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TRABALHO E CONDIÇÕES DE VIDA NA ZONA DA MATA NORTE DE
PERNAMBUCO (NAZARÉ DA MATA – 1964 A 1979)
Joana Maria Lucena de Araújo
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História
Universidade Federal de Pernambuco
1. Introdução
Este trabalho tem como proposta apresentar um estudo sobre o trabalho e
cotidiano dos trabalhadores rurais da Zona da Mata de Pernambuco1, em especial, do
município de Nazaré da Mata2. Privilegiamos esse espaço por conta do rico material de
estudos proporcionados pela Junta de Conciliação e Julgamento (JCJ) do município.
Criadas ainda no governo Vargas, em 1932, mas implementadas em maio de
1941, as Juntas de Conciliação tinham por objetivo resolver litígios trabalhistas
individuais e funcionar como primeira instância da Justiça do Trabalho3. Depois da
1 Segundo classificação do IBGE, a Zona da Mata é uma das cinco mesorregiões do estado de
Pernambuco e é formada pela união de 43 municípios. Estendendo-se por uma área de 8.738
km², faz fronteira ao norte com a Paraíba, ao sul com Alagoas e ao leste com a Região
Metropolitana do Recife tendo o Agreste a oeste. É servida pelas rodovias federais BR-232, BR-
101 e BR-408. Segundo o Censo Populacional de 2013, a região possui população estimada de
1.193.661 habitantes.
O relevo é ondulado e argiloso, com alturas variando do litoral ao interior. Com economia
predominantemente baseada na plantação e manufatura da cana-de-açúcar, as características do
relevo da região são fundamentais para o modo como são desenvolvidas as atividades
econômicas e das relações de trabalho neste espaço. 2 O município de Nazaré da Mata está localizado na Zona da Mata pernambucana, mais
especificamente, segundo divisão oficial, na Mata Setentrional (ou norte).
Segundo as informações disponibilizadas no site do município, a cidade teve início no século
XVIII, numa propriedade onde foi edificada uma capela oferecida a Nossa Senhora da
Conceição. Em homenagem a santa, a localidade passou a chamar-se Nossa Senhora da
Conceição de Nazaré. A Vila foi elevada à categoria de cidade em 11 de junho de 1850, através
da Lei número 258. Atualmente Nazaré da Mata é amplamente conhecido como a terra do
Maracatu e caboclos de lança. As agremiações advindas da cidade fazem muito sucesso no
carnaval do Recife e atraem muitos turistas. 3 As Juntas de Conciliação e Julgamento, os Conselhos Regionais do Trabalho e o Conselho
Nacional do Trabalho compunham as três instancias da Justiça do Trabalho. Depois da edição
do Decreto-Lei nº 9.797, de 09 de setembro de 1946, a Justiça do Trabalho passou a compor o
Poder Judiciário Federal, os Conselhos Regionais do Trabalho se transformaram em Regionais
2
aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural em 1963, as JCJ’s foram instaladas
gradualmente no interior do país a fim de acolher as demandas dos que ali viviam,
especialmente, trabalhadores rurais.
É possível perceber, a partir da leitura dos processos das Juntas de Conciliação,
que houve uma grande aceitação por parte dos trabalhadores do campo de Pernambuco
do âmbito da Justiça do Trabalho como forma de reivindicação. Com a ampliação e
interiorização das Juntas a alternativa jurídica ficou mais acessível a essa camada da
população. A promulgação do Estatuto de Trabalhador Rural (ETR) em 1963
estabeleceu uma série de direitos aos trabalhadores do campo que antes só eram
acessíveis aos trabalhadores urbanos, tais como 13º salário, férias e aviso prévio,
legitimando suas reivindicações. O ETR forneceu bases legais fundamentais para a
atuação das JCJ’s no interior do estado.
A introdução da Justiça do Trabalho no campo teve grande impacto na forma
como se configuram as relações de trabalho nesse espaço. Segundo Christine Dabat,
[...] o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) permitiu a grandes massas de
empregados uma existência legal enquanto assalariados, no sentido de
garantir regras às relações de trabalho e propor uma solução legal aos
conflitos, em harmonia com os princípios estabelecidos pelo aparato legal
varguista (DABAT, 2008).
Os processos trabalhistas provenientes da Junta de Conciliação e Julgamento de
Nazaré da Mata foram escolhidos porque possuem uma gama de situações que montam
um rico panorama sobre as relações de trabalho no campo. Mais de 90% das
reclamações trabalhistas registradas envolvem trabalhadores rurais. Também por se
tratar de um volume documental considerável (são mais de 20.000 processos que vão de
1963 a 1985). Ainda se destaca a presença, nos municípios abrangidos por esta JCJ, de
grandes empresas do setor sucroalcooleiro como a Pessoa de Melo Indústria e Comércio
S/A, proprietária da Usina Aliança.
Segundo Christinne Dabat e Tomas Rogers, o uso dos processos trabalhistas
como fonte para a História permite ao pesquisador analisar os desdobramentos de
Tribunais do Trabalho e o Conselho Nacional do Trabalho passou a ser Tribunal Superior do
Trabalho.
3
acontecimentos marcantes, como o regime civil-militar e a redemocratização, sob uma
perspectiva inovadora: “Dados destes processos permitem aos estudiosos medir e
comparar as demandas dos trabalhadores e procurar desvendar suas condições enquanto
assalariados, ao juntar informações sobre salário, jornada de trabalho, estabilidade no
emprego e mobilidade, assim como outros fatores (DABAT, ROGERS, 2014 p. 331)”.
A mão-de-obra no setor sucroalcoleiro de Pernambuco no século XXI.
Para construir essa parte do texto, tomei como base duas pesquisas realizadas
por diferentes instituições brasileiras. A primeira é um estudo da Fundação Joaquim
Nabuco (FUNDAJ), intitulado “Instantâneos da realidade social 2: desemprego sazonal
na atividade açucareira da zona da mata pernambucana: relatório de pesquisa”,
publicado em 20054. O relatório tinha por objetivo analisar o comportamento dos
trabalhadores desempregados durante o período de entressafra na Zona da Mata de
Pernambuco. O segundo texto é uma compilação de dados realizada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) intitulado “Produção agrícola municipal”
que comenta os dados sobre a produção agrícola de todos os municípios do país
divididos por região publicado em 2007.
A economia da Zona da Mata de Pernambuco é baseada, em sua maior parte, na
plantação e manufatura de cana-de-açúcar. A depender dos rumos da economia a
produção é direcionada para a fabricação de etanol ou de açúcar e seus derivados.
Segundo os relatórios citados, a produção de cana na Zona da Mata de
Pernambuco vem apresentando instabilidade ou estagnação desde o início a década de
1990. Mesmo com uma breve recuperação a partir de 2001, o volume produzido no ano
de 2005 ainda não alcançou o patamar do início dos anos 1990.
Além desta dinâmica de queda na produção, a atividade canavieira, assim como
toda atividade agrícola, passa por períodos de sazonalidade que produzem efeitos
4 Os resultados apresentados nesse relatório também serviram como bases para diversos estudos
de pesquisadores do Brasil e da própria FUNDAJ entre eles destaca-se o texto
“Empregabilidade do cortador de cana-de-açúcar da zona da Mata pernambucana no período de
entressafra” dos pesquisadores Luís Henrique Romani de Campos, Isabel Raposo e André Maia.
Publicado na Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 38, nº 3, jul-set. 2007.
4
diretos sobre os trabalhadores locais. Segundo dados da FUNDAJ, na Zona da Mata de
Pernambuco um contingente de 90 a 100 mil trabalhadores é empregado nesta atividade
e cerca de 2/3 desses são dispensados na entressafra (FUNDAJ, 2007).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informa que em 2004, o
PIB per capita desta região foi menor do que o observado em todo o estado de
Pernambuco. Os dados do mesmo Censo sobre a esperança de vida ao nascer também
ilustram que a população da Zona da Mata não alcança idades mais avançadas quando
comparadas ao resto do estado (IBGE, 2007).
No que diz respeito à educação, os indicadores demonstram que a força de
trabalho da região não possui alto grau de escolaridade, já que se especializou quase que
exclusivamente para o trabalho rural. Em 2000, cerca de 21% da população da Zona da
Mata tinha menos de um ano de estudo, enquanto que, em Pernambuco, esse número era
de 16%. A grande maioria dos habitantes da Zona da Mata (80%) tem apenas sete anos
ou menos de estudo (FUNDAJ, 2007).
O grau de escolaridade dos cortadores de cana entrevistados era relativamente
mais baixo do que o da população da Zona da Mata como um todo. A maioria (46,60%)
só havia estudado no máximo até a 4ª série. O percentual de analfabetos entre os
cortadores, assinando ou não o nome, é de 30,70%, valor relativamente elevado quando
comparado ao percentual de pessoas sem instrução ou com menos de um ano de estudo
da população de toda a Zona da Mata, que é de 21% (FUNDAJ, 2007).
No âmbito do deslocamento populacional, os dados do IGBE mostram que a
atividade canavieira na Mata pernambucana não atrai, de maneira expressiva,
contingentes populacionais para a região. Entre os anos de 1970 e 2000, a Zona da Mata
apresentou um crescimento populacional inferior ao das demais mesorregiões do estado
(IBGE, 2007). Ou seja, a atividade agrícola, especialmente voltada para a produção de
cana, não está atraindo mão-de-obra para a região nem tampouco melhorando os
indicadores de qualidade de vida da população.
Em 2005, ano em que os pesquisadores da FUNDAJ realizaram uma série de
entrevistas com trabalhadores de diversos municípios da Zona da Mata a fim de
mensurar como era a dinâmica do trabalho nessa região, eles chegaram a conclusão que
5
em média, os cortadores entrevistados trabalham na atividade do corte há cerca de 15
anos. Considerando que a idade média é de 34 anos, isto implica que, desde os 19 anos,
os entrevistados se ocupam desta atividade. A jornada média de trabalho é de 9,2 horas
por dia e, neste período, o trabalhador corta cerca de 4,3 toneladas de cana. Por esta
quantidade, recebe aproximadamente R$434,00 (quatrocentos e trinta e quatro reais)
líquidos por mês (FUNDAJ, 2007).
A grande maioria dos entrevistados tem o corte da cana como sua única
atividade de trabalho. Durante a época da colheita, apenas 4,5% desses exercem uma
atividade secundária para complementar a renda. Se o período de safra durar seis meses,
um trabalhador que não tem outra fonte de renda a não ser o corte da cana, teria uma
renda mensal de R$217,00 (duzentos e dezessete reais). De maneira geral, seja na safra
ou na entressafra, os entrevistados tinham na atividade canavieira sua principal
ocupação. Cerca de 74% deles nunca conseguiram outro trabalho assalariado além do
corte da cana. 92% têm sua certeira assinada e 88% contribuem para a previdência
social (FUNDAJ, 2007).
Os pesquisadores da FUNDAJ chamam a atenção para a importância dos
benefícios concedidos pelo governo na vida desses trabalhadores. Aproximadamente
45% dos entrevistados recebem algum tipo de benefício com valor médio de R$67,37
ao mês. O recebimento de pensão por parte de membros da família e o cultivo de outras
culturas também compõem a renda mensal dessas famílias. Cerca de 5% dos
entrevistados recebem pensões ou aposentadorias e 21% têm acesso à área de plantio.
Eles cultivam mais frequentemente macaxeira, feijão, milho, inhame, mandioca e
banana. A maioria dessas culturas é destinada ao consumo de subsistência, mas, quando
há excedente, esse é direcionado para venda (FUNDAJ, 2007).
Aproximadamente 60% dos trabalhadores possuíam domicilio próprio, 28%
habitavam em casas cedidas e 11% em alugadas, que custavam, em média, R$62,00 por
mês. Apesar de haver uma predominância de domicílios na zona rural (55,9%) um
percentual significativo dos entrevistados (44,1%), habitavam em áreas urbanas (IBGE,
2007).
6
Ao final do período da colheita, cerca de 94% dos entrevistados são dispensados
pela usina/engenho. Os que permanecem, são considerados empregados “fixos”, já que
trabalham, em média, 5,5 meses, tempo que coincide com a duração da entressafra.
Dentre os que eram dispensados, a grande maioria, 53%, não consegue trabalho. Nessa
época da entressafra, a renda média familiar cai de R$622,28 (no período de corte) para
R$294,74 (FUNDAJ, 2007). E as principais fontes de renda advêm do trabalho rural,
programas governamentais, ajuda financeira de parentes e amigos e aposentadorias.
Ao compararmos os estudos da FUNDAJ e do IBGE que dizem respeito ao
inicio do século XXI e de pesquisadores que estudaram a região na segunda metade do
século XX, percebemos o desenho de uma situação que persiste, mas com novas
configurações.
A capacidade de atração e retenção de mão-de-obra do setor sucroalcoleiro é
alvo de debates constantes. Desde a década de 1980 pesquisadores alertam para a queda
da criação de empregos na Zona da Mata. Os economistas José Ferreira Irmão e Jony
Sampaio afirmam que a “participação do setor agrícola no emprego total vem
declinando de uma década para outra” (IRMÃO E SAMPAIO, 1984). Ainda na década
de 1980 os autores participaram de um estudo no qual comparavam os principais
sistemas de produção do Nordeste a fim de levantar dados sobre a estrutura agrária,
produção e emprego rural na região. No texto aqui citado, os autores reuniram os
principais resultados, no tocante a parte rural, da pesquisa intitulada “Diagnósticos e
proposições com vista a uma política de emprego para o Nordeste”, realizada pelo
PIMES/UFPE em convênio com Ministério do Trabalho.
Como ferramenta de análise, Irmão e Sampaio optaram por dividir o Nordeste
em regiões agrárias, em função de seus sistemas de produção “a fim de compreender a
dinâmica do processo de desenvolvimento da agropecuária regional” (p. 43). Na Zona
da Mata do Nordeste, os pesquisadores destacam a predominância de quatro sistemas de
produção: canavieiro, cacaueiro, arrozeiro e coco/policultura.
Eles chegaram à conclusão de que em áreas nas quais a expansão industrial e o
aumento do setor de serviços vêm ocorrendo de forma mais rápida e dinâmica, a
participação do emprego rural nos indicadores de emprego total é menor, e continua em
7
declínio. Entretanto, os dados mostram que o emprego rural cresce mais rapidamente
nas áreas de fronteira ou de ocupação mais recente, onde há maior disponibilidade de
terras, e de forma mais moderada nas regiões de ocupação mais antiga (IRMÃO E
SAMPAIO, 1984).
O sistema canavieiro também apresenta concentração de terra mais acentuada,
comparado a outros sistemas. Os estabelecimentos com área superior a 200 hectares
aproveitam quase 73% das terras disponíveis. Para os autores, a monocultura da cana-
de-açúcar, não só impõe uma maior concentração na utilização da terra, mas vem
recriando reservas externas de mão-de-obra, especialmente o trabalho familiar que
representa 57% da mão-de-obra total empregada nesse sistema (IRMÃO E SAMPAIO,
1984).
O estudo apresentado nos ajuda a observar que mesmo com a criação de vagas
de trabalho em áreas mais tradicionais sofrendo quedas sucessivas, como é o caso da
Zona da Mata de Pernambuco, por exemplo, há um grande contingente de mão-de-obra
disponível muito dependente do setor. Como não possuem outras qualificações, esses
trabalhadores ficam impossibilitados de procurar emprego em outras áreas. Uma parcela
da população rural vê como alternativa a migração, se dirigindo para as novas regiões
de fronteira, como citado por Irmão e Sampaio. A maioria, resiste, vivendo de suas
lavouras de subsistência ou em sub-empregos informais. É nesse âmbito que se insere a
questão do sistema de “moradas” que será discutido mais detidamente no próximo
tópico.
2. As relações de Trabalho na Zona da Mata Norte de Pernambuco: Considerações
sobre o sistema de morada.
Minha pesquisa trata das condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais
da Zona da Mata Norte de Pernambuco, em especial do município de Nazaré da Mata,
entre os anos 1964 e 1979. Contudo, analisar os dados fornecidos pela FUNDAJ e
IBGE sobre o mercado de trabalho no setor sucroalcoleiro no início do século XXI é
fundamental para podermos perceber as mudanças e permanências nas relações de
trabalho nesse espaço.
8
O primeiro ponto que nos chama a atenção é a sazonalidade dos postos de
trabalho na plantação de cana-de-açúcar. Ter trabalho disponível apenas em média 5
meses por ano afeta sobremaneira a vida desses homens e mulheres. Como observado
tanto na década de 1980 pelos economistas da UFPE, quanto nos anos 2000 pelos
pesquisadores da FUNDAJ e IBGE, o setor sucroalcoleiro se esforça para manter um
grande contingente de mão-de-obra disponível para atuar nos momentos de safra. Com
o término do período de colheita e tratamento da cana-de-açúcar a maior parte desses
trabalhadores é dispensada, apenas uma pequena parcela continua a trabalhar nas Usinas
e Engenhos.
Entretanto, é preciso ter cuidado com a análise de dados que mostram resultados
de maneira mais generalizada. O trabalho com fontes documentais antes não
extensamente exploradas, tais como os processos trabalhistas das Juntas de Conciliação
e Julgamento permitem novos caminhos de análise de períodos históricos importantes
do Brasil, e também observar as diferenças apresentadas por cada região estudada. Isso
porque a Zona da Mata é uma vasta região do Brasil que apresenta um espaço
multicultural e heterogêneo, que absorve mudanças e influencias de forma diferenciada.
Para muitos pesquisadores o chamado “período da morada”5 começou logo após
o fim da escravidão e se estendeu até a primeira metade do século XX. Obras
importantes como a da historiadora Christine Dabat (DABAT, 2003), que estudaram a
mão-de-obra empregada nos canaviais de Pernambuco, colocam os anos 50 como data
final do período da morada, descrevendo como os trabalhadores rurais e suas famílias,
vão sendo expulsos de suas casas nos engenhos e se mudando para as “pontas de rua”,
em um lento processo de urbanização dos pequenos municípios que compõem a região
(DABAT, 2003). Entretanto, o estudo de Nazaré da Mata, através dos processos
trabalhistas impetrados nesse município, demonstram que esse processo está longe de
ser homogêneo. Encontramos nos processos, trabalhadores que ainda residem no
Engenho até o ano de 1980, demonstrando que cada região apresenta diferentes formas
de desenvolvimento.
5 Ficou conhecido como “morada” a época em que grande parte dos trabalhadores rurais morava
em casas pertencentes aos engenhos ou usinas para os quais prestavam serviço.
9
Depois de analisar as várias entrevistas que fez com trabalhadores rurais que
passaram pela experiência da morada Dabat afirma categoricamente que os
entrevistados
“[...] não manifestam saudade. Ao contrário, eles descrevem em
detalhes um sistema de exploração perfeitamente orquestrado que lhes
extorquia suas forças vivas, geração após geração, mantendo-os na
mais profunda pobreza possível. Eles reivindicam um futuro diferente
para seus filhos e netos, destacando entre as liberdades às quais
aspiram, ter terra sua” (DABAT, 2003).
A historiadora Clarisse Pereira em dissertação intitulada “A precarização do
trabalho e as táticas dos trabalhadores rurais na luta pelos direitos trabalhistas na Justiça
do Trabalho” afirma que o regime de morada persiste na segunda metade do século XX
em novas configurações. São dois processos diferentes aquele implantado no século
XIX e que se apresenta ainda em finais do século XX. “Apesar dos dois processos
serem descritos pelo mesmo nome, eles representam situações e relações distintas”
(PEREIRA, 2017). São novas configurações, novas personagens, relações de trabalho
resignificadas. Essas mudanças tem como força motriz diversos acontecimentos, tais
como a mudança nas relações de compadrio e trabalho, a promulgação e implementação
do Estatuto do Trabalhador Rural e a popularização e interiorização da Justiça do
Trabalho.
Entretanto, é preciso salientar que as mudanças no regime de morada não
significam melhoria efetiva nas condições de vida e trabalho da população rural
(PEREIRA, 2017).
As pesquisas do IBGE e FUNDAJ reforçam que o sistema de exploração
continua, apresentando novas nuances. Mesmo que a diminuição significativa dos
trabalhadores que moram em áreas pertencentes aos engenhos e usinas tenha significado
mais independência em relação a seus empregadores, os trabalhadores rurais da Zona da
Mata pernambucana ainda vivem uma condição precária por outros fatores. Um deles é
o fato de que as grandes propriedades agropecuárias ainda controlam, em grande parte,
a oferta de trabalho na região. No período de entressafra, quando não são necessários,
10
estes ficam sem nenhuma fonte de renda disponível a não ser os benefícios do governo.
Sua falta de qualificação, os impedindo de se dedicar a outra atividade.
Celso Furtado em “Formação Econômica do Brasil” afirma que a hegemonia da
atividade canavieira nesta região se dá, em grande parte, por conta do não
desenvolvimento de um mercado interno que estimulasse a demanda por outros tipos de
bens consequentemente influenciando na formação de uma mão-de-obra mais
diversificada capaz de ser alocada em outros tipos de atividade (FURTADO, 1987).
Ainda segundo o autor, essa falta de diversificação, aliada a outros fatores, criou um
ambiente propício para a concentração fundiária e de renda. Enquanto um pequeno
grupo de pessoas monopoliza o acesso a terra e os meios de produção, a maioria da
população apresenta baixos indicadores sociais e econômicos (FURTADO, 1987).
Analisando os processos da JCJ-Nazaré da Mata nos deparamos com um
material bastante rico para analisar o sistema de morada e suas nuances. Isso porque um
significativo número de trabalhadores que recorrem a Justiça do Trabalho ainda reside
nos Engenhos e Usinas para os quais prestam serviço. Esse fator é fundamental em uma
série de aspectos que afetam a vida dessas pessoas.
O funcionário que vive no engenho/usina não costuma ser dispensado no período
de entressafra. Geralmente ele é aproveitado para outras tarefas, seja na manutenção da
propriedade, no cuidado com os animais ou na plantação da cana. Ele também pode se
dedicar a sua lavoura de subsistência e vender o excedente da plantação, se houver.
Entretanto, se por um lado morar no Engenho garante trabalho o ano todo e acesso a um
pedaço de terra para ajudar na produção de alimentos, também reforça a relação de forte
dependência entre patrão e empregado, dependência essa que abre espaço para abusos.
Isso porque além de depender do patrão para ter onde morar, este também é o
responsável por lhe “arranjar serviço”. As casas e sítios ocupados também são utilizados
com freqüência como instrumento de barganha por parte dos proprietários, seja como
retaliação por conta de alguma “ofensa” contra a empresa, como uma reclamação
trabalhista, por exemplo, ou como recompensa para os funcionários mais fiéis.
11
2. Condições de vida e trabalho na Zona da Mata Norte de Pernambuco: um
estudo de caso.
Um caso que pode ser utilizado para análise é o descrito no processo 223/77
proveniente da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. O autor da ação é
Luís Delmiro da Silva, brasileiro, solteiro, trabalhador rural, afiliado ao Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Nazaré da Mata, residente e domiciliado no Engenho Cumbé.
O trabalhador moveu uma reclamação trabalhista contra Ricardo de Moraes Cavalcanti,
proprietário do engenho supracitado, em setembro de 1977. Ele afirma que começou a
trabalhar na propriedade ainda menor de idade, com 13 anos, e apesar de menor, sempre
exerceu todas as tarefas exigidas por seus patrões. O reclamante acusa o dono de
engenho de demissão indireta, afirmando que esse parou de lhe pagar vários direitos
importantes tais como férias e 13º salário.
A primeira audiência de instrução e julgamento foi realizada em 11 de outubro
de 1977, presidida pela Juíza presidente da JCJ-Nazaré da Mata, Ana Maria Schuler,
com a presença de dois vogais. O reclamado, acompanhado de seu advogado, contesta
as acusações descritas na petição inicial. Afirma que o reclamante somente foi admitido
em 3 de janeiro de 1977, em conformidade com as anotações existentes em sua carteira
de trabalho e acusa o ex-funcionário de abandono de emprego. Diante da divergência de
versões, a juíza marca nova audiência na qual as partes deverão apresentar provas
escritas e testemunhais.
Depois de ouvidas as testemunhas e as provas analisadas, em 17 de novembro
de 1977, a JCJ decide, por unanimidade, julgar procedente em parte a reclamação,
condenando o requerido ao pagamento de parte dos direitos pleiteados. É importante
salientar que a Junta considerou a data inicial do contrato aquela informada pelo
reclamante, baseando-se no relato de testemunhas que, quando apresentadas a Justiça,
alegaram que Luís Delmiro acompanhando o pai em suas tarefas, já labutava no
engenho desde tenra idade.
Todavia, a reclamação não se encerra com a proclamação da sentença. Em 25 de
novembro de 1977, o advogado José Gonçalves Moisés, designado pelo Sindicato para
12
representar o reclamante, encaminhou Recurso Ordinário ao Tribunal Regional do
Trabalho da 6ª Região solicitando a reforma da sentença. Entre os argumentos
apresentados, o advogado afirma que, depois de proclamada a decisão da Junta, o
representante legal do reclamado dirigiu-se a residência de Luís Delmiro, invadiu sua
casa e quebrou todos os bens ali encontrados, além de vandalizar o teto. A invasão
motivou uma queixa na delegacia de polícia que está juntada aos autos. Também são
anexadas fotografias da propriedade e do estrago realizado, especialmente, a porta
arrobada e o teto destruído.
Essas fotografias nos fornecem outra forma de apreender como se davam as
condições de vida daqueles que moravam nos engenhos. Por mais que tenhamos
diversos relatos tanto nos processos trabalhistas como na bibliografia que trata do
assunto, ver essa parte da realidade representada em imagens nos eleva a outro patamar
de compreensão.
Na primeira fotografia, podemos ver uma casa feita de tijolos rústicos e teto de
telhas de barro. O telhado apresenta diversas falhas e aberturas. A casa é pequena,
precária. Tem duas janelas e piso de terra batida. O terreno ao redor da propriedade, a
partir do ângulo em que a foto foi tirada, é tomado por vegetação dando uma sensação
de isolamento.
13
Na segunda fotografia aparece a porta de madeira destruída e mais uma parte do
teto danificado.
14
O caso de Luís Delmiro não é raro entre os processos trabalhistas da JCJ de
Nazaré da Mata. É recorrente encontrarmos proprietários ou administradores de
Engenho que em retaliação a uma ação trabalhista destroem ou até mesmo tomam as
casas dos trabalhadores. Muitas vezes danos feitos a lavouras ou a casas, são colocados
como objeto de reclamações trabalhistas a fim de conseguir indenização pelo trabalho
perdido. Em alguns casos, o trabalhador consegue reparação pelos transtornos sofridos,
mas, na maioria das vezes, a Justiça do Trabalho pouco pode fazer, pois as propriedades
pertencem às empresas.
Ao contrário do que acontece em muitos casos no ambiente urbano, em especial
em processos trabalhistas que envolvem fábricas e a disputa pelas propriedades
pertencentes a essas empresas (as chamadas vilas operárias) no ambiente rural, é muito
raro que o trabalhador reclamante consiga na Justiça a propriedade da casa em que
15
vive6. Independente do tempo de ocupação, as ações raramente terminam com o ganho
da casa ou até mesmo de um terreno. Pelo contrário, a desocupação do imóvel, com
frequência é colocada como condição para o comprimento do acordo. Reparos nas casas
também são difíceis de serem conseguidos. O que encontramos constantemente são
trabalhadores que pleiteiam, e muitas vezes conseguem, indenização por danos causados
a suas plantações. Mas, recebido o dinheiro, o trabalhador e sua família desocupavam
suas casas e se dirigiam as cidades próximas. Como o valor das indenizações não era
suficiente para a aquisição de um imóvel. Logo, eles se viam em situação ainda mais
precária visto que ficavam dependentes de aluguéis ou de construções precárias.
3. Conclusão
Seja na segunda metade do século XX ou no início dos anos 2000 muitas
similaridades são encontradas nas condições de vida e trabalho dos trabalhadores rurais
da Zona da Mata de Pernambuco. Seguindo a trilha indicada por Judith Butler
entendemos que a condição precária, vivenciada por uma significativa parcela da
população mundial, não é apenas uma questão de falta de recursos, mas, uma condição
politicamente criada. Tomamos como exemplo claro o que acontece com os
trabalhadores do setor sucroalcooleiro de Pernambuco. Este sistema se esforça em
cultivar um enorme contingente de mão-de-obra para alimentar as usinas e engenhos por
cinco meses por ano. O que acontece nos outros meses? Não importa. Contanto que na
próxima safra essa reserva esteja novamente disponível7.
Enquanto isso, em Nazaré da Mata, a ação trabalhista de Luís Delmiro da Silva
encontra seu fim em 12 de abril de 1978 com a publicação do acórdão do Tribunal
6 Para aprofundar o tema recomendo a leitura da obra de José Leite Lopes “A tecelagem dos
conflitos de classe na cidade das chaminés” sobre a Companhia de Tecidos Paulista e a
dissertação de mestrado de Emanuel Moraes Lima dos Santos, intitulada “A Fábrica de Tecidos
da Macaxeira e a vila dos operários: a luta de classes em torno do trabalho e da casa em uma
fábrica urbana com vila operária (1930-1960)”. 7 A filósofa norte-americana Judith Butler em seu livro “Quadros de Guerra: quando a vida é
passível de luto?” disserta sobre temas como cidadania, democracia, estado de direito, entre
outros. Entre suas teorias mais importantes, está a de que “uma vida específica não pode ser
considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada viva”.
16
Regional do Trabalho da 6ª Região o qual estabelece, por unanimidade, o provimento
parcial ao recurso apresentado. Mesmo com a decisão favorável, o que lhe garantiria
com juros e correção monetária uma quantia de aproximadamente Cr$50.000,00
(cinquenta mil cruzeiros), o trabalhador decide assinar um acordo de conciliação com o
engenho, no qual este se compromete a pagar uma quantia de Cr$16.500,00 (dezesseis
mil e quinhentos cruzeiros) em troca da retificação da data de admissão para 30 de
janeiro de 1970 (livrando a empresa da acusação de trabalho infantil) e a data de
demissão para 5 de setembro de 1977. E o reclamante dá quitação de todos os direitos
recorrentes do contrato de trabalho.
Bibliografia
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Tradução de
Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha; revisão de tradução
de Marina Vargas; revisão técnica de Carla Rodrigues. 1ª ed. Rio de Janeiro:
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