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Tradução Maria Angela Amorim De Paschoal

Tradução Maria Angela Amorim De Paschoal · cérebro me dizia que em algum momento eu teria de voltar, mas não era isso que eu queria ouvir àquela altura. Só queria fingir que

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A Casa do Lago

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Capítulo 1

Abri com cuidado a porta do meu quarto para ver se o corredor estava vazio. Quando tive certeza, pendurei a bolsa no ombro, fechei silen-

ciosamente a porta atrás de mim e desci a escada correndo até cozinha. Eram nove horas da manhã. Dali a três horas partiríamos para o lago — e eu estava fugindo.

O balcão da cozinha estava coberto por listas de tarefas da minha mãe, sacos repletos de alimentos e suprimentos e uma caixa cheia de frascos alaranjados de remédio do meu pai. Tentei ignorar tudo isso ao atravessar a cozinha e ir para a porta dos fundos. Fazia tempo que eu não fugia de casa, mas tinha a sensação de que era como voltar a andar de bicicleta — o que, pensando bem, também não fazia há tempos. Mas eu acordara suando frio naquela manhã, o coração batendo forte, e tudo dentro de mim me dizendo para ir embora, que tudo seria melhor se eu estivesse num outro lugar — qualquer lugar.

— Taylor? — Parei e me virei para encontrar Gelsey, minha irmãzinha de doze anos, de pé do outro lado da cozinha. Apesar de ainda estar de pijama, um pijama antigo com estampa de sapatilhas reluzentes de balé, ela usava o cabelo preso num coque perfeito.

— O que foi? — perguntei, afastando-me um pouco da porta, ten-tando parecer a mais natural possível.

Ela franziu a testa, e os olhos pousaram na minha bolsa antes de se vol-tarem para o meu rosto.

— O que você está fazendo?

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— Nada — respondi. Encostei-me na parede, em uma postura que esperava ser natural, embora eu duvidasse jamais ter me encostado numa parede em toda a minha vida. — O que você quer?

— Não consigo achar meu iPod. Você pegou?— Não — respondi bruscamente, contendo a vontade de dizer a ela

que não pegaria seu iPod por nada, já que ele estava cheio de músicas de balé e daquela banda horrível pela qual era obcecada, os Bentley Boys, três irmãos com as franjinhas perfeitas e um dom musical questionável. — Vá perguntar para a mamãe.

— Tudo bem — disse ela, baixinho, ainda me olhando desconfiada. Então Gelsey rodopiou na ponta dos pés e saiu pisando firme pela cozinha, gritando pelo caminho: — Mamãe!

Avancei pela cozinha e mal cheguei à porta dos fundos quando alguém a abriu de repente, me fazendo dar um pulo para trás. Meu irmão mais velho, Warren, tentava entrar, carregado de uma caixa de rosquinhas e uma bandeja de cafés para viagem.

— Bom dia — disse ele.— Oi — balbuciei, olhando ansiosa para fora, desejando ter tentado fugir

dali uns cinco minutos antes ou, melhor ainda, ter usado a porta da frente.— A mamãe me mandou buscar café e umas rosquinhas — disse ele,

colocando tudo sobre o balcão. — Você gosta com gergelim, não é?Eu detestava gergelim — para falar a verdade, o único que gostava era

Warren —, mas não diria nada disso agora.— Claro — respondi apressadamente. — Ótimo.Warren pegou um dos cafés e tomou um gole. Apesar de ter apenas

dezenove anos e ser dois anos mais velho do que eu, ele usava, como sem-pre, calças cáqui e uma camisa polo, como se a qualquer momento pudesse ser chamado para uma reunião de diretoria ou uma partida de golfe.

— Onde está todo mundo? — perguntou ele depois de um tempo.— Não faço ideia — respondi, esperando que ele fosse descobrir por

conta própria. Warren fez que sim com a cabeça e tomou mais um gole, como se tivesse todo o tempo do mundo. — Acho que ouvi a mamãe lá em cima — acrescentei, depois de perceber claramente que meu irmão pre-tendia passar bastante tempo degustando seu café e olhando para o espaço.

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— Vou avisar a ela que já voltei — disse ele, deixando de lado o café, exatamente como esperava que ele fizesse. Warren caminhou até a porta, parou e se virou para mim. — Ele já acordou?

Dei de ombros.— Não tenho certeza — disse, tentando manter o tom da voz natural,

como se aquela fosse uma pergunta rotineira. Contudo, há apenas algumas semanas, a ideia de que meu pai ainda estaria dormindo a uma hora dessas, ou que ainda estaria em casa, era inimaginável.

Warren fez que não com a cabeça e saiu da cozinha. Assim que ele desa-pareceu, corri para a porta.

Desci apressada pela entrada da nossa garagem e, quando cheguei à cal-çada, soltei um longo suspiro. Comecei então a correr pela Greenleaf Road o mais rápido possível. Provavelmente teria sido melhor pegar um carro, mas algumas coisas são simples fruto do hábito, e da última vez que fugi de casa eu ainda estava longe de tirar minha carteira de motorista.

Sentia que me acalmava à medida que corria. A parte racional do meu cérebro me dizia que em algum momento eu teria de voltar, mas não era isso que eu queria ouvir àquela altura. Só queria fingir que aquele dia — aquele verão inteiro — não iria acontecer, algo que ficava mais fácil de imaginar à medida que me distanciava de casa. Corria já há algum tempo e começava a procurar meus óculos de sol dentro da bolsa quando ouvi um som metálico que me fez erguer a cabeça.

Senti um frio na barriga ao ver Connie, da casa branca do outro lado da rua, passeando com o cachorro e acenando para mim. Ela tinha a idade dos meus pais, e eu sabia o sobrenome dela, mas não conseguia me lem-brar agora. Joguei a caixa dos óculos de sol dentro da bolsa, ao lado do que parecia ser o iPod da Gelsey (ops!), que eu devo ter pegado por engano pensando que era o meu. Não tinha como evitar a Connie sem ignorá--la descaradamente ou lhe dar as costas e correr para o bosque. Tinha a impressão de que qualquer coisa que eu fizesse chegaria imediatamente à minha mãe. Respirei fundo e sorri quando ela se aproximou.

— Oi, Taylor! — disse ela, abrindo um sorriso enorme. O cachorro, um enorme golden retriever com cara de bobo, ficou forçando a coleira na minha direção, ofegando e abanando o rabo. Olhei para ele e recuei. Nós

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tivemos um bichinho de estimação e, apesar de gostar deles em teoria, não tinha muita experiência com animais. E, ainda que eu assistisse ao Top Dog muito mais do que uma pessoa que não tem cachorros deveria, nada disso me ajudava a enfrentar um cão de verdade.

— Oi, Connie — disse, já começando a me afastar, esperando que ela percebesse. — Prazer em vê-la.

— O prazer é meu — respondeu ela automaticamente, mas seu sor-riso desapareceu aos poucos quando ela prestou atenção ao meu rosto e minhas roupas. — Você está um pouco diferente hoje — disse ela. — Muito... à vontade.

Como Connie estava acostumada a me ver com meu uniforme da Aca-demia Stanwich — blusa branca e uma saia plissada que pinicava —, claro que ela estava me achando diferente agora que estava praticamente do jeito que havia saído da cama. Nem me dei ao trabalho de pentear os cabelos. Usava chinelos, calças jeans rasgadas e uma camiseta branca bem gasta com os dizeres equipe de natação do lago phoenix. A camiseta não era exata-mente minha, mas eu estava com ela há tantos anos que era como se fosse.

— Acho que sim — falei a Connie, tentando manter o sorriso no rosto. — Bom...

— Grandes planos para este verão? — perguntou ela entusiasmada, aparentemente sem perceber que eu tentava terminar a conversa. O cachorro, talvez pressentindo que aquilo demoraria um pouco mais, deitou-se aos pés dela, apoiando a cabeça nas patas.

— Na verdade, não — respondi, na esperança de que o papo termi-nasse ali. Mas ela continuou me encarando, as sobrancelhas erguidas, então contive um suspiro e disse: — Na verdade, estamos partindo hoje para passar o verão na nossa casa do lago.

— Oh, que maravilha! — disse ela, toda animada. — Deve ser lindo. Onde fica?

— Em Pocono — disse. Ela franziu a testa, tentando se localizar men-talmente, e resolvi esclarecer: — Os montes Pocono. Na Pensilvânia.

— Ah, isso mesmo — disse ela, embora desse para ver por sua expres-são que ela não tinha a menor ideia do que eu estava falando, o que na verdade não era tão incomum. Alguns dos meus amigos também tinham

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casas de veraneio, mas elas ficavam em lugares conhecidos como Nantucket e Cape Cod. Ninguém que eu conhecia tinha casa de veraneio nas montanhas a nordeste da Pensilvânia.

— Bom — disse Connie, ainda sorrindo. — Uma casa no lago! Deve ser gostoso.

Fiz que sim, sentindo-me incapaz de proferir a resposta, já que não tinha nenhuma vontade de voltar ao lago Phoenix. Realmente não queria voltar para lá e estava prestes a fugir de casa sem nenhum plano nem supri-mentos, a não ser o iPod da minha irmã, só para não ter de viajar.

— Então — disse Connie, puxando o cachorro pela coleira e o obri-gando a se levantar. — Não se esqueça de mandar um oi para sua mãe e seu pai! Espero que os dois estejam bem e... — Ela parou de repente, seus olhos se arregalaram, o rosto ligeiramente vermelho. Percebi os sinais imediata-mente, apesar de só os reconhecer há três semanas. Ela tinha lembrado.

Era algo com o que não sabia lidar ainda, mas que incrivelmente pare-cia estar agindo a meu favor. De alguma forma, do dia para a noite, todo mundo da escola aparentemente sabia, e meus professores também pare-ciam ter sido informados, por que e por quem eu jamais soube ao certo. Mas aquela era a única explicação para eu ter passado em todos os exames finais, mesmo no de trigonometria, no qual corria sério risco de tirar um C. E, como se isso não bastasse, quando minha professora de inglês entre-gou as provas, ela pôs as folhas sobre a minha carteira e sua mão sobre a minha, só por um momento, obrigando-me a retribuir o olhar.

— Sei que deve ser difícil para você estudar agora — murmurou ela, como se o restante da classe não estivesse ouvindo atentamente cada pala-vra — Então faça o melhor que puder, certo, Taylor?

Mordi os lábios e fiz cara de A Corajosa, sabendo o tempo todo que estava fingindo, fazendo o que esperavam que eu fizesse. E claro que tirei A, a nota máxima, apesar de ter lido por cima o final de O Grande Gatsby.

Tudo mudara. Ou, para ser mais precisa, tudo iria mudar. Mas nada havia mudado ainda. Por isso aquelas condolências eram artificiais — como se as pessoas estivessem dizendo que sentiam muito pelo incêndio na minha casa, quando ela ainda estava intacta, mas com uma brasa acesa queimando por perto, à espreita.

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— Eu darei o recado — falei apressadamente, poupando Connie de ter que gaguejar o discurso cheio de boas intenções que eu já estava cansada de ouvir ou, — pior ainda, contar que um amigo de um amigo tinha sido curado milagrosamente pela acupuntura/meditação/tofu e perguntar se já tínhamos considerado a ideia. — Obrigada.

— Fique bem — disse ela com sinceridade, estendendo a mão e me dando um tapinha nos ombros. Dava para ver a pena no olhar dela, mas também o medo, aquele leve distanciamento causado pela ideia de que, se algo assim estava acontecendo com a minha família, bem podia acontecer com a dela também.

— Você também — disse, tentando manter o sorriso no rosto até que ela se despedisse e descesse a rua com o cachorro à frente. Segui no sentido oposto, por mais que minha fuga aparentemente não fosse fazer com que as coisas melhorassem. Por que fugir se as pessoas insistem em lembrar a gente daquilo de que se está tentando escapar? Fazia tempo que não sentia vontade de fugir de casa, ainda que fosse algo que fizesse com frequência quando era mais nova, quando ficava chateada por minha mãe estar dando mais atenção a Gelsey e quando Warren, como sempre, não queria brincar comigo. Saía batendo os pés, via a entrada de carros e o mundo enorme se abrindo lá fora, me chamando.

Tinha começado a descer a rua, imaginando quanto tempo levaria para alguém perceber minha fuga. Logo seria encontrada e levada de volta para casa, claro, mas aquilo tinha se transformado num hábito, e fugir de casa se tornara meu método preferido de lidar com qualquer situação incômoda. De certo modo isso virou rotina, tanto que, quando eu anunciava à porta que estava indo embora para sempre, minha mãe simplesmente balançava a cabeça, me olhava e dizia para não me atrasar para o jantar.

Tinha acabado de pegar o iPod da Gelsey da bolsa — estava disposta até mesmo a aturar os Bentley Boys, se isso me distraísse — quando ouvi o ronco baixo de um carro esportivo atrás de mim.

Achei que tinha ido longe demais ao me virar, já sabendo o que encon-traria. Meu pai estava ao volante de seu carro prateado, sorrindo para mim.

— Oi, menina — disse ele pela janela do passageiro. — Quer uma carona?Sabendo que não adiantava continuar fingindo, abri a porta do carro e

entrei. Meu pai me olhou e franziu a testa.

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— E então, quais as novidades? — perguntou ele, seu cumpri-mento habitual.

Dei de ombros e fiquei olhando para os tapetes cinza do chão, ainda imaculados, apesar de ele ter o carro há um ano.

— Eu só, você sabe, quis dar uma caminhada.Meu pai fez que sim.— Claro — disse ele, a voz muito séria, como se realmente acreditasse

em mim. Mas nós dois sabíamos muito bem o que estava acontecendo — era sempre meu pai quem saía para me procurar. Era como se ele sempre soubesse onde eu estava e, em vez de me levar de volta para casa, se não fosse tarde demais, nós dois acabávamos por tomar um sorvete, desde que eu prometesse não contar para minha mãe.

Prendi o cinto de segurança e, para minha surpresa, meu pai não deu a volta. Ao contrário, ele seguiu pela rua que levava ao centro da cidade.

— Aonde estamos indo? — perguntei.— Achei que seria uma boa ideia a gente tomar o café da manhã —

disse ele, me olhando de soslaio ao parar num sinal vermelho. — Não sei por quê, mas todas as rosquinhas lá de casa parecem ser de gergelim.

Ri ao ouvir isso e, quando chegamos, meu pai seguiu direto para dentro da Stanwich Deli. Como a padaria estava lotada, fiquei meio de lado, dei-xando que meu pai fizesse o pedido. Enquanto meus olhos circulavam pela loja, vi Amy Curry parada na fila, de mãos dadas com um cara alto e bonito, com uma camiseta do Colorado College. Não a conhecia muito bem — ela se mudara com a mãe e o irmão para nossa rua no último verão —, mas ela sorriu e acenou, e eu retribuí o aceno.

Quando meu pai chegou ao balcão, eu o escutei fazendo o pedido e dizendo algo que fez o atendente rir. Olhando para o meu pai a gente não percebia que havia algo de errado. Ele estava um pouco mais magro, seu tom de pele ligeiramente mais amarelado. Mas tentei não prestar atenção nisso ao vê-lo passar algumas moedas pelo vidro do caixa. Tentava ignorar o fato de ele parecer cansado e me esforçava para engolir o nó que se formava na garganta. Mais importante: eu estava tentando não lembrar que os especialistas disse-ram que meu pai tinha aproximadamente mais três meses de vida.

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