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UfrjUniversidade de São PauloFaculdade de EducaçãoDepartamento de Administração
Escolar e Economia da Educação
Política e Organização da Educação Básica no Brasil
2° semestre de 2009
Período: noturno
Profª: Carmen Sylvia Vidigal Moraes
André dos Santos Luigi n°USP
Celso Joaquim Jorgetti Junior n°USP 5232908
Gabriel dos Santos Rocha n°USP 5702408
Ricardo dos Santos Pereira n°USP 5421941
1
“... Uma descoberta fundamental da reflexão filosóficasobre a nossa situação como conhecedores
é que não há outro requisito, a não ser a coerência, que possamos impor de antemão a nossas crenças,
de modo a lhes aumentar a probabilidade de serem verdadeiras;e que uma pessoa que parta de um conjunto
coerente de crenças pode chegar,através de princípios de evidência racionais,
às mais fantásticas inverdades1”.
1 APPIAH, Kwame Anthony. “Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura”. p.168. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
2
1 Introdução
Este trabalho tem como objetivo expor e analisar alguns pontos do atual debate
sobre políticas de ação afirmativa no acesso ao ensino superior. No Brasil o assunto tem
sido discutido em âmbito federal, no entanto, tratar o tema em dimensão nacional
resultaria em um projeto um tanto além dos recursos que dispomos para nossa presente
e breve pesquisa. Optamos então por delimitar nosso foco no estado de São Paulo.
Discutir políticas de ação afirmativa necessariamente nos levará para um debate
sobre as relações raciais em nossa sociedade, deste modo, abordando um tema ainda
tratado como tabu por muitos, no campo intelectual e na sociedade em geral, apesar do
vasto número de estudos que continuam sendo produzidos sobre o assunto. No Brasil,
país cuja sociedade é evidentemente marcada pela miscigenação, costuma-se negar a
existência de questões relacionadas a raça, nota-se principalmente nos meios de
comunicação um certo temor em “racializar” o debate. A ideia bastante cara a Gilberto
Freyre na qual em nosso país há uma convivência harmônica entre os grupos de
diferentes origens étnicas, que possibilitou o advento do mito da democracia racial,
apesar de já criticada por muitos outros grandes estudiosos, ainda faz seus ecos.
Aliás, caberia expor que este contexto é apenas mais um indício do mecanismo
do preconceito de cor no país, visto que superar a imagem da miscigenação como algo
positivo foi, em todos os países que conseguiram implantar políticas públicas de ações
afirmativas, o primeiro passo a ser dado. Porém, aqui, o discurso da miscigenação
positiva é justamente o discurso promovido não só pela atual administração do Estado,
mas também pela academia. Nesta última década, reafirmou-se intensamente nos meios
de comunicação de São Paulo o discurso de que nos entendemos pela mistura. Enquanto
que as academias paulistas adotam uma postura complacente, retraindo-se e isentando-
se da responsabilidade social de promover o debate.
Assim, parte das críticas contrárias às ações afirmativas se norteia pelo
argumento onde tais políticas levariam a uma racialização da sociedade brasileira, ou
seja, criaríamos um problema que não tínhamos, ou que havíamos superado há pouco
mais de cem anos com a abolição da escravidão.
Com base nos autores que utilizamos para o desenvolvimento deste trabalho
veremos que as políticas afirmativas, ao contrário do que dizem muitos de seus
3
detratores, vêm com o propósito de desracializar nossa hierarquia social, possibilitando
o acesso de minorias raciais, atualmente marginalizadas no exercício da cidadania, ao
ensino superior público, o qual consiste, entre outras coisas, em uma via de mobilidade
social. A sociedade atualmente se encontra racializada porque nunca se desracializou,
reconhecer o fato e agir politicamente por uma mudança que possibilite igualdade de
oportunidades para negros e brancos deve ser pauta da agenda nacional se quisermos
efetivamente atingir o ideal de sociedade democrática onde diferença não seja sinônimo
de desigualdade.
O discurso da violência perpetua-se ao camuflar seus mecanismos de exclusão,
legitimando-os na medida em que os nega. O racismo é um mecanismo de exclusão
social. Mas isso não esta claro para a sociedade brasileira. Tanto que, o discurso de que
as cotas raciais podem “racializar” a sociedade brasileira, tão veiculado na mídia, supõe,
justamente, que raça não existe, tanto biológica, quanto sociologicamente. Ora, se
aceitar que o racismo existe, teremos que aceitar que raça existe, pelo menos enquanto
mecanismo de exclusão social. O inverso também é válido, pois aceitando que raça não
existe, seu mecanismo de perpetuação, o racismo, também não existiria.
Raça existe sociologicamente, ela se torna corpo, carne, no ato da discriminação.
Raça se firma nas práticas sociais, historicamente gestadas e concebidas.
Para sustentar os argumentos que serão expostos no decorrer do trabalho, vimos
a necessidade de uma breve contextualização histórico-sociológica do processo de
marginalização social da população negra no Brasil.
4
2 Relações raciais no Brasil: breve abordagem histórica
“É aí que, protegidas pelas depressões do terreno,Pelas voltas e banquetes do Tamandatueí,
pelas arcadas das pontes, pela vegetação das moitas,pela ausência de iluminação
se reúne e dorme e se encaichoa, a noite,a vasa da cidade, numa promiscuidade nojosa,
composta de negros vagabundos,de negras edemaciadas pela embriaguez habitual,
de uma mestiçagem viciosa,de restos inomináveis e vencidos
de todas as nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos. É aí que cometem atentados que a decência manda calar,
é para aí que se atraem jovens estouvados e velhos concupiscentes para matar e roubar,
como nos dão notícia os canais judiciários,com graves danos à moral
e para a segurança individual,não obstante a vigilância e a solicitude de nossa polícia.
Era aí que, quando a polícia fazia o expurgo de nossa cidade,Encontrava a mais farta colheita.”
Relatório apresentado pelo então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Washigton Luís
Neste tópico analisaremos alguns aspectos das relações raciais no Brasil
republicano para entendermos o processo de marginalização social dos negros que
persistiu ao longo do último século. Os quase quatrocentos anos de escravidão africana
no Brasil de fato não devem ser esquecidos quando falamos de reparação social para a
população de cor, no entanto, por motivos que explicaremos adiante, acreditamos que
tal discussão deve girar mais em torno da sociedade republicana do que do escravismo.
Não queremos com isso desconsiderar o peso da escravidão na história do Brasil e na
condição social do negro na sociedade livre. Mas nossa preocupação no momento é
entender como funcionaram os mecanismos de marginalização do negro, isto é, a
estratificação social na sociedade pós-abolição e ao longo do século que seguiu a
emancipação dos escravos e o fim da monarquia em nosso país.
George Reid Andrews, em debate com Florestan Fernandes, em seu livro Negros
e brancos em São Paulo, expõe que o processo de exclusão do negro não se deu apenas
5
pela omissão da burguesia. Mas principalmente pela sua ação consciente em um projeto
de exclusão estrutural do negro. Afirma que a população negra habitava as áreas
centrais da cidade e exercia os ofícios que posteriormente foram valorizados pelo ideal
do progresso, sendo deslocada de suas habitações e ocupações ao passo que se
executava o programa eugenista de embranquecimento como condição para o
progresso2.
Esta perspectiva, segundo Andrews, deixa claro o processo de exclusão
deliberada, afirmando a iniciativa negativa em vez da passividade apática, como faz
Fernandes. Andrews nos mostra que nas três primeiras décadas do século XX eram
comuns anúncios de empregos nos quais ser branco era uma das exigências para ocupar
a vaga3. Com o tempo tais anúncios substituiriam a palavra branco por “boa aparência”,
evidentemente um eufemismo.
O trecho do relatório citado acima versa sobre a região na época conhecida como
Várzea do Carmo, atual Parque Dom Pedro, então reduto da população negra. Esta área,
periférica no contexto da cidade desde fins do XIX, crescia dia a dia com a chegada de
negros e libertos de todos os cantos. Expulsos de suas moradias pela reforma urbana,
deixavam para trás bairros historicamente ocupados pela população negra, como os
famosos Bráz, Bexiga e Barra Funda.
A Várzea do Carmo demarcava a fronteira urbana da cidade, que até então se
limitava aos rios Tamandatueí e Tiête. Interessante notar que desde 1890, a população
negra vem sendo deslocada para as regiões fronteiriças da cidade, abrindo caminho para
a urbanização, habitando aquilo que hoje se poderia chamar de periferia.
Mais significativo ainda seria notar quem é o relator do documento, bem como
sua trajetória política. De Secretário de Segurança Pública do Estado, alçou-se a
Governador do Estado de São Paulo chegando à presidência da República Federativa do
Brasil. Washington Luís seguira a mesma trajetória que a ampla maioria dos políticos
republicanos: positivista, maçon, herdeiro dos barões do Café da região de Campinas,
modernizador convicto, bacharel em Direito, formado pelo Largo de São Francisco. Seu
2 Reconhecemos a importância da contribuição de Florestan Fernandes. Tanto que é a partir da crítica a sua obra que fizemos este recorte histórico. Em item posterior deste trabalho analisaremos com mais acuidade a obra deste autor.
3 George Reid Andrews, Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). p. 110-118.6
discurso tem o potencial de sintetizar qual fora a política de Estado dedicada à
população negra ao longo de toda a Primeira República4.
Para falarmos de políticas afirmativas hoje, é fundamental entendermos a
discriminação racial e o tratamento desigual aos quais os negros foram submetidos em
um sistema político norteado por ideais de igualdade a todos os homens,
independentemente de classe, cor ou religião.
A escravidão evidentemente é uma marca negativa na história do país, e
submeteu os africanos e seus descendentes a uma vida indigna, negando juridicamente
aos escravizados a condição de seres humanos5. Na sociedade escravista o negro livre –
tanto o alforriado, quanto o nascido de ventre livre – raramente ocupou alguma posição
de prestígio, e quando o fez na maioria dos casos resultou de relações paternalistas ou
de apadrinhamento bastante comuns na ordem escravocrata, deste modo podemos
identificar casos de ascensões individuais e não de grupo. Sendo assim, seria incorreto
dizer que no Brasil monárquico e escravista o negro esteve no poder junto com o
branco. Porém, neste caso estamos falando de uma sociedade onde a discriminação
social com base na cor era juridicamente permitida.
Abolida a escravidão e oficializados os ideais políticos republicanos de
liberdade, igualdade e propriedade o que atrasaria os negros na disputa por posições de
prestígio na hierarquia social? A resposta a essa questão, em parte, sustentará nossa
argumentação a favor das políticas de ação afirmativa.
2.1 Eugenia, branqueamento e racismo científico6
4 Apud Andrews.
5 Por uma questão de delimitação do tema não entraremos no mérito da luta por autonomia, formas de negociação e resistência escrava, que comprovadamente existiram e até mesmo possibilitaram, em alguns momentos, concessões de direitos e amansamento nas relações entre senhores e escravos.
6 Este item sintetiza idéias do livro O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870 – 1930, de Lilia M. Schwarcz.
7
Antes de prosseguir, é importante abrir um parêntese e apontar para a diferença
conceitual entre o termo raça, usado pelos cientistas naturalistas do século XIX e
começo do XX, e o termo usado por nosso grupo neste trabalho7. Para estes cientistas
raça consiste em características genéticas herdadas pelos indivíduos, as quais
determinam o caráter moral e consequentemente o lugar, que ocupará o portador de tais
características, na escala evolutiva da humanidade e na hierarquia social. Para nós raça
consiste em um conceito sociológico, em uma categoria de análise que nos permite
entender o processo de estratificação social no Brasil, onde as características físicas dos
indivíduos e o grupo de pertencimento influenciam na posição que ocupam na sociedade
e na disputa por mobilidade social8.
No entanto, estes cientistas naturalistas aos quais me refiro foram os primeiros
intelectuais nascidos no Brasil, e em grande maioria, formados nas primeiras
instituições de ensino brasileiras. Estes homens de ciência – termo usado por Lilia M.
Schwarcz – tinham como principal objetivo pensar identidade nacional do brasileiro e
apontar os caminhos que levariam o país ao rol das nações civilizadas. Neste contexto
os primeiros pensadores brasileiros refletiriam sobre a questão nacional, o que para eles
necessariamente passaria pela questão racial. Cito os nomes de alguns dos intelectuais
aos quais me refiro: Silvio Romero, Nina Rodrigues, Oliveira Vianna e seus discípulos.
Entre 1870 e 1930 no Brasil vigorou um pensamento racista com base em teorias
evolucionistas, naturalistas, deterministas, darwinistas sociais, as quais atribuíram os
problemas da nação a condição biológica dos brasileiros, ou seja, a explicação do atraso
estava no fato do país ser habitado por grande número de negros índios e mestiços,
comportando então uma população não-branca, degenerada, herdeira dos vícios morais
das raças inferiores. Era preciso cuidar da raça para garantir uma nação moderna e
civilizada, deste modo, o branqueamento da população foi a saída encontrada pelos
nossos ilustres pensadores e pelas elites políticas nacionais da primeira república.
Branquear o brasileiro seria meta para as próximas décadas, e seria inclusive pauta
política. Para os racistas mais otimistas o branqueamento ocorreria naturalmente, pela
miscigenação, onde as características da raça superior prevaleceriam sobre as da
inferior, por outro lado, a seleção natural eliminaria os degenerados que não se
adaptariam a nova civilização e pereceriam.
7 O assunto será retomado e aprofundado mais adiante.
8 Nelson do Vale e Silva & Carlos Hasenbalg, Estrutura social, mobilidade e raça, capítulos 5 e 6.8
Em São Paulo e nos estados do Sul, o incentivo à imigração de europeus foi uma
saída encontrada pelas elites locais para resolver tanto o problema da mão-de-obra,
quanto o problema da raça. Nas primeiras décadas de industrialização em São Paulo os
brancos seriam os escolhidos para ocupar os postos que se abriam no mercado de
trabalho.
Neste sentido cabe ressignificar o que foi a Abolição. O ato da assinatura da lei
que pôs fim ao trabalho escravo não esgota em si mesmo9. Dois processos
complementares compõem o que na verdade foi um longo processo: primeiro a pressão
popular, movida principalmente pela onda de violência desencadeada por escravos, que
acuou os políticos brasileiros, forçando-os a reagir definitivamente e, segundo, o
processo político de reação que pôs fim à escravidão. A abolição engloba estes dois
movimentos, seu significado se dá tanto na ação popular quanto na reação das elites.
Maria Helena Pereira Toledo Machado, em seu livro “O plano e o pânico”, desenvolve
esta perspectiva10. O próprio título de sua obra expressa sua concepção. Focando seus
estudos na região de Campinas, área política e econômica mais importante do país entre
as décadas de 1870 e 1910, Machado expõe o pânico das elites frente a onda de
violência escrava. Mostra também que a reação a esta violência já se delineava décadas
antes da Abolição, colocando em prática um plano de “eliminação do elemento negro”
que iria muito além do ato político sentenciado em 13 de Maio de 1888. Não caberia
aqui tentar dar conta do que fora este processo de resistência escrava que inviabilizou a
escravidão. Mas cabe ressaltar a reação engendrada.
Apoiados no pensamento eugenista, os homens de Estado da República
Federativa do Brasil, empreenderam uma política oficial de segregação racial.
Interessante notar que, ao subirem ao poder, ainda em 1890, a primeira atitude tomada
pelos republicanos foi execução do ressarcimento pela Abolição, fazendo com o que o
Estado bancasse não só as viagens transoceânicas dos imigrantes europeus e asiáticos,
mas também criasse uma rede de hospedagem, triagem e cadastro dos trabalhadores que
aqui chegavam. Esta atitude política ganha outra dimensão se lembrarmos que o
principal custo da escravidão era justamente o transporte, ou seja, o tráfico. Não era a
manutenção do escravo que definia seu valor altíssimo, mas sim o custo do tráfico. Ao
estabelecer a imigração como política de Estado, os republicanos transferiram este custo
9Ana Maria Rios & Hebe Maria Mattos. O pós-abolição como problema histórico.10 Maria Helena P. T. Machado.O Plano e o Pânico.
9
– ainda mais alto no caso dos imigrantes devido às condições de viagem “menos
mortais” – aos cofres públicos. E isto faz parte do processo da Abolição, é este seu
significado político. Assim, este ato político, exemplifica do que se trata quando
falamos em política de embranquecimento.
Chama-nos a atenção o fato do advento de tal pensamento coincidir com a
abolição jurídica das desigualdades entre os homens. Com o fim da escravidão e da
ordem monárquica as elites políticas e econômicas garantiriam por mais algumas
décadas seus privilégios se apoiando no argumento da superioridade da raça. O ideal de
branqueamento tem lugar entre grande parte dos pensadores nacionais até o final da
década de 1920, no entanto, durante este período a ideia de inferioridade do negro se
manifesta nas várias esferas da sociedade reforçando a posição desigual na qual se
encontra o negro e o branco na disputa por posições de prestígio na hierarquia social do
Brasil pós-abolição.
Vale ressaltar também que, foi justamente ao longo das décadas de 1890 e 1930,
que a maior parte da estrutura urbana das grandes metrópoles brasileiras se cristalizam.
Estas cidades praticamente explodem ao longo destas décadas. Desta data em diante,
sua infra-estrutura cresce em um ritmo muito mais lento. E, neste período de
industrialização inicial e ressignificação do trabalho, acessar a infra-estrutura urbana
significa, exatamente, acessar a cidadania em período de definições da posição social. E
este é um momento decisivo, principalmente em São Paulo. A cidade cresce
vertiginosamente, as oportunidades de trabalho surgem, profissionais liberais se
estabelecem, famílias se estruturam, áreas residenciais são cedidas pelo Estado, escolas,
hospitais, transportes, enfim, todo o planejamento urbano é definido neste período.
Após a década de trinta, a redivisão global do trabalho imposta pela crise de 29 e pelas
duas grandes guerras, condena o Brasil à condição de economia periférica, deixando
cada vez mais limitada as chances de experimentar um crescimento urbano tão
vigoroso. Portanto, São Paulo, enquanto metrópole vivera seu período decisivo
justamente ao longo das décadas de 1890 e 1930.
Neste sentido, a política de embranquecimento consistiu, fundamentalmente, na
promoção da migração constante e compulsória da população negra para as zonas
periféricas, justamente onde ficavam alijadas do acesso à infra-estrutura urbana e,
consequentemente, da possibilidade de praticarem efetivamente a cidadania republicana.
Condenados à constante migração, atuando na abertura da fronteira urbana, a população
10
negra é alijada estruturalmente do acesso aos serviços públicos e ao trabalho formal. É
nesta época, em São Paulo, que a população negra é condenada a condições de vida que
lhe vitima até os dias de hoje. Viver na marginalidade, à margem da cidade, da
sociedade e dos direitos civis, lhe condenou a carregar um signo, marcado a ferro e fogo
pelo Estado: o signo do estereótipo.
Deste modo, após a década de 1930, mesmo o racismo deixando de existir
enquanto teoria científica, a discriminação apoia-se na sua decorrência imediata: o
estereótipo. O preconceito e a discriminação contra o negro persistem, nos costumes, e
como nos mostra Roger Bastide, na ausência de um sistema de reciprocidade nas
relações entre negros e brancos11. Entretanto, o discurso oficial do Estado, em nome de
um projeto de mobilização nacional, regido sob a batuta da ditadura do Estado Novo,
adota o discurso da miscigenação positiva, canto em verso e prosa as teorias de Gilberto
Freire12.
2.2 Sobre negros e brancos em São Paulo
Levantaremos alguns aspectos do processo de estratificação social que ocorreu
ao longo da história do Brasil pós-abolição, de como a população negra foi socialmente
desfavorecida em relação aos brancos.
Bastide fala sobre um “pecado de omissão”: (...) a falta de uma política
governamental a favor da ascensão do homem de cor na sociedade, por um auxílio
econômico e medidas educativas apropriadas, quando há tantas leis a favor dos
imigrantes13. Neste trecho que pertence a uma publicação do final da década de 1950, o
autor ilustra bem o que ocorreu nas primeiras décadas de Brasil república. O incentivo à
imigração e políticas públicas que favoreceram os europeus e seus descendentes,
consequentemente o desamparo dos afrobrasileiros na ordem social.
Evidentemente grande parte dos imigrantes que vieram para este lado do
hemisfério a princípio não ocuparia as mesmas posições que os filhos das elites
nacionais naquele momento. Na cidade de São Paulo que se industrializava, os europeus
11 Roger Bastide & Florestan Fernandes, Brancos e Negros em São Paulo. p. 168
12CANDIDO, Antonio. “O significado de “raízes do Brasil”. Prefácio. In. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. pág. 9-21.
13 Bastide & Fernandes, Idem. p. 16511
formariam a demanda de mão-de-obra fabril. Contudo, os negros estariam abaixo dos
imigrantes formando um exército de reserva de mão-de-obra, e só começariam a
aparecer em número relevante nas fábricas na década de 1930, quando a imigração já
havia cessado e as primeiras gerações de europeus tinham adquiridos recursos
necessários para uma vida melhor, formando, inclusive, a nova burguesia poucas
décadas após a chegada da primeira geração. Os negros foram para as fábricas quando
estas já não eram mais interessantes para grande parte dos brancos que se tornaram
proprietários, comerciantes, pequenos e médios empresários ou profissionais liberais.
As atividades que sobravam para os negros eram trabalhos domésticos,
policialesco, enquanto militar ou bombeiros de baixo escalão, trabalhos informais, em
geral serviços mal remunerados ou que os colocavam em situações de risco, trabalhos
aos quais a maioria dos brancos tinha a opção de não se submeter.
2.3 Estratificação social racializada
Os estudos que utilizamos no desenvolvimento deste trabalho têm em comum a
tese na qual a cor se torna um critério visível que situa o indivíduo em determinado
degrau da escala social. Diferentemente de como muitos intelectuais e militantes
pensavam (ou pensam), a questão social no Brasil não se limita há uma questão de
classes. Citando Bastide mais uma vez: o preconceito de cor se identifica com o de
classe, porém, (...) a cor não se confunde completamente com a classe, dentro da
própria classe desempenha um papel discriminador14.
Nelson do Valle e Silva nos mostra como o fenótipo desempenha um papel no
processo de estratificação social e perpetuação das desigualdades, sendo os grupos não-
brancos – reproduzo a expressão usada pelo autor – desfavorecidos na distribuição de
benefícios materiais e simbólicos. O preconceito e a discriminação estão associados à
competição por posições na estrutura social15. O autor fez uma pesquisa com base em
dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1975, e constatou
que pretos e pardos tem qualidade de vida marcadamente inferior a dos brancos. Os
dados levantados por Silva dizem respeito ao grau de instrução, tempo de estudos,
ocupação profissional, salário, habitação.14 Bastide & Fernandes, Ibidem. p.185.
15 Carlos Hasenbalg & Nelson do Valle Silva, Estrutura social, mobilidade e raça. p. 144.12
O autor nos mostra que das pessoas entrevistadas que possuem 9 anos ou mais
de estudo: menos de 2% são pretos, menos de 4% pardos e aproximadamente 11% são
brancos. No item realização profissional, vemos em profissões de status mais elevados
como técnicas, científicas religiosas, artísticas, administrativas, liberais, proprietários:
mais de ¼ ocupadas por brancos, menos de 12% por pardos e menos de 6% por pretos.
Enquanto em ocupações de baixo status (manuais e agropecuárias) pretos e pardos
aparecem quase 50% a mais que brancos16. Reproduzindo uma afirmação do autor: (...)
ao longo do ciclo de vida sócio-econômico, negros e mulatos sofrem desvantagens
geradas por atitudes discriminatórias, desvantagens que se acumulam na geração de
chances de vida profundamente inferiores àquelas desfrutadas por brancos17. Tais
desvantagens em oportunidades de empregos bem remunerados, acesso à educação,
habitação digna, serviços de saúde, agem cumulativamente de uma geração para outra.
Carlos Hasenbalg, neste mesmo livro ressalta que negros não apenas têm
menores possibilidades de ascensão social que os brancos da mesma origem social,
como também, encontram maiores dificuldades em manter as posições já
conquistadas18.
Vimos então que na sociedade republicana, do trabalho livre e remunerado, a
discriminação racial adquire novas funções e significados no novo contexto social. A
variante raça tem um papel na transmissão intergeracional das desigualdades sociais, e o
preconceito e a discriminação racial servem aos mecanismos de distribuição de direitos.
Tal fato, em parte, justifica a necessidade da promoção de políticas públicas a favor
desta parcela da população historicamente desfavorecida. Por isso a importância de se
reconhecer o racismo enquanto fenômeno social e historicamente reproduzido.
16 Hasenbalg & Silva, Idem. p. 151.
17 Hasenbalg & Silva, Ibidem. p.163.
18 Hasenbalg & Silva, Op cit. p. 177.13
3 Relações raciais no Brasil: a contribuição de Florestan Fernandes
Reconhecer o racismo e seus mecanismos é primeiro passo para combatê-lo.
Por isso, a resistência do discurso oficial, que revigora e recicla, desde os anos trinta, o
discurso do encontro das raças de Freire. Para discutirmos desigualdade racial em nosso
país precisamos ter claro as estratégias da hegemonia discursiva. Neste sentido, o
trabalho de Florestan Fernandes é um marco do âmbito acadêmico.
Ao se discutir a desigualdade racial existente em nosso país, devemos levar em
conta o debate feito por Florestan Fernandes, principalmente em seu livro “A integração
do negro na sociedade de classes”. As reflexões feitas pelo autor nos ajudam a refletir
sobre a desigualdade racial e sobre a necessidade de políticas afirmativas como as cotas,
em nossa sociedade.
O autor nos ajuda a entender principalmente a relação racial em uma sociedade
em transformação, onde se estava destruindo as castas, para construção de uma
sociedade de classes. A constituição desta nova sociedade e as relações sociais nela
expressada são as grandes preocupações de Florestan. Podemos ver que o autor vai
procurar entender até que ponto conseguiu-se romper com a velha sociedade oligárquica
escravocrata e construir uma sociedade moderna de classes, onde se expressasse uma
democracia burguesa como se deu nos países capitalistas modernos.
Especificamente na obra citada, e por se tratar do tema do trabalho, aqui a
preocupação recairá sobre as relações raciais nesta sociedade em transformação.
Veremos que o autor traz uma contribuição importante sobre este tema, tratando desta
questão de um ponto de vista histórico, analisando sua dimensão social e cultural.
Levando em conta o objetivo do trabalho em discutir a política de cotas nas
universidades, será feita uma abordagem do autor que forneça elementos para
pensarmos neste tema, focando principalmente a questão em dois pontos: o mito da
democracia racial e a conservação de padrões tradicionais (escravocratas) de relações
sociais em nossa sociedade.
14
3.1 Conservação de uma sociedade estamental
A construção de uma sociedade de classes no Brasil foi extremamente
defeituosa e incompleta. Longe de romper com a velha sociedade aristocrática,
estruturada na escravidão e na dominação senhorial, com uma economia agrária
exportadora, a constituição da sociedade de classes aqui se deu mantendo-se muitas
relações desta sociedade estamental.
Como marca desta velha estrutura oligárquica, temos a manutenção de padrões
tradicionais das relações sociais, e, portanto a manutenção de relações advindas da
sociedade escravocrata. O que o autor procura mostrar é fundamentalmente que mesmo
em uma sociedade de classes, onde teríamos a consolidação de uma sociedade
democrática com relações igualitárias fundadas em concepções republicanas,
conservou-se uma estrutura racial desigual. O negro não dispunha dos mesmos direitos
republicanos e democráticos. Para Florestan, há um padrão de isolamento econômico e
sócio cultural do negro e do mulato que não condiz com uma sociedade aberta e
competitiva.
Segundo o autor, as raízes históricas da degradação social do “homem de cor”
no seio do novo sistema sócio-econômico é “a perpetuação indefinida de padrões de
ajustamento racial que pressupunham a vigência de critérios anacrônicos de atribuição
de status e papeis sociais ao negro e ao mulato”(Fernandes, 1978: 249)
Em um primeiro momento, quando escreve sobre o assunto para o trabalho da
UNESCO, Florestan acreditava que o desenvolvimento da sociedade de classes faria
com que a desigualdade racial desaparecesse para dar lugar a desigualdade de classe.
Assim, o negro participaria da luta política nesta nova sociedade sem que as questões
raciais o colocassem em desvantagens. Porém, Florestan revê esta posição e percebe que
a ordem racial manteve-se estagnada. Os ajustamentos dinâmicos do “homem de cor” e
da raça branca mantiveram-se em inércia, que se evidenciava, historicamente, na
perpetuação estagnadora da ordem racial.
Segundo o próprio autor:
“A acomodação racial processava-se segundo modelos reconhecidamente aberrantes, antes conforme à relação tradicionalista e patrimonialista que à relação heteronômica inerente à ordem social competitiva. O “branco” preserva ciosa e ferrenhamente a posição ativa e dominante da polarização “senhorial”. Enquanto o
15
“negro” se conservava (ou era mantido) na posição subordinada correspondente, como se ainda fosse despido da condição civil de “pessoa”.(Fernandes. 1978: p.280)
Esta conservação de uma estrutura oligárquica e patrimonialista, impunha ao
negro certos papéis na sociedade, e quando estes não eram cumpridos, eram reprimidos
e condenados socialmente. Havia uma intolerância social como um meio de impedir a
movimentação dos negros que procuravam se organizar para lutar contra a
desigualdade. Cita o autor um movimento de organização dos negros que se fazia na rua
Direita em São Paulo, que era condenada e os seus participantes tachados de
ressentidos, pessoas que guardam rancor por serem pretos, que querem fazer afronta e
mostrar despeito.
Como na sociedade estamental, esperava-se um certo comportamento por parte
do negro. Que este fosse obediente e submisso, soubesse reconhecer “seu lugar” na
sociedade, e caso tentassem lutar contra isso, deveriam ser logo colocados em seu lugar.
O negro que não aceitasse este “papel” deveria sofrer as conseqüências, os brancos não
aceitavam que os negros se comportassem de maneira diferente do que eles esperavam,
e esta expectativa era calcada na obediência e submissão das relações entre senhor e
escravo.
3.2 O mito da democracia racial
O autor vai nos mostrar como o mito da democracia racial foi uma construção
social utilizada para mascarar uma realidade, com objetivos claros de conservação do
poder pela elite branca dominante. Além disso, este mito impedia que o assunto da
desigualdade viesse à tona na sociedade, uma vez que vivíamos em uma “democracia
racial” não havia porque discutir a desigualdade.
Com a desculpa de que havíamos construído uma sociedade justa impediu-se o
negro de acessar seus direitos e em nome desta justiça social prendeu-se o negro nos
grilhões do passado. Foi esta falácia de termos alcançado um regime republicano na
convivência entre negros e brancos, que possibilitou o surgimento do mito da
democracia racial.
Parecido com o que vemos hoje por alguns setores da sociedade que se
recusam a discutir a questão da desigualdade racial, alegava-se que não abordar as
16
questões da desigualdade racial era melhor para o negro, pois agitar estas questões só
serviria para “prejudicar o negro” e quebrar a “paz social”.
Assim, a democracia racial foi uma imposição, que segundo Florestan
assentava-se sobre três planos principais. O primeiro era uma culpabilização do negro.
Na medida em que vivíamos em uma sociedade aonde não havia desigualdades, eram os
negros que não se esforçavam suficiente para saírem de uma situação inferior. Isso
ajudava ainda a reforçar estereótipos com “negro é preguiçoso”, “negro só pensa em
bebida” “negro só sabe reclamar e não faz nada para melhorar de vida”.
O segundo, inocenta o branco de qualquer obrigação ou responsabilidade pela
situação gerada com a escravidão e uma política deliberada depois da abolição de
marginalização e exclusão dos negros. Esta concepção tinha o intuito de livrar a classe
branca escravocrata de uma culpa objetiva, e evitar o enfrentamento da questão racial.
Isso porque a política abolicionista conservadora, não visava subverter a estrutura racial
da sociedade de castas, pretendia-se proceder a emancipação preservando-se todas as
regalias e o poder de dominação da “raça branca”.
Terceiro, cria uma falsa consciência sobre a realidade racial brasileira imposta
de cima para baixo, como algo essencial à respeitabilidade do brasileiro, ao
funcionamento normal das instituições e ao equilíbrio da ordem nacional. O mito da
democracia racial acabou caracterizando a “ideologia racial brasileira”, perdendo-se por
completo as identificações que o confinavam à ideologia e às técnicas de dominação de
uma classe.
O mito da democracia racial serviu, portanto, para esconder uma realidade e
impedir que se travasse no país uma discussão e uma disputa sobre a questão racial. Nas
palavras de Florestan a democracia racial
“Como mito, ela se vinculava aos interesses sociais dos círculos dirigentes da “raça dominante”, nada tendo que ver com os interesses simétricos do negro e do mulato. Por isso, também, não operava como força social construtiva, de democratização dos direitos e garantias sociais na “população de cor”. Inscrevia-se contrariamente, entre os mecanismos que tendiam a promover a perpetuação, em bloco, de relações e processos de dominação que concentravam o poder nas mãos dos mencionados círculos dirigentes da “raça branca”, como sucedera no recente passado escravista.”(Fernandes, Florestan.1978: p.263).
17
Podemos ver ainda hoje os traços nefastos desta construção, uma vez que nas
discussões a respeito das políticas afirmativas, e, portanto, das cotas raciais, os
opositores destas insistem em utilizar este mito para desqualificar e combater as cotas.
Mesmo diante das evidências da desigualdade racial em nosso país, o mito da
democracia racial continua arraigado em uma grande parcela da população, e ainda hoje
encontra seus defensores nos meios políticos e acadêmicos.
Mas aqui cabe uma colocação feita por Florestan que continua fundamental
para uma disputa em torno das desigualdades raciais e das cotas nas universidades. O
autor nos diz que apenas a atuação organizada e intransigente do negro será capaz de
reverter o quadro descrito. Não há outro meio de lutar contra a desigualdade se não
através da organização dos negros, de uma disputa aberta e clara que envolva
formulação e atuação prática.
18
4 Relações raciais no Brasil: breve abordagem sociológica
A análise dos indicadores sociais brasileiros evidencia os números absolutos da
desigualdade entre brancos e negros em praticamente todas as esferas da sociedade19.
Talvez os aspectos que melhor ilustram a distância entre os dois grupos possam ser
visualizados nos níveis de educação e consequentemente no rendimento proveniente do
trabalho. Observar os dados oficiais do IBGE e chegar a tais conclusões parece até um
tanto quanto óbvio, entretanto, a ênfase racial sublinhada nos números só passou a ser
aproveitada enquanto metodologia de trabalho, a partir dos estudos de estratificação
social nas pesquisas precursoras de Carlos Hasenbalg em fins da década de 1970.
Atualmente há uma série de estudos que se dedicam a apontar, no processo de
desigualdades raciais, o “ciclo cumulativo de desvantagens” pelo qual os negros, em
todas as etapas da vida, estão envolvidos.
Sem querer atropelar os bois, antes convém explicar o uso sociológico atribuído
à categoria “raça” – noção inadvertidamente polissêmica e sujeita a diversos desusos -
através de uma distinção de fundamento para se trabalhar com o tema racial em ciências
sociais. De acordo com o sociólogo Antonio Sérgio Guimarães, para entendermos os
usos da categoria “raça”, devemos apreendê-la sob duas dimensões opostas, que podem
ser: a) analítica: o pesquisador procede através da utilização de conceitos operados num
corpus teórico orquestrado a partir de um constructum lógico de referente sociológico;
b) nativa: neste caso a base da explicação parte de categorias retiradas do mundo
prático-empírico, tendo em vista o ângulo diacrônico enxergado numa particularidade
contextual.
Nessa linha de raciocínio, compreende-se que “raça” não pode ser estudada num
sentido único, exclusivo, já que tal noção é, frequentemente, associada pelo senso
comum segundo o estudo próprio da biologia, e mais especificamente como objeto
comum das ciências sociais20. Dito de outra forma, na dimensão analítica de Hasenbalg
“raça” opera como um critério indispensável nos estudos de estratificação social, pois
19 Por “negros” entendemos a soma das classificações de cor do IBGE “pretos” e “pardos”, definição utilizada pelos movimentos negros brasileiros e por diversos estudiosos das relações raciais.
20 Não ignoramos que as concepções científicas estão, na maioria da vezes, em concorrência quando o tema racial é suscitado. Entretanto, a despeito do sentido biológico não possuir fundamentos suficientes para uma explicação relacionada com diferenças culturais determinadas, podemos dizer que no sentido sociológico, “raças” são artefatos conceituais para se explicar as diversas identidades sociais.
19
funciona como uma variável central no preenchimento de posições e dimensões
distributivas da estrutura de classes.
Contudo, ao se ter em mente a tradição do pensamento social brasileiro, é
necessário reconhecer o possível efeito teórico da linha de estudos empregada por
Hasenbalg, tributária de críticas e discordâncias a perspectivas precedentes.
Secundariamente, àquela que se refere ao diagnóstico da situação atual de negros vis-à-
vis aos brancos como reminiscências do passado escravista, conclusão, em maior ou
menor grau, presente nos estudos de autores filiados à tradição do pensamento
sociológico de São Paulo; e, principalmente, à chave analítica influenciada pelo
pensamento de Gilberto Freyre, na qual “raça” praticamente inexiste como responsável
pelas desigualdades raciais, e sim, enquanto celebração da sociedade brasileira, isto é,
num sentido intimamente próximo do amalgamento cultural forjado nos “antagonismos
em equilíbrio”, do caráter macunaímico a vicejar no melting pot racial. A nosso ver,
essas duas concepções de sociedade são contrastantes e superáveis, se tomarmos como
pressuposto a “teoria do ciclo de desvantagens cumulativas”.
Primeiro porque, de um lado, o “mito da democracia racial” enquanto construção
intelectual, inclusive denunciado por Roger Bastide e Florestan Fernandes em Brancos
e negros em São Paulo, sugeriria a ideia de uma sociedade multi-étnica fundada na
conciliação e ausência de tensões entre as raças. Do outro lado, ao se reconhecer a
falsidade dessa versão “oficiosa”, o chamado problema racial seria transformado em
aspecto derivado da situação de classe, e, portanto, explicado somente pela desigualdade
na estrutura de classes da sociedade brasileira, na qual o preconceito contra os negros
seria esvaziado de implicações raciais e atribuído à posição socioeconômica inferior que
a maioria deles ocupava e ainda ocupa.
A perspectiva de Hasenbalg contesta a ineficácia da última visão, que não
consegue explicar por que a população preta e parda se autoperpetua em posições
sociais inferiores. Desse modo, para ele a estrutura das relações raciais no país evitaria
que a raça se constituísse como princípio de identidade coletiva, ação política. Por outro
lado, a eficácia da ideologia racial imperante, que mantém, e por vezes reforça, a
estrutura de privilégio do branco e a subordinação da população negra se traduz no
esvaziamento do conflito racial aberto e da articulação política efetiva dos negros,
fazendo com que os componentes racistas do sistema permaneçam incontestados, sem
necessidade de apelo a um alto grau de coerção (cf. Hasenbalg. 2005: p.255).
20
Em resumo, podemos afirmar que a sustentação de tal enfoque nos estudos das
relações raciais brasileiras têm, em seu núcleo, as seguintes hipóteses: (a) as
desigualdades raciais existentes entre brancos e negros se devem a diferenças de
oportunidade e de tratamento, e não a uma herança do passado; (b) as maiores
desigualdades raciais ocorrem entre brancos e pardos, por um lado e entre brancos e
pretos, do outro, de tal modo que para todos os efeitos práticos, isto é, as oportunidades
de vida, existe uma bipolaridade entre brancos e não brancos. (c) o “ciclo cumulativo de
desvantagens” a cada geração aumenta o fosso de diferenças que separam brancos e
negros (ibid. 2005: cap. VI).
Portanto, ao utilizar-se dessa linha de estudos, a nossa justificativa leva em conta
a particularidade metodológica de tais análises, que consiste em geral numa análise
multivariada de dados agregados retirados das estatísticas oficiais do IBGE,
principalmente censos e pesquisas amostrais por domicílios. No desdobramento dos
dados, baseando-se na variável de controle “raça”, pode-se mostrar, primeiro, que é
possível e correto agregar os dados de cor existentes em dois grupos raciais (brancos e
não-brancos), pois há poucas diferenças substantivas entre os grupos não-brancos entre
si, pretos e pardos, quando relacionados com variáveis decisivas como renda, educação,
emprego, etc. Ao agregarmos os dados, a grande diferença encontrada, em todos os
aspectos da análise quantitativa, diz respeito às significativas divergências entre os
grupos branco e negro. Segundo, mesmo que se esgotem as variáveis de status e classe
social nos moldes explicativos (renda, escolaridade, emprego) persiste inexplicado um
resíduo substantivo que só pode ser atribuído a própria “raça” dos indivíduos. Senão,
vejamos a situação sob outro ângulo.
A tabela seguinte é composta de projeções gerais do perfil demográfico por
raça/cor da sociedade brasileira, elaboradas nas Pesquisas Nacionais por Amostra de
Domicílios (Pnad) de 1998 a 2008.
População residente, distribuição percentual por raça/cor Total¹ Brasil
21
Ano Total (1000 pessoas) (%) Brancos (%) Pretos (%) Pardos(%) Negros
(pretos+pardos)
1998 158 232 54,0 5,7 39,5 45,2
1999 164 133 54,0 5,4 39,9 45,3
2001 170 811 53,4 5,6 40,4 46,0
2002 173 391 53,3 5,6 40,5 46,1
2003 175 987 52,1 5,9 41,4 47,3
2004 182 060 51,4 5,9 42,1 48,0
2005 184 600 49,9 6,3 43,2 49,5
2006 187 228 49,7 6,9 42,6 49,5
2007 189 820 49,4 7,4 42,3 49,7
2008 189 953 48,4 6,8 43,8 50,6
Fonte: IBGE –Pnad
(¹) Até 2003, exclusive a população da área rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
Tabela adaptada por Ricardo.
De acordo com as estimativas da Pnad, em 2008 a população do Brasil chegava
a quase 190 milhões de habitantes, indicando um crescimento em torno de 20,0% em
relação a 1998. Do total populacional em 2008, os negros representavam 50,6% da
população brasileira e os brancos, 48,4%. O dado que salta aos olhos é a alteração da
população negra de 1998 para 2008. O número de pessoas que se autodeclararam pretas
ou pardas aumentou de 45,2% para 50,6%, ou seja, 5,4% do total geral; ao passo que o
percentual de autodeclarados brancos diminuiu consideravelmente de 54% em 1998
para 48,4%, portanto 5,6% do total geral, num movimento praticamente inverso ao do
grupo racial negro. Ao se confirmar essa tendência de crescimento de pretos e pardos e
recuo de brancos no Censo nacional de 2010, o número de negros no Brasil, em termos
absolutos, ultrapassará o de brancos.
O que podemos inferir dessa significativa alteração estatística num período de
apenas 10 anos? Talvez uma das causas dessa mudança demográfica esteja relacionada
a visibilidade da questão racial nos últimos anos, principalmente pelos órgãos
governamentais, em resposta às demandas dos movimentos negros brasileiros,
sobretudo após 1988, marco de centenário da Abolição da escravatura e promulgação da
atual Carta Constitucional.
22
Em 1997, intelectuais de todo o país reuniram-se num seminário internacional21,
realizado em São Paulo, cujo intuito era discutir a questão do racismo brasileiro; nessa
ocasião, Carlos Hasenbalg já chamava a atenção para possíveis potencialidades de
políticas públicas voltadas especificamente para a população negra.
É cabível considerar a possibilidade de que o início de programas efetivos de
ação afirmativa tenha como conseqüência não-intencionada um rearranjo das
identidades e classificações raciais no país; algo como uma reversão, ditada em boa
medida por um cálculo utilitário, dos processos de branqueamento, induzidos pelo
sistema brasileiro de relações raciais (cf. Hasenbalg, 1997).
Contudo, nos últimos anos o procedimento de classificação racial tem sido
questionado (sobretudo se levarmos em conta o furor causado pela implementação
recente de políticas de ações afirmativas no ensino superior público, as chamadas cotas)
no que tange o critério de identificação racial, considerado pouco claro e, por vezes,
ambíguo. A ressalva que merece ser pontuada contesta a representatividade decisiva na
produção de estudos que lançam mão do emprego da classificação de brancos e não-
brancos (pretos e pardos). Seria algo como, ainda não se sabe ao certo quem é não-
branco, ou seja, negro na sociedade brasileira; por conta disso, existem alguns indícios
de que haveria alguma característica denegável no fato de a maioria dos entrevistados
recusarem se autoclassificar racialmente, porque não encontrariam na taxonomia do
IBGE categorias adequadas para expressar a autoclassificação racial22.
A crítica patente a esse modus operandi abre precedentes em relação às políticas
de ações afirmativas, o antropólogo Peter Fry, intelectual avesso às medidas, questionou
por que os adeptos de ações afirmativas preconizam que a nação deixe de ser imaginada
como composta de infinitas misturas, mas de grupos estanques: “negros”,
“brancos”...? (cf. Fry. 2005: p.304). Daí, com certo exagero, poderíamos até supor que
a instituição de categorias raciais nos quadros estatísticos, ao serem enxergadas na
realidade prática, representariam um efeito teórico inversamente desdobrado do
21 Seminário internacional “Multiculturalismo e Racismo: o papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos”, organizado pelo Departamento dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça (Souza, 1997).
22 Essa indecisão da cor é um argumento corroborado segundo a lista de 135 cores observadas na experiência da autoclassificação na Pnad de 1976, fato que depois resultou na definição da categoria “pardo”.
23
analítico para o plano empírico com o intuito de dividir os segmentos sociais de carne e
osso em estoques raciais estatísticos, ou será que esse recurso já não teria sido praticado
na adoção do meio-termo pardo, atenuando a variante “moreno” utilizada por muitos
brasileiros?
Ora, é difícil afirmar categoricamente se a implementação de ações afirmativas,
possa fazer com que os efeitos práticos da classificação estatística influencie os
brasileiros a deixar de acreditar na importância fundamental da “mistura racial” como
constitutiva da sociedade brasileira e que o país de “raças misturadas” seja substituído
pelo país de “raças distintas” (ibid. p. 305).
Em termos conjecturais, a médio e longo prazos, nada pode ser afirmado com
precisão; entretanto, a nosso ver, o foco dessa discussão deve acompanhar a dinâmica
da sociedade segundo as reivindicações dos agentes sociais envolvidos no palco das
decisões coletivas, e não se ater aos fundamentos de uma concepção de país que vigorou
durante muito tempo como sinônimo de brasilidade, sobretudo por enfatizar a
diversidade cultural e o sincretismo como uma identidade univocamente mestiça,
espécie de sociodicéia reiterada através do mito de origem da mestiçagem, ou a partir da
“fábula das três raças”. Desse modo, para nós, esse sistema de valores, batizado nos
trópicos de democracia racial, pode ser muito mais do que um mero desejo de igualdade
que na prática pouco se realiza. Segundo o antropólogo Kabengele Munanga, a crença
na democracia racial desconsidera o fato de que, em qualquer sociedade, raça sempre
tem um conteúdo social e político (cf. Munanga, K. 2005: p.52).
Afinal, uma discussão que se pretenda qualificada nesse debate, e as
decorrências traçadas acerca das políticas de ações afirmativas, não podem prescindir de
considerar a tensão que existe entre o rearranjo político democrático no tratamento das
desigualdades sociais – tratamento desigual para os desiguais – e o pensamento social
brasileiro enxergado sob o prisma do modelo de nação aqui idealizado. Concepção que,
em nosso entender, merece ser revista com rigor, posto que aqui a identidade nacional é,
genericamente, entendida como um rebento pródigo da matriz republicana e
universalista; no entanto, ao mesmo tempo e como qualquer país, a experiência
brasileira se delimita nos contornos de um retrato de povo ensimesmado em sua
formação cultural sui generis, a qual repousa numa construção nacional fundada na
falsa idéia de excepcionalismo racial.
24
5 Racismo e políticas de ação afirmativa: as conquistas do movimento negro brasileiro
Com o processo de redemocratização dos anos oitenta, o movimento negro
desencadeou uma série de protestos pelo país. Em 1988, no contexto de comemorações
dos cem anos da Abolição, o movimento negro saiu às ruas denunciando que a
verdadeira abolição ainda não havia acontecido. Afirmam que o dia do negro deveria ser
um dia de luta, de tomada de consciência, e não um dia comemorativo, de
agradecimento por uma farsa. Em parte, esse processo é resultado do que acontecera dez
anos antes, a fundação do Movimento Negro Unificado nas escadarias do Teatro
Municipal de São Paulo.
Anos depois, a década de noventa assistiu a articulação de uma rede de organizações
do movimento negro internacional. O suposto destas instituições supra nacionais
concebia que negros de todo o mundo, vivendo fora do continente africano, estariam
expostos às mesmas violências sociais. Assim, afirmavam que tais povos, mesmo
espalhados pelo mundo, deveriam se organizar como se fosse uma única população,
pois, se ficassem limitados às suas condições de minoria social, não estariam em
condições de exercer internamente pressão política efetiva. Urgia superar estes limites,
procurar uma organização mais consistente, uma ação mais contundente. Foi neste
contexto que se definiu o conceito de “povos da diáspora”.
“Diáspora” seria a sociedade composta por negros e negras habitantes de países não
africanos23. O objetivo deste movimento político era pressionar os países com população
diaspórica no sentido de promoverem políticas públicas de ações afirmativas.
Foi a partir da associação com instituições “diaspóricas”, que o movimento negro
brasileiro desencadeou toda uma campanha que desembocou no Plano Nacional de
Promoção da Igualdade Racial assinado em 2003.
O primeiro grande marco neste movimento ocorreu em 1990, quando o movimento
negro denunciou na Organização Internacional do Trabalho a prática sistemática de
racismo no mercado de trabalho brasileiro. A OIT cobrou do Estado brasileiro o
primeiro passo no sentido de assumir para si a responsabilidade da luta contra o
racismo: se reconhecer como um país racista.
23 Paul Gilroy, Atlântico negro.25
Em 1995, foi organizada por todo país a Marcha Zumbi dos Palmares, contra o
racismo, pela cidadania e a vida. A marcha cobrava que o Estado brasileiro adotasse
políticas públicas de combate ao racismo, de promoção à cidadania e,
consequentemente, de proteção social para a população negra.
Mas o ápice de todo este processo ocorreu em 2001, quando o Brasil se tornou
signatário da Declaração de Durban, cunhada na III Conferência Mundial Contra o
Racismo, a Discriminação, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, comprometendo-se a
implantar políticas públicas de ações afirmativas no combate ao racismo24.
Estas informações, infelizmente, pouco circularam nos meios de comunicação e tão
pouco mereceram atenção da academia. Acreditamos que sem a dimensão de como as
políticas de ações afirmativas alcançaram o Estado brasileiro não poderíamos
compreender os caminhos que tais políticas seguem atualmente, principalmente suas
demandas relacionadas à educação.
Todavia, não podemos desconsiderar aqui as adaptações que estas políticas sofreram
ao serem incorporadas pelo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva a partir de
2003. Adaptações decorrentes tanto do próprio projeto de governo, tanto pelas
concessões e retrocessos que projetos sociais costumam enfrentar nas arenas do
Congresso e do Senado brasileiro.
5.1 Políticas de ação afirmativa no governo Lula: entre o projeto de nação e as limitações dos trâmites políticos
Em 2004, o Ministério da Cultura, sob a batuta do Ministro Gilberto Gil,
reestruturou a forma de financiar a cultura no país. Criando o programa “Pontos de
Cultura”, procurou capacitar artistas e instituições culturais para que elas próprias
demandassem verbas federais, eliminando assim toda a burocracia que normalmente
intermediava o financiamento. Todavia, mais do que criar uma nova forma de
financiamento, o que estava em questão era criar canais públicos de comunicação direta
entre os agentes culturais e o Estado. Deste modo, segundo o ministro Gilberto Gil, o
Estado democratizaria de fato o financiamento cultural, pois, ao fornecer o incentivo
diretamente ao ponto de cultura, além de criar uma rede de circulação de verbas
24 Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial – PLANAPIR, Secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Brasília, 2009.
26
ancorada diretamente na sociedade civil, este contato mais próximo seria a única forma
de viabilizar um sistema de financiamento cultural, à nível federal, capaz de contemplar
toda a diversidade dos projetos e manifestações culturais existentes no país. Pois, só
sendo capaz de dialogar com a diversidade é que o Estado poderá promover a inclusão
ampla, pressuposto da democracia republicana.
Este projeto do MinC tem, dentro do governo Lula, o status de projeto-piloto,
exemplo bem sucedido de concretização do ideal de nação da gestão Lula.
Toda esta introdução cumpre aqui a função de localizar a questão do respeito à
diversidade no programa político do governo Lula e, consequentemente, nas políticas
educacionais promovidas pela União. Aqui, diversidade é o pressuposto para a inclusão
cidadã. É a possibilidade de superar o plano do discurso e viabilizar de fato políticas
públicas que dêem resultados concretos. Assim, segundo esta perspectiva, toda a ação
governamental, para ser efetiva deve, necessariamente, supor mecanismos institucionais
que respeitem, valorizem e promovam a diversidade social. É justamente neste sentido
que o projeto inicial de políticas de ações afirmativas nas universidades foi proposto.
5.2 Fluxos e influxos das ações afirmativas no Ensino Superior brasileiro
O documento entitulado Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnicorraciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana esclarece que garantir cidadania à
população negra é direito subjetivo e, neste processo, a educação ocupa papel
fundamental. É fato que negros e negras são os que mais sofrem com a evasão e o
fracasso escolar, sendo aqueles que menos tempo permanecem no sistema educacional
oficial.
Assim, quando o presidente Lula assinou em 2003 a lei 10.639 que estabeleceu a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas
brasileiras, o que estava em questão era a garantia da diversidade – do currículo escolar
– para a inclusão.
27
Porém, o mesmo não vem ocorrendo quanto o tema é o Ensino Superior. O
projeto proposto pelo movimento negro em 2005, no âmbito da I Conferência Nacional
de Políticas de promoção da Igualdade Racial – CONAPIR, versava sobre acesso,
permanência e financiamento de estudantes negros no Ensino Superior. Tratava-se de
garantir não só o acesso, mas sim a permanência com chance de excelência. Promover a
entrada da população negra na Universidade significa garantir financiamento para
pesquisas voltadas para a temática afirmativa, significa garantir a permanência, com
moradia, alimentação e trabalho.
Neste sentido, Rosana Heringer e Renato Ferreira, em publicação recente, em
que analisam as ações do Estado brasileiro para a inclusão de estudantes negros no
Ensino Superior, avaliam:
O que vai avaliar a qualificação destes alunos para exercer futuramente a
profissão que escolheram será o seu aproveitamento durante o curso, em condições
idênticas a todos os demais estudantes. E aqui cabe observar que a verdadeira
responsabilidade e missão da universidade é justamente tornar, na medida do possível,
igualmente aptos alunos diferenciados nas suas condições de entrada na universidade25.
Esta concepção deixa claro o tamanho do retrocesso que significa reduzir o
debate da inclusão a uma questão de acesso. Inclusão supõe muito mais do que a mera
reserva de vagas.
Uma das consequências deste esvaziamento do debate esconde um processo
cruel que se desenvolve no país na última década. Em 2004, ao assumir a pasta do
Ministério da Educação, Tarso Genro, apresentou a proposta de aproveitar 100 mil
vagas ociosas no sistema de ensino superior privado, destinando-as a estudantes negros,
indígenas, portadores de deficiência e ex-presidiários. Na época este número
representava 25% das vagas nas universidades privadas, que estavam com 37,5% das
vagas ociosas. Atualmente o ProUni já superou as 100 mil bolsas. O programa ganhou
espaço e peso político, tendo a questão específica de ação afirmativa diluída em nome
do critério sócio econômico.
25 Rosana Heringer & Renato Ferreira. “Análise das principais políticas de inclusão de estudantes negros no Ensino Superior no Brasil no período de 2001-2008” In.: Caminhos Convergentes. pág. 157.
28
De qualquer maneira este programa é o único feito concreto de inclusão de
negros na Universidade: de 2004 a 2008, uma média de 50 % dos bolsistas eram negros.
Diversas são as críticas feitas ao Programa Universidade para Todos, sendo a
principal a acusação que o programa financia o ensino privado em detrimento do ensino
público. Não caberia aqui dar conta deste debate. Principalmente porque a privatização
do Ensino Superior ocorreu antes de 2003, segundo plataforma de governo distinto.
Mas tudo isso não dissolve o fato de que hoje a inclusão do negro no Ensino
Superior ainda esteja sob o signo do racismo. Pois o que assistimos atualmente, é a
formação profissional da população negra universitária em instituições de ensino piores
que a acessada pela população não negra. Cria-se uma nova forma de segregação,
repete-se a mesma forma de discriminação.
Várias são as estratégias de esvaziamento que reduz o debate ao argumento de
reserva de vagas. A primeira e mais conhecida destas estratégias envolve um
movimento político, encampando pela grande mídia, de nem sequer aceitar a reserva de
vagas26. Desviando a questão do racismo para o racialismo, afirmam que o Brasil não
pode legislar a partir do conceito de raça, que, biologicamente, não existe. Assim, ao
invés de colocar em questão o tema do racismo, impõe o tema já esgotado da raça. O
mesmo se seguiu com o debate acerca do reconhecimento de terras quilombolas, quando
o Partido dos Democratas conseguiu derrubar o decreto federal recorrendo ao
argumento que a base do decreto era racialista27. Em Julho de 2009 o mesmo partido
encetou o mesmo argumento no Supremo Tribunal de Justiça solicitando que alunos
cotistas fossem proibidos de matricularem-se em Universidades Federais.
Até o momento, o Estatuto da Igualdade Racial, após enfrentar uma verdadeira
batalha no Congresso em Setembro de 2009, conseguiu manter o que restou do projeto
de inclusão no Ensino Superior, preservando a pauta de reserva de vagas. Todavia, o
26 Alcançou grande circulação midiática um manifesto contra as cotas “a favor da República”, feito por supostos intelectuais pesquisadores do tema. Este documento sintetiza os argumentos contra as cotas que citamos aqui. Por outro lado, rapidamente foi organizado um “contra manifesto”, desmontando todos os argumentos apresentados pelos anti-cotas. Além destes documentos, no final do trabalho segue anexo uma cartilha pró-cotas.
27O site “Imprensa Anti-Quilombola” produziu um dossiê sobre este processo. http://www.koinonia.org.br/oq/dossies_detalhes.asp?cod_dossie=2
29
Estatuto ainda deve enfrentar o Senado, onde segundo seus defensores, deve sofrer os
ataques mais agressivos.
30
6 Breve balanço sobre as desigualdades raciais na educação superior
Segundo os dados da Pnad 2008, a taxa bruta de escolarização da população
de estudantes de 18 a 24 anos de idade com 11 anos de estudo (correspondente à
conclusão do ensino médio), quando dividida de acordo com a variável cor ou raça, se
apresenta do seguinte modo: a proporção de brancos equivale a 40,7%, enquanto a de
negros (pretos e pardos) a 33,3%, para todo o território nacional. Na região sudeste, a
mais desenvolvida neste aspecto, a proporção de estudantes sob tais condições apresenta
maior equilíbrio, temos o equivalente a 45,9% de brancos e 41,3% negros (conforme
mostra a tabela abaixo).
Pessoas de 18 a 24 anos com 11 anos de estudo, total e proporção por cor ou raça, segundo as Grandes Regiões - 2008
Grandes Regiões Pessoas de 18 a 24 anos (1000
pessoas)
Pessoas de 18 a 24 anos com 11 anos de estudo (1000 pessoas)
Proporção de pessoas de 18 a 24 anos com 11 anos de
estudo (%)Tota
lCor ou raça
Branca NegraBrasil 23 242 8544 36,8 40,7 33,3
Norte 2030 613 30,2 31,4 29,9
Nordeste 7057 2 060 29,2 32,1 28
Sudeste 9 328 4 090 43,8 45,9 41,3
Sul 3 141 1 184 37,7 39,1 32,0
Centro-Oeste 1 685 596 35,4 38,0 33,6
Fonte: IBGE PNAD 2008.
Em relação à distribuição de estudantes dessa faixa etária que frequentam o
ensino superior, a desigualdade entre brancos e negros já apresenta distorções
significativas. A despeito de no decênio 1998-2008 tenha havido um espantoso
crescimento de acesso ao nível superior, ainda estamos longe de alcançar uma situação
de equidade para ambos os grupos raciais.
31
1
20.40
41.70
5.60
31.80
6.40
29.70
3.20
60.30
44.10 44.90
2.707.10
18.70
49.90
2.00
28.70
Distribuição dos estudantes de 18 a 24 anos de idade, por nível de ensino frequentado e cor ou raça - Brasil - 1998/2008
Fundamental Médio Pré-vestibular Superior (2)
1998 (1)
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 1998/2008.(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Para e Amapá. (2) Inclusive graduação, mestrado e doutorado.
2008
Negros
2008
Brancos
1998 (1)
Os dados de 1998 mostram que na divisão dos estudantes brancos de 18 a 24
anos por frequência de níveis de ensino, os que frequentavam o ensino superior
equivaliam a 31,8% do total da população de estudantes brancos nessa faixa etária, dez
anos depois, em 2008, esse número praticamente dobrou, saltando para 60,3%; no
mesmo período, o ingresso dos estudantes negros apresentou um avanço ainda mais
surpreendente, de 7,1% em 1998 para 28,7% em 2008. Contudo, quando comparamos
proporcionalmente os níveis de ensino de estudantes dos dois grupos raciais, as
distorções são marcantes, sobretudo na passagem do nível médio para o superior, onde a
concentração de negros no ensino médio indica a persistência da dificuldade de acesso
ao ensino superior, uma vez que, em termos relativos, a representação de brancos
ultrapassa mais do que o dobro a de negros, 60,3% e 28,7% respectivamente. Na região
sudeste os números são um pouco mais positivos comparados à média total da
população brasileira, entretanto as diferenças entre brancos e negros,
proporcionalmente, são quase as mesmas, com 66,6% de estudantes brancos contra
37,5% de estudantes negros que frequentam instituições de nível superior na faixa etária
considerada ideal.
32
Estudantes de 18 a 24 anos, total e respectiva distribuição percentual por cor ou raça, e nível de ensino frequentado segundo as Grandes Regiões - 2008
Grandes Regiões
Distribuição percentual por nível de ensino frequentado (%)
Total (1000 pessoas)
Estudantes de 18 a 24 anos de idade segundo a raçaFundamental ou
1° grauMédio ou 2°
grauPré-vestibular
Superior ou 3°grau(1)
Branca Negra Branca Negra Branca Negra Branca Negra Branca NegraBrasil 3 696 3 315 6,4 18,7 29,7 49,9 3,2 2,0 60,3 28,7
Norte 153 512 13,6 22,7 38,7 48,8 2,5 2,4 44,7 25,6
Nordeste 700 1454 15,7 23,8 41,3 52,5 2,8 2,0 39,5 20,8
Sudeste 1 774 937 3,4 11,2 26,1 48,8 3,7 1,9 66,6 37,5
Sul 818 134 4,0 12,7 26,1 48,4 2,8 1,5 66,5 36,7
Centro-Oeste 251 278 5,6 12,6 28,4 42,5 2,6 2,4 63,1 41,9
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 2008. Nota: Inclusive as pessoas sem declaração de nível de ensino frequentado. (1)Inclusive graduação, mestrado e doutorado. Tabela adaptada por Ricardo.
Sobre o crescimento da população de estudantes no ensino superior, é forçoso
considerar que nos últimos anos a criação e a ampliação de programas do governo
federal certamente influenciaram o percentual do atual contingente. Como o Programa
Universidade para Todos (ProUni) e o Fundo de Financiamento ao Estudante de Nível
Superior (Fies). Sabemos que um dos assuntos mais polêmicos acerca do ensino
superior no Brasil está relacionado ao papel exercido pelo setor privado. É público e
notório que a massificação do ensino superior deve-se às opções tomadas pelos últimos
governos no que refere a preferência pela opção privada em detrimento do investimento
nas universidades públicas.
Desde a década passada, quando a reforma universitária do governo Fernando
Henrique Cardoso operou aquilo que Afranio Catani e João Ferreira chamaram de
“metamorfose das universidades públicas federais” o Estado gradativamente passou a
freiar os recursos orçamentários destinados às instituições de ensino superior federais ao
mesmo tempo em que oferecia uma série de incentivos fiscais para o financiamento do
setor privado28. Tendência levada à frente pelo governo Lula, sobretudo por meio de
28 Há cerca de dez anos o MEC organizou o Censo da Educação Superior, esse Censo apontou que das
124 instituições de ensino superior criadas em 1999, auge de crescimento do mercado de ensino superior privado, mais de 95% eram privadas. Cf. CATANI, Afranio M. & OLIVEIRA, João F. Educação superior
33
programas como o ProUni29. É amplamente reconhecido que as universidades
particulares – com exceção das confessionais e algumas outras de tradição – são
consideradas inferiores e menos prestigiadas, entretanto, dado o pouco investimento nas
universidades públicas, além dos critérios seletivos das mesmas, as universidades
particulares ampliaram sua importância relativa no contexto educacional em virtude da
massificação da rede. Resta saber qual o efeito que esse nicho de mercado do ensino
superior exerceu sobre as desigualdades raciais?
Em termos objetivos é simples apontar causalidades pontuais sobre a possível
atração, baseada em estratégias de mercado, oferecida pelas universidades particulares
para a população brasileira em geral e a população negra em particular. Entretanto, é
fato que a grande maioria das Instituições de ensino superior privadas não conseguiu
equacionar o binômio quantidade X qualidade e o ensino no Brasil tem a tendência de
piorar quando se massifica. Parece que a grande distorção do sistema ainda subsiste na
fraca capacidade da educação superior de qualidade ser oferecida para estudantes negros
em números mais próximos à representatividade proporcional da população negra em
cada um dos estados da federação.
No entanto, o processo de inclusão da população negra nas instituições públicas
de ensino superior é um acontecimento bem recente, iniciado neste século 21. O
chamado sistema de cotas raciais foi, pela primeira vez, implementado na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade do Norte Fluminense (UENF)
em 2001. Partiu de um projeto de lei cheio de lacunas que fora aprovado na Assembleia
legislativa do estado e imposto por decreto pelo governador Anthony Garotinho, em
conturbado espaço de interesses no qual diversos setores da sociedade civil fluminense
se posicionaram a princípio contrários às medidas30.
no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
29 Justiça seja feita, a ampliação das Universidades federais (criação de novos campi) em todo o Brasil, recomeçou a ser forjada com investimentos do atual governo. Contudo, a estrutura cristalizada na gestão anterior – sistema privado – indica que a orientação privatista foi considerada, pelo menos, adequada. De certo modo, o ProUni cumpre o objetivo de melhorar as condições de ingresso no ensino superior de grupos negativamente privilegiados, por outro lado, o oferecimento de um grande número de bolsas de estudo tem como contrapartida a isenção de impostos para os “empresários da educação” que aderem ao programa do Governo Federal. Se na gestão FHC tínhamos, em tese, liberdade concorrencial de mercado; no atual governo o Estado intervém certificando a margem de manobra dos “jogadores”.
30 Atualmente, de acordo com a nova lei de cotas do estado (lei n° 5. 346 de 11 de dezembro de 2008), as universidades estaduais do Rio de Janeiro devem adotar cotas de 45%, distribuídas: 20% para estudantes provenientes da escola pública, 20% para negros e indígenas e 5% para pessoas com deficiência e para filhos de policiais militares, civis e agentes penitenciários mortos em serviço. Sobre o contexto imediato da implementação de cotas nas universidades estaduais do Rio de Janeiro, ver: Michelle Peria, 2004. Ação afirmativa: um estudo sobre a reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras. O caso do
34
No ano seguinte, a Universidade Estadual da Bahia (Uneb) adotou um sistema
de cotas com percentual de 40% de suas vagas para estudantes negros, no mesmo ano a
Universidade Estadual do Mato Grosso (UEMS) também adotou um sistema que
oferecia cotas de 20% para negros e 10% para indígenas. A primeira instituição federal
a adotar cotas raciais no ensino superior foi a Universidade de Brasília (UnB) em 2003,
seguida depois pela Universidade de Alagoas (Ufal). Já em 2004, a Universidade da
Bahia (UFBA) e a Universidade Federal do Paraná implementaram seus programas com
percentuais diferenciados. Enfim, esse processo ainda está em curso. Calcula-se
atualmente algo em torno de setenta e nove instituições de ensino superior que
promovam algum tipo de ação afirmativa31.
Devido aos restritos espaços deste trabalho não analisaremos casos particulares
do sistema de cotas implementados em qualquer instituição de ensino, não obstante,
talvez valesse a pena discutir um pouco do quadro geral em que tais programas se
configuram. Em primeiro lugar, sob o signo da inclusão, os especialistas em políticas
públicas consideram as ações afirmativas para o ensino superior como um recurso
positivo na promoção da equidade social32, isto é, seu princípio geral visa promover
pessoas que pertençam a grupos sociais reconhecidamente em situação histórica de
desvantagem. Nesse sentido, em muitos casos, o critério étnico-racial se soma a outros
requisitos, como ser oriundo da escola pública e/ou ser carente, o que, em tese,
possibilitaria aos alunos mais pobres cursarem a universidade pública.
Em segundo lugar, considerando especificamente a situação da presença de
brancos e negros no ensino superior, verifica-se que nos anos de 1995 a 2006 o número
absoluto de estudantes de cor ou raça branca passou de 1,5 milhão para 4,03 milhões em
todo o país. Entre os negros, os números passaram de 341.24 mil em 1995, para 1,76
Rio de Janeiro.
31 Setenta e nove (79) em um universo de duzentas e vinte e quatro (224) instituições públicas de ensino superior. Para maiores informações ver: Rosana Heringer e Renato Ferreira, 2008. Análise das principais políticas de inclusão de estudantes negros no ensino superior no Brasil no período 2001-2008.
32 A despeito de que a implementação de cotas raciais obteve grande resistência jurídica no interior das universidades pioneiras na experiência; posteriormente critérios socioeconômicos foram unidos a critérios raciais e as denominadas cotas sociais passaram a ser consideradas “viáveis” como políticas de inclusão social. Determinadas universidades (UEA, UFT, UEPB, UPE, UES, UERGS) só oferecem cotas a partir de algum tipo de critério “social”, geralmente destinam certo percentual de vagas para alunos provenientes de escolas públicas. Informações coletadas In: PAIXÃO, Marcelo & Carvano, Luiz M. (Orgs.) Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil, 2007-2008.
35
milhão em 200633 (cf. Paixão & Carvano, 2008). Porém, a universidade pública
brasileira ainda continua pouco acessível para os estudantes negros, embora, ao longo
dos anos, não se saiba ao certo sua representatividade a partir de números confiáveis,
pois até bem pouco tempo atrás o negro também estava praticamente ausente das
estatísticas universitárias.
No bojo das ações afirmativas para a educação superior, algumas iniciativas
foram tomadas para sanar essa lacuna. Nesse sentido, os recentes censos e pesquisas por
amostra, realizados em algumas universidades de prestígio, surgiram com o objetivo de
produzir dados sobre a questão. Em artigo de 2003, Antonio Sérgio Guimarães
apresentou informações sobre a desigualdade de acesso entre os grupos de cor registrada
em algumas universidades públicas do país, entre elas a Universidade de São Paulo
(USP), a federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Paraná (UFPR), da Bahia (UFBA), do
Maranhão (UFMA), e a Universidade de Brasília (UnB).
Distribuição percentual dos estudantes segundo a corUFRJ, UFPR, UFMA, UFBA, UnB, USP
UFRJ UFPR UFMA UFBA UnB USPBranca 76,8 86,5 47 50,8 53,7 78,2Negra 20,3 8,6 42,8 42,6 32,3 8,3
Amarela 1,6 4,1 5,9 3 2,9 13Indígena 1,3 0,8 4,3 3,6 1,1 0,5
Total 100 100 100 100 100 100% negros por UF 44,63 20,27 73,36 74,95 47,98 27,3
Déficit 24,33 11,67 30,65 33,55 15,68 18,98Fonte: Pesquisa Direta. Programa A Cor da Bahia,/UFBA, l Censo Étnico-Racial da USP e IBGE Tabulações Avançadas, Censo de 2000.
Os dados da tabela anterior mostram que nessas Universidades a proporção de
jovens autodeclarados “pretos” ou “pardos” está bem abaixo do percentual da população
negra de seus respectivos estados; por exemplo, na Universidade de São Paulo (USP),
considerada a maior do país, em 2001 havia 8,3% de “negros”, dos quais 7% de
“pardos” e 1,3% de “pretos”, para uma população, segundo os dados do Censo de 2000,
de 22, 9% de “pardos” e 4,4% de “pretos” no estado de São Paulo. Tendo em vista os
números percentuais de cada grupo racial da população de São Paulo, comparados aos
33 Esse extraordinário crescimento está relacionado à expansão do setor privado, conforme argumentamos anteriormente. Diante dos números podemos até dizer que o problema da escassez de vagas no ensino superior foi parcialmente resolvido, por outro lado, o crescimento da qualidade do serviço ofertado ainda está longe de ser verificado.
36
negros, os outros três grupos raciais (brancos, amarelos e indígenas) estariam sobre-
representados no corpo discente da USP34.
Para Antonio Sérgio Guimarães, a pouca presença de negros nas universidades
públicas está relacionada a uma gama de problemas estruturais da sociedade brasileira,
como a “cor” da pobreza e a crise da educação básica. Em linhas gerais, o autor elenca
cinco causas gerais que podem ser atribuídas à “pequena absorção de negros” no
sistema de ensino superior público: a) pobreza; b) qualidade da escola pública; c)
preparo insuficiente; d) pouca persistência (pouco apoio familiar e comunitário); e e)
forma tradicional de seleção do vestibular, que não dá oportunidade para avaliar outras
potencialidades dos vestibulandos (cf. Guimarães. 2003: pg.259).
Noutro artigo o mesmo autor argumenta que a criação de um campus da USP na
Zona Leste da capital paulista em 2005, procurou atender a demanda por inclusão de
estudantes de menor renda e afrodescendentes, e, de certo modo, atender, numa outra
via, às reivindicações por cotas dos movimentos negros do estado, porém, por enquanto,
os resultados são pouco promissores em relação a este objetivo (cf. Guimarães: 2007).
Posto que, quando se considera o rendimento associado ao capital escolar (a formação
do ensino médio em boas escolas particulares) e ao capital econômico (renda familiar)
dos alunos aprovados no vestibular, os dados indicam que os maiores beneficiados da
política de expansão de oportunidades para áreas consideradas carentes (USP Leste)
foram os estudantes que, independentemente da cor, cursaram o ensino médio em
escolas particulares e que eram oriundos de famílias de maior renda.
Já em 2007 com a introdução no vestibular Fuvest do sistema de bônus de 3%
para estudantes oriundos da rede pública35, o ingresso de alunos nessas condições
cresceu, em termos relativos, cerca de 2 pontos percentuais, de 24,22% para 26,30%.
Como se vê nos números da avaliação preliminar do sistema de bônus, a seguir:
Alunos convocados para a matrícula (1ª chamada) por ano e ensino médio, USP
34 De acordo com os dados oficiais do Censo de 2000, a composição racial da população residente do estado de São Paulo, em termos percentuais, está dividida em: 70,7% de brancos, 22,9% de pardos, 4,4% de pretos, 1,23% de amarelos, 0,17% de indígenas e 0,6% não declararam raça ou cor.
35 O chamado sistema de bônus, implementado em algumas Universidades do estado de São Paulo, funciona como uma espécie de medida alternativa às cotas, embora um de seus princípios seja promover a inclusão, não é consensual enquadrá-lo como política de ação afirmativa.
37
AnoEnsino médio
Público Total
2006 2343 24,22% 9675
2007 2645 26,30% 10058Fontes: NAEG e FUVEST
No mesmo período, essa tendência não pôde ser observada na proporção de
estudantes negros aprovados no vestibular da USP, ou seja, a introdução do bônus não
alterou significativamente o ingresso de estudantes negros na Universidade, e que o
maior ingresso de negros (de 12,26% para 12,71%) seria consequência de tendência de
crescimento aliada à tímida expansão de vagas ocorrida nos últimos anos36.
Alunos negros convocados para 1ª chamada
Ano Negros Total de alunos convocados
2006 1186 12,26% 9675
2007 1278 12,71% 10058Fontes: NAEG e FUVEST
O autor explica que, ao se analisar a diferença de desempenho de estudantes no
vestibular, a cor é mais importante que o tipo de escola cursada no ensino médio. Em
termos proporcionais, comparando com o desempenho dos brancos no vestibular, os
resultados dos negros em geral são menos satisfatórios do que o resultado dos alunos de
escola pública em relação aos estudantes da escola particular. E que algum fator racial
subjetivo talvez influencie o desempenho dos jovens negros além da simples falta de
recursos para estudar em escolas privadas (cf. Guimarães. 2007: pg. 21).
36 O número de estudantes negros aprovados na USP saltou de 668 (572 pardos e 92 pretos) em 2001, para 1352 (1149 pardos e 203 pretos) em 2007. Embora o crescimento seja significativo, essa tendência acompanhou a expansão de vagas. Em termos absolutos os números ainda são pequenos, uma vez que em 2001 foram aprovados ao todo 9527 estudantes e em 2007, 11502. Dados da Fuvest.
38
Anexo
39
Manifesto dos intelectuais contra as políticas raciais
Todos têm direitos iguais na República Democrática.
O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso Nacional.
O PL de Cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente estas tentativas.
Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais constituem política compensatória voltada para amenizar as desigualdades sociais. O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que esta situação pouco se altere. Em decorrência disso, haveria a necessidade de políticas sociais que compensassem os que foram prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam a corrigir um mal maior.
Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica.
A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como
40
demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades.
Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços públicos; que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante do caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter.
Nos dirigimos ao congresso nacional, seus deputados e senadores, pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.
41
Manifesto em favor da lei de cotas e do estatuto da igualdade racial
Aos/as deputados/as e senadores/as do Congresso brasileiro
A desigualdade racial no Brasil tem fortes raízes históricas e esta realidade não será alterada significativamente sem a aplicação de políticas públicas específicas. A Constituição de 1891 facilitou a reprodução do racismo ao decretar uma igualdade puramente formal entre todos os cidadãos. A população negra acabava de ser colocada em uma situação de completa exclusão em termos de acesso à terra, à instrução e ao mercado de trabalho para competir com os brancos diante de uma nova realidade econômica que se instalava no país. Enquanto se dizia que todos eram iguais na letra da lei, várias políticas de incentivo e apoio diferenciado, que hoje podem ser lidas como ações afirmativas, foram aplicadas para estimular a imigração de europeus para o Brasil.
Esse mesmo racismo estatal foi reproduzido e intensificado na sociedade brasileira ao longo de todo o século vinte. Uma série de dados oficiais sistematizados pelo IPEA no ano 2001 resume o padrão brasileiro de desigualdade racial: por 4 gerações ininterruptas, pretos e pardos têm contado com menos escolaridade, menos salário, menos acesso à saúde, menor índice de emprego, piores condições de moradia, quando contrastados com os brancos e asiáticos. Estudos desenvolvidos nos últimos anos por outros organismos estatais demonstram claramente que a ascensão social e econômica no país passa necessariamente pelo acesso ao ensino superior.
Foi a constatação da extrema exclusão dos jovens negros e indígenas das universidades que impulsionou a atual luta nacional pelas cotas, cujo marco foi a Marcha Zumbi dos Palmares pela Vida, em 20 de novembro de 1995, encampada por uma ampla frente de solidariedade entre acadêmicos negros e brancos, coletivos de estudantes negros, cursinhos pré-vestibulares para afrodescendentes e pobres e movimentos negros da sociedade civil, estudantes e líderes indígenas, além de outros setores solidários, como jornalistas, líderes religiosos e figuras políticas --boa parte dos quais subscreve o presente documento. A justiça e o imperativo moral dessa causa encontraram ressonância nos últimos governos, o que resultou em políticas públicas concretas, dentre elas: a criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, de 1995; as primeiras ações afirmativas no âmbito dos Ministérios, em 2001; a criação da Secretaria Especial para Promoção de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003; e, finalmente, a proposta dos atuais Projetos de Lei que estabelecem cotas para estudantes negros oriundos da escola pública em todas as universidades federais brasileiras, e o Estatuto da Igualdade Racial.
O PL 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser compreendido como uma resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos vários instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, tais como a Convenção da ONU para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), de 1969, e, mais recentemente, ao Plano de Ação de
42
Durban, resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, ocorrida em Durban, na África do Sul, em 2001. O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase, já colocada pela CERD, de adoção de ações afirmativas como um mecanismo importante na construção da igualdade racial, uma vez aqui que as ações afirmativas para minorias étnicas e raciais já se efetivam em inúmeros países multi-étnicos e multi-raciais semelhantes ao Brasil. Foram incluídas na Constituição da Índia, em 1949; adotadas pelo Estado da Malásia desde 1968; nos Estados Unidos desde 1972; na África do Sul, em 1994; e desde então no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México. Existe uma forte expectativa internacional de que o Estado brasileiro finalmente implemente políticas consistentes de ações afirmativas, inclusive porque o país conta com a segunda maior população negra do planeta e deve reparar as assimetrias promovidas pela intervenção do Estado da Primeira República com leis que outorgaram benefícios especiais aos europeus recém chegados, negando explicitamente os mesmos benefícios à população afro-brasileira.
Colocando o sistema acadêmico brasileiro em uma perspectiva internacional, concluímos que nosso quadro de exclusão racial no ensino superior é um dos mais extremos do mundo. Para se ter uma idéia da desigualdade racial brasileira, lembremos que, mesmo nos dias do apartheid, os negros da África do Sul contavam com uma escolaridade média maior que a dos negros no Brasil no ano 2000; a porcentagem de professores negros nas universidades sul-africanas, ainda na época do apartheid, era bem maior que a porcentagem dos professores negros nas nossas universidades públicas nos dias atuais. A porcentagem média de docentes nas universidades públicas brasileiras não chega a 1%, em um país onde os negros conformam 45,6 % do total da população. Se os Deputados e Senadores, no seu papel de traduzir as demandas da sociedade brasileira em políticas de Estado não intervierem aprovando o PL 73/99 e o Estatuto, os mecanismos de exclusão racial embutidos no suposto universalismo do estado republicano provavelmente nos levarão a atravessar todo o século XXI como um dos sistemas universitários mais segregados étnica e racialmente do planeta! E, pior ainda, estaremos condenando mais uma geração inteira de secundaristas negros a ficar fora das universidades, pois, segundo estudos do IPEA, serão necessários 30 anos para que a população negra alcance a escolaridade média dos brancos de hoje, caso nenhuma política específica de promoção da igualdade racial na educação seja adotada. Para que nossas universidades públicas cumpram verdadeiramente sua função republicana e social em uma sociedade multi-étnica e multi-racial, deverão algum dia refletir as porcentagens de brancos, negros e indígenas do país em todos os graus da hierarquia acadêmica: na graduação, no mestrado, no doutorado, na carreira de docente e na carreira de pesquisador.
No caminho da construção dessa igualdade étnica e racial, somente nos últimos 4 anos, mais de 30 universidades e Instituições de Ensino Superior públicas, entre federais e estaduais, já implementaram cotas para estudantes negros, indígenas e alunos da rede
43
pública nos seus vestibulares e a maioria adotou essa medida após debates no interior dos seus espaços acadêmicos. Outras 15 instituições públicas estão prestes a adotar políticas semelhantes. Todos os estudos de que dispomos já nos permitem afirmar com segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual ou superior ao rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal. Esse dado é importante porque desmonta um preconceito muito difundido de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da qualidade acadêmica das universidades. Isso simplesmente não se confirmou! Uma vez tida a oportunidade de acesso diferenciado (e insistimos que se trata de cotas de entrada e não de saída), o rendimento dos estudantes negros não se distingue do rendimento dos estudantes brancos.
Outro argumento muito comum usado por aqueles que são contra as políticas de inclusão de estudantes negros por intermédio de cotas é que haveria um acirramento dos conflitos raciais nas universidades. Muito distante desse panorama alarmista, os casos de racismo que têm surgido após a implementação das cotas têm sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades acadêmicas, em geral com transparência e eficácia maiores do que havia antes das cotas. Nesse sentido, a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de impunidade diante da discriminação racial no meio universitário. Mais ainda, as múltiplas experiências de cotas em andamento nos últimos 4 anos contribuíram para a formação de uma rede de especialistas e de uma base de dados acumulada que facilitará a implementação, a nível nacional, da Lei de Cotas.
Para que tenhamos uma noção da escala de abrangência dessas leis a serem votadas o PL 73/99, que reserva vagas na graduação, é uma medida ainda tímida: garantirá uma média nacional mínima de 22,5% de vagas nas universidades públicas para um grupo humano que representa 45,6% da população nacional. É preciso, porém, ter clareza do que significam esses 22,5% de cotas no contexto total do ensino de graduação no Brasil. Tomando como base os dados oficiais do INEP, o número de ingressos nas universidades federais em 2004 foi de 123.000 estudantes, enquanto o total de ingressos em todas as universidades (federais, estaduais, municipais e privadas) foi de 1.304.000 estudantes. Se já tivessem existido cotas em todas as universidades federais para esse ano, os estudantes negros contariam com uma reserva de 27.675 vagas (22,5% de 123.000 vagas). Em suma, a Lei de Cotas incidiria em apenas 2% do total de ingressos no ensino superior brasileiro. Devemos concluir que a desigualdade racial continuará sendo a marca do nosso universo acadêmico durante décadas, mesmo com a implementação do PL 73/99. Sem as cotas, porém, já teremos que começar a calcular em séculos a perspectiva de combate ao nosso racismo universitário. Temos esperança de que nossos congressistas aumentem esses índices tão baixos de inclusão!
Se a Lei de Cotas visa nivelar o acesso às vagas de ingresso nas universidades públicas entre brancos e negros, o Estatuto da Igualdade Racial complementa esse movimento por justiça. Garante o acesso mínimo dos negros aos cargos públicos e assegura um mínimo de igualdade racial no mercado de trabalho e no usufruto dos serviços públicos de saúde e moradia, entre outros. Nesse sentido, o Estatuto recupera uma medida de
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igualdade que deveria ter sido incluída na Constituição de 1891, no momento inicial da construção da República no Brasil. Foi sua ausência que aprofundou o fosso da desigualdade racial e da impunidade do racismo contra a população negra ao longo de todo o século XX. Por outro lado, o Estatuto transforma em ação concreta os valores de igualdade plasmados na Constituição de 1988, claramente pró-ativa na sua afirmação de que é necessário adotar mecanismos capazes de viabilizar a igualdade almejada. Enquanto o Estatuto não for aprovado, continuaremos reproduzindo o ciclo de desigualdade racial profunda que tem sido a marca de nossa história republicana até os dias de hoje.
Gostaríamos ainda de fazer uma breve menção ao documento contrário à Lei de Cotas e ao Estatuto da Igualdade Racial, enviado recentemente aos nobres parlamentares por um grupo de acadêmicos pertencentes a várias instituições de elite do país. Ao mesmo tempo em que rejeitam frontalmente as duas Leis em discussão, os assinantes do documento não apresentam nenhuma proposta alternativa concreta de inclusão racial no Brasil, reiterando apenas que somos todos iguais perante a lei e que é preciso melhorar os serviços públicos até atenderem por igual a todos os segmentos da sociedade. Essa declaração de princípios universalistas, feita por membros da elite de uma sociedade multi-étnica e multi-racial com uma história recente de escravismo e genocídio sistemático, parece uma reedição, no século XXI, do imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo, e jogou para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro. Essa postergação consciente não é convincente. Diante dos dados oficiais recentes do IBGE e do IPEA que expressam, sem nenhuma dúvida, a nossa dívida histórica com os negros e os índios, ou adotamos cotas e implementamos o Estatuto, ou seremos coniventes com a perpetuação da nossa desigualdade étnica e racial.
Acreditamos que a igualdade universal dentro da República não é um princípio vazio e sim uma meta a ser alcançada. As ações afirmativas, baseadas na discriminação positiva daqueles lesados por processos históricos, são a figura jurídica criada pelas Nações Unidas para alcançar essa meta.
Conclamamos, portanto, os nossos ilustres congressistas a que aprovem, com a máxima urgência, a Lei de Cotas (PL73/1999) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000).
Brasília, 3 de julho de 2006.
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10 MITOS SOBRE AS COTAS
ORIENTAÇÃO: Reproduzir e divulgar nas universidades e junto aos parlamentares o
documento abaixo, que explicita conceitualmente a pertinência e justeza da nossa luta
pela implementação das Cotas raciais e sociais nas Universidades.
PROGRAMA POLÍTICAS DA COR NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS UNIVERSIDADE.
As cotas ferem o princípio da igualdade, tal como definido no art. 5º da
Constituição, pelo qual “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer
natureza”. São, portanto, inconstitucionais.
Na visão, entre outros juristas, dos Ministros do STF, Marco Aurélio de Mello, Antonio
Bandeira de Mello e Joaquim Barbosa Gomes, o princípio constitucional da igualdade,
contido no art. 5º, refere-se à igualdade formal de todos os cidadãos perante a lei. A
igualdade de fato é tão-somente um alvo a ser atingido, devendo ser promovida,
garantindo a igualdade de oportunidades como manda o art. 3º da mesma Constituição
Federal. As políticas de afirmação de direitos são, portanto, constitucionais e
absolutamente necessárias.
As cotas subvertem o princípio do mérito acadêmico, único requisito que deve ser
contemplado para o acesso à universidade
Vivemos numa das sociedades mais injustas do planeta, onde o “mérito acadêmico” é
apresentado como resultado das avaliações objetivas e não contaminadas pela profunda
desigualdade social existente. O vestibular está longe de ser uma prova equânime que
classifica alunos de acordo com sua inteligência. As oportunidades sociais ampliam e
multiplicam as oportunidades educacionais.
Os pobres não passam no vestibular porque, sendo pobres, sempre tiveram poucas
oportunidades, não porque não o “merecem”. Políticas públicas de reparação dessas
injustiças são um imperativo ético numa democracia efetiva.
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As cotas constituem uma medida inócua, porque o verdadeiro problema é a
péssima qualidade do ensino público no país.
É um grande erro pensar que, no campo das políticas públicas democráticas, os avanços
se reproduzem por etapas sequenciais; primeiro melhora-se a qualidade da educação
básica e depois democratiza-se a universidade. Este é um argumento que pode contentar
aos que tiveram oportunidade de acesso ao ensino superior. Ambos os desafios são
urgentes e precisam ser assumidos enfaticamente de forma simultânea. A educação
deve melhorar sua qualidade (em todos os níveis) e ser mais democrática (também em
todos os níveis).
As cotas baixam o nível acadêmico de nossas universidades.
Diversos estudos mostram que, nas universidades onde as cotas foram implementadas,
não houve perda na qualidade do ensino. Os cotistas, como todos os alunos,
especialmente os mais pobres, enfrentam problemas quando as universidades não
dispõem de bibliotecas bem equipadas, de laboratórios de informática, de bandejão ou
de uma política de assistência que permita atender as demandas de apoio que toda boa
universidade deve oferecer à comunidade estudantil. Mas isto diz respeito à crise das
nossas universidades públicas e ao abandono a que foram submetidas historicamente
pelos governos, não à impossibilidade de que os alunos e alunas cotistas possam atingir
um desempenho acadêmico igual ao de qualquer outro aluno ou aluna. Universidades
que adotaram cotas (como a UNEB, UNB, UFBA e UERJ) demonstraram que o
desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas é o mesmo, não havendo diferenças
consideráveis. Por outro lado, como também evidenciam numerosas pesquisas, o
estímulo e a motivação são fundamentais para o bom desempenho acadêmico. E é esta
extraordinária força de vontade que faz com que jovens de origem muito pobre, sendo
os primeiros de toda sua história familiar a entrar na universidade, consigam ter um
desempenho acadêmico de excelência nos seus estudos universitários. As cotas
melhoram a qualidade social de nossas universidades.
A sociedade brasileira é contra as cotas.
Diversas pesquisas de opinião mostram que houve um progressivo e contundente
reconhecimento da importância das cotas na sociedade brasileira. Mais da metade dos
reitores e reitoras das universidades federais, segundo ANDIFES, já é favorável às
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cotas. Pesquisas realizadas pelo Programa de Políticas da Cor, na ANPED e na
ANPOCS, duas das mais importantes associações científicas do Brasil, bem como em
diversas universidades públicas, mostram o apoio da comunidade acadêmica às cotas,
inclusive entre os professores dos cursos denominados “mais competitivos” (medicina,
direito, engenharia etc). Alguns meios de comunicação e alguns jornalistas têm
fustigado as políticas afirmativas e, particularmente, as cotas. Mas isso não significa,
obviamente, que a sociedade brasileira as rejeita.
As cotas não podem incluir critérios raciais ou étnicos devido ao alto grau de
miscigenação da sociedade brasileira, que impossibilita distinguir quem é negro ou
branco no país.
Somos, sem dúvida nenhuma, uma sociedade mestiça, mas o valor dessa mestiçagem é
meramente retórico no Brasil. Na cotidianidade, as pessoas são discriminadas por sua
cor, sua etnia, sua origem, seu sotaque, seu sexo e sua opção sexual. Quando se trata de
fazer uma política pública de afirmação de direitos, nossa cor magicamente se
desmancha. Mas, quando pretendemos obter um emprego, uma vaga na universidade
ou, simplesmente, não ser constrangidos por arbitrariedades de todo tipo, nossa cor
torna-se um fator crucial para a vantagem de alguns e desvantagem de outros. A
população negra é discriminada porque grande parte dela é pobre, mas também pela cor
da sua pele.
No Brasil, quase a metade da população é negra. E grande parte dela é pobre,
discriminada e excluída. Isso não é uma mera coincidência.
As cotas vão favorecer aos negros e discriminar ainda mais aos brancos pobres.
Esta é, quiçá, uma das mais perversas falácias contra as cotas. O projeto atualmente
tramitado na Câmara dos Deputados, PL 73/99, já aprovado na Comissão de
Constituição e Justiça, favorece aos alunos e alunas oriundos de escolas públicas,
colocando como requisito uma representatividade racial e étnica equivalente à existente
na região onde está situada cada universidade. Trata-se de uma criativa proposta onde se
combinam os critérios sociais, raciais e étnicos. É curioso que setores que nunca
defenderam o interesse dos setores populares ataquem as cotas porque agora, segundo
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dizem, os pobres perderão oportunidades que nunca lhes foram oferecidas. O Projeto de
Lei 73/99 é um avanço fundamental na construção da justiça social no país e na luta
contra a discriminação social, racial e étnica.
As cotas vão fazer da nossa uma sociedade racista.
O Brasil está longe de ser uma democracia racial. No mercado de trabalho, na política,
na educação, em todos os âmbitos, os negros e negras têm menos oportunidades e
possibilidades que a população branca. O racismo no Brasil está imbricado nas
instituições públicas e privadas. E age de forma silenciosa. As cotas não criam o
racismo. Ele já existe. As cotas ajudam a colocar em debate sua perversa presença,
funcionando como uma preventiva medida anti-racista.
As cotas são inúteis porque o problema não é o acesso, senão a permanência.Mais uma
vez, o pensamento dicotômico obscurece mais do que ajuda à formulação de uma
política pública democrática. Cotas e estratégias efetivas de permanência fazem parte de
uma mesma política pública. Não se trata de fazer uma ou outra, senão ambas. Não se
trata de fazer uma escolha entre elas, senão de pensá-las juntas. As cotas não
solucionam todos os problemas da universidade, são apenas uma ferramenta eficaz na
democratização das oportunidades de acesso ao ensino superior para um amplo setor da
sociedade historicamente excluído do mesmo.
É evidente que as cotas, sem uma política de permanência, correm sérios riscos de não
atingir sua meta democrática; Porém, isso não faz senão reafirmar a importância de uma
reforma mais ampla no ensino superior brasileiro, onde qualidade e quantidade não
sejam colocadas como dinâmicas contraditórias ou contrapostas; onde excelência e
privilégio sejam termos contrapostos e não, como sempre foram, componentes de uma
mesma prática discriminatória. Mais e melhores universidades públicas para todos e
todas. Esse deveria ser o nosso lema. Nosso compromisso ético e político.
As cotas são prejudiciais para os próprios negros, já que os estigmatizam como
sendo incompetentes e não merecedores do lugar que ocupam nas universidades.
Argumentações desse tipo não são frequentes entre a população negra e, menos ainda,
entre alunos e alunas cotistas. As cotas são consideradas por eles como uma vitória
democrática, não como uma derrota na sua auto-estima. Ser cotista é hoje um orgulho
para estes alunos e alunas. Porque, nessa condição, há um passado de lutas, de
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sofrimento, de derrotas e também de conquistas. Há um compromisso assumido. Há um
direito realizado. Hoje, como no passado, os grupos excluídos e discriminados se
sentem mais e não menos reconhecidos socialmente quando seus direitos são afirmados,
quando a lei cria condições efetivas para lutar contra as diversas formas de segregação.
A multiplicação, nas nossas universidades, de alunos e alunas pobres, de jovens negros
e negras, de filhos e filhas das mais diversas comunidades indígenas é um orgulho para
todos eles. E deveria sêlo para todos os brasileiros e brasileiras de boa vontade.
NADA SÓ PARA OS NEGROS
NADA SÓ PARA OS BRANCOS
PROGRAMA POLÍTICAS DA COR NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS UNIVERSIDADE DO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO PELA APROVAÇÃO DO PROJETO DE LEI 73/99
Autores: Pablo Gentili e Renato Ferreira (PPCOR/LPP/UERJ)
Design: Claudio Mendes (LPP/UERJ)
Pode ser reproduzido livremente, citando a fonte. Rio de Janeiro, 2006.
Fonte: www.lpp-uerj.net
www.politicasdacor.net
www.olped.net
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