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TOPVIEW, julho 2014

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Descubra porque os açougues de Paris merecem entrar no seu roteiro turístico.

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s vegetarianos que me desculpem, mas visi-tar Paris e sequer entrar em um de seus mil açougues é uma grande falha, equivalente

em gravidade ao erro de não ir ter um tête-à-tête com Monalisa por causa dos turistas ou à blasfêmia de não tocar a cesta de pães que acompanha todas as refei-ções servidas por aqui por medo dos carboidratos. As-sim como as pâtisseries, as Galeries Lafayette ou a Chanel, as boucheries são uma instituição francesa. É dentro delas, e não nas redes de supermercado, que os habitantes desta terra vão procurar coxas, sobreco-xas, peitos e filés para suas famosas receitas, apren-dendo com seus duros, e fiéis, açougueiros o melhor modo de preparo de cada animal. Adentrar o univer-so sanguinolento dessas lojas, onde frangos e coelhos são expostos com suas cabeças, os olhos a saltar das órbitas, e pedaços de porco são peças de decoração, é uma espécie de pesquisa antropológica sobre os há-bitos de consumo dos franceses, pra dizer bem a ver-dade. E, também, o último grito da moda.

Há alguns anos, a criação de animais de corte em escala industrial se tornou um dos temas de debate preferido entre os franceses. Em Paris, são frequen-tes as manifestações pedindo o fechamento dos aba-tedouros e documentários que mostram a vida in-digna e morte cruel dos animais, sem censura, são exibidos em horário nobre. Junte a isso o polêmico uso da carne de cavalo usada em pratos industriali-zados, que aterrorizou o povo por aqui no ano passa-do, e está explicado porque 81% dos entrevistados de uma pesquisa realizada pelo instituto Harris Interac-tive para a revista Marianne (2013) afirmaram ter to-tal confiança em seus açougueiros. Nas boas bouche-ries, o nome dos fornecedores e produtores costuma acompanhar a etiqueta, quando não são divulgados em cartazes colados nas paredes. Todo esse cuida-do com a procedência do que comercializam faz deles os bastiões do politicamente correto, referências para quem quer mais é ver o sistema capitalista de produ-ção agropecuária ruir. Abastecer-se em uma loja de bairro é, portanto, boicotar a máquina do poder e va-lorizar o humano. Duas das coisas que os filhos desta terra amam tanto quanto foie gras.

Mais. Por todo o país, os profissionais da carne devem seguir cursos de formação específica, em es-colas especializadas e homologadas pelo governo an-

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Da publicidade para o mundo das carnes: o percurso incomum – e feliz – do açougueiro Timothée Sautereau.

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A onda gourmet que assola o globo levou à glória o mais brutal, e essencial, métier gastronômico: o especialista em carnes. Midiáticos, os neoaçougueiros escrevem livros,

estão sempre na tevê e até posam com celebridades

por Fernanda Peruzzo, de Paris

Profissão, açougueiro

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No bairro de Montmartre e nas imediações do Marché d’Aligre, no 12o arrondissement, os açougues de Timothée Sautereau e de Provinces.

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tes de sair por aí oferecendo blanquet de vi-telo ou entrecôte de gado. A formação dura três anos, quando os alunos têm entre 18 e 25 anos, ou dois, no caso de pessoas que bus-cam uma reconversão profissional. Ao lon-go desse tempo, eles são apresentados às normas sanitárias e conhecem tudo sobre a arte de transformar um ser vivo em apetito-sas porções de assados (ou cozidos), o que reforça sua boa imagem acima de qualquer suspeita. E ainda que não sejam cozinheiros, está entre as competências dos açougueiros franceses explicar aos clientes como prepa-rar uma receita ou um corte de carne espe-cífico e vender produtos prontos para o co-zimento: suas vitrines refrigeradas são uma exaltação à gula, com dezenas de carnes temperadas e amarradas, pré-assados, espe-tinhos e empanados frescos e prontos para irem ao forno (ou à panela).

Com a febre gourmet que assola o mun-do e não perdoa nem as pipocas (inclusive na França), é natural que uma nova geração es-teja assumindo as facas. Os chamados neoa-çougueiros formam um clã à parte no univer-so gastronômico francês. Eles têm entre 30 e 45 anos, são apaixonados pela arte do comer bem, têm uma verve mais moderna e tiram o maior proveito das estratégias de marketing. Hugo Desnoyer e Yves-Marie Le Bourdonnec são as duas maiores estrelas do setor. Midi-áticos, eles escrevem livros, estão sempre na tevê, posam para fotos com celebridades. Com eles, os nacos de carne ganham ares de igua-rias. Enquanto Desnoyer se orgulha de ser o

Le Bourdonnec, o enfant terrible do segmento: seu açougue fica fora de Paris, em Asniéres, na região metropolitana.

A transformação das carcaças em porções de carne temperadas, desossadas e prontas para cozinhar é parte essencial do trabalho.

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fornecedor do palácio presidencial, do Sena-do e de alguns dos melhores restaurantes da cidade, Le Bourdonnec faz fortuna com suas carnes maturadas e o seu famoso wagyu, gado japonês criado na Espanha à base de granola e vinho tinto. Ao seu lado, um séqui-to de açougueiros saídos dos melhores postos de trabalho do país ajuda a glamurizar ainda mais a profissão.

Timothée Sautereau é um deles. Ex-di-retor comercial em uma agência de publici-dade, responsável pela conta da grife Yves Saint Laurent, só para mencionar a mais gla-murosa, ele deixou para trás 12 anos de tra-balho e uma coleção de ternos e gravatas para se consagrar à sua verdadeira paixão, a carne. “Eu sou um caçador e sempre gos-tei de cortar, desossar e transformar estes animais. Um dia, durante o abate de um por-co, no interior do país, é que eu tive a certe-za do que queria”, relembra. “Hoje eu faço o que me dá prazer.” Isso inclui passar os dias inteiros em sua loja, inaugurada há me-nos de seis meses, em Montmartre. Sob a in-sígnia do mestre Le Bourdonnec, ele vende carnes maturadas. Especialmente gado. Du-rante dois meses, Tim mantém grandes pe-daços de costela armazenados em uma câ-mera fria sob forte ventilação. Lá dentro, a água se evapora, o colágeno desaparece e a gordura se solta, tratando de hidratar as fi-bras. “O processo de maturação sublima a carne. Ela se torna aromática e macia”, afir-ma. Além disso, ele prepara uma suculen-ta paleta de carneiro confitada, temperada e cozida na gordura durante 12 horas, em baixa temperatura, e o melhor hambúrguer da cidade, preparado com carne maturada. Seu braço direito, Michel Chastin, é um re-presentante da velha guarda que não para de se regozijar com a atual boa fama de sua profissão. “Antigamente, dizia-se que para ser açougueiro bastava ser bruto e bobo”, diverte-se. “A gente carregava as carcaças no lombo, acordava às 5 horas da manhã e ninguém reconhecia o nosso trabalho. Hoje, as máquinas fazem a parte pesada; e nossa parte é zelar pela qualidade e fazer os cortes precisos”, completa.

Para chegar a esse ponto de maturação, a carne passa dois meses em uma câmara fria e ventilada.

Cena comum na França: o proprietário do açougue

sempre está atrás do balcão.

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Porção de delícias de porco da Boucherie de Provinces: para comer sem culpa.

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