12
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DISCIPLINA: TEORIA SOCIOLÓGICA II MESTRADO EM SOCIOLOGIA PROFESSORES JANIA PERLA E LEONARDO SÁ SANDRA STEPHANIE HOLANDA PONTE RIBEIRO TRABALHO FINAL: INTERCESSÕES ENTRE GOFFMAN, ELIAS E BOURDIEU E O LUGAR DA REFLEXÃO TEÓRICA FORTALEZA 2014

Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

Embed Size (px)

DESCRIPTION

TRABALHO INTERCESSÕES ENTRE GOFFMAN, ELIAS E BOURDIEU E O LUGAR DA REFLEXÃO TEÓRICA

Citation preview

Page 1: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

DISCIPLINA: TEORIA SOCIOLÓGICA II

MESTRADO EM SOCIOLOGIA

PROFESSORES JANIA PERLA E LEONARDO SÁ

SANDRA STEPHANIE HOLANDA PONTE RIBEIRO

TRABALHO FINAL: INTERCESSÕES ENTRE GOFFMAN, ELIAS E BOURDIEU E

O LUGAR DA REFLEXÃO TEÓRICA

FORTALEZA

2014

Page 2: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

2

1. Contextualizando os autores em suas respectivas tradições ou linhagens sociológicas,

discuta as intercessões entre Goffman, Elias e Bourdieu.

Erving Goffman tornou-se um dos principais herdeiros da Escola de Chicago e teve

sua obra influenciada pela etnometodologia e pelo interacionismo simbólico, este conhecido

pela ênfase na pesquisa qualitativa e a utilização de métodos como a observação de campo.

Porém, a teoria goffmaniana não se reduz a uma análise propriamente interacionista, a

interação social servia para o autor mais como guia para captar o que parece e o que aparece

nas relações interpessoais. Sua investigação estava centrada na apreensão da dinâmica social

por meio de elementos que ocorriam durante o contato face a face. Assim, ele observava a

performance dos agentes a cada encenação e descobria por trás dos gestos, atos e feições mais

efêmeros o funcionamento do mundo social (ARRIBAS, 2012).

Goffman (2011) afirma que todas as pessoas vivem em um mundo de encontros

sociais que as envolvem em contatos face a face, ou seja, em contatos mediados por outros

participantes. Em cada um desses contatos a pessoa tende a desempenhar o que o autor

denomina como linha que é um padrão de atos verbais ou não verbais com o qual ela expressa

sua opinião sobre a situação e através disso sua avaliação sobre os participantes e ela mesma.

Não importa a intenção da pessoa, ela sempre assumirá uma linha na prática. Entretanto, os

outros participantes poderão supor que ela assumiu uma posição mais ou menos voluntária de

modo que ela precisará levar em consideração a impressão que os outros formam dela.

A partir dessas premissas, Goffman (2011) constrói o conceito de fachada que pode

ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si

mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu. Nas palavras do autor: “A

fachada é uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados”

(GOFFMAN, 2011, p. 14). Assim, pode-se dizer que uma pessoa mantém a fachada quando a

linha que ela assume representa uma imagem dela que é internamente consistente.

Contudo, a fachada é apenas um “empréstimo” da sociedade e pode ser ameaçada se a

pessoa não se comporta de forma digna dela. Segundo Goffman (2011), a combinação da

regra do respeito próprio e da regra da consideração é que a pessoa tende, durante o encontro,

a manter tanto a sua fachada como a dos outros. Esse tipo de aceitação mútua, diz o autor,

parece ser uma característica estrutural da interação e tem um efeito conservador importante,

pois a manutenção da fachada é condição da interação. Grande parte da atividade que ocorre

durante um encontro pode ser entendida como um esforço de todos os envolvidos para

atravessar a ocasião sem perturbações, ou seja, preservando a fachada dos participantes. Nesse

Page 3: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

3

sentido, Goffman (2011) diz que uma relação social pode ser vista como uma forma pela qual

a pessoa é forçada a confiar sua autoimagem e fachada à diplomacia e boa conduta dos outros.

Sua análise microssocial nos demonstra que na interação face a face são operadas

condições informacionais únicas e que confirmam a importância da fachada nas relações

sociais. Nesses encontros, a tendência das pessoas de usar sinais e símbolos significa que

evidências de valor social e de avaliações mútuas serão comunicadas por coisas muito

pequenas e que serão testemunhadas. Desse modo, um olhar, uma mudança no tom de voz,

um posicionamento ou não, todos esses fatores rituais presentes na interação têm importância

avaliativa (ARRIBAS, 2012). Em qualquer sociedade, existe um sistema de práticas,

convenções e regras de conduta em jogo que funciona como meio de orientar e organizar o

fluxo dos encontros. Essas convenções são eficazes na ordenação da estrutura das interações,

como guias da ação dos indivíduos, porque existe uma relação funcional entre a estrutura do

eu e a estrutura da interação falada (GOFFMAN, 2011).

Conforme o autor, a sociedade para ser sociedade precisa mobilizar seus membros

como participantes autorreguladores em encontros sociais e a forma de mobilizar esses

indivíduos é através do ritual. É por meio dele que é ensinado a ser perceptivo, a ter

sentimentos ligados ao eu e o eu expresso pela fachada, a ter orgulho, honra e dignidade.

Esses são alguns elementos de comportamento necessários para a pessoa participar com

eficácia da interação. Assim, a pessoa torna-se um constructo criado a partir de regras morais

que são marcadas nelas externamente. Essas regras determinam a avaliação que ela fará de si

mesma e dos outros participantes no encontro e influenciam também a distribuição de seus

sentimentos e os tipos de práticas empregados para manter um equilíbrio ritual na interação

(GOFFMAN, 2011).

Na teoria goffmaniana, as convenções que regem as atividades dos indivíduos na

interação são frutos de uma ordem social que está para além deles. Nas palavras do autor: “A

capacidade geral de ser limitado por regras morais pode muito bem pertencer ao indivíduo,

mas o conjunto particular de regras (...) é derivado de requerimentos estabelecidos na

organização ritual de encontros sociais” (GOFFMAN, 2011, p. 49).

Por fim, como concluiu Arribas (2012), Goffman não estava preocupado em produzir

constructos explicativos que dessem conta da correlação indivíduo-sociedade, seu interesse

era observar de perto o manejo dos bens simbólicos e das emoções, as posturas, as formas de

falar ou não falar, os gestos, enfim toda uma hexis corporal carregada de significados. As

interações face a face são consideradas instrumentos privilegiados de acesso às normas, aos

valores e aos sistemas de crenças. O corpo transforma-se em espaço de condensação dos

Page 4: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

4

atributos macrossociais. Goffman e sua microanálise demonstraram que por detrás dos atos

mais passageiros e repentinos se encontra a organização das sociedades, revelando que a

ordem social se esparrama por toda a parte (ARRIBAS, 2012).

Norbert Elias é considerado um dos maiores autores da sociologia histórica. Ao

criticar a História por analisar as singularidades de determinados homens, Elias propõe uma

nova abordagem na qual o processo de individualização está relacionado historicamente a um

processo de socialização. Assim, ele privilegia o estudo das emoções dos indivíduos sem

deixar de correlacioná-las aos processos histórico-sociais mais abrangentes (ARRIBAS,

2012). Para ele, a sociedade é formada por um conjunto de indivíduos interdependentes que

não são externos a ela, mas que também não agem apenas sobre o seu domínio. Esses agentes

movem-se dentro de um campo de possibilidades através do qual podem manejar com certa

liberdade um estoque de saberes e de valores compartilhados socialmente e, dessa forma,

produzem maneiras de ser e de agir diferentes no mundo social.

No livro A sociedade de corte (ELIAS, 2001), o autor busca investigar as

particularidades históricas dessa sociedade. Ela representa a instância máxima de estruturação

da família real e é órgão central de administração do governo. Sua ascensão é resultado da

centralização do poder do Estado através do monopólio das taxas fiscais e do poder militar e

policial. A partir disso, o autor faz a seguinte pergunta: como se constituiu uma configuração

social de homens interdependentes que tornava possível que milhares de homens se

deixassem governar por uma família ou pessoa?

Para responder a essa questão, Elias (2001) visa observar as redes de relações de

interdependências entre os indivíduos utilizando o modelo teórico configuracional. De acordo

com o autor, as configurações são estruturas concretas e coercitivas formadas por tipos de

relações ou conexão entre homens interdependentes e que marca determinado tempo e espaço.

Cada esfera do mundo social, seja ela política, econômica ou religiosa, representa relações

específicas que formam configurações de tipos diversos em torno de funções que as pessoas

desempenham para si e para os outros. A configuração pode ter relativa independência dos

indivíduos singulares, mas não o tem dos indivíduos em geral. Da mesma forma, estes agentes

têm certa autonomia para atuar dentro de um campo de decisões que é construído socialmente,

mas não fora deles. Essa interdependência entre indivíduo e sociedade, sem a sobreposição de

nenhuma das partes, é o que possibilita, para Elias, um equilíbrio social.

Destarte, ao investigar as estratégias e redes de relações de interdependência na corte,

Elias descobriu que a sociedade de corte é formada pelo domínio do rei e este depende da

aceitação dos seus súditos, ou seja, dos outros participantes na corte, para continuar

Page 5: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

5

governando. Assim, o rei utiliza determinadas estratégias para se manter no poder: a primeira

delas é incentivando conflitos e intrigas entre os nobres de forma que o equilíbrio de poderes

ficasse na sua mão, a segunda era a encenação de todo um ritual de cerimônias e etiquetas

como maneiras de apresentação e de preservação da posição social da realeza perante os

outros.

Já no texto O Processo Civilizador (ELIAS, 1994), o autor discute as ligações entre

as mudanças na estrutura da sociedade e na estrutura do comportamento e da constituição

psíquica a partir da sociogênese dos conceitos de civilização e cultura e da psicogênese de

uma “identidade nacional”. Ele afirma que civilização é como a sociedade ocidental procura

descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha como, por exemplo,

o nível da tecnologia, as maneiras, a cultura científica, etc. Porém, esse conceito difere entre

as sociedades ocidentais: Para ingleses e franceses, civilização significa o orgulho pela nação

e o progresso do ocidente como um todo. Ela descreve um processo e está relacionada a

pessoas e a coisas que podem ser intelectuais, morais, artísticas ou políticas. Para os alemães,

isso é cultura (kultur), mas diferente do outro conceito, ela não se reporta a aspectos políticos

e sociais nem a pessoas. Ela reporta a idéia de produtos humanos de estável valor (e não um

processo), nos quais se expressa a individualidade de um povo. Cultura dá ênfase às

diferenças nacionais e à identidade particular de um grupo.

Segundo Elias (1994), a diferença entre os dois conceitos tem sua explicação na

análise histórica dos países. Enquanto na França, civilização está ligada a etiqueta da classe

cortesã e a autoimagem da realeza, a noção de cultura se refere ao crescimento de uma

burguesia genuinamente alemã e tem a função de estabelecer uma identidade particular e

autêntica no país. Isso acontece porque na França se via uma maior uniformidade entre a

burguesia e a aristocracia, sendo os costumes da corte assumidos como características

nacionais. Já na Alemanha, a postura de autoisolamento e de destaque ao específico se

baseava em uma separação nítida entre nobreza e classe média. Como consequência disso,

honestidade e autenticidade passaram a ser consideradas características do povo alemão de

modo que a sociogênese desses dois termos durante o processo histórico transformaram

estruturas de personalidades em uma identidade nacional alemã.

Para elucidar esse processo de sociogênese e de psicogênese, Elias (1994) constrói o

conceito de habitus associando as estruturas de personalidade, ou seja, estruturas psicológicas

individuais, com as estruturas sociais, que são formas criadas por uma grande quantidade de

indivíduos em interdependência. Habitus são, então, disposições psíquicas ligadas à gênese

social que são incorporadas através da participação dos indivíduos nas configurações. É

Page 6: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

6

quando o homem desenvolve relações de interdependência e passa a desenvolver uma

“segunda natureza” que não é mais puramente biológica. O autor percebe essas duas

estruturas, social e psicológica, como mutações de um mesmo processo de desenvolvimento.

Ao afirmar a direção das transformações sociais e de personalidades, Elias (1994) fala

ainda de um processo complexo e gradual em direção ao controle das emoções e das maneiras

de agir. Ele acredita que a diferenciação e a estabilização de funções sociais aumentam a

dependência entre os indivíduos de forma que surge a necessidade de maior pressão e

vigilância dos agentes para si mesmos e para os outros, produzindo, ao longo do tempo, um

processo de autocontrole consciente e inconsciente. Assim, o autor aponta o desenrolar

gradual de um “processo de pacificação e de domesticação das condutas, dos

comportamentos e dos sentimentos” (ARRIBAS, 2012), denominado por ele de processo

civilizador. Este se refere a uma constelação de coação, na qual a autocoação atua como

mecanismo mais forte. Portanto, para Elias, a civilização não é um estado, mas um processo, e

toda a sociedade só pode ser analisada se considerada em movimento constante.

A problemática teórica dos escritos de Pierre Bourdieu visa superar o tradicional

paradigma sociológico entre teoria subjetivista e objetivista. A primeira parte da perspectiva

na qual o indivíduo é o centro da análise (teorias da ação), enquanto a segunda propõe que

existam relações objetivas que estruturam as práticas sociais (teorias de estrutura). Bourdieu

busca formular uma teoria através da qual seja possível articular dialeticamente o ator social e

a estrutura social. Ele acredita em um tipo de conhecimento que tenha como objeto o sistema

das relações objetivas, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas objetivas e as

disposições estruturadas (cognitivas do sujeito) nas quais essas estruturas se atualizam e que

tendem a reproduzi-las. Nesse sentido, o autor fala em uma interiorização da exterioridade e

em uma exteriorização da interioridade (THIRY-CHERQUES, 2006).

Para relacionar o agente social e a sociedade, Bourdieu (2005) constrói os conceitos de

habitus, campos e capital (BOURDIEU, 2005, 2011). O habitus, conforme o autor, pode ser

definido como um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas (objetivas)

predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes (cognitivas, subjetivas), isto é, agem

como princípio gerador e estruturador de práticas e de representações que podem ser

objetivamente reguladas sem que sejam o produto da obediência a regras ou a um objetivo

consciente, sendo, assim, coletivamente orquestradas. O habitus tende a conformar e orientar

a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais, ele assegura a reprodução

dessas mesmas relações objetivas que o engendram. Por essa razão, cada agente é produtor e

reprodutor do sentido objetivo, suas obras são produtos de um modus operandi do qual ele

Page 7: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

7

não é produtor e não tem domínio consciente. Ou seja, a interiorização, pelos agentes, dos

valores, normas e princípios sociais assegura a adequação entre as ações do sujeito e a

realidade objetiva da sociedade como um todo (BOURDIEU, 2005, 2011).

Ao funcionar como estrutura estruturante, o habitus pressupõe também um conjunto de

“esquemas generativos” que estão na origem dos esquemas classificatórios que presidem a

apreensão do mundo enquanto conhecimento. Para o autor, o interesse e os gostos podem ser

explicados segundo essa lógica: como os sistemas de classificação são engendrados pelas

condições sociais e como a distribuição de bens materiais e simbólicos se dá de forma

desigual, as escolhas tendem a reproduzir as relações de dominação. O habitus produz a

própria representação social com base nas estruturas hierarquizadas no mundo social sem que

o indivíduo a perceba (BOURDIEU, 2005, 2011).

O habitus pode ser individual ou coletivo, mas no âmbito individual se dá o processo

de interiorização da objetividade que ocorre de forma subjetiva. Já no âmbito coletivo

(habitus de classe ou grupo), a relativa homogeneidade acontece porque os indivíduos

internalizam as representações objetivas conforme as posições sociais de que desfrutam

(estrutura social). Bourdieu (2005, 2011) dá ênfase ao modo de estruturação do habitus

através das instituições de socialização dos agentes, como, por exemplo, um habitus primário

produzido pela família e depois um habitus secundário formado pela escola, de modo que a

história do indivíduo é variante estrutural desse habitus.

A partir do conceito de habitus, podemos entender a teoria da prática social de

Bourdieu (2005, 2011) em função das relações objetivas que regem a estruturação da

sociedade. A prática se define como o produto da relação dialética entre uma situação e um

habitus, isto é, o habitus como enquanto sistema de disposições duráveis é matriz de

percepção, de pensamento e de ação, que se realiza em determinadas condições sociais. A

situação particular que enfrenta um ator social específico se encontra também objetivamente

estruturada e a adequação entre o habitus e essa situação permite fundar uma teoria da prática

que leve em consideração tanto as necessidades dos agentes quanto a objetividade da

sociedade. Assim, o habitus é essa lógica prática que funciona como matriz de disposicional

na qual os agentes atuam de modo inconsciente e pré-reflexivo. As ações não são

racionalmente direcionadas para fins ou objetivos visados, elas têm “razões práticas”

(BOURDIEU, 2005).

Bourdieu (2005, 2011) denomina “campo” esse espaço no qual as posições dos

agentes se encontram a priori fixadas. No campo, ocorre uma luta concorrencial entre os

atores em torno de interesses específicos que caracterizam esse campo. Todo ator age no

Page 8: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

8

interior de um campo socialmente predeterminado. O campo é um espaço social onde se

manifestam relações de poder. Ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um

quantum social que determina a posição que um agente específico ocupa no seu meio.

Bourdieu chama esse quantum de “capital social”. O capital se divide em dois polos:

dominantes e dominados. Os primeiros são aqueles que possuem mais capital social

específico de cada campo e os segundos os que têm pouco ou nenhum capital. A estratégia do

agente no campo é sempre de maximização do capital social, pois, para o autor, toda ação

pressupõe interesses em jogo.

A divisão do campo social em dominantes e dominados implica uma distinção entre o

polo dominante que pretende conservar as posições de poder vigentes e a distribuição de

capital (ortodoxia) e o polo dominado que tende a desacreditar os detentores reais de capital

(heterodoxia). Desse modo, os dominantes devem criar mecanismos e instituições para manter

sua posição e seu estatuto de dominação. Através desses procedimentos (cerimônicas e

rituais), pode-se instituir um processo de legitimação dos bens simbólicos, pois aqueles que

consomem esses bens distribuídos no mercado ocupam posições sociais determinadas em

função do capital econômico e cultural de que dispõem. Assim, as relações de poder no

interior do campo reproduzem outras relações externas, como, por exemplo, relações de classe

(BOURDIEU, 2005, 2011).

Dessa forma, as diferenças de classe se objetivam nas disposições que possuem os

indivíduos, no habitus, em consumir as obras consideradas legítimas. É por meio do gosto que

se manifesta um tipo de dominação suave, na qual se apresentam encobertas as relações de

poder que regem os agentes e a ordem da sociedade global. Essas relações entre os homens

reproduzem o sistema objetivo de dominação interiorizado enquanto subjetividade. A

sociedade é apreendida como estratificação do poder. O autor denomina esse tipo de

dominação de violência simbólica e é um mecanismo naturalizado de reprodução da ordem

social (BOURDIEU, 2005, 2011).

Por último, tendo em vista o que foi discutido ao longo do texto, é possível traçar

algumas intercessões entre Goffman, Elias e Bourdieu retomando algumas de suas

categorias analíticas. Os três autores compreendem o espaço social como uma rede de

relações, e esta, por sua vez, é expressa, em suas teorias, por meio dos conceitos de interação

face a face, configurações e campo social, respectivamente.

Goffman acredita que as pessoas vivem em um mundo de encontros sociais. Pode-se

supor que, para esse autor, uma rede de relações refere-se a um conjunto de interações face a

face, isto é, contatos mediados por outros participantes, que é o objeto central de sua análise.

Page 9: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

9

Na sociedade, a estrutura das interações é ordenada através de um sistema de práticas e

normas de conduta que é corporificado pelo indivíduo por meio dos rituais. Essas convenções,

apreendidas externamente, funcionam como guias da ação dos indivíduos, pois existe uma

relação entre a estrutura do eu e a estrutura da interação. Assim, o indivíduo para participar

das interações deve escolher submeter-se a um conjunto particular de regras estabelecidas

socialmente.

Já Elias denomina configurações como uma rede de relações de indivíduos

interdependentes que marca determinado tempo e espaço. Para ele, a sociedade é formada por

um conjunto de indivíduos interdependentes que não são externos a ela, mas que agem dentro

de um leque de possibilidades determinado socialmente. Nesse sentido, pode-se dizer que, na

obra do autor, o processo de sociogênese está historicamente relacionado a um processo de

psicogênese.

Em Bourdieu, a rede de relações sociais funciona a partir de um campo social que é

um espaço no qual as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O campo é um

espaço social onde se manifestam relações de poder, no qual ocorre uma luta concorrencial

entre os atores em torno de interesses específicos que caracterizam esse campo. Ele se

estrutura a partir da distribuição desigual do capital social que determina a posição que um

agente específico ocupa no seu meio. O campo se divide em dois polos: dominantes, aqueles

que são detentores de capital, e dominados, os que têm pouco ou nenhum capital. A estratégia

do agente no campo é sempre de maximização do capital social.

Tendo em vista essas três abordagens, pode-se afirmar que Goffman, Elias e Bourdieu

partem de uma teoria relacional, seja por meio de uma interpretação microssociológica das

aparências nos encontros, de uma investigação, ao mesmo tempo, macro dos processos

históricos e micro dos comportamentos ou da análise das relações sociais pela luta por poder,

respectivamente. Os três apoiam-se em um princípio de primazia das relações, no qual os

elementos se estruturam na relação social e por isso esta deve ser tida como objeto central de

estudo da sociologia. O estruturalismo francês é uma das principais tradições que enfatiza

essa questão sobre e contra categorias e substâncias.

Arribas (2012) aponta para alguns elementos em comum entre esses autores que

representam avanços para a compreensão sociológica. O primeiro é que ao rejeitarem uma

explicação essencializada do mundo social, suas proposições enfatizam “a face latejante da

dinâmica societária: sentimentos, emoções, paixões dos homens reais, levando em conta o

movimento, a fluidez e a versatilidade das vivências” (ARRIBAS, 2012, p. 65). Para a autora,

isso só foi possível porque os três sociólogos investiram em um jogo de escalas macro e

Page 10: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

10

microssociológicos sobre perspectivas diversas analisando ora as biografias, ora a história, ora

o sentido das ações, das emoções e dos gestos, ora os sistemas de valores, etc.

Mas o ponto principal e de maior relevância para as ciências sociais, acredito, foi a

originalidade do pensamento que consiste em refutar toda a posição que opõe indivíduo e

sociedade. A autora afirma que cada autor contribuiu para mostrar que, apesar das diferenças

de suas abordagens, sociedade e indivíduo são aspectos decompostos da mesma realidade e

não podem ser discutidos separadamente (ARRIBAS, 2012). Relembrando que Goffman se

referia a uma relação entre a estrutura do eu e a estrutura da interação, Elias anunciava os

processos de sociogênese e de psicogênese historicamente associados e Bourdieu explicava a

ação dos indivíduos através de um movimento de interiorização da exterioridade e

exteriorização da interioridade.

Outra categorização interessante para interpretar o pensamento desses autores,

principalmente em Elias e Bourdieu, é o conceito de habitus como constructo que visa superar

uma dicotomia reducionista da realidade social. Conforme Bourdieu, o habitus é um sistema

de disposições duráveis, estruturas estruturadas que funcionam como estruturas estruturantes,

isto é, agem como princípio gerador e estruturador de práticas e de representações que podem

ser objetivamente reguladas sem que sejam o produto da obediência a regras ou a um objetivo

consciente, sendo, assim, coletivamente orquestradas. Em Elias, habitus são disposições

psíquicas ligadas à gênese social que são incorporadas através da participação dos indivíduos

nas configurações. Ambos os autores, utilizam a noção de habitus para entender as ações dos

indivíduos na sociedade a partir da associação de estruturas de personalidade com estruturas

sociais.

A partir do conceito de habitus, é possível observar algumas divergências na análise

dos três autores. Enquanto, em Bourdieu, o habitus é incorporado pelo agente ao longo de sua

trajetória no interior de um ou mais campos do qual faz parte, internalizando suas regras

específicas, em Elias, o habitus é incorporado a partir da participação do indivíduo nas

configurações (LANDINI, 2007). Ambos os autores assumem uma perspectiva macro e

microssociológica da realidade, porém Bourdieu está mais atento às relações de poder e às

disputa no interior do campo ao passo que Elias busca compreender os processos de

mudanças sociais na história e nas formas de conduta. Em síntese, a noção de Elias é mais

abstrata e demonstra a dimensão cultural e interdependente das relações. Ela aponta para um

modelo de transformação. Para Bourdieu, o habitus está inscrito nos sistemas de controle

social por meio da distribuição desigual de capital simbólico, como princípio gerador ele

reproduz as relações de poder e hierarquia presentes na ordem social. Sendo assim, ele é um

Page 11: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

11

modelo de reprodução e integração das normas através das práticas sociais, mesmo que dentro

destas os indivíduos possam agir dentro de um campo de possibilidades.

Goffman não usa o conceito de habitus, mas interpreta as ações dos indivíduos nas

interações face a face orientadas por um conjunto de regras de conduta determinadas

socialmente. Ele pressupõe uma relação entre a estrutura do eu e a estrutura da interação, mas

não explica como funciona essa correlação indivíduo-sociedade. Ao dar ênfase a uma análise

predominantemente microssociológica, Goffman acaba negligenciando os processos

macrossociais, tidos muitas vezes como ahistóricos, que influenciam as práticas dos agentes.

Ele universaliza um “habitus”, no qual todos os indivíduos tem interesse na manutenção da

fachada social, sem associar as diferentes posições desses atores no mundo social. Assim,

enquanto Goffman privilegia a conduta comunicativa dos agentes sociais como sua base

empírica, os outros autores não deixam de enfatizar a importância de uma análise

macrossociológica. E enquanto para Goffman o sentido último das ações humanas deve ser

retirado das interações sociais, para os outros autores, deve ser retirado à luz da história, da

estrutura e da lógica de funcionamento dos espaços sociais em que estas relações são

estabelecidas (LOPES, 2009).

Finalmente, pensando a partir do debate entre os três sociólogos ao longo do texto, é

possível apontar a para a importância da reflexão teórica frente aos desafios da pesquisa

empírica sistemática.

Como sugeriu Malinowski, “não é suficiente, que o etnógrafo coloque suas redes no

local certo e fique à espera que a caça caia nelas. Ele precisa ser um caçador ativo e atento

(...), quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de campo,

quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir quão relevantes eles

são às suas teorias, tanto mais estará bem equipado para o seu trabalho de pesquisa”

(MALINOWSKI, 1978, p. 22). Na metáfora do autor, a reflexão teórica é esse conjunto de

equipamentos e ferramentas do qual o etnógrafo se utiliza para levantar problemáticas, moldar

suas ideias à realidade que encontra e decidir o que é pertinente observar com mais afinco.

Eu acredito que as teorias são generalizações e abstrações que utilizamos para

interpretar os fenômenos a nossa volta. Elas nos ajudam a analisar e compreender os nossos

dados de campo e assim suscitar novos questionamentos e tensões. A teoria nos permite

pensar a pesquisa antes mesmo da coleta de dados, em quais métodos são mais adequados

para se obter o material de campo e quais técnicas podem ser mais bem aproveitadas. Nisso

consiste, para mim, a sua importância, como ferramenta teórica essencial para orientar o

pesquisador no seu trabalho empírico, isto é, para nos tornar um “caçador ativo e atento”.

Page 12: Trabalho Final Sociologia II Elias Bourdieu e Goffman

12

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRIBAS, Célia da Graça. Regionalizando o mundo social: configurações, campos e

interações face a face. Plural: Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da

USP, São Paulo, v. 19, n. 2, p.51-68, 2012. Disponível em:

<http://revistas.usp.br/plural/article/view/74435/78056>. Acesso em: 30 nov. 2014.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

_______. Esboço de uma teoria da prática: procedido de três estudos sobre etnologia cabila.

In: Ortiz, R. (org) Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.

______. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. 7. ed. Campinas: Papirus, 2005.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

______. O Processo Civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

______. O processo civilizador. Vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994A.

GOFFMAN, Erving. Ritual de Interação: Ensaios sobre o comportamento face a face.

Petrópolis: Vozes, 2011.

_______. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.

LANDINI, Tatiana Savoia. Jogos Habituais: Sobre a noção de habitus em Pierre Bourdieu e

Norbert Elias. In: X Simpósio Internacional Processo Civilizador, 2007, Campinas.

Disponível em: < http://www.uel.br/grupo-

estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anais10/Artigos_PDF/Tatiana_Landini.pdf

>. Acesso em: 30 nov. 2014.

LOPES, Felipe Tavares Paes. Bourdieu e Goffman: Um ensaio sobre os pontos comuns e as

fissuras que unem e separam ambos os autores a partir da perspectiva do primeiro. Estudos e

Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p.389-407, 2009.

MALINOWSKI, Bronislaw K. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do

empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. São

Paulo: Abril Cultural, 1978.

THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de

Administração Pública, [S.l.], p. 27 a 56, mai. 2006. ISSN 0034-7612. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6803/5385>. Acesso em: 28

Nov. 2014.