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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE CIÊNCIAS EXATAS
TRABALHANDO COM UNIDADES DE MEDIDA E ESTIMATIVAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Aldiléia da Silva Souza
Lajeado, junho de 2015
1
Aldiléia da Silva Souza
TRABALHANDO COM UNIDADES DE MEDIDA E ESTIMATIVAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação, Mestrado Profissional em Ensino
de Ciências Exatas, do Centro Universitário
Univates, como parte da exigência para
obtenção do grau de Mestre em Ensino de
Ciências Exatas, na linha de pesquisa
Epistemologia da prática pedagógica no ensino
de Ciências e Matemática.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Angélica Vier Munhoz
Coorientadora: Prof.ª Dr.ª Ieda Maria Giongo
Lajeado, junho de 2015
2
Aldiléia da Silva Souza
TRABALHANDO COM UNIDADES DE MEDIDA E ESTIMATIVAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
A Banca Examinadora aprova a Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação, Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Exatas, do Centro
Universitário Univates, como parte da exigência para obtenção do grau de Mestre
em Ensino de Ciências Exatas, na linha de pesquisa Tecnologias, Metodologia e
Recursos Didáticos para o Ensino de Ciências e Matemática.
BANCA EXAMINADORA
Professora Dr.ª Angélica Vier Munhoz – Orientadora – Centro Universitário
UNIVATES
Professora Dr.ª Ieda Maria Giongo – Coorientadora – Centro Universitário
UNIVATES
Professora Dr.ª Marli Teresinha Quartieri – Examinadora– Centro Universitário
UNIVATES
Professora Dr.ª Morgana Domênica Hattge – Examinadora – Centro Universitário
UNIVATES
Professora Dr.ª Suzana Feldens Schwertner – Examinadora – Centro Universitário
UNIVATES
Lajeado, junho de 2015
4
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradeço a Deus, o grande criador do universo, por me
oportunizar a viver.
Ao meu esposo e à minha família, por terem me incentivado a chegar ao
término desta jornada.
Às minhas Professoras, Orientadora Dr.ª Angélica Vier Munhoz e
Coorientadora Dr.ª Ieda Maria Giongo, pela paciência e sugestões apresentadas.
À Equipe Gestora da Escola Municipal Tancredo Neves, por me
oportunizarem o desenvolvimento deste estudo, acompanhando a aprendizagem
dos alunos durante o processo de construção de investigação.
Aos alunos que participaram do meu projeto de pesquisa, cujo foco foi
planejar o desenvolvimento da etnomatemática em sala de aula, visando à uma
análise conceitual a respeito da aprendizagem desses alunos.
E, por fim, a todos e a todas que me auxiliaram no desenvolvimento deste
estudo com orientações bibliográficas e metodológicas.
5
RESUMO
Esta dissertação de mestrado, “Trabalhando com Unidades de medidas e Estimativas na Educação Infantil”, é resultado de uma investigação acerca do ensino de unidades de medidas e estimativas na Educação Infantil a partir do olhar da etnomatemática. Tal investigação foi realizada em Boa Vista, Roraima, com uma turma de Primeiro Período da Educação Infantil. Os objetivos da investigação foram: a) Operar com conceitos vinculados às unidades de medida e estimativas de uma turma de Educação Infantil; b) Elaborar uma prática pedagógica centrada em conceitos que envolvem as unidades de medida e estimativas; c) Problematizar e investigar semelhanças e diferenças entre as práticas de unidades de medida e estimativas escolar e não escolar. A aproximação com as teorizações do campo da etnomatemática ajudou a compreender o saber/fazer matemático dos alunos, procurando integrar os conhecimentos e os saberes do mundo social em que os indivíduos estavam inseridos. Do material de pesquisa – constituído por materiais produzidos pelos alunos, diário de campo da professora e gravações das aulas -, emergiram duas unidades de análise: a) Trabalhando conteúdos matemáticos, unidades de medidas e estimativas, por meio de instrumentos de medidas usualmente ausentes na escola; b) Processos de aprendizagem, estratégias e comparações vinculadas às formas de vidas das crianças. A presente investigação possibilitou a reflexão sobre o ensino da Matemática a partir das formas de vida dos alunos, problematizando a importância da Matemática na Educação Infantil e distintos modos de operar com conceitos matemáticos. Palavras-Chave: Etnomatemática. Educação Infantil. Unidades de medida e estimativa.
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ABSTRACT
This dissertation, "Working with Units of measurements and estimates in kindergarten," is the result of an investigation about the teaching units of measurements and estimates in Early Childhood Education from the look of Ethnomathematics. This research was held in Boa Vista, Roraima, with a group of first period of early childhood education. The objectives of the research were: a) operate with concepts linked to units of measurement and estimates a group of Early Childhood Education; b) Develop a teaching practice centered on concepts involving measurement units and estimates; c) To discuss and investigate similarities and differences between the practices of measurement units and school and non-school estimates. The approach to the theories of the field of Ethnomathematics helped to understand the knowledge / math student, trying to integrate the expertise and knowledge of the social world in which individuals were inserted. The research material - made of materials produced by students daily teacher and field recordings of lessons - emerged two units of analysis: a) Working mathematical content, measures units and estimates, through instruments usually missing in action school; b) Learning processes, strategies and comparisons linked to forms of children's lives. This research led to the reflection on the teaching of mathematics from the ways of life of students, discussing the importance of mathematics in kindergarten and different ways of operating with mathematical concepts. Key-words: Ethnomathematics. Childhood Education. Units of measurement and estimation.
7
SUMÁRIO
1 SOBREA EXPERIÊNCIA VIVIDA, O PROBLEMA E A TEMÁTICA .................. 08 2 O CAMPO DA ETNOMATEMÁTICA .................................................................. 12 3 EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERPECTIVA DA ETNOMATEMÁTICA ............... 31 3.1 O uso de instrumentos de Medidas e Estimativas: um olhar na Educação Infantil ......................................................................................................................
39
4 PERCURSOS METODOLÓGICOS..................................................................... 45 4.1 Atividades Propostas e Análises dos Resultados ...................................... 49 4.2 Análise dos Resultados ................................................................................... 55 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 88 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 92 ANEXO ................................................................................................................... 96 ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .............................. 97
8
1 SOBRE A EXPERIÊNCIA VIVIDA, O PROBLEMA E A TEMÁTICA
Esta dissertação é uma pesquisa desenvolvida em uma turma do Primeiro
Período de Educação Infantil, efetivada no município de Boa Vista, localizado no
extremo norte do Brasil, próximo à fronteira com dois países – Venezuela e Guiana
Inglesa. A economia do Estado se tem mantido do serviço público e comércio local;
os demais setores vêm se desenvolvendo aos poucos. “A rede municipal possui uma
estrutura de Educação Infantil com 38 escolas, entretanto, há, em todos eles, pouco
ou nenhum material didático. Quanto aos professores, 100% têm Curso Superior”
(VIEIRA, 2013; FOLHA WEB, 2014).
Em 2013, a gestão municipal implantou um programa chamado IAB (Instituto
Alfa e Beto), com a distribuição de livros aos professores e alunos, cuja metodologia
estabelecia um padrão único para todas as escolas, com planos de aulas pré-
determinados, monitorados e acompanhados por dois Coordenadores do Programa
e pela Coordenação Pedagógica de cada educandário.
As escolas foram divididas em Polos e, por não ter havido tempo suficiente
para repassar a nova metodologia aos professores e coordenadores pedagógicos,
estes participavam de um ou dois encontros por mês, onde eram informados e
capacitados para essa metodologia que, aos poucos, ia sendo implantada.
Nesse contexto, situava-me como professora da rede municipal, atuando na
Educação Infantil, na turma de Primeiro Período, com alunos de quatro e cinco anos
de idade. Formada em Magistério, licenciada em Pedagogia e Geografia, com
especialização em Educação Especial Inclusiva e Metodologia do Ensino na
Educação Superior, a minha experiência na docência da Educação Básica totalizava
mais de uma década.
9
No decorrer da minha primeira formação, ao estagiar com a Educação Infantil,
em uma escola particular que possuía convênio com a Rede Municipal de Educação
de Boa Vista, fui convidada pela direção da Instituição para assumir uma turma do
Segundo Período, dando início, assim, à experiência como docente em sala de aula.
Na época, a preocupação da supervisão da escola era apenas com a escrita e a
leitura, ou seja, a criança, ao saber escrever seu nome, realizar a leitura do alfabeto,
das vogais e reconhecer os números de um a nove, estava apta a ingressar à série
seguinte. Logo, a Matemática não era trabalhada de forma expressiva. Em
decorrência disso, como professora da Educação Infantil, também não considerava
relevante trabalhar essa disciplina nos primeiros anos da vida escolar.
Porém, durante a formação em Pedagogia, diante de novos estudos e
metodologias aprendidas, comecei a questionar a minha prática em sala de aula,
especialmente com relação ao conteúdo de Matemática, compreendendo que ele
deveria ser ministrado de uma forma mais abrangente. Confesso que estava
insatisfeita com essa prática, convencendo-me de que deveria trabalhar de maneira
que os alunos apreciassem a Matemática e levassem uma bagagem de
conhecimentos para sua vida, pois, segundo o Referencial Curricular Nacional para
a Educação Infantil,
O trabalho com noções matemáticas na educação infantil atende, por um lado, às necessidades das próprias crianças de construírem conhecimentos que incidam nos mais variados domínios do pensamento; por outros, corresponde a uma necessidade social de instrumentalizá-las melhor para viver participar e compreender um mundo que exige diferentes conhecimentos e habilidades (BRASIL, 2001b, p. 207).
Embora procurasse formas de trabalhar os conteúdos de Matemática,
percebia que não estava conseguindo obter resultados satisfatórios. Meus alunos
não demonstravam interesse pelas aulas dessa disciplina e suas dificuldades de
aprendizagem eram notórias. Com isso, surgiram questionamentos, tais como: Será
que estaria ministrando os conteúdos de Matemática corretamente? Será que a
minha formação havia dado subsídios para trabalhar a Matemática?
Assim, ao tomar conhecimento do processo de seleção do Mestrado
Profissional em Ensino de Ciências Exatas na UNIVATES, decidi me inscrever. Com
a aprovação, muitos dos meus questionamentos acabaram se tornando parte da
investigação que pretendia realizar nessa nova etapa de meus estudos.
10
No decorrer das disciplinas cursadas, tive a oportunidade de conhecer o
campo da etnomatemática, em que um dos grandes objetivos é compreender o
saber/fazer matemático ao longo da história, procurando, assim, integrar os
conhecimentos prévios e saberes e contextualizar a educação matemática no
mundo social em que os indivíduos estão inseridos.
D´Ambrósio (2002, p. 22) explica que:
Dentre as distintas maneiras de fazer e de saber, algumas privilegiam comparar, classificar, quantificar, medir, explicar, generalizar, inferir e, de algum modo, avaliar. Falamos então de um saber/fazer matemático na busca de explicações e de maneiras de lidar com o ambiente imediato e remoto. Obviamente, esse saber/fazer matemático é contextualizado e responde a fatores naturais e sociais.
Compreendi, então, que havia a necessidade de fazer uma análise da
importância da Matemática no currículo da Educação Infantil e; portanto, investigar e
desenvolver estratégias para trabalhar com a turma, com objetivo de aplicar uma
metodologia que ajudasse o ensino e aprendizado da mencionada disciplina. Assim
como a etnomatemática, o RCNEI (Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil), aposta nos diálogos entre adultos e crianças:
Considera-se que a aprendizagem de noções matemáticas na educação infantil esteja centrada na relação de diálogo entre adultos e crianças e nas diferentes formas utilizadas por estas últimas para responder perguntas, resolver situações-problema, registrar e comunicar qualquer ideia matemática (BRASIL, 2001b, p. 237).
O exposto induziu-me a desenvolver estratégias que pudessem contribuir com
a compreensão de problemas matemáticos, envolvendo as unidades de medida e a
estimativa no Ensino da Matemática, que eram pouco trabalhadas com os alunos da
Educação Infantil.
Acredito que os trabalhos com o manuseio de materiais e o conhecimento do
aluno em seu cotidiano facilitam a compreensão, o ensino e a aprendizagem
necessários à sua vida. Assim, trabalhando com as diferentes formas geométricas,
busquei realizar uma prática de pesquisa que envolvesse conteúdos possíveis de
serem trabalhados na Educação Infantil e que lhe possibilitasse a construção de
conhecimentos e valores que serviriam de base à aquisição de novos saberes.
O pensamento geométrico compreende as relações e representações espaciais que as crianças desenvolvem, desde muito pequenas, inicialmente, pela exploração sensorial dos objetos, das ações e
11
deslocamentos que realizam no meio ambiente, da resolução de problemas. Cada criança constrói um modo particular de conceber o espaço por meio das suas percepções, do contato com a realidade e das soluções que encontram para os problemas (BRASIL, 2001b, p. 229).
A proposta desta investigação buscou explicitar o “Trabalho com Unidades de
Medidas e Estimativas na Educação Infantil”, tendo como foco os conhecimentos
geométricos e a estimativa. Sendo assim, a questão de investigação foi a seguinte:
Como as Unidades de Medidas e Estimativas podem ser problematizadas na sala de
aula da Educação Infantil?
Por conta do problema de pesquisa, elenquei os seguintes objetivos:
Geral:
Operar com conceitos vinculados a Instrumentos de Medidas e Estimativas
nas aulas de uma turma de Educação Infantil.
Específicos:
Elaborar uma prática pedagógica centrada em conteúdos que envolvam as
unidades de medidas e estimativas;
Problematizar e investigar semelhanças e diferenças entre as unidades de
medidas e estimativas presentes em práticas escolares e não escolares.
A presente dissertação está dividida em seis capítulos. No primeiro, abordo a
experiência vivida, o problema e a temática; no segundo, exponho os aportes
teóricos que sustentam a investigação: o campo da etnomatemática. No terceiro,
trato da Educação Infantil na perspectiva da etnomatemática; no quarto, discuto as
unidades de medida e estimativas a partir de um olhar da Educação Infantil. Já no
quinto, aponto o percurso metodológico, as atividades propostas e analiso os
resultados e, por fim, no sexto, apresento as considerações finais.
12
2 O CAMPO DA ETNOMATEMÁTICA
Neste capítulo, abordo os referenciais teóricos pertinentes à etnomatemática,
uma vertente da educação matemática, cujo surgimento ocorreu na década de 1970
com estudos de Ubiratan D’Ambrósio (1990), chamado de o “pai da
etnomatemática”. Para ele,
[...] etno é uma expressão que se refere ao contexto cultural, incluindo considerações como linguagem, códigos de comportamento, mitos e símbolos; matema tem origem mais complexa, que vai na direção de conhecer, entender, e tica provém de techne, que vem da origem da arte e de técnica [...] a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais (D’AMBROSIO,1990, p. 5).
O citado autor relata que a etnomatemática busca “entender o saber fazer
matemático ao longo da história da humanidade, contextualizando em diferentes
grupos de interesses, comunidades, povos e nações” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 17).
O pesquisador também comenta que, “A proposta (referindo-se à etnomatemática)
não significa a rejeição da matemática acadêmica” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 42).
Segundo o autor, não é necessário rejeitarmos os conhecimentos e comportamentos
modernos, “[...] mas, sim, aprimorá-los, incorporando a eles valores de humanidade,
sintetizados numa ética de respeito, solidariedade e cooperação” (D’AMBRÓSIO,
2002, p. 43). Em efeito,
A disciplina denominada matemática é uma etnomatemática que se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido algumas contribuições das civilizações indiana e islâmica, e que chegou à forma atual nos séculos XVI e XVII, sendo a partir de então, levada e imposta a todo mundo. Hoje, essa matemática adquire um caráter de universalidade, sobretudo devido ao predomínio da ciência e da tecnologia modernas, que foram desenvolvidas a partir do século de XVII na Europa, e servem de respaldo para as teorias econômicas vigentes (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 73).
13
O nomeado autor atesta que o pensamento mais importante da
etnomatemática “[...] é restaurar a dignidade de seus indivíduos, reconhecendo e
respeitando suas raízes” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 42). O que essa vertente procura,
portanto, é “[...] evidenciar que não se trata de propor uma outra epistemologia, mas
sim de entender a aventura da espécie humana na busca de conhecimento e na
adoção de comportamentos” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 17). Dessa forma, ainda de
acordo com esse pesquisador, “Todo indivíduo vivo desenvolve conhecimento e tem
um comportamento que reflete esse conhecimento, que por sua vez vai-se
modificando em função dos resultados do comportamento” (2002, p. 18). Ele
acrescenta que determinados grupos sociais descobriram como ordenar, classificar,
medir e até mesmo contar.
Falamos então de um saber/fazer matemático na busca de explicações e de maneiras de lidar com o ambiente imediato e remoto. Obviamente, esse saber/fazer matemático é contextualizado e responde a fatores naturais e sociais (D’AMBROSIO, 2002, p. 22).
Neste sentido, todo indivíduo traz consigo experiências vividas desde o
nascimento e, ao chegar à escola, passa por um processo de transformação e
mudança. Este é contextualizado com o conhecimento escolar, tendo como
premissa a cultura de que, nessa perspectiva, “É uma etnomatemática não
apreendida nas escolas, mas no ambiente familiar, no ambiente dos brinquedos e de
trabalho, recebida de amigos e colegas” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 22-23). Assim,
para o autor, a etnomatemática.
[…] é o conjunto de comportamentos compatibilizados e de conhecimentos compartilhados, inclui valores. Numa mesma cultura, os indivíduos dão as mesmas explicações e utilizam os mesmos instrumentos materiais e intelectuais no seu dia-a-dia. O conjunto desses instrumentos se manifesta nas maneiras, nos modos, nas habilidades, nas artes, nas técnicas, nas ticas de lidar com o ambiente, de entender e explicar fatos e fenômenos, de ensinar e compartilhar tudo isso, que é o matema próprio ao grupo à comunidade, ao etno. Isto é, na sua etnomatemática (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 35).
Portanto, cabe destacar que as estratégias empregadas pela espécie humana
são desenvolvidas em diferentes formas de produzir conhecimento, ou seja, o ser
humano utiliza a matemática escolar e não escolar para facilitar o seu dia a dia.
Conforme D’Ambrósio, tais maneiras, como “A utilização do cotidiano das compras
para ensinar matemática revela práticas apreendidas fora do ambiente escolar, uma
verdadeira etnomatemática do comércio” (2002, p. 23).
14
Ainda de acordo com D’Ambrósio (2002), o fazer matemático no dia a dia é
ligado ao saber/fazer de cada cultura e ambos são constantemente praticados pelo
ser humano – medindo, comparando, classificando, entre outros. “Um importante
componente da etnomatemática é possibilitar uma visão crítica da realidade
utilizando instrumentos de natureza matemática” (Ibidem, p. 23). De fato,
A proposta pedagógica da etnomatemática é fazer da matemática algo vivo, lidando com situações reais no tempo [agora] e no espaço [aqui]. E, através da crítica, questionar o aqui e agora. Ao fazer isso, mergulhamos nas raízes culturais e praticamos dinâmica cultural (D’AMBROSIO, 2002, p. 46).
A partir dos estudos de D’Ambrósio, a etnomatemática vem impulsionando
várias investigações no âmbito da educação matemática, tendo em vista que “[...] é
um programa de pesquisa em história e filosofia da matemática, com óbvias
implicações pedagógicas” (D’AMBROSIO, 2002, p. 27).
Cabe destacar que uma das mais importantes pesquisadoras no campo da
etnomatemática é Gelsa Knijnik, que tem desenvolvido vários estudos tendo como
referencial teórico esta vertente da educação matemática. Para a nomeada autora, a
etnomatemática analisa e procura destacar a maneira como cada cultura desenvolve
suas noções matemáticas,
[...] destacando seus modos de calcular, medir, estimar, inferir, raciocinar – isto que identificamos, desde o horizonte educativo no qual fomos socializados, como os modos de lidar matematicamente com o mundo
(KNIJNIK et al., 2010, p. 22).
Knijnik (2010), também enfatiza que as experiências da vida cotidiana desses
grupos e suas diferentes formas de produzir conhecimento não são vistas como
ciência, sendo, usualmente, desvalorizadas. Ela
[...] problematiza o quem tem sido considerado como o “conhecimento acumulado pela humanidade”. O que está em questão, aqui, é enfatizar que somente um subconjunto muito particular de conhecimentos é hoje considerado como parte deste acúmulo. Os modos de produzir conhecimento, compreender o mundo e dar significado às experiências da vida cotidiana de outros povos (como por exemplo, os não europeus, não brancos, não urbanos) são considerados como não ciência, como não conhecimento (Ibidem, p. 22).
Duas investigações realizadas pela citada pesquisadora merecem ser
comentadas. Uma delas diz respeito à problematização de um projeto pedagógico
que teve como cerne o cultivo de alfaces numa pequena comunidade de assentados
do Movimento Sem Terra no município de Tapuí, RS. Tendo como referencial teórico
15
as ligações entre a educação popular e a educação matemática com a vertente da
etnomatemática, envolveu práticas de produção da referida comunidade, cujas
relações ocorreram entre os diversos atores: os alunos da 7ª série de uma escola do
próprio assentamento, a professora de Matemática e o agrônomo que fazia o
atendimento técnico no assentamento.
A autora (2010) inicia destacando que alguns grupos do assentamento
estavam desanimados, pois a produção de melão, cultura à qual se dedicavam,
havia sido um fracasso, levando-os à perda de seus investimentos. Em vista disso,
decidiram que trabalhariam com hortigranjeiros, em especial, o plantio de alface em
estufas, que, coberta por plásticos, consequentemente, seria protegida das
variações de temperatura. Por conta disso, os alunos e a professora de Matemática
participaram dessas discussões e, nestas, estava presente um agricultor que se
dedicava a esse cultivo. Para Knijnik, o envolvimento dos alunos nesse processo,
além das repercussões estritamente vinculadas ao estudo da matemática escolar,
permitiu que
[...] os integrantes do projeto apontaram algumas das suas repercussões. As aulas de Matemática perderam (ao menos parte) sua estreita ligação com os manuais escolares. Como disse Débora, uma das alunas: “Antes, a gente ia só na base do livro (...) Eu era cabeça dura em Matemática, eu detestava. E agora eu estou gostando”. Este gosto construído pela Matemática foi o fator que possivelmente levou uma das alunas assentadas, que no início do projeto pouco se envolvia com o trabalho escolar, a se entusiasmar com que estava aprendendo. Disse ela: “O mesmo trabalho do Zatti é o nosso, e daí o que eu aprendi eu passo pro meu pai. O que eu aprendi está sendo bem aproveitado né”. Bem aproveitado seria se um maior número de integrantes do assentamento tivesse participado do projeto, se envolvendo nas discussões (KNIJINIK, 2010, p. 234).
Segundo Knijnik (2010), no decorrer do projeto, percebeu-se que as maneiras
do grupo trabalhar com o cultivo de alface precisavam ser reformuladas. As leituras
dos textos que os próprios trabalhadores escreveram, levou-os a se envolverem nas
discussões.
Ainda de acordo com Knijnik (2010), a primeira leitura deixou os alunos
perplexos, surgindo, dessa forma, comentários entre os grupos. Estes achavam que
não conseguiriam desenvolver os estudos, mas, com o desenrolar das discussões e
os relatos de um agricultor chamado Zatti, passaram a examinar todo o processo de
produção até a sua comercialização final.
16
Ainda, para a mesma autora (2010), tais informações numéricas são bastante
semelhantes com as apresentadas nos livros didáticos, envolvendo problemas
matemáticos, mas o restante das informações não se enquadra com os encontrados
nesses livros, de tal forma que
[...] os alunos “simplesmente” somaram sequencialmente todos os valores em reais que apareciam no texto, sem atentar para o significado de cada um no contexto. Assim, por exemplo, os gastos com inseticida estavam descritos no seguinte formato: “Vai inseticida porque o pessoal come com os olhos. Na prática é isso. Uso o Orthene. Gasto 85 gramas por aplicação pra 4 estufas. Meio quilo de inseticida custa R$ 21,13. Também vai uréia. Uso 1 kg de uréia por plantio. O saco de 50 kg custa R$ 12,00.” Em uma primeira abordagem desta etapa do levantamento dos custos, os alunos se restringiram a adicionar os valores R$ 21,13 e R$ 12,00. E assim prosseguiram no tratamento das demais informais (KNIJINK, 2010, p. 225).
No entanto, paralelamente, houve uma integração entre os saberes populares
e os acadêmicos, que proporcionaram uma aproximação no processo de produção
(KNIJNIK et al., 2010). Assim, em determinado momento das atividades debatidas
com relação ao texto descrito por um dos agricultores, ocorreu uma inclinação ao
acoplamento das duas lógicas: a profana e a sagrada1. Assim,
[...] um dos alunos, deixou seu pequeno grupo de trabalho e, direcionando-se à turma, levantou uma questão relativa ao custo do transporte dos vegetais: “Tá caro zero quarenta e cinco o quilômetro. O carro dele faz pelo menos sete quilômetros por litro!” o argumento “profano” do Toni proporcionou não só que elementos importantes do ponto de vista matemático fossem analisados (como, por exemplo, o processo que resultou no valor final de R$ 0,45 para o Km rodado) como também introduziu a discussão sobre o tema da depreciação do carro, o que possibilitou que uma das questões centrais no planejamento das atividades produtivas dos assentamentos – a necessidade de contabilizar, no montante dos custos da produção, a depreciação dos bens, de modo que este possam ser repostos permanentemente – fosse tratado como conteúdo escolar (KNIJINIK et al., 2010, p. 226).
Com a observação do aluno, o “texto bruto” transformou a visão dos
subgrupos, que passou a ser analisado sob o contexto que lhe dava sentido, onde
os dados informados pelo agricultor geraram uma discussão não apenas nos
aspectos numéricos, mas, nos assuntos referentes a agrotóxicos. Com isso,
solucionaram-se as questões sobre os custos necessários ao plantio de cada estufa,
expostos pelos alunos na presença do agricultor. Dessa forma,
1
A lógica profana “[...] se vincula às experiências do sujeito no mundo social mais amplo e é ‘abandonada na porta da sala’” (CHEVELLARDE apud KNIJNIK, 2010, p. 226); a lógica sagrada está “[...] associada ao ritual escolar, ao contrato didático que se estabelece entre professores e alunos” (Ibidem).
17
[...] os alunos mostraram-se mais vinculados ao material que analisavam: questionavam explicações que entendiam estarem menos clara, inclusive problematizando valores que lhes pareciam equivocados. Em algumas ocasiões, ouve a necessidade do agricultor estar presente na sala de aula, pois mesmo o agrônomo que participava da atividade escolar não tinha as informações que se faziam necessárias para o prosseguimento do trabalho. Assim, a situação pedagógica conduziu a uma ampliação do espaço escolar, que passou a incorporar de modo “natural” outros atores, além da professora e alunos. Isto acarretou uma modificação também na esfera do que passou a ser considerado como conteúdo curricular (KNIJNIK et al, 2010, p. 227).
A importância do projeto é inquestionável, já que, por meio dele, foi possível
mostrar ao grupo do assentamento que mudanças podem ser inseridas nos
processos de produção. Nesse caso, as discussões favoreceram a integração dos
conhecimentos adquiridos pelos sem-terra com os dos alunos, proporcionando,
assim, melhorias e avanços tanto no cultivo da alface quanto na aprendizagem e
interação dos diferentes modos de praticar a Matemática. Ademais,
[...] o projeto produziu elementos importantes para a discussão das conexões entre a Educação Popular e a perspectiva da Etnomatemática, especialmente no que diz respeito às inter-relações que foram estabelecidas pelos diferentes atores sociais envolvidos no processo pedagógico (KNIJNIK et al., 2010, p. 231).
O segundo trabalho se refere à matemática oral. A autora ressalta que, em
pesquisas realizadas junto ao Movimento Sem-Terra, observou variadas práticas
orais presentes no convívio laboral dos participantes desse movimento social, em
que a Matemática se fazia necessária nos desafios da produção até a sua
comercialização. Segundo ela, foco principal era “[...] examinar processos culturais
envolvendo a Matemática oral e as implicações curriculares dos mesmos para a
Educação de Jovens e Adultos do campo” (KNIJNIK, 2004b, p. 1).
Em termos curriculares, interessou-me investigar os significados que são produzidos por este ‘esquecimento’, pela dicotomização e antagonismo destas duas lógicas, interessou, também, examinar as implicações curriculares que puderam ser deduzidas a partir de uma investigação sobre a Matemática oral (KINIJNIK, 2004b, p. 7).
A autora, ao investigar e examinar as implicações, centralizou-se em dois
aspectos: um deles ligado à possibilidade de incluir a Matemática oral no contexto
do currículo de educação de jovens e adultos do campo. Essa inclusão teve o intuito
de “[...] problematizar a política do conhecimento dominante, em especial a
compartimentalização que tem caracterizado a estrutura curricular no ocidente”
(KINIJNIK, 2004b, p. 8). A pesquisadora procurou investigar questões ocultas do
18
currículo escolar em relação às culturas dos grupos não hegemônicos, nos quais os
modos próprios de praticar a matemática em relação ao mundo, no âmbito da “[...]
pesquisa, significa o manejo culturalmente mediado da Matemática oral” (Ibidem, p.
8).
Já o segundo aspecto “[...] refere-se às potencialidades de articular à
Matemática oral, o uso de uma “nova” tecnologia: a calculadora” (Ibidem, p. 8).
Nesse sentido, a autora problematiza a prática de arredondar números, mostrando
que o camponês “[...] na compra de insumos para a produção, fazia
arredondamentos “pra cima” nos valores inteiros, ignorando os centavos, uma vez
que não desejava ‘passar vergonha e faltar dinheiro na hora de pagar’” (KNIJNIK,
2004b, p. 10).
Para Knijnik, uma das regularidades refere-se “[...] à estratégia de adicionar, a
partir da decomposição dos valores a serem computados oralmente, primeiro as
ordens de maior grau. Isto ocorreu com um dos estudantes da Oficina de
Capacitação realizada em Viamão” (Ibidem, p. 10). Sendo que,
[...] diante de uma situação na qual necessitava realizar a operação 148 + 239 (o mesmo) explicou que “primeiro a gente separa tudo [100 + 40 +9 e 200 +30 +9] e depois somar primeiro o que vale mais [100 + 200, 40 + 30, 8 + 9]. (...) É isto [o que vale mais] que conta”. Esta estratégia foi majoritariamente encontrada em todos os adultos que se diziam “bons nas contas de cabeça” (KNIJNIK, 2004b, p. 10-11).
Ao contrário dos algoritmos estudados na escola, os agricultores, em suas
práticas orais, levavam em conta os valores de cada parcela que estavam em jogo,
considerando a diferença que fariam os centavos, dezenas ou unidades no resultado
final (KINIJNK, 2004b).
A terceira regularidade mostra como o agricultor sem escolarização praticava
a duplicação presente na multiplicação que ele fazia oralmente em seu cotidiano:
[...] ao realizar a multiplicação de 92 x R$ 0,32 (correspondente a 92 litros de leite produzido e vendidos a R$ 0,32 o litro), primeiro dobrou o valor de R$ 0,32, obtendo R# 0,64; a seguir repetiu duas vezes a operação “dobrar”, encontrando o valor de R$ 2,56 (correspondente a 8 litros). Somou a este, valor de 2 litros, antes calculado, encontrando, então, o valor de 10 litros de leite: R$ 3,20. O próximo procedimento foi sucessivamente ir dobrando os valores encontrados, isto é, obteve o resultado de 20, 40 e 80 litros. Guardando “na cabeça” todos os valores que foi computado ao longo do processo, seu Nerci terminou a operação adicionando ao valor dos 80 litros, o correspondente a 10 litros e a 2 litros (antes calculados), encontrando, então, o resultado de 92 x R$ 0,32 (Ibidem, p. 11).
19
As diversas formas de praticar, resolver e raciocinar situações matemáticas
no cotidiano estão ligadas aos modos de cada cultura. A educação matemática
busca entender as distintas maneiras de produção da matemática praticada em
diferentes grupos sociais, culturais, profissionais ou comunitários (KNIJNIK et al.,
2010). A autora esclarece que a etnomatemática procura examinar e valorizar as
matemáticas praticadas fora do ambiente escolar, isto é, aquelas que não fazem
parte do currículo. Knijnik et al. (2012, p. 26) expressam que “Mais do que a cultura,
a Etnomatemática, assim como entendemos, está interessada em examinar a
diferença cultural no âmbito da Educação Matemática”.
Giongo (2010) também segue a mesma perspectiva ao comparar os
conhecimentos do mundo do trabalho com os do mundo da escola. Tendo como
base a pesquisa realizada em um contexto de produção de calçados e induzida a
uma visão da educação matemática, chega ao entendimento de que
A perspectiva que assumi, ao realizar a pesquisa, não se resumiu a buscar identificar o que havia ‘de matemático’ no ‘mundo do calçado’, para, seguir meramente e transpor estes conhecimentos para a sala de aula. Trata-se, sim, de uma perspectiva mais ampla que busca problematizar questões referentes ao mundo do trabalho – entre elas, as conectadas à Matemática e suas implicações pedagógicas no currículo escolar – permitindo que tais questões não sejam interditadas na escola formal (GIONGO, 2010, p. 215).
A referida autora, em sua dissertação de Mestrado, realizou uma pesquisa
para problematizar como estavam relacionados os saberes do “mundo da escola” e
os do “mundo do trabalho”, tendo como aporte teórico o campo da etnomatemática.
Tal investigação fazia sentido tendo em vista que ela atuava como professora em
turmas de Ensino Fundamental noturno de uma escola pública situada em um
pequeno município gaúcho. Os alunos, em sua maioria, trabalhavam em indústrias
calçadistas, uma das principais fontes de renda desse município.
A pesquisadora observou três empresas ligadas ao setor calçadista da
Região do Vale do Taquari, RS: uma fábrica de calçados, uma de palmilhas e uma
metalúrgica, locais em que realizou várias entrevistas com estudantes trabalhadores.
Além disso, conversou com professoras da escola em que atuava e funcionários que
ocupavam postos de liderança nas referidas fábricas. Nessa pesquisa, Giongo
investigou quatro práticas do dia a dia no “mundo do calçado” no qual ela supunha
que a Matemática estava presente. Segundo ela, a primeira prática, denominada
“tirar o tempo”, ocorreu quando um dos líderes da fábrica de calçados escolheu uma
20
funcionária para mostrar como “tirava o tempo”, ou seja, verificar quantos pares de
calçados eram produzidos em determinado tempo.
Assim, acionou o cronômetro no exato instante em que esta colocou a mão na bandeja onde se encontrava o par. Acompanhando o tempo que a referida funcionaria levou para esvaziar 3 bandejas (havia dos pares em cada uma), cronometrou 49 segundos. A seguir, com o auxílio de uma calculadora, procedeu a divisão por 3 (pois, como explicou, eram 3 as bandejas cronometradas). Com o resultado de 16,63, procedeu a divisão deste valor por 60 (justificando que uma hora tem 60 minutos). Dividiu o resultado encontrado – 0, 272 – novamente por 2 (dizendo que eram dois pares por bandeja), encontrando 0,136. Disse, então, que como eram trabalhados 528 minutos por dia, iria dividir 528 por 0, 136. Encontrou como resultado 3882. Nesta etapa do processo do cálculo não soube me explicar o significado deste resultado. Dizendo que “o cálculo ainda não estava acabado”, dividiu por 3882 por 10, afirmando, então, que “eram aproximadamente 388 pares” (GIONGO, 2010, p. 205-206).
Não satisfeita com a última operação (a divisão por dez), a autora fez novos
questionamentos sobre a forma como esta era realizada. Ao responder, o
funcionário da fábrica declarou
[...] que eram “regras, como a regra de três” e que [...] aprendera este “método” durante um dos cursos preparatórios na própria fábrica, curso este que também o preparara para verificar o que denominou “distorções” na produção (Ibidem, p. 206).
Desse modo, Giongo (2010, p. 207), relata que a prática possibilitou um
aprendizado e que essa divisão utilizada, “[...] por dez da ‘tomada de tempo’,
advinha do fato de serem feitas dez tomadas diárias de produção”. De acordo com a
investigação, isso ocorria conforme a necessidade de produção atrelada à qualidade
dos calçados, mostrando que essa vivência dos alunos trabalhadores poderia não
apenas colaborar e enriquecer o currículo escolar, mas aproximá-la da Matemática.
A segunda prática – “pesar a linha” – aconteceu no almoxarifado da fábrica,
local em que a pesquisadora questionou o funcionário responsável pelo
abastecimento das esteiras sobre os materiais utilizados na produção de sapatos.
Ao citar linhas e fitas, ele declarou que, no momento em que recebia a planilha do
material a ser utilizado, “[...] se houvesse necessidade de uma grande quantidade de
um determinado tipo de fio, esta quantidade era calculada em gramas” (GIONGO,
2010, p. 211). Além disso, assegurou que era impossível medir em metros, sendo,
portanto, feito em gramas, o que tornava mais fácil e rápido o trabalho. Giongo
(2010, p. 211), então enfatizou que
21
De modo semelhante aos novelos e linha ou lã utilizados na produção de vestuário, aqui também gramas (unidades de massa) é a unidade padrão. Foi somente quando estive no almoxarifado que me dei conta de que eu, já tendo a experiência de aquisição de novelos de lã ou linha, como professora de Matemática, jamais incluí a pratica de “pesar a linha” nas atividades pedagógicas que desenvolvia. A grade curricular, com os conteúdos previamente hierarquizados, era, para mim, uma prisão.
Essa prática possibilitou à autora lembrar que, como professora, desenvolvia
com os alunos da 4ª série e que envolviam o conteúdo de unidade de medida, pois
as atividades por ela propostas eram clássicos, e a “A única resposta que eu
aceitava era, seguramente, o metro, seus múltiplos e submúltiplos. Em nenhum
momento propus ou aceitei outras possibilidades” (Ibidem, p. 211), senão as
escolares.
A terceira prática, denominada pela pesquisadora “achar o meio da barra”,
levou-a a observar, na metalúrgica que fabricava moldes de palmilhas, uma das
atividades importantes à confecção das navalhas. A questão central consistia em
encontrar o ponto médio de uma barra de ferro de aproximadamente cinquenta
centímetros. (GIONGO, 2010). No entanto, a autora relata que a prática, “[...] logo
trouxe-me à memória um compasso e uma régua, instrumentos necessários para
determinar o ponto médio de um segmento usualmente ‘trabalhado’ em sala de aula”
(p. 213). Assim, ao ser questionado sobre o modo como encontrava o meio, o
funcionário apontou uma tora de lenha, afirmando que, sobre ela, havia um pequeno
suporte que aparentava ser de ferro e, ao colocar sobre ele a barra, ia ajustando até
chegar ao equilíbrio. Acrescentou que, quando isso ocorria, encontrava o meio.
Ademais,
O processo de “encontrar o meio” utilizado pelo funcionário está respaldado em leis da Física, no conceito denominado “centro de gravidade de um corpo”. Ao presenciar meu interesse pelo método que utilizara, o trabalhador relatou-me que só estudara até a 4ª série. “Tenho problemas de leitura, mas não de contas”. Disse-me também que “nunca se aperta para fazer contas e tirar as medidas” (referindo-se ao processo de calcular o meio) (Ibidem, p. 213-214).
Essa prática que a pesquisadora presenciou ser simples, rápida e relacionada
ao cotidiano dos trabalhadores da fábrica, não era, segundo ela, valorizada pelo
currículo escolar, embora envolvesse o conhecimento da Matemática e da Física.
Já na quarta e última prática – “distribuir palmilhas no cartão” –, Giongo
(2010, p. 214), constatou, em um dos processos de fabricação de palmilhas, que o
22
trabalhador utilizava uma navalha (produzida na metalúrgica), sem dar-lhe nenhuma
definição; “Ao contrário, operava um processo de maximização de modo que fizesse
caber o maior número possível de palmilhas por cartão”. Essa prática fazia com que
houvesse eficiência na produção, diminuindo o gasto de cartão. Portanto, para
aprendê-la,
[...] eram necessárias exaustivas horas de treinamento. Este treinamento obedecia a 2 premissas básicas: a velocidade e a economia do cartão. Segundo um dos “lideres”, não havia necessidade de se mostrar aos trabalhadores a tabela que ele portava nas mãos, uma entre muitas que atendiam a diferentes modelos de palmilhas, como as emendadas e as “montadas”. Estas tabelas desenvolvidas, segundo ele, por “técnicos e computadores”, forneciam, na sua palavra, “a maneira mais econômica de utilização do cartão” para a fabricação das palmilhas. Segundo ele, os “rapazes treinam e depois apenas fazem”. De fato, ao ser por mim questionado, um deles afirmou que “de tanto fazer, já sei de cor” (Ibidem, p. 214).
Com isso, a autora pôde verificar que, na distribuição de palmilhas no cartão,
o uso sintetizado do papel era uma forma de vida praticada no cotidiano dos
trabalhadores – que o utilizavam para ganhar tempo e diminuir custo – e estava
relacionado à educação matemática, mais exatamente à geometria. Ademais, afirma
que
[...] pude constatar, que na escola em que pesquisei esta maneira de “combinar” o côncavo e o convexo também estava interditada na sala de aula. Dessa maneira analógica, a verificação do ponto médio da barra de ferro que observei por ocasião das visitas à metalúrgica, diferia totalmente daquele empregado na escola estudada. Nesta, o uso do compasso era o único meio utilizado, enquanto que no ambiente fabril tudo se resumia a uma tora de lenha e um suporte de madeira. Esta, que denomino “outra possibilidade” estava “impedida” de fazer parte da sala de aula (GIONGO, 2010, p. 215).
Observando as experiências vivenciadas pelas autoras acima mencionadas,
entendo que a etnomatemática busca valorizar os saberes populares, importantes
para compreender o quanto os conhecimentos do mundo são vistos de maneira
desigual ou excluídos do currículo escolar. D’Ambrósio (2002, p. 46), ressalta que
“Cabe ao professor do futuro idealizar, organizar e facilitar essas experiências. Mas,
para isso, o professor deverá ser preparado com outra dinâmica”. O docente precisa
adotar metodologias que viabilizem e valorizem o conhecimento adquirido fora do
ambiente escolar. Essas práticas problematizadas se assemelham ao que Wanderer
conceitua como o campo da etnomatemática, enfatizando que
23
[...] a cultura dos alunos, seus modos de lidar com o conhecimento, suas histórias e trajetórias, suas opiniões, penso que a Matemática pode receber um outro enfoque. Ao invés de um conjunto de técnicas e fórmulas descontextualizadas, o conhecimento matemático passa a se conectar mais com a vida dos alunos, com suas formas de lidar com seu mundo social, auxiliando-os na compreensão e problematização de situações concretas de sua vida (2010, p. 268).
Essa visão permite identificar os estudos de culturas comparativas em relação
à Matemática, descrevendo que as diferentes práticas matemáticas de grupos
revelam uma imensa diversidade. Além disso, questiona o currículo, considerado
fundamental pelas escolas e para quem as etapas devem ser seguidas. Portanto, o
único a ser trabalhado, rejeitando o conhecimento cultural dos grupos sociais,
principalmente os saberes do mundo do trabalho (GIONGO, 2010).
Duarte (2010) também segue a perspectiva do campo da etnomatemática. A
autora realizou sua pesquisa de Mestrado no “mundo da construção civil”, cujo foco
foi examinar “[...] como eram produzidos saberes matemáticos pelos trabalhadores
da construção civil, em práticas desenvolvidas nos canteiros de obras e que
implicações curriculares poderiam ser inferidas a partir destes modos de produção?”
(DUARTE, 2010, p. 183).
Sua pesquisa envolveu diversos atores: um grupo de serventes, pedreiros,
mestres de obras – alguns frequentavam o Supletivo noturno –, uma professora,
dois engenheiros e um arquiteto, com quem foram realizadas entrevistas e
observados canteiros de obras semi estruturadas. Assim, Duarte, em uma de suas
investigações, verificou práticas específicas dos pedreiros para resolver situações-
problema diante da ausência de conhecimentos escolares/acadêmicos:
O procedimento desenvolvido por seu Luis consistia em escolher uma ripa de madeira que fosse visivelmente maior do que estimava ser a metade do comprimento da parede. A seguir, ele posicionava esta ripa em uma das extremidades da parede e fazia uma marca com giz no local onde se encontrava o final desta. Procedia de modo análogo com a outra extremidade. No final do procedimento, ele havia determinado um intervalo representado pelas duas marcas de giz. A seguir, com a trena, ele determina a metade deste intervalo, o que correspondia ao ponto médio do comprimento da parede que buscava encontrar. A vantagem de tal método, segundo ele, era que os números “ficam pequenos e dá pra calcular de cabeça”. Seu Luiz criava alternativas para superar as dificuldades que possuía com os “números grandes” e os algoritmos. Ele buscava desta forma superar a ausência de saberes escolares (DUARTE, 2010, p. 192-193).
24
Como descreve a autora, os modos e práticas de usar aproximação e
arredondamentos surgiam da necessidade de os grupos facilitarem o trabalho no
cotidiano, que era desvinculado do currículo escolar/acadêmico, buscando, assim,
simplificar e ganhar tempo. Uma aproximação desses conhecimentos culturais com
os do currículo escolar/acadêmico proporciona aos sujeitos dos grupos uma melhor
compreensão dos saberes de diferentes culturas.
Duarte (2010), ao examinar os saberes matemáticos, inferiu que as práticas
produzidas nos canteiros de obras e suas implicações curriculares articulavam esse
tipo de produção, denominado “recheados de vida”, aos conhecimentos matemáticos
presentes nas atividades laborais dos pedreiros, pois, “[...] tais saberes,
diferentemente das atividades usualmente propostos pela escola, levavam em
consideração às contingências e às eventualidades ‘da vida lá fora’” (DUARTE,
2010, p. 199-200). Apoiada nas ideias de Ludwig Wittgenstein, a autora acrescenta
que foi possível questionar a propagada universalidade da matemática acadêmica
[...] enquanto linguagem soberana a qualquer outra maneira de expressão e, superior a outras formas de matematizar pertencentes a diferentes grupos culturais. Existe a possibilidade das matemáticas e uma interlocução entre ambas fazer-se necessária (Ibidem, p. 199).
A ideia da interlocução entre os saberes também é destacada na pesquisa de
intervenção de Strapasson (2012). A autora busca,
[...] investigar os jogos de linguagem que emergem quando alunos [...] lidam com situações vinculadas à matemática e como tais jogos se relacionam com aqueles que usualmente estão presentes na cultura camponesa da sua comunidade (p. 12).
Essa investigação foi realizada na Escola Municipal Guilherme de Souza
Portella de Fontoura Xavier, RS com “[...] alunos de uma turma da sétima série do
ensino fundamental” (Ibidem, p. 12), tendo como aporte teórico a vertente da
etnomatemática.
A autora também relata como algumas práticas matemáticas eram vinculadas
ao cotidiano das crianças que estudavam e viviam na agricultura, onde
predominavam os cultivos de fumo, milho e soja, destacando que “A matemática era
considerada pelos alunos, abstrata e inútil, visto que no cotidiano agrícola deles e de
seus familiares, a matemática escolar, segundo eles, não era utilizada ou
reconhecida” (2012, p. 35). Ademais, Strapasson (2012, p. 35-36) comenta:
25
[...] acreditei ser imprescindível desenvolver uma pesquisa que possibilitasse conhecer e entender os jogos de linguagem matemáticos que emergiam na turma, investigando por que as relações estabelecidas pelos estudantes com a referida disciplina eram tão divergentes quando relacionadas ao seu cotidiano social e escolar.
Com isso, Strapasson (2012) enfatiza que, ao resolver situações ligadas aos
modos de vida camponesa, os alunos utilizavam regras de arredondamento e
estimativas, diferentemente das adotadas em ambientes escolares. Nestes,
privilegiava-se a matemática acadêmica, demonstrando a predominância das
formalidades nela existentes em comparação aos conhecimentos que faziam parte
do cotidiano desses estudantes.
Mesmo entendendo que as regras da matemática escolar e da não escolar sejam diferentes, não se pretende “trazer para dentro da sala de aula” somente as regras da matemática camponesa. Os professores devem entender como essas “duas matemáticas” se relacionam e determinar em que momento abordar esses distintos modos de operar matematicamente em sala de aula (STRAPASSON, 2012, p. 79).
Ao trabalhar com alunos da Educação Infantil, percebi a importância de vincular
regras escolares às não escolares, ou seja, integrar a matemática escolar com a
utilizada fora da escola. Logo, as teorizações da etnomatemática podem se
aproximar das do currículo, auxiliando, dessa forma, professores e alunos,
principalmente na Matemática, haja vista esta ser considerada por muitos alunos
uma disciplina muito difícil. Neste sentido, relacionar o conteúdo à cultura é uma
forma de vencer e ultrapassar essa barreira.
Medrado (2013) segue a mesma perspectiva em sua dissertação de
Mestrado, quando desenvolveu sua pesquisa em uma turma de 8° ano de uma
Escola Estadual da Cidade de Boa Vista, RR, buscando “[...] problematizar, junto a
uma turma de alunos do Ensino Fundamental, como distintas formas de vida operam
com conceitos matemáticos na confecção de vestuário” (MEDRADO, 2013, p. 23).
Na ocasião, a autora convidou duas costureiras, uma do SENAI e outra da
cooperativa (doméstica), para demonstrarem como realizavam suas práticas de
trabalho ao fabricar uma camiseta. Ao explicar as regras e confeccioná-la, a primeira
necessitou de um tempo maior do que a segunda. Além disso, as duas foram
questionadas pelos alunos.
[...] Relataram que o primeiro método, além de ser mais difícil gasta muito tempo. A costureira doméstica ressaltou que os anos de prática contribuíram para que a peça fosse confeccionada em menos tempo. E
26
ainda relatou que a prática só não foi mais rápida porque a máquina de costura não era industrial, pois máquinas industriais são mais velozes. Expressou ainda que para fazer uma maior quantidade de camisetas às vezes utiliza o processo industrial, faz o enfesto, risca e corta várias peças ao mesmo tempo e ressaltou que uma pessoa consegue fazer 150 camisetas por dia na cooperativa em que trabalha (MEDRADO, 2013, p. 67).
A costureira do SENAI mostrou claramente que, em sua prática, utilizava a
matemática escolar, ao contrário da doméstica. Ao assistirem às duas
demonstrações, os alunos expressaram que “Foi mais fácil enxergar a matemática
com a primeira costureira, porque tinha materiais que utilizo nas aulas de
Matemática” (MEDRADO, 2013, p. 69). A facilidade ocorreu por ela ter empregado
regras próprias de sua vivência, oportunizando à turma uma melhor compreensão.
Assim, pude então compreender que não é possível simplesmente trazer para a sala de aula os jogos de linguagem matemáticos produzidos por uma determinada cultura como, por exemplo, das costureiras, na tentativa de somente ensinar matemática escolar. Os alunos não atribuíam importância às regras praticadas pela costureira doméstica, pois os mesmos a compararam com aquelas presentes nas aulas da disciplina Matemática e a metodologia utilizada por essa costureira possui regras que não são próprias da matemática escolar. A mesma relatou que aprendeu a costurar sozinha e porque tinha curiosidade, criando suas próprias “regras” (Ibidem, p. 69).
Nessa ótica, a autora expressa que “[...] a etnomatemática não tem como
finalidade desvalorizar a Matemática estudada na sala de aula, mas mostrar que
existem diferentes matemáticas” (MEDRADO, 2013, p. 76).
Estudos como o de Mendes e Lucena (2012) também mostram que é possível
dar visibilidade a uma matemática surgida da aproximação de conceitos e conteúdos
matemáticos das experiências vividas por populações encontradas em distintos
grupos sociais. Os autores procuraram “[...] disseminar ideias pertinentes às
discussões entre pesquisadores e professores na forma inicial e continuada, nos
diversos níveis de ensino” (p. 93). Uma das pesquisas por eles realizada foi a
“Educação Matemática, Cultura Amazônica e Prática Pedagógica: à margem de um
rio”. Nela, os pesquisadores “[...] analisam a prática pedagógica de uma professora
que aborda diversos conteúdos matemáticos – a partir da Cultura Amazônica”
(Ibidem, p. 93), numa determinada escola da ilha do Combu, próxima à cidade de
Belém do Pará, com alunos ribeirinhos. Ambos atestam que,
Partindo da própria experiência e do conhecimento do aluno, podemos criar uma Matemática viva, dinâmica em resposta a necessidades culturais,
27
sociais e naturais do mundo moderno. Os conhecimentos matemáticos extra-escolares dos grupos sociais aos quais os alunos pertencem com sua cultura, aliados aos de currículo existentes nas escolas devem desvelar um novo caminho que venha facilitar a construção de outro/novo processo de ensino e aprendizagem da matemática. A este “novo/outro caminho” denominamos etnomatemática (2012, p. 100).
Dessa forma, esse “novo/outro caminho” também pode ser evidenciado na
pesquisa de Paulus Gerdes (2010), quando ele comenta que, em Moçambique, após
violentas guerras, em conjunto com outros pesquisadores, enfrentou um desafio:
motivar um grupo de alunos para se formarem professores de Matemática. Esse
movimento ocorreu porque, em seguida à independência de Portugal, Moçambique
não tinha professores formados em Matemática. Assim, em 1977, surgiu um
programa de formação de docentes para o Ensino Secundário na única
Universidade daquele país. Cabe destacar que os estudantes desejavam se formar
nas áreas de medicina, engenharia, direito e não tencionavam seguir a carreira de
professor dessa disciplina, já que a
Matemática parecia-lhes ser ensinada para ter um mecanismo de seleção dos alunos, um baluarte utilizado no tempo colonial para impedir que os alunos moçambicanos progredissem nas escolas – havia estudantes que contaram como eram espancados nas mãos com um pau, na escola primária colonial, se não conhecessem bem de cor, em Português, as tabuadas de multiplicação (GERDES, 2010, p. 18).
Para motivar os estudantes, foi inserida no currículo a disciplina “Aplicações
da matemática na vida corrente das populações” (GERDES, 2010, p. 19),
surpreendendo-os com as inúmeras possibilidades de aplicar a Matemática no dia a
dia dos moçambicanos. Por exemplo, ao visitarem uma fábrica de cerveja, eles
verificaram que
[...] operários pouco ou não escolarizados trabalhavam com números negativos para controlar vários processos na fábrica, enquanto os estudantes pensavam que aqueles números negativos horríveis tinham sido introduzidos pelos colonos somente para complicar a vida dos alunos moçambicanos... (Ibidem, p. 19).
O citado autor relata que os estudantes moçambicanos se surpreenderam
tanto com a disciplina de Matemática, que as duas horas de aula foram
consideradas insuficientes. Em vista disso, eles próprios reivindicaram seis ou oito
horas semanais, por compreenderem sua relevância na vida cotidiana e profissional,
bem como no desenvolvimento cultural, social e econômico do país.
28
Para esse pesquisador, é fundamental contextualizar a Matemática com o
cotidiano, destacando que o seu desafio foi positivo, pois muitos estudantes que
participaram das aulas da época se formaram e, atualmente, são professores de
Matemática em vários níveis de ensino. Ademais, dois desses alunos concluíram o
doutorado em educação matemática e outros terminaram o mestrado. O autor ainda
relata que a Matemática, que parecia ser desconhecida e estranha à sociedade e
cultura dos moçambicanos, surpreendeu e transformou essa visão, passando a ser
considerada uma disciplina fundamental e valorizada por fazer parte do cotidiano
dessa sociedade.
Termino este capítulo enfocando a pesquisa de Rodrigues (2010), haja vista
ela ter sido realizada em uma turma de alunos de cinco e seis anos, em uma escola
de Educação Infantil, localizada no município de Lajeado, RS. A leitura da referida
pesquisa foi fundamental para que a compreendesse que seria interessante à
instituição onde atuava e ao campo da educação matemática uma investigação que
envolvesse a Educação Infantil. O fato de a professora pesquisadora enfocar
também o campo da etnomatemática mostrou-me que ainda havia muitas
possibilidades de unir a Educação Infantil à etnomatemática. Rodrigues (2010)
segue essa vertente, ao
[...] produzir novos olhares sobre a educação matemática no âmbito da Educação Infantil, e em especial examinar os jogos de linguagem que emergem quando um grupo de alunos [...] são confrontados com situação propostas pela professora (p. 8).
A autora informa que iniciou sua prática profissional em uma escola particular
de Educação Infantil, onde permaneceu nove anos, obtendo uma experiência
singular, já que todas as instituições de ensino possuem suas peculiaridades, como
o comportamento dos alunos, o comprometimento da Equipe Pedagógica, o público
alvo atendido, entre outras. Mesmo com tal compreensão, seus pensamentos se
voltaram às novas demandas da Educação Infantil, pois acreditava que algo
diferente precisava ser ensinado, como contemplar a vivência de cada aluno para
que ele saísse da sala de aula curioso com o que veria fora da escola.
Os estudos realizados por Rodrigues foram desenvolvidos no primeiro
trimestre de 2009, com o objetivo de investigar “[...] a maneira com que as crianças
operavam questões relacionadas à Matemática, enfocando o corpo humano”, na
29
tentativa de “[...] produzir novos olhares sobre o campo da Educação Matemática na
Educação Infantil” (2010, p. 27). Ao observar as crianças brincando de maquiagem e
desfile, a autora relata que ouviu uma menina afirmar que
[...] “10 vezes 10 é 100” eu sei porque o meu pai me disse. E 100 mais 10 é 110, mas e 10 vezes 100 profe, quanto é? ” Eu respondi que era 1000. A mesma menina respondeu: “nossa, é bem maior do que 100 mais 100...”
[...]. Em outro momento de desfile uma das meninas disse: “eu sou a nota 10+” Outra menina logo falou: “mas é pouquinho, o 11 é mais, então eu ganhei!”, a menina que falou que era 10 + ao ouvir sua amiga respondeu na hora: “tá então eu sou 100+, que é a nota máxima!” (RODRIGUES, 2010, p. 69).
Ao observar que as crianças, em suas brincadeiras, utilizavam conteúdos
matemáticos, a pesquisadora compreendeu que elas possuíam uma facilidade maior
na aprendizagem da disciplina, mostrando um conhecimento que foi adquirido em
seu cotidiano. Ela também declara que “As estratégias utilizadas pelas crianças
levaram-me a questionar minha prática pedagógica, uma vez que, por muitas vezes,
dei demasiada importância para os algoritmos escritos” (RODRIGUES, 2010, p. 68).
Além disso, cita os pensamentos de D’Ambrósio (2001, p. 6) quando este ressalta
que deveríamos “[...] procurar entender dos alunos, a sua matemática entendida
principalmente como maneiras de lidar com relações e comparações quantitativas e
as formas espacial do mundo real”.
Rodrigues (2010) observou mais claramente a diversidade das curiosidades
quando as crianças formulavam as perguntas e elas mesmas, muitas vezes,
respondiam sem, inicialmente, considerarem a ideia da professora, pois, grande
parte delas eram mais interessantes para elas imaginarem do que receberem uma
resposta pronta. A autora menciona algumas comparações relevantes da sua
dissertação, como:
[...] quando uma das crianças comparou a taxa de crescimento mensal de um fio de cabelo com o tamanho de uma pequena “piranha” (presilha muito pequena que usualmente as meninas utilizam em seus cabelos). É interessante verificar as comparações realizadas pelas crianças em relação ao peso, em relação à lateralidade (que eu mesma não me recordo em ter atribuído tais relações nesta idade): a ideia de aplicar peças de um quebra cabeça para descobrir exatamente qual seria a metade do corpo humano, ou de utilizar o “cabinho” da maça para verificar a metade (2010, p. 59).
30
Os argumentos da citada pesquisadora foram decisivos para o
desenvolvimento e exposição das minhas ideias e a escolha da temática, conforme
discuto nos próximos capítulos.
31
3 EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERPECTIVA DA ETNOMATEMÁTICA
O pensamento etnomatemático se aproxima da Educação Infantil, já que
procura relacionar os conhecimentos não escolares aos conteúdos trabalhados em
sala de aula. Na Educação Infantil, as crianças têm demonstrado um interesse maior
quando estes estão ligados ao contexto cultural ou às experiências e saberes
adquiridos em seu cotidiano. De acordo com Smole et al., (2014, p. 12), é preciso
dar
[...] oportunidades para as crianças aplicarem sua capacidade de raciocínio e justificarem seus próprios pensamentos durante a busca por resolver os problemas que se colocam.
[...] desde a escola infantil, que as crianças percebam que as ideias matemáticas encontram-se inter-relacionadas e que a matemática não está isolada das demais áreas do conhecimento.
O professor, ao operar com o campo da etnomatemática, pode ampliar a
capacidade das crianças na construção de novos conhecimentos quando estes são
ligados aos saberes e experiências produzidos no cotidiano ou no meio cultural.
Knijnik et al., (2010, p. 24), enfatiza que é possível compreender a etnomatemática
ao relatar fatos, construir ideias e contar histórias e até mesmo “[...] a Matemática
presente nas brincadeiras infantis”. Rodrigues (2010, p. 31), expressa nos estudos
realizados com a Educação Infantil, que
[...] é possível inferir que nessa perspectiva a literatura Etnomatemática destaca a importância de se examinar e problematizar as matemáticas produzidas pelos mais diversos grupos sociais, dando ênfase às suas formas de organizar, gerar e disseminar os conhecimentos matemáticos presentes em suas culturas.
Assim sendo, é possível trabalhar com a Educação Infantil nessa perspectiva,
pois a Matemática deve ser ensinada a partir do ambiente em que aluno se faz
32
presente. É através das suas experiências que as crianças atribuem sentido a seus
conhecimentos, não apenas nas brincadeiras, mas também nos momentos de
resolverem situações-problema em seu cotidiano. Os estudos de Leite (2014),
realizados na “Educação Infantil e Educação Matemática: imaginário e
possibilidades da infância”, mostram que
Se olharmos historicamente para a evolução da Matemática, vemos que ela é construída a partir das necessidades reais e dogmáticas do homem – a contagem, a geometria – que são resultantes de sua cultura da sociedade da época em que vivia, como acontece no cotidiano das crianças. É partindo da ação de conhecer e manejar a realidade que são constituídos os artefatos e os mentefatos (p. 133).
Considerando esse olhar histórico, é possível evidenciar que, na Educação
Infantil, as crianças também possuem necessidades resultantes da sua cultura, pois
quando elas se deparam com situações-problema em seu cotidiano, buscam reunir
informações e respostas para supri-las. Conforme o RCNEI (Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil),
O mundo onde as crianças vivem se constitui em um conjunto de fenômenos naturais e sociais indissociáveis diante do qual elas se mostram curiosas e investigativas. Desde muito pequenas, pela interação com o meio natural e social no qual vivem, as crianças aprendem sobre o mundo, fazendo perguntas e procurando respostas às suas indagações e questões. Como integrantes de grupos socioculturais singulares, vivenciam experiências e interagem num contexto de conceitos, valores, ideias, objetos e representações sobre os mais diversos temas a que têm acesso na vida cotidiana, construindo um conjunto de conhecimentos sobre o mundo que as cerca (BRASIL, 2001b, p. 163).
Segundo Rossetti-Ferreira et al., (2008), a Educação Infantil precisa
contemplar o conhecimento de mundo e a construção da autonomia das crianças na
vida escolar, pois elas estão em fase de plena aprendizagem. Esse fato requer do
professor uma interação com a concretude de ações que busque favorecer um
ambiente cultural e social, tornando esses alunos capazes de socializar
conhecimentos e experiências uns com os outros. Assim,
[...] as crianças precisam aprender com os outros, por meio dos vínculos que estabelece. Se as aprendizagens acontecem na interação com as outras pessoas, sejam elas adultas ou crianças, elas também dependem dos recursos de cada criança (BRASIL, 2001a, p. 21).
Com essa compreensão, iniciei, há mais de uma década, a minha prática
docente na Educação Infantil, observando as necessidades e experiências
vivenciadas em sala de aula. Durante os anos de trabalho como professora, pude
33
perceber que as crianças passam por um processo constante de reconstrução para
encontrar respostas às suas perguntas. Logo, é essencial conhecer a turma da
Educação Infantil com a qual se trabalha, valorizar o conhecimento, as experiências
e as vivências que os alunos já possuem sobre o tema que será trabalhado.
Segundo Lippmann (2009), o cotidiano do aluno é um elemento importante a
ser compreendido pelo professor, argumentando que, ao trabalhar com crianças, ele
precisa considerar suas vidas fora do ambiente escolar, local em que vivenciam a
experiência de uma matemática informal.
Desse modo, a etnomatemática enfatiza que é possível compreender como a
matemática é culturalmente utilizada por todas as pessoas, desde crianças até
idosos, ao longo do tempo (D’AMBRÓSIO, 1990). Nas aulas, as diferenças culturais
precisam ser inseridas no currículo e no ambiente escolar.
Nesta perspectiva, a disciplina Matemática faz parte da cultura e deve ser
refletida e trabalhada com as crianças na Educação Infantil. Em muitas salas de
aula, não é facilitada a construção de um entendimento pessoal da matemática que
é apresentada. Os valores, tradições, crenças, linguagem e hábitos de reflexão da
cultura dos alunos são, muitas vezes, ignorados pelos professores. Em tais
situações, as formas como essas crianças podem inventar conceituações pessoais
significativas não são respeitadas (WALLE, 2009).
De acordo com Gerdes (2010), para que a criança consiga compreender a
geometria é preciso ensiná-la a valorizar a diversidade na sala de aula,
compreendendo a influência que a cultura tem na matemática e como ela é utilizada
e comunicada.
Parafraseando Gerdes (2010), é possível constatar que, independente da
escola referenciada, um componente importante da etnomatemática para a
Educação Infantil dos dias atuais deve ser a exposição que as atividades de
Matemática multiculturais explicitam, porém elas não devem ser o objetivo final.
Como as crianças experimentam essas atividades nos diversos ambientes culturais
pelos quais passam, aprendem a valorizar a etnomatemática. De acordo com Orey e
Rosa (2009, p. 62),
34
[...] devem-se detalhar as relações da etnomatemática que estão presentes no dia a dia com a matemática [...] para que se possam elaborar intervenções pedagógicas para o ensino-aprendizagem em matemática que beneficiem todos os alunos independentemente dos grupos culturais aos quais pertencem.
Assim as experiências culturais possibilitam o ensino da etnomatemática para
a Educação Infantil; logo, o que é oferecido por um currículo tradicional tem se
mostrado insuficiente. Gerdes (2011) ressalta que a Matemática, em muitas salas de
aula, não tem praticamente nada a ver com o mundo que as crianças estão
experimentando fora dela. Assim como a alfabetização passou a significar muito
mais do que a leitura e a escrita, essa disciplina também deve ser pensada além das
diferenças, contagens, cálculos, classificações ou comparações, ou seja, através de
um olhar etnomatemático.
Com essas ideias, busca-se trabalhar com o campo da etnomatemática
evidenciando “[...] um caminho para uma educação renovada, capaz de preparar
gerações futuras para construir uma civilização mais feliz” (D’AMBRÓSIO, 2002, p.
47). Para Smole (2003), com as diferentes formas e maneiras de ver a Matemática
inserida na cultura, o professor pode trabalhar atividades que envolvam o
conhecimento e a experiência de vida do aluno.
Sendo assim, é possível lidar com as práticas matemáticas cotidianas dos
alunos da Educação Infantil, buscando na etnomatemática um dos seus objetivos,
que é a aprendizagem estendida, ou seja, aquela que o aluno precisa continuar
assimilando cotidianamente. De acordo com Smole (2003, p. 63),
[...] a criança vai criando várias relações entre objetos e situações vivenciadas por ela e, sentindo a necessidade de solucionar um problema, de fazer uma reflexão, estabelecendo relações cada vez mais complexas que lhe permitirão desenvolver noções matemáticas mais e mais sofisticadas.
Diante de situações vivenciadas pelas crianças, acredita-se que os
professores poderiam realizar estudos específicos a respeito da etnomatemática, já
que ainda se trata de um conceito ausente do repertório de conhecimentos de
determinados docentes da Educação Infantil, enfatizando que ela continua sendo
pouco conhecida até mesmo pelos que atuam no Ensino Fundamental e /ou no
Médio.
35
Dessa forma, é importante levar as crianças a vivenciarem e valorizarem
parte da realidade de suas próprias vidas, para que assim percebam e
compreendam o que estão assimilando. É fundamental que, em sala de aula, o
aluno da Educação Infantil saiba que poderá aprender muito com sua própria vida
cotidiana se estiver atento ao que lhe acontece. Para D’Ambrósio (2002, p. 63),
Nada poderia ser mais claro [...] que o reconhecimento da subordinação dos conteúdos programáticos à diversidade cultural. Igualmente, o reconhecimento de uma variedade de estilos de aprendizagem está implícito no apelo ao desenvolvimento de novas metodologias.
Entretanto, trabalhar a etnomatemática no cotidiano do aluno da Educação
Infantil não é algo tão fácil, pois cada uma das crianças possui suas particularidades.
Contudo, é possível identificar suas aptidões e facilidades de compreensão e, ao
mesmo tempo, possibilitar que vivenciem e compartilhem experiências do seu dia a
dia em sala de aula. Neste sentido, o olhar do professor é essencial, visando
contemplar a diversidade da aprendizagem.
É possível afirmar que, a partir do momento em que a Educação Infantil
trabalhar as oportunidades diferenciadas de aprendizagem de criança para criança,
a expansão da etnomatemática estenderá a diversidade de práticas matemáticas às
formas de aprender e ensinar. Neste sentido, os professores da Educação Infantil
precisam ampliar a compreensão do seu próprio conhecimento matemático, levando,
dessa forma, os alunos a assimilarem os valores socioculturais que eles têm sobre
os conceitos matemáticos vividos nas suas experiências de vida. Um exemplo de
como o estudante poderá compreender o mundo ao seu redor encontra-se em Brasil
(1998b, p. 169):
À medida que crescem, se deparam com fenômenos, fatos e objetos do mundo; perguntam, reúnem informações, organizam explicações e arriscam respostas; ocorrem mudanças fundamentais no seu modo de conceber a natureza e a cultura.
O exemplo mostra a possibilidade de trabalhar o conhecimento da vida das
crianças, ampliando o universo cultural por meio de atividades que propiciem ao
aluno da Educação Infantil uma ação no cotidiano (D’AMBRÓSIO, 2002). Por esse
motivo, o discente deve ser instigado a observar e relatar as experiências de sua
própria vida. O professor, por sua vez, necessita proporcionar-lhes atividades do
36
cotidiano que favoreçam um ambiente investigativo e contemplem a ampliação do
conhecimento cultural e social. Segundo Ostetto (2008, p. 100),
[...] deixar a criança experimentar as diversas linguagens, (...) e suas possibilidades, e propor no cotidiano, variadas formas de representação, expressão e leitura do mundo: colorir, brincar, pular, desenhar, recortar e [...] escrever da criança.
Por meio das experiências, as crianças conseguem interpretar a Matemática.
Para Smole (2007), a Educação Infantil tem como perspectiva desenvolver o uso de
conhecimentos preliminares dos alunos na apresentação de novas compreensões e
a exposição de pensamentos relacionados a números, medidas, geometria, de
maneira que fiquem desinibidos frente à nomeada disciplina. Para Knijnik (2004a),
Paige-Smith e Craft (2010), há uma necessidade de projetos educacionais para
desenvolver a dimensão da etnomatemática não apenas como disciplina escolar,
mas um aprendizado constante na vida da criança.
Pimentel (2012) afirma que é na Educação Infantil que os conhecimentos,
ainda que superficiais da Matemática, precisam serem valorizados pelo professor,
propondo um trabalho com a etnomatemática. Tais conhecimentos podem ser
descritos como relações quantitativas e espaciais na consciência das crianças
juntamente com as suas experiências, especialmente, na sala de aula, com a
realização de um feedback, observando, assim, os interesses, necessidades e
conhecimentos de cada aluno.
Conforme Oliveira (2007) e Kinijnik et al., (2012), as crianças já chegam à
escola com algum conhecimento de etnomatemática; contudo, para que elas
percebam isso, é necessário integrá-las umas às outras, para que possam
compartilhar os saberes adquiridos fora da sala de aula.
Partindo desses posicionamentos, Pimentel (2012) cita diversas experiências
a serem vivenciadas com a Matemática durante toda a vida, descobrindo,
compreendendo, averiguando o pensamento, o raciocínio lógico. Sabe-se que os
alunos da Educação Infantil aprendem quando atribuem sentidos ao que fazem,
cujas intenções é construir seu próprio significado de matemática.
Dessa forma, propicia-se às crianças uma vivência com os traços, números,
gráficos, entre outros, pois, como afirma Ostetto (2008), a utilização de uma
37
variedade de materiais manipuláveis e as abordagens pedagógicas podem propiciar
a diversidade de estilos de aprendizagem, melhorando com isso a formação do
conhecimento etnomatemático. D’Ambrósio (1999, p. 97) enfatiza que
As práticas educativas se fundam na cultura, em estilos de aprendizagem e nas tradições e a história compreende os registros desses fundamentos. Portanto é praticamente impossível discutir educação sem recorrer a esses e a interpretação dos mesmos.
Logo, sustenta-se que o ambiente de aprendizagem deve respeitar e valorizar
as experiências e formas de pensar de todos os alunos, para que eles se sintam
confortáveis para fazer perguntas e respondê-las. “O conhecimento é a estratégia
mais importante para levar o indivíduo a estar em paz consigo mesmo e com seu
entorno social, cultural e natural” (D’AMBROSIO, 2002, p. 87). Assim, cabe aos
estudantes perceberem a importância de vivenciar a Matemática de maneiras
diferentes contemplando as experiências, construindo, dessa forma, a autoconfiança
e o desenvolvimento de atitudes que valorizem a aprendizagem da etnomatemática.
É necessária uma variedade de estratégias de ensino e de avaliação da
aprendizagem na Educação Infantil para desenvolver os conhecimentos diversos,
culturas, habilidades, estilos de comunicação, atitudes e experiências dos alunos.
(ROSSETTI-FERREIRA et al., 2008). As crianças precisam de ambientes que criem
uma sensação de pertencimento, encorajem a tomada de riscos, forneçam
oportunidades para o sucesso, ajudem a desenvolver e mantenham a autoconfiança
no processo de aprendizagem da matemática. Os alunos aceitam a aprendizagem
da Matemática ao serem motivados e preparados para aprender mais. Eles podem
ser convidados a vivenciar a etnomatemática diariamente sendo participantes
voluntários em atividades de sala de aula, enfrentar situações desafiadoras,
envolvendo-se, assim, com a prática cotidiana na escola.
Para Paige-Smith e Craft (2010), à medida que os alunos se sentem mais
confortáveis com os conteúdos matemáticos, demonstram mais confiança e
oportunidade para um maior desempenho em sala de aula. Por sua vez, o RCNEI
aponta que, na Educação Infantil, podemos constituir um ambiente favorável para
propiciar a exploração de situações-problema do cotidiano da criança para que ela
adquira maior conhecimento.
38
Não se trata de situações que permitam “aplicar” o que já se sabe, mas sim daquelas que possibilitam produzir novos conhecimentos a partir dos conhecimentos que já se tem e em interação com novos desafios (BRASIL, 1998b, p. 211).
Walle (2009) ressalta que os professores podem incluir oportunidades para
ativar a aprendizagem cooperativa das crianças nas aulas de Matemática,
promovendo uma maior compreensão conceitual, atitudes mais positivas,
melhorando o seu desempenho.
Rossetti-Ferreira et al., (2008) enfatizam que conhecer o processo é um
componente-chave na compreensão e desenvolvimento da Matemática. Na
Educação Infantil, os alunos poderiam, ao fazer previsões, descrever e mensurar as
suas observações dentro e fora da sala de aula, procurar padrões e detalhar as
quantidades que permanecem fixas e as que mudam. Além disso, demonstrar a
capacidade de estabelecer conexões com a etnomatemática e, quando organizadas
de forma coerente, ampliá-las por meio de gráficos e até mesmo desenhos.
A aglomeração de expectativas das conexões já citadas possibilita uma maior
aprendizagem às crianças e ao desenvolvimento profissional de professores da
Educação Infantil. De fato, essas conexões ajudam os docentes a identificar os
conceitos representados nas perspectivas curriculares que não devem ser
ensinados como elementos isolados, mas, uma rede conectada.
Na construção desses conceitos inter-relacionados, os professores
necessitam de uma boa compreensão da Matemática como chave para o ensino e
como esses conceitos conectam as futuras aprendizagens dos discentes
(LIPPMANN, 2009). Esse conhecimento inclui uma apreensão da estrutura
conceitual e atitudes básicas de etnomatemática inerentes no currículo, além do
entendimento da melhor maneira de ensinar os conceitos matemáticos às crianças.
Neste sentido, por meio de estudos referentes ao campo da etnomatemática,
compreende-se que devemos valorizar e procurar entender as diferentes maneiras
de as crianças adquirirem os seus conceitos matemáticos. Com essa perspectiva, no
próximo capítulo, explicito como as unidades de medida e estimativas estão
relacionadas à Educação Infantil.
39
3.1 O uso de instrumentos de Medidas e Estimativas: um olhar na Educação
Infantil
[...] o trabalho na educação infantil deve colocar desafios que dizem respeito às relações habituais das crianças com o espaço, como construir, deslocar-se, desenhar etc., e à comunicação dessas ações. Assim, à educação infantil coloca-se a tarefa de apresentar situações significativas que dinamizem a estruturação do espaço que as crianças desenvolvem e para que adquiram um controle cada vez maior sobre suas ações e possam resolver problemas de natureza espacial e potencializar o desenvolvimento do seu pensamento geométrico (BRASIL, 2001b, p. 229-230).
A citação fez-me refletir sobre o ensino da Matemática nos anos Iniciais,
induzindo-me a repensar o quanto é importante trabalhar essa disciplina de forma a
envolver as relações habituais das crianças, dando sentido ao conhecimento
matemático e “[...] oferecer a elas os instrumentos comunicativos, analíticos e
materiais para que elas possam viver, com capacidade de crítica, numa sociedade
multicultural e impregnada de tecnologia” (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 46).
Considerando que a etnomatemática está interessada em examinar como as
diferentes culturas operam com conceitos matemáticos e que aspectos relacionados
à geometria, usualmente, têm estado ausentes da sala de aula na Educação Infantil,
escolhi as unidades de medida e estimativas como conceitos matemáticos a serem
investigados neste trabalho.
Portanto, como professora de Educação Infantil, tenho percebido que a
geometria não é problematizada nesse nível de escolaridade como forma de
envolver o conhecimento e a experiência de vida do aluno, dando, assim,
importância a métodos de ensinos que têm estado ausentes do contexto e
experiências vividas.
Os conceitos de estimativas que as crianças adquirem por meio de
explorações que fazem do espaço no qual estão inseridas, incluem brincadeiras,
passeios às praças, parques, idas e vindas da escola para casa. Além disso, elas
estabelecem comparações de tamanho, aproximação de resultados ao estimar um
determinado valor ou quantidade para marcar um campo de futebol ou por
informações inseridas em seu dia a dia. Nesse contexto, a criança, desde cedo, está
em contato com as unidades de medidas e estimativas pelas vivências e percepções
40
das noções espaciais.
Nesse sentido, Knijnik et al. (2012, p. 18) argumentam que, “O pensamento
etnomatemático está centralmente interessado em examinar as práticas de fora da
escola, associadas a racionalidades que não são idênticas às racionalidades que
imperam na Matemática Escolar”. Assim, a produtividade de aliar a tendência da
etnomatemática a conteúdos relativos à geometria, com ênfase nas unidades de
medida e estimativas, dá-se na medida em que, por um lado, aspectos geométricos
estão presentes cotidianamente na vida das pessoas e, por outro, quando
problematizados em sala de aulas, frequentemente, são consideradas difíceis e sua
aprendizagem restringe-se a poucos.
Smole (2003) alude que os conteúdos de geometria, como as unidades de
medida e estimativas na Educação Infantil, estabelecem relações com o espaço em
que as crianças vivem, aprendem, exploram, conquistam e se comunicam com o
mundo que precisam conhecer cada dia mais. “Assim, a geometria, o estudo de
formas e as relações espaciais oferecem uma das melhores oportunidades para
relacionar a matemática à dimensão espacial da inteligência” (p. 105). Vale lembrar
que os discentes não devem estudar as unidades de medida e estimativas apenas
para suprir uma necessidade de pontuação em uma avaliação. Sendo assim, é de
responsabilidade do professor fazer com que
[...] os alunos deixem a escola infantil começando a usar expressões que deem indícios de que eles percebem um pouco mais do que a aparência das figuras. Queremos que, por exemplo, eles saibam que um círculo é uma figura redonda, mas que há outras figuras redondas que não são necessariamente circulares. Pensar desse modo prepara também as crianças para caminhar em geometria de modo a poder compreender e analisar cada vez mais as relações geométricas (SMOLE, 2003, p. 108).
Neste contexto, busco mostrar aos alunos a importância de valorizar
conhecimentos que estão presentes no cotidiano e na cultura de diversos grupos,
trabalhando o conteúdo escolar e o apreendido fora da escola, possibilitando um
novo caminho ao trabalhar com unidades de medida e estimativa em sala de aula.
De acordo com o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil,
As medidas estão presentes em grande parte das atividades cotidianas e as crianças, desde muito cedo, têm contato com certos aspectos das medidas. O fato de que as coisas têm tamanhos, pesos, volumes, temperatura diferentes e que tais diferenças frequentemente são assinaladas pelos outros (está longe, está perto, é mais baixo, é mais alto, mais velho, mais novo, pesa meio quilo, mede dois metro, a velocidade é de oitenta
41
quilômetros por hora etc.) permite que as crianças informalmente estabeleçam esse contato, fazendo comparações de tamanhos, estabelecendo relações, construindo algumas representações nesse campo, atribuindo significado e fazendo uso das expressões que costumam ouvir. Esses conhecimentos e experiências adquiridos no âmbito da convivência social favorecem à proposição de situações que despertem a curiosidade e interesse das crianças para continuar conhecendo sobre as medidas (BRASIL, 2001b, p. 226).
Cabe ao professor trabalhar atividades que possibilitem às crianças
perceberem que as medidas e estimavas estão envolvidas em diferentes contextos,
como: culinária, costura, construção civil, entre outras. O fato confirma a
necessidade de os alunos terem um amplo conhecimento sobre as medidas, já que
eles calculam o espaço para determinada edificação. As noções de medidas e
estimativas acontecem quando
As crianças aprendem sobre medidas, medindo. A ação de medir inclui: a observação e comparação sensorial e perceptiva entre objetos; o reconhecimento da utilização de objetos intermediários, como fita métrica, balança, régua etc., para quantificar a grandeza (comprimento, extensão, área, peso, massa e etc.) (BRASIL, 2001b, p. 227).
Assim, “[...] a construção desse conhecimento decorre de experiências que
vão além da Educação Infantil” (Ibidem, p. 227). É importante frisar que as crianças
também utilizam diferentes instrumentos para medir por meio de passos, pedaços de
pau, entre outros objetos, pois
O trabalho com noções matemática na educação infantil atende, por um lado, às necessidades das próprias crianças de construírem conhecimentos que incidam nos mais variados domínios do pensamento; por outro, corresponde a uma necessidade social de instrumentalizá-las melhor para viver, participar e compreender um mundo que exige diferentes conhecimentos e habilidades (BRASIL, 1998b, p. 207).
Portanto, é por meio dessas noções e estratégias que elas desenvolvem
conhecimentos matemáticos que vão auxiliá-las no conteúdo escolar, pois estes
favorecem o ensino e a aprendizagem de conteúdos matemáticos que se farão
presentes no convívio social e econômico de suas vidas.
Dessa maneira, o conhecimento adquirido pelas crianças propicia a
compreensão das experiências por elas vivenciadas de diferentes maneiras,
contribuindo para que, na Educação Infantil, construam a capacidade de pensar e
explorar o espaço em que estão inseridas.
Para iniciar esse processo, as crianças já podem ser solicitadas a fazer uso de unidades de medida não convencionais, como passos, pedaço de
42
barbante ou palitos, em situações nas quais necessitem comparar distâncias e tamanhos: medir as suas alturas, o comprimento da sala etc. Podem também utilizar-se de instrumentos convencionais, como balança, fita métrica, régua e etc., para resolver problemas (BRASIL, 2001b, p. 227).
Por conseguinte, as unidades de medidas e estimativas podem ser
problematizadas em sala de aula, auxiliando as crianças na compreensão do mundo
para
[...] ampliar, aprofundar e construir novos sentidos para seus conhecimentos. As atividades de culinária, por exemplo, possibilitam um rico trabalho, envolvendo diferentes unidades de medida, como o tempo de cozimento e quantidade dos ingredientes: litro, quilograma, colher, xícara, pitada e etc. (BRASIL, 2001b, p. 226).
Nesta perspectiva, os conhecimentos advindos dos ambientes externos da
escola estão em consonância com o pensamento etnomatemático. Os diferentes
modos de praticar e resolver matematicamente questões relacionadas a situações
diferentes das contempladas pelo currículo escolar e que fazem parte do cotidiano
também foram observados na dissertação de Rodrigues (2010). A autora
desenvolveu sua prática em uma turma de Educação Infantil, com crianças de cinco
e seis anos, em uma escola localizada no município de Lajeado, RS.
Essa autora buscou analisar como as crianças faziam uso de estimativas e
comparações ao expressarem quantidades com números. Em uma de suas
observações, ocorreram relatos de alguns alunos, entre eles, “[...] cinco litro é cinco
vezes um metro” (2010, p. 57). Ao indagar à turma sobre isso, ouviu as seguintes
respostas: “É por que tu penso com o teu crânio?” (Ibidem, p. 57); “Não dá pra medir
dois litro, nem três que é mais de dois com a régua, só se bota de dentro da garrafa
pra medir” (Ibidem, p. 57). A pesquisadora voltou a questioná-los: “Mas, então, se na
garrafa tem dois litros, é igual ao dois na régua? Como eles fazem?” (Ibidem, p. 57)
De acordo com um dos alunos,
É que nessa régua dois metro é lá em cima (parede), mas a garrafa é gordinha e a régua é um pouco estreita e cabe mais. É como numa lata de refri, tem menos, ela é mais baixinha, mas tem mais refri, porque vai até em cima, e uma garrafa com tampa não vai até bem em cima, então é porque tem menos refri (Ibidem, p. 57).
Em sua pesquisa, a autora chama a atenção para o relato de um aluno
quando ele utilizou a estimativa e a comparação em uma atividade realizada em sala
de aula.
43
Eu medi a mesa da sala, eu sabia que eu era menor que ela, mais eu não sabia que eu cabia duas vezes nela, precisava de duas réguas e só mais um pedacinho, como a metade do meu pé! Eu também peguei três almofadas pra chega do meu tamanho, se eu colocasse mais um ia ficar maior do que o meu tamanho (referindo-se a tarefa de medir com a régua como tarefa de casa) (RODRIGUES, 2010, p. 49).
O conhecimento das crianças em relação às estimativas e comparações
ocorre por meio de experiências vividas no ambiente familiar, como por exemplo, em
forma de desenhos onde podem mostrar e analisar suas investigações de medidas
comparando informações adquiridas em seu meio. Conforme o RCNEI,
Desenhar objetos a partir de diferentes ângulos de visão, como visto de cima, de baixo, de lado, e propor situações que propiciem a troca de ideias sobre as representações é uma forma de se trabalhar a percepção do espaço (BRASIL, 2001b, p. 232).
Quanto à unidade de medida, Rodrigues (2010) destaca outra observação de
uma aluna: “Se o cabelo cresce um centímetro todo mês, eu acho que ele cresce
como o tamanho dessa piranha, porque é quase igual do tamanho de um centímetro
na nossa régua” (p. 58). O fato comprova mais uma vez que os conhecimentos
podem ter início com a abordagem de problemas cotidianos, através de medidas,
tamanho, peso e volume, entre outros, realizando comparações e estabelecendo
relações com as informações adquiridas com as experiências. Segundo a autora,
Em especial, uma das alunas, ao expressar que nosso corpo é composto da metade de água, utilizou-se de uma régua e, mesmo sem expressar o total 12, afirmou que se poderia pensar que os 6 primeiros centímetros corresponderiam à parte do corpo composta por água e os outros seis, à parte do corpo sem água. Igualmente, noutro excerto uma das crianças, ao comparar o número de passos dados por uma pessoa com o tamanho de seu pé, afirmou que quem tem o pé maior dá menos passos, e aquele que possui o pé menor terão que dar mais passos para cobrir a mesma distância (Ibidem, p. 58).
A partir de um percurso histórico, é possível evidenciar que existem vários
conceitos para o currículo e a educação etnomatemática, pois se trata de uma área
do conhecimento bastante atual. Ademais, não há uma compreensão única a
respeito dos seus significados e propósito. Diante da pesquisa pude perceber que a
etnomatemática produz uma mudança na maneira de ver a Matemática, inserindo-a
na cultura.
Assim, pelas pesquisas apresentadas, é possível enfatizar que as diferentes
formas de utilizar as unidades de medida e estimativas estão presentes nos estudos
de seus autores, cujas práticas e regras aludem à estimativa e à utilização de
44
unidades de medida não convencionais. Portanto, é uma maneira viável de
problematizar o ensino da disciplina Matemática, mas especificamente na Educação
Infantil, tendo como aporte teórico a etnomatemática.
No próximo capítulo, aponto o percurso metodológico com ênfase na
Educação Infantil, onde busco valorizar as diferentes maneiras de produzir
conhecimentos matemáticos.
45
4 PERCURSOS METODOLÓGICOS
Uma pesquisa é sempre, de alguma forma, um relato de longa viagem empreendida por um sujeito cujo olhar vasculha lugares muitas vezes já visitados. Nada de absolutamente original, portanto, mas um modo diferente de olhar e pensar determinada realidade a partir de uma experiência e de uma apropriação do conhecimento que são, aí sim, bastante pessoais (DUARTE, 2002, p. 141).
Inicio este capítulo com a citação acima por concordar com sua autora
quando ela afirma que a pesquisa é um relato de longas vivências onde o
pesquisador investiga o mesmo lugar muitas vezes.
Embora eu tenha habitado o mesmo lugar – a sala de aula – inúmeras vezes
e por um período longo de minha vida, talvez somente agora, com o Curso de
Mestrado, eu me sinta uma pesquisadora. A questão da pesquisa – Como as
unidades de medida e estimativas podem ser problematizadas na sala de aula da
Educação Infantil?, levou-me à inquietação e à suspeita e, como consequência,
passou a fazer parte de minha prática de sala de aula.
Partindo do problema inicial, o objetivo era propiciar e oportunizar uma
percepção das unidades de medida e estimativas que se relacionasse mais com o
contexto vivido pelos alunos no cotidiano. Procurei, então, desenvolver a
investigação em uma turma do Primeiro Período da Educação Infantil no Município
de Boa Vista-RR e operar com conceitos vinculados a essas unidades nas aulas de
Matemática.
A pesquisa desenvolvida teve caráter qualitativo, partindo de uma análise
descritiva e interpretativa das situações de ensino, valorizando o cotidiano no qual
os alunos estavam inseridos. Segundo Borba (2014, p. 2), a pesquisa qualitativa “[...]
46
prioriza procedimentos descritivos à medida que sua visão de conhecimento
explicitamente admite a interferência subjetiva”. A opção por essa abordagem
deveu-se ao fato de eu ter cursado, no Mestrado, algumas disciplinas acerca dos
processos de investigação que me proporcionaram uma compreensão do meu
processo de vivência escolar e de experiência docente. Para Mezarroba e Monteiro
(2008), a pesquisa qualitativa é de fundamental importância, pois possibilita realizar
a compreensão das informações de modo global, prevalecendo o seu contexto.
Como pesquisadora, destaquei alguns aportes teóricos para a realização da
investigação acadêmica através dos quais procurei aprofundar meus
conhecimentos, análises e reflexões no campo da etnomatemática. Para isso,
estudei algumas obras de D’Ambrósio (1990, 1999, 2001, 2002, 2009), além de
dissertações, teses e artigos. Entre eles, os de Duarte (2010), Giongo (2010), Knijnik
(2004a, 2004b, 2010, 2012), que se revelaram fundamentais à organização da
minha pesquisa de campo. Ainda em relação à pesquisa qualitativa, cabe destacar
que, de acordo com Moreira e Caleffe, “As pesquisas nessa área têm por objetivo
abrir a ‘caixa-preta’ da escola e, por conseguinte, da sala de aula, para descobrir os
fatores que determinam e influenciam as experiências dos alunos nesses contextos”
(2011, p. 202).
Desde o início da investigação, minha intenção foi trabalhar com os alunos
conhecimentos matemáticos do cotidiano, ou seja, centrados em práticas não
escolares, vinculadas a conteúdos geométricos e que contemplassem a cultura dos
discentes. Isso levou-me a pensar que poderia efetuar uma prática pedagógica que
envolvesse conteúdos escolares e não escolares, ajudando, dessa forma, os
estudantes a compreenderem e refletirem sobre a importância da Matemática em
nosso dia a dia, apresentando as semelhanças e diferenças apreendidas na escola
e fora dela. Em consonância com pensamento de Giongo (2010), busquei dar
importância e (re)conhecer esses saberes no currículo escolar.
Cabe lembrar que a Matemática não era trabalhada na turma de Primeiro
Período de Educação Infantil de forma que eu pudesse relacionar o conhecimento
cotidiano do aluno aos conteúdos escolares. Nessa conjuntura, pensei em
desenvolver uma pesquisa e, para isso, elaborei uma prática pedagógica centrada
na educação matemática, focalizando questões culturais que contribuíssem com a
47
compreensão de problemas matemáticos. O propósito era envolver as unidades de
medida e estimativas no ensino da Matemática dos alunos da Educação Infantil para
as quais relacionei duas práticas do mundo do trabalho.
Concordo com Giongo (2010) quando ela enfatiza que os saberes do “mundo
do trabalho e os do “mundo da escola” estão ligados e mostra que os resultados de
sua pesquisa surgiram da identificação e análises de práticas do cotidiano da
produção de calçados. Para ela,
[...] a Etnomatemática está atenta para compreender os efeitos que são produzidos quando estes mesmos saberes, não hegemônicos, são impedidos de circular no currículo escolar. A Etnomatemática destaca a importância de que se efetive uma conexão entre a escola e o que lhe é “exterior”, o que inclui, certamente, o “mundo do trabalho”, como a cultura fabril calçadista que examinei afirma (GIONGO, 2010, p. 217).
Conforme já mencionado, muitos autores têm problematizado questões
referentes à pesquisa qualitativa e sua relação com a etnomatemática e, para isso,
utilizado materiais recorrentes de práticas vinculadas à Matemática trabalhada na
escola e fora dela. Os instrumentos de pesquisa que emergiram de minha prática
foram o diário de campo do pesquisador, filmagens da pratica pedagógica, análises
das aulas e desenhos das crianças. As quais levaram-me à compreensão de que a
etnomatemática explora de forma desafiadora as práticas matemáticas produzidas
fora e dentro do ambiente escolar. De acordo com o pensamento de D’Ambrósio,
“[...] encontramos vestígios de atividades matemáticas em todos os cantos do
mundo. Por que não os explorar, por exemplo, introduzindo-os na prática escolar?”
(2009, p. 7). Portanto, acredito ser importante descrever, mesmo que de forma
sucinta, as características da escola e da turma com quem desenvolvia pesquisa.
A Escola Municipal, localizada no município de Boa Vista, Roraima, oferece o
ensino de Educação Infantil nos turnos matutino e vespertino. O referido
educandário, na época da realização da pesquisa, possuía 300 estudantes, sendo
que a turma com a qual desenvolvi a investigação era composta por trinta alunos,
dezoito do sexo feminino e doze do masculino. A faixa etária variava entre os quatro
e cinco anos de idade. Suas residências estavam localizadas nos bairros próximos à
Escola.
A instituição de ensino disponibilizava algumas atividades a seus alunos,
como a Escola Aberta e o Reforço Escolar, em horários opostos às aulas, com o
48
intuito de possibilitar-lhes outras vivências ou mesmo aprofundar os conhecimentos
que estavam sendo estudados. Nela, havia também um quintal disponível aos
exercícios físicos e atendimento psicopedagógico.
Minha prática pedagógica iniciou, na turma em que atuava como professora,
no mês de agosto, segundo semestre de 2013, após apresentar a proposta de
investigação e os instrumentos que seriam utilizados à Equipe Gestora da Escola.
Além disso, no terceiro bimestre desse ano, no turno da manhã, observei algumas
aulas com o objetivo de verificar como a Matemática era trabalhada e quais as
dificuldades que os alunos enfrentavam nessa disciplina.
Assim, a investigação com os alunos foi desenvolvida na turma de Primeiro
Período da Educação Infantil, durante oito dias, nos quais foram desenvolvidas a
leitura e a interpretação; a construção e o manuseio de materiais; trabalhos em
grupo com experimentos; diálogos e questionamentos; produção escrita e atividades
para casa; contextualizando as unidades de medida e estimativas. Quanto à
proposta das atividades, houve a necessidade de planejamentos para cada aula, os
quais continham o conteúdo, o material necessário e o desenvolvimento propostos
aos estudantes da turma investigada.
As observações que realizei e as filmagens da prática pedagógica me
forneceram informações que foram anotadas nos diários de campo, em que
aparecem sistematicamente as descrições das propostas de ensino, as
representações dos alunos e os materiais que auxiliaram na análise do processo de
investigação. Os registros ocorreram em cada etapa da pesquisa, o que me permitiu
estabelecer relações, formular problematizações e verificar fatos vivenciados
durante o período da investigação.
A seguir, apresento as análises dos resultados das atividades propostas
desenvolvidas durante a pesquisa.
49
4.1 Atividades Propostas e Análises dos Resultados
Este sub capítulo está dividido em duas partes: na primeira, descrevo as
atividades realizadas em conjunto com a turma e, na segunda, exponho a análise e
os resultados da pesquisa. A divisão deveu-se pelo fato de eu compreender que a
descrição da prática pedagógica desenvolvida na turma e sua observação eram
extremamente importantes nesta investigação. Para uma melhor compreensão,
apresento o quadro onde se encontram as datas das atividades pedagógicas
realizadas.
Quadro 1 – Aulas, datas e atividades pedagógicas desenvolvidas
Aula Data Atividades Duração
1º
26/05/14
– Questionar o significado da palavra estimativa;
– Explicação e diálogo;
– Apresentar três recipientes de formatos diferentes;
– Lançar a seguinte pergunta: Qual dos recipientes possui a
maior ou menor capacidade de água?;
– Questionar sobre o que levaram em conta para chegar a
escolher um dos recipientes;
– Entregar folha de papel para ilustrar a quantidade de água que
é necessário para encher cada recipiente;
– Verificar na prática qual recipiente possui maior e menor
capacidade.
4 horas
2º
27/05/14
– Questionar novamente o significado da palavra estimativa;
– Explicação e diálogo;
– Formar grupos de 4 e 5 alunos, apresentar duas garrafas pet
de 2 litros e 30 copos de 200 ml, deixar que observem os
materiais;
– Questionar os grupos: Quantos copos são necessários para
encher cada recipiente e registrar as estimativas dos grupos;
– Verificar qual grupo aproximou ou acertou a quantidade
necessária de copos para encher;
– Entregar folha de papel para ilustrar a quantidade de copos
necessários para encher cada recipiente;
– Solicitar para a turma trazer recipientes que usam no dia a dia
de diferentes formas para próxima aula.
4 horas
50
3º
28/05/14
– Diálogo e explicação sobre estimativas;
– Solicitar que os alunos apresentem os recipientes que
trouxeram;
– Propor o manuseio e observação dos recipientes;
– Questionar os formatos, tamanhos e capacidades dos
recipientes;
– Solicitar para a turma estimar a quantidade de copos
necessários para encher cada recipiente;
– Registrar no quadro as estimativas dos alunos;
– Verificar na prática as estimativas, quem acertou ou se
aproximou do resultado;
– Assistir a um vídeo2 sobre “Estimativas”.
4 horas
4º
29/05/14
–Diálogo sobre o vídeo da aula anterior;
–Questionar as estratégias de estimativa apresentadas no
vídeo;
– Apresentar para a turma um saco grande e transparente cheio
de bolinhas coloridas;
– Deixar a turma manusear e observar o saco;
– Questionar a quantidade de bolinhas existente no saco, pedir
e registrar no quadro as estimativas de cada aluno;
– Verificar na prática quem acertou ou se aproximou da
quantidade de bolas do saco;
– Abrir espaço para a turma brincar de estimar com as bolinhas.
4 horas
5º
30/05/14
– Diálogo sobre tamanhos e medidas de diferentes lugares e
objetos que os alunos conhecem;
– Observar o espaço da sala e questionar os tamanhos,
formatos e medidas;
– Questionar quais instrumentos se utilizam para medir;
– Entregar folha de papel para desenhar os instrumentos
utilizados para medir e os que usam ou conhecem.
4 horas
2
Vídeo sobre estimativa: (Sid o Cientista), Disponível em www.playkidsapp.com.
51
6º
02/06/14
– Explicar como os instrumentos de medida convencionais e
não convencionais são utilizados;
– Expor vários instrumentos de medida convencionais e não
convencionais;
– Diálogo e explicação de como podemos medir;
– Convidar uma cozinheira para apresentar suas estratégias de
medida e demonstrar a preparação de um alimento;
– Abrir espaço para perguntas à cozinheira;
– Entregar a receita que a cozinheira apresentou para as
crianças levarem para casa;
– Solicitar que os alunos desenhem as estratégias de medida
que usam com seus familiares.
4 horas
7º
03/06/14
–Explicação sobre as maneiras convencionais e não
convencionais de medir;
– Questionar quais estratégias utilizam para medir um campo de
futebol;
– Apresentar vários livros do mesmo tamanho e solicitar para a
turma observar e manusear;
– Questionar: quantos livros serão necessários para medir o
comprimento da sala de aula? E solicitar que estimem a
quantidade;
– Registrar no quadro as estimativas;
– Verificar na prática quem acertou ou se aproximou;
– Diálogo explicativo sobre o instrumento usado para medir;
– Enviar questionário para os alunos responderem com a ajuda
dos pais.
4 horas
8º
04/06/14
– Assistir ao vídeo3 que mostra as estratégias de medidas;
– Diálogo sobre o vídeo e as estratégias utilizadas;
– Solicitar o questionário enviado para casa;
– Abrir espaço para diálogos e comentários sobre as estratégias
de medidas usadas pelos familiares;
– Apresentar uma profissional da costura que foi convidada para
descrever e mostrar suas estratégias de medida na produção de
roupa;
– Abrir espaço para que a turma faça perguntas à costureira;
– Entregar folha ofício para os alunos desenharem estratégias
de medidas que aprenderam ou usam;
– Diálogos sobre as estratégias desenhadas pelos alunos.
4 horas
Fonte: da autora, 2014.
3
Vídeo sobre medidas: (Sid o Cientista), Disponível em www.playkidsapp.com.
52
A primeira atividade desenvolvida na turma do Primeiro Período da Educação
Infantil teve como conteúdos as formas, capacidade e estimativa, e os materiais
utilizados foram três recipientes de formatos diferentes, mas com a mesma
capacidade – um litro – e copos descartáveis de duzentos ml.
Na primeira atividade, coloquei as crianças sentadas em círculo e as
questionei sobre o que significava para elas a palavra estimativa. Dadas as
respostas, expliquei-lhes que esta é um palpite, chute, dedução, por meio dos quais
é possível se aproximar mais ou menos do resultado. Em seguida, apresentei três
recipientes para que os observassem, manuseassem e comentassem. Após as
análises, ocorreram comentários em relação aos formatos e capacidades desses
materiais. Posteriormente, lancei a seguinte pergunta: Qual dos recipientes possui a
maior capacidade de água e qual possui a menor quantidade? Respondidas as
perguntas, indaguei-os o que haviam levado em conta para chegarem à escolha de
um dos recipientes com maior ou menor capacidade.
Em seguida, despejei água no recipiente que a turma estimou e iniciei um
diálogo sobre os diferentes formatos e tamanhos, afirmando que nem tudo o que
parecia ser igual possuía a mesma capacidade, e que muitos recipientes, embora
fossem desiguais em tamanho e formato, tinham a mesma capacidade.
Na segunda atividade, abordei as noções de medidas e capacidade por
estimativa, em que os materiais utilizados foram duas garrafas pet dois litros e trinta
copos descartáveis de duzentos ml. Durante a aula, ocorreram questionamentos
sobre a palavra estimativa, motivo pelo qual novamente expliquei-lhes o significado.
Logo após, dividi a turma em grupos de quatro ou cinco componentes e apresentei
duas garrafas pet de dois litros e trinta copos vazios descartáveis de duzentos ml. O
procedimento foi por eles observado e, nesse momento, fiz o seguinte
questionamento: quantos copos serão necessários para encher cada recipiente?
Cabe destacar que as estimativas realizadas envolvendo a quantidade de
copos necessários para encher o recipiente, foram escritas e apresentadas por cada
um dos grupos, e, posteriormente, por mim anotadas no quadro. Após as
investigações e registros, verifiquei com a turma qual grupo se aproximou mais ou
menos do resultado ou se houve acertos. E, por fim, solicitei aos alunos que
53
trouxessem de casa, para a próxima aula, recipientes de diferentes formatos que
conheciam ou utilizavam.
Os conteúdos da terceira atividade foram capacidades e estimativa, e, entre
os mais diversos materiais, copos descartáveis de duzentos ml e vídeo. No
desenvolvimento, iniciei um diálogo com a turma sobre noções de estimativa, que
envolveram explicações e questionamentos. Solicitei aos discentes que
apresentassem os recipientes que haviam trazido e permiti que os observassem e
manuseassem.
Em seguida, perguntei-lhes se o formato e a capacidade dos recipientes eram
os mesmos. Então, ordenei que estimassem a quantidade de copos de água
necessária para encherem cada um desses recipientes. Após os registros das
respostas e comentários, verifiquei, na prática, qual grupo havia acertado ou se
aproximado mais do resultado. No final, coloquei um vídeo que explicava como uma
turma de crianças fazia para estimar (Sid o Cientista) no qual reforcei as estimativas
e pedi que observassem com atenção as estratégias de estimativas dos
personagens, que, na próxima aula, questionaríamos.
A quarta atividade teve como conteúdo as medidas de quantidade e
estimativa e os materiais utilizados foram um balde grande e um saco transparente
cheio de bolinhas coloridas. Inicialmente, estabeleci um diálogo com a turma sobre o
vídeo que haviam assistido na aula anterior, enfatizando as estratégias que os
personagens utilizaram para estimar. Nesse momento, a turma teve a oportunidade
de discutir o filme, fazendo perguntas e questionamentos.
Em seguida, apresentei às crianças um saco transparente cheio de bolas
coloridas e solicitei que o observassem e manuseassem. Ato contínuo, pedi que
estimassem as quantidades de bolinhas que havia no saco e perguntei-lhes que
estratégias tinham adotado para chegarem ao resultado. Após o registro das
respostas, conferi se algum grupo acertara ou se aproximara do resultado. No final,
permiti que brincassem com as bolinhas.
A quinta atividade envolveu as noções de medidas por estimativa, cujos
materiais foram papel ofício, lápis, borracha e a sala de aula. O diálogo abordou
tamanhos e medidas dos diferentes lugares e objetos que eles conheciam. Em
54
seguida, solicitei que observassem o espaço da sala de aula e, logo após, formulei
questões sobre os tamanhos, formatos e medidas, tais como: Todos os lados
possuem o mesmo tamanho? Qual o maior e o menor lado? Quais instrumentos
podem ser usados para medir a sala de aula? Quais estratégias empregam?
Quando as empregam? Logo após as respostas, pedi que as desenhassem em uma
folha de papel ofício.
As noções de medidas e instrumentos convencionais e não convencionais
por estimativas foram trabalhadas na sexta atividade. Ao iniciar a aula, expliquei à
turma o conteúdo de unidades de medida, afirmando existir a maneira convencional
e não convencional de medir algo, expondo os seguintes materiais: fita métrica,
régua e trena, que são instrumentos convencionais, e, caso não os tivéssemos,
qualquer objeto poderia ser utilizado para comparar e medir os tamanhos, tais como:
uma linha, um pedaço de cabo ou até mesmo o nosso corpo, considerados
instrumentos não convencionais. Ademais, contei com a presença de uma
cozinheira, a qual apresentou as estratégias por ela usadas na medição não
convencional, momento em que as crianças tiveram a oportunidade de questioná-la.
Por fim, enviei às famílias a receita e as medidas utilizadas pela cozinheira
para fazerem o bolinho de chuva em casa com as crianças. Além disso, entreguei-
lhes uma folha de papel ofício e pedi que desenhassem suas estratégias de medida.
Os conteúdos contemplados na sétima atividade abrangeram as noções de
medidas e instrumentos não convencionais por estimativas e os materiais utilizados
foram os livros e a sala de aula. Ao desenvolvê-los, expliquei aos alunos as
maneiras convencionais e não convencionais de medir algo e, logo após, perguntei-
lhes que estratégias utilizariam para mensurar um campo de futebol.
Continuando a aula, apresentei alguns livros à turma e solicitei que os
observasse e manuseasse. Isto posto, formulei a seguinte pergunta: Quantos livros
serão necessários para medir o comprimento da sala de aula? Anotadas as
respostas no quadro, conferimos quem havia se aproximado mais ou menos do
resultado usando o instrumento de medida não convencional. Por fim, enviei às
famílias um questionário com as seguintes perguntas: Você já mediu algo? Como
usa as medidas? Para que usa? Que estratégias utilizam para medir algo em seu dia
55
a dia? Na aula seguinte, assistiríamos a um vídeo4 no qual seriam mostradas e
discutidas as estratégias de medidas.
Na oitava aula, apresentamos e discutimos as noções de medidas,
estratégias e instrumentos convencionais e não convencionais por estimativas,
sendo o papel de ofício o único material utilizado. No decorrer da atividade,
questionei as crianças acerca das estratégias de medidas que os personagens do
filme, assistido na aula anterior, empregaram. Nesse momento, cada uma teve a
chance de se expressar e problematizar o conteúdo do referido filme. Ao lembrá-las
do questionário que haviam levado para casa a fim de responderem com os pais,
prontamente ele me foi entregue.
Em seguida, analisei com a turma as respostas das famílias ao questionário
que lhes havia enviado. Findos os comentários e indagações, contamos com a
presença de uma costureira, que explicou como aprendeu e realizava suas costuras,
descrevendo suas estratégias de medidas na produção de roupas. Em seguida,
disponibilizou um tempo para perguntas e interpretações. Finalizando, entreguei um
papel ofício para cada criança desenhar o que aprendeu durante as aulas, suas
estratégias de medidas, entre outras.
A seguir, apresento a análise dos resultados das atividades propostas na
pesquisa, onde problematizo estratégias e práticas que as crianças utilizaram para
desenvolver e resolver situações-problema.
4.2 Análise dos Resultados
Neste sub capítulo, é meu intuito evidenciar as duas unidades de análise que
emergiram do material de pesquisa examinado. São elas: a) Trabalhando conteúdos
matemáticos, unidades de medidas e estimativas, por meio de instrumentos de
medidas usualmente ausentes na escola; b) Processos de aprendizagem,
estratégias e comparações vinculadas às formas de vida das crianças. Inicio a
4 Vídeo sobre estimativa: (Sid o Cientista), Disponível em www.playkidsapp.com.
56
análise apontando os materiais de pesquisa que me permitiram eleger a primeira
unidade.
Como expliquei no primeiro capítulo, em minha prática pedagógica, seguia os
objetivos do programa das escolas municipais de Roraima, que traziam “[...]
conteúdos de forma sistematizados, organizados numa sequência lógica” (IAB EM
PAUTA, 2013, p. 2). O desenvolvimento das atividades era realizado através de
livros didáticos, de forma cronometrada e fiscalizada pela coordenação de cada
educandário. No início, os alunos e professores estranharam, mas depois se
adaptaram a esse ritmo de trabalho e, ademais, segundo estes, “[...] facilita muito o
nosso trabalho porque traz tudo bem organizado, bem focado e direcionado, com as
atividades e as habilidades que cada atividade vai desenvolver” (IAB EM PAUTA,
2013, p. 7). Assim,
Sabemos que a prática mais frequente no Ensino de Matemática tem sido aquela que o professor apresenta o conteúdo oralmente, partindo de definições, exemplos, demonstrações de propriedades, seguidos de exercícios de aprendizagem, fixação e aplicação. Assim, pressupõe que o aluno aprenda pela reprodução. Considera-se, pois, que uma reprodução correta é evidencia de que ocorreu a aprendizagem matemática. Essa prática de ensino vem se mostrando ineficaz há muito tempo, pois a “reprodução correta”, geralmente, é uma simples indicação de que o aluno aprendeu a reproduzir procedimentos mecânicos – por memorização –, mas não aprendeu o sentido e os significados do conteúdo e de suas relações, portanto, não saberá utilizá-los em outros contextos (MENDES E LUCENA, 2012, p. 57).
Ao realizar a pesquisa, percebi que as crianças viveram uma grande mudança
quanto à rotina de trabalho em sala de aula. Cabe destacar que elas já estavam tão
adaptadas ao trabalho com o livro que consideravam a prática que estava sendo
realizada menos importante que as atividades do IAB. Em vista disso, era
constantemente questionada por algumas delas durante o desenvolvimento da
investigação. Dentre os questionamentos, muitos deles estavam relacionados à
rotina diária do programa, pois um dos alunos perguntou se não resolveríamos as
atividades que se encontravam no livro. Respondi-lhe que não, pois as que
desenvolveríamos também eram importantes para as suas aprendizagens.
Entretanto, no decorrer do desenvolvimento da prática, a turma se envolveu
completamente com a nova maneira de trabalhar o conteúdo e passou a
desenvolver as tarefas de forma lúdica. Para os alunos, as atividades da pesquisa
estavam sendo vistas como brincadeiras. O mais interessante foi pedido do
57
participante B para que usássemos o livro após as brincadeiras, o que me levou
novamente a explicar-lhe que o que estávamos fazendo era uma atividade que tinha
a mesma importância das trabalhadas no livro. Nesse momento, afirmou que
desejava que todas as aulas fossem dessa forma, pois, segundo ele, “é melhor
assim do que a do livro, que cansa muito minha mão”. Conforme o RCNEI,
As diferentes aprendizagens se dão por meios de sucessivas reorganizações do conhecimento, e este processo e protagonizado pelas crianças quando podem vivenciar experiências que lhes forneçam conteúdos apresentados de forma não simplificada e associados a práticas sociais reais. É importante marcar que não há aprendizagem sem conteúdos (BRASIL, 1998a, p. 48).
Desse modo, observei que as crianças perceberam a diferença ao
desenvolverem as tarefas propostas na pesquisa, pois, para algumas, as
verdadeiras eram aquelas que realizavam em suas rotinas diárias em sala de aula
com o livro do programa. “É importante que as crianças possam também aprender a
indagar e a reconhecer relações de mudanças e permanências nos costumes”
(BRASIL, 2001b, p. 182). Essas mudanças levaram-nas a prestarem mais atenção
às atividades propostas, demonstrando, através de ações, os seus interesses em
contribuir com relatos vivenciados, o que lhes facilitava a compreensão.
Já em outro momento, foram trabalhados conteúdos de noções de medidas,
estratégias e instrumentos convencionais e não convencionais por estimativas.
Dentre essas atividades propostas, foi enviado um questionário aos pais para que o
respondessem junto aos filhos. Para minha surpresa, o que não estava respondido
continha a seguinte mensagem:
58
A partir dessa observação, percebi que a proposta da pesquisa causou um
impacto a esse pai, pois ele questionou o conteúdo que estava sendo ministrado a
59
seu filho, achando-o muito difícil para a idade e o ano em que este estudava. Diante
disso, comuniquei-lhe que eu estava desenvolvendo um projeto de mestrado e que o
meu objetivo era trabalhar com as crianças as formas de vida (cotidiano), ou seja,
mostrar que as estratégias que os pais utilizavam em casa eram conhecimentos que
podiam ser trabalhados em sala. O mesmo respondeu que era interessante o
trabalho, mas que não estava acostumado a fazer atividades com o filho em casa.
De acordo com Smole (2003, p. 62),
Hoje, é sabido que as crianças não entram na escola sem qualquer experiência matemática, e desenvolver uma proposta que capitalize as ideias intuitivas das crianças, sua linguagem própria e suas necessidades de desenvolvimento intelectual requer bem mais que tentar fazer com que os alunos recitem corretamente a sequência numérica.
Uma proposta de trabalho de matemática para a escola infantil deve encorajar a exploração de uma grande variedade de ideias matemáticas relativas a números, medidas, geometria e noções rudimentares de estatística, de forma que as crianças desenvolvam e conservem um prazer e uma curiosidade acerca da matemática.
Assim, com o desenvolvimento da prática de pesquisa e os estudos do
mestrado, pude compreender que, ao trabalhar os conteúdos de forma diferenciada
da rotina da turma pesquisada e do programa implantado, subverti a ordem do
programa, estando, portanto, em consonância com a etnomatemática, um campo
que não se submete ao currículo. Em minha prática, busquei acoplar a
etnomatemática aos conteúdos matemáticos, valorizando e propiciando um
ambiente de aprendizagem ao relacionar os conhecimentos do cotidiano das
crianças com os do currículo escolar. Mendes e Lucena (2012, p. 134) descreveram
que
Nesse cenário, a Etnomatemática se destaca como propiciadora de um ambiente favorável à aprendizagem, pois, valoriza e usa os conhecimentos do grupo cultural do qual o estudante faz parte, utiliza seus conhecimentos prévios e o saber extra-escolar, sem desconectá-los da realidade de outras comunidades, primando por mostrar as diferenças e os pontos em comum entre elas, suas comunalidades e suas diferenças.
É importante salientar que, em nenhum momento, pretendi emitir juízos de
valor do programa; a minha intenção foi somente realizar uma experiência
pedagógica mostrando que é possível trabalhar, na Educação Infantil, os modos de
vida praticados pelas crianças, colocando o conteúdo escolar em consonância com
as suas experiências, que, segundo Wanderer (2014, p. 19),
60
Este é um ponto central nas discussões da Etnomatemática. Ao questionar a inclusão de certos conhecimentos matemáticos no currículo escolar, esta perspectiva não propõe a exclusão desta matemática que vem sendo considerada como legitima. Ela passa ser vista como uma Etnomatemática, assim como a prática pelas crianças em seus jogos ou brincadeiras, pelos agricultores, pelos indígenas, pelos construtores, mas que ocupam uma posição diferente das demais.
Cabe destacar que, com o desenvolvimento da pesquisa, tive a oportunidade
de perceber as capacidades criativa e produtiva das crianças diante de atividades
que lhes proporcionam um ambiente favorável ao relato de suas experiências,
fortalecendo sua aprendizagem em conjunto com suas vivências e práticas do
cotidiano.
As crianças nos surpreendem a cada instante, mostrando que possuem
conhecimentos acerca das relações e das experiências de vida com o que foi
trabalhado em sala de aula. Por exemplo, ao desenvolverem uma atividade em
grupo envolvendo o conteúdo de estimativa, os alunos, de forma espontânea,
interagiram entre si, estabelecendo um paralelo entre suas experiências de vida e o
conhecimento escolar.
As interações interculturais motivam a busca constante por novas estratégias de ensino que contemplem as várias classes como um todo, compartilhar conhecimentos e descobertas através da relação entre distintas culturas faz parte do crescimento intelectual do ser humano (MENDES e LUCENA, 2012, p. 159-160).
Neste sentido, pude observar o valor significativo do trabalho em grupo,
ocasionando nos alunos tamanha união que os levou a nomearem suas equipes. O
ato comprova que esse tipo de atividade é uma estratégia presente no cotidiano das
crianças, facilitando a integração de qualquer conteúdo. Alguns participantes que,
no primeiro dia da investigação, não conseguiram executar as tarefas, ao
trabalharem em grupos, passaram a se integrar e participar eufórica e ativamente
das atividades. Ao final, dois grupos conseguiram estimar a quantidade correta de
copos para encher um dos recipientes.
A interação entre os componentes da maioria dos grupos também merece
destaque. Com isso, a aula foi tão produtiva que o horário se esgotou, motivo pelo
qual nossa permanência em sala de aula foi além do previsto. Outro fato positivo e
surpreendente foi a declaração do participante H, ao afirmar que, na hora do recreio,
61
tentara estimar a quantidade de meninas e meninos presentes na escola. Segundo
ele, achava que havia uns quarenta meninos e um pouco mais de meninas.
O ambiente escolar aponta para a diversidade e torna-se espaço destinado a esta rica experiência na troca de saberes. O intercultural como processo humano, estabelece rotas culturais no sentido de trocas, entre grupos. Não é um movimento de hibridação ou de estar na separação entre as culturas é um processo, um movimento à presença da alteridade, da diferença (MENDES e LUCENA, 2012, p. 160).
Ao observar que as crianças tentavam ensinar umas às outras por meio de
adivinhações – afirmei que estimativa significa brincar de adivinhar –, percebi que
elas tinham facilidades de expressão e, para interagir e se comunicar com as
demais, usavam uma linguagem simples e clara.
Posteriormente, mostrei à turma um saco grande e transparente cheio de
bolas coloridas, explicando-lhe algumas estratégias que usava para tentar me
aproximar do resultado, ou seja, estimar. Ao terminar a explanação, entreguei o
material para que cada criança o manuseasse e observasse e, assim, pudesse
estimar e adivinhar a quantidade de bolinhas nele contidas.
À medida que cada uma respondia, eu anotava as estimativas e lhe
perguntava que estratégias levaram em conta para estimar a quantidade de bolinhas
existentes no saco. Algumas crianças afirmaram que observaram o tamanho do
saco, outras, que havia muitas bolinhas do mesmo tamanho, por isso apareceram as
seguintes respostas 10, 13, 08, 15 e 22 bolinhas. Em seguida, retiramos e contamos
as bolinhas e as colocamos em um balde grande para conferir a quantidade exata.
Dessa forma, verificamos que um aluno se aproximou do resultado.
Nesse momento, consenti que a turma explorasse e brincasse de forma lúdica
com as bolinhas. Surpreendentemente, alguns alunos começaram a estimar a
quantidade com as quais estavam brincando. Um dos grupos iniciou pelas azuis, o
que levou os demais a escolherem outras cores. Ademais, no decorrer da
brincadeira, ouviam-se comentários sobre estimativas, instante em que o
participante C comentou sobre o seu cotidiano, atestando que sua mãe também
tentava adivinhar a quantidade de quilos de arroz suficiente para o mês, pois,
segundo ela, gastava muito dinheiro para comprá-lo.
62
Nesse sentido, Azevedo e Giongo (2014, p. 84) escrevem que a
“Etnomatemática possibilita a emergência de práticas pedagógicas”, proporcionando
uma aproximação “[...] entre o contexto cultural dos alunos e os conteúdos
ministrados, bem como permitir a emergência de questionamentos sobre
conhecimentos matemáticos” (Ibidem, p. 84). Nessa perspectiva, Mendes e Lucena
enfatizam que,
Ao relacionar ideias matemáticas entre si, os estudantes podem reconhecer princípios gerais, tais como proporcionalidade, igualdade, composição, decomposição, inclusão e perceber que processos como o estabelecimento de analogias, de indução e dedução estão presentes tanto no trabalho com números e operações quanto no trabalho que envolve espaço, formas e medidas. O estabelecimento de relações é fundamental para que o aluno compreenda efetivamente os conteúdos matemáticos, pois, abordados de forma isolada, eles não se tornam uma ferramenta eficaz para resolver problemas e para aprendizagem/construção de novos conceitos, de procedimentos e de atitudes (2012, p. 34).
De acordo com Rodrigues, ao “[...] refletir sobre a matemática usualmente
ministrada na Educação Infantil” (RODRIGUES, 2010, p. 74), é importante que o
professor compreenda e busque trabalhar os conteúdos matemáticos de forma a
envolver as vivências culturais do aluno que estão relacionadas à aprendizagem
matemática. A autora relata
[...] que, mesmo que a escola mostre preocupada em valorizar os conhecimentos que as crianças já trazem das suas vivências – utilizando-se, por exemplo, da metodologia de projetos, outros modos de pensar a docência precisam ser problematizados. Não se trata somente de incorporar novas metodologias: os conteúdos precisam ser (re) pensados. Penso que discussões como as que tenho acompanhado, tais como aquela que, há tempos, discute a posição “correta” do número zero – se no início ou no final – na sequência de um a nove, podem ser mais produtivas se apontarem para questões como: É possível limitarmos a ordem numérica às unidades? Faz sentido operarmos com esta limitação quando os alunos desta faixa etária já operam com números que incorporam dezenas, centenas e milhares? Como incorporar as tecnologias, em especial o computador e a calculadora na prática pedagógica, tendo em vista que, como meu estudo apontou, as crianças têm acesso e interesse nestas temáticas? (RODRIGUES, 2010, p. 75).
Como bem aponta Rodrigues, durante a investigação, pude observar que as
crianças exploravam cada vez mais o seu contexto, numa demonstração de que, ao
pensarmos que são incapazes de realizar algo, elas nos surpreendem com
questionamentos e comparações, dando respostas inesperadas. Conforme Smole
(2003, p. 160-161),
Neste ambiente, a autonomia é estimulada e os erros fazem parte do processo de aprendizagem, devendo ser explorados e utilizados de maneira
63
a gerar novos conhecimentos, novas questões, novas investigações num processo permanente de refinamento das ideias discutidas.
Isto posto, apresento a minha segunda unidade de análises – Processos de
aprendizagem, estratégias e comparações vinculadas às formas de vida das
crianças –, em que descrevo suas reações diante da pesquisa proposta. Dentre as
atividades realizadas, evidencio as mais significativas, ou seja, as que considero
mais importantes. Para uma maior compreensão, exponho as minhas observações e
as estratégias que a turma empregou com relação aos instrumentos de medida e às
estimativas. Seguem, portanto, as produções da turma.
PARTICIPANTE A: O campo de futebol mede 25 passos de medida do meu
pé, o tamanho do campo tem que ser grande e a trave mede 10 passos do
meu pé, as duas têm que ser do mesmo tamanho, porque senão o time faz gol
mais rápido na trave maior e o outro fica muito difícil pra fazer numa trave
pequena.
Na sétima aula, questionei quais instrumentos a turma utilizaria para
demarcar um campo de futebol. Entreguei folhas de papel para desenharem os
instrumentos utilizados para medir.
64
Na sexta aula, trabalhei com instrumentos de medidas convencionais e não
convencionais. Solicitei então aos alunos que desenhassem suas estratégias de
medidas.
PARTICIPANTE B: Eu medi com minhas mãos o caderno e sei quantas mãos
precisa para saber o tamanho do meu caderno, é preciso 5 mãos do tamanho da
minha. Eu descobri que o lápis é menor e só usei 1 vez, e o caderno tive que
colocar minha mão 5 vezes e o caderno mede mais.
65
Tais produções me levaram a compreender que os conhecimentos dos alunos
estavam fortemente vinculados aos seus contextos. Como exemplo, cito as
declarações de um aluno durante a realização da sétima aula, em uma das
atividades propostas. Nos momentos de diálogo, o aluno desenhou e comentou que
sua mãe trabalhava em uma banca de feira todos os domingos, mas ela não
conseguia usar a balança por não saber digitar os números e, ademais, o peso, na
tal balança, às vezes, parecia maior e, outras, menor, por isso preferia a lata para
medir. O menino acrescentou que o irmão já havia tentado ensiná-la como usá-la,
mas ela não aceitava por considerá-la muito difícil. Por fim, relatou que dissera à
mãe “que a balança veio para ajudar as pessoas com os números e a matemática”.
PARTICIPANTE C: Eu também medi com a régua e do mesmo jeito na régua o
caderno quase alcança o tamanho da régua, e o lápis ficou lá embaixo da régua.
66
PARTICIPANTE Z: A balança veio para ajudar as pessoas com os números e
a matemática.
O excerto acima comprova que os instrumentos tecnológicos estão inseridos
na vida cotidiana das crianças, pois, além do contato diário com os diferentes modos
de praticar a matemática de sua mãe, o aluno também utilizava instrumentos de
medida tecnológicos (balança digital). O fato evidencia-se no instante em que ele
relata que “a balança veio para ajudar as pessoas com os números e a matemática”
e que o valor é informado no momento em que é pesado. Portanto, os meninos e
meninas têm conhecimento de que certos instrumentos tecnológicos facilitam e
ajudam o dia a dia das pessoas.
PARTICIPANTE D: Eu pedi para o meu pai adivinhar quantas estrelas tem no céu
e ele me falou que ninguém sabe quantas estrelas tem no céu, acho que o céu e
muito grande, eu desenhei o céu com a lua e muitas estrelas e tentei adivinhar,
mas como o céu e muito grande, eu acho que passa de 100 estrelas. E todo céu
só tem uma lua.
67
Na quinta aula, ao entregar folha de papel para os alunos desenhar os
instrumentos utilizados para medir, que usam ou conhecem, o participante D
desenhou e expressou momentos do seu cotidiano com seu pai.
PARTICIPANTE E: O braço do meu pai é maior do que o meu, ele consegue
abraçar eu e meu irmão e segurar bem forte, e o meu braço é menor, porque fui
abraçar meu pai e meu irmão e não consegui abraçar forte os dois, só um.
Os braços dos pais de todas as crianças são bem grandes e fortes do que os dos
filhos.
68
PARTICIPANTE F: Eu já vi minha mãe usar a vassoura, régua e fita para medir as
coisas em casa, uma vez ela mediu meu tamanho com uma vassoura e disse que
eu estava ficando maior que a vassoura.
A minha Irmã usa a régua para desenhar e ver o tamanho das coisas que ela faz no
caderno dela.
E com a fita de medir eu já brinquei com meu colega lá de perto de casa, a mãe dele
faz roupas e nós brincamos de medir nosso corpo com a fita igual ela faz.
69
PARTICIPANTE G: Será como as pessoas fazem para medir um barco grande, a
régua grande é menor que o barco, acho que muitas pessoas grandes, fortes
conseguem medir o barco. Se usarem a trena é mais fácil, e se ela acabar é só
colocar várias vezes, igual como as pessoas estão fazendo para medir, ai
conseguem medir o barco.
70
Na segunda aula, ao entregar folha de papel para os alunos desenhar a
quantidade de copos necessários para encher cada recipiente.
PARTICIPANTE H: A garrafa mais gorda cabe umas 50 bolinhas, mas na
garrafa mais fina cabe poucas bolinhas, eu acho que têm 20 bolinhas, acho que
a garrafa gorda tem mais espaço e cabe bem mais, e na fina as bolinhas ficam
apertadas e assim cabe poucas.
É como se fosse uma criança gorda e uma magra, a gorda tem mais peso e
mais força por isso ela consegue levantar a criança magra. A magra tem menos
peso e menos força e não consegue levantar o mais pesado.
PARTICIPANTE I: A garrafa maior cabe mais copo de água e a garrafa menor
cabe menos copo de água. Eu sou pequeno e bebo menos água que o meu pai,
ele é grande e bebe água no copo grande e eu no copo pequeno, e a minha
barriga é pequena e não cabe muita água que a do meu pai que é grande.
71
Participante Q: A saia da minha irmã é grande, e minha avó me falou que dá
de fazer três saias para o meu tamanho. Como sou pequena, é preciso pano
pequeno para fazer uma roupa pra mim.
Na oitava aula, foi convidada uma costureira para descrever e mostrar suas
estratégias de medidas na produção de roupa. abriu-se espaço para a turma fazer
72
perguntas a costureira e após, foi entregue folhas de papel para os alunos
desenharem estratégias de medidas que aprenderam ou usam.
Participante F: Eu aprendi com minha avó que a árvore pequena bebi três baldes
de água cheia e a árvore grande só bebi um balde cheio.
Ela me falou que a pequena tem que molhar mais para crescer rápido.
Na primeira aula, ao entregar folha de papel para os alunos desenharem a
quantidade de água necessária para encher cada recipiente, o participante F
73
desenhou e fez uma comparação com relação à quantidade de baldes de água que
havia aprendido com sua avó para regar as plantas.
Participante K: A minha tia usa xícara quando faz bolo, e coloca três xícaras
de trigo quando está misturando as coisas para fazer o bolo.
Na sexta aula, foi convidada uma cozinheira para descrever e mostrar suas
estratégias de medidas para preparação de um alimento. Solicitei que os alunos
desenhassem as estratégias de medida que usam com seus familiares.
75
Participante E: meu pai mede com o cabo da vassoura muitas coisas em casa,
como o guarda-roupa do meu quarto. Ele usa a régua e o lápis para marcar as
coisas quando mede o tamanho dos desenhos que ele pinta na parede.
Na quinta aula, ao entregar folha de papel para os alunos desenharem os
instrumentos utilizados para medir, que usam ou conhecem, o participante E
76
desenhou e expressou momentos do seu cotidiano com seu pai, que utiliza
instrumentos de medida convencional e não convencional.
Os descritos acima me autorizam a afirmar que as crianças usaram diferentes
estratégias, estimando e comparando para expressar conhecimentos e ideias
adquiridas em seu contexto, relacionando-os com os conhecimentos escolares.
Quando essa capacidade é potencializada pela escola, a aprendizagem apresenta melhor resultado. Por isso, é fundamental não subestimar o potencial matemático dos alunos, reconhecendo que muitos deles resolvem problemas, razoavelmente complexos, ao lançar mão de seus conhecimentos sobre o assunto e buscar estabelecer relações entre o já conhecido e o novo (MENDES E LUCENA, 2012, p. 34).
Cabe sublinhar que o participante A expressou as regras para medir um
campo de futebol ao declarar que devemos dar vinte passos para delimitar a área do
campo e dez com o pé para medir o espaço da trave (gol). Ele acrescentou que a
área do gol precisa ser menor que a do campo, e que os lados desta têm de ter o
mesmo tamanho, pois o lado maior facilita o gol. Portanto, o contexto revela que a
aquisição de vários conhecimentos ocorreu pelas suas convivências e brincadeiras.
Ademais, ele criou regras próprias ou necessidades ao descrever que, para
demarcar uma área para jogar futebol, o espaço do campo e das traves deve possuir
as mesmas medidas para que todos tenham oportunidades iguais no jogo. Segundo
Wanderer (2014, p. 19),
Outro elemento importante quando se discute a incorporação de práticas das culturas dos alunos no currículo escolar é que, ao trabalhar com conhecimento matemático praticado por um determinado grupo, não se trata de utilizá-lo apenas como “ponto de partida” para o ensino das matemáticas acadêmica e escolar, o que reforça ainda mais a supremacia destas sobre as demais.
Já o participante I, em seu relato, compara a quantidade de água existente
nos copos para colocá-la na garrafa maior, que corresponde ao que seu pai bebe.
Por outro lado, no recipiente menor, cabe menos água, condizendo com a
quantidade que ele ingere, justamente por ser menor que o pai.
Esses fatos atestam que as crianças adquirem maneiras específicas de
praticar a matemática, podendo ser pensadas e vinculadas à forma de vida e cultura
desses meninos e meninas. O convívio em sociedade tem um papel fundamental no
processo de identificar as formas geométricas presentes no cotidiano, pois,
conforme Mendes e Lucena (2012), as ideias e relações geométricas são
77
elaboradas por seres humanos. Os professores de Matemática podem trabalhar a
geometria enfatizando a etnomatemática, que deverá ser estudada pelos alunos
durante a vida, demonstrando ser o melhor momento para adquirir essa
aprendizagem.
A nosso ver, na Educação Matemática a Etnomatemática pode estabelecer o diálogo considerado desejável justamente entre os saberes tradicionais de uma comunidade e os saberes escolares. É o diálogo etnomatemático que valoriza os saberes culturais, que é capaz de investigar ideias matemáticas que emergem desses saberes e conectá-las aos saberes matemáticos escolares dando maior concretude a diversos conteúdos para gerar aprendizagem significativa para o aluno e facilitar a compreensão de ideias e conceitos abstratos (MENDES E LUCENA 2012, p. 59).
Ao assistirem às apresentações da costureira e da cozinheira, os alunos
reconhecerem que certas práticas desenvolvidas por essas profissionais, de
maneiras diversas, faziam parte de suas vivências culturais. As estratégias por elas
utilizadas mostraram que o conteúdo matemático estava presente no trabalho diário
de ambas, facilitando a compreensão das crianças, que identificaram semelhanças
entre o conhecimento escolar e o não escolar. “De fato, a nossa preocupação é
encontrar maneiras de relacionar as crianças com sua cultura etnomatemáticano
curso da aprendizagem da matemática escolar” (MENDES E LUCENA, 2012, p. 58).
As crianças também manifestaram o desejo de conhecer as práticas e
estratégias de produção da costureira, pois, além de interagirem de forma dinâmica
através de questionamentos e comentários, ofereceram-se para servir de modelo
para a profissional tirar as medidas. Tais fatos me permitem afirmar que a
participação ativa dos alunos em todos os momentos da aula deveu-se às atividades
propostas pela pesquisa, consideradas pela turma como algo diferente do que ela
anteriormente vivenciava em sala de aula.
[...] os sujeitos aprendem de forma diferenciadas, que a construção de significados se dá no processo de construção do enredo comunicativo, pode ser um factor preponderante para a organização de actividades de ensino em que a criança participe significativamente na construção de conceitos (MOURA, 2007, p. 63).
Dessa forma, todos os envolvidos com a educação etnomatemática foram
beneficiados ao adquirirem maiores conhecimentos, percepção que se tornou
evidente entre a pesquisadora e os alunos da instituição de ensino. Sendo assim, “O
encontro de culturas é um fato tão presente nas relações humanas, quanto ao
78
próprio fenômeno. Não há encontro com outro sem que se manifeste uma dinâmica
cultural” (D'AMBRÓSIO, 2002, p. 79).
D'Ambrósio (2002) nos proporciona a obtenção de uma melhor percepção na
prática matemática e do seu próprio papel e lugar na sociedade. Ademais, oferece a
oportunidade de filosofar e refletir criticamente sobre essa prática, ampliando a visão
de mundo. Dessa forma,
A cultura se manifesta no complexo de saberes/fazeres, na comunicação, nos valores acordados por um grupo, uma comunidade ou um povo. Cultura é o que vai permitir a vida em sociedade. [...] resultados dessa dinâmica do encontro são as manifestações interculturais, que vêm se intensificando ao longo da história da humanidade (D’AMBRÓSIO, 2002, p. 59).
Os resultados advindos do encontro de culturas, que acoplam
saberes/fazeres com conteúdos escolares, têm o objetivo de facilitar o
ensino/aprendizagem dos alunos, pois uma das propostas da etnomatemática é o
respeito às diferenças e legitimidade dos conhecimentos das distintas formas de
culturas dos povos (ALVES, 2010). Um segundo aspecto da etnomatemática é a
didática, por meio da qual a aprendizagem está configurada nesse processo, onde a
abordagem é interativa e crucial (CAMPOS, 2014), e os dois aspectos, obviamente,
têm motivos recíprocos.
Constatei que as unidades de medidas não haviam sido anteriormente
trabalhadas com os alunos. Contudo, no momento em que ocorreu a relação do
conteúdo com as suas vivências culturais, eles passaram a entender o assunto e
expressar seu aprendizado, demonstrando a relevância deste e o prazer de
aprender de forma lúdica.
Segundo Smole (2003), os alunos fazem parte de um ambiente social em que
muitas informações são disponibilizadas, mas eles só as compreendem quando
exploradas em seu próprio espaço. “Quando chega à escola, a criança traz muitas
noções de espaço, porque suas primeiras experiências no mundo são, em grande
parte, de caráter espacial” (p. 105). Como exemplo, nomeio o participante J, que, em
um de seus comentários, declarou que manuseava três livros de tamanhos
diferentes: grandes, médios e pequenos. Além disso, afirmou que o caderno médio é
menor que o grande; o pequeno é menor, que o médio; mas a professora é maior
que os três.
79
Isso evidencia que o conhecimento infantil é uma construção espacial e que
as crianças se relacionam com o mundo que as cercam, construindo cotidianamente
as formas de representações desse mundo.
Durante a investigação, evidenciaram-se diferentes formas de lidar com as
unidades de medida e estimativas, pois cada criança expôs suas experiências
vividas fora do ambiente escolar, colaborou com sugestões, fez comparações e
comentários que envolviam o conteúdo de forma significativa.
Os conhecimentos das vivências e da cultura possibilitaram o
desenvolvimento deste estudo, integrando os conteúdos escolares com os
conhecimentos do cotidiano da turma, mostrando que os mesmos utilizam diferentes
instrumentos de medida, numa construção coletiva que envolveu os participantes da
pesquisa, conforme os exemplos abaixo:
A minha irmã é gordinha e baixinha e o meu irmão é
magro e alto, mas quem pesa mais é a minha irmã que
é baixinha.
(Participante H)
O meu pai é mais velho que o meu irmão. E o meu
irmão, que é novo, carrega a botija grande de gás
pesada sozinho e o meu pai não.
(Participante D)
Minha mãe me disse que estimar é quando não dá
para contar, aí você tenta adivinhar.
(Participante A)
80
Meu pai é pedreiro e tem uma trena, mas ele só gosta
de medir a parede com pedaço de pau.
Ele me mediu e disse que estou crescendo, que eu
tenho a metade do seu tamanho.
(Participante F)
Eu medi o tapete de casa com a mão, e ele mede 10
mãos minhas.
(Participante R)
Minha mãe usa a caneta para fazer uma linha retinha
como se fosse a régua, a caneta é pequena e ela
coloca no papel muitas vezes
(Participante P)
Eu brinco de fazer bolinho com barro, areia e água.
Quando coloco um copinho de água bem cheio junto
com o barro, fica parecido uma massinha. E se eu
colocar o copinho cheio na areia fica muito mole, é que
eu tenho que colocar pouca água para ficar igual uma
massinha.
(Participante L)
81
Os descritos acima são algumas das compreensões expostas pelos alunos,
evidenciando a sua interação com os conhecimentos matemáticos presentes em seu
cotidiano. Sobre esses entendimentos, posso afirmar que o participante H se referiu
à noção de peso e tamanho ao comparar a sua irmã com o irmão, diferença que ele
identificou em seu dia a dia.
Por sua vez, o participante D apresentou noções de passagem do tempo ao
comparar a idade de seu pai com a do irmão, utilizando também noções de peso. Já
o A relatou que sua mãe explicava o significado da palavra estimativa de uma forma
simples, ou seja, utilizava estratégias do cotidiano – brincar e adivinhar é a mesma
coisa que estimar segundo ela.
Conforme relatos do participante F, seu pai empregava diferentes estratégias
do cotidiano para verificar o tamanho do seu filho e, para isso, envolvia os
instrumentos de medida. Os expostos de R permitem inferir que ele fazia uso de
instrumento não convencional como unidade de medida – a mão – e, na medição do
tapete, verificava quantas eram necessárias para descobrir-lhe o tamanho.
Segundo o participante P, sua mãe, em casa, utilizava a caneta – um
instrumento de medidas não convencional – para ter a noção de tamanho e
quantidade. Também a criança L, em suas brincadeiras, usava um instrumento não
convencional – o copo – para verificar a quantidade de água.
Dessa forma, as crianças se permitiram pensar de diferentes maneiras e
utilizavam estratégias para resolver as situações do cotidiano, relacionando-as a
suas
[...] manifestações de competências, de aprendizagem advindas de processos informais, da relação individual e cooperativa da criança em diversos ambientes e situações de diferentes naturezas (BRASIL, 2001b, p. 213).
Penso ser importante frisar que os excertos acima levaram-me a pensar nas
diferentes práticas que a cozinheira apresentou à turma e as estratégias que
empregava para cozinhar.Suas explicações prenderam a atenção das crianças, que
observavam a maneira como ela media os ingredientes visando à preparação dos
bolinhos de chuva. Dessa forma, a aula tornou-se produtiva, pois despertou a
curiosidade dos alunos, que passaram a relatar a forma como suas mães
82
preparavam os alimentos em casa. Por exemplo, o participante J afirmou que ela, ao
salgar o arroz, usava os dedos para colocar a quantidade certa de sal – era só uma
pitadinha/pouquinho –, comentava sua mãe.
Houve também quem enunciasse que a mãe utilizava um copo de extrato de
tomate para medir a quantidade de arroz. Na ocasião, o participante G comunicou
que seu desejo era medir uma baleia com a trena e uma régua e que ambas
crescessem e ficassem bem longas; caso contrário, haveria a necessidade de
muitos homens grandes e com braços fortes para medi-la.
As formas de representações espontaneamente construídas constituem um dos principais pontos de partida para a aquisição da linguagem matemática. Tais condutas são, pois, facilitadas quando se permite que o aluno consiga estabelecer relações ou ligações entre os conceitos matemáticos e os constructos utilizados fluentemente desde o início do processo (MENDES e LUCENA, 2012, p. 161).
Ainda, durante a exposição da cozinheira, os alunos manifestaram seu
entusiasmo ao comentarem entre si que pretendiam fazer bolinhos em casa com a
mãe. A animação cresceu no momento em que questionei a profissional sobre as
medidas por ela utilizadas, pois, além de responderem prontamente às perguntas,
as crianças relataram fatos vivenciados fora da escola, tais como: as brincadeiras
envolvendo “comidinhas” de areia, barro e água, esclarecendo que, caso
colocassem dois copos pequenos de água na areia, esta ficava mole, mas o barro
não.
Nessa perspectiva, as práticas e estratégias que as crianças empregavam,
expondo e comentando conhecimentos adquiridos no meio cultural, tornaram-nas
significativas. Ademais, constatei que, assim como os adultos, elas também tinham
capacidade de medir e atribuir sentido às diversas unidades de medida, utilizando
sua forma de vida para expressar seu conhecimento, conforme pode ser observado
nas transcrições abaixo.
Eu descobri que sou maior que o cabo da vassoura,
mas meu irmão é menor, ele é pequeno.
(Participante N)
83
O sapato da minha mãe é maior que o sapato do meu
pai, mas meu pai pesa mais que ela.
(Participante S)
O meu sapato tá apertado no meu pé, e consegui
colocar o sapato do meu primo que é maior que eu, vi
que o meu pé tá grande.
(Participante O)
Os participantes acima empregaram diferentes instrumentos de medidas. Já
o participante N fez um paralelo de tamanho utilizando um instrumento não
convencional; o S mostrou que ele se valia da noção de peso e tamanho ao
comparar os sapatos. Já o participante O afirmou que usa estratégias próprias para
comparar o tamanho de seu pé com o de seu primo. Por conseguinte, os excertos
acima evidenciam que as crianças aprenderam a elaborar suas estratégias de
pensamentos na busca de soluções de situações–problema presentes em seu
cotidiano. Assim,
Utilizando recursos próprios e pouco convencionais, elas recorrem a contagem e operações para resolver problemas cotidianos, como conferir figurinhas, marcar e controlar os pontos de um jogo, repartir as balas entre os amigos, mostrar com os dedos a idade, manipular o dinheiro e operar com ele etc. Também observam e atuam no espaço ao seu redor e, aos poucos, vão organizando seus deslocamentos, descobrindo caminhos, estabelecendo sistemas de referência, identificando posições e comparando distâncias. Essa vivência inicial favorece a elaboração de conhecimentos matemáticos (BRASIL, 2001b, p. 207).
Ademais, percebi que as crianças agiam de forma natural e espontânea ao
relatarem suas vivências e se sentiam recompensadas e valorizadas ao ouvirem
minhas observações acerca do que afirmavam e comentavam. Os excertos que
seguem confirmam esses fatos.
84
Eu medi o colchão da minha cama com o pé, e deu
cinco pés. Já o colchão da minha mãe deu mais que o
do meu colchão.
(participante J)
O meu pai é marceneiro, e disse que nunca corta um
pedaço de madeira sem usar régua.
(Participante B)
Meu avô falou que o amor dele é tão grande, bem
maior que o céu.
Eu disse a ele que ia medir o amor com a régua, e ele
riu.
(Participante M)
Cabe pontuar que a Matemática esteve presente na forma de vida do
participante J no instante em que ele fez uso de noções de medida de comprimento
ao usar o pé para medir e comparar os tamanhos. Quanto ao participante B, ele
citou as estratégias que seu pai empregava em sua profissão de marceneiro: as
noções de unidades de comprimento abrangiam o uso da régua, instrumento
indispensável em seu trabalho.
Esses exemplos me induziram a refletir sobre a capacidade de esses meninos
e meninas reinventarem e criarem comparações acerca do que lhes foi apresentado.
A noção de infinito em relação ao amor, manifestada pelo participante M comprova
85
essa afirmação, haja visto que, ao anunciar que “o amor dele é tão grande, bem
maior que o céu”, a criança tem noção de tamanho e infinito.
Neste contexto, cabe relembrar que as maneiras de medir estão atreladas aos
modos de vida cultural das crianças. “Elas fazem parte de variados jogos de
linguagem e são utilizadas de diferentes maneiras e em diferentes contextos”
(OLIVEIRA, 2011, p. 71). Portanto, de alguma forma, a turma participante desta
pesquisa foi influenciada pelas suas experiências vividas no dia a dia.
Diante disso, penso ser importante acentuar que, nesta prática, os conteúdos
foram trabalhados de forma integrada e lúdica, em que partes do corpo serviram
para realizar medidas, envolvendo, dessa forma, as experiências e modos de vida
das crianças com o conteúdo escolar. Assim, o conhecimento dos participantes
tornava-se maior a cada aula e, como consequência, eles passaram a entender a
complexidade da realidade sem fragmentar suas experiências. Para Smole (2003, p.
108),
[...] faz-se necessário que sejam propiciadas condições para que os alunos comecem a desenvolver, talvez em um certo sentido ampliar, uma “linguagem do espaço” e uma “linguagem geométrica”. As crianças da escola infantil já possuem um vocabulário sobre o espaço que, embora reduzido, constitui-se num ponto de apoio significativo para a construção da sua linguagem espacial e a partir do qual as ações que realizam fazem sentido. A tarefa da geometria nessa fase escolar é ampliar tanto quanto possível essa linguagem, através de experiências e atividades que permitam ao aluno tanto relacionar cada palavra a seu sentido, quanto perceber e descrever seus deslocamentos no espaço.
Portanto, a prática de pesquisa pode auxiliar na problematização do currículo
escolar e da educação etnomatemática, criando um ambiente favorável à
aprendizagem, visando relacionar a Matemática às experiências de vida das
diferentes culturas.
À vista disso, a etnomatemática contribuiu com o desenvolvimento do ensino
e da aprendizagem dos alunos da Educação Infantil, facilitando a relação do
conhecimento matemático com a cultura do discente. Tais experiências infantis
estiveram presentes na sala de aula durante a investigação, possibilitando
momentos de interação entre os conteúdos escolares e os conhecimentos de vida,
auxiliando na compreensão da realidade do mundo e das ações humanas,
86
permitindo, assim, que as crianças elaborassem seu pensamento e o tornassem
concreto. Para o RCNEI,
As crianças têm e podem ter várias experiências com o universo matemático e outros que lhes permitem fazer descobertas, tecer relações, organizar o pensamento, o raciocínio lógico, situar-se e localizar-se espacialmente. Configura-se desse modo um quadro inicial de referências lógico-matemáticas que requerem outras, que podem ser ampliadas. São manifestações de competências, de aprendizagem advindas de processos informais, da relação individual e cooperativa da criança em diversos ambientes e situações de diferentes naturezas, sobre as quais não se tem planejamento e controle. Entretanto, a continuidade da aprendizagem matemática não dispensa a intencionalidade e o planejamento (BRASIL, 2001b, p. 213).
O fato é que as crianças aprendem com mais facilidade quando atribuem
significado aos conteúdos que lhes são apresentados. A educação infantil é
marcada pela forma como estes são trabalhados em sala de aula. No decorrer das
atividades, percebi a importância de desenvolver com os alunos atividades que
representassem desafios, pois, sempre que isso ocorria, eles demonstravam sua
capacidade de enfrentá-los e, consequentemente, resolvê-los.
Constatei também que o desenvolvimento de atividades que envolvem o
conhecimento da criança e a sua realidade oportuniza ao aluno expressar-se de
uma forma dinâmica e espontânea, empregando a linguagem simples do cotidiano.
“Problematizar situações simples e do cotidiano da criança mostra-se uma prática
pedagógica interessante, pois coloca a criança no movimento de pensamento
matemático” (CARVALHO e BAIRRAL, 2012, p. 122).
As interações que ocorrem no cotidiano produzem conhecimentos que
podem ajudar a criança em seu desenvolvimento em sala de aula, ou seja, o
conhecimento não escolar se faz presente na vida escolar das crianças, fortalecendo
o ensino e a aprendizagem e facilitando a compreensão de determinados conteúdos.
As semelhanças e diferenças da matemática escolar e não escolar estiveram
presentes nas distintas maneiras de praticar a Matemática, como por exemplo, na
empregada pela cozinheira e costureira. As duas profissionais utilizaram conteúdos
matemáticos para resolver situações cotidianas, estabelecendo relações com as
regras gestadas na forma de vida escolar. Ao usarem os materiais de medida não
convencionais – xícaras; pedaços de linha; moldes; colheres e outros –, mostraram
que estes substituíram os instrumentos convencionais da matemática escolar.
87
Na próxima seção, apresento algumas considerações sobre a aplicação da
prática pedagógica e os resultados obtidos, sem ter a pretensão de fornecer receitas
definitivas no âmbito da educação e, em especial, da Educação Infantil.
88
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste capítulo, apresento minhas considerações finais sobre a pesquisa
desenvolvida, destacando que a sua realização me proporcionou a aquisição de
novos conhecimentos e aprendizagens. A temática, conforme explicitado no primeiro
capítulo, “Sobre a experiência vivida, o problema encontrado”, surgiu de minhas
inquietações como professora de Pedagogia, pois não conseguia obter um resultado
positivo na disciplina que ministrava – a Matemática – e os meus alunos não
demonstravam interesse pelo que eu lhes propunha.
Assim, diante da aprovação no Mestrado, muitos dos meus questionamentos
acabaram se tornando parte da investigação que realizei na nova etapa dos meus
estudos. A aproximação com a etnomatemática, ocorrida durante o Curso, foi
decisiva para que eu compreendesse a educação matemática na Educação Infantil.
Ao estudar a etnomatemática, constatei que compreender o saber/fazer matemático
ao longo da história, procurar integrar saberes e contextualizar a educação
matemática no mundo social em que os indivíduos estão inseridos modificam a
nossa forma de pensar o ensino da Matemática.
Ciente disso, fundamentei a minha pesquisa nos estudos de D’Ambrósio
(1990, 1999, 2001, 2002, 2009), Knijnik (2004a, 2004b, 2010, 2012), Giongo (2008,
2010), entre outros. Assim, tive a oportunidade de realizar várias leituras indicadas
por minhas orientadoras, que sustentaram a minha pesquisa ao desenvolver a
investigação e analisar os resultados por mim considerados relevantes.
Ao adentrar nos estudos do campo da etnomatemática, procurei pensá-la e
relacioná-la com o ensino da Matemática no currículo da Educação Infantil. O
89
propósito era investigar e desenvolver estratégias para trabalhar na turma de
primeiro período, com foco nos seguintes objetivos: a) Operar com conceitos
vinculados às unidades de medida e estimativas em uma turma de Educação
Infantil; b) Elaborar uma prática pedagógica centrada em conceitos que envolvem as
unidades de medida e estimativas; c) Problematizar e investigar semelhanças e
diferenças entre as práticas de unidades de medida e estimativas escolar e não
escolar.
Considero que os objetivos da pesquisa foram atingidos por meio da análise
dos desenhos e excertos dos alunos. Em suas práticas e estratégias de medida e
estimava, eles explicaram, a seu modo, as regras que se fizeram presentes na
matemática escolar. Essas novas descobertas aconteceram, de forma simples e
prazerosa, para mim e para eles.
A presença de uma costureira e de uma cozinheira na sala de aula
estabeleceu uma relação entre os conhecimentos adquiridos fora e dentro do
ambiente escolar. Esse encadeamento se fez presente no momento em que as duas
profissionais mostraram e utilizaram instrumentos não convencionais – régua, fita
métrica, xícaras, entre outros – na solução de questões matemáticas – peso,
medidas.
Os fatos acima ocorridos me permitem afirmar que meus alunos se tornaram
questionadores, demonstrando curiosidade, descobrindo outras formas de brincar e,
consequentemente, de aprender. Acontecimentos, até então considerados
insignificantes, levou-os a desenvolver novos pensamentos antes ausentes de suas
vidas. Tais situações foram criadas paulatina e espontaneamente pelas crianças.
O conteúdo também se revelou proveitoso à turma, que teve autonomia para
conversar e relatar suas experiências. Durante a atividade de medidas, as crianças
expuseram suas brincadeiras – bolinhos de areia e barro, copinhos de areia no
balde, entre outras. Como relatos, afirmaram que, se colocassem dois copinhos de
areia no balde e três de água, a areia ficaria mole, mas se fossem dois de barro e
três de água, a mistura se tornaria pastosa.
Assim, com base na pesquisa, destaco algumas questões que considero
relevantes frente ao trabalho que realizei com crianças da Educação Infantil:
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O estudo me proporcionou outra visão com relação à educação matemática
na Educação Infantil, no qual pude vivenciar que a matemática se faz presente ao
longo da história e que na infância ela é praticada pelas crianças de diferentes
modos como, por exemplo, em suas brincadeiras;
A pesquisa me fez refletir como as crianças possuíam conhecimentos
simples acerca da matemática produzida no seu cotidiano;
Cabe ao professor buscar metodologias que viabilizem valorizar esses
conhecimentos adquiridos fora da escola em consonância com os escolares;
Percebi que as crianças, além de terem noções matemáticas, resolviam
situações – problema do seu cotidiano, praticando e utilizando instrumentos de
unidades de medida e estimativas de diversas maneiras.
Diante dessas questões, compreendi que devemos oportunizar às crianças
interagirem e relacionarem a Matemática com a sua cultura, propiciando-lhes o
fortalecimento das raízes frente a novos conhecimentos.
Posso afirmar que, a partir do momento em que optei por trabalhar com o
campo da etnomatemática, subverti a ordem do programa IAB, saindo da zona de
conforto. Neste contexto, as aulas se tornavam mais produtivas e prazerosas tanto
para mim como para as crianças. Aliás, antes da pesquisa, era impossível imaginá-
las com capacidade de associar assuntos matemáticos à sua cultura. Conforme elas
avançavam na aprendizagem, aumentavam suas expectativas diante das atividades
desenvolvidas, adquirindo maiores significados.
Pude verificar também que as atividades em grupo favoreceram o processo
de ensino e aprendizagem, ampliando o conhecimento das crianças, haja vista ser a
forma como elas vivem o seu cotidiano. Assim, socializar, manusear e trabalhar em
conjunto foram estratégias fundamentais ao desenvolvimento da pesquisa.
Este estudo sobre a etnomatemática na Educação Infantil encorajou-me a
testemunhar e compreender como a Matemática pode ser culturalmente utilizada em
sala de aula, pois as formas de as crianças conceituarem seus valores, tradições,
crenças, linguagem e hábitos culturais são muito significativas e precisam ser
percebidas pelos professores.
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Enfim, a presente pesquisa mostrou-me que é possível trabalhar com
conteúdos enfatizando os instrumentos de medidas e estimativas no ensino da
Educação Infantil, a partir da perspectiva da etnomatemática. Tal estudo me fez
refletir sobre o quanto podemos trabalhar a Matemática relacionando-a à forma de
vida dos alunos; por isso, pretendo apresentar aos meus colegas os resultados de
minha investigação e com eles pensar outras possibilidades para o ensino de
Matemática na Educação Infantil.
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ANEXO A – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Pelo presente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, declaro que
estou ciente da pesquisa denominada Trabalhando com a Geometria na Educação
Infantil, efetivada na Escola Municipal Tancredo Neves, pois fui informado/a, de
forma clara e detalhada, livre de qualquer constrangimento ecoerção, dos objetivos,
da justificativa e dos procedimentos da mesma.
Fui especialmente informado:
Da garantia de receber, a qualquer momento, resposta a toda pergunta ou
esclarecimento de qualquer dúvida acerca da pesquisa e de seus procedimentos;
Da liberdade de retirar meu consentimento a qualquer momento, sem que
isso me traga qualquer prejuízo;
Da garantia de que não serei identificado/a quando da divulgação dos
resultados e que as informações obtidas serão utilizadas apenas para fins científicos
vinculados à pesquisa;
Do compromisso da pesquisadora de proporcionar-me informações
atualizadas obtidas durante o estudo;
De que esta investigação está sendo desenvolvida como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Ensino de Ciências Exatas, estando a pesquisadora
inserida no Mestrado Profissional em Ensino de Ciências Exatas da Univates, RS.
Da inexistência de custos.
A pesquisadora responsável pela pesquisa é a professora Aldiléia da Silva
Souza, orientada pela professora Dr.ª Angélica Munhoz, do Centro Universitário
Univates de Lajeado, RS, que poderá ser contatada pelo e-mail
[email protected] pelo telefone (51)3714-7000 ramal 5517.
____________________________________________________ Local e data _____________________________________________________ Nome e assinatura do/a responsável _____________________________________________________ Nome e assinatura da pesquisadora responsável