fibras, e a pele do nossocorpo, e ao mesmo tempo impedir que as impressõesdo orvalho e do Ar podre não penetrem a pele.

Sabe-se pela anatomia demonstrativamente que osnegros têm entre aquela primeira pele, ou tez, e a se-gunda que cobre todo o nosso corpo, uma espécie deunto, ou gordura negra, da qual são privados os bran-cos. Vimos acima que em Java o leite das brancas étão acre, e ingrato que não podem criar seus filhos, eque são obrigadas dá-los a criar às negras que têm oleite doce que as crianças não refusam. A Providên-cia Divina pôs na pele dos negros aquele correctivocontra a acrimónia que se gera dos contínuos caloresdo clima onde vivem.

Estou persuadido que se os brancos usarem em to-das as suas comidas tanta quantidade de azeite sem-pre misturado com vinagre que embalsamarão osseus humores de tal modo que se preservem da podri-dão: ao mesmo tempo toda a pele estando embebidacom o azeite, ou partículas oleosas, resistirá às im-pressões da atmosfera.

Quis por experiências mostrar o bem que fará oazeite misturado com vinagre a todos os SoldadosPortugueses ou militando no Reino ou nas suas coló-nias; ainda que nestas o azeite de azeitona e o vina-gre de vinho não sejam comuns, os nativos e habitan-tes delas tiram muita sorte de azeites não só dos fru-tos, mas ainda dos peixes, e sabem fazer muitas sor-tes de vinagres igualmente do açucar como de outrasplantas e frutos dos quais por serem baratos poderãousar por alimento, misturado ou com biscoito, pão oumandioca, os Soldados que militarem nas Ilhas e noscontinentes.

O sal comum é um adobo tão universalmente co-

nhecido que ainda as nações bárbaras não podem vi-ver sem ele: quando não podem tê-lo, ou do mar oudas minas ou dos lagos, usam de cinzas nas quaissempre se acha sal comum, mas poucos sabem assuas virtudes: o comum dos homens acusam as car-nes e peixes salgados de serem a causa das enfermi-dades dos marinheiros e de outras muitas que sofremos Soldados nos sítios das praças: por experiênciascertas se sabe que o sal nos comeres, por adubo epara temperar agradavelmente as comidas, serve paradigerirem-se mais facilmente os alimentos no estô-mago: tomado em maior quantidade, como nas car-nes salgadas ou no peixe, contanto que não estejamrançosas, então resiste à podridão dos humores: éverdadev que causa sede, e mesmo pode causar fe-bres de fervor e de acrimónia, a que se poderá preve-nir se as carnes salgadas forem sempre cozidas comalguma porção de vinagre, e adubadas com azeite.Quando tratarmos do sustento dos marinheiros sere-mos mais extensos nesta matéria.

Dissemos acima que devia ser a provisão de umexército, farinha, biscoito, vinagre, azeite e aguar-dente, sei que muitos poucos Médicos aprovarão esteúltimo artigo, porque atribuem a todos os espíritosardentes a qualidade de queimar e de corromper asentranhas. Citar-me-ão os exemplos dos negros doBrasil que bebem aquelas aguardentes feitas das bor-ras do açucar e de cana e que morrem de gangrenastanto das pernas como do ventre: citar-me-ão aque-les homens desordenados que encurtam a vida comestes licores, tanto nas Índias Orientais, com o arrac,como nas Ocidentais, e em toda a Costa de África,com semelhantes aguardentes.

Bem sei que o uso da aguardente poderá ser tãopernicioso, tomada em demasia, como poderá serutilíssima para preservar-se de muitos males, bebidacom moderação. É certo que a aguardente por si sóconsiderada é o mais soberano correctivo e preserva-tivo da podridão que inventaram os homens. Todosaté agora convieram em preparar bebidas espirituo-sas que embebedam tomadas com demasia: é certoque todas as nações sitas entre os trópicos são aque-las que mais amam e que mais usam das aguarden-tes e espíritos fermentados: muitos Europeus, que ja-mais beberam na Europa aguardente, logo que passa-vam o trópico e enquanto se dilatavam naqueles lu-gares perto da linha equinocial, não se podiam absterde beberem espíritos ardentes: voltavam para a suapátria e já lhes eram ingratos e contrários à Saúde.

É digno de reparo que todos os naturais daquelesclimas, onde a podridão é maior, amem com tantoexcesso os licores fermentados e espirituosos; con-sideremos todas aquelas terras onde se gera a podri-dão mais funesta e tão depressa, e ali veremos que

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todos os nativos delas têm por soberano bem abun-darem de várias sortes de aguardentes. A podridãoé uma acção espontânea da natureza, mas a fermen-tação é uma operação puramente do artifício dos ho-mens. Nenhuma bebida fermentada, como cerveja,vinho, vinho de palma, a buzá dos Tártaros, e Tur-cos, feita de milho, saiu das mãos da natureza: foinecessário que os homems espremessem as uvas, pu-sessem o mosto em vasos onde fermentasse, e poreste artifício vêm a alcançar e a ter vinho: nenhumvinagre se fez até agora sem primeiro haver fermen-tado o licor ou sumo do qual se fez: nenhuma aguar-dente se pode fazer sem que preceda a fermentaçãodo licor do qual se destila. Quem melhor souber aarte de fermentar, por exemplo, as borras do açucar,e fizer delas um melhor vinho, melhor aguardente,e mais saudável a destilará delas. De tal modo queo vinho, o vinagre e a aguardente são os produtos dafermentação, a qual é uma acção totalmente artificial,e da qual quis o Altíssimo dar conhecimento a quasetodas as nações: umas fazem espíritos ardentes queembebedam, do arroz e do sumo da árvore do coco,outras do leite das éguas e vacas misturado com cer-tas plantas, outras do mel e do açucar e a maior partede vários frutos, sendo o principal as uvas.

Vemos claramente pelo uso de todas as naçõesque os licores fermentados são o remédio mais eficazcontra a podridão dos humores; e que a divina Pro-vidência parece deu este conhecimento tão universale impôs tanto amor dele àquelas nações sujeitas àsdoenças causadas da podridão.

Todos sabem que as carnes e peixe conservam-seincorruptos dentro da aguardente por muitos séculos:todos sabem que um homem cansado e suando se be-ber uma colher dela, de sequioso e cansado, senteuma frescura por todo o corpo num instante: o suorpára; recupera e renova as suas forças: todos os diasordenam os Médicos cordeais, tinturas e cozimentosfeitos com águas destiladas do vinho e da aguardente,como são a água teriacal, apopléctica, e de erva ci-dreira composta e outras imensas. Todos concordamque resistem à podridão e que promovem a transpira-ção e o suor. E sem embargo de ordenarem cada diaestes remédios, proíbem que um homem em perfeitaSaúde tome pela manhã uma ou duas onças de aguar-dente, quando viver no campo, exposto ao sereno datarde, e aos orvalhos da manhã, e aos ardores do Solpor todo o dia.

Seria inútil mostrar aqui pela química a virtudeantiséptica da aguardente, como também do vinho edo vinagre: as experiências que tenho relatado meparecem suficientes para quem destinei este tratado:a aguardente é um soberano remédio na Cirurgia nãosó nas feridas, fracturas, fomentações contra a gan-

grena e o esfacelo, mas ainda nas erisipelas e outrasqueixas da pele: mas a ignorância dos Cirurgiões afez perniciosa: ousam lavar as feridas com aguar-dente pura, fazer dela fomentações nas contusões,nas gangrenas, e nas erisipelas, o que é erro dignode castigo; a aguardente então queima e seca a carneviva das feridas, impede a natureza a formar a maté-ria purulenta e a resolução e do mesmo modo quei-mando e secando as partes do nosso corpo produzmuitos males; a aguardente misturada com cozimen-tos feitos com água ou destemperada com água e al-guma porção de vinagre ou sal amoníaco, tão forteque gostada faça uma impressão na língua, tão agra-dável como o vinho, seria o remédio mais universalde toda a Cirurgia e a bebida nas febres podres maiseficaz se nela a quantidade de açucar predominasse eficase uma bebida agridoce animada com o gosto deaguardente desfeita em muita água.

Seria bem útil que cada exército tivesse tanta pro-visão de aguardente como de azeite e de vinagre; eque naqueles tempos quando for obrigado a acam-par em lugares húmidos, baixos, às vezes em atolei-ros ou debaixo de bosques, bebendo águas enchar-cadas e de enxurradas, quando os nevoeiros da tardee da manhã infestam o campo; o que sucede muitasvezes nos sítios das praças, ou nos bordos dos rios,ou em muitas outras operações militares, que naque-les tempos digo, ou de Verão ou de Inverno tivessecada Soldado uma porção cada dia pela manhã destelicor, comendo antes ou depois um pedaço de pão,ou biscoito com sal por adubo. Este seria o remédiode prevenir aquelas mortais disenterias, se pelo restodo dia fosse o seu alimento muitas migas frias fei-tas com sal, azeite e vinagre, e se houvesse provisãode pimento, seria este adubo excelente para o mesmointento.

Garcia de Orta, Físico-mor da Índia116, observouque os Indianos usavam da assa-fétida por adubo, es-fregando com ela os pratos onde punham os alimen-tos que comiam: o mesmo observou na Pérsia Kem-fer117 e é ainda o costume daquelas nações orientaisexpostas aos violentos ardores do Sol. Em toda acosta da África usam os Negros uma sorte de pi-mento tão acre por adubo nas suas comidas que nãoé comparável ao nosso na força com que arde. Todosos habitantes de Castela-a-velha e Estremadura ondeos ardores do Sol são excessivos usam do pimentoem abundância tanto nos caldos como nas carnes desalmoura. Sem razão, sem saberem a causa usamtodos aqueles Povos sitos debaixo dos Trópicos e lu-gares meridionais destes aromas acres e penetrantís-simos: o instinto lhes mostrou que a assa-fétida, os

116Histor. aromat. Lib. I, cap. 3.117Amœnitates exoticæ. Fascicul. III.

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aromas e o pimento, são os remédios mais potentescontra aquela podridão que provém do Ar sufocadoe ardente e da humidade podre. As experiências quefez o judicioso Médico João Pringley com estas subs-tâncias aromáticas provam o que tantas vezes insi-nuei neste tratado.

Por essa razão seria conveniente que entrasse naprovisão de um exército Português o pimento poradubo, como é preciso que entre o azeite, o vinagre,o sal comum e a aguardente.

Capítulo XXV

Do ócio e do exercício dosSoldados considerados para aConservação da SaúdeAinda que o principal intento deste tratado seja so-mente de indicar as causas da corrupção do Ar e osmeios de o depurar e renovar, contudo de passo, nãodeixaremos de indicar tudo o que poderá impedir acorrupção do corpo humano. E como o ócio e oexercício poderão contribuir, mal regrados, a cair na-quele estado, pareceu-me não sair fora do meu ob-jecto se deles indicasse algumas propriedades, prin-cipalmente quando considero não haver Autor Portu-guês até agora tratado da Conservação da Saúde dosSoldados.

O ofício de Soldado principalmente de infantariaestá dividido em dois tempos, um de excessivo tra-balho e outro de prolongado ócio, tanto nos quartéis,como em campanha: destes excessos viciosos é quetrataremos agora; e veremos o que poderá contribuirpara regrar aqueles dois modos de viver.

As leis militares de Roma decretaram o exercí-cio nos seus exércitos como Medicina para fortificaros corpos, e endurecê-los contra todas as injúrias dotempo. Por todo o ano e por toda a vida cada dia seexercitavam tanto nos quartéis como na campanha:no Inverno fabricavam edifícios cobertos de tábuas,ramos de árvores, ou de palha para ali se exercita-rem sem ficarem expostos às injúrias do tempo: estalei era inviolável principalmente pelos Soldados bi-sonhos118.

Além dos exercícios militares ocupavam-se em fa-zer os caminhos públicos, as pontes, os teatros pú-blicos e os banhos, dos quais edifícios, admiramosainda hoje os restos, que mostram bem a grandeza e amajestade Romana: não só a infantaria se exercitava

118Juniores quidem & novi milites & post meridiem adomne genus exercebantur armorum. Veget. Lib. II, cap. 23.

continuadamente mas ainda a cavalaria, não só cor-rendo e escaramuçando nos campos rasos, mas aindanos cobertos e desiguais pelos barrancos, penedos eladeiras. Assim contraíam o hábito ao trabalho, e omais rude da campanha não só os não alterava, masservia-lhes de divertimento119. Já nos não pareceráincrível tudo o que lemos nas histórias daquele for-midável Império, quando concebermos de que modoeram criados os seus Soldados. Raras vezes se con-sumiam os seus exércitos, como os dos nossos tem-pos, pelas doenças, porque aqueles corpos endureci-dos pelo trabalho quotidiano resistiam a todas as in-júrias do tempo, e a todas as fadigas militares. Em lu-gar que os Soldados que vemos criados mais no ócioe na liberdade de governarem a sua Saúde, a menormudança de vida os faz cair enfermos e incapazes deresistir às moléstias do seu ofício.

Sensivelmente vemos que os Soldados de cavalonão caem tão amiúde enfermos como os infantes:ainda que os capotes, as botas e o andar a cavalo oslivre das moléstias da chuva, do frio e da fadiga, écerto que a sua obrigação contribui muito para con-servar a Saúde. O Soldado de cavalo jamais está oci-oso; é necessário que cuide de si e do seu cavalo:gasta muito tempo do dia em nutri-lo e limpá-lo; emconcertar os petrechos e armas com que milita: emlugar que o Soldado infante logo que acaba a funçãomilitar passa a maior parte do tempo a dormir; umasvezes exposto ao frio, à chuva, ao sol e outras aindaque a coberto, sempre enerva o seu corpo, se dor-mir mais do que convém à boa ordem; de tal modoé dividida hoje a vida destes Soldados, que nela outudo são extremos de fadiga nas marchas, levantartrincheiras, acarretar faxina, vigiar na sentinela, oupassar o resto do tempo na mais culpável ociosidade,e principalmente nos quartéis.

Já que o Estado não acha a propósito empregar osSoldados a fazer caminhos, pontes e canais, como fa-ziam os Romanos, supram os Oficiais em ocupá-loscada dia, de tal modo que estejam sempre emprega-dos conforme requer a disciplina militar: se cada diafossem obrigados a fazer por algum curto espaço detempo o exercício, ocupando o resto na limpeza, easseio do seu corpo, e das suas armas, se cada diafossem obrigados por desenfado exercitarem-se em

119Rei militaris períti plus quotidiana armorum exercitiaad sanítatem mílitum putaverunt prodesse quam Medicos:itaque pedites sine intermissione, imbríbus, vel nívibus subtecto reliquis diebus exercerí in campo voluerunt; similiterequites non solum in planis, sed etiam in abruptis, & fosso-rum hiatu, difficillimis semitis, seque & equos suas assidueexercere jusserunt ex quo intelligítur quanto studio armo-rum artem docendus sit semper exercítus, cum ei laborísconsuetudo, & in castrís sanitatem, & in conflictu possitpræstare victoriam. Vegetius, Lib. II, cap. 23.

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jogos de força, e de jeito, é certo que o corpo se acos-tumaria ao trabalho e se endureceria para resistir semmoléstia nem murmuração às fadigas súbitas da cam-panha.

Como o nosso corpo é feito com ordem e medidanenhuma acção feita por ele deve ser demasiada: seaconselhamos tanto o exercício, este deve ser mode-rado e sempre feito naquelas horas mais apropriadaspara suportá-lo: já todos sabem que só pela manhãe de tarde se devem fazer as marchas e os exercíciosmilitares ou outros quaisquer que propusemos acima:do mesmo modo se reprovamos o muito sono e o de-masiado ócio, assim propomos que deve o Soldadodormir tanto que repare por este descanso as forçasabatidas: somente nos sítios das praças é que o Sol-dado é obrigado a vigiar mais do que requer a conser-vação do corpo; mas estas ocasiões são raras; porquenos quartéis e no campo militar raras vezes tem ne-cessidade o Soldado por obrigação vigiar muitas noi-tes sem intermissão. Para empregar o tempo convémmuito que a disciplina militar tome em consideraçãoa limpeza e o asseio do Soldado, e de tudo o que lheserve de defensa e de ornato.

Capítulo XXVI

Da limpeza e do asseio que deveriaobservar o Soldado para a Conserva-ção da sua Saúde

Lemos na história Romana que a maior parte da mi-lícia que vivia em Roma se exercitava no campo deMarte, e que acabado aquele exercício passavam anado o rio Tibre na intenção não só de se exercita-rem a nadar, exercício tão útil e necessário na guerra,mas ainda para se lavarem do suor. Não desdenharamexercitar-se naquele campo o Grão Pompeu, nemMário, ainda na declinação da idade: o sumo cui-dado que tinha aquela nação invicta de exercitar-seobrigava-os também a banharem-se cada dia: comonaqueles tempos o pano de linho não era comum,como hoje, como os seus vestidos eram de lã; e apoeira e o suor obrigava-os a usar do banho cadadia, e ainda mesmo antes de comer: deste modofortificavam o corpo e se preservavam de achaques,conservando-se limpos e evitando toda a ocasião deacumular imundícies que são causa de muitos males.

A maior parte das Nações bárbaras conservamainda hoje o uso dos banhos e estufas, como soberanoremédio para conservarem a Saúde: mas a santidadeda Religião Cristã não podia consentir um costumecontrário às vezes à modéstia, e à mortificação: na

Espanha, França e Itália foram proibidos por auto-ridade Eclesiástica, e pública também, o uso deles,ou por piedade Cristã, ou para destruir a superstiçãodos Sarracenos, que habitavam naqueles Reinos. Écerto porém, que o uso dos banhos seria muito salu-tar, se neles se conservasse por autoridade pública amodéstia e a ordem que requer a Religião sagrada.

Mas já que estamos distituídos deste socorro e,principalmente, quem dele necessita mais, que sãoos Soldados, devia a disciplina militar introduzir emseu lugar o asseio e a limpeza quotidiana: ela é umavirtude moral, e todo o homem é obrigado a nãomostrar-se ascoroso nem desagradável àqueles comquem trata, e é o mais efectivo meio de conservar aSaúde. Não sem razão são tão austeros os Oficiaismilitares obrigando os seus Soldados a pentearem-se, lavarem-se, a terem a gravata e a camisa branca eo vestido asseado e limpo, como também as suas ar-mas e apetrechos; mas esta limpeza se fosse possívelhavia de estender-se também ao resto do corpo.

Pelo menos seria necessário mandar lavar pés emãos com água onde se misturasse alguma porção devinagre a todo o Soldado que entrasse nos Hospitaismilitares, e principalmente, naqueles de campanha:neles também haveria provisão de barretes de panode linho, e de camisas para se mudarem logo que pe-los suores e feridas, e outras causas de imundíciesobrigassem a mudar de roupa.

O que entretem a nossa Saúde é a transpiraçãocontinuada tanto do bofe como de toda a superfíciedo corpo: se este estiver coberto de suor, se as cami-sas e o vestido estiver embebido nele, é força que atranspiração se impeça e que fique dentro do corpo; ecomo ela não é mais que as partes podres e acres donosso sangue é força, detidas nele, que o corrompa e,por último, que o destrua.

Como os Soldados na sua obrigação se exercitamviolentamente, suam, e não tendo a facilidade, nema conveniência de mudar amiúde de roupa lavadaé força que sofram os males da transpiração retida:junta-se a estes exercícios o dormirem muitos juntos;respiram o Ar já respirado, suam pelas exalações doscompanheiros; daqui vem ser a sarna tão comum en-tre os Soldados e principalmente entre os bisonhos;e jamais esta enfadonha e ascorosa doença se poderáextinguir enquanto não se promover a transpiraçãopela limpeza universal do corpo e dos vestidos.

Bem sei que é fácil em campanha guardar estalimpeza do corpo: o Soldado mais negligente lava-see banha-se no primeiro rio que encontra: toda a di-ficuldade consiste nos quartéis das guarnições, onderaras vezes se acham rios ou ribeiras para este efeito.Supra, pois, a vigilância dos Oficiais militares orde-

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nando a limpeza e o asseio quanto for possível, naintenção de conservar a Saúde dos Soldados.

Se em Portugal os banhos, ou lavar-se amiúde,seria útil para conservar a Saúde de um exército,nas Colónias Portuguesas tanto da América comoda África acho que são extremamente necessárias:aqueles que habitam nas minas e junto daquelesrios caudalosos do Amazonas, Tocantins, S. Fran-cisco e Paraná experimentam calores excessivos e,ao mesmo tempo, com excessiva humidade: a maiorparte daqueles habitantes são escravos destituídosdos socorros de que usam os senhores para conser-varem a Saúde pela limpeza.

Relatarei aqui o que vi fazer aos Soldados Russospara se conservarem livres de muitas enfermidadespela limpeza que lhes causam os banhos de que usamcada dia: não falarei dos banhos Russos, das vilas edas cidades; falarei somente daqueles que os Solda-dos fazem em campanha e do qual usam tão amiúdecomo lhes permite o serviço militar.

Logo que o exército está acampado por dois outrês dias cada seis ou sete Soldados fazem um ba-nho do modo sequinte: buscam as barranceiras al-tas do rio, ou ribeira perto da qual estão acampados,e cavam naquela que lhes parece mais a propósitouma cova da altura de um homem, e tão espaçosa,que poderão estar dentro dela sete ou oito bem co-modamente. Nesta cova põem cinco ou seis grandespedras por terra, e em cima delas põem tanta lenha,que quase entopem a cova. Põem fogo a esta lenha,e quando toda está reduzida em brasas as pedras fi-cam ardentes e vermelhas como o ferro na fornalha.Sobre estas pedras assim deitam muita quantidade deágua por duas ou três vezes: toda aquela água se con-verte em vapor e dentro da cova tudo está cheio deuma nuvem espessíssima, mas quase ardente: tantoque podem suportar o calor da cova entram todosnus dentro, serram a porta um pouco, ou com ramosou com os vestidos; ali suam furiosamente por umquarto de hora e às vezes mais; tanto que têm suadoo que lhes parece bastante, saem e se deitam no rio,uns para lavar-se, outros para nadar: saem por úl-timo, limpam-se e no mesmo instante vestem-se: oque é particular a esta nação, e que eu não aconse-lharia a outra, se não fosse criada do mesmo mododesde a mais tenra idade, é que quando saem daquelaestufa ardente que seja no tempo do Estio ou no In-verno mais rigoroso sempre se deitam no rio vizinho,ou que ele esteja gelado, ou como estão as águas notempo quente.

Quando não acham barranceiras ou bordos de riosaltos para fazer aquelas covas, de outro modo fazemo banho de vapor; e é o seguinte: no meio de qual-quer campo perto de algum rio põem juntas muitas

pedras, sobre elas põem muita lenha; a qual fazemarder até que as pedras venham tão vermelhas comoo ferro na fornalha: tiram então todas as brasas e lim-pam todo o terreno à roda, e as cobrem com umabarraca ou com os seus próprios vestidos amarradosem paus de tal modo que fazem uma choupana; en-tão deitam água em cima daquelas pedras, toda seconverte em vapor que fica detido dentro da barraca:entram nus nela e ali suam pelo tempo que lhes pa-rece; saem e lavam-se no rio, tanque, ou água viva,que buscaram para este efeito.

Este é o remédio contra a fadiga, contra o can-saço do suor, contra a comichão, reumatismos, sarnae outros males próprios da vida do Soldado: vivemordinariamente robustos, capazes de todo o trabalho,tanto militar que civil.

Considero que se na América e na África, na-queles lugares alagados por aqueles caudalosos rios,usassem desta sorte de estufa ou banho principal-mente os escravos dedicados ao trabalho das minasque poderiam conservar muitas vidas, ainda que mi-seráveis; considerando que este seria o mais apropri-ado remédio contra a podridão dos humores causadapelo calor e humidade do terreno: causada pelo can-saço e fadiga do trabalho e pela nudez e pouca co-modidade de mudar de linho e de vestido, que nãosó seria útil ao escravo, mas ainda aos senhores quehabitam aqueles sertões com tantos riscos.

Capítulo XXVII

Da corrupção do Ar dos Naviose dos meios para preveni-laNenhuma Potência tem maior necessidade de con-servar a Saúde dos navegantes do que a Portuguesa:considerando a sua situação é uma Potência marí-tima: considerando os dilatados e riquíssimos domí-nios nas três partes do mundo com muitas e podero-sas Ilhas é força que inumeráveis dos seus súbditospassem a vida navegando: pelo que achei necessárioindagar tudo o que me foi possível para preservar osmeus compatriotas das doenças dos navios: quiseranesta matéria haver tido tanta experiência, quanto aque tive nos exércitos, mas espero que suprirá a estafalta o que indaguei de pessoas inteligentes e práti-cas, e também nos livros que citarei.

Não mostrarei cientificamente a natureza do Arcorrupto, que indispensavelmente se gera nos navioscada dia: como o meu intento é ser útil tanto aos Ca-pitães e Pilotos, como aos Marinheiros, e Passagei-ros, seria obrar contra a caridade escrever de modo

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que não fosse entendido por quem não estivesse ins-truído nos princípios da Física e da Medicina. Qui-sera também que os Mercadores senhores de navioscompreendessem a necessidade de fazer as provisõesdo modo que proporei abaixo, porque é certo quesem se capacitarem dela repugnarão sempre a fazeralguma despesa mais daquela que costumam, não re-parando nos riscos que correm os marinheiros e, porconsequência, o navio e a carga, por haver poupadoalgum trabalho e despesa.

Dissemos acima quando tratamos das qualidadesdo Ar que a Divina Providência determinou aquelasmarés e tantas sortes de ventos para que o mar sedepurasse de tantas partículas podres que nele se ge-ram cada dia: tantos animais que nele vivem e mor-rem, tanta sorte de bitumes e de plantas que se gerame apodrecem, é impossível que destes corpos não selevantem imensidade de vapores, e de exalações, asquais, se não fossem varridas e sacudidas pelos ven-tos, todo o mar se infectaria, e a sua superfície seriamortal.

Considerando a contínua evaporação do mar e ocalor constante da atmosfera é certo que esta serásempre muito mais húmida do que a da terra: vi-mos pelo discurso de todo este tratado que o calorsemelhante ao do mês de Maio acompanhado comhumidade que são as mais potentes causas da podri-dão do Ar e, por consequência, dos viventes que orespirarem.

Consideremos agora um navio à vela e toda a suacarga, como também as águas que entram nele e queficam no fundo. Veremos ser como uma casa comportas e janelas fechadas sem comunicação com o Arexterior: tantos barris e pipas de água, tantos fardose caixas cheias de fazendas, tantos lugares cheios deprovisões animais e vegetais, em todos estes lugaresvai Ar metido e encerrado: pelo movimento do na-vio, e por ficar sufocado dentro dele, tudo começa aesquentar-se e como nós dizemos, aarder: evaporamos licores ainda metidos em vasos, ou pipas: evapo-ram o peixe e as carnes, ainda que sejam salgadas,evaporam as sementes, os frutos, e como esta evapo-ração fica encerrada, infecta o Ar daquelas partículaspodres que sairão de todas as substâncias, que fazema carga e a provisão do navio.

Vimos acima os perniciosos efeitos do Ar encer-rado das prisões e dos Hospitais: e que é um navioà vela mais que uma prisão ou um Hospital? Vimosacima que a transpiração é o mesmo que o fumo exa-lado pela pele e pela boca, pesa pelo menos a de umhomem com Saúde trinta onças em vinte e quatrohoras; se consideramos o número dos marinheiros epassageiros que respiram, dormindo ou trabalhandodebaixo das cobertas do navio, veremos logo como

aquele Ar que ali respiram há-de ser misturado comexalações e vapores seguintes.

Pela evaporação da água corrupta do fundo do na-vio: é esta tão nociva que os marinheiros quandoà popa caem às vezes desmaiados pelo insuportávelcheiro que os ofende. Pela evaporação das águas naspipas, já podre ordinariamente no alto mar: pela eva-poração de todas as provisões; e ultimamente pelasexalações de todos os viventes encerrados naqueleslugares cobertos do navio.

É força então que um homem respire cada diamuitas vezes o mesmo Ar que já respirou. Mas esteestá cheio de milhares de partículas podres que se le-vantaram de tudo o que encerra o navio; é força logoque o Ar dele seja tão pernicioso como o das pri-sões, dos Hospitais e como o das minas de cobre ede chumbo, subterrâneas ordinariamente, com poucoacesso ao Ar livre e puro.

Consideremos agora os efeitos deste Ar corrupto,encerrado, cada vez mais quente pelo movimento donavio e do calor dos corpos, ou viventes ou sem sen-timento, e veremos que não só fará apodrecer os hu-mores de quem o respirar, mas que impedirá e reteráas partículas podres do nosso sangue: aquele fumo,que sai pelo bafo, por toda a nossa pele, aquelas par-tículas acres que saem pela urina, são tantas partícu-las podres que se separam do nosso sangue; mas parasaírem fora dele é força respirar um Ar puro; um aragitado, ou vento que sacuda, limpe e varra todas es-tas partículas; como vão encerrados, e que dentro donavio não haja este movimento do Ar, nem renova-ção dele, é força que vá ali o navegante sepultado napodridão e na corrupção de tudo o que come e quebebe.

Mas este navegante come, mastiga, bebe naque-les lugares; é força que com os alimentos mastigadosengula muita parte daquele Ar corrupto do navio: alidorme, sua e transpira: é força que pela respiração epor toda a pele entre muito daquele Ar que já respi-rou muitas e muitas vezes; daqui vem que todos vãoenfermos; ainda que conservem forças bastantes parao trabalho, nenhum está em perfeita Saúde.

Todos os marinheiros sabem a necessidade derenovar-se o Ar quando navegam: logo que passamas Ilhas de Cabo-Verde começam a sofrer calmarias,clamam e rogam a Deus pelos ventos gerais, porquesó nestes sabem que acharão o remédio aos malesque sofrem naquelas sufocações do Ar: vão desmai-ados, apenas podem respirar, perdem o apetite, nãose podem mover sem pena, nenhuma acção fazemcom alegria: então começam as febres podres, as di-senterias, o mal de Luanda, que os Povos do Nortechamam escorbuto; todas estas doenças não são maisque os efeitos da podridão dos humores, causada pela

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corrupção do Ar encerrado e jamais renovado por ou-tro Ar puro e ventilado.

Vimos pelo discurso de todo este tratado os remé-dios mais eficazes para purificar o Ar nas prisões enos Hospitais: todos se reduzem a renovar o Ar con-tinuamente e a corrigi-lo pelo vinagre, fumo de en-xofre, pólvora queimada; e, enfim, por todas as subs-tâncias azedas, ou perfumando ou lavando os lugareshabitados ou usando destes ácidos na bebida e nosalimentos. Mas nos navios não se podem usar muitosdestes remédios como nos Hospitais: por esta razãoindicaremos diferentes meios para preservar os na-vegantes da corrupção do Ar e das enfermidades quedela dependem. Os primeiros serão de precaução; eos segundos para corrigir e renovar o Ar.

Capítulo XXVIII

Precauções para impedir acorrupção do Ar dos Navios edos alimentos e bebidaTrasladarei aqui o que achar digno de atenção, es-crito tanto nos autores Franceses como nos Ingleses;e começarei a propor o que pode prevenir o Ar cor-rupto do navio desde o instante que se aprestar paranavegar.

Nas Dissertações de Física e Matemática120 lê-seque é necessário raspar todo o interior do navio eprincipalmente aqueles lugares ocupados pelos en-fermos: seria mais eficaz esta limpeza se depois fos-sem esfregados com vinagre, e quando o navio es-tiver à vela usar frequentemente deste licor, não sópara lavar os sobrados, mas também para embeberpanos de linho nele estendidos em cordas nos luga-res onde assistem os marinheiros e os passageiros.

M. Deslandes121 Comissário Geral da Marinha deFrança quer que todos os navios que vêm de gran-des viagens se perfumem com enxofre: ordinaria-mente vêm infectados do Ar corrupto, com imensi-dade de ratos e outros insectos, ou gerados da podri-dão dos alimentos ou das imundícies, e como todo ovivente conhecido morre com o fumo do enxofre épreciso usar dele para purificar o navio: não somenteeste fumo faria morrer todos os insectos, mas o maucheiro que se conserva ordinariamente nos navios sedissiparia e corrigiria por este defumadouro.

O modo de perfumar seria, depois de desarmartodo o navio, meter dois ou três arráteis de enxofre

120Memoires de Mathématique & de Physique présentésà L’Académie Royale. Paris, 1750, in 4.opág. 394 & 405.

121Recueil de differens Traités de Physique.Paris, 1750,tom. I, pág. 53 & 54.

numa grande caldeira de ferro, mais alta e estreitaque de ordinário, posta em cima de uma grande quan-tidade de areia, no fundo do navio e outras seme-lhantes caldeiras, entre cada ponte; então meteria-sedentro uma bala de artilharia feita em brasa, comoquando sai da forja: e ao mesmo tempo tapar todosos postigos e escotilhas com couros frescos para queo fumo penetrasse tudo e se consumisse. Tendo sumocuidado de sair quanto antes daqueles lugares, tantoque se lançasse a bala de artilharia em brasa em cimado enxofre: porque o seu fumo sufocaria imediata-mente a quem ali ficasse encerrado com os postigosfechados.

Necessita-se de grande cautela para que o fogo senão comunique ao navio; e toda consiste em pôr acaldeira em cima de um monte de areia de alturade um ou dois palmos, ou em cima de uma grandetrempe, posta sobre uma grande folha de Flandres, epara que as faíscas ou flama não acendesse o tecto,se poria outra de igual grandeza sobre a caldeira nadistância de alguns palmos.

Se os ratos, os insectos e o mau cheiro persistiremdepois do primeiro defumadouro, poder-se-á repetirainda por duas ou três vezes.

M. Bigot de Morogues nas Dissertações citadas122

quer que no porto, e ainda no tempo da navegaçãose introduzam no fundo do navio muitas pipas deágua do mar, em tanta quantidade que fique mistu-rada com a corrupta daquele lugar, a qual se deverápompar logo; deste modo ficará aquele lugar lavado,corrigiria-se a sua corrupção e, por consequência, oinsuportável e pernicioso cheiro que ali reside e quese comunica por todo o navio.

Não quero omitir uma nota deste autor que se lê napágina citada, por me parecer mui útil nesta matéria:diz ele «para limpar o fundo de cal usam alguns na-vios Ingleses de uma grande torneira de cobre postano lado do navio mais largo e forte, o buraco que seabrir para pôr a torneira será a quatro ou cinco pésdebaixo de água; o qual atravessará o navio de talmodo que corresponda ao fundo dele: nesta aberturase encaixará uma torneira de cobre, ficando a chavedentro do fundo do navio; esta torneira assim feita,e assim posta, serve de muita utilidade e sem o me-nor perigo; quando se quer limpar aquela água fétidafaz-se com a maior presteza, e facilidade, abrindo achave: e também serve para encher as pipas vaziasde água salgada que se metem naquele lugar».

Enquanto o navio estiver ancorado sempre os pos-tigos e escotilhas deviam estar abertas; e navegando,se o tempo o permitisse, devia-se usar da mesma cau-tela: como também mandar cada dia limpar, varrendo

122Memoires de Mathématique & Physique,citadas acimapág. 405.

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e lavando o navio, e expor os fatos ao Ar penduradossobre cordas, e no tempo de calmarias borrifar aque-les lugares mais frequentados com vinagre.

Nem jamais se devia permitir jantar ou cear entreas pontes ou cobertas.

Se o mau cheiro vier insuportável ou os marinhei-ros começarem a sentir ânsias, dificuldade de respi-rar, com as gengivas inchadas e negras, então serianecessário em todos os lugares encerrados do naviopôr uma caldeira de ferro com vinagre e lançar den-tro balas de artilharia ardendo: aquele fumo que selevantaria seria o mais seguro correctivo do Ar cor-rupto: se seguramente se pudessem queimar muitasvezes por dia pequenas porções de pólvora seria oseu efeito mais eficaz.

Até aqui dissemos de que Imodo se deve purifi-car o navio e dissipar as partículas podres que ficampegadas na madeira, como também de que modo sedevem extinguir os insectos, e de passo como se devepelos mesmos meios conservar o Ar puro do mesmonavio navegando.

Agora trataremos de que modo se hão-de fazer asprovisões para se conservarem sem alteração ou po-dridão. Traduzirei o que acho naquele excelente Fi-lósofo Estevão Hales, Autor Inglês, já traduzido emFrancês123.

Deve-se ter grande cuidado na bondade e na lim-peza das pipas que hão-de servir para fazer a provi-são da água para os navios: não deveriam ter servidonem a vinho, vinagre, aguardente, nem cerveja; setivessem servido a água somente deviam ser primei-ramente raspadas por dentro e bem lavadas, e depoisde secas, tanto estas como as pipas novas, deviam serbem perfumadas com enxofre, do mesmo modo quese perfumam para meter nelas vinho.

Logo que estiver uma pipa bem defumada vai-sepouco a pouco enchendo de água pura e a melhorque se achar no porto: não se encherá toda de umavez, mas logo que estiver meia deve-se tapar a bocae mover de um lado para o outro para que a água pe-netre do fumo do enxofre; e deste modo aumentandoa água e movendo-se se encherá e tapará. Não so-mente M. Deslandes124 aconselhou este método, masainda o grão Boerhaave quando foi consultado de Vi-ena no ano 1737 onde acusavam as águas corruptasque causaram tanto estrago no exército daquela Mo-narquia.

Estes Autores, e principalmente Boerhaave125,aconselham meter na água o óleo de enxofre ou de

123 Expériences Physiques sur la maniere de conserverl’eau douce, le biscuit, &c. par M. Hales, traduit del’Anglois. Paris, Dissertat. li, pág. 99.

124Memoires de l’Académie Royale des Sciences, 1722.125Chemiæ, tom. II, pág. 598.

vitríolo, como também o seu espírito:Glauberus126

e outros Químicos dos nossos tempos aconselharamo mesmo. O certo é que se se misturarem de cincoa seis gotas de espírito de vitríolo a cada canada deágua que se conservará por seis meses sem corrup-ção: a cada doze almudes de água se poderá misturarnela uma onça de peso de espírito de vitríolo e destemodo a proporção do que levar uma pipa.

Mas o mais seguro remédio, e também o mais fá-cil, é o que experimentou o Médico António Adding-ton no livro127 que compôs e que dedicou ao Almi-rantado de Inglaterra, consiste em deitar duas até trêsgotas em cada meia canada de água, ou uma onçaa cada doze almudes, deespírito de sallogo que seencherem as pipas, e se perfumarem com enxofre:e quando se não usar desta precaução com a águafresca, se poderá usar da mesma quantidade de es-pírito de sal quando apodrecer no mar; e conformea maior ou menor corrupção se poderá aumentar aquantidade do dito espírito.

Mas o mais fácil e o mais barato de todos os pre-servativos da corrupção da água é acal viva. Car-los Alston, Lente da Universidade de Edimburgo, naEscócia, achando-se enfermo da pedra bebia a águade cal contra esta queixa: ao mesmo tempo obser-vou que preservava a água da corrupção e que nãoera contrária ao gosto que se podia beber e cozinharcom ela sem o mínimo dano: publicou um tratadodesta descoberta no ano 1752, e que se acha tradu-zido em Francês128: ali diz, «destas experiências sevê que a água de cal pode ser utilíssima nas dilata-das viagens do mar, tanto para prevenir a corrupçãoda água como para destruir os insectos que se geramnela; e do mesmo modo para curar as enfermidadesàs quais os marinheiros estão sujeitos: esta experiên-cia é muito fácil, sem perigo e sem despesa: um ar-rátel de cal viva fresca bem calcinada basta para ummoio de água (que fazem doze almudes da nossa me-dida); a qual poderá servir de bebida ordinária tantoaos enfermos como aos sãos por precaução: e por be-bida ordinária seria necessário dar-lhe primeiro umafervura e expô-la a esfriar, e ficará semelhante emtudo à água doce, com a qual se poderão cozinhartodas as comidas ainda as mais delicadas».

Traduzirei aqui os lugares mais úteis a este intentopela utilidade de quem não entende nem o Inglês nemo Francês. Na página 349 diz, «a água de cal impedeou retarda por muito tempo a podridão das substân-cias animais. A 22 de Janeiro de 1751 pus água de

126Joh. Rodolph. Glauberus. Consolatio navigantiumAmstelodam. 1657, in 8.o.

127An Essay on the Scurvy London, 1753, in 8.o.128Dissertation sur leau de chaux, traduit de l’Anglois.

Paris, 1754, in 8.o, pág. 346.

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cal numa garrafa; e noutra água comum e pura, emcada uma pus um pedaço de carne de vaca fresca: etapei-as muito bem imediatamente... No 1 de Maioabri as garrafas: à que enchi com água pura estavacorrupta e a carne lançava um cheiro podre insupor-tável; aquela com a água de cal não tinha cheiro al-gum e a carne estava tão fresca como no instante quea meti dentro deste segundo vaso».

Fez este Autor as mesmas experiências com opeixe fresco e com o mesmo sucesso.

Na página 358, «pensei muitas vezes que se se me-tesse no fundo da popa do navio cal viva que corrigi-ria a podridão da água e impediria aquelas horrendasexalações que infectam de tal modo o Ar que vem fa-tal aos marinheiros... Esta água, além de que não au-menta a sede, pelo contrário, extingue-a e desalteratambém como a água pura; e o costume de bebê-lapor muito tempo fez que me é já agradável».

Na página 387 diz, «não pensei jamais que as vir-tudes da água de cal consistiam somente em corrigira putrefacção; mas quando a experiência me confir-mou esta propriedade fiquei sumamente satisfeito...Observei com igual contentamento que uma pequenaquantidade de cal viva em pedra, e bem calcinada im-pedia a corrupção de uma grande quantidade de água,e por consequência que seria utilíssima aos marinhei-ros nas dilatadas viagens do mar; o que contribuirá àConservação da Saúde desta porção do género hu-mano, da qual depende a prosperidade da nossa na-ção, e para quem publiquei principalmente esta dis-sertação».

Se eu tivesse experiência destes diferentes méto-dos de preservar a água decidiria ou pelo espírito devitríolo, espírito de sal ou pela cal viva: sem embargoconsiderando a facilidade e o mínimo custo de pre-servar a água pela cal, e ao mesmo tempo, que é tãopotável, como a água fresca, dando-lhe uma fervuraprimeiro e pondo-a a esfriar, fora de parecer fazercom esta água assim preparada a provisão dos na-vios, principalmente quando se pode cozinhar comela, o que não será tão fácil com a água na qual semisturarem os espíritos ácidos, como são o óleo e oespírito de vitríolo e o espírito de sal. Outra maiorconveniência se adquirirá usando da água de cal paraeste efeito, em lugar de perfumar as pipas com enxo-fre: requer esta operação trabalho e perda de tempo;o que não poderão fazer sempre os marinheiros.

Além disso serve a cal deitada no fundo da popaprincipal para corrigir a podridão da água, que infestade tal modo que ficam sufocados e mortos os quedescem a limpar aqueles lugares. Outros mais usosdaremos da água de cal quando falarmos da provisãodas carnes salgadas.

Por muitos anos procuraram muitos Filósofos e

Químicos fazer a água do mar potável, prevendo quepoderia faltar a água doce nas navegações dilatadas.M. APPLEBY, Químico Inglês, descobriu este se-gredo no ano 1753129; aqui porei o modo de fazeresta operação muito fácil que foi aprovada pelo Al-mirantado de Inglaterra, premiando o Autor grande-mente: valer-me-ei também do que disse para a suainteligência do que publicou M. Matty130, sobre esteinvento.

Metem-se num alambique dos maiores de cobrequarenta canadas de água do mar, pedra infernal daFarmacopeia de Londres seis onças: ossos calcina-dos até ficarem brancos seis onças; destilem-se afogo lento até saírem trinta canadas de água e serápura e capaz de servir de bebida sem dano.

Estes ingredientes são bastantes para dessalgar aágua dos mares do Norte; mas quem destilar estaágua do mar Mediterrâneo, Oceano e da Índia, porser mais salgada, e bituminosa, deve acrescentarmais uma terça parte dos ditos ingredientes; porexemplo às mesmas quarenta canadas de água jun-tará oito onças da pedra infernal, e outras oito onçasdos ossos calcinados.

A composição desta pedra infernal, conforme acomposição da Farmacopeia de Londres, pág. 44,& da qual usou M. Appleby, é a seguinte. Tomam-se de cinzas graveladas (cineres clavellati) que é umsal que vem da Rússia, e de cal viva partes iguais:deita-se água pura em cima até que toda a cal estejaapagada; mexe-se toda esta infusão até que o sal daRússia esteja incorporado na água; filtra-se por papelde estrassa: e chama-se o lixivio das savonarias: umquartilho deste lixivio deve pesar dezasseis onças: sepesar menos far-se-á evaporar até que fique na me-dida dita.

Quando se quer fazer a pedra infernal toma-sedeste lixivio a quantidade que quiserem e evapora-se até ficar a quarta parte, enquanto estiver fervendose deitará pouco a pouco cal viva em pó até que fiqueuma massa espessa, a qual se conservará em vaso devidro bem tapado para que o Ar não penetre.

Esta é a pedra infernal: poderá ser que fosse su-ficiente somente a mistura do sal da Rússia, ou cin-zas graveladas (que é o mesmo) com a cal viva paradeitá-la na água salgada, com os ossos já ditos paraproduzir o efeito de a dessalgar.

Esta água não é em tudo semelhante à água pura;sempre lhe fica um gosto desagradável, ainda que fi-que livre de todo o sal e todo o bitume que tem a águado mar: fica-lhe sempre um certo alkali volátil, uri-noso; o qual se poderá corrigir, ficando a água então

129Philosoph. Transact. tom. 48, pág. 69.130Journal œconomique, Juin, 1754, pág. 162. Paris, in

8.o.

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agradável, com duas gotas de espírito de sal a cadaquartilho, ou sumo de limão, ou calda dele como di-remos em seu lugar.

Este segredo é somente no caso de necessidadepara que não pereçam os navegantes por falta daágua, por isso os Capitães dos navios fazem provisãode um alambique, dos ingredientes ditos e de carvãopara destilarem água do mar.

Os alambiques maiores contêm quarenta canadase em duas horas e meia podem-se destilar trinta cana-das de água pura como dissemos: nestas duas horase meia se queimará meio alqueire de carvão poucomais ou menos; de tal modo que o custo destas trintacanadas de água não excede a 120 rz.

No caso que se determinasse por longas experiên-cias que não era necessário fazer provisão de águadoce em barricas, porque esta destilada serviria coma mesma salubridade, é certo que seria de grandeconveniência para a navegação. Porque meio al-queire de carvão ocuparia no navio somente o lu-gar de oito canadas de água; assim ganharia o navioquase três quartos de lugar.

Consideramos ainda o navio no porto; e de quemodo se devem embarcar as provisões que possamservir incorruptas por toda a viagem. Traduzirei aquio que Estevão Hales131 aconselha nesta matéria, tãodigna de ser atendida por quem tiver a cargo conser-var a vida dos navegantes.

As provisões de legumes, arroz e farinha, ou semete em barris ou em arcas; e o biscoito ordinaria-mente em armazéns: o bacalhau e o peixe seco sal-gado serve também para provisão que se guarda nosmesmos lugares: todas estas provisões apodrecempelo discurso das longas viagens, geram-se quanti-dade de insectos; daqui vem não só faltarem, masaquelas que ficam servem mais para destruir a Saúdedo que para sustentar os navegantes. Que custo, quegasto ou que trabalho se deveria poupar para conser-var estas provisões incorruptas, que é o mesmo queconservar a vida dos marinheiros?

Estas barricas, tóneis ou arcas que dissemos se ha-viam de perfumar do modo seguinte antes de embar-carem. Diz o dito Hales na página citada: «Antesde encher os ditos toneis ou pipas de sementes, fa-rinha ou biscoito será necessário fazer sete ou oitoburacos da largura daqueles que têm a boca das bo-telhas que servem ao vinho num dos tampões, e doisou três, mais ou menos, conforme a experiência mos-trar for necessário; no outro tampão do tonel ou pipasuperior antecedentemente bem raspadas as pipas ebem limpas. Para impedir que as sementes, ou a fa-rinha não saia por estes buracos, ou que ela mesmo,

131Expériences Physiques, traduit de l’Anglois.Paris,1741, Dissertat. III, pág. 117.

como as sementes, os não tapem para impedir esteefeito pregar-se-ão dentro do fundo de cada barriltrês vaquetas de pau da grossura de dois dedos so-bre as quais se pregará um pedaço de pano de linhoraro, ou um sedaço de tal modo que não chegue aofundo interior do tampão. Deste modo as sementesnão taparão os sete ou oito buracos e darão entradaao fumo de enxofre que subirá e descerá livrementepelo barril ou pipa.

Quando estiverem assim preparados então encher-se-ão com as ditas provisões. Logo se preparará umaboa quantidade de mechas de enxofre feitas de traposde linho e papelão, tudo bem embebido no enxofrederretido: abrir-se-á um buraco ou cova na terra, pro-funda de dois ou três pés e da largura de pé e meio,e à roda três ou quatro pedras, que sirvam de assentopara pôr em cima o barril: então meter-se-ão as me-chas na cova, pega-se-lhe o fogo: o fumo subindoentrará pelos sete ou oito buracos do tampão do bar-ril; e para que possa arder fica aquele vazio entre astrês ou quatro pedras pelo qual entrará o Ar que faráarder as mechas; assim continuará a arder e a fumaraté que saia o fumo pelos três ou quatro buracos dotampão superior do barril: quando tiver saído o fumopor eles por algum tempo, então tapar-se-ão com ro-lhas; e voltando o barril tapar-se-ão também os seteou oito buracos do tampão inferior: quanto mais beme fortemente ficarem tapados estes buracos por maistempo se guardarão as sementes e o bicho não se me-terá nelas. Do mesmo modo se poderão perfumar eenxofrar os armários e o armazém do biscoito en-quanto o navio estiver no porto: não se deve temerque este fumo seja nocivo à Saúde, nem que mude ogosto das provisões assim perfumadas».

Pelo que fica dito não creio que a farinha se po-derá perfumar deste modo, não ficando Ar entre ela,como fica entre as sementes; mas podem-se inventarcanudos feitos de lata, furados, como são os ralos,e que atravessem o barril de um buraco do tampãoinferior, ao tampão superior e, deste modo, se po-derá enxofrar a farinha e guarda-se isenta de todosos insectos. Mas não é crível que o pão feito com elapossa fermentar bem e por isso não se conselha abso-lutamente perfumá-la com enxofre, toda a precauçãoseria secá-la.

Dito Autor aconselha que no mar mesmo emtempo sossegado se poderão perfumar as provisõesditas se nelas aparecerem insectos: mas é necessárioconsiderar no perigo do fogo e evitar todas as oca-siões destes acidentes, o que mostra melhor a experi-ência do que os conselhos.

No mesmo tratado132 propõem salgar as carnes

132No Livro citado Dissert. IV, pág. 131.

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com uma forte salmoura, injectando o animal dego-lado pela artéria aorta e veia cava, de tal modo que asalmoura fique dentro das veias e das artérias do ani-mal do mesmo modo que estava o sangue enquantovivia: ali descreve a sorte de seringa com a qual sehaviam de encher os vasos sanguíneos do animal, ebem se vê que a meditação não vale tanto como aexperiência.

Tanto que se publicou em Londres este modo desalgar as carnes para a provisão dos navios, algunsCapitães de navio que estavam ao serviço da Rússiao propuseram ao Almirante Conde de Gallowin: elemandou imediatamente pôr em execução a proposta;e se fez a provisão de alguns navios com as carnesassim salgadas: mas o mesmo Almirante disse-meno ano 1739 que a carne vinha deste modo tão durae coriácea que era impossível servir de alimento nemainda aos marinheiros, pelo que revogou a ordem quetinha dado, e se continuaram a salgar as provisõesque faz cada ano aquele Almirantado do modo antigoe ordinário.

Proporei portanto algum meio mais fácil e eficazpara preservar as carnes salgadas da podridão que asfaz azuis e verdes e de cheiro cadaveroso. Ainda quepela maior parte todos acusem as carnes e peixes sal-gados serem a causa das enfermidades dos marinhei-ros é engano, se elas não forem corruptas: porque osal não é jamais causa da podridão, nem das doenças;é o Ar podre e encerrado com a humidade que ficadentro dos barris que as faz apodrecer; quem souberesgotar a humidade da carne e impedir que fique Ardentro do tonel onde estiverem poderá conservar acarne incorrupta e sem qualidade nociva.

Os caçadores da comarca de Castelo Branco notempo da Quaresma não deixam de caçar coelhos eperdizes, e para conservá-los assam quase metade emetem-nos dentro de talhas de azeite: fica esta sortede carnes fresca por muito tempo. M. Deslandes,já citado, diz que os Ingleses levam à Índia orientalcarne fresca metida em talhas de azeite.

As carnes meias assadas conservam-se incorrup-tas também metidas em barris de gordura ou de seboderretido. Logo que ficarem privadas da humidadedo Ar conservam-se por muito tempo. Desta sorte decarnes poderão os passageiros, e os Oficiais fazer aprovisão; mas seria muito custosa fazê-la para os ma-rinheiros; e por essa razão proporemos o modo maisfácil e mais sadio de salgá-las.

O modo mais fácil é salgá-la de salmoura: todasas carnes para fazer delas provisão deviam ser bemdegoladas; e vimos acima que o sangue é o líquidodo nosso corpo que apodrece mais depressa depoisdo fel. A carne fresca em pedaços devia espremer-se num lagar onde se espremem as uvas, ou fabri-

cado a propósito a este fim: podia-se meter a carneem seirões ou pô-la a espremer entre tábuas; logoque estivesse espremida devia meter-se feita em pe-daços em barris cheios de salmoura. Ainda que vul-garmente seja notório como se faz, quero pôr aquiaquela da qual tenho experiência e na qual se curti-ram frutos, como pepinos, pimentos, azeitonas, peixee carne por muito tempo. Põe-se uma grande quanti-dade de água a ferver e deita-se-lhe tanto sal dentroquanto se possa desfazer nela: então tirar-se-á fora dofogo e quando estiver fria meter-se-á um ovo inteiro efresco dentro; se nadar e a metade ficar fora da água,a salmoura está feita: se o ovo ficar na água, mas queapareça pouca parte dele, é sinal que necessita aindade sal, o que se acrescentará fazendo ferver água ou-tra vez: e quando vier mostrar-se à metade fora daágua então deixar-se-á esfriar, metê-la em barris la-vados e puros e dentro deles a carne espremida, detal modo que fique coberta desta salmoura. Quandose quer cozinhar então se dessalga, e enquanto ferverdeitar-se-á um pouco de vinagre, o que a fará maistenra, e a dessalgará. Quem quiser fazer a salmouracom menor trabalho, ainda que seja por mais tempo,poderá fazê-la do modo que aconselha Columella133.Enche-se de água da chuva, ou de qualquer fonte pu-ríssima uma grande talha de barro: mete-se nela umacesta, ou condessa cheia de sal branco, e bem limpo,ali ficará até se desfazer; quando todo estiver des-feito, meter-se-á dentro da mesma cesta outra tantaquantidade: logo que se não desfizer e que o sal ficarinteiro dentro da cesta, ou condessa, é sinal que naágua não se pode desfazer mais sal e que a salmouraestá feita. Nesta meter-se-ão as carnes, ou o peixedentro de barris, e dever-se-ão expor ao sol tapados,não só para ficarem bem curtidas, mas também por-que adquirem bom cheiro e consistência.

Quem quiser insistir no modo ordinário de salgaras carnes pela menor despesa e facilidade o poderáfazer do modo seguinte.

A carne que se deve salgar deve-se pôr numagrande masseira ou tabuleiro no qual deve estar osal espalhado, então toma-se uma tábua, do feitio deuma carda, na qual estejam pregados pregos bastan-tes de tal modo que as cabeças fiquem iguais e empouca distância umas das outras: com esta carda sevai esfregando a carne juntamente com o sal para quefique bem penetrada dele. Esta operação deve-se fa-zer com força e actividade, e resultarão dois benefí-cios para a conservação da carne: a primeira é quepelo movimento e agitação da carda se dissipa muitahumidade e se rompem muitas veias e artérias ondeainda ficou o sangue: a segunda é que o sal penetrará

133Lib. XII, cap. 6.

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a carne pelo menos à altura de uma polegada, e se forcom força será até duas. Então se deverá meter embarris bem acalcada, para que não fique Ar dentro, eo barril bem tapado.

Mas quem quisesse conservar esta carne por muitotempo o melhor modo seria malhá-la e batê-la, atéque viesse correenta, e quase seca, e depois pô-laa secar no fumeiro como se faz com os presuntos;quem achar penível esta preparação poderá mandá-la pôr no fumeiro somente: e se o tempo fosse ar-dente bastaria pô-la ao vento em lugar elevado atéque deixasse de escorrer a mínima gota de humidade.Secando-se as carnes a corrupção não tem lugar; e ofogo e o fumo são os agentes mais poderosos pararesistir-lhe e em segundo lugar os raios do Sol do Es-tio onde houver viração.

Considerando que são os Portugueses obrigadosa fazerem muitas vezes expedições pelos sertões daAmérica e África por muitos meses, e que são obriga-dos a viverem somente de frutos ou de algum milhogrosso que semeiam, tanto eles como os seus escra-vos, considerando que se matarem alguma rês quenão poderão conservar a carne naqueles climas quepor um ou outro dia, quis também aqui pôr de quemodo algumas nações conservam a carne por muitotempo sem sal nem adubo algum.

Depois de terem a carne fresca feita em pedaçosfazem uma cova na terra da grandeza e altura à pro-porção da carne que querem preparar. Nela fazemfogo até que fique cheia de brasas vivas; as quais ti-ram logo, e põem de parte; então a forram por todosos lados de junco verde, ou de qualquer outra erva,que os cavalos comem, da grossura de uma mão tra-vessa: metem então a carne dentro feita em pedaços,que cobrem com a mesma erva bem acalcada, e debastante grossura; então cobrem toda a boca da covacom as brasas, e borralho que estava de parte, e so-bre ele fazem um pequeno fogo de flama viva. Tudofica neste estado até que observam que a altura dacova se abaixa: então tiram fora da cova todo aquelejunco com a carne juntamente em forma de torrão,que deixam esfriar; e depois de limpo da cinza edo carvão, fica toda esta massa capaz de conserva-se nela a carne quase estufada, por muito tempo, emestado de comer-se fria, ou como acham a propósito.

Quem não quiser conservar o couro da rês quematar poderá conservar a carne do modo seguinte:esfolar-se-á o couro inteiro, do modo que se esfolamos bodes para fazer odres, e dentro dele meter-se-á acarne feita em pedaços: o cabelo ficará para dentro eo carnaz para fora: então este saco, ou pele cheiade carne pendurar-se-á tão alto que se possa fazerfogo de brasa forte debaixo: o que sucede é que ocouro pouco a pouco vai-se encolhendo e a carne de

dentro espremendo e assando: continua-se o fogo atéque não saia daquele couro a mínima gota de humi-dade então é sinal que a carne está seca e capaz deconservar-se muito tempo incorrupta.

Mas quem quiser persistir no antigo modo de sal-gar as carnes poderá corrigir em parte, ou pode serque toda a podridão, que contraírem, do modo se-guinte. Carlos Alston134 depois de relatar as expe-riências que o peixe fresco se conserva por muitostempos incorrupto na água de cal e que se pode co-mer então sem a mínima alteração relata as experiên-cias seguintes.

«Misturei uma parte de salmoura de arenques(peixe semelhante às nossas sardinhas) já velha dedez meses, de cor parda, tirando para a vermelha comduas partes de água de cal; toda a mistura veio turva,sem cheiro algum; misturei mais outras duas partesde água de cal; e comecei a sentir um cheiro seme-lhante ao do espírito de sal amoníaco; então a misturaprecipitou uma substância branca e, por último, veioclara: dissipou-se aquele volátil do sal e ficou a mis-tura com o gosto e cheiro do peixe fresco salgado. Omesmo fiz com a salmoura da carne de vaca salgadahavia muito tempo; fiz o mesmo com ela e sucedeu-me o mesmo que com a salmoura do peixe».

Ainda que por estas experiências não se veja cla-ramente que a água de cal corrige a podridão da carnesalgada são, portanto, dignas de reparo para se lava-rem aquelas que apodrecerem no navio com água decal e meterem-se nela a dessalgar por algum tempo,feita em pequenos pedaços, e é certo que tratando-as deste modo sempre será mais comestível do quepodre; poderá suceder no fim das largas navegaçõesnão terem os marinheiros outro alimento do que ascarnes salgadas ao ordinário, mas já podres; convémterem um remédio tão fácil e barato como o referidopara corrigirem em parte a corrupção do que lhe há-de servir de alimento forçado.

Devia entrar no número das provisões bastantequantidade de vinagre e, principalmente, de vinhobranco: vimos pelo discurso de todo este tratado osseus efeitos para corrigir o Ar corrupto: vimos o con-tínuo uso que dele se requer não só fervido naqueleslugares encerrados onde habitam os enfermos e os ro-bustos, mas ainda para misturá-lo na comida. Se noscampos militares e nas marchas no tempo das calma-rias aconselhamos tanto o uso das migas frias, muitomais o aconselhamos aos navegantes e aos marinhei-ros: vimos que o azeite, com vinagre e sal misturadocom o biscoito, ou pão amolecido, e adobado compimento ou sem ele, é o mais excelente correctivocontra a podridão dos nossos humores, causada ou

134Na Dissertação citada sobre a água da cal.

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pela corrupção do Ar ou pela sufocação dele, o quesucede nas calmarias. Quando saíssem da Costa, daMina e de Angola os navios carregados de escravos,este deveria ser o seu alimento, ou pelo menos toda aágua que bebessem deveria ser misturada com vina-gre; e cada um ter uma porção de aguardente. Alémdo uso que dele se faria na bebida e nos alimentosserve tanto na Cirurgia, que poucos são os casos nelaonde se não necessite deste licor.

Devia também entrar por provisão dos navios bas-tante quantidade de aguardente para ter dela cadamarinheiro no tempo dos grandes calores e das cal-marias um copo de duas ou três onças cada manhã,em jejum, ou logo depois de comer biscoito hume-decido e adobado com sal principalmente no tempodas calmarias. Já vejo que todos gritarão contra a mi-nha temeridade e que me alegarão mil exemplos dosperniciosos efeitos desta bebida: já vejo que me ale-garão que queima as entranhas, que produz chagasmortais nas pernas; que causa icterícias incuráveis e,por último, hidropesias. Ao que respondo que é ver-dade que produz todos estes males tomada em maiorquantidade daquela que determinamos acima: masé engano persuadir-se que a aguardente seja nocivaao nosso corpo: por todas as experiências até agorafeitas, ou nos viventes ou em outra qualquer subs-tância sabe-se incontestavelmente que a aguardentedefende os corpos da podridão e que a corrige umavez que for gerada em qualquer parte: vimos acimacomo as carnes se conservam nela: tomada na quan-tidade que determinamos fortifica todas as fibras docorpo e principalmente as do estômago, já relaxadono tempo das calmarias e calores excessivos: embal-sama os nossos humores. E poucos remédios cordi-ais e confortantes se acham que não sejam compos-tos deste precioso licor para a Conservação da Saúdenos climas ardentes, como são aqueles entre os trópi-cos. Parece-me são já supérfluas maiores razões nemautoridades: a experiência portanto conservará aquicomo sempre o seu valor. Ouvi dizer ao grão Bo-erhaave que um Almirante Holandês lhe dissera quese achava defronte de Cadiz com a sua frota, e quenela reinava uma epidemia de febres e de câmaras,mortal na maior parte da equipagem, os calores en-tão eram excessivos, e como os Cirurgiões tratavamestas febres de malignas, aos sãos por precaução eaos enfermos por remédio davam a todos triaga e ou-tras confeições cardíacas; recusou sempre tomá-lasum velho piloto e dizia ao Almirante, mostrando-lheuma botelha de aguardente, que ali tinha o mais so-berano remédio contra todas as queixas nascidas nomar: que ele tomando uma onça cada dia por muitasvezes se tinha assim preservado em casos semelhan-tes e que assim esperava naquela preservar-se: o que

com efeito sucedeu porque jamais sentiu a mínimamoléstia.

Bem me parece ser supérfluo indicar as virtudesdos limões e laranjas azedas aos Portugueses inte-ligentes: todos sabem o soberano remédio que sãocontra as moléstias do mar e quanto resistem à po-dridão dos humores: mas poucos saberão usar destesfrutos e do seu sumo e também conservá-lo.

Eu não conheço remédio mais excelente na curade todas as febres como são os limões azedos: pa-rece que a Suma Providência fez tão abundantes de-les todas as terras meridionais e entre os trópicos comtal maravilha que tanto mais o clima é ardente, maisazeda é esta fruta: o seu azedo tem uma excelên-cia que não se acha nem no vinagre, nem nos tama-rindos, nem em nenhum espírito mineral destilado,como são os de vitríolo, de sal e de enxofre: consistepois em que ao mesmo tempo é aromático : no limãoexiste um óleo aromático penetrante, mais na cascaque no sumo, o qual é juntamente azedo; estas duaspropriedades unidas refrescam, emendam a podridãodos nossos humores e promovem a transpiração e aevacuação das urinas. Refere aquele ilustre MédicoMead135 que lhe contara o Vice Almirante Wager,que achando-se com a esquadra que governava nomar Mediterrâneo todos os marinheiros caíram numterrível escorbuto, ou mal de Luanda; que havendofeito em Liorne uma grande provisão de limões e delaranjas, ordenára que trouxessem cada dia um cestoem cima do convés, com permissão que cada mari-nheiro pudesse comer deles : estes não somente oscomiam, mas espremiam o sumo na cerveja que be-biam; divertiam-se ao mesmo tempo atirando com ascascas uns aos outros, de tal modo que todo o convésestava coalhado delas: o efeito desta profusão foi tãoexcelente que os enfermos do escorbuto se curaram eos mais se preservaram dele e todos chegaram a portodesejado com Saúde.

Mas nem sempre se poderá fazer uma provisãotão abundante para todos os marinheiros: pelo que sepoderia compensar esta perda fazendo a provisão desumo de limão e de laranjas metido em barris com asprecauções seguintes para conservar-se sobre o marmesmo até às Índias orientais.

Depois de espremidos estes sumos deviam ser co-ados e postos em cima do fogo onde fervessem atéminguar quase uma terça parte; para ficarem tão es-pessos como xarope ou calda de arrobe encorpada.Os Turcos costumam preparar dos sumos das amei-xas e morangos esta sorte de caldas, as quais mis-turam com água que bebem no tempo dos calores.No Brasil, em Angola, na Índia e nas Ilhas não se

135Dissertação sobre o Escorbuto anexa ao tratado.Nou-velle méthode de pomper l’air, par M. Sutton.

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poderiam talvez preparar destes sumos apurados delimões e laranjas azedas, mas de muitos outros frutosagro-doces que ali nascem em abundância.

Destes sumos se poderiam fazer excelentes bebi-das contra as febres, câmaras, desmaios, icteríciascom febre: desfeitos em água com açucar, e umaleve porção de aguardente de tal modo que a bebidaficasse agro-doce, com o gosto de aguardente: seriatambém para corrigir a podridão da água, misturandoao mesmo tempo algumas gotas de aguardente: seriaa mais saudável bebida sobre o mar, e a mais salu-tífera contra todas as doenças que se experimentamnavegando principalmente entre os trópicos.

Fui consultado por um ilustre navegante que par-tia para a Índia, saindo dos mares do Norte, e lheaconselhei fazer uma grande provisão de sumo de li-mão do modo dito e de usar dele como fica referido:avisou-me do Rio de Janeiro que ele fora o único quena viagem de três meses não padecera no navio o es-corbuto do qual mal ficavam todos enfermos e quemuitos na viagem acabaram a vida pela mesma do-ença, o que atribuia ao continuado uso do sumo de li-mão misturado na água com algumas gotas de aguar-dente por bebida ordinária em toda a viagem.

Todos atribuem o preservarem-se os Holandesesdo escorbuto nas suas navegações mais facilmente doque as outras nações ao grande uso que fazem nave-gando do peixe seco sem ser salgado antes. Fora fácilnos portos do mar em Portugal, como em Buarcos,Figueira, Peniche e outros do Algarve secar o peixecomo se faz com as pescadas de Buarcos, e deste fa-zerem também os navios a sua provisão: é certo queseria mais saudável que o bacalhau de que usam eque compram aos Estrangeiros.

Capítulo XXIX

Métodos para conservar o Arpuro dos navios à velaParece-me que satisfizemos ao sumo desejo que nosmoveu escrever este tratado propondo tudo o neces-sário para conservar as provisões dos navios e in-dicar aquelas que preservam a Saúde dos navegan-tes. Agora com o mesmo procuraremos indicar tudoaquilo que poderá contribuir a conservar o Ar dos na-vios à vela puro e incorrupto.

Vários métodos se procuraram até agora por todasas Potências Marítimas, e destes escolherei os maisfáceis de praticar e os mais efectivos: e não deixareide indicar aqueles que não aprovo ou pela sua difi-culdade ou pelos seus maus efeitos.

M. Bigot de Morogues136 refere que o engenho deque usaram os marinheiros até agora para renovar oAr dos navios era um grande funil feito de pano delona; a boca mais larga atada a um masto virada parao vento e a boca mais estreita que vinha até entreas pontes, até chegar ao fundo do navio, e que destemodo se limpava da podridão do Ar e do mau cheiro,como da corrupção da água podre: mas ao mesmotempo diz que nas calmarias este grande funil é inú-til: que pode ter alguma serventia enquanto o navioestiver ancorado, mas que indo à vela os Capitãesobservaram que por ele entra uma tormenta de ventotão forte que faz resfriar, e adoecer os marinheirospela súbita mudança do Ar: porque estando quentese, às vezes, suando, subitamente vêm frios pela cor-rente do vento como de tormenta que se comunicapelo dito funil.

Guilhelmo Watson137 refere desta sorte de funil delona o seguinte: «Esta sorte de vela feita ao modo defunil é mui incómoda, e causa infinitos embaraçosno navio: além de que o Ar não se renova no navioquando é necessário, tem as dificuldades seguintes.Primeiramente cada navio tem ordinariamente trêsdestes funis; os marinheiros consomem um tempoinfinito, a pô-las e a ajustá-las para servirem. Emsegundo lugar, só fervem no tempo sereno, e semvento, forte;Terceiro de baixo da linha equinocialvem totalmente inútil; porque reinando ali as calma-rias não há vento para dilatar e soprar por este ins-trumento.Quarto: o Ar que entra por este funil ficasomente nas partes superiores do navio; mas nuncachega a purificar o Ar do fundo de cal nem da popaprincipal:Quinta: não é de serventia alguma de noiteenquanto dormem os marinheiros.Sexta: nos naviosque servem de Hospital, ou onde houver muitos en-fermos, este engenho será pernicioso porque esfriaráde repente os doentes e lhes aumentará só seus ma-les».

M. Bigot no lugar citado dá a descrição e o usodo ventilador de Estevão Hales: este instrumento éuma sorte de moinho de vento pelo qual entra o Arpor um buraco que comunica a diferentes canos quese distribuem por todo o navio: o Autor publicoudesta invenção um livro em Inglês, já traduzido emFrancês138 por onde se vê que o Ar dos navios, dasprisões, dos Hospitais e dos celeiros se pode renovar,introduzindo por um buraco dele Ar puro e obrigandoa sair o Ar corrupto e encerrado pelo outro.

M. Bigot aprova o uso deste instrumento chamado

136Memoires de Mathématique & Physique, citadasacima, pág. 406.

137Nouvelle méthode de pomper l’air, citada pág. 69.138 Ventilateur, par M. Hales & traduit par M. Demours.

Paris, chez Charles Poirion, in -12.

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ventilador, fundado na experiência que teve dos seusbons efeitos: mas é certo que este instrumento temos inconvenientes seguintes: somente se pode usardele no tempo sereno: nos navios onde não há gentebastante para a manobra deles, faltarão mãos parapompearem uma ou duas vezes por dia nesta sorte demoinhos a braços. O mesmo inconveniente que tema vela feita em forma de funil tem também o ventila-dor; esfria de repente o Ar e causa maiores danos quebenefício nos Hospitais dos navios, ou nos lugaresdeles onde houver enfermos: este instrumento ocupamuito lugar no navio: o Ar corrupto da pompa prin-cipal nunca se renova por ele pelo que o seu uso nãoestá universalmente introduzido nos navios, nem deguerra nem mercantes: é verdade que na prisão pú-blica de Londres chamada Newgate serve com sumobenefício a conservar aquele lugar areado e sem amínima corrupção.

Samuel Suton observando os inconvenientes refe-ridos pelos dois engenhos determinou renovar o Arcorrupto dos navios pelo fogo e com tanta sagacidadee parcimónia que o mesmo que serve na cozinha fazo efeito que procurava. Publicou deste invento um li-vro139 que se acha traduzido em Francês: como nelese lêem muitas particularidades tocantes às enfermi-dades dos marinheiros causadas pelo Ar corrupto querespiram e o modo mais fácil de remediá-lo copiarei,traduzindo dele, o que achar mais a propósito, consi-derando que farei gosto aos meus Leitores.

O célebre Médico Ricardo Mead apresentou à So-ciadade Real a exposição seguinte em favor desta in-venção «os funestos efeitos do Ar encerrado nos po-ços profundos nas prisões, e nos aposentos estreitosonde habitam muitas pessoas expostas ao mesmo ca-lor, e ordinariamente a pouca limpeza, são conheci-dos de todo o mundo. Mas eles são muito mais perni-ciosos nos navios onde se acha sempre água podre nofundo deles, onde os marinheiros vivem mui estreita-mente, e mui juntos uns dos outros: é lei da naturezaque tanto que faltar a comunicação entre o Ar encer-rado com o Ar livre, que o primeiro se corrompa: osvapores e as exalações que se levantam da água podredo fundo do navio, da pompa principal, das provi-sões, que ordinariamente apodrecem, tendo-se já ge-rado insectos nelas, todas ficam naquele Ar que res-piram os marinheiros: além das exalações que saemdos seus corpos continuamente: daqui vem, que pelomau cheiro do navio, e por este Ar corrupto caemenfermos com dores de cabeça, ânsias, suores frios,fraqueza de todos os membros, e por último febrespodres, disenterias e o escorbuto, enfermidades in-superáveis por todos os socorros da Medicina, se não

139An HistoricaI Account of a new method for extractingthe foul air out of ships. London, 1749, in 8.o.

se destruir a causa destes males: consiste o remédio arenovar aquele Ar encerrado desde o fundo do navio,pompa principal, armazém dos alimentos &c., peloAr livre e puro que cercar o navio à roda.

Samuel Suton achou este remédio pelo meio dofogo, o qual não somente é excelente nos navios, masainda nas casas particulares, nas prisões, nos poçospara impedir as exalações das latrinas e principal-mente nos Hospitais».

Nenhuma coisa rarefaz mais o Ar do que o ca-lor: quanto mais o Ar for quente mais ligeiro será:segue-se logo que como o Ar é um líquido que àquelepegado mais frio sendo mais pesado irá cair onde ooutro estiver mais ligeiro ou raro e, deste modo, o Armove-se, agita-se e renova-se. Por um artifício seme-lhante Samuel Suton purifica o Ar dos navios que sedevem considerar como uma adega encerrada cheiade Ar corrupto.

Cada navio à proporção da gente que leva tem umfogão para cozinhar e servir tudo o que serve o fogode uma cozinha: este fogão é uma arca de figura cú-bica de ferro separada pelo meio por uma grelha domesmo metal: em cima desta arde o carvão ou lenhae as cinzas caem no fundo. Para acender o fogo ta-pam com uma porta de ferro a metade do fogão dagrelha para cima: o Ar entra por baixo da grelha efaz arder o fogo; o fumo sai por um canudo que estápegado no cimo do mesmo fogão.

A invenção consiste agora que em lugar que o Arque acende o fogo vai da parte superior do navio,onde o Ar é puro e ventilado, dito Suton faz que sóo Ar encerrado no navio acenda o fogo: e fá-lo facil-mente deste modo.

Se da grelha para baixo se tapar o fogo com umaporta de ferro não entrará Ar algum para acendê-loe logo se apagará o que estava aceso: do mesmomodo que se apagaria o fogo da chaminé na adegaque pusemos por exemplo acima; que faz o dito Su-ton? Abre quatro ou seis buracos de duas ou trêspolegadas de diâmetro nos lados ou nos cantos dofundo do fogão e ajusta neles outros tantos canudosde chumbo ou de cobre, os quais atravessando o na-vio, um vai dar ao fundo dele, outro à popa principal,outro no quarto onde está o biscoito, outro entre aspontes, e deste modo ao lugar que querem purificar.Que sucede? Como o fogo está aceso no fogão, e queardia pelo Ar que entrava por baixo da grelha, logoque se fecha esta segunda abertura, o Ar que está nofim dos canudos sobe por eles e vem a fazer arder ofogo, do mesmo modo que fazia o Ar do convés donavio com a segunda porta aberta: qualquer se con-vencerá então que o fogo continuará a arder pelo Arque vem do fundo do navio, e da pompa principal:não tem mais que pôr uma vela acesa defronte da

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boca do canudo que estiver neste lugar o mais pro-fundo do navio, e verá logo que se apaga: sinal queo Ar sobe pelo canudo para ir fazer arder o fogo dofogão.

Continuemos à semelhança do fogão com a cha-miné da adega que pusemos acima por exemplo: es-tava nela o fogo aceso: se se tapar a chaminé comuma porta de tal modo que nenhum Ar da adegapossa entrar nela para acender o fogo, é força que seapague logo. Mas se no lar da chaminé, ou nos can-tos estivessem dois buracos com canudos, e que estesfossem dar a outra adega mais abaixo, então dela su-biria o Ar pelos canudos para fazer arder o fogo dachaminé.

Já se sabe que se de toda a parte do fundo do na-vio subir o Ar encerrado para vir a fazer arder o fogodo fogão, que é força que outro Ar fique no lugar docorrupto: mas este Ar reparado entrará pelas escoti-lhas, pelos postigos do navio; mas este Ar é puro, éo Ar da atmosfera; este entrará no fundo do navio,em todos os lugares cobertos dele, entrará pelos ca-nudos e sairá pela chaminé do fogão. E deste modose limpará o navio do Ar corrupto cada dia, porquecada dia se fará de comer e acenderá fogo no fogão.

E não somente subirá o Ar do fundo do navio pe-los canudos enquanto arder o fogo mas ainda semfogo, contanto que nele fiquem brasas, ou tanto calorque seja maior, que o calor do fundo do navio: por-que o Ar o mais frio e pesado sempre vem buscar oAr mais quente e ligeiro.

A utilidade desta invenção é tão visível nos peque-nos como nos grandes navios: porque tanto maiorserá o número dos marinheiros e navegantes, tantomaior será o fogão: e no mesmo tempo que se limparo pequeno navio do Ar corrupto, se limpará uma naude guerra.

Não é necessário especificar o número dos canu-dos nem a sua grossura; quanto mais largos forem eem maior número, com menor ímpeto, entrará o Arencerrado por eles e o fogo não arderá tão violenta-mente: pelo contrário, se forem estreitos e em menornúmero então o fogo arderá com maior violência e aflama sairá pela chaminé: a qual nunca se vê sair en-quanto a porta inferior do fogão estiver aberta, e porela entrar o Ar para acender e arder a lenha em cimada grelha.

Não faltará quem oponha que é multiplicar os gas-tos dos navios mercantes; que os canudos serão de in-finitos baraços no navio, e que quando se carregar edescarregar que se farão frequentemente em pedaços;que ocuparão muito lugar principalmente nos naviosde carga, o que será de grande detrimento para o co-mércio.

O que se poderá remediar do modo seguinte. Bas-

tará um canudo assaz largo que fique ajustado naparte inferior do fundo do fogão, e que a sua aber-tura fique debaixo da grelha de ferro: este canudologo que atravessasse o convés devia espalmar-seum pouco, (a figura redonda ficaria mais exposta aofender-se) e logo ali dividi-lo em quatro ou cincocanudos que seguiriam os lados dos caibros e jun-turas do navio, para por estes ficarem amparados doreboliço dos marinheiros.

Diz o Autor que a despesa destes canudos não ex-cederia o valor de trinta libras esterlinas, que serão114 mil rs, pouco mais ou menos, pelo que consi-derando o simples desta invenção e a facilidade deexecutá-la, o pouco embaraço que causa, e o poucolugar que ocupa no navio, sem trabalho dos mari-nheiros e sem despesa para entreter-se cada dia noseu exercício, são poderosos motivos para que cadanavio tanto de guerra como mercantil use dela emtodo o tempo.

M. Duhamel140 aconselha a mesma sorte de fogãocom canudos que vão dar no fundo do navio e entreas cobertas, e toda a diferença do que diz consisteem adaptar os canudos no fogão ao modo das cozi-nhas Francesas nos navios de guerra. É certo que estemeio de renovar o Ar neles, ou em outro qualquer queapontamos acima, é o mais eficaz, o mais fácil e me-nos dispendioso e seria um grau bem da sociedadehumana que se introduzissem tão vulgarmente comose introduziram as chaminés em cada casa particular.

Capítulo XXX

Situação e estado da Saúde dosmarinheiros e dos navegantesno navio à velaSeria já supérfluo tratar desta matéria com distinção,considerando o que fica dito por todo este tratado:mas como propus dar-me a entender aos mesmos ma-rinheiros ninguém me acusará de prolixidade.

Quem leu com atenção as relações das viagens ob-servou sempre nas dilatadas caírem os marinheirosem várias doenças, como são febres ardentes, câma-ras de sangue e mal de Luanda: caem em chagas daspernas, várias comichões, e por último com sarna:e que estas doenças são tanto maiores e perigosasquanto maior for o navio e o número da gente que na-vega. Já se deve considerar a causa quando conside-ramos que um navio à vela é uma prisão onde todosrespiram o Ar que muitas e muitas vezes respiraram:vimos que tudo se dispõe a apodrecer dentro dele:

140Memoires de l’Académie des Sciences, 1748, p. 1.

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apodrece a água no porão e como fica encerrada nãose dissipam aquelas exalações e a cada momento vêmmais acres, fétidas e corrosivas: começa a água naspipas a apodrecer, como também as provisões a ar-der: o Ar que fica encerrado nos cofres, entre os far-dos, nos armários, gabinetes vem húmido, sufocado,quente tanto pelo movimento do navio, como pelatranspiração dos animais, contemos neste número osratos, milhares de insectos que todos transpiram exa-lações acres, e podres.

Além destas causas contínuas da podridão, inse-paráveis daquele estado, há outras ainda de maiordestruição: os marinheiros nem mudam roupa de li-nho nem o calçado tantas vezes como requer aquelavida dura e laboriosa, apodrece o suor na roupa e nosvestidos; muitas vezes molhados metem-se a dormir,pelo calor do corpo a humidade se exala; mas ela émisturada com a transpiração, que a faz fétida e po-dre: as camas dos mais passageiros nunca se secam,nem ainda os seus vestidos.

Se no navio houver enfermos, com feridas chagas,mal de Luanda, as exalações destes corpos aumenta-rão ainda muito mais a podridão daquele lugar. Ordi-nariamente todos os que navegam têm o corpo cons-tipado; daqui vem que a sua transpiração sempre serámais acre e mais podre que aquela de quem vive naterra.

Mas todos estes males aumentam de uma vez logoque começam a beber águas fétidas, logo que come-rem alimentos que começaram a arder e apodrecer:então é força que a transpiração seja pestilenta: compouca diferença é um homem naquele estado um ca-dáver vivo: o Ar que respira é podre, como tudo oque come e bebe: tudo o que entra nele é podridão,é força que tudo o que sair e exalar do mesmo corposeja podre e pestilento.

Vimos acima que todos atribuem às frutas do Ou-tono e às bebidas de aguardente e vinho as doençasdos Soldados nos exércitos; opinião errada que de-monstramos. Do mesmo modo todos atribuem às do-enças sobre o mar as carnes salgadas e as águas po-dres; mas ninguém até agora, (exceptuando os Mé-dicos Ingleses) pensou na humidade excessiva; e napodridão a mais activa que reina nos navios.

Outros deram por causa das enfermidades do mar,o Ar salgado que se respira no navio: o que é ig-norância. É certo que o Ar do mar é mais húmidoque o da terra: também é mais quente, e como domar se levantam mais exalações dos animais viven-tes e mortos que da terra daqui vem que causa maisamiúde enfermidades podres e pestilentas.

Na viagem do Lord Anson141 relata-se que não

141Voyage round the World by George Anson. London,1748, pág. 396 in-8.o.

obstante que todos comiam carnes frescas e peixefresco que todos adoeceram mortalmente do mal deLuanda: pelo que acusavam o Ar do mar; porque na-vegando no mar Pacífico muitos graus distantes daterra, daqui vinha que não sendo refrescados pelosventos dela que todos adoeciam e morriam.

Nenhum vento do mar é jamais tão seco nem tãopuro como o da terra: os que saem desta sempre sãomais secos, sempre levam consigo partículas dos ve-getais ou fragantes: pelo contrário, os ventos do marsempre vão carregados de humidade, e o pior de tudoé daquela imensidade de exalações que se levantamdos peixes e de tantas matérias podres que existem nomar: pelas mares sempre se exalam, tudo ali está emmovimento, ou gerando-se ou apodrecendo: e nestecírculo admirável se conserva aquele limitado Uni-verso.

Este é o maior inconveniente do mar e vem a serque o remédio contra a podridão é o mesmo que aaumenta. Os ventos são só aqueles que fazem des-vanecer as partículas podres que se geram continua-mente dentro do navio: mas estes mesmos, não sendoda terra, estes mesmos passando por cima das águasdo mar por muitas léguas vêm já carregados de hu-midade e de partículas podres, e já vêm incapazes deabsorver e de limpar o Ar do navio, sempre infectadocom maior humidade e podridão.

Mas o mais lamentável estado dos marinheiros éno tempo das calmarias: vimos acima os efeitos doAr sufocado em Pequim; consideremos quanto maishorrível será a mesma sufocação em cima do mar, esobre a linha equinocial então é força que tudo apo-dreça e que tudo se desfaça se não houver toda a pre-caução para ventilar e mover o Ar, se pela bebida ealimentos não se resistir àquela podridão e àquele ca-lor continuado e sem refrigério.

Capítulo XXXI

Meios para ocorrer a estes malesVimos pelo discurso de todo este tratado que o fogoé o soberano e único remédio para renovar o Ar.

Vimos que os fumos ácidos, como são do enxo-fre, do vinagre e da pólvora, são os únicos e potentesremédios para corrigir a podridão dele.

Também mostramos como o vinagre, o sumo delimão fervido e feito em arrobe ou de qualquer frutamadura e azeda naturalmente, juntamente com oazeite tomados como alimento são os que preservamos nossos humores mais eficazmente da podridão.

Aguardente, o pimento, a gengibre, açafrão e a pi-menta, como adubo em pequena quantidade, preser-vam os nossos corpos da podridão.

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Estes são os quatro remédios universais dos nave-gantes: e para que qualquer saiba usar deles os fareiconhecer com toda a clareza.

Pertence mandar renovar continuadamente o Ardos navios pelo fogo ao Almirantado ordenando emtodos os navios de guerra mandar construir os canu-dos adaptados ao fogão do modo referido acima; e amesma ordem se poderia estender aos proprietáriosdos navios mercantes.

Também pertenceria ao Capitão mandar secar, ex-pondo ao Ar livre todas as camas e fatos dos quaisusam os marinheiros e passageiros; ordenando a lim-peza de todos os gabinetes, armários e despensas; fa-zendo lavar e borrifar com vinagre todos os lugarescobertos e encerrados do navio e no tempo dos ca-lores, e mais amiúde das calmarias, mandar esten-der panos ensopados no vinagre nos mesmos lugares.Não somente a limpeza conserva o Ar seco e sem in-fecção, mas serve de igual benefício àquela agitaçãoque se faz varrendo, sacudindo e esfoliando: agita emove o Ar, ventila-se e gera-se um vento artificial,restituindo-se por estes repetidos movimentos a elas-ticidade do Ar.

Pertence ao mesmo no tempo das calmarias e dosbichornos, quando o Ar estiver ardente e sufocado,mandar tirar tão amiúde tantas pessas de artilhariacomo for possível, sem detrimento da defensa domesmo navio: vimos acima naquela célebre relaçãodo R. P. André Pereira que logo que ventára um vi-olento vento, depois de um bichorno de muitos dias,que a malignidade do Ar se aplacou: vemos que de-pois das trovoadas o Ar fica sereno e sentimos umacerta alegria que nos alenta: aquele estrondo que fa-zem as trovoadas agita e sacode o Ar e lhe restitui asua elasticidade: o mesmo farão, ainda que com me-nos eficácia, o estrondo de muitas peças de artilharia.

No tempo dos grandes calores e das calmarias omodo de viver dos marinheiros seria o seguinte: cadaum pela manhã devia ter a sua porção de aguardente,ou do Reino ou feita no Brasil das borras do açu-car142, ou de cana da mesma planta, mas em tão pe-

142o modo de fazer aguardente das borras do açucar, ou domelaço, é o seguinte. Toma-se a quantidade que quiseremdestas duas sortes do resíduo do açucar num grande vaso depau, para se desfazer em água quente, que se deitara dentrodo mesmo vaso. Então metera-se dentro um ovo inteiro, efresco; se nadar, e ficar a metade fora do licor, nadando, ésinal, que as borras do açucar, ou melaço são em suficientequantidade: deve este vaso ficar em lugar tão quente comoé o calor do mês de Maio, coberto ou com um lençol, oucoberta de lã: deixar-se-á ficar assim por vinte e quatro ho-ras, e quando aparecer no cimo do licor uma certa espuma,e que cada vez se vai aumentando em borbulhas, então é si-nal que já está com gosto de vinho, e que se o beberem emquantidade que embebedará.

quena quantidade que não excedesse a medida de umcopo de vinho pequeno, entre duas a três onças: e oseu almoço seria biscoito amolecido em água e de-pois de escorrida devia ser adobado com bastantevinagre, azeite à proporção, sal, alguns pós de pi-mento, pimenta ou gengibre, (em pouca quantidade)e este seria o seu almoço, merenda e ceia; e este de-via ser todo o alimento daqueles miseráveis escravosque vão da costa da Mina e de Angola para o Bra-sil. Nestes tempos ardentes e de calmarias a comidade carne e peixe, ainda fresco, sempre é menos fa-vorável à Saude, se não for cozida, e cozinhada commuito vinagre, ou arrobe agro de limões e laranjas eoutros frutos semelhantes.

Insistimos tanto na comida com azeite, vinagre,sal e adubos aromáticos pelas razões que apontamos

Quem quiser destilar aguardente tomará deste licor com asua espuma e o meterá no alambique, ficando a terça partedele vazia; tendo cuidado de deixar as borras do melaçodesfeito e já fermentado no varo onde se desfez, e fermen-tou: e pôr-se-á o fogo do modo que todos sabem como sedestila a aguardente: deixa-se destilar até que saia pelo bicodo alambique, um licor semelhante ao soro de leite: sinalque já saiu todo o espírito, e que este licor branco, ou turvo,será azedo, e de mau gosto.

Quem quiser fazer vinagre do mesmo licor com espuma,e fermentado, não tem mais que deixá-lo por alguns dias nomesmo calor constante, e sempre coberto, como dissemos:fermentado por tanto tempo, virá este licor vinagre, o qualserá tanto mais forte, quanto o vinho o for de antes.

Não só das borras do açucar, e do melaço se poderá fazeraguardente, e vinagre, mas ainda de muitos sumos de todasas frutas doces e maduras, preparados do mesmo modo, quedissemos do melaço; os naturais da América, e da Áfricapoderão-se aproveitar deles do modo que referimos. Sabe-mos que das maçãs, cerejas, ameixas-reinol se faz aguar-dente, e o vinagre: tudo consiste em saber fermentar ossumos, até virem a ter o gosto do vinho; quem souber pre-parar este, poderá alcançar pela destilação a aguardente, epela fermentação continuada o vinagre.

A aguardente que destilam no Brasil das borras do açucare do melaço é nociva pelas razões seguintes. Primeiramentenão as fermentam antes de as meterem no alambique: estasborras, ou melaço levam consigo as cinzas, e o azeite damamona, ou carrapata, que deitam na caldeira para puri-ficar e coalhar o açucar: este azeite é cáustico e adurente,e destilando-se sobe pelo alambique, e comunica estas per-niciosas qualidades à aguardente que destilam, e que fazinflamações nas entranhas, e chagas nas pernas.

Já se vê que do modo que propusemos acima que as cin-zas, e o azeite da mamona, e todas as impuridades do açucarficarão no fundo do vaso onde fermentarão, e que a aguar-dente, ou vinagre será de qualidade diferente, e saudável.Além disso é notório que a aguardente destilada do sumoda cana-de-açucar é saudável; nela não entram nem cinzas,nem azeite de mamona; tantasengenhocasna America temconsumada experiência do que refiro, e todos se persuadi-rão que se usarem da aguardente feita como insinuei acimaque ninguém poderá temer usar dela.

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acima quando tratamos da dieta dos Soldados: vemosque os nativos da África resistem àqueles excessi-vos calores e à podridão da atmosfera, ainda que vãonus, porque a Suma Providência os dotou daqueleunto, daquele óleo que lhes cobre toda a superfícieda pele, do qual os brancos não têm o mínimo vestí-gio: persuado-me que se coméssemos muito azeite evinagre naqueles climas que nos poderíamos conser-var por este meio: porque o azeite resiste à podridão,e para que não venha ranço no corpo se deve sem-pre misturar com tanto vinagre que fique agradávelquando se come: os adubos aromáticos contribuem aembalsamar e a corrigir a podridão e a dar vigor aonosso corpo, relaxado pelos calores e humidade notempo das calmarias, como dissemos.

O maior martírio naquele tempo é não ter outraágua do que a podre para apagar a sede que naqueletempo caloroso deverá ser intolerável. Muitos mo-dos se propuseram para corrigi-la; acima propuse-mos muitos; agora proporei aqueles dos quais qual-quer navegante poderá fazer a sua provisão.

Se nos portos do mar houvesse tal providência quese achasse espírito do sal ordinário em abundânciacada qual com um frasquinho de cristal que levassede quatro até seis onças, com tampão da mesma ma-téria numa caixinha de pau, teria com que corrigirtoda a água que bebesse pelo espaço de seis meses,metendo a cada quartilho duas ou três gotas, maisou menos, conforme fosse necessário para emendaro mau cheiro e a podridão desta bebida; se ao mesmotempo deitasse uma colher de aguardente na mesmaágua ficaria uma bebida levemente azeda, e com vi-gor e gosto agradável, e serviria de remédio a todasas queixas que sobrevêm no mar.

O espírito de sal é o soberano remédio para cor-rigir e emendar a podridão dos navios, tanto interi-ormente do modo que dissemos, como para cheirar.Mas poderá ser não se achar em Portugal a quanti-dade necessária, e que o preço seja excessivo: o qualseria medíocre se se fizesse no reino. Um arrátel deespírito de sal poderia-se vender com lucro do quí-mico por 1200 r. s. Em seu lugar cada qual poderiafazer provisão de vinagre, azeite e aguardente igualquantidade; e com o vinagre corrigir a água lançandonela aquela quantidade que lhe tirasse o mau cheiroe a fizesse potável, misturando nela sempre a cadaquartilho uma ou duas colheres de aguardente.

Aqueles que tiverem meios, além da provisão devinagre, a farão também de sumo de limão ou delaranjas azedas digo bicais: devem ser estas frutasmaduras; porque então o sumo é mais azedo, pene-trante e agradável e em maior abundância: deve-seferver sempre em alguidar de barro, sem ser vidrado,

para que evapore pelo menos a terça parte;143 de ou-tro modo ferverá no mar e se corromperá: deve fi-car como xarope espesso: e com este deverá adubartoda a carne e peixe que comer e misturá-lo na água(porque é muito melhor do que o espírito de sal e omesmo vinagre). Já dissemos acima que na Índia,África e no Brasil acham-se frutas agro-doces, dasquais os sumos fervidos até evaporarem uma terçaparte poderão fazer o mesmo que o sumo de limão.

Quem navega pela primeira vez ordinariamentesofre a moléstia da constipação do ventre: não só porsi é molesta, mas pelas consequências é muito maior:porque ficará o corpo mais disposto a cair em febrespodres, em disenterias e no mal de Luanda, e a toda asorte de doenças procedidas da podridão dos humo-res. Os Autores Ingleses que escreveram da Conser-vação da Saúde dos marinheiros aconselham a beberduas vezes na semana água salgada pela manhã naintenção de abrir o ventre e fazê-lo fluído: sei queestes efeitos observaram muitos em Inglaterra, nãosó contra esta queixa mas também na cura das alpor-cas, e outras muitas do que se poderá ver o Apêndiceda matéria Médica escrita pelo Doutor J. de CastroSarmento impresso em Londres em 1753 depois dapágina 107. Ali se lerá douta e nervosamente em quemales poderá ser útil a água salgada. Mas não é omeu intento neste tratado tratar da cura das queixas,e só proponho beber cada semana por duas ou trêsmanhãs interpoladas um quartilho desta água, ou poruma vez, ou por parcelas dentro de um quarto de horana constipação de ventre: poderá ser que haja cons-tituições que repugnem este remédio, ainda que ino-

143Depois de haver acabado este tratado recebi o Tratadodo Escorbuto de M. Lind impresso em Londres em 1744. Evejo na página 207 e seguintes, deste livro que o sumo dolimão, ou das laranjas bicais são o mais soberano, e o maiscerto preservativo, remédio não só contra o escorbuto, mascontra todas as doenças dos navegantes. Nenhum espíritoácido mineral, nem ainda o do sal se poderá comparar naeficácia, nem no saudável com os ditos sumos: M. Lind falacom experiência, porque foi Médico da frota de Inglaterra.

Porei aqui o modo como se deve fazer a provisão destessumos em toneis, ou em barris. Espremem-se os sumos delimão, ou de laranjas bicais, cada um por si, ou misturados;(o melhor é sempre o de limão) coam-se por pano de linhoralo, ou por uma baeta branca usada: esta coadura será postaem alguidares de barro sem serem vidrados; e se pôr-se-ão em cima de fogareiro, ou fogareiros acesos com fogovivo de carvão; não devem ferver, mas evaporar por tantotempo até se consumir a terça parte, e ficar este sumo daconsistência de xarope espesso, ou do nosso arrobe, quecostumamos fazer com mosto.

Cada marinheiro deveria ter cada dia uma porção destesumo para misturar na água podre que bebesse, para mis-turar na sua comida principalmente se fosse salgada, ou jáalterada; enfim para misturá-lo em tudo o que comesse oubebesse.

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cente a quem viver com Saúde. Nesse caso poderãousar dos alimentos e dos ligeiros remédios seguintes.

Quem navega não pode ter outro socorro para estaqueixa que dos frutos secos, do mel, azeite e ajudas.Prudentemente faria aquele que se embarcasse fazerprovisão de ameixas, passas de uvas, ginjas, maçãs efigos, todos estes frutos secos, cozidos na água e be-ber o caldo adoçado com mel e um pouco de sal todosos dias pela manhã, seria o remédio mais apropriadopara conservar o corpo fluído: bem sei que os do-ces promovem a doença de enjoar a quem não estiveracostumado; nesse caso poderia comer os frutos co-zidos simplesmente e adubar o caldo com sal e bebê-lo logo imediatamente: quanto mais salgado for estecaldo bebido sobre os referidos frutos cozidos, maiscerto será o seu efeito. Mas considerando que quemestá vigoroso raras vezes pensa nos remédios que lheserão necessários quando estiver enfermo ou moles-tado, considerei que nenhum remédio seria mais fácila toda a sorte e qualidade de navegantes para conser-var a Saúde e livrarem-se da queixa da constipaçãodo ventre, do que as migas frias, tantas vezes reco-mendadas, feitas com biscoito amolecido, ou comágua, ou com caldo de carne ou de peixe e adubadocom muitoazeitee vinagre, com sal e alguns pós depimento, pimenta ou gengibre.

O azeite relaxa, impede a podridão, e abrindo elubrificando, ou amolecendo os intestinos, refresca,principalmente quando for acompanhado do vinagree do sal; o vinagre impede que não se faça mago,e faz lançar de si mais depressa o azeite; mas omesmo vinagre resiste à podridão, e refresca igual-mente, como também o sal. Mas quando se comerdeste modo o azeite na intenção de relaxar o ventreentão deve-se comer em maior quantidade.

É tudo o que pude até agora considerar mais a pro-pósito para este tratado; porque não me propus escre-ver remédios para curar achaques. Poderá ser que seo Público aceitar com satisfação este trabalho, e queDeus me quiser conservar a pouca Saúde que deixamas fadigas e os achaques que empregarei o resto davida a completar este tratado, escrevendo da Medi-cina para os Médicos Práticos.

P. S.José Joaquim Soares de Barros a quem esteTra-

tado, como asConsideraçõesseguintes devem mui-tas notícias e advertências, me comunicou benigna-mente que opau de campechecortado miudamentepreservava a água da corrupção por muito tempo, seum arrátel dele preparado do dito modo se metessedentro de uma pipa dela bem tapada. Fica agradá-vel ao gosto e capaz de cozinhar, além de preservaros navegantes das queixas, que provêm das navega-ções: o que tudo alcançou por experiências, que fezcom este vegetal. O proveito que resulta deste desco-brimento, e a facilidade que tem Portugal de prover-se docampeche, que nasce tão liberalmente nas suascolónias, merece do Magistrado a maior atenção eagradecimentos dos seus Naturais.

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Considerações sobre osTerramotos

Com a notícia dos mais consideráveis de que fazmenção

a História, e deste último que se sentiu na Europa no1 de Novembro de 1755

Quærenda sunt trepidis solatia, & demendus ingenstimor.

Senec. Q. Natural. lib. VI. cap. I.

Parecerá curiosidade ociosa, ou superfluidade, tra-tar agora da causa dosTerramotosquando os maioresengenhos, tanto da douta antiguidade como dos nos-sos tempos, trataram dela com tanta evidência quenão fica mais por toda a indagação que copiar o quese lê em Aristóteles, Séneca, Plínio, Transacções Fi-losóficas, Newton e a História da Academia Real dasCiências de Paris. A intenção de publicar estas Con-siderações é de dar a conhecer aquela universal or-dem da Natureza para desterrar dos ânimos aflitos etemerosos aquela solícitaadmiraçãoque aumenta osmales do futuro e que deprime e consome o poucode ânimo que deixou o terror causado pelo desastre edesolação.

Não nos admiramos dos relâmgos, dos trovões edos raios que consomem e destroem tantos viventes;não temos por prodígios as tempestades e as tormen-tas que precipitam no mar tantas embarcações; nãonos maravilhamos das guerras destruidoras, nem deum Scilla ou César Borgia, pestes do género humano,mais atrozes e mais consumidoras do que as natu-rais: consideramos que são acasos as traições que osmalvados homens acharam praticáveis para se des-truírem pela espada, pela pólvora, pelo fogo e pelosvenenos; não acusamos a nossa vida ociosa, estra-gada e deleitosa como a mais potente causa da nossadestruição, e só temos por castigo e por prodígio osTerramotos! Borbulha de Ar em tudo é o homem,em tudo pequeno, limitado, e frágil, para considerare contemplar as obras do Altíssimo Deus. O que ve-mos cada dia, ainda que seja digno da maior atenção,ou não reparamos, ou o desprezamos. O que rarasou raríssimas vezes vemos, ou observamos, isso é oque temos por prodígio, isso é o que nos atemorizae o temos por castigo ou por milagre. Ninguém serátão ousado sem impiedade que afirme que osTerra-motosnão foram já instrumentos de que se serviu a

Omnipotência para castigar os homens; mas tambémninguém seria tão temerário que afirmasse que todoseles sucederam a este fim. Hoje um eclipse da Lua oudo Sol não nos atemoriza porque sabemos a causa; asnações, que a não conhecem ainda, e aquelas que aignoraram nos tempos passados, tinham estes fenó-menos por prodígios e por castigo do céu. Antes dedois séculos todos os cometas eram tantos agourosde mortes de Príncipes, de guerras e da destruiçãodos Estados onde se observavam: conhecida a causapor aquele insigne Filósofo e Astrónomo Isac New-ton, olhamos hoje para estes corpos celestes com amesma serenidade como contemplamos a Júpiter oua Saturno. Se soubessemos tão bem a causa dosTer-ramotoscomo a sabemos dos ventos, das trovoadase dos trovões não teríamos, pode ser, estes notáveismovimentos da Natureza por castigo do céu, nem ti-raríamos deles prognósticos para a nossa total ruína.O Pł João Mariana depois de relatar o Terramoto su-cedido em Valencia no ano 1395 diz«144El Pueblocomo agorero que es, pensava eran senales del ci-elo, y prognosticos de los danos que temia.»

Ora comecemos a suavizar os ânimos daquelesmesmo turbados ainda pelas calamidades do últimoTerramoto, relatando os estragos que causaram e dosquais faz menção a História; porque é certo que senti-mos um interior contentamento em estar fora da afli-ção que ouvimos ou vemos sofrer:

Non quia vexari quemquam’st jocunda voluptas,Sed, quibus ipse malis careas, quia cernere su-

ave’st.

Citarei somente aqueles successos mais circuns-tanciados dos Autores; porque não é o meu intentoescrever a História dosTerramotos, nem ainda asparticularidades deste tão notável que experimentouquase toda a Europa e parte da África no primeiro deNovembro de 1755.

No ano 19 a C. N., tempo em que reinava Tibé-rio Cesar, doze famosas cidades na Ásia foram total-mente destruídas por um violentíssimo Terramoto, omais notável até aquele tempo de que havia memó-ria na História, como refere Tácito145, cuja descriçãopreferimos à de Strabo, Séneca e de Plínio, por sermais circunstanciada. Refere aquele Autor que suce-deu de noite e que os danos e a destruição de todosos habitantes daquelas cidades foram inevitáveis por-que nem ainda tiveram o recurso de escapar à vidafugindo para as praças ou campo raso: abriu-se aomesmo tempo a terra em muitas partes e nestes pre-cipícios achavam a sua maior ruína; muitos montes

144Historia de España, lib. XIX, cap. 6, ediz. de Toledo.145Annal. Lib. II, cap. 15.

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nasceram dos abismos, muitos vales e planícies vi-eram empinadas serras, e por entre estas horrorosasmudanças da terra viram-se sair flamas consumido-ras. Foi tal a desolação que o duro e cruel coraçãode Tibério abrandou com tanta piedade que não so-mente isentou as cidades arruinadas de pagarem tri-buto algum por cinco anos, mas mandou distribuirconsideráveis somas para reparar as perdas e reedifi-car as casas. Desta louvável acção existe ainda umamedalha do mesmo Imperador com o letreiro:«ci-vitatibus Asiœ restitutis»por haver restituído ao seuantigo esplendor as cidades da Ásia146.

No ano 115 a C. N. sofreu Antioquia um dos maismemoráveis terramotos mencionados na história pro-fana. Todo o Império Romano lamentou com lágri-mas esta desgraça porque se achava ali o ImperadorTrajano com todo o seu exército. Precederam a esteterramoto, que foi no mês de Dezembro, ventos fu-riosos, trovões espantosos com ruídos medonhos de-baixo da terra: começaram as casas e as torres a ba-lançar como os navios agitados no mar tempestuoso.Então o ruído das casas que caíam, junto com os ron-cos subterrâneos e os alaridos dos que se despeda-çavam, mostraram a maior confusão e o mais uni-versal estrago. Os que fugiam pelas ruas, ou praças,encontravam-se uns contra os outros de sorte que semaltratavam e feriam, sendo as concussões da terraa causa de tão duro impulso: juntava-se a impos-sibilidade de evitar o perigo pela cegueira causadapor uma espessa nuvem; por muitos dias continu-aram estes movimentos da terra, e com mui poucaintermissão. Trajano, mesmo maltratado por este de-sastre, apenas escapou saltando pela janela do apo-sento onde estava. Dion Cassio147 que relata tudoisto, junta que o monteLison junto de Antiochia seinclinára de tal modo que parecia que vinha a arrasara cidade: que outras montanhas caíram; que novas ri-beiras apareceram e que outras, que eram caudalosas,se secaram.

No ano 262 a C. N. sendo Cônsules Gallienoe Faustino fez-se sentir o terramoto mais univer-sal de que faça menção a história. Começou naÁsia, estendeu-se por toda a Costa do mar Mediter-râneo: muitas Cidades destes continentes desapare-ceram subvertidas nas aberturas da terra; aparecendolagoas de água salgada no lugar onde estavam. Nomesmo tempo uma terrível peste desolava Roma etoda a Grécia com tanta mortandade que num diamorriam cinco mil148.

No ano 358 a. C. N., reinando o Imperador Cons-

146Hardouin, ad cap. 84 Plinii, n.o10, in notis.147Lib. LXVIII, pág. 781.148Trebell. Pollio in vita Gallieni, pág. 262, edit. Causa-

boni, in 4.o.

tâncio, cento e cinquenta cidades na Ásia, Ponto(hoje Natolia) e em Macedónia foram destruídas porum terramoto ao mesmo tempo. A cidade de Nico-media ficou tão arruinada que o Imperador JulianoApostata passando por ela no ano 362, não pôde con-ter as lágrimas à vista da destruição total da mais flo-rescente cidade do mundo. Amiano Marcelino149 re-fere que a 24 de Agosto começara o céu a cobrir-se denévoas negras e tão espessas quo tolhiam toda a luzdo Sol, vivendo os habitantes de Nicomedia comose fosse todo o tempo alta noite; então os ventoseram furiosos e os estrondos subterrâneos tão me-donhos que não era possível conservar o conheci-mento, ainda dos que viviam na mesma casa. Poucodepois desta universal confusão começaram as con-cussões da terra com tanta veemência que uma partedela subverteu-se nos abismos que se abriram e ou-tra parte apareceu coberta de montes que saíram dofundo da terra: apesar de tanto estrago ainda ficariamvivos muitos habitantes, se as flamas que saíram daterra não os consumissem totalmente.

Nenhuma parte do Império Romano ficou ilesa doterramoto que sofreram Sicília, Candia, Palestina ea Cidade de Nicea e Germa no Helesponto e Dalma-cia. A 19 de Julho a. C. N. 365 reinando o ImperadorValente, o mar Mediterrâneo começou a desampararas praias com tanta fúria que os peixes e os monstrosmarinhos ficaram a seco: com igual veemência o seurefluxo lançou barcas e navios sobre os montes ondeforam despedaçados. S. Jerónimo na vida de S. Hilá-rio, diz que neste terramoto os mares saíram fora dosseus limites, com tanto ímpeto, que parecia que Deusqueria acabar o mundo pelo dilúvio, ou reduzi-lo aoseu primeiro caos150.

As circunstâncias que acompanharam o terramotono tempo do Imperador Justiniano no ano 558 fazem-no um dos mais memoráveis: porque o mar saiufora dos seus limites, mais de três léguas, no mesmotempo que os tremores da terra destruíam Constanti-nopla e muitas vilas à roda. Os relâmpagos e os tro-vões cegavam e aturdiam de tal modo os que queriamescapar que pereciam pasmados debaixo das ruínas,ou afogados. Toda a Itália, sendo Roma a princi-pal cidade que sofreu a maior violência deste terra-moto, desolando-a e destruindo-a mais que toda a in-clemência que nela mostraram as Nações da Scithia.Duraram por muitos dias estas calamidades, pois quepelos meses de Junho e Julho quase sem intermissãose sentiram com igual ruína. Não pararam aqui osfurores do mar, da terra e do Ar: no princípio do In-verno começaram de novo semelhantes terramotos,

149Lib. XVII.150Carol. Sigon. de Imper. Occident. Lib. VII. ad ann.

365. An universal History, vol. XVI, pág. 322.

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sendo Constantinopla a mais mal tratada de todas asvilas e cidades que os experimentaram; como princi-piou de noite com ventos tão impetuosos que pareciaque se despedaçava o firmamento, com horrorososnevoeiros, frio e neve, nenhum remédio nem alívioficava àqueles miseráveis mais do que acabar a vidacom brevidade. Os ânimos atemorizados prognosti-cavam ainda maiores males e, sem embargo, que ossucessos o não confirmaram contudo uma violentapeste que se seguiu serviu para recear sempre as con-sequências dos grandes males151.

No ano 742 a C. N. toda a Síria, Palestina, Sicília,Calábria e Grécia sofreram calamidades tais não pen-sadas pelos terramotos que o Imperador ConstantinoIV. foi forçado largar o fruto das vitórias que tinhaalcançado contra os Sarracenos; porque Constanti-nopla e as principais cidades do Império Romanochegaram ao último da sua ruína. Desde o mês deAgosto até o princípio de Outubro ninguém distin-guia o dia da noite porque uma espessa nuvem sufo-cava toda a luz. Se Niceforus, que escreveu a históriadestes sucessos, é digno de fé, muitas Cidades na Sí-ria e Palestinas foram totalmente sepultadas nos abis-mos; e o que é digno de espanto, outras mudaram delugar na distância de seis milhas, ou duas léguas, semdano nem ruína dos habitantes, considerável. Mas apeste nestes mesmos lugares desolou muita parte dosviventes152 começando em Calábria e espalhando-sepor toda a Grécia, mostrando a sua maior fúria emConstantinopla, onde os que ficavam vivos não bas-tavam para sepultar os que morriam.

O terramoto que se fez sentir na Baviera por todoo ano de 1212 havendo no mesmo tempo assoladoVeneza, Damasco na Natólia e a Cidade de Cathinaem Sicília, inundada depois pelo mar com perda deinfinidade dos habitantes, parece que foi o de maiorduração de que faça menção a História153.

Se não temesse ser enfadonho, relatando tantos es-tragos, pudera ainda aumentar a lista da destruiçãodos homens por semelhantes sucessos. Quem quiserinstruir-se na história dos terramotos, leia a Histó-ria Natural escrita em Francês por M. de Buffon154.Mas parece seria omissão esquecer a desgraçada ci-dade de Catanea na Sicília, tão célebre pela sua anti-guidade, tão ilustrada pela residência de tantos Mo-narcas e tão famosa pela sua Universidade que comcinquenta e quatro vilas e cidades foi subvertida no

151Sigonius, lib. XX de Imper. Occident. ad ann. 558An univers. Historis, vol. XVI, pág. 626, ex Procopio, &Agathia.

152An universal History, vol. XVII, pág. 44, edit, in 8.o.153General chronological Historis of Air, &c. tom. I, pág.

135, London, 1749.154Volum. I, artic. 16.

mar, ficando de 18914 almas que continha somenteo número de 914 que escaparam. A 16 de Janeirode 1693 caminhava na véspera daquele fatal dia o Pa.António Serrovita para aquela cidade, e na distânciade pouco mais de uma légua começou a distinguiruma obscura e densa nuvem que cobria toda a ci-dade: saíram logo do monte Mongibelo rapidíssimasflamas: as ondas do mar vizinho pareciam tocar asnuvens: toda a artilharia do mundo não igualaria aoestrondo que faziam: as aves fugiam espantadas, osgados tremendo e mugindo na carreira paravam; ocavalo em que montava o dito Padre e os dos seuscompanheiros pararam de repente tremendo. E eisaqui que se levanta a terra de altura de dois palmos, equando deita os olhos sobre Catanea não vê mais queuma negra e espessa nuvem de fumo e de poeira quecobria o lugar onde estava a cidade, naquele instantesubvertida155.

Do referido se colige claramente que Ásia Maiore Menor, Grécia, Sicília e Itália foram os lugares nomundo mais mal tratados dos terramotos. Para per-suadir o Leitor relatarei aqueles que sofreu Portugale Castela de que faz menção o P. João Mariana. Po-deria ser que aumentaria a lista deles se tivesse co-migo os Historiadores destes dois Reinos. Mas comprobabilidade podemos afirmar que jamais sofreramdestruições tão notáveis como aquelas que vimos arelatar.

No ano de 405 da fundação de Roma, havendoprecedido inundações exorbitantes com incrível danonos gados, campos e edifícios houve violentos ter-ramotos em todas as cidades que bordam os maresOceano e Mediterrâneo, sofrendo Sagunto, como aprincipal cidade, a maior ruína156.

No ano 507 da fundação de Roma, diz Mariana157

«fue este ano desgraçiado para Espana, por la secaque padeciô, y falta de água, y por los ordinarios tem-blores de tierra, con los quales una parte de la Isla deCadix, dizen, se abriô, y hundiô en el mar».

Quando Aníbal saiu de Espanha para ir conquistarItália, que foi no ano 536, foram aflitas as Espanhascom várias enfermidades, peste,tremores de terraetormentas158.

No ano 1344 diz Mariana lib. 16. capit 12. «Contemeroso, y descomunal ruído temblo la tierra de Lis-boa, y con mucho espanto de las gentes temblaron los

155Philosoph. Transact. Abridged, tom. II, pág .402, Do-min. Bottoni de immani Trinacriæ Terræ-motu Messanæ,1718, in 8.o.

156Mariana Histor. General de Espana, lib. II, cap. 4, adann. 405.

157Ibidem, cap. 6, pág. 79, de l’edic. de Toledo.158Ibidem, cap. 8, pág. 92.

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edificios, y se cahio et Cimborio de la Iglesia mayor»reinando então o Rei D. Afonso o Quarto.

No ano 1356 o mesmo Autor no livro 16 capit.21. «Este ano temblo en muchas partes la tierra congrande dano de las ciudades maritimas; cahieron lasmanzanas de hierro, que estavan en lo alto de la torrede Sevilla, y en Lisboa derribo este terremoto la Ca-pilla mayor que pocos dias antes se acabara de labrarpor mandado del Rey Don Alonso».

No mês de Dezembro do ano 1395 a maior partedo Reino de Valencia foi arruinada por um terramoto,com tanta desolação dos viventes e edifícios, que eramaravilha e lástima159.

No ano 1531 diz Mariana160 «En muchas partestemblô la tierra: en Flandes principalmente; todoslos diques, muchos lugares enteros quedaron anega-dos con las olas de la mar... la mayor fuerça deste malcargô en la ciudad de Lisboa, tanto que el Rey (DomJoão o III.) por que no le tomasse la casa debaxopor muchos dias fue forçado a alojarse en tiendas,y pavellones en el campo. La madre por donde correel Rio Tajo, se hinchio de tal manera que apartandose las agoas de la una, y otra parte parecia resultaruna manera de Isla161». Na História Geral do Ar, edos Meteoros escrita em Inglês lê-se que no dito ano1531 mil e quatrocentas casas foram totalmente ar-ruinadas por um violento terramoto em Lisboa e que600 mais ficaram incapazes de se habitarem e quemuitas Igrejas ficaram por terra162.

Do referido se vê que Lisboa depois do ano 1344tem sido maltratada por quatro terramotos considerá-veis, e que o penúltimo de 1531 foi acompanhado dasmesmas circunstâncias que o último do primeiro deNovembro passado. Mas tanto mais lamentável queos precedentes, quão dignos são do eterno esqueci-mento aqueles malvados homens que atiçaram o fogonesta cidade que consumiu o que os mais elemen-tos enfurecidos deixaram em ser. Desgraçada Lis-boa que mal te decoraria agora Augusto Cesar com onome de Ditosa163! Que mal te chamaria agora PlínioMemorável Cidade Romana164! Nem a suavidadedos teus ares, nem a amenidade dos teus campos,nem a bondade das tuas águas165 te privilegiaram deficar sepultada em poucas horas nas tuas ruínas!

159Ibidem, lib. XIX, cap. 6, pág. 247.160Sumario de la Historia de Espana, tom. II, pág. 735,

edição de Toledo.161Paul. Jov. Histor. lib XXIX, ad libri calcem, ano 1530.162Tom. I, pág. 215.163Gruterus. Inscript. pág. 252, 261;Felicitas Julia Olisipo.

164Oppida memorabilia a Tago in ora Olisipo Municipiumcivium Rom. Felicitas Julia cognominatum. Plin. lib. IV,cap. 22.

165Lix palavra antiga Latina quer dizerágua: daquiLix-

S. I.

Considerações sobre a causados TerramotosPareceu-me supérfluo copiar aqui a bela e Judici-osa descrição que Plínio166 faz dos terramotos porquejulguei que ficaram bem conhecidos pela relação quedeles demos acima. Este seria o lugar para descre-ver este último que atemorizou quase toda a Europae que causou tantos estragos em Portugal e nas Cos-tas da África Ocidental; mas como parece que estesfenómenos até agora não têm chegado ao seu últimofim, tratarei entretanto das suas causas suavizando,deste modo, a aflição que o ânimo deprimido sente;e se nesta indagação esquecer a minha mágoa, esperoque alguns acharão nesta leitura semelhante alívio.

Experiências com os licoresquímicos e outros corposNão se pretende demonstrar evidentemente a causados terramotos; tudo o que dissermos deles será poranalogia. Se enchermos até ao meio uma garrafa deágua onde se desfez uma porção de salitre e a selar-mos, e depois a pusermos em cima de fogo de cinzascomeçará a encher-se de borbulhas de Ar, e continu-ando a ficar em cima do fogo virá a estalar a garrafaem mil pedaços.

Se dentro de uma retorta, ou garrafa grande, sedeitar alternativamente água simples e óleo de vi-tríolo adquirirão um tão violento grau de calor notempo que se misturam como se estivessem sobre ofogo ardente.

Se dentro de outra retorta, ou garrafa, se meteremlimaduras de ferro e se deitar em cima água forte ouespírito de vitríolo ordinário, formar-se-á uma efer-vescência tão violenta, que se o vaso não for muitogrande se fará em mil pedaços: forma-se infinidadede Ar novo pela mistura destes dois corpos, e senãoachar êxito tudo despedaçará.

Se dentro de outra retorta se puser certa quanti-dade de óleo destilado de cravos da Índia ou de tere-bintina, engrossado com bálsamo de enxofre ou ou-tro qualquer óleo destilado de sangue ou de ossos,e se deitar em cima óleo de vitríolo feito de partesiguais de salitre e de caparrosa, no mesmo instante

bonaou Lisboaque quer dizerBoa Água, como dizemoshojeÁguas Belaslugar perto de Lisboa.

166Hist. Nat.lib. II, cap. 79 & 80.

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que se misturam produzem tal calor que sai delesuma viva chama que queima e abrasa mesmo aindadebaixo da água167.

Os pós chamadosPulvis Fulminanssão compos-tos unicamente de enxofre, de salitre e de sal tártaro:pouco tempo depois que lhe pegam fogo fazem umestrondo mais horrendo do que a pólvora; mas o seuimpulso é para baixo; em lugar que o da pólvora épara todos os lados igualmente, como vemos no ar-rebentar das minas.

Se dentro da pompa Boyleana se puser um vasocom verdadeiro óleo destilado dos cravos da Índia,ou de canela, e lhe cair em cima o óleo de vitríoloacima, ou espírito de nitro fortíssimo, esta misturase inflamará logo e fará o recipiente do qual se tinhatirado o Ar em mil pedaços com perigo da vida doscircunstantes.

M. Lemery168 fez uma pasta de limaduras de ferroe de enxofre com água do peso de cinquenta arrá-teis e enterrou-a na terra de altura de um pé: era notempo do Estio; depois de oito ou nove horas que adita pasta esteve enterrada começou a terra a inchare a abrir-se em gretas pelas quais saíram exalaçõescom cheiro de enxofre e depois flamas.

Todos os fundidores sabem que se na forma ondeestiver qualquer metal em fusão lhe cair uma gota deágua que tudo saltará pelos ares, com tanta violência,que tudo que encontrar despedacerá, derribará e as-solará; o que sucederá igualmente se o mesmo metalem fusão cair na água.

Todos sabem os efeitos da pólvora nas minas: to-dos sabem que se compõe de salitre, enxofre e carvãode qualquer pau ligeiro. A pólvora não é mais que oAr condensado sumamente no salitre; tanto que o en-xofre se acende, se rarefaz e desata aquele Ar ligadoe comprimido; ocupa então um espaço maior do queo corpo da mesma pólvora, quatro mil vezes169. Euvi e senti os efeitos de 500 barris de pólvora que pe-garam fogo de uma vez, por uma bomba que arre-bentou dentro do armazém da praça de Azof, quandoos Russos no ano 1736 a sitiavam: estava distantemeia légua, senti tremer a terra, imediatamente umestrondo, que não poderei jamais explicar; uma nu-vem negra e espessíssima se levantou em pirâmidea esses ares, espectáculo o mais admirável e assom-broso que vi na minha vida. Quase todas as casas dadita praça caíram por terra; e foi esta uma das princi-pais causas de render-se tão depressa.

167Hist. de l’Ac. R. des Scienc.1701, pág. 66.168Hist. de l’Acad. R. des Scienc.1700, pago 51,& Mem.

pág. 101.169Hist. & Mem. de l’Acad. R. des Scienc.1707, pág.

529.

Força do Ar encerradoTodos os corpos conhecidos contêm muitas partícu-las de Ar: mas não é semelhante àquele que respira-mos; porque existe neles tão desfeito e tão divididoque serve à sua mesma composição. Logo que hou-ver uma causa que desate estas partículas o veremossair deles em borbulhas. Mete-se um vaso de águadentro do recipiente da pompa Boyleana; tira-se todoo Ar dele e começa o Ar que não aparecia a sair delaem borbulhas como se fervesse. A quantidade de Arque sai desta água é oito ou dez vezes maior em vo-lume que o da mesma água170.

Vimos acima a imensidade de Ar que se gera denovo quando se põe água a aquecer, na qual se des-fez salitre: e quanto maior quantidade dele se geratambém quando se mistura o espírito de vitríolo comlimaduras do ferro: o Ar que se gerou de novo é oque fez arrebentar os vasos onde estavam. Mas assubstâncias bituminosas, animais e as sulfúreas con-têm ainda muito mais Ar do que os corpos vegetais.O Ar que compõe a pedra da bexiga, quando se de-sata dele, ocupa um espaço 540 vezes maior do quea mesma pedra171.

Mas a elasticidade do Ar e a sua expansão sem-pre é igual à compressão que tiver: o Ar que cercaa superfície da terra é mais elástico e pode-se rarifi-car mais do que aquele no cimo da serra da Estrela;porque este não está comprimido como aquele quetoca os vales. É certo que no interior da terra existeAr nas cavernas de que é composta e que ficará tãocomprimido como for a profundidade do lugar emque estiver. M. Amontons demonstrou172 que o Arque estiver no interior da terra, na profundidade dedezoito léguas, será tão pesado como o azougue.

Se assentarmos por experiências certas que o Arda nossa atmosfera no tempo do Estio se rarefaz 33vezes mais que no Inverno e compararmos o pesodeste Ar com o daquele do interior da terra na pro-fundidade de 18 léguas, acharemos que a sua expan-são será de 462000 vezes maior do que o seu volume:mas no interior da terra o calor é muito maior, comoveremos abaixo, e por consequência a expansão doAr.

Do referido se vê que basta para causar terramotosque o Ar no interior da terra se rarefique: se consi-derarmos a infinidade de corpos no mesmo lugar quecontêm 400 vezes mais Ar que o volume de onde sai,juntamente com o calor central, ficaremos persuadi-dos que os seus efeitos serão mais poderosos do queos da pólvora.

170Hales Hæmastaticks, pág. 275.171Hales Statical, Essays, pág. 190.172Hist. Acad. R. des Scienc.1703, pág

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Força dos vapores e dasexalações no interior da Terra

Todos os Autores da História Natural observaramcavernas no interior da terra, e principalmente de-baixo das montanhas; estas concavidades formaram-se ou por terramotos, ou pela queda dos rochedos173.Como são de várias formas e que se estendem àsvezes a grandes distâncias em todas as dimensões,achou-se por experiência que contêm água; muitasvezes em forma de rios, lagos e vapores, e que todosos corpos, ainda mesmo os metais, tratados quimi-camente contêm este elemento que se manifesta porvapores.

Também se tem por certo que no interior da terraexiste fogo que nós conhecemos pela sensação do ca-lor, o qual aumenta a sua actividade à medida quepenetra mais abaixo. No subterrâneo do Observató-rio de Paris profundo de 84 pés, ou 14 braças me-dida de França, o termómetro conserva-se por todoo ano no mesmo grau de temperatura como no mêsde Março. À proporção que se penetrar mais a terrapara o seu centro se observará maior calor: porque naprofundidade de 52 braças o termómetro estava dezgraus acima do ponto da geada: na profundidade de222 chegou a subir a 18 gr. 1/6174. Guardada aquia proporção, é força que na profundidade de uma lé-gua de 3000 braças que o calor naquele lugar sejade 244 graus: calor muito maior que o da água fer-vendo. Mas osTerramotosordinariamente geram-se debaixo do mar, do qual a sua profundidade nãoé menor de uma légua: se continuarmos na mesmaproporção, o calor central na profundidade de três lé-guas será igual àquele com que se fundem os metais.O ferro se funde com o calor de 800 pelo termómetrode Fahrenheit.

O espaço que ocupa o vapor de água fervendo émaior 14000 vezes que o que ocupa a mesma água;três vezes muito maior que o espaço que ocupam asexalações da pólvora. Mas M. Hauskbee mostrouque o volume do vapor da água fervendo é maiorque o da pólvora acesa 63 vezes175. Vimos acimao demasiado calor e movimento que se gera quandose mistura água com o óleo de vitríolo, e quando aslimaduras de ferro se misturam com o mesmo: se su-ceder encontrarem-se estas substâncias no interior daterra é certo que produzirão ali maiores efeitos; ali ocalor sempre será maior do que o da atmosfera: o

173Histoire naturelle du cabinet du Roi, tom. I, pág. 544,edit. in 4.o.

174Dissertation sur la glace, pág. 1, c. II, par M. de Mai-ran.

175Mussenbroek, Elementa Physicæ, pág. 296.

Ar está ali mais comprimido, logo os vapores e exa-lações que se levantarem destas substâncias mistura-das serão mais potentes como também aquelas quesaírem das limaduras do ferro misturadas com águae enxofre.

Porque é certíssimo que no interior da terra seacha ferro em toda a parte, e que este metal pareceser a principal causa dos terramotos e dos vulcões.A Sociedade Real de Nápoles analisou a matéria quesaiu do Vesúvio, que chamamLava no ano 1737, eachou que a maior parte dela consistia de ferro176.Existem também por todo o interior da terra sais al-calinos, ácidos, neutros, da natureza do sal mirabileGlauberi, e o Borax, que tanto contribui à fusão dosmetais; bitumes de toda a sorte, da natureza da te-rebentina, do enxofre e dos óleos destilados; exis-tem pedras que não constam mais que de enxofre,ferro, ou cobre e é sem dúvida que todos estes corposhumedecidos pelos vapores, agitados pelo fogo cen-tral, entrarão no conflito contínuo de converterem-seem vapores e exalações copiosíssimas e, ao mesmotempo, capazes dos mais estupendos efeitos.

No interior da terra continuamente compõem-se edissolvem-se vários corpos, de que consta pelos doisagentes mais universais e constantes da natureza, quesão o fogo e a água: os vapores que dela se levanta-rem desfarão e dissolverão muitos corpos dos quaismuitos novos se formarão: nestas operações da natu-reza é força que se gere imensidade de Ar e de exala-ções sulfúreas, as quais se não acharem respiradou-ros até à superfície da terra é preciso que penetrem ecorram pelas aberturas e cavidades subterrâneas, àsvezes por espaços imensos, até achar saída pelas gre-tas e aberturas da terra. OsTerramotosque começa-ram na Ásia e que correram todas as costas do marMediterrâneo eram desta natureza, como este últimoque vem de experimentar Europa. Obram estas exa-lações, e este Ar multiplicado, comprimido e encer-rado, do mesmo modo que os licores acima dentrodas garrafas: se a boca da cavidade onde se formamfor menor que o seu assento agitarão todos os ladosque o cercam: e não nos admiraremos que levantem aterra, que despedacem rochedos e que arruínem edi-fícios: porque vimos os terríveis efeitos que causamas limaduras do ferro e os óleos destilados mistura-dos com o óleo de vitríolo, quando também conside-rarmos a prodigiosa quantidade destas matérias quecontém o interior da terra.

Se as mesmas exalações e vapores elevados dasmatérias sulfúreas, ácidas e salinas uma vez postasno conflito não acharem êxito dentro de alguma vas-tíssima cavidade, semelhante a uma abóbada cimen-

176Philos. Transact. no455, S II.

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tada por todas as gretas com bitumes, petróleo, nafta,ou asfalto, com pedras pirites, borax nativo e outrosmais sais ácidos ou alcalinos, é força que arrebente,como uma vastíssima mina e que faça dispartir pelosares cinzas de Nápoles a Constantinopla, que saiamdela pedras e penhascos em fogo, calcinados e vi-trificados, que queimem e destruam muitas léguas àroda; e que apareçam flamas, logo que chegarem ànossa atmosfera, e saiam aquelas torrentes de maté-rias em fusão que os Napolitanos chamamLava.

Vimos acima o estrondo horrendo que causa oóleo de vitríolo misturado com o verdadeiro óleo decravo dentro da pompa Boyleana sem Ar, e comoquebra e despedaça o mesmo recipiente com incrí-vel impulso. Vimos como os metais em fusão fazemainda maiores efeitos se caírem na água, ou esta cairneles: e quão fácil seja fundirem-se no interior daterra toda a sorte de metais pelo fogo central, o boraxe a variedade de sais de que consta a terra: é facilconceber que se dentro de qualquer caverna subter-rânea se misturarem semelhantes matérias, faltando-lhes êxito para se dissiparem, que se gerem as explo-sões dos vulcões, que vemos são tão comuns e tãonotórios na Ásia, na África, Europa e América177.

Aquelas Ilhas Santorini e dos Açores que saíramdo fundo do mar, causando ao mesmo tempo os maisespantosos terramotos provêm de semelhantes cau-sas: veja-se a história da aparição destas e outrasIlhas na História Natural citada178.

As mesmas causas dosterramotose dos vulcõessão as mesmas das auroras boreais, das estrelas ca-dentes, dos globos de fogo, dos relâmpagos, dos tro-vões e dos raios. Todos estes meteoros provêm doenxofre e das matérias oleosas que se exalam dasplantas aromáticas, dos animais viventes ou mortos,dos bitumes das fontes sulfúreas, que chamamos cal-das, dos vulcões, nevoeiros, da deflagração de tantosmetais e minerais; todas estas exalações vêm pararna atmosfera; e como nela existem infinidade de va-pores, de que se formam as nuvens, nestas ficam en-cerradas as exalações sulfúreas, como nas cavernasno interior da terra: então com a mãe do salitre, espí-rito universal ácido espalhado pela atmosfera e todoo globo terrestre, e com a variada direcção e impulsodos ventos, vêm estas exalações a agitar-se, conce-bem calor, causam flama que conhecemos pelos re-lâmpagos, causam estrondo que conhecemos pelostrovões, e se as exalações sulfúreas são densas e pe-sadas e não se dissiparem totalmente na sua defla-gração tocam os corpos terrestres que destroem, oupõem em fusão, efeitos que conhecemos pelo nome

177Hist. nat. du cabinet du Roi, tom. I, art. 16.178Ibidem, art. 17.

dos raios. Estes derretem os metais179 derrubam osedifícios e fazem arder todas as matérias inflamáveis.M. Lemery180 imitou o trovão e o raio metendo den-tro de uma retorta limaduras de ferro com espírito devitríolo desfeito na água: saía pela boca daquele vasofumo, o qual se acendia com uma vela acesa e tantoque chegava no fundo da retorta onde estava a lima-dura de ferro dava um estalo que se assemelhava aotrovão.

A causa dos Terramotos, dosrelâmpagos e trovões é umamesma

Do referido se vê claramente que os terramotos, osvulcões, os relâmpagos, trovões, raios e tempesta-des, procedem da mesma origem. Ou que no interiorda terra, ou na nossa atmosfera, as matérias sulfú-reas, bituminosas e ferruginosas se misturem com ossais ácidos e vapores, juntamente com o calor cen-tral, ou com o da atmosfera, agitado pelos ventos,nesta agitação produzem imensidade de Ar e de exa-lações, o que faz maior ou menor abalo na terra e naatmosfera, conforme for a resistência que acharem: ecomo as causas da agitação e do conflito aumentamcada vez, daqui provém tão violentos efeitos. Se a ca-vidade ou mina onde estiverem estas matérias assimagitadas, não tiver êxito algum, levantará a terra deuma vez, como se vê nas minas, e por esta aberturasairão torrentes de cinzas que subverterão cidades,como sucedeu à deHerculaneumperto de Nápoles,penedos e penhascos inflamados e vitrificados, mui-tas vezes, com rios de água que se levantam pela mis-tura dos metais em fusão, acabando pela evacuaçãodeles, como vemos no Vesúvio, cujas matérias vimosacima chamarem os NapolitanosLava.

Se estes vapores e exalações acharem canais sub-terrâneos que comuniquem com a caverna, ou caver-nas, onde se geraram, mas que não tem saída pelasuperficie da terra, então correm por debaixo delamuitos espaços como vimos acima, e principalmenteneste último que sentiram já três partes do mundoconhecido: nesta agitada corrente levantam terras,montes, arruinando edificios, agitando os rios e osmares até acharem porta para se dissiparem na at-mosfera.

Estas mesmas exalações, ou que provenham dointerior da terra ou que se exalem dos corpos que

179Aurum & æs et argentum liquatur intus saculis ipsisnullo modo ambustis. Plin. Hist. Nat. Lib. II, cap. 5.

180Mem. Acad. R. des Scienc.1700. pág. 107.

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existem na sua superfície, em menor quantidade fa-rão tempestades e redemoinhos, semelhantes às queLisboa experimentou com tanto estrago das embar-cações nos anos 1724 e 1731. As mesmas exalaçõesmais aumentadas e avultadas pelas matérias sulfú-reas encerradas nas nuvens, como nas cavernas, comagitação dos ventos e mais causas que mostramosacima produzem relâmpagos, trovões e raios: peloque parece evidente que estes fenómenos tão consi-deráveis e ordinários da natureza são tantos terramo-tos da nossa atmosfera como os terramotos e os vul-cões são os trovões e os raios do interior da terra; oque já notou Plínio181 com admirável sagacidade.

§. II

Notícia do Terramoto quese sentiu na Europa, Áfricae América depois do 1 deNovembro de 1755

Servem as trovoadas, os trovões e os raios para de-purarem e limparem a atmosfera das exalações e va-pores supérfluos ou malignos: poderá ser que as ex-plosões das exalações no interior da terra, que conhe-cemos pelos terramotos e vulcões, sirvam também aconsumi-las e a dissipá-las; e porque este benefíciocompensa à natureza os estragos que causam.

Não pretendo dar a perfeita história do terramotoque principiou no primeiro de Novembro do ano pas-sado, e que se observou com efeitos tão funestos naEuropa, África, e naAmérica; não somente por mefaltarem relações circunstanciadas, escritas por pes-soas inteligentes, mas também porque escrevo estanotícia dele a 19 de Janeiro 1756, tempo no qualainda parece que estes movimentos da Natureza nãoterminaram. Relatarei somente os lugares onde se fezsentir com os fenómenos mais notáveis tanto da terracomo do mar; deixando a quem tiver os socorros ne-cessários escrever a circunstanciada relação que me-rece um dos mais universais terramotos que lerão osVindouros nas histórias.

Conforme as relações impressas emCadiz, Puertode S. Maria, noJournal Etranger, Economique, e nasGazetas deParis, e deHolandano 1 de Novembro,

181Neque aliud est in terra tremor, quam in nube toni-truum; nec hiatus aliud, quàm cum fulmen erumpit: inclusospitiru luctante & ad libertatem exire nitente. Hist. nat.Lib.II, cap. 79. Veja-se o n.o157 das Transacções Filosófi-cas em Inglês.

entre as nove e as dez da manhã, de 1755, estando océu claro e sereno, e a atmosfera mais quente do querequeria a sessão, começou o terramoto emLisboatão violento que em sete minutos ou derrubou ou aba-lou a maior parte dos majestosos edifícios que orna-vam aquela capital. Como era dia deTodos os Santosa maior parte dos habitantes se achava nas Igrejas quesofreram mais que o resto dos edifícios; sepultando-se deste modo muitas pessoas de ambos os sexos.Além da perda de tantas vidas e animais pela ruínadas casas, aquela das fazendas foi imensa; porque,ou por acaso, ou de propósito, logo pelo meio-diaapareceu toda a cidade em flamas, continuando a suaviolência por quatro dias. As águas do Tejo que bor-dam a cidade retiraram-se da praia com ímpeto; ecomo o lugar mais estreito da sua corrente tem aliuma légua de largo, o refluxo das ondas caiu comtanto ímpeto na parte baixa da cidade, que destruiu ealagou tudo até onde chegaram. Até às dez horas danoite sentiram-se abalos da terra com menor violên-cia, havendo-se já todos os que escaparam retiradopara o campo, onde ainda vive a maior parte.

No mesmo dia e hora muitas vilas e cidades dePortugal sofreram notavelmente por este terramoto e,principalmente, aquelas sitas na Província daEstre-madurae no Reino dosAlgarves. Santaréme muitasvilas atéAbrantessofreram muito; masSetúbalmaisque todas; porque além do violento terramoto saíramno seu terreno olhos de água de grossura extraordi-nária, tão medonha e com tanta veemência que se le-vantou muitas varas sobre a terra; ao mesmo tempo omar retirou-se rapidíssimamente da praia, para a qualtinha vindo buscar amparo a maior parte dos habitan-tes turbados de tão estranho sucesso; refluiu logo omar com a mais potentosa fúria e alagou e assolouaquele riquíssimo porto com os habitantes que se re-fugiaram na praia: nenhum edifício público nem par-ticular resistiu a tão extraordinário ímpeto.Cascais,Lagos, Faro, Silves, Tavira, Castro-Marim, e outrasmais vilas, tanto da Costa Setentrional como da Aus-tral, ficaram no mais miserável estado, imitando nasruínasCascaisque sofreu a maior destruição nos edi-fícios.

As praias da Irlanda no mesmo dia viram as águasdo mar agitadíssimas e alguns lugares daquela Ilhasentiram violentas concussões da terra.

Em Cadiz, Puerto de S. Maria, S. Lucar, Xeres,Puerto Real, Algeziras, Ayamonte, Sevilha, CórdovaatéGranada, eAlicantesentiu-se o mesmo terramotono mesmo dia e hora: emSevilhacom bastante es-trago dos mais consideráveis edifícios e perda de vi-das: em muitos lugares daquela costa pereceram pe-las ondas do mar, furiosamente agitado, muitos vi-ventes.

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90 António Ribeiro Sanches

O Reino de Marrocos e toda a costa ocidental daÁfrica desdeSaléatéCeutano primeiro de Novem-bro do mesmo ano, e na mesma hora, ficaram des-truídas pelo mesmo Terramoto muitas vilas e cida-des. Marrocos, Fez, Tetuan, Saffy, Arzila, Tânger,Ceutaforam deste número; masMequinéssobre to-das: pereceram naquela hora multidão de homens;perto desta cidade abriu-se a terra por tão largo es-paço que subverteu dez mil almas com muitos cava-los e camelos: medonhos roncos do interior da terraacompanhavam tanta destruição.

Mas o que é digno de reparo e de igual admiraçãoé que naSuécia, e emPomeraniaao mesmo tempose sentissem manifestamente os efeitos deste poten-tíssimo Terramoto. Na província deDalecarlia aságuas dos lagosFrixem, deStoora-Leedcomeçarama agitar-se e a inundar os bordos, abaixando-se a terraà roda, o que aumentou a inundação. NaPomeraniaas lagoas deNetzo, Muhlgast, Reddelin, Libesedis-tantes deBerlim doze léguas e trinta do marBáltico,entre as onze e o meio-dia do 1 de Nov. transbor-daram com ruído espantoso, inundando os campos àroda, recolhendo-se depois de seis horas, com fluxose refluxos aos seus antigos limites.

Perto deAngoulemeem França a terra abriu-secom estrondo por qual abertura saiu uma torrente deareia vermelha. Fenómeno que se observou tambémnas fontes perto deTângeremÁfrica.

A agitação extraordinária e crescimento das águasdo mar nas praias dasIlhas Barbadose Antiguana América, na Inglaterra e Holandaobservado namesma hora e dia merecem também particular aten-ção.

A 9 de Novembro emToeplisem Bohemiaumaleve comoção da terra excitou os habitantes; masquando viram que dos poços das caldas saíram aságuas turvas, misturadas com muita areia vermelha,com crescimento notável, então ficaram com o pesarque a virtude tão celebrada daquelas águas se per-desse ou alterasse.

A República dosSuissose as principais cidades,como sãoBasilea, e Berne; Milão em Lombardia emuitos mais lugares destes Estados sentiram concus-sões da terra sem perda considerável dos edifícios:AusburgeEstrasburgotiveram a mesma felicidade eo mesmo susto.

A 16 de Nov. sentiu-se emCompostela, e naCo-runha com bastante dano causado, não só pelo Ter-ramoto, mas também pelo fluxo e refluxo extraordi-nário do mar.

A 17 do mesmo mês sentiu-se em França nas ci-dades deBesançon, e Dijon, mas sem ruínas consi-deráveis nem perda das vidas.

A 18 do mesmo emBoston, Filadélfia,e nas cos-

tas deMarylandna AméricaSetentrional, conformeos avisos de Londres sentiu-se Terramoto considerá-vel, ainda que sem mortandade dos viventes.

A onze de Dezembro toda aBaviera, e particular-menteDonawert, e Ingolstaadsentiram sem estragoabalos da terra.

A 18 emWhitehaaven, emInglaterra, e em outrosmais lugares daquele Reino sentiram-se concussõesviolentas da terra.

A 27 com semelhante sucesso observaram omesmoCologne, a Província de Frisia, BolónianaItália, Bruxelas, eAix-la-Chapelle.

Perto deCisteronem Dauphiné de França, e emMaubege, Flandres, a terra fundiu-se deixando cavi-dades que parecem abismo: perto deCisteronduasmontanhas, uma defronte da outra, desceram tantodentro da terra que um rio que passava pelo meioformou um lago; casos tão extraordinários que su-cederam no mês passado.

Os navios à vela no mar Oceano na distância deLisboa50 léguas, e deCadiz150, sentiram, pelo ex-traordinário movimento do mar, os efeitos do terrívelTerramoto do 1 de Nov.

Mas parece que nenhuma cidade sofreu até agoramais que a deLisboaporque depois daquele fatal diado 1 de Novembro até 21 de Dezembro, não cessa-ram os abalos da terra, ainda que sem a violência dosprimeiros que experimentou; pagando assim a pree-minência que tinha sobre todas as cidades que senti-ram semelhantes tremores.

Parece que a côdea da terra, da grossura de umaou duas léguas, depois da sua criação tem sido alte-rada muitas vezes por fenómenos semelhantes àque-les que vimos a relatar. Como em toda a superfíciedela existem gretas e respiradouros que comunicamcom as cavidades, e cavernas do seu interior, entrampor eles as águas das chuvas e os orvalhos condensa-dos, e vêm por último desfazer as matérias sulfúreas;o que basta para se agitarem e ferverem, gerando-seneste conflito vapores e exalações que causam tão es-tupendos e fatais efeitos.

Considerando os lugares que foram até agora mal-tratados pelos terramotos, observa-se que sempre semostraram mais terríveis e mais frequentes nas terrascompreendidas entre os 45 graus de latitude do Nortee do Sul.

Também se observou que as terras que constamunicamente de pedreiras, mármore, que são cobertasde rochedos, penedias, ou serras; que são abundantesem metais, bitumes, matérias de que se tira o enxo-fre, que são as mais sujeitas aos terramotos, e quena atmosfera que as cobre os trovões e os raios sãomais ordinários e mais funestos. O que se confirmapelas ruínas deCatanea, Leontini, Agosta, Siracusa,

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e Noto na Sicília, edificadas dantes sobre rochedos;em lugar queMessinatem sido menos maltratada poreles, por estar edificada sobre terreno brando e es-ponjoso, todo minado de cavidades, todo furado porsuspiros que dão êxito às exalações que vem recebera atmosfera182.

Parece que tudo aquilo que impede a transpiraçãodos vapores e das exalações que se geram no interiorda terra que serve de causa para gerar os terramo-tos. Observou-se que depois das grandes secas, de-pois das continuadas chuvas, dos frios excessivos edilatados nas terras meridionais, que logo, ou poucodepois, foram infestadas com tremores da terra.

Os que vivem perto dos vulcões, Vesúvio, Etna edo Hecla têm por sinal certo que hão-de experimentarterramotos, logo que cessam de exalar aqueles fumosnegros densos que se vêem ordinariamente: a experi-ência convenceu-os, que detidos no interior da terra,disparam de repente com fúria e com desolação.

Parece que deveria entrar na consideração dos Le-gisladores quando quisessem edificar vilas ou cida-des consideráveis nos lugares, sujeitos aosterramo-tos, de escolher o terreno mais ligeiro, mais espon-joso, de areal, e o mais igual, onde crescessem árvo-res, para fundá-las, e que estas deviam-se plantar emtodas as praças, adros e passeios, depois de edifica-das. Servem as árvores, principalmente os pinheirose os olmos, a pompar e a chupar da terra, como tan-tas esponjas, os vapores e exalações como indicámosno tratado precedente. Não se afirma que estas pre-cauções seriam bastantes para impedir os terramotos,mas é provável que diminuiriam a sua violência ou asua frequência.

Parece também que devia entrar na mesma consi-deração o conselho de Platão que nenhuma cidade seedificasse tão perto do mar que não distasse dele qua-tro léguas. As cidades sujeitas aos terramotos sem-pre sofreram consideravelmente, pela vizinhança domar, se nas suas praias estiverem fundadas, o que vi-mos acima provado com muitos exemplos. A mesmaprecaução se devia observar na fundação das vilas edas cidades junto dos rios caudalosos, ainda que nãoseria necessária tanta distância deles.

A fábrica das casas em semelhantes lugares e amultiplicidade das praças e dos pátios mereceria amaior ponderação. Vimos acima que as vilas e ascidades que bordam o mar Mediterrâneo, principal-mente do lado do Sul, que foram as mais maltratadasdos tremores da terra. Costumam os seus habitantes,especialmente os Maometanos, ou por evitarem osardores do Sol, ou por se precaucionarem contra os

182Philosophic. Transact. Abridg.tom. VI, part. 2, pág.249.

abalos da terra, ou por outras razões que nos são des-conhecidas, edificar as suas casas na forma de claus-tros, servindo uma porta principal que dá na rua a umou a muitos moradores conforme as suas riquezas eestado.

Todos sabem que no Peru, e também na Jamaica,lugares infestados muito amiúde de terramotos, ascasas são de um só andar, e se se compõem do se-gundo é de madeira não pesada: servem de alicerceslongas e roliças traves que se estendem pelos can-tos, enlaçando a cantaria com maior firmeza. EmPequim, e em muitas partes daquele dilatadíssimoImpério, raras são as casas que excedem um andar;Deixo à ponderação de quem pertencer escolher ométodo não só o mais seguro de fabricar, mas ainda,de fundar e fabricar. E se este trabalho servir ao Lei-tor para esquecer por alguns momentos a afliçaõ e amágoa que causam estes movimentos tão extraordi-nários e tão estupendos da Natureza, acharei por bemempregado o tempo que nele empreguei.

Fim