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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – CCSA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – PPGD
MESTRADO EM DIREITO
TONY ROBSON DA SILVA
A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO
MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da
política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos.
NATAL - RN
2020
TONY ROBSON DA SILVA
A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO
MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da
política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos.
Dissertação apresentada à banca
examinadora do PPGD/UFRN como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre, do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, sob orientação do
Professor Doutor Thiago Oliveira Moreira e
coorientação do Professor Doutor José
Noronha Rodrigues.
NATAL - RN
2020
TONY ROBSON DA SILVA
A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO
MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos
Direitos Humanos.
Dissertação apresentada à banca
examinadora do PPGD/UFRN como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre, do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, sob orientação do
Professor Doutor Thiago Oliveira Moreira e
coorientação do Professor Doutor José
Noronha Rodrigues.
Aprovado em: 29/07/2020.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Doutor Thiago Oliveira Moreira (orientador) UFRN
Prof. Doutor José Noronha Rodrigues (coorientador) UAC/PT
Prof. Doutor Sidney Cesar Silva Guerra (externo) UFRJ
Prof. Doutor Yara Maria Pereira Gurgel (interno) UFRN
A minha mãe, Luzinete, base estruturante da minha vida e que
me dá força para vencer todos os desafios cotidianos, por toda
inspiração para que eu possa me tornar um verdadeiro ser
humano;
Ao meu companheiro, Vicente, pelo companheirismo, amor,
compreensão e incentivo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente a Deus, pela oportunidade que colocou em minha vida e
que me fez abrir a mente para o mundo da pesquisa e investigação científica, assim
como me deu e me dá forças para continuar na luta diária.
Agradecimentos maiores a minha família, em nome da minha mãe, meu irmão,
meu companheiro e do meu pai, que sempre acreditou em mim, mesmo quando nem
mesmo eu acreditei.
Também quero registrar, em nome dos Professores Keity Saboya, Yara Gurgel,
Marco Bruno Miranda Clementino e Jahyr-Phillipe Bichara, minha gratidão a todos os
professores e professoras do PPGD/UFRN.
Ao meu orientador, Professor Thiago Oliveira Moreira, meu agradecimento
particular pela disposição em me orientar nessa jornada do Mestrado, bem como pela
disponibilidade de contribuir fundamentalmente com a pesquisa ora entregue.
Por fim, mas não menos importante, agradecer ao Professor José Rodrigues
Noronha, meu coorientador, por ter aceitado a missão de, junto ao Prof. Thiago, me
orientar nessa jornada, mesmo estando fisicamente do outro lado do Atlântico.
RESUMO
O presente trabalho trata do dever de convencionalização da legislação migratória
brasileira, destacando-se as recentes alterações normativas decorrentes da Nova Lei de
Migração (Lei 13.445/2017), dos instrumentos infralegais que promovem a sua
regulamentação e, ainda, de instrumentos infralegais adotados durante o período de
pandemia causada pelo novo coronavírus, que restringem o ingresso de imigrantes no
Brasil. Para tanto, utiliza-se o recorte das normas internacionais de âmbito regional, vez
que no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos o Controle de
Convencionalidade tem sido utilizado expressamente, mostrando-se essencial o
conhecimento das tutelas normativas e jurisdicionais oriundas deste sistema, bem como
acerca do exercício do Controle de Convencionalidade. No mesmo sentido, estuda-se a
temática migrações incutida na evolução constitucional brasileira, dando ênfase para as
normas legais implementadas e sua atual regulamentação infralegal. Indaga-se, portanto,
a convencionalidade da regulamentação infralegal da lei de migração à luz dos
instrumentos normativos regionais. A hipótese é de que, apesar da Lei de Migração
representar uma adequação do ordenamento doméstico à luz das normas
interamericanas, o Estado brasileiro tem violado as obrigações assumidas ao editar atos
normativos (infralegais) inconvencionais sobre o tema em apreço. Nesta linha, este
trabalho tem como objetivo demonstrar o dever de adequação do ordenamento jurídico
doméstico frente às normas internacionais, assim como a possível inconvencionalidade
de instrumentos infralegais que restringem ou mitigam direitos dos migrantes. A
metodologia utilizada envolve pesquisa bibliográfica da doutrina e legislação
interamericana e brasileira, pesquisa jurisprudencial nas decisões emanadas da Corte
IDH e do judiciário brasileiro, que guardam relação com os direitos das pessoas em
situação de migração, adotando-se método dedutivo para aferição acerca da
compatibilidade ou não do ordenamento brasileiro. Este exercício demonstra relevante
importância, vez que a não adequação do ordenamento jurídico interno (à luz dos
compromissos internacionais) pode gerar responsabilização internacional ao Estado.
Apura-se, por fim, a inconvencionalidade de diversos dispositivos dos instrumentos
infralegais que regulamentam a política migratória no Brasil.
Palavras Chaves: Convencionalização. Controle de Convencionalidade. Direitos
Humanos dos Migrantes. Responsabilização Internacional.
ABSTRACT
The present work deals with the duty of conventionalization of the Brazilian migratory
legislation, standing out as recent normative changes of the New Migration Law (Law
13,445 / 2017), of the infralegal instruments that promote its use and also the infralegal
instruments adopted during the period of pandemic caused by the new coronavirus,
which restricts the entry of immigrants in Brazil. To do so, use norms from international
of regional scope, once of having the Conventionality Control expressly used by Inter-
American System for the Protection of Human Rights, showing as essential or the
knowledge of the normative norms derived from this system, as well and on the exercise
of the Conventionality Control. In the same sense, it is studied the theme of migrations
instilled in the Brazilian constitutional evolution, emphasizing the implemented legal
norms and their regulamentation infralegal. Therefore, the question is the
conventionality of Brazilian legal protection in migratory matters in the light of regional
normative instruments. The hypothesis is that, although the Migration Law seems to be
an adaptation of domestic law in the light of inter-American norms, the Brazilian State
has violated it as a promotion assumed by editing unconventional (infralegal) normative
acts on the subject under consideration. In this line, this work has as objective to
demonstrate or duty of adequacy of the legal system in face of the international norms,
as well as the possible unconventionality of infralegal instruments that restrict or
mitigate the rights of migrants. The methodology adopted involves bibliographic
research on inter-American and Brazilian law and doctrine, jurisprudential research on
decisions emanating from the Inter-American Court and the Brazilian judiciary, which
is related to the rights of people in situations of study, adopting the deductive method
for measuring relative to privacy. or not to do Brazilian planning. This exercise
demonstrates importance, whereas non-suitability of internal legal ordering (in light of
international commitments) can generate international responsibility for the State.
Finally, notes the unconventionality of several devices of the infralegal instruments that
regulate the immigration policy in Brazil.
Keywords: Conventionalization. Conventionality Control. Human Rights of Migrants.
International Accountability.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
2. A PROTEÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS DOS
MIGRANTES ............................................................................................................... 17
2.1 ASPECTOS GERAIS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS
DIREITOS HUMANOS ................................................................................................ 17
2.2 CARTA DA OEA, DADDH, CADH E DEMAIS INSTRUMENTOS
NORMATIVOS DO SISTEMA INTERAMERICANO................................................ 27
2.3 A PROTEÇÃO INTERAMERICANA JURISDICIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS APLICADA A PESSOAS EM SITUAÇÃO MIGRATÓRIA ................. 34
2.3.1 A Comissão Interamericana De Direitos Humanos (CIDH) .......................... 34
2.3.2 A Corte IDH e os Estándares Interamericanos de Proteção dos Direitos
Humanos dos Migrantes ............................................................................................. 42
3. A CONVENCIONALIZAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESTATAL
E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE .................................................. 74
3.1 A FORÇA NORMATIVA DOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E A
OBRIGAÇÃO GERAL DE ADEQUAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO
INTERNO ...................................................................................................................... 76
3.2 A ORIGEM DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ............................. 86
3.3 PARÂMETROS GERAIS DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE:
CONCEITO, FUNDAMENTO, COMPETÊNCIA E NATUREZA JURÍDICA ......... 89
3.4 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE INTERAMERICANO ............... 95
3.4.1 Parâmetros Gerais .............................................................................................. 95
3.4.2 Espécies ................................................................................................................ 96
3.5 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DOMÉSTICO ............................ 98
3.5.1 Parâmetros Gerais .............................................................................................. 98
3.5.2 Espécies .............................................................................................................. 100
3.5.3 Competência ...................................................................................................... 104
3.6 EFEITOS DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ............................... 108
4. O BRASIL E A SUA CONTROVERSA POLÍTICA MIGRATÓRIA ............ 112
4.1 O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO E O TEMA DAS MIGRAÇÕES . 116
4.2. DO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO À NOVA LEI DE MIGRAÇÕES ......... 128
5. O DEVER DE CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO
MIGRATÓRIA INFRALEGAL BRASILEIRA .................................................... 142
5.1 A REGULAMENTAÇÃO DA POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA
ATRAVÉS DE ATOS NORMATIVOS ..................................................................... 143
5.2 A REGULAMENTAÇÃO DA POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA EM
TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19 ............................................................... 151
5.3 A (IN)CONVENCIONALIDADE DA LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA
BRASILEIRA: uma análise de convencionalidade do Decreto 9.199/2017, da Portaria
nº 666/2019, da Portaria nº 770/2019 e da Portaria PR nº 340/2020 ........................... 154
6. CONCLUSÃO ........................................................................................................ 164
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 170
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Corte IDH ou Corte Interamericana – Corte Interamericana de Direitos Humanos
CIJ - Corte Internacional de Justiça
DADDH – Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem
DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos
OEA – Organização dos Estados Americanos
ONU – Organização das Nações Unidas
SAPDH - Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos
SEPDH - Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos ()
SIPDH – Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos
11
1. INTRODUÇÃO
Direitos fundamentais, que são Direitos Humanos positivados no ordenamento
jurídico, são direitos historicamente conquistados, cujo objetivo principal, em grosso
modo, é assegurar condições de uma vida digna para toda pessoa, independente das suas
características pessoais, condição social, nacionalidade, ou alguma outra forma de
discriminação.
Ao longo da história da humanidade, tais direitos assumiram faces diferentes,
sendo fortalecidos ou limitados na medida em que a sociedade avançava ou retrocedia
em sua organização.
Nos últimos anos, os direitos humanos foram reconhecidos através de diversas
cartas constitucionais, declarando-os como fundamentais, a exemplo do que foi pregado
nas revoluções inglesa (1640-1688), americana (1776) e francesa (1789), que
conclamaram pela limitação da intervenção do Estado na vida das pessoas, numa clara
ideologia liberal iluminista1.
Neste caminho, os Estados passaram a adotar Constituições que, além de
promoverem sua organização estrutural, rezavam as garantias de liberdades individuais
dos cidadãos e outros direitos fundamentais que assegurassem a manutenção da
dignidade humana.
Contudo, após os nefastos acontecimentos da segunda grande guerra, tendo o
Estado como cruel violador dos direitos humanos, a exemplo do que foi o nazismo e as
milhões de vidas dizimadas, percebeu-se que o entendimento de que ter os direitos
fundamentais pautados na soberania estatal não era suficiente para garantia de sua
manutenção.
Como resultado desta compreensão, empenhou-se grande esforço para
reconstrução da concepção dos direitos fundamentais – pautados, agora, como
referencial ético-moral para orientar a nova ordem internacional contemporânea - em
repulsa à formalidade legal que aceitara a destruição em massa de pessoas, em razão do
condicionamento da titularidade de tais direitos pregada pelo nazi-facismo2.
1 Cf. GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, Princípio da Igualdade e não Discriminação:
sua aplicação às relações de trabalho. (Tese de Doutorado). São Paulo: USP, 2007. P. 46. Disponível
em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/7852/1/Yara%20Maria%20Pereira%20Gurgel.pdf. Acesso em
04 de julho de 2020. 2 Ibidem. P. 103-106.
12
Transmudou-se, assim, a antiga noção de soberania absoluta do Estado, que
passou a ser relativizada na medida em que foram “proibidas” intervenções nacionais
cujo objetivo seja promover a mitigação de direitos fundamentais, numa clara acepção
antropocêntrica de tais direitos.
Sob este prisma, percebe-se, de um lado, o surgimento do Direito Internacional
dos Direitos Humanos, assim como o de um Direito Constitucional ocidental
contemporâneo, aberto a princípios e valores norteadores de proteção aos direitos
fundamentais e limitação do poder estatal.
É através deste reconhecimento que surgem as declarações internacionais de
direitos humanos, como a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem
(DADDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (DUDH), bem como a criação da Organização das Nações
Unidas, em 1948.
Assim, os direitos humanos passaram a contar com tutela jurídica internacional,
organizada de forma global pela ONU, que tratou de uma proteção geral aos indivíduos
assegurada pela DUDH, pelo Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos
(PIDCP) e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(PIDESC).
Ainda em nível global, existem também diversas tutelas de proteção específicas
como o Estatuto dos Refugiados (1951) e seu Protocolo Adicional (1967), a Convenção
das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Apátridas (1954), a Convenção para a Redução
dos Casos de Apatridia (1961), a Convenção Internacional para Eliminação de todas as
Formas de Discriminação Racial (1968), a Convenção sobre Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), a Convenção sobre Direitos da
Criança (1989), a Convenção Internacional para Proteção dos Direitos de Todos os
Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias (1990), a Convenção contra a
Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (2002), a
Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento
Forçado (2006), dentre outras.
Neste mesmo movimento, percebendo-se que havia a necessidade de um olhar
mais focado nas peculiaridades socioculturais de determinadas regiões, foram criados
sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, com abrangência continental,
como o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SPIDH), Sistema
13
Europeu de Proteção dos Direitos Humanos (SEPDH) e o Sistema Africano de Proteção
dos Direitos Humanos (SAPDH).
A partir da produção de tratados, acordos e convenções internacionais, partindo
destas organizações, ou tratados que são cotidianamente pactuados entre Estados, vários
instrumentos normativos de origem internacional foram incorporados à ordem jurídica
dos Estados, cuja força normativa gera efeitos internos.
Ao pactuar determinado acordo internacional, o Estado assume um compromisso
de cumpri-lo, sob a égide dos princípios pacta sunt servanda e boa-fé, surgindo o
Controle de Convencionalidade como sendo a sindicância de aferição da
compatibilidade entre o ordenamento jurídico doméstico e as normas internacionais
protetivas de direitos humanos, do qual o Estado é parte.
Dito controle acontece na seara dos Direitos Humanos, a fim de evitar violação
do patamar mínimo de proteção à pessoa, fazendo com que os Estados tenham de
assegurar uma compatibilidade do seu ordenamento jurídico interno aos princípios,
regras e direitos humanos assegurados através dos instrumentos internacionais.
Como não poderia ser diferente, em o Brasil sendo parte de diversos tratados
internacionais, tem como dever a efetivação de cada um deles, inclusive no que diz
respeito aos direitos humanos dos imigrantes que tem chegado ao seu território. Não
menos importante, a própria Constituição Federal de 1988 (art. 5º, § 2º) traz uma
importante abertura aos direitos humanos oriundos de instrumentos internacionais.
Neste quadrante, resta claro que ao firmar pactos e instrumentos internacionais,
o Estado assume um dever de convencionalização oriundo do dever de cumprimento, ou
seja, o Estado deve promover uma adequação da sua legislação interna, para
compatibilizá-la aos instrumentos internacionais então pactuados. Este dever de
convencionalização acontece tanto para a tutela geral quanto para as tutelas específicas
dos direitos humanos.
Diante do dever acima descrito, a presente proposta visa o estudo da
convencionalidade da legislação brasileira que promove a regulação migratória no país,
com destaque para os instrumentos infralegais que regulamentam a Nova Lei de
Migração (Lei 13.445/2017), frente normas interamericanas protetivas de direitos
humanos, incluindo o teor dos tratados emanados da OEA, bem como a jurisprudência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).
Tal recorte se faz necessário para análise da possível [in]compatibilidade dos
instrumentos de regulação migratória adotados pelo Brasil, frente aos direitos humanos
14
que são assegurados as pessoas em mobilidade internacional, no âmbito interamericano,
onde se tem exercitado expressamente o Controle de Convencionalidade.
Assim, considerando que a Nova Lei de Migração promoveu a
convencionalização do ordenamento jurídico brasileiro, questiona-se se os atos
normativos infralegais, que regulamentam a Lei de Migração e veiculam a política
migratória brasileira, são convencionais ou não.
Para responder a presente problemática e demonstrar que a regulamentação da
legislação migratória brasileira se encontra de acordo (ou não) com as normas
interamericanas de direitos humanos, notadamente as que tratam especificamente da
questão migratória, será necessário satisfazer certos objetivos, sendo foco principal
deste estudo a temática dos Direitos Humanos dos Migrantes.
A proposta principal é demonstrar que, apesar da Lei de Migração representar
um largo avanço em matéria de adaptação da legislação migratória brasileira aos
compromissos interamericanos em matéria de direitos humanos dos migrantes, o Estado
brasileiro tem violado as obrigações assumidas ao editar atos normativos (infralegais)
inconvencionais sobre o tema em apreço.
Em resumo, neste trabalho será abordado o estudo acerca da proteção
interamericana dos direitos humanos dos migrantes; a convencionalização do
ordenamento jurídico estatal; da teoria geral do controle de convencionalidade; da
política migratória brasileira e do dever de convencionalização da legislação migratória
infralegal brasileira.
Assim, no capítulo inicial do desenvolvimento, que trata sobre a proteção
interamericana dos direitos humanos dos migrantes, serão evidenciados os instrumentos
normativos que acautelam esta temática, os organismos de controle regional e a
jurisprudência regional relacionada a proteção dos migrantes.
No segundo capítulo, que trata sobre a convencionalização do ordenamento
jurídico estatal, será abordado o dever de compatibilização do ordenamento jurídico
interno com o ordenamento internacional, oriundo de regras da boa-fé e pacta sunt
servanda.
No terceiro capítulo, será estudada a teoria geral do controle de
convencionalidade, de modo a esclarecer sobre o conceito, fundamento e
obrigatoriedade de tal controle, bem como suas espécies em âmbito regional e interno.
No quarto capítulo, será feito um relato histórico de como o Brasil, conhecido
como um país formado por imigrantes, tem tratado a temática migratória através das
15
suas Constituições e das mais recentes leis que regem o tema. Aliás, em 2017 o Brasil
vivenciou o que se chama de convencionalização tácita da sua legislação migratória,
quando revogou o atrasado Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980), através da
instituição da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017).
No quinto e último capítulo, que tratará do dever de convencionalização da
legislação migratória infralegal brasileira, abordar-se-á os atos normativos infralegais
que tem promovido a “regulamentação” da política migratória e suas possíveis
inadequações legais e convencionais. Ao que se apresenta, a regulamentação da referida
Lei de Migração e demais atos infralegais tem seguido caminho oposto à própria lei, o
que possivelmente poderá colocar (ou já colocou) o Brasil em uma situação declarada
de inconvencionalidade, ou seja, de inobservância dos instrumentos internacionais que
tratam do tema.
Assim, considerando o avanço do processo de globalização, o intenso
movimento migratório e o crescente aumento dos deslocamentos forçados, este estudo
se mostra cada dia mais premente seja pelos diversos fenômenos de migração forçada
gerada por desastres naturais, como o caso do Haiti, de deslocamentos gerados por
crises humanitárias, como no caso da Venezuela, ou deslocamentos forçados em
decorrência de conflitos armados, como no caso da Síria. Principalmente nos dois
primeiros casos, o Brasil é território “escolhido” por algumas pessoas deslocadas e por
isso deve estar juridicamente preparado para enfrentar adequadamente o tema.
Geralmente, as pessoas em situação migratória, especialmente as que estão em
situação de vulnerabilidade, não veem respeitados os seus direitos fundamentais das
quais são titulares enquanto sujeitos de direitos humanos. Isso, em uma condição
individual de ausência ou diferença de poder a respeito dos nacionais. Essa condição de
vulnerabilidade tem uma dimensão ideológica e se apresenta em um contexto histórico
que é distinto para cada Estado e é mantida por situações de jure (desigualdades entre
nacionais e estrangeiros nas leis) e de fato (desigualdades estruturais). Essa situação
conduz ao estabelecimento de diferenças no acesso de uns e outros aos recursos
públicos administrados pelo Estado.
Segundo observou também a Assembleia Geral das Nações Unidas3, “entre
outros fatores, o processo de mundialização e liberalização, incluindo a crescente
disparidade econômica e social entre muitos países e a marginalização de alguns da
3 Assembleia Geral das Nações Unidas, Resolução A/RES/54/212 sobre “Migração Internacional e
Desenvolvimento” de 1º de fevereiro de 2000.
16
economia mundial, tem contribuído a criar grandes movimentos de população entre os
países e a intensificar o complexo fenômeno da migração internacional”.
Sem embargo, ante a necessidade de aferir se o Brasil tem efetivado a proteção
aos migrantes “assegurada” pelos tratados e acordos internacionais, faz-se
extremamente necessário o estudo da convencionalidade da legislação brasileira.
Considerando os inúmeros tratados, acordos e convenções internacionais do
qual o Brasil é signatário, que tratam dos direitos humanos que devem ser assegurados
aos migrantes, o estudo acerca de como se comporta a legislação interna do Estado
poderá apontar os acertos ou inconformidades da legislação nacional.
Exemplo disso, como restará evidenciado, o Brasil iniciou um processo de
adequação do seu ordenamento ao editar a Lei de Migrações, contudo, a sua
regulamentação, como a nefasta Portaria nº 666/2019-MJ, revogada pela Portaria nº
770/2019-MJ - e demais instrumentos normativos posteriores -, expõe que ainda há
muito caminho pela frente. Dita portaria, além de criar regulamento ilegal, notadamente
tem gerado repercussão nacional e internacional acerca do risco de desrespeito aos
direitos humanos.
Considerando também a possibilidade de responsabilização internacional pelo
possível descumprimento de norma pactuada além das fronteiras, resta clara a
importância deste estudo como forma de apontar as possíveis inconvencionalidades do
ordenamento jurídico interno brasileiro.
A metodologia utilizada envolve pesquisa bibliográfica da doutrina e legislação
latino-americana, pesquisa jurisprudencial nas decisões emanadas da Corte IDH - que
tratem da temática relacionada ao objeto deste escrito, pesquisa da doutrina e legislação
brasileira que trate da matéria relacionada aos direitos dos migrantes, adotando-se
método dedutivo para aferição acerca da compatibilidade ou não do ordenamento
brasileiro.
Por fim, espera-se que o presente estudo possa servir de fonte doutrinária para
uma efetiva compreensão acerca da matéria de Controle de Convencionalidade
relacionada aos Direitos Humanos dos Migrantes, contribuindo, inclusive, para que o
Estado brasileiro promova uma correta adequação normativa e não sofra algum tipo de
responsabilização internacional.
17
2. A PROTEÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS DOS
MIGRANTES
Sabendo que existe uma ordem de proteção dos direitos humanos global, criada
notadamente a partir da fundação da ONU, mas considerando o recorte regional que
será empregado neste trabalho, este tópico cuidará de aprofundar o estudo sobre esta
proteção normativa no âmbito interamericano.
2.1 ASPECTOS GERAIS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE
PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Os Estados que fazem parte do continente americano, reunindo-se
periodicamente para criação de um sistema compartilhado de normas e instituições, ao
participarem da IX Conferência dos Estados Americanos, em Bogotá, no ano de 1948,
decidiram fundar a Organização dos Estados Americanos (OEA)4, mais antigo
organismo regional do mundo5.
A própria Carta da Organização dos Estados Americanos já destacou a
necessidade de criação de um sistema para assegurar o respeito aos direitos humanos no
seu preâmbulo 6, conforme preceitua Sidney Guerra7.
4 Contempla 35 atualmente países, resguardando-se a exclusão de participação do Governo de Cuba,
imposta pela Resolução AG/RES. 2438 (XXXIX-O/09). Disponível em:
http://www.oas.org/pt/estados_membros/default.asp. Acesso em 01 de maio de 2020. 5 “Durante a 9ª Conferência Interamericana realizada em Bogotá, entre 30 de março a 2 de maio de 1948,
foram aprovadas a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Americana de
Direitos e Deveres do Homem. A Carta da OEA proclamou, de modo genérico, o dever de respeito aos
direitos humanos por parte de todo Estado-membro da organização. Já a Declaração Americana enumerou
quais são os direitos fundamentais que deveriam ser observados e garantidos pelos Estados”.
CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 313. 6 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Preâmbulo. [...] Convencidos de que
a missão histórica da América é oferecer ao Homem uma terra de liberdade e um ambiente favorável ao
desenvolvimento de sua personalidade e à realização de suas justas aspirações; Conscientes de que esta
missão já inspirou numerosos convênios e acordos cuja virtude essencial se origina do seu desejo de
conviver em paz e de promover, mediante sua mútua compreensão e seu respeito pela soberania de cada
um, o melhoramento de todos na independência, na igualdade e no direito; Seguros de que a democracia
representativa é condição indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região; Certos
de que o verdadeiro sentido da solidariedade americana e da boa vizinhança não pode ser outro
senão o de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime
de liberdade individual e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem;
Persuadidos de que o bem-estar de todos eles, assim como sua contribuição ao progresso e à civilização
do mundo exigirá, cada vez mais, uma intensa cooperação continental; Resolvidos a perseverar na nobre
empresa que a Humanidade confiou às Nações Unidas, cujos princípios e propósitos reafirmam
solenemente; Convencidos de que a organização jurídica é uma condição necessária à segurança e à paz,
baseadas na ordem moral e na justiça [...]. 7 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015. p.
180.
18
O Brasil foi um dos signatários da Carta da Organização dos Estados
Americanos e em 1952, através do Decreto nº 30.544, de 14 de fevereiro daquele ano,
promulgou dito instrumento, incorporando-a ao seu ordenamento jurídico interno.
Importante falar que a Carta da OEA não tratou da criação de um espaço de
livre circulação de pessoas ou da criação de uma política migratória comum, até por não
dispor de caráter supranacional8.
A Carta da OEA, em verdade, teve como objetivo principal a manutenção da
paz e segurança do continente, conforme se denota do seu artigo 2º9, mas também
trouxe em seus princípios enunciados no artigo 3º10, a preocupação quanto à temática
dos direitos humanos11.
Já nos seus artigos 106 e 145, dita Carta tratou de estabelecer marcos gerais de
proteção aos direitos humanos, anunciando a criação da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, cujo objetivo principal é de promover o respeito e a defesa dos
direitos humanos12, assim como estabelecendo a criação de uma Convenção específica
para tratar de direitos humanos13.
8 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Concretização dos Direitos Humanos dos Migrantes pela Jurisdição
Brasileira Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019. p. 110. 9 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Artigo 2º. Para realizar os princípios
em que se baseia e para cumprir com suas obrigações regionais, de acordo com a Carta das Nações
Unidas, a Organização dos Estados Americanos estabelece como propósitos essenciais os seguintes: a)
Garantir a paz e a segurança continentais; b) Promover e consolidar a democracia representativa,
respeitado o princípio da não-intervenção; c) Prevenir as possíveis causas de dificuldades e assegurar a
solução pacífica das controvérsias que surjam entre seus membros; d) Organizar a ação solidária destes
em caso de agressão;
e) Procurar a solução dos problemas políticos, jurídicos e econômicos que surgirem entre os Estados
membros; f) Promover, por meio da ação cooperativa, seu desenvolvimento econômico, social e cultural;
g) Erradicar a pobreza crítica, que constitui um obstáculo ao pleno desenvolvimento democrático dos
povos do Hemisfério; e h) Alcançar uma efetiva limitação de armamentos convencionais que permita
dedicar a maior soma de recursos ao desenvolvimento econômico-social dos Estados membros. 10 Ibidem. Artigo 3º. Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: [...] l) Os Estados
americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça,
nacionalidade, credo ou sexo; [...]. 11 “Criada como uma Organização Internacional de caráter regional, seus propósitos e princípios
fundamentais, bem como parte de sua estrutura, deixam bastante claro que uma das suas finalidades é a
proteção aos direitos humanos. Para tanto, serve-se da capacidade jurídica internacional para celebrar
tratados internacionais com outros sujeitos do Direito Internacional, a fim de alcançar os seus objetivos”.
MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p. 74. 12 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Artigo 106. Haverá uma Comissão
Interamericana de Direitos Humanos que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos
direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.
Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as
normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal
matéria. 13 Para se concluir a CADH, certamente, existiu um exaustivo trabalho preparatório para se chegar à
Convenção. Neste sentido: “Os antecedentes da Convenção Americana remontam à Conferência
Interamericana realizada no México em 1945, a qual encarregou à Comissão Jurídica Interamericana de
preparar um projeto de declaração. Essa ideia foi retomada na Quinta Reunião de Consulta dos Ministros
19
Em outro fator destacável, a Carta da OEA traz uma significativa abertura e
dever de observância dos Estados ao Direito Internacional. Em seu artigo 3º, alínea b,
menciona que “a ordem internacional é constituída essencialmente pelo respeito à
personalidade, soberania e independência dos Estados e pelo cumprimento fiel das
obrigações emanadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional”, em um
claro reconhecimento do dever de cumprimento dos tratados e instrumentos
internacionais. No mesmo artigo, alínea c, dita Carta enuncia que “a boa-fé deve reger
as relações dos Estados entre si”, notadamente fazendo referência ao princípio da boa-fé
que rege as relações internacionais e que será discutido mais adiante.
Pelo que se denota, através da Carta de Bogotá (Carta da OEA) é que foi dado
ao ideário pan-americano uma base convencional e institucional, ao tempo em que a
Organização dos Estados Americanos foi transformada em organismo da ONU14.
A Carta também fez nascer a Organização dos Estados Americanos (OEA),
organismo de cooperação internacional15, do qual fazem parte todos os países
americanos independentes, resguardando-se a exceção aplicada ao Governo de Cuba16.
Dita organização tem como um dos seus objetivos (previsto no Artigo 1º da sua
Carta) alcançar nos Estados membros “uma ordem de paz e de justiça” e representa
das Relações Exteriores em Santiago do Chile, em agosto de 1959, na qual se decidiu impulsionar a
preparação de uma convenção de direitos humanos. O projeto original de convenção, elaborado pelo
Conselho Interamericano de Jurisconsultos, foi submetido ao Conselho da OEA e levado aos Estados e à
Comissão Interamericana para receber comentários. Em 1967, a Comissão apresentou um novo projeto de
convenção. Para analisar os diferentes projetos, a OEA convocou a Conferência Especializada
Interamericana sobre Direitos Humanos, que se reuniu em São José da Costa Rica de 7 a 22 de novembro
de 1969. Em 21 de novembro de 1969, a Conferência adotou a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos. A entrada em vigor da Convenção em 1978 permitiu o incremento da efetividade da Comissão,
estabelecer uma Corte Interamericana de Direitos Humanos e modificar a natureza jurídica dos
instrumentos nos que se baseia a estrutura institucional”. Disponível em:
https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/intro.pdf. Acesso em 20 de maio de 2020. 14 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos
Humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FUPESP, 2001. p. 29. 15 “A sua própria Carta constitutiva deixa claro sua natureza jurídica: a de uma organização internacional
de caráter regional dentro do sistema das Nações Unidas.” SILVA, Roberto Luiz. A OEA ENQUANTO
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL. In.: OLIVEIRA, Márcio Luís de. (Coord.). O Sistema
Interamericano de proteção dos direitos humanos: interface com o direito constitucional contemporâneo.
Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 98 16 Em 3 de junho de 2009, os Ministros de Relações Exteriores das Américas adaptaram a Resolução
AG/RES.2438 (XXXIX-O/09), que determina que a Resolução de 1962, a qual excluiu o Governo de
Cuba de sua participação no sistema interamericano, cessa seu efeito na Organização dos Estados
Americanos (OEA). A resolução de 2009 declara que a participação da República de Cuba na OEA será o
resultado de um processo de diálogo iniciado na solicitação do Governo de Cuba, e de acordo com as
práticas, propósitos e princípios da OEA. Disponível em
http://www.oas.org/pt/sobre/estados_membros.asp. Acesso em 11 de maio de 2020.
20
grande passo para efetivação de um sistema normativo regional de proteção dos direitos
humanos17.
A OEA é a mais antiga organização regional18 e realiza os seus fins por
intermédio dos seguintes órgãos: Assembleia Geral; Reunião de Consulta dos Ministros
das Relações Exteriores; Conselhos (Conselho Permanente e Conselho Interamericano
de Desenvolvimento Integral); Comissão Jurídica Interamericana; Comissão
Interamericana de Direitos Humanos; Secretaria-Geral; Conferências Especializadas;
Organismos Especializados e outras entidades estabelecidas pela Assembleia Geral19.
A OEA também tem sua importância para a proteção dos direitos humanos,
uma vez que tem papel de organização para alcançar “uma ordem de paz e de justiça,
para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania,
sua integridade territorial e sua independência”, conforme estipula o Art. 1º da Carta da
OEA.
Desde a criação da OEA, os Estados americanos adotaram um conjunto de
instrumentos internacionais que se converteram na base normativa de um sistema
regional de promoção e proteção dos direitos humanos, ao reconhecerem esses direitos,
estabelecerem obrigações para a sua promoção e proteção e criarem órgãos para zelar
por sua observância.
Ainda em 1948, também restou aprovada a Declaração Americana de Direitos
e Deveres do Homem (DADDH), que pode ser considerada formalmente como o marco
inicial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como fruto de um intenso
processo de integração regional20.
Dita Declaração demonstrou contemporaneidade da América no tratamento dos
Direitos Humanos, vez que precedeu a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), que foi aprovada somente em
dezembro de 1948.
17 Neste sentido, leia-se: “Criada como uma Organização Internacional de caráter regional, seus
propósitos e princípios fundamentais, bem como parte de sua estrutura, deixam bastante claro que uma
das suas finalidades é a proteção aos direitos humanos. Para tanto, serve-se da capacidade jurídica
internacional para celebrar tratados internacionais com outros sujeitos do Direito Internacional, a fim de
alcançar os seus objetivos”. MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de
Direitos Humanos pela jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 74. 18 A OEA é uma organização internacional regional do tipo mencionado no artigo 52 da Carta das Nações
Unidas. Em conformidade com o artigo 53 da sua Carta. 19Disponível em
http://www.oas.org/juridico/portuguese/a_organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_estados_americ.htm.
Acesso em 15 de maio de 2020. 20 AGUIAR, Marcus Pinto. Acesso à Justiça nos Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos
Humanos. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017, p. 55.
21
A DADDH não foi considerada como parte da Carta da OEA, o que levou a um
entendimento inicial de que ela não produziu obrigações jurídicas contratuais, situando
a Declaração na categoria de “declaração de princípios”, que não tem a força coercitiva
como os tratados internacionais21.
Contudo, com a evolução do direito interamericano em relação à proteção dos
direitos humanos a própria Assembleia Geral da OEA tem reconhecido que a DADDH é
uma fonte de obrigações internacionais para os estados parte da Organização22. A Corte
IDH, por exemplo, entende que mesmo a Declaração não sendo um tratado (em termos
formais), não carece de efeitos jurídicos que vinculam os Estados membros23.
Destaque-se, pois, o entendimento de que independentemente da posição
individual do Estado membro, instrumentos tecnicamente não-mandatórios (resoluções
de modalidades distintas) têm igualmente exercido efeitos jurídicos sobre os Estados
membros da Organização24.
De outro modo, percebe-se, desde o preâmbulo da DADDH, que tal
instrumento buscou promover um verdadeiro equilíbrio na balança ao demonstrar que o
homem25 é titular de direitos, mas que também há muitos deveres, principalmente
sociais, a observar26.
21 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. Op. Cit. p. 30. 22 A resolução 314 (VII-0/77) de 22 de Junho de 1977, encarregou a Comissão Interamericana de preparar
um estudo em que “conste a obrigação de cumprir os compromissos adquiridos no Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem”. Na resolução 371 (VIII-0/78) de 1º de julho de 1978, a Assembleia
Geral reafirmou “seu compromisso de promover o cumprimento da Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem”. A resolução 370 (VIII-0/78) de 1º de julho de 1978, referiu-se ao "Compromissos
internacionais" de respeitar os direitos do homem "reconhecidos pela Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem" por um Estado Membro da Organização. 23 Corte IDH: Interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem no âmbito do
artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Opinião Consultiva OC‐10/89 de 14 de julho de 1989. Série A Nº 10, parágrafos 45‐47. 24 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Reflexões sobre o valor jurídico das Declarações
Universal e Americana de Direitos Humanos de 1948 por ocasião do seu quadragésimo aniversário.
Revista Inf. Legisl. Brasília a. 25 nº 99. Jul/Set de 1988. Disponível em
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181857/000439747.pdf?sequence=1&isAllowed=y.
Acesso em 15 de maio de 2020. p. 13. 25 Em que pese o reconhecimento da DADDH como marco de proteção dos direitos humanos, o uso da
expressão “direitos do homem” contraria o seu princípio de igualdade. Em um contexto marcado pelo
machismo, que colocou “a mulher” à margem de tantos direitos essenciais durante anos, para assegurar
que nenhuma dúvida existisse acerca da igualdade de gênero, talvez o mais indicado a utilizar seria uma
expressão como “direitos humanos” ou “da pessoa humana”, como assim fez a Declaração Universal. 26 DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E DEVERES DO HOMEM. Preâmbulo. Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela natureza de razão e
consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os outros.
O cumprimento do dever de cada um é exigência do direito de todos. Direitos e deveres integram-se
correlativamente em toda a atividade social e política do homem. Se os direitos exaltam a liberdade
individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade.
Os deveres de ordem jurídica dependem da existência anterior de outros de ordem moral, que apoiam os
primeiros conceitualmente e os fundamentam. [...]
22
Neste sentido, elencou em seu artigo 28 que “os direitos do homem estão
limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências
do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático”, o que representa seu desejo de
imposição de equilíbrio nas relações privadas, por exemplo.
Assim, se na sua primeira parte (arts. 1º ao 28), dita Declaração tratou do rol de
Direitos inerentes à pessoa humana27 na sua segunda parte (arts. 29 ao 38), a Declaração
cuidou de elencar deveres inerentes ao homem28.
O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH), dispõe
de diversos instrumentos normativos, órgãos de controle e uma vasta jurisprudência,
sendo necessário realizar inicialmente um estudo sobre tais29.
Em sua tutela normativa, o SIPDH conta com importantes instrumentos como a
Carta da OEA, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (DADDH),
de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)30, de 1969, dentre
outros31.
Em razão do objetivo deste trabalho, serão abordados somente alguns aspectos
destes demais instrumentos internacionais que compõem o SIPDH, considerando que
possam ter importância a este estudo.
27 Dentre eles, podemos citar: Direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa; Direito de
igualdade perante a lei; Direito de liberdade religiosa; Direito de liberdade de investigação, opinião, expressão
e difusão; Direito à proteção da honra, da reputação pessoal e da vida particular e familiar; Direito à
constituição e proteção da família. Direito de residência e trânsito; Direito à educação; Direito ao trabalho e a
uma justa retribuição; Direito de reconhecimento da personalidade jurídica e dos direitos civis; Direito de
proteção contra prisão arbitrária. 28 Dentre os deveres contidos na DADDH, podemos citar: Deveres perante a sociedade; Deveres para com
os filhos e os pais; Dever do sufrágio; Dever de obediência à Lei; Dever de servir a coletividade e a nação;
Deveres de assistência e previdência sociais; Dever de pagar impostos; Dever do trabalho; Dever de se abster
de atividades políticas em países estrangeiros. 29 “O sistema de proteção internacional dos direitos humanos no continente americano abarca os
procedimentos contemplados na Carta da Organização dos Estado Americanos, na Declaração Americana
dos Direitos do Homem e na Convenção Americana de Direitos Humanos.” GUERRA, Sidney. Direito
Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 179. 30 “Além da Convenção Americana de Direitos Humanos, o sistema interamericano conta com diversos
instrumentos internacionais que protegem direitos específicos. O mais importante deles é, sem dúvida, o
Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Diretos Econômicos,
Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), adotado em 1988 e ratificado pelo Brasil em 1996”.
CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 315. 31 “Quanto aos demais instrumentos internacionais do sistema interamericano de direitos humanos, cite-
se, entre outros, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir o Crime de Tortura, adotada em 1985
e ratificada pelo Brasil em 1989; o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos
relativo à Abolição da Pena de Morte, adotado em 1990 e ratificado pelo Brasil em 1996; a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada em 1994 em Belém
do Pará (Brasil) e ratificada pelo Brasil em 1995, e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento
Forçado de Pessoas adotada em 1994 e já ratificada pelo Brasil”. CARVALHO RAMOS, André de. Ob.
Cit. p. 315 - 316.
23
Em que pese sua grande relevância ao estabelecer um rol direitos sociais que
devem ser assegurados pelos Estados, destaca-se o Protocolo de San Salvador, que foi
aprovado em 1988 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos,
para consagrar direitos sociais que anteriormente não haviam recebido destaque pelos
outros instrumentos.
Dito Protocolo cuidou de um importante rol de direitos sociais, qual sejam:
direito ao trabalho; direito à seguridade social; direito a condições equitativas de
trabalho; direito à associação sindical; proteção à família; proteção à criança; proteção
ao idoso; proteção à cultura; proteção ao meio ambiente equilibrado e outros32.
No que concerne ao controle e monitoramento e implementação do
cumprimento das obrigações previstas nos tratados e demais instrumentos internacionais
que cuidam dos Direitos Humanos, o SIPDH conta coma Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) e com a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte
IDH)33.
É possível afirmar que no âmbito americano existem dois sistemas normativos
de proteção aos direitos humanos34: o geral, baseado na Carta da OEA e na DADDH e o
sistema que abarca apenas os Estados signatários da Convenção que estão submetidos,
além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já prevista no geral, a
Corte Interamericana de Direitos Humanos35.
A Comissão é um órgão planejado desde a fundação da Organização dos
Estados Americanos (OEA), pelo qual não se pode olvidar sua importância, e teve sua
criação estabelecida através do artigo 106 da Carta da OEA36.
A CIDH teve sob sua tutela as atribuições que seriam posteriormente cabíveis à
Corte IDH, vez que enquanto não estivesse em vigor a Convenção que tratasse da
32 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.
p. 194. 33 WERMUTH, Maiquel Angelo Dezordi; GHISLENI, Pâmela Copetti. O sistema interamericano de direitos humanos e a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos. Revista da Faculdade de Direito
UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 62, n. 2, maio/ago. 2017. ISSN 2236-7284. p. 64. Disponível em:
. Acesso em: 11 de maio de 2020. DOI:
http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v62i2.49287. 34 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 75. 35 GUERRA, Sidney. Ob. Cit. p. 180. 36 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. A COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Artigo 106: Haverá uma Comissão Interamericana
de Direitos Humanos que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e
servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.
Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as
normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal
matéria.
24
matéria de direitos humanos, prevista no artigo 106, a referida Comissão seria a
responsável pelas atribuições àquela previstas37.
A criação da Comissão, oficialmente, ficou a cargo da Resolução VIII, oriunda
da V Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores, realizada em Santiago,
Chile, em agosto de 1959. Seu estatuto foi aprovado em junho de 1960, em Washington
D.C., Estados Unidos, mesmo ano em que suas atividades foram iniciadas.
Sediada em Washington D.C., dita Comissão teve sua composição, estrutura e
funcionamento previstos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),
que tratou da matéria nos artigos 34 ao 40, assim como sua competência e função foram
reguladas, através dos artigos 41 ao 47 da mesma Convenção.
A CIDH é composta por sete membros da nacionalidade de qualquer dos
Estados-membros da OEA, eleitos pela Assembleia Geral da Organização, e é
competente para atuar tanto na proteção relativa à OEA quanto na proteção assegurada
pela CADH38. Dita Comissão também pauta sua atuação tendo como base seu estatuto e
regulamento.
A Comissão é um órgão autônomo e figura entre os principais da estrutura da
Organização dos Estados Americanos, servindo como órgão supervisor, promocional e
consultivo39.
Há de se destacar que a referida Comissão desempenha um relevante papel de
acesso ao sistema de proteção dos direitos humanos, vez que serve de ponte de atuação
entre o indivíduo, que não tem capacidade processual para acionar diretamente a Corte
IDH, e o SIPDH.
A CIDH opera através de mecanismos quase judicial e judicial40. Alguns
doutrinadores comparam esta função da CIDH com o Ministério Público41, pois tem
37 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. A COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Artigo 145: Enquanto não entrar em vigor a
convenção interamericana sobre direitos humanos a que se refere o Capítulo XV, a atual Comissão
Interamericana de Direitos Humanos velará pela observância de tais direitos. 38 Composta em 26 de maio de 2020 pelos seguintes membros: Joel Hernández García, Antonia Urrejola
Noguera, Margarette May Macaulay, Esmeralda Arosemena de Troitiño, Julissa Mantilla Falcón, Edgar
Stuardo Ralón Orellana e pela brasileira Flávia Piovesan, que ocupa a segunda vice presidência da
comissão. Atualmente, Flávia Piovesan é a nacional brasileira que integra a CIDH, com mandato de
01/01/2018 a 31/12/2021. 39 PEREIRA, Antônio Celso Alves. Apontamentos sobre a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. In: GUERRA, Sidney. (Org.) Temas emergentes de direitos humanos. Rio de Janeiro: FDC,
2006. p. 93. 40 AGUIAR, Marcus Pinto. Acesso à Justiça nos Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos
Humanos. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017. p. 62. 41 “[...]Sua atuação é, portanto, bastante semelhante em alguns aspectos a do Ministério Público
brasileiro, pois tem tanto legitimidade para encaminhar um caso ao órgão jurisdicional, como pode
25
competência para receber e processar as denúncias que lhes são apresentadas por
indivíduos, grupos de pessoas e Estados, além de exercer uma função investigativa e de
conciliação. É ainda o intérprete da Convenção Americana de Direitos Humanos e para
que sua estrutura seja acionada é necessário o peticionamento escrito referindo-se à
suposta violação de algum direito humano que esteja disposto na Convenção, na
Declaração Americana ou em outros documentos do Sistema Interamericano42.
Diferentemente da Corte IDH, como se verá oportunamente, não é exigida
formação jurídica para os membros da Comissão e o seu mandato é de quatro anos,
cabendo uma única reeleição, não sendo permitida a presença de mais de um nacional
de mesmo Estado na sua composição.
A Corte IDH é composta por sete juízes43, nacionais dos Estados Membros da
Organização, eleitos a título pessoal dentre os juristas da mais alta autoridade moral, de
reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições
requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do
Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos44,
destacando-se aqui a diferença nas qualificações pessoais exigidas dos membros da
CIDH.
Os juízes são eleitos em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos
Estados-Partes na Convenção, na Assembleia Geral da Organização. Cada Estado pode
propor uma lista de até três candidatos, podendo ser de sua nacionalidade ou nacional de
um dos Estados parte da OEA, conforme definido pelo artigo 53 da CADH, isto porque
não pode haver mais de um juiz da mesma nacionalidade.
Estes juízes são eleitos para mandato de seis anos, podendo serem reeleitos
uma única vez. As eleições para Corte acontecem de forma fracionada, sendo que a cada
período de três anos acontecem ditas eleições para eleger três ou quatro juízes, a
depender do período.
Em outra característica distinta, a Corte IDH pode contar com juízes ah hoc
para tratar de matérias específicas, conforme preceituado pelo artigo 55 da Convenção
fiscalizar o respeito aos direitos humanos no plano regional”. MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p.
77. 42 AGUIAR, Marcus Pinto. Ob. Cit. p. 65. 43 Atualmente composta por Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Patricio Pazmiño Freire
(Equador); Elizabeth Odio Benito (Costa Rica), atual presidente; Eduardo Vio Grossi (Chile); Eugenio
Raúl Zaffaroni (Argentina); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo Pérez Manrique
(Uruguai). 44 CADH, Artigo 52.
26
Americana, resguardando-se os requisitos pessoais dos juízes, conforme definido no
artigo 5245.
A Corte IDH é sediada em São José, Costa Rica. Dita Corte tem dupla
competência: contenciosa e consultiva. Para atuar nos casos litigiosos, é absolutamente
necessário que o Estado denunciado tenha aceitado a jurisdição da Corte. Em relação à
segunda competência, nos anos iniciais de seu funcionamento, a Corte robusteceu a
proteção aos direitos humanos ao emitir várias opiniões consultivas, contribuindo para a
interpretação e aplicação das normas previstas na CADH46.
Impende destacar que o Sistema Interamericano47, ao lado dos sistemas
europeu e africano, é um dos três sistemas regionais consolidados no mundo, tendo se
consolidado ao longo dos anos, com grande peso para a década de 90, como catalizador
da promoção e proteção dos direitos humanos, num cenário em que diversos Estados do
continente aceitaram sua jurisdição48, motivo pelo qual seu estudo guarda importante
relevância.
Neste capítulo, serão abordados os instrumentos normativos e jurisprudenciais
oriundos do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, do qual o Brasil
é parte.
Para tanto, como recorte, serão utilizados os instrumentos internacionais de
âmbito regional, para que se possa realizar uma espécie sindicância de compatibilidade
entre a legislação interna brasileira e os instrumentos internacionais regionais.
Assim, para se averiguar a possível [in]compatibilidade do ordenamento
jurídico interno face ao ordenamento regional, este capítulo abordará os instrumentos
internacionais que serão utilizados como base, diga-se a Carta da OEA, a DADDH, a
CADH e outros instrumentos, assim como os posicionamentos e manifestações da
Comissão Interamericana e a jurisprudência da Corte Interamericana, que é considerada
intérprete natural da CADH, conforme será abordado a seguir.
45 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.
p. 201. 46 MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p. 78. 47 AGUILAR CAVALLO, Gonzalo. Surgimento de um derecho americano de los derechos humanos
en la America Latina. Revista Mexicana de Derecho ConstitucionalNúm. 24, enero-junio 2011.
Disponível em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/cuestiones-
constitucionales/article/view/5945. Acesso em 11 de maio de 2020. 48 Cf. RAMANZINI, I. G. G. (2017). Mudança Institucional em Regimes de Direitos Humanos: o Sistema Interamericano e os Estados “em cima do muro”. Carta Internacional, 12(2), 150 - 173.
https://doi.org/10.21530/ci.v12n2.2017.618. Acesso em 26 de maio de 2020.
27
2.2 CARTA DA OEA, DADDH, CADH E DEMAIS INSTRUMENTOS
NORMATIVOS DO SISTEMA INTERAMERICANO
Considerando o recorte material deste trabalho, qual seja a questão da temática
sobre migrações, passa-se ao estudo dos dispositivos de tais instrumentos oriundos do
SIPDH, que guardem relação com o tema.
A OEA implementou o sentimento de organização regional tendo como
principais características o compromisso com a democracia, a manutenção da paz e da
segurança no continente e, ainda, a valorização dos direitos humanos49, o que
certamente guarda importância para as pessoas em situação migratória.
Aliás, o trabalho da OEA também tem ganhado relevo em relação à proteção dos
direitos humanos relacionados aos migrantes. Nas palavras de Thiago Oliveira Moreira,
a Organização dos Estados Americanos tem uma importante contribuição à seara dos
Direitos Humanos dos Migrantes, vez que adotou o entendimento de que a proteção aos
Direitos Humanos independente da condição de nacional50, embora a Carta da OEA não
tenha tratado especificamente da temática em apreço.
Um importante instrumento normativo que compõe o Sistema Interamericano
de Proteção dos Direitos Humanos (SIPDH) é a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem.
Especificamente quanto à proteção aos migrantes, a DADDH não dispôs de um
rol significativo, contudo, há de se destacar seu artigo 27 ao prever que “toda pessoa
tem o direito de procurar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de
perseguição que não seja motivada por delitos de direito comum, e de acordo com a
legislação de cada país e com as convenções internacionais”.
Ao prever que à pessoa vítima de perseguição por motivos escusos à lei (seja
de ordem política, religiosa, sexual, dentre outros) é dado o direito de acolhida por outro
Estado, de modo que assegure sua proteção e manutenção dos direitos inerentes à sua
condição humana, dito dispositivo (art. 27) trata acerca do direito de asilo,
mundialmente reconhecido.
Aliás, é importante destacar que o asilo mencionado nessa norma pode ser
considerado sinônimo de refúgio. Dita norma, editada anteriormente ao Estatuto dos
49 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Concretização dos Direitos Humanos dos Migrantes pela
Jurisdição Brasileira. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019. p.
110. 50 MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p. 112.
28
Refugiados (de 1951), representa um nítido reconhecimento da existência de um direito
humano a solicitação de refúgio.
Nas palavras de Sidney Guerra, a Declaração Americana buscou elencar um rol
de recomendações para os indivíduos, fazendo com que se reconheçam direitos e
deveres ao ser humano51. A DADDH, notadamente, representa um marco importante
nesta temática, pois contemplou os Direitos Humanos de forma integral (direitos civis,
políticos, sociais, culturais e econômicos)52.
A CADH foi aprovada durante a Conferência Especializada Interamericana
sobre Direitos Humanos, no ano de 1969, em San José, Costa Rica, motivo pelo qual a
CADH também é conhecida como Pacto de San José, entrando em vigor no ano de
197853.
Considerada como sendo o principal instrumento normativo do SIPDH, dita
Convenção foi ratificada por 25 dos 35 países que integram a Organização dos Estados
Americanos, dentre eles o Brasil54, o que demonstra sua notável abrangência - embora
se saiba que o ideal seria a ratificação pela totalidade dos países americanos.
Diferente dos demais instrumentos até então abordados, a Convenção
Americana é um tratado internacional, com características hard law55, ratificado pelo
Brasil, através do Decreto nº 678, de 6 de novembro, no ano de 199256.
Este instrumento pode ser dividido em três partes. Na primeira parte, a
Convenção Americana estabelece os deveres dos Estados e os direitos protegidos pelo
tratado. Na sua segunda parte, a Convenção Americana estabelece os meios de proteção:
a CIDH e a Corte IDH, aos que declara órgãos competentes para “conhecer dos assuntos
relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes
nesta Convenção” (art. 33). Já na terceira e última, trata sobre disposições gerais e
transitórias57.
51 GUERRA, Sidney. Ob. Cit. p. 188. 52 Ibidem. p. 190. 53 Nos termos do art. 74.2 da CADH, a sua vigência iniciaria quando onze Estados houvessem realizado o
depósito dos instrumentos de adesão ou ratificação. 54 Disponível em: < https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm>.
Acesso em 24 de março de 2020. 55 No âmbito do Direito Internacional, muito se discute sobre normas hard law e soft law. Este status
normativo hierárquico quer dizer, em uma tradução literal, que a regra é forte ou firme, ou que ela é leve,
fraca. Neste sentido, ao utilizar a expressão hard law, está se referindo à instrumentos normativos com
força cogente, que vinculam os Estados parte. 56 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela
jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 75-76. 57 “A Convenção Americana é composta por 82 artigos, divididos em três partes: Parte I sobre os Deveres
dos Estados e Direitos Protegidos; a Parte II sobre os “Meios de Proteção” e a Parte III, sobre as
29
Como se percebe de seu objetivo, o Pacto de São José reafirmou o propósito de
criar no continente americano um ambiente de liberdade e de justiça social, respaldado
pelo respeito aos direitos humanos.
Neste sentido, a Convenção Americana reitera enunciado da Declaração
Universal no sentido de que o ser humano só é realmente livre se forem criadas as
condições que o permitam gozar os seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e
culturais, bem como reafirma o propósito de consolidação de um continente americano
pautado pela liberdade pessoal e justiça social58.
Revelando sua abrangência e importância para proteção dos direitos da pessoa
humana, dita Convenção traz um rol de direitos, com vistas a proteger o gozo de direitos
civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, tendo enfoque principal no exercício e
proteção dos direitos civis e políticos (arts. 3º ao 25). Contudo, a Convenção Americana
não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico; limita-
se a determinar aos Estados que alcancem progressivamente, a pela realização desses
direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras que se mostrem
apropriadas, nos termos do art. 26 da Convenção59.
Assim, somente após o Protocolo Adicional à CADH (Protocolo de São
Salvador), no ano de 1988, relativo aos direitos sociais, econômicos e culturais, foi
elencada uma série de direitos relativos ao trabalho, seguridade social, proteção à
família, proteção à criança, proteção ao idoso, à cultura e ao meio ambiente equilibrado.
Considerando o recorte deste trabalho, especificamente em relação aos direitos
dos migrantes, destaca-se o artigo 22, que merece ter seu estudo aprofundado, uma vez
que dispõe sobre regras inerentes ao direito de livre circulação e residências de pessoas.
No seu primeiro item, dito artigo faz referência ao que se conhece como direito
à livre circulação e residência, que consiste, de modo resumido, no direito que toda
pessoa tem de se movimentar de um lugar para outro, no país que vive, e estabelecer sua
residência onde queira.
Contudo, como poderá ser visto, embora aparentemente simples, este direito se
apresenta de forma bastante complexa por apresentar múltiplos aspectos, como a
liberdade de poder sair de qualquer país ou a de que pessoas em situação migratória não
“Disposições Gerais e Transitórias””. CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 5ª
ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 318. 58 GUERRA, Sidney. Ob. Cit. p. 193. 59 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 333.
30
poderiam ser expulsas arbitrariamente por exemplo. No mesmo sentido, a efetivação
deste direito depende de diversas ações por parte dos Estados (que assegurem tais
direitos), bem como da divisão político-jurídica do mundo globalizado60.
Importa destacar que o direito à livre circulação e residência não é um direito
universal, vez que a própria CADH prevê que é aplicado a “toda pessoa que se ache
legalmente” naquele território. Esta especificidade acarreta diferenças de tratamento aos
nacionais e estrangeiros, vez que cada Estado pode estabelecer condições e regras de
aceitação de pessoas não nacionais em seu território.
No seu item 2, trata sobre o direito de emigração, ao reconhecer que “toda
pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio”, ou seja,
embora não exista o reconhecimento ao direito de imigração, há um reconhecimento do
direito de emigrar61.
Este direito à emigração se mostra mais abrangente e oponível a qualquer
Estado, sendo um direito de titularidade da pessoa, independentemente da sua condição
de nacional. Inclusive, a liberdade de sair de um Estado independe de finalidade
específica e/ou de prazo que a pessoa decida permanecer fora do país62.
Tal direito também gera ao Estado uma obrigação de facilitar a obtenção de
documentos necessários para viagem, como o passaporte, por exemplo, e de eliminar
qualquer trava burocrática que possam impedir o acesso a tais documentos63.
No item 3 do artigo 22, há previsão de restrições possíveis aos direitos de livre
circulação e residência e de sair livremente de qualquer país. Segundo item 3, estes
direitos só podem sofrer restrição em “virtude de lei, na medida indispensável, numa
sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança
nacional, a segurança ou a ordem pública, a moral ou a saúde pública, ou os direitos e
liberdades das demais pessoas”.
60 UPRIMNY YEPES, Rodrigo; SÁNCHEZ DUQUE, Luz María. Artículo 22. Derecho de Circulación
y de Residencia. In.: Convención Americana sobre Derechos Humanos Comentada. STEINER,
Christian; URIBE, Patricia (Orgs.). México: Suprema Corte de Justicia de la Nación; Bogotá, Colombia:
Fundación Konrad Adenauer, Programa Estado de Derecho para Latinoamérica, 2014. p. 533. 61 Embora alguns autores entendam que que este dispositivo fundamentaria um direito humano a
imigração, discordamos deste posicionamento. Caso fosse este o entendimento dos Estados-legisladores,
o teriam positivado como fizeram com a previsão ao direito a emigração. Neste mesmo sentido vide
MOREIRA, Thiago Oliveira. A Concretização dos Direitos Humanos dos Migrantes pela Jurisdição
Brasileira. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019. p. 318. 62 Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral nº 27, parágrafo 8. 63 UPRIMNY YEPES, Rodrigo; SÁNCHEZ DUQUE, Luz María. Ob. Cit. p. 541
31
O item 4 do mesmo artigo também traz uma possibilidade de restrição ao
direito à livre circulação, prevendo que “pode também ser restringido pela lei, em zonas
determinadas, por motivo de interesse público”.
Assim, percebe-se que existem requisitos para que tais restrições sejam
consideradas legítimas. O primeiro deles é que a restrição seja estabelecida por lei. Uma
forma de garantir segurança jurídica e prevenir as pessoas da arbitrariedade de uma
autoridade administrativa.
Importante destacar que não se trata de uma autorização geral para estabelecer
novas restrições aos direitos protegidos pela Convenção através de uma lei, no sentido
literal da legalidade. Do contrário, trata-se de condição adicional para que as restrições,
singularmente autorizadas, sejam legítimas64.
No mesmo sentido, existem requisitos substantivos para satisfação da
legitimidade das medidas de restrição. Deste modo, para que sejam legítimas, as
restrições devem perseguir os propósitos autorizados pela Convenção, quais sejam a
proteção da segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral pública ou, ainda,
direitos e liberdades de terceiros, bem como guardar proporcionalidade com o fim
legítimo perseguido65.
Já o item 5 do referido artigo assegura o direito de não expulsão e de entrada
do nacional em relação ao território do seu país. Nestes termos, o nacional jamais
poderá ser expulso do seu país, nem ter seu ingresso impedido.
De outro modo, no item 6, há uma determinação para que seja cumprido o
princípio da legalidade, exigindo-se que “o estrangeiro que se ache legalmente no
território de uma Estado-Parte nesta Convenção só poderá dele ser expulso em
cumprimento de decisão adotada de acordo com a lei”, numa clara proteção ao direito
de não expulsão, não sendo possível operar expulsão de forma arbitrária.
Já o direito ao asilo, ou ao refúgio em alguns casos66, é reconhecido através do
item 7, que garante que “Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em
64 VÍQUEZ FERNANDO, Castillo; LOAIZA OLMAN, Rodríguez; RODRÍGUEZ GRACIELA,
Arguedas. Convención Americana sobre Derechos Humanos Anotada y concordada con la
Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Heredia, Costa Rica: Corte
Suprema de Justicia. Escuela Judicial, 2013. p. 511. 65 Neste sentido, Corte IDH. Caso Ricardo Canese vs. Paraguai. Sentença de 31 de agosto de 2004. Série
C, nº 111, parágrafo 125. 66 Em que pesem as discussões doutrinárias acerca da diferença entre asilo e refúgio, entendemos se tratar
de institutos semelhantes, contudo obtidos em situações diferenciadas pela motivação da solicitação.
Neste sentido: “a expressão asilo político é utilizada para o asilo diplomático, concedido a perseguidos
políticos, enquanto que o asilo territorial é o obtido pelos refugiados” ALARCÓN, Pietro. Direitos
Humanos e Direitos dos Refugiados: a Dignidade Humana e a Universalidade dos Direitos
32
território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos
com delitos políticos e de acordo com a legislação de cada estado e com os convênios
internacionais”.
O direito ao asilo político, aliás, se mostra como um exemplo da contribuição
do direito interamericano ao direito internacional, vez que se trata de um direito que se
desenvolveu nesta região ao longo do século XX, sendo bem aceito posteriormente pela
Declaração Universal67.
Embora o artigo 22.7 da CADH remete somente ao asilo em caso de
perseguição por delitos políticos, em razão das regras de interpretação da Convenção,
previstas no seu artigo 29, deve-se entender que a CADH não exclui o amplo rol de
direitos relacionados ao asilo (previstos na DADDH e DUDH, por exemplo). Sem
embargo, deve-se compreender que o direito ao asilo abarca uma ampla situação de
perseguição e não somente os casos de perseguição por motivos políticos.
Já os itens 8 e 9 completam uma série de limitações à expulsão. Enquanto os
itens 5 e 6 preveem a proibição de expulsão de nacional do seu próprio Estado e as
condições para expulsão de estrangeiro que se ache legalmente em um país, o item 8
positiva o princípio non-refoulement, ou não devolução.
Segundo tal princípio, que também está positivado no artigo 33 do Estatuto dos
Refugiados de 1951, em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a
outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou liberdade pessoal esteja em
risco de violação por causa da sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de
suas opiniões políticas.
Em âmbito interamericano, tem-se que tal direito à não devolução é absoluto e
não depende da condição da pessoa interessada como refugiado68, o que demonstra sua
fundamental importância para o Direito Internacional.
Por fim, o item 9 do artigo 22 reconhece que não pode haver expulsão coletiva
de estrangeiros, como meio de proteção as condições individuais da pessoa. Segundo
entendimento do direito internacional, o Estado deve promover uma avaliação pessoal
das condições do migrante para decidir sobre a possibilidade de sua expulsão.
Humanos como fundamentos para superar a discricionariedade estatal na concessão do refúgio. In:
Cadernos de Debates, Refúgios, Migrações e Cidadania, v. 8, n. 8 . Brasília: Instituto Migrações e
Direitos Humanos, 2013. p. 99. 67 Cf. YEPES, Jesús María. El derecho de asilo. Síntesis histórica, jurídica, política y filosófica. In.:
Universitas, nº 15, Bogotá, 1958. 68 CIDH. Informe sobre terrorismo e direitos humanos, parágrafo 394.
33
Em que pese sua importante contribuição normativa ora explanada, uma grande
contribuição da Convenção Americana diz respeito à criação dos meios de controle,
com a criação de órgãos de monitoramento do cumprimento dos compromissos
assumidos pelos Estados69, com o efetivo funcionamento da Comissão Interamericana e
a implementação da Corte IDH. No próximo tópico, serão abordadas as manifestações
desses órgãos, no que concerne a proteção dos direitos humanos dos migrantes.
Ainda em sede normativa, cabe destacar a Convenção Interamericana para
Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), que trouxe em seu
artigo 9 a previsão de que “os Estados Partes levarão especialmente em conta a situação
da mulher vulnerável a violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante,
de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos”, o que atribui ao Estado um dever
de atenção especial à mulher em situação de migração que possa ser submetida a algum
tipo de violência.
Em sentido semelhante, cujo objetivo é mitigar as injustiças causadas em razão
da origem nacional da pessoa, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância (2013) reconhece em seu artigo
1 que “A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem
nacional ou étnica”.
Do mesmo modo, a Convenção Interamericana contra toda Forma de
Discriminação e Intolerância (2013), em seu artigo 1, também reconhece que “A
discriminação pode basear-se em nacionalidade [...] condição de migrante, refugiado,
repatriado, apátrida ou deslocado interno [...]”.
Não menos importante, através da Resolução nº 04/19, a CIDH adotou
“Princípios Interamericanos sobre os Direitos Humanos de todas as Pessoas Migrantes,
Refugiadas, Apátridas e as Vítimas de Tráfico de Pessoas”, cujo objetivo principal é
orientar os Estados membros da OEA acerca dos seus deveres de respeitar, proteger,
promover e garantir os direitos humanos de todas as pessoas independentemente de sua
nacionalidade ou situação migratória, incluindo pessoas migrantes, refugiadas, apátridas
e as vítimas de tráfico de pessoas.
Dito documento serve de importante guia para as autoridades estatais para o
desenvolvimento de legislação, regulamentação, decisões administrativas, políticas
69 No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, para acompanhar o cumprimento
dos compromissos assumidos pelos Estados, foram criados órgãos de fiscalização denominados “treaty
bodies”, comitês que monitorariam a implementação dos principais tratados que tenham como objeto
Direitos Humanos.
34
públicas, práticas, programas e jurisprudência pertinente. Além de trazer diversas
definições de termos utilizados em relação a temática, que visa facilitar sua aplicação e
interpretação, aglutina em um único documento 80 princípios decorrentes do SIPDH
que devem ser observados pelos Estados membros70.
Vencidos os principais aspectos relativos aos instrumentos normativos que
compõem o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIPDH), passa-
se, então, à analise acerca da tutela jurisdicional, oriunda de tal sistema, acerca da
proteção aos direitos humanos dos migrantes.
2.3 A PROTEÇÃO INTERAMERICANA JURISDICIONAL DOS DIREITOS
HUMANOS APLICADA A PESSOAS EM SITUAÇÃO MIGRATÓRIA
Para tratar da tutela jurisdicional de proteção dos Direitos Humanos das
pessoas em situação migratória, abordar-se-á a competência e a atuação da CIDH, bem
como da Corte Interamericana. Ambos os órgãos, como se verá, tem relevante trabalho
para proteção de tais direitos.
2.3.1 A Comissão Interamericana De Direitos Humanos (CIDH)
A CIDH funciona como mecanismo de controle ao cumprimento dos
instrumentos interamericanos que versam sobre direitos humanos. É o fato de a
Comissão trata do monitoramento de todos os Estados que são partes da OEA e não
somente dos que ratificaram a CADH71. Ao receber uma denúncia relativa aos Estados
que não ratificaram dita Convenção, a CIDH observará o que dispõe a DADDH e a
Carta da OEA72.
70 Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios%20DDHH%20migrantes%20-
%20ES.pdf. Acesso em 30 de junho de 2020. 71 ESTATUTO DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. (Aprovado pela
resolução AG/RES. 447 (IX-O/79) Artigo 1: 1. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um
órgão da Organização dos Estados Americanos criado para promover a observância e a defesa dos direitos
humanos e para servir como órgão consultivo da Organização nesta matéria. 2. Para os fins deste Estatuto,
entende-se por direitos humanos: a. os d