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TRABALHO INTERCESSÕES ENTRE GOFFMAN, ELIAS E BOURDIEU E O LUGAR DA REFLEXÃO TEÓRICA
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DISCIPLINA: TEORIA SOCIOLÓGICA II
MESTRADO EM SOCIOLOGIA
PROFESSORES JANIA PERLA E LEONARDO SÁ
SANDRA STEPHANIE HOLANDA PONTE RIBEIRO
TRABALHO FINAL: INTERCESSÕES ENTRE GOFFMAN, ELIAS E BOURDIEU E
O LUGAR DA REFLEXÃO TEÓRICA
FORTALEZA
2014
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1. Contextualizando os autores em suas respectivas tradições ou linhagens sociológicas,
discuta as intercessões entre Goffman, Elias e Bourdieu.
Erving Goffman tornou-se um dos principais herdeiros da Escola de Chicago e teve
sua obra influenciada pela etnometodologia e pelo interacionismo simbólico, este conhecido
pela ênfase na pesquisa qualitativa e a utilização de métodos como a observação de campo.
Porém, a teoria goffmaniana não se reduz a uma análise propriamente interacionista, a
interação social servia para o autor mais como guia para captar o que parece e o que aparece
nas relações interpessoais. Sua investigação estava centrada na apreensão da dinâmica social
por meio de elementos que ocorriam durante o contato face a face. Assim, ele observava a
performance dos agentes a cada encenação e descobria por trás dos gestos, atos e feições mais
efêmeros o funcionamento do mundo social (ARRIBAS, 2012).
Goffman (2011) afirma que todas as pessoas vivem em um mundo de encontros
sociais que as envolvem em contatos face a face, ou seja, em contatos mediados por outros
participantes. Em cada um desses contatos a pessoa tende a desempenhar o que o autor
denomina como linha que é um padrão de atos verbais ou não verbais com o qual ela expressa
sua opinião sobre a situação e através disso sua avaliação sobre os participantes e ela mesma.
Não importa a intenção da pessoa, ela sempre assumirá uma linha na prática. Entretanto, os
outros participantes poderão supor que ela assumiu uma posição mais ou menos voluntária de
modo que ela precisará levar em consideração a impressão que os outros formam dela.
A partir dessas premissas, Goffman (2011) constrói o conceito de fachada que pode
ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si
mesma através da linha que os outros pressupõem que ela assumiu. Nas palavras do autor: “A
fachada é uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados”
(GOFFMAN, 2011, p. 14). Assim, pode-se dizer que uma pessoa mantém a fachada quando a
linha que ela assume representa uma imagem dela que é internamente consistente.
Contudo, a fachada é apenas um “empréstimo” da sociedade e pode ser ameaçada se a
pessoa não se comporta de forma digna dela. Segundo Goffman (2011), a combinação da
regra do respeito próprio e da regra da consideração é que a pessoa tende, durante o encontro,
a manter tanto a sua fachada como a dos outros. Esse tipo de aceitação mútua, diz o autor,
parece ser uma característica estrutural da interação e tem um efeito conservador importante,
pois a manutenção da fachada é condição da interação. Grande parte da atividade que ocorre
durante um encontro pode ser entendida como um esforço de todos os envolvidos para
atravessar a ocasião sem perturbações, ou seja, preservando a fachada dos participantes. Nesse
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sentido, Goffman (2011) diz que uma relação social pode ser vista como uma forma pela qual
a pessoa é forçada a confiar sua autoimagem e fachada à diplomacia e boa conduta dos outros.
Sua análise microssocial nos demonstra que na interação face a face são operadas
condições informacionais únicas e que confirmam a importância da fachada nas relações
sociais. Nesses encontros, a tendência das pessoas de usar sinais e símbolos significa que
evidências de valor social e de avaliações mútuas serão comunicadas por coisas muito
pequenas e que serão testemunhadas. Desse modo, um olhar, uma mudança no tom de voz,
um posicionamento ou não, todos esses fatores rituais presentes na interação têm importância
avaliativa (ARRIBAS, 2012). Em qualquer sociedade, existe um sistema de práticas,
convenções e regras de conduta em jogo que funciona como meio de orientar e organizar o
fluxo dos encontros. Essas convenções são eficazes na ordenação da estrutura das interações,
como guias da ação dos indivíduos, porque existe uma relação funcional entre a estrutura do
eu e a estrutura da interação falada (GOFFMAN, 2011).
Conforme o autor, a sociedade para ser sociedade precisa mobilizar seus membros
como participantes autorreguladores em encontros sociais e a forma de mobilizar esses
indivíduos é através do ritual. É por meio dele que é ensinado a ser perceptivo, a ter
sentimentos ligados ao eu e o eu expresso pela fachada, a ter orgulho, honra e dignidade.
Esses são alguns elementos de comportamento necessários para a pessoa participar com
eficácia da interação. Assim, a pessoa torna-se um constructo criado a partir de regras morais
que são marcadas nelas externamente. Essas regras determinam a avaliação que ela fará de si
mesma e dos outros participantes no encontro e influenciam também a distribuição de seus
sentimentos e os tipos de práticas empregados para manter um equilíbrio ritual na interação
(GOFFMAN, 2011).
Na teoria goffmaniana, as convenções que regem as atividades dos indivíduos na
interação são frutos de uma ordem social que está para além deles. Nas palavras do autor: “A
capacidade geral de ser limitado por regras morais pode muito bem pertencer ao indivíduo,
mas o conjunto particular de regras (...) é derivado de requerimentos estabelecidos na
organização ritual de encontros sociais” (GOFFMAN, 2011, p. 49).
Por fim, como concluiu Arribas (2012), Goffman não estava preocupado em produzir
constructos explicativos que dessem conta da correlação indivíduo-sociedade, seu interesse
era observar de perto o manejo dos bens simbólicos e das emoções, as posturas, as formas de
falar ou não falar, os gestos, enfim toda uma hexis corporal carregada de significados. As
interações face a face são consideradas instrumentos privilegiados de acesso às normas, aos
valores e aos sistemas de crenças. O corpo transforma-se em espaço de condensação dos
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atributos macrossociais. Goffman e sua microanálise demonstraram que por detrás dos atos
mais passageiros e repentinos se encontra a organização das sociedades, revelando que a
ordem social se esparrama por toda a parte (ARRIBAS, 2012).
Norbert Elias é considerado um dos maiores autores da sociologia histórica. Ao
criticar a História por analisar as singularidades de determinados homens, Elias propõe uma
nova abordagem na qual o processo de individualização está relacionado historicamente a um
processo de socialização. Assim, ele privilegia o estudo das emoções dos indivíduos sem
deixar de correlacioná-las aos processos histórico-sociais mais abrangentes (ARRIBAS,
2012). Para ele, a sociedade é formada por um conjunto de indivíduos interdependentes que
não são externos a ela, mas que também não agem apenas sobre o seu domínio. Esses agentes
movem-se dentro de um campo de possibilidades através do qual podem manejar com certa
liberdade um estoque de saberes e de valores compartilhados socialmente e, dessa forma,
produzem maneiras de ser e de agir diferentes no mundo social.
No livro A sociedade de corte (ELIAS, 2001), o autor busca investigar as
particularidades históricas dessa sociedade. Ela representa a instância máxima de estruturação
da família real e é órgão central de administração do governo. Sua ascensão é resultado da
centralização do poder do Estado através do monopólio das taxas fiscais e do poder militar e
policial. A partir disso, o autor faz a seguinte pergunta: como se constituiu uma configuração
social de homens interdependentes que tornava possível que milhares de homens se
deixassem governar por uma família ou pessoa?
Para responder a essa questão, Elias (2001) visa observar as redes de relações de
interdependências entre os indivíduos utilizando o modelo teórico configuracional. De acordo
com o autor, as configurações são estruturas concretas e coercitivas formadas por tipos de
relações ou conexão entre homens interdependentes e que marca determinado tempo e espaço.
Cada esfera do mundo social, seja ela política, econômica ou religiosa, representa relações
específicas que formam configurações de tipos diversos em torno de funções que as pessoas
desempenham para si e para os outros. A configuração pode ter relativa independência dos
indivíduos singulares, mas não o tem dos indivíduos em geral. Da mesma forma, estes agentes
têm certa autonomia para atuar dentro de um campo de decisões que é construído socialmente,
mas não fora deles. Essa interdependência entre indivíduo e sociedade, sem a sobreposição de
nenhuma das partes, é o que possibilita, para Elias, um equilíbrio social.
Destarte, ao investigar as estratégias e redes de relações de interdependência na corte,
Elias descobriu que a sociedade de corte é formada pelo domínio do rei e este depende da
aceitação dos seus súditos, ou seja, dos outros participantes na corte, para continuar
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governando. Assim, o rei utiliza determinadas estratégias para se manter no poder: a primeira
delas é incentivando conflitos e intrigas entre os nobres de forma que o equilíbrio de poderes
ficasse na sua mão, a segunda era a encenação de todo um ritual de cerimônias e etiquetas
como maneiras de apresentação e de preservação da posição social da realeza perante os
outros.
Já no texto O Processo Civilizador (ELIAS, 1994), o autor discute as ligações entre
as mudanças na estrutura da sociedade e na estrutura do comportamento e da constituição
psíquica a partir da sociogênese dos conceitos de civilização e cultura e da psicogênese de
uma “identidade nacional”. Ele afirma que civilização é como a sociedade ocidental procura
descrever o que lhe constitui o caráter especial e aquilo de que se orgulha como, por exemplo,
o nível da tecnologia, as maneiras, a cultura científica, etc. Porém, esse conceito difere entre
as sociedades ocidentais: Para ingleses e franceses, civilização significa o orgulho pela nação
e o progresso do ocidente como um todo. Ela descreve um processo e está relacionada a
pessoas e a coisas que podem ser intelectuais, morais, artísticas ou políticas. Para os alemães,
isso é cultura (kultur), mas diferente do outro conceito, ela não se reporta a aspectos políticos
e sociais nem a pessoas. Ela reporta a idéia de produtos humanos de estável valor (e não um
processo), nos quais se expressa a individualidade de um povo. Cultura dá ênfase às
diferenças nacionais e à identidade particular de um grupo.
Segundo Elias (1994), a diferença entre os dois conceitos tem sua explicação na
análise histórica dos países. Enquanto na França, civilização está ligada a etiqueta da classe
cortesã e a autoimagem da realeza, a noção de cultura se refere ao crescimento de uma
burguesia genuinamente alemã e tem a função de estabelecer uma identidade particular e
autêntica no país. Isso acontece porque na França se via uma maior uniformidade entre a
burguesia e a aristocracia, sendo os costumes da corte assumidos como características
nacionais. Já na Alemanha, a postura de autoisolamento e de destaque ao específico se
baseava em uma separação nítida entre nobreza e classe média. Como consequência disso,
honestidade e autenticidade passaram a ser consideradas características do povo alemão de
modo que a sociogênese desses dois termos durante o processo histórico transformaram
estruturas de personalidades em uma identidade nacional alemã.
Para elucidar esse processo de sociogênese e de psicogênese, Elias (1994) constrói o
conceito de habitus associando as estruturas de personalidade, ou seja, estruturas psicológicas
individuais, com as estruturas sociais, que são formas criadas por uma grande quantidade de
indivíduos em interdependência. Habitus são, então, disposições psíquicas ligadas à gênese
social que são incorporadas através da participação dos indivíduos nas configurações. É
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quando o homem desenvolve relações de interdependência e passa a desenvolver uma
“segunda natureza” que não é mais puramente biológica. O autor percebe essas duas
estruturas, social e psicológica, como mutações de um mesmo processo de desenvolvimento.
Ao afirmar a direção das transformações sociais e de personalidades, Elias (1994) fala
ainda de um processo complexo e gradual em direção ao controle das emoções e das maneiras
de agir. Ele acredita que a diferenciação e a estabilização de funções sociais aumentam a
dependência entre os indivíduos de forma que surge a necessidade de maior pressão e
vigilância dos agentes para si mesmos e para os outros, produzindo, ao longo do tempo, um
processo de autocontrole consciente e inconsciente. Assim, o autor aponta o desenrolar
gradual de um “processo de pacificação e de domesticação das condutas, dos
comportamentos e dos sentimentos” (ARRIBAS, 2012), denominado por ele de processo
civilizador. Este se refere a uma constelação de coação, na qual a autocoação atua como
mecanismo mais forte. Portanto, para Elias, a civilização não é um estado, mas um processo, e
toda a sociedade só pode ser analisada se considerada em movimento constante.
A problemática teórica dos escritos de Pierre Bourdieu visa superar o tradicional
paradigma sociológico entre teoria subjetivista e objetivista. A primeira parte da perspectiva
na qual o indivíduo é o centro da análise (teorias da ação), enquanto a segunda propõe que
existam relações objetivas que estruturam as práticas sociais (teorias de estrutura). Bourdieu
busca formular uma teoria através da qual seja possível articular dialeticamente o ator social e
a estrutura social. Ele acredita em um tipo de conhecimento que tenha como objeto o sistema
das relações objetivas, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas objetivas e as
disposições estruturadas (cognitivas do sujeito) nas quais essas estruturas se atualizam e que
tendem a reproduzi-las. Nesse sentido, o autor fala em uma interiorização da exterioridade e
em uma exteriorização da interioridade (THIRY-CHERQUES, 2006).
Para relacionar o agente social e a sociedade, Bourdieu (2005) constrói os conceitos de
habitus, campos e capital (BOURDIEU, 2005, 2011). O habitus, conforme o autor, pode ser
definido como um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas (objetivas)
predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes (cognitivas, subjetivas), isto é, agem
como princípio gerador e estruturador de práticas e de representações que podem ser
objetivamente reguladas sem que sejam o produto da obediência a regras ou a um objetivo
consciente, sendo, assim, coletivamente orquestradas. O habitus tende a conformar e orientar
a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais, ele assegura a reprodução
dessas mesmas relações objetivas que o engendram. Por essa razão, cada agente é produtor e
reprodutor do sentido objetivo, suas obras são produtos de um modus operandi do qual ele
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não é produtor e não tem domínio consciente. Ou seja, a interiorização, pelos agentes, dos
valores, normas e princípios sociais assegura a adequação entre as ações do sujeito e a
realidade objetiva da sociedade como um todo (BOURDIEU, 2005, 2011).
Ao funcionar como estrutura estruturante, o habitus pressupõe também um conjunto de
“esquemas generativos” que estão na origem dos esquemas classificatórios que presidem a
apreensão do mundo enquanto conhecimento. Para o autor, o interesse e os gostos podem ser
explicados segundo essa lógica: como os sistemas de classificação são engendrados pelas
condições sociais e como a distribuição de bens materiais e simbólicos se dá de forma
desigual, as escolhas tendem a reproduzir as relações de dominação. O habitus produz a
própria representação social com base nas estruturas hierarquizadas no mundo social sem que
o indivíduo a perceba (BOURDIEU, 2005, 2011).
O habitus pode ser individual ou coletivo, mas no âmbito individual se dá o processo
de interiorização da objetividade que ocorre de forma subjetiva. Já no âmbito coletivo
(habitus de classe ou grupo), a relativa homogeneidade acontece porque os indivíduos
internalizam as representações objetivas conforme as posições sociais de que desfrutam
(estrutura social). Bourdieu (2005, 2011) dá ênfase ao modo de estruturação do habitus
através das instituições de socialização dos agentes, como, por exemplo, um habitus primário
produzido pela família e depois um habitus secundário formado pela escola, de modo que a
história do indivíduo é variante estrutural desse habitus.
A partir do conceito de habitus, podemos entender a teoria da prática social de
Bourdieu (2005, 2011) em função das relações objetivas que regem a estruturação da
sociedade. A prática se define como o produto da relação dialética entre uma situação e um
habitus, isto é, o habitus como enquanto sistema de disposições duráveis é matriz de
percepção, de pensamento e de ação, que se realiza em determinadas condições sociais. A
situação particular que enfrenta um ator social específico se encontra também objetivamente
estruturada e a adequação entre o habitus e essa situação permite fundar uma teoria da prática
que leve em consideração tanto as necessidades dos agentes quanto a objetividade da
sociedade. Assim, o habitus é essa lógica prática que funciona como matriz de disposicional
na qual os agentes atuam de modo inconsciente e pré-reflexivo. As ações não são
racionalmente direcionadas para fins ou objetivos visados, elas têm “razões práticas”
(BOURDIEU, 2005).
Bourdieu (2005, 2011) denomina “campo” esse espaço no qual as posições dos
agentes se encontram a priori fixadas. No campo, ocorre uma luta concorrencial entre os
atores em torno de interesses específicos que caracterizam esse campo. Todo ator age no
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interior de um campo socialmente predeterminado. O campo é um espaço social onde se
manifestam relações de poder. Ele se estrutura a partir da distribuição desigual de um
quantum social que determina a posição que um agente específico ocupa no seu meio.
Bourdieu chama esse quantum de “capital social”. O capital se divide em dois polos:
dominantes e dominados. Os primeiros são aqueles que possuem mais capital social
específico de cada campo e os segundos os que têm pouco ou nenhum capital. A estratégia do
agente no campo é sempre de maximização do capital social, pois, para o autor, toda ação
pressupõe interesses em jogo.
A divisão do campo social em dominantes e dominados implica uma distinção entre o
polo dominante que pretende conservar as posições de poder vigentes e a distribuição de
capital (ortodoxia) e o polo dominado que tende a desacreditar os detentores reais de capital
(heterodoxia). Desse modo, os dominantes devem criar mecanismos e instituições para manter
sua posição e seu estatuto de dominação. Através desses procedimentos (cerimônicas e
rituais), pode-se instituir um processo de legitimação dos bens simbólicos, pois aqueles que
consomem esses bens distribuídos no mercado ocupam posições sociais determinadas em
função do capital econômico e cultural de que dispõem. Assim, as relações de poder no
interior do campo reproduzem outras relações externas, como, por exemplo, relações de classe
(BOURDIEU, 2005, 2011).
Dessa forma, as diferenças de classe se objetivam nas disposições que possuem os
indivíduos, no habitus, em consumir as obras consideradas legítimas. É por meio do gosto que
se manifesta um tipo de dominação suave, na qual se apresentam encobertas as relações de
poder que regem os agentes e a ordem da sociedade global. Essas relações entre os homens
reproduzem o sistema objetivo de dominação interiorizado enquanto subjetividade. A
sociedade é apreendida como estratificação do poder. O autor denomina esse tipo de
dominação de violência simbólica e é um mecanismo naturalizado de reprodução da ordem
social (BOURDIEU, 2005, 2011).
Por último, tendo em vista o que foi discutido ao longo do texto, é possível traçar
algumas intercessões entre Goffman, Elias e Bourdieu retomando algumas de suas
categorias analíticas. Os três autores compreendem o espaço social como uma rede de
relações, e esta, por sua vez, é expressa, em suas teorias, por meio dos conceitos de interação
face a face, configurações e campo social, respectivamente.
Goffman acredita que as pessoas vivem em um mundo de encontros sociais. Pode-se
supor que, para esse autor, uma rede de relações refere-se a um conjunto de interações face a
face, isto é, contatos mediados por outros participantes, que é o objeto central de sua análise.
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Na sociedade, a estrutura das interações é ordenada através de um sistema de práticas e
normas de conduta que é corporificado pelo indivíduo por meio dos rituais. Essas convenções,
apreendidas externamente, funcionam como guias da ação dos indivíduos, pois existe uma
relação entre a estrutura do eu e a estrutura da interação. Assim, o indivíduo para participar
das interações deve escolher submeter-se a um conjunto particular de regras estabelecidas
socialmente.
Já Elias denomina configurações como uma rede de relações de indivíduos
interdependentes que marca determinado tempo e espaço. Para ele, a sociedade é formada por
um conjunto de indivíduos interdependentes que não são externos a ela, mas que agem dentro
de um leque de possibilidades determinado socialmente. Nesse sentido, pode-se dizer que, na
obra do autor, o processo de sociogênese está historicamente relacionado a um processo de
psicogênese.
Em Bourdieu, a rede de relações sociais funciona a partir de um campo social que é
um espaço no qual as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O campo é um
espaço social onde se manifestam relações de poder, no qual ocorre uma luta concorrencial
entre os atores em torno de interesses específicos que caracterizam esse campo. Ele se
estrutura a partir da distribuição desigual do capital social que determina a posição que um
agente específico ocupa no seu meio. O campo se divide em dois polos: dominantes, aqueles
que são detentores de capital, e dominados, os que têm pouco ou nenhum capital. A estratégia
do agente no campo é sempre de maximização do capital social.
Tendo em vista essas três abordagens, pode-se afirmar que Goffman, Elias e Bourdieu
partem de uma teoria relacional, seja por meio de uma interpretação microssociológica das
aparências nos encontros, de uma investigação, ao mesmo tempo, macro dos processos
históricos e micro dos comportamentos ou da análise das relações sociais pela luta por poder,
respectivamente. Os três apoiam-se em um princípio de primazia das relações, no qual os
elementos se estruturam na relação social e por isso esta deve ser tida como objeto central de
estudo da sociologia. O estruturalismo francês é uma das principais tradições que enfatiza
essa questão sobre e contra categorias e substâncias.
Arribas (2012) aponta para alguns elementos em comum entre esses autores que
representam avanços para a compreensão sociológica. O primeiro é que ao rejeitarem uma
explicação essencializada do mundo social, suas proposições enfatizam “a face latejante da
dinâmica societária: sentimentos, emoções, paixões dos homens reais, levando em conta o
movimento, a fluidez e a versatilidade das vivências” (ARRIBAS, 2012, p. 65). Para a autora,
isso só foi possível porque os três sociólogos investiram em um jogo de escalas macro e
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microssociológicos sobre perspectivas diversas analisando ora as biografias, ora a história, ora
o sentido das ações, das emoções e dos gestos, ora os sistemas de valores, etc.
Mas o ponto principal e de maior relevância para as ciências sociais, acredito, foi a
originalidade do pensamento que consiste em refutar toda a posição que opõe indivíduo e
sociedade. A autora afirma que cada autor contribuiu para mostrar que, apesar das diferenças
de suas abordagens, sociedade e indivíduo são aspectos decompostos da mesma realidade e
não podem ser discutidos separadamente (ARRIBAS, 2012). Relembrando que Goffman se
referia a uma relação entre a estrutura do eu e a estrutura da interação, Elias anunciava os
processos de sociogênese e de psicogênese historicamente associados e Bourdieu explicava a
ação dos indivíduos através de um movimento de interiorização da exterioridade e
exteriorização da interioridade.
Outra categorização interessante para interpretar o pensamento desses autores,
principalmente em Elias e Bourdieu, é o conceito de habitus como constructo que visa superar
uma dicotomia reducionista da realidade social. Conforme Bourdieu, o habitus é um sistema
de disposições duráveis, estruturas estruturadas que funcionam como estruturas estruturantes,
isto é, agem como princípio gerador e estruturador de práticas e de representações que podem
ser objetivamente reguladas sem que sejam o produto da obediência a regras ou a um objetivo
consciente, sendo, assim, coletivamente orquestradas. Em Elias, habitus são disposições
psíquicas ligadas à gênese social que são incorporadas através da participação dos indivíduos
nas configurações. Ambos os autores, utilizam a noção de habitus para entender as ações dos
indivíduos na sociedade a partir da associação de estruturas de personalidade com estruturas
sociais.
A partir do conceito de habitus, é possível observar algumas divergências na análise
dos três autores. Enquanto, em Bourdieu, o habitus é incorporado pelo agente ao longo de sua
trajetória no interior de um ou mais campos do qual faz parte, internalizando suas regras
específicas, em Elias, o habitus é incorporado a partir da participação do indivíduo nas
configurações (LANDINI, 2007). Ambos os autores assumem uma perspectiva macro e
microssociológica da realidade, porém Bourdieu está mais atento às relações de poder e às
disputa no interior do campo ao passo que Elias busca compreender os processos de
mudanças sociais na história e nas formas de conduta. Em síntese, a noção de Elias é mais
abstrata e demonstra a dimensão cultural e interdependente das relações. Ela aponta para um
modelo de transformação. Para Bourdieu, o habitus está inscrito nos sistemas de controle
social por meio da distribuição desigual de capital simbólico, como princípio gerador ele
reproduz as relações de poder e hierarquia presentes na ordem social. Sendo assim, ele é um
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modelo de reprodução e integração das normas através das práticas sociais, mesmo que dentro
destas os indivíduos possam agir dentro de um campo de possibilidades.
Goffman não usa o conceito de habitus, mas interpreta as ações dos indivíduos nas
interações face a face orientadas por um conjunto de regras de conduta determinadas
socialmente. Ele pressupõe uma relação entre a estrutura do eu e a estrutura da interação, mas
não explica como funciona essa correlação indivíduo-sociedade. Ao dar ênfase a uma análise
predominantemente microssociológica, Goffman acaba negligenciando os processos
macrossociais, tidos muitas vezes como ahistóricos, que influenciam as práticas dos agentes.
Ele universaliza um “habitus”, no qual todos os indivíduos tem interesse na manutenção da
fachada social, sem associar as diferentes posições desses atores no mundo social. Assim,
enquanto Goffman privilegia a conduta comunicativa dos agentes sociais como sua base
empírica, os outros autores não deixam de enfatizar a importância de uma análise
macrossociológica. E enquanto para Goffman o sentido último das ações humanas deve ser
retirado das interações sociais, para os outros autores, deve ser retirado à luz da história, da
estrutura e da lógica de funcionamento dos espaços sociais em que estas relações são
estabelecidas (LOPES, 2009).
Finalmente, pensando a partir do debate entre os três sociólogos ao longo do texto, é
possível apontar a para a importância da reflexão teórica frente aos desafios da pesquisa
empírica sistemática.
Como sugeriu Malinowski, “não é suficiente, que o etnógrafo coloque suas redes no
local certo e fique à espera que a caça caia nelas. Ele precisa ser um caçador ativo e atento
(...), quanto maior for o número de problemas que leve consigo para o trabalho de campo,
quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias aos fatos e a decidir quão relevantes eles
são às suas teorias, tanto mais estará bem equipado para o seu trabalho de pesquisa”
(MALINOWSKI, 1978, p. 22). Na metáfora do autor, a reflexão teórica é esse conjunto de
equipamentos e ferramentas do qual o etnógrafo se utiliza para levantar problemáticas, moldar
suas ideias à realidade que encontra e decidir o que é pertinente observar com mais afinco.
Eu acredito que as teorias são generalizações e abstrações que utilizamos para
interpretar os fenômenos a nossa volta. Elas nos ajudam a analisar e compreender os nossos
dados de campo e assim suscitar novos questionamentos e tensões. A teoria nos permite
pensar a pesquisa antes mesmo da coleta de dados, em quais métodos são mais adequados
para se obter o material de campo e quais técnicas podem ser mais bem aproveitadas. Nisso
consiste, para mim, a sua importância, como ferramenta teórica essencial para orientar o
pesquisador no seu trabalho empírico, isto é, para nos tornar um “caçador ativo e atento”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRIBAS, Célia da Graça. Regionalizando o mundo social: configurações, campos e
interações face a face. Plural: Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
USP, São Paulo, v. 19, n. 2, p.51-68, 2012. Disponível em:
<http://revistas.usp.br/plural/article/view/74435/78056>. Acesso em: 30 nov. 2014.
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. Esboço de uma teoria da prática: procedido de três estudos sobre etnologia cabila.
In: Ortiz, R. (org) Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
______. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. 7. ed. Campinas: Papirus, 2005.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
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______. O Processo Civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
______. O processo civilizador. Vol. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994A.
GOFFMAN, Erving. Ritual de Interação: Ensaios sobre o comportamento face a face.
Petrópolis: Vozes, 2011.
_______. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.
LANDINI, Tatiana Savoia. Jogos Habituais: Sobre a noção de habitus em Pierre Bourdieu e
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Disponível em: < http://www.uel.br/grupo-
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LOPES, Felipe Tavares Paes. Bourdieu e Goffman: Um ensaio sobre os pontos comuns e as
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Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p.389-407, 2009.
MALINOWSKI, Bronislaw K. Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do
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THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de
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<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/view/6803/5385>. Acesso em: 28
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