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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – CCSA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – PPGD MESTRADO EM DIREITO TONY ROBSON DA SILVA A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. NATAL - RN 2020

TONY ROBSON DA SILVA · TONY ROBSON DA SILVA A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da política migratória

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN

    CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS – CCSA

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – PPGD

    MESTRADO EM DIREITO

    TONY ROBSON DA SILVA

    A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO

    MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da

    política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos

    Direitos Humanos.

    NATAL - RN

    2020

  • TONY ROBSON DA SILVA

    A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO

    MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da

    política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos

    Direitos Humanos.

    Dissertação apresentada à banca

    examinadora do PPGD/UFRN como

    requisito parcial para obtenção do título de

    Mestre, do Programa de Pós-Graduação em

    Direito da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte, sob orientação do

    Professor Doutor Thiago Oliveira Moreira e

    coorientação do Professor Doutor José

    Noronha Rodrigues.

    NATAL - RN

    2020

  • TONY ROBSON DA SILVA

    A (NECESSÁRIA) CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO

    MIGRATÓRIA BRASILEIRA: uma análise da regulamentação da política migratória à luz do Sistema Interamericano de Proteção dos

    Direitos Humanos.

    Dissertação apresentada à banca

    examinadora do PPGD/UFRN como

    requisito parcial para obtenção do título de

    Mestre, do Programa de Pós-Graduação em

    Direito da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte, sob orientação do

    Professor Doutor Thiago Oliveira Moreira e

    coorientação do Professor Doutor José

    Noronha Rodrigues.

    Aprovado em: 29/07/2020.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Doutor Thiago Oliveira Moreira (orientador) UFRN

    Prof. Doutor José Noronha Rodrigues (coorientador) UAC/PT

    Prof. Doutor Sidney Cesar Silva Guerra (externo) UFRJ

    Prof. Doutor Yara Maria Pereira Gurgel (interno) UFRN

  • A minha mãe, Luzinete, base estruturante da minha vida e que

    me dá força para vencer todos os desafios cotidianos, por toda

    inspiração para que eu possa me tornar um verdadeiro ser

    humano;

    Ao meu companheiro, Vicente, pelo companheirismo, amor,

    compreensão e incentivo.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeço inicialmente a Deus, pela oportunidade que colocou em minha vida e

    que me fez abrir a mente para o mundo da pesquisa e investigação científica, assim

    como me deu e me dá forças para continuar na luta diária.

    Agradecimentos maiores a minha família, em nome da minha mãe, meu irmão,

    meu companheiro e do meu pai, que sempre acreditou em mim, mesmo quando nem

    mesmo eu acreditei.

    Também quero registrar, em nome dos Professores Keity Saboya, Yara Gurgel,

    Marco Bruno Miranda Clementino e Jahyr-Phillipe Bichara, minha gratidão a todos os

    professores e professoras do PPGD/UFRN.

    Ao meu orientador, Professor Thiago Oliveira Moreira, meu agradecimento

    particular pela disposição em me orientar nessa jornada do Mestrado, bem como pela

    disponibilidade de contribuir fundamentalmente com a pesquisa ora entregue.

    Por fim, mas não menos importante, agradecer ao Professor José Rodrigues

    Noronha, meu coorientador, por ter aceitado a missão de, junto ao Prof. Thiago, me

    orientar nessa jornada, mesmo estando fisicamente do outro lado do Atlântico.

  • RESUMO

    O presente trabalho trata do dever de convencionalização da legislação migratória

    brasileira, destacando-se as recentes alterações normativas decorrentes da Nova Lei de

    Migração (Lei 13.445/2017), dos instrumentos infralegais que promovem a sua

    regulamentação e, ainda, de instrumentos infralegais adotados durante o período de

    pandemia causada pelo novo coronavírus, que restringem o ingresso de imigrantes no

    Brasil. Para tanto, utiliza-se o recorte das normas internacionais de âmbito regional, vez

    que no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos o Controle de

    Convencionalidade tem sido utilizado expressamente, mostrando-se essencial o

    conhecimento das tutelas normativas e jurisdicionais oriundas deste sistema, bem como

    acerca do exercício do Controle de Convencionalidade. No mesmo sentido, estuda-se a

    temática migrações incutida na evolução constitucional brasileira, dando ênfase para as

    normas legais implementadas e sua atual regulamentação infralegal. Indaga-se, portanto,

    a convencionalidade da regulamentação infralegal da lei de migração à luz dos

    instrumentos normativos regionais. A hipótese é de que, apesar da Lei de Migração

    representar uma adequação do ordenamento doméstico à luz das normas

    interamericanas, o Estado brasileiro tem violado as obrigações assumidas ao editar atos

    normativos (infralegais) inconvencionais sobre o tema em apreço. Nesta linha, este

    trabalho tem como objetivo demonstrar o dever de adequação do ordenamento jurídico

    doméstico frente às normas internacionais, assim como a possível inconvencionalidade

    de instrumentos infralegais que restringem ou mitigam direitos dos migrantes. A

    metodologia utilizada envolve pesquisa bibliográfica da doutrina e legislação

    interamericana e brasileira, pesquisa jurisprudencial nas decisões emanadas da Corte

    IDH e do judiciário brasileiro, que guardam relação com os direitos das pessoas em

    situação de migração, adotando-se método dedutivo para aferição acerca da

    compatibilidade ou não do ordenamento brasileiro. Este exercício demonstra relevante

    importância, vez que a não adequação do ordenamento jurídico interno (à luz dos

    compromissos internacionais) pode gerar responsabilização internacional ao Estado.

    Apura-se, por fim, a inconvencionalidade de diversos dispositivos dos instrumentos

    infralegais que regulamentam a política migratória no Brasil.

  • Palavras Chaves: Convencionalização. Controle de Convencionalidade. Direitos

    Humanos dos Migrantes. Responsabilização Internacional.

  • ABSTRACT

    The present work deals with the duty of conventionalization of the Brazilian migratory

    legislation, standing out as recent normative changes of the New Migration Law (Law

    13,445 / 2017), of the infralegal instruments that promote its use and also the infralegal

    instruments adopted during the period of pandemic caused by the new coronavirus,

    which restricts the entry of immigrants in Brazil. To do so, use norms from international

    of regional scope, once of having the Conventionality Control expressly used by Inter-

    American System for the Protection of Human Rights, showing as essential or the

    knowledge of the normative norms derived from this system, as well and on the exercise

    of the Conventionality Control. In the same sense, it is studied the theme of migrations

    instilled in the Brazilian constitutional evolution, emphasizing the implemented legal

    norms and their regulamentation infralegal. Therefore, the question is the

    conventionality of Brazilian legal protection in migratory matters in the light of regional

    normative instruments. The hypothesis is that, although the Migration Law seems to be

    an adaptation of domestic law in the light of inter-American norms, the Brazilian State

    has violated it as a promotion assumed by editing unconventional (infralegal) normative

    acts on the subject under consideration. In this line, this work has as objective to

    demonstrate or duty of adequacy of the legal system in face of the international norms,

    as well as the possible unconventionality of infralegal instruments that restrict or

    mitigate the rights of migrants. The methodology adopted involves bibliographic

    research on inter-American and Brazilian law and doctrine, jurisprudential research on

    decisions emanating from the Inter-American Court and the Brazilian judiciary, which

    is related to the rights of people in situations of study, adopting the deductive method

    for measuring relative to privacy. or not to do Brazilian planning. This exercise

    demonstrates importance, whereas non-suitability of internal legal ordering (in light of

    international commitments) can generate international responsibility for the State.

    Finally, notes the unconventionality of several devices of the infralegal instruments that

    regulate the immigration policy in Brazil.

    Keywords: Conventionalization. Conventionality Control. Human Rights of Migrants.

    International Accountability.

  • SUMÁRIO

    1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

    2. A PROTEÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS DOS

    MIGRANTES ............................................................................................................... 17

    2.1 ASPECTOS GERAIS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS

    DIREITOS HUMANOS ................................................................................................ 17

    2.2 CARTA DA OEA, DADDH, CADH E DEMAIS INSTRUMENTOS

    NORMATIVOS DO SISTEMA INTERAMERICANO................................................ 27

    2.3 A PROTEÇÃO INTERAMERICANA JURISDICIONAL DOS DIREITOS

    HUMANOS APLICADA A PESSOAS EM SITUAÇÃO MIGRATÓRIA ................. 34

    2.3.1 A Comissão Interamericana De Direitos Humanos (CIDH) .......................... 34

    2.3.2 A Corte IDH e os Estándares Interamericanos de Proteção dos Direitos

    Humanos dos Migrantes ............................................................................................. 42

    3. A CONVENCIONALIZAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESTATAL

    E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE .................................................. 74

    3.1 A FORÇA NORMATIVA DOS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E A

    OBRIGAÇÃO GERAL DE ADEQUAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO

    INTERNO ...................................................................................................................... 76

    3.2 A ORIGEM DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ............................. 86

    3.3 PARÂMETROS GERAIS DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE:

    CONCEITO, FUNDAMENTO, COMPETÊNCIA E NATUREZA JURÍDICA ......... 89

    3.4 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE INTERAMERICANO ............... 95

    3.4.1 Parâmetros Gerais .............................................................................................. 95

    3.4.2 Espécies ................................................................................................................ 96

    3.5 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DOMÉSTICO ............................ 98

    3.5.1 Parâmetros Gerais .............................................................................................. 98

    3.5.2 Espécies .............................................................................................................. 100

    3.5.3 Competência ...................................................................................................... 104

    3.6 EFEITOS DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ............................... 108

    4. O BRASIL E A SUA CONTROVERSA POLÍTICA MIGRATÓRIA ............ 112

    4.1 O CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO E O TEMA DAS MIGRAÇÕES . 116

  • 4.2. DO ESTATUTO DO ESTRANGEIRO À NOVA LEI DE MIGRAÇÕES ......... 128

    5. O DEVER DE CONVENCIONALIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO

    MIGRATÓRIA INFRALEGAL BRASILEIRA .................................................... 142

    5.1 A REGULAMENTAÇÃO DA POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA

    ATRAVÉS DE ATOS NORMATIVOS ..................................................................... 143

    5.2 A REGULAMENTAÇÃO DA POLÍTICA MIGRATÓRIA BRASILEIRA EM

    TEMPOS DE PANDEMIA DA COVID-19 ............................................................... 151

    5.3 A (IN)CONVENCIONALIDADE DA LEGISLAÇÃO MIGRATÓRIA

    BRASILEIRA: uma análise de convencionalidade do Decreto 9.199/2017, da Portaria

    nº 666/2019, da Portaria nº 770/2019 e da Portaria PR nº 340/2020 ........................... 154

    6. CONCLUSÃO ........................................................................................................ 164

    REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 170

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos

    Corte IDH ou Corte Interamericana – Corte Interamericana de Direitos Humanos

    CIJ - Corte Internacional de Justiça

    DADDH – Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem

    DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos

    OEA – Organização dos Estados Americanos

    ONU – Organização das Nações Unidas

    SAPDH - Sistema Africano de Proteção dos Direitos Humanos

    SEPDH - Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos ()

    SIPDH – Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos

  • 11

    1. INTRODUÇÃO

    Direitos fundamentais, que são Direitos Humanos positivados no ordenamento

    jurídico, são direitos historicamente conquistados, cujo objetivo principal, em grosso

    modo, é assegurar condições de uma vida digna para toda pessoa, independente das suas

    características pessoais, condição social, nacionalidade, ou alguma outra forma de

    discriminação.

    Ao longo da história da humanidade, tais direitos assumiram faces diferentes,

    sendo fortalecidos ou limitados na medida em que a sociedade avançava ou retrocedia

    em sua organização.

    Nos últimos anos, os direitos humanos foram reconhecidos através de diversas

    cartas constitucionais, declarando-os como fundamentais, a exemplo do que foi pregado

    nas revoluções inglesa (1640-1688), americana (1776) e francesa (1789), que

    conclamaram pela limitação da intervenção do Estado na vida das pessoas, numa clara

    ideologia liberal iluminista1.

    Neste caminho, os Estados passaram a adotar Constituições que, além de

    promoverem sua organização estrutural, rezavam as garantias de liberdades individuais

    dos cidadãos e outros direitos fundamentais que assegurassem a manutenção da

    dignidade humana.

    Contudo, após os nefastos acontecimentos da segunda grande guerra, tendo o

    Estado como cruel violador dos direitos humanos, a exemplo do que foi o nazismo e as

    milhões de vidas dizimadas, percebeu-se que o entendimento de que ter os direitos

    fundamentais pautados na soberania estatal não era suficiente para garantia de sua

    manutenção.

    Como resultado desta compreensão, empenhou-se grande esforço para

    reconstrução da concepção dos direitos fundamentais – pautados, agora, como

    referencial ético-moral para orientar a nova ordem internacional contemporânea - em

    repulsa à formalidade legal que aceitara a destruição em massa de pessoas, em razão do

    condicionamento da titularidade de tais direitos pregada pelo nazi-facismo2.

    1 Cf. GURGEL, Yara Maria Pereira. Direitos Humanos, Princípio da Igualdade e não Discriminação:

    sua aplicação às relações de trabalho. (Tese de Doutorado). São Paulo: USP, 2007. P. 46. Disponível

    em: https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/7852/1/Yara%20Maria%20Pereira%20Gurgel.pdf. Acesso em

    04 de julho de 2020. 2 Ibidem. P. 103-106.

  • 12

    Transmudou-se, assim, a antiga noção de soberania absoluta do Estado, que

    passou a ser relativizada na medida em que foram “proibidas” intervenções nacionais

    cujo objetivo seja promover a mitigação de direitos fundamentais, numa clara acepção

    antropocêntrica de tais direitos.

    Sob este prisma, percebe-se, de um lado, o surgimento do Direito Internacional

    dos Direitos Humanos, assim como o de um Direito Constitucional ocidental

    contemporâneo, aberto a princípios e valores norteadores de proteção aos direitos

    fundamentais e limitação do poder estatal.

    É através deste reconhecimento que surgem as declarações internacionais de

    direitos humanos, como a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem

    (DADDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Universal

    dos Direitos Humanos (DUDH), bem como a criação da Organização das Nações

    Unidas, em 1948.

    Assim, os direitos humanos passaram a contar com tutela jurídica internacional,

    organizada de forma global pela ONU, que tratou de uma proteção geral aos indivíduos

    assegurada pela DUDH, pelo Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos

    (PIDCP) e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

    (PIDESC).

    Ainda em nível global, existem também diversas tutelas de proteção específicas

    como o Estatuto dos Refugiados (1951) e seu Protocolo Adicional (1967), a Convenção

    das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Apátridas (1954), a Convenção para a Redução

    dos Casos de Apatridia (1961), a Convenção Internacional para Eliminação de todas as

    Formas de Discriminação Racial (1968), a Convenção sobre Eliminação de Todas as

    Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979), a Convenção sobre Direitos da

    Criança (1989), a Convenção Internacional para Proteção dos Direitos de Todos os

    Trabalhadores Migrantes e dos Membros de suas Famílias (1990), a Convenção contra a

    Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (2002), a

    Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento

    Forçado (2006), dentre outras.

    Neste mesmo movimento, percebendo-se que havia a necessidade de um olhar

    mais focado nas peculiaridades socioculturais de determinadas regiões, foram criados

    sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, com abrangência continental,

    como o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SPIDH), Sistema

  • 13

    Europeu de Proteção dos Direitos Humanos (SEPDH) e o Sistema Africano de Proteção

    dos Direitos Humanos (SAPDH).

    A partir da produção de tratados, acordos e convenções internacionais, partindo

    destas organizações, ou tratados que são cotidianamente pactuados entre Estados, vários

    instrumentos normativos de origem internacional foram incorporados à ordem jurídica

    dos Estados, cuja força normativa gera efeitos internos.

    Ao pactuar determinado acordo internacional, o Estado assume um compromisso

    de cumpri-lo, sob a égide dos princípios pacta sunt servanda e boa-fé, surgindo o

    Controle de Convencionalidade como sendo a sindicância de aferição da

    compatibilidade entre o ordenamento jurídico doméstico e as normas internacionais

    protetivas de direitos humanos, do qual o Estado é parte.

    Dito controle acontece na seara dos Direitos Humanos, a fim de evitar violação

    do patamar mínimo de proteção à pessoa, fazendo com que os Estados tenham de

    assegurar uma compatibilidade do seu ordenamento jurídico interno aos princípios,

    regras e direitos humanos assegurados através dos instrumentos internacionais.

    Como não poderia ser diferente, em o Brasil sendo parte de diversos tratados

    internacionais, tem como dever a efetivação de cada um deles, inclusive no que diz

    respeito aos direitos humanos dos imigrantes que tem chegado ao seu território. Não

    menos importante, a própria Constituição Federal de 1988 (art. 5º, § 2º) traz uma

    importante abertura aos direitos humanos oriundos de instrumentos internacionais.

    Neste quadrante, resta claro que ao firmar pactos e instrumentos internacionais,

    o Estado assume um dever de convencionalização oriundo do dever de cumprimento, ou

    seja, o Estado deve promover uma adequação da sua legislação interna, para

    compatibilizá-la aos instrumentos internacionais então pactuados. Este dever de

    convencionalização acontece tanto para a tutela geral quanto para as tutelas específicas

    dos direitos humanos.

    Diante do dever acima descrito, a presente proposta visa o estudo da

    convencionalidade da legislação brasileira que promove a regulação migratória no país,

    com destaque para os instrumentos infralegais que regulamentam a Nova Lei de

    Migração (Lei 13.445/2017), frente normas interamericanas protetivas de direitos

    humanos, incluindo o teor dos tratados emanados da OEA, bem como a jurisprudência

    da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH).

    Tal recorte se faz necessário para análise da possível [in]compatibilidade dos

    instrumentos de regulação migratória adotados pelo Brasil, frente aos direitos humanos

  • 14

    que são assegurados as pessoas em mobilidade internacional, no âmbito interamericano,

    onde se tem exercitado expressamente o Controle de Convencionalidade.

    Assim, considerando que a Nova Lei de Migração promoveu a

    convencionalização do ordenamento jurídico brasileiro, questiona-se se os atos

    normativos infralegais, que regulamentam a Lei de Migração e veiculam a política

    migratória brasileira, são convencionais ou não.

    Para responder a presente problemática e demonstrar que a regulamentação da

    legislação migratória brasileira se encontra de acordo (ou não) com as normas

    interamericanas de direitos humanos, notadamente as que tratam especificamente da

    questão migratória, será necessário satisfazer certos objetivos, sendo foco principal

    deste estudo a temática dos Direitos Humanos dos Migrantes.

    A proposta principal é demonstrar que, apesar da Lei de Migração representar

    um largo avanço em matéria de adaptação da legislação migratória brasileira aos

    compromissos interamericanos em matéria de direitos humanos dos migrantes, o Estado

    brasileiro tem violado as obrigações assumidas ao editar atos normativos (infralegais)

    inconvencionais sobre o tema em apreço.

    Em resumo, neste trabalho será abordado o estudo acerca da proteção

    interamericana dos direitos humanos dos migrantes; a convencionalização do

    ordenamento jurídico estatal; da teoria geral do controle de convencionalidade; da

    política migratória brasileira e do dever de convencionalização da legislação migratória

    infralegal brasileira.

    Assim, no capítulo inicial do desenvolvimento, que trata sobre a proteção

    interamericana dos direitos humanos dos migrantes, serão evidenciados os instrumentos

    normativos que acautelam esta temática, os organismos de controle regional e a

    jurisprudência regional relacionada a proteção dos migrantes.

    No segundo capítulo, que trata sobre a convencionalização do ordenamento

    jurídico estatal, será abordado o dever de compatibilização do ordenamento jurídico

    interno com o ordenamento internacional, oriundo de regras da boa-fé e pacta sunt

    servanda.

    No terceiro capítulo, será estudada a teoria geral do controle de

    convencionalidade, de modo a esclarecer sobre o conceito, fundamento e

    obrigatoriedade de tal controle, bem como suas espécies em âmbito regional e interno.

    No quarto capítulo, será feito um relato histórico de como o Brasil, conhecido

    como um país formado por imigrantes, tem tratado a temática migratória através das

  • 15

    suas Constituições e das mais recentes leis que regem o tema. Aliás, em 2017 o Brasil

    vivenciou o que se chama de convencionalização tácita da sua legislação migratória,

    quando revogou o atrasado Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/1980), através da

    instituição da Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017).

    No quinto e último capítulo, que tratará do dever de convencionalização da

    legislação migratória infralegal brasileira, abordar-se-á os atos normativos infralegais

    que tem promovido a “regulamentação” da política migratória e suas possíveis

    inadequações legais e convencionais. Ao que se apresenta, a regulamentação da referida

    Lei de Migração e demais atos infralegais tem seguido caminho oposto à própria lei, o

    que possivelmente poderá colocar (ou já colocou) o Brasil em uma situação declarada

    de inconvencionalidade, ou seja, de inobservância dos instrumentos internacionais que

    tratam do tema.

    Assim, considerando o avanço do processo de globalização, o intenso

    movimento migratório e o crescente aumento dos deslocamentos forçados, este estudo

    se mostra cada dia mais premente seja pelos diversos fenômenos de migração forçada

    gerada por desastres naturais, como o caso do Haiti, de deslocamentos gerados por

    crises humanitárias, como no caso da Venezuela, ou deslocamentos forçados em

    decorrência de conflitos armados, como no caso da Síria. Principalmente nos dois

    primeiros casos, o Brasil é território “escolhido” por algumas pessoas deslocadas e por

    isso deve estar juridicamente preparado para enfrentar adequadamente o tema.

    Geralmente, as pessoas em situação migratória, especialmente as que estão em

    situação de vulnerabilidade, não veem respeitados os seus direitos fundamentais das

    quais são titulares enquanto sujeitos de direitos humanos. Isso, em uma condição

    individual de ausência ou diferença de poder a respeito dos nacionais. Essa condição de

    vulnerabilidade tem uma dimensão ideológica e se apresenta em um contexto histórico

    que é distinto para cada Estado e é mantida por situações de jure (desigualdades entre

    nacionais e estrangeiros nas leis) e de fato (desigualdades estruturais). Essa situação

    conduz ao estabelecimento de diferenças no acesso de uns e outros aos recursos

    públicos administrados pelo Estado.

    Segundo observou também a Assembleia Geral das Nações Unidas3, “entre

    outros fatores, o processo de mundialização e liberalização, incluindo a crescente

    disparidade econômica e social entre muitos países e a marginalização de alguns da

    3 Assembleia Geral das Nações Unidas, Resolução A/RES/54/212 sobre “Migração Internacional e

    Desenvolvimento” de 1º de fevereiro de 2000.

  • 16

    economia mundial, tem contribuído a criar grandes movimentos de população entre os

    países e a intensificar o complexo fenômeno da migração internacional”.

    Sem embargo, ante a necessidade de aferir se o Brasil tem efetivado a proteção

    aos migrantes “assegurada” pelos tratados e acordos internacionais, faz-se

    extremamente necessário o estudo da convencionalidade da legislação brasileira.

    Considerando os inúmeros tratados, acordos e convenções internacionais do

    qual o Brasil é signatário, que tratam dos direitos humanos que devem ser assegurados

    aos migrantes, o estudo acerca de como se comporta a legislação interna do Estado

    poderá apontar os acertos ou inconformidades da legislação nacional.

    Exemplo disso, como restará evidenciado, o Brasil iniciou um processo de

    adequação do seu ordenamento ao editar a Lei de Migrações, contudo, a sua

    regulamentação, como a nefasta Portaria nº 666/2019-MJ, revogada pela Portaria nº

    770/2019-MJ - e demais instrumentos normativos posteriores -, expõe que ainda há

    muito caminho pela frente. Dita portaria, além de criar regulamento ilegal, notadamente

    tem gerado repercussão nacional e internacional acerca do risco de desrespeito aos

    direitos humanos.

    Considerando também a possibilidade de responsabilização internacional pelo

    possível descumprimento de norma pactuada além das fronteiras, resta clara a

    importância deste estudo como forma de apontar as possíveis inconvencionalidades do

    ordenamento jurídico interno brasileiro.

    A metodologia utilizada envolve pesquisa bibliográfica da doutrina e legislação

    latino-americana, pesquisa jurisprudencial nas decisões emanadas da Corte IDH - que

    tratem da temática relacionada ao objeto deste escrito, pesquisa da doutrina e legislação

    brasileira que trate da matéria relacionada aos direitos dos migrantes, adotando-se

    método dedutivo para aferição acerca da compatibilidade ou não do ordenamento

    brasileiro.

    Por fim, espera-se que o presente estudo possa servir de fonte doutrinária para

    uma efetiva compreensão acerca da matéria de Controle de Convencionalidade

    relacionada aos Direitos Humanos dos Migrantes, contribuindo, inclusive, para que o

    Estado brasileiro promova uma correta adequação normativa e não sofra algum tipo de

    responsabilização internacional.

  • 17

    2. A PROTEÇÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS DOS

    MIGRANTES

    Sabendo que existe uma ordem de proteção dos direitos humanos global, criada

    notadamente a partir da fundação da ONU, mas considerando o recorte regional que

    será empregado neste trabalho, este tópico cuidará de aprofundar o estudo sobre esta

    proteção normativa no âmbito interamericano.

    2.1 ASPECTOS GERAIS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE

    PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

    Os Estados que fazem parte do continente americano, reunindo-se

    periodicamente para criação de um sistema compartilhado de normas e instituições, ao

    participarem da IX Conferência dos Estados Americanos, em Bogotá, no ano de 1948,

    decidiram fundar a Organização dos Estados Americanos (OEA)4, mais antigo

    organismo regional do mundo5.

    A própria Carta da Organização dos Estados Americanos já destacou a

    necessidade de criação de um sistema para assegurar o respeito aos direitos humanos no

    seu preâmbulo 6, conforme preceitua Sidney Guerra7.

    4 Contempla 35 atualmente países, resguardando-se a exclusão de participação do Governo de Cuba,

    imposta pela Resolução AG/RES. 2438 (XXXIX-O/09). Disponível em:

    http://www.oas.org/pt/estados_membros/default.asp. Acesso em 01 de maio de 2020. 5 “Durante a 9ª Conferência Interamericana realizada em Bogotá, entre 30 de março a 2 de maio de 1948,

    foram aprovadas a Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Declaração Americana de

    Direitos e Deveres do Homem. A Carta da OEA proclamou, de modo genérico, o dever de respeito aos

    direitos humanos por parte de todo Estado-membro da organização. Já a Declaração Americana enumerou

    quais são os direitos fundamentais que deveriam ser observados e garantidos pelos Estados”.

    CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 313. 6 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Preâmbulo. [...] Convencidos de que

    a missão histórica da América é oferecer ao Homem uma terra de liberdade e um ambiente favorável ao

    desenvolvimento de sua personalidade e à realização de suas justas aspirações; Conscientes de que esta

    missão já inspirou numerosos convênios e acordos cuja virtude essencial se origina do seu desejo de

    conviver em paz e de promover, mediante sua mútua compreensão e seu respeito pela soberania de cada

    um, o melhoramento de todos na independência, na igualdade e no direito; Seguros de que a democracia

    representativa é condição indispensável para a estabilidade, a paz e o desenvolvimento da região; Certos

    de que o verdadeiro sentido da solidariedade americana e da boa vizinhança não pode ser outro

    senão o de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um regime

    de liberdade individual e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem;

    Persuadidos de que o bem-estar de todos eles, assim como sua contribuição ao progresso e à civilização

    do mundo exigirá, cada vez mais, uma intensa cooperação continental; Resolvidos a perseverar na nobre

    empresa que a Humanidade confiou às Nações Unidas, cujos princípios e propósitos reafirmam

    solenemente; Convencidos de que a organização jurídica é uma condição necessária à segurança e à paz,

    baseadas na ordem moral e na justiça [...]. 7 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015. p.

    180.

  • 18

    O Brasil foi um dos signatários da Carta da Organização dos Estados

    Americanos e em 1952, através do Decreto nº 30.544, de 14 de fevereiro daquele ano,

    promulgou dito instrumento, incorporando-a ao seu ordenamento jurídico interno.

    Importante falar que a Carta da OEA não tratou da criação de um espaço de

    livre circulação de pessoas ou da criação de uma política migratória comum, até por não

    dispor de caráter supranacional8.

    A Carta da OEA, em verdade, teve como objetivo principal a manutenção da

    paz e segurança do continente, conforme se denota do seu artigo 2º9, mas também

    trouxe em seus princípios enunciados no artigo 3º10, a preocupação quanto à temática

    dos direitos humanos11.

    Já nos seus artigos 106 e 145, dita Carta tratou de estabelecer marcos gerais de

    proteção aos direitos humanos, anunciando a criação da Comissão Interamericana de

    Direitos Humanos, cujo objetivo principal é de promover o respeito e a defesa dos

    direitos humanos12, assim como estabelecendo a criação de uma Convenção específica

    para tratar de direitos humanos13.

    8 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Concretização dos Direitos Humanos dos Migrantes pela Jurisdição

    Brasileira Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019. p. 110. 9 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Artigo 2º. Para realizar os princípios

    em que se baseia e para cumprir com suas obrigações regionais, de acordo com a Carta das Nações

    Unidas, a Organização dos Estados Americanos estabelece como propósitos essenciais os seguintes: a)

    Garantir a paz e a segurança continentais; b) Promover e consolidar a democracia representativa,

    respeitado o princípio da não-intervenção; c) Prevenir as possíveis causas de dificuldades e assegurar a

    solução pacífica das controvérsias que surjam entre seus membros; d) Organizar a ação solidária destes

    em caso de agressão;

    e) Procurar a solução dos problemas políticos, jurídicos e econômicos que surgirem entre os Estados

    membros; f) Promover, por meio da ação cooperativa, seu desenvolvimento econômico, social e cultural;

    g) Erradicar a pobreza crítica, que constitui um obstáculo ao pleno desenvolvimento democrático dos

    povos do Hemisfério; e h) Alcançar uma efetiva limitação de armamentos convencionais que permita

    dedicar a maior soma de recursos ao desenvolvimento econômico-social dos Estados membros. 10 Ibidem. Artigo 3º. Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: [...] l) Os Estados

    americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça,

    nacionalidade, credo ou sexo; [...]. 11 “Criada como uma Organização Internacional de caráter regional, seus propósitos e princípios

    fundamentais, bem como parte de sua estrutura, deixam bastante claro que uma das suas finalidades é a

    proteção aos direitos humanos. Para tanto, serve-se da capacidade jurídica internacional para celebrar

    tratados internacionais com outros sujeitos do Direito Internacional, a fim de alcançar os seus objetivos”.

    MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p. 74. 12 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Artigo 106. Haverá uma Comissão

    Interamericana de Direitos Humanos que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos

    direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.

    Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as

    normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal

    matéria. 13 Para se concluir a CADH, certamente, existiu um exaustivo trabalho preparatório para se chegar à

    Convenção. Neste sentido: “Os antecedentes da Convenção Americana remontam à Conferência

    Interamericana realizada no México em 1945, a qual encarregou à Comissão Jurídica Interamericana de

    preparar um projeto de declaração. Essa ideia foi retomada na Quinta Reunião de Consulta dos Ministros

  • 19

    Em outro fator destacável, a Carta da OEA traz uma significativa abertura e

    dever de observância dos Estados ao Direito Internacional. Em seu artigo 3º, alínea b,

    menciona que “a ordem internacional é constituída essencialmente pelo respeito à

    personalidade, soberania e independência dos Estados e pelo cumprimento fiel das

    obrigações emanadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional”, em um

    claro reconhecimento do dever de cumprimento dos tratados e instrumentos

    internacionais. No mesmo artigo, alínea c, dita Carta enuncia que “a boa-fé deve reger

    as relações dos Estados entre si”, notadamente fazendo referência ao princípio da boa-fé

    que rege as relações internacionais e que será discutido mais adiante.

    Pelo que se denota, através da Carta de Bogotá (Carta da OEA) é que foi dado

    ao ideário pan-americano uma base convencional e institucional, ao tempo em que a

    Organização dos Estados Americanos foi transformada em organismo da ONU14.

    A Carta também fez nascer a Organização dos Estados Americanos (OEA),

    organismo de cooperação internacional15, do qual fazem parte todos os países

    americanos independentes, resguardando-se a exceção aplicada ao Governo de Cuba16.

    Dita organização tem como um dos seus objetivos (previsto no Artigo 1º da sua

    Carta) alcançar nos Estados membros “uma ordem de paz e de justiça” e representa

    das Relações Exteriores em Santiago do Chile, em agosto de 1959, na qual se decidiu impulsionar a

    preparação de uma convenção de direitos humanos. O projeto original de convenção, elaborado pelo

    Conselho Interamericano de Jurisconsultos, foi submetido ao Conselho da OEA e levado aos Estados e à

    Comissão Interamericana para receber comentários. Em 1967, a Comissão apresentou um novo projeto de

    convenção. Para analisar os diferentes projetos, a OEA convocou a Conferência Especializada

    Interamericana sobre Direitos Humanos, que se reuniu em São José da Costa Rica de 7 a 22 de novembro

    de 1969. Em 21 de novembro de 1969, a Conferência adotou a Convenção Americana sobre Direitos

    Humanos. A entrada em vigor da Convenção em 1978 permitiu o incremento da efetividade da Comissão,

    estabelecer uma Corte Interamericana de Direitos Humanos e modificar a natureza jurídica dos

    instrumentos nos que se baseia a estrutura institucional”. Disponível em:

    https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/intro.pdf. Acesso em 20 de maio de 2020. 14 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos

    Humanos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FUPESP, 2001. p. 29. 15 “A sua própria Carta constitutiva deixa claro sua natureza jurídica: a de uma organização internacional

    de caráter regional dentro do sistema das Nações Unidas.” SILVA, Roberto Luiz. A OEA ENQUANTO

    ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL. In.: OLIVEIRA, Márcio Luís de. (Coord.). O Sistema

    Interamericano de proteção dos direitos humanos: interface com o direito constitucional contemporâneo.

    Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 98 16 Em 3 de junho de 2009, os Ministros de Relações Exteriores das Américas adaptaram a Resolução

    AG/RES.2438 (XXXIX-O/09), que determina que a Resolução de 1962, a qual excluiu o Governo de

    Cuba de sua participação no sistema interamericano, cessa seu efeito na Organização dos Estados

    Americanos (OEA). A resolução de 2009 declara que a participação da República de Cuba na OEA será o

    resultado de um processo de diálogo iniciado na solicitação do Governo de Cuba, e de acordo com as

    práticas, propósitos e princípios da OEA. Disponível em

    http://www.oas.org/pt/sobre/estados_membros.asp. Acesso em 11 de maio de 2020.

  • 20

    grande passo para efetivação de um sistema normativo regional de proteção dos direitos

    humanos17.

    A OEA é a mais antiga organização regional18 e realiza os seus fins por

    intermédio dos seguintes órgãos: Assembleia Geral; Reunião de Consulta dos Ministros

    das Relações Exteriores; Conselhos (Conselho Permanente e Conselho Interamericano

    de Desenvolvimento Integral); Comissão Jurídica Interamericana; Comissão

    Interamericana de Direitos Humanos; Secretaria-Geral; Conferências Especializadas;

    Organismos Especializados e outras entidades estabelecidas pela Assembleia Geral19.

    A OEA também tem sua importância para a proteção dos direitos humanos,

    uma vez que tem papel de organização para alcançar “uma ordem de paz e de justiça,

    para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender sua soberania,

    sua integridade territorial e sua independência”, conforme estipula o Art. 1º da Carta da

    OEA.

    Desde a criação da OEA, os Estados americanos adotaram um conjunto de

    instrumentos internacionais que se converteram na base normativa de um sistema

    regional de promoção e proteção dos direitos humanos, ao reconhecerem esses direitos,

    estabelecerem obrigações para a sua promoção e proteção e criarem órgãos para zelar

    por sua observância.

    Ainda em 1948, também restou aprovada a Declaração Americana de Direitos

    e Deveres do Homem (DADDH), que pode ser considerada formalmente como o marco

    inicial do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como fruto de um intenso

    processo de integração regional20.

    Dita Declaração demonstrou contemporaneidade da América no tratamento dos

    Direitos Humanos, vez que precedeu a Declaração Universal dos Direitos Humanos

    (DUDH) da Organização das Nações Unidas (ONU), que foi aprovada somente em

    dezembro de 1948.

    17 Neste sentido, leia-se: “Criada como uma Organização Internacional de caráter regional, seus

    propósitos e princípios fundamentais, bem como parte de sua estrutura, deixam bastante claro que uma

    das suas finalidades é a proteção aos direitos humanos. Para tanto, serve-se da capacidade jurídica

    internacional para celebrar tratados internacionais com outros sujeitos do Direito Internacional, a fim de

    alcançar os seus objetivos”. MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de

    Direitos Humanos pela jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 74. 18 A OEA é uma organização internacional regional do tipo mencionado no artigo 52 da Carta das Nações

    Unidas. Em conformidade com o artigo 53 da sua Carta. 19Disponível em

    http://www.oas.org/juridico/portuguese/a_organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_estados_americ.htm.

    Acesso em 15 de maio de 2020. 20 AGUIAR, Marcus Pinto. Acesso à Justiça nos Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos

    Humanos. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017, p. 55.

  • 21

    A DADDH não foi considerada como parte da Carta da OEA, o que levou a um

    entendimento inicial de que ela não produziu obrigações jurídicas contratuais, situando

    a Declaração na categoria de “declaração de princípios”, que não tem a força coercitiva

    como os tratados internacionais21.

    Contudo, com a evolução do direito interamericano em relação à proteção dos

    direitos humanos a própria Assembleia Geral da OEA tem reconhecido que a DADDH é

    uma fonte de obrigações internacionais para os estados parte da Organização22. A Corte

    IDH, por exemplo, entende que mesmo a Declaração não sendo um tratado (em termos

    formais), não carece de efeitos jurídicos que vinculam os Estados membros23.

    Destaque-se, pois, o entendimento de que independentemente da posição

    individual do Estado membro, instrumentos tecnicamente não-mandatórios (resoluções

    de modalidades distintas) têm igualmente exercido efeitos jurídicos sobre os Estados

    membros da Organização24.

    De outro modo, percebe-se, desde o preâmbulo da DADDH, que tal

    instrumento buscou promover um verdadeiro equilíbrio na balança ao demonstrar que o

    homem25 é titular de direitos, mas que também há muitos deveres, principalmente

    sociais, a observar26.

    21 HANASHIRO, Olaya Sílvia Machado Portella. Op. Cit. p. 30. 22 A resolução 314 (VII-0/77) de 22 de Junho de 1977, encarregou a Comissão Interamericana de preparar

    um estudo em que “conste a obrigação de cumprir os compromissos adquiridos no Declaração Americana

    dos Direitos e Deveres do Homem”. Na resolução 371 (VIII-0/78) de 1º de julho de 1978, a Assembleia

    Geral reafirmou “seu compromisso de promover o cumprimento da Declaração Americana de Direitos e

    Deveres do Homem”. A resolução 370 (VIII-0/78) de 1º de julho de 1978, referiu-se ao "Compromissos

    internacionais" de respeitar os direitos do homem "reconhecidos pela Declaração Americana dos Direitos

    e Deveres do Homem" por um Estado Membro da Organização. 23 Corte IDH: Interpretação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem no âmbito do

    artigo 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Opinião Consultiva OC‐10/89 de 14 de julho de 1989. Série A Nº 10, parágrafos 45‐47. 24 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Reflexões sobre o valor jurídico das Declarações

    Universal e Americana de Direitos Humanos de 1948 por ocasião do seu quadragésimo aniversário.

    Revista Inf. Legisl. Brasília a. 25 nº 99. Jul/Set de 1988. Disponível em

    https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/181857/000439747.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

    Acesso em 15 de maio de 2020. p. 13. 25 Em que pese o reconhecimento da DADDH como marco de proteção dos direitos humanos, o uso da

    expressão “direitos do homem” contraria o seu princípio de igualdade. Em um contexto marcado pelo

    machismo, que colocou “a mulher” à margem de tantos direitos essenciais durante anos, para assegurar

    que nenhuma dúvida existisse acerca da igualdade de gênero, talvez o mais indicado a utilizar seria uma

    expressão como “direitos humanos” ou “da pessoa humana”, como assim fez a Declaração Universal. 26 DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E DEVERES DO HOMEM. Preâmbulo. Todos os

    homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela natureza de razão e

    consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os outros.

    O cumprimento do dever de cada um é exigência do direito de todos. Direitos e deveres integram-se

    correlativamente em toda a atividade social e política do homem. Se os direitos exaltam a liberdade

    individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade.

    Os deveres de ordem jurídica dependem da existência anterior de outros de ordem moral, que apoiam os

    primeiros conceitualmente e os fundamentam. [...]

  • 22

    Neste sentido, elencou em seu artigo 28 que “os direitos do homem estão

    limitados pelos direitos do próximo, pela segurança de todos e pelas justas exigências

    do bem-estar geral e do desenvolvimento democrático”, o que representa seu desejo de

    imposição de equilíbrio nas relações privadas, por exemplo.

    Assim, se na sua primeira parte (arts. 1º ao 28), dita Declaração tratou do rol de

    Direitos inerentes à pessoa humana27 na sua segunda parte (arts. 29 ao 38), a Declaração

    cuidou de elencar deveres inerentes ao homem28.

    O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos (SIPDH), dispõe

    de diversos instrumentos normativos, órgãos de controle e uma vasta jurisprudência,

    sendo necessário realizar inicialmente um estudo sobre tais29.

    Em sua tutela normativa, o SIPDH conta com importantes instrumentos como a

    Carta da OEA, a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (DADDH),

    de 1948 e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)30, de 1969, dentre

    outros31.

    Em razão do objetivo deste trabalho, serão abordados somente alguns aspectos

    destes demais instrumentos internacionais que compõem o SIPDH, considerando que

    possam ter importância a este estudo.

    27 Dentre eles, podemos citar: Direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa; Direito de

    igualdade perante a lei; Direito de liberdade religiosa; Direito de liberdade de investigação, opinião, expressão

    e difusão; Direito à proteção da honra, da reputação pessoal e da vida particular e familiar; Direito à

    constituição e proteção da família. Direito de residência e trânsito; Direito à educação; Direito ao trabalho e a

    uma justa retribuição; Direito de reconhecimento da personalidade jurídica e dos direitos civis; Direito de

    proteção contra prisão arbitrária. 28 Dentre os deveres contidos na DADDH, podemos citar: Deveres perante a sociedade; Deveres para com

    os filhos e os pais; Dever do sufrágio; Dever de obediência à Lei; Dever de servir a coletividade e a nação;

    Deveres de assistência e previdência sociais; Dever de pagar impostos; Dever do trabalho; Dever de se abster

    de atividades políticas em países estrangeiros. 29 “O sistema de proteção internacional dos direitos humanos no continente americano abarca os

    procedimentos contemplados na Carta da Organização dos Estado Americanos, na Declaração Americana

    dos Direitos do Homem e na Convenção Americana de Direitos Humanos.” GUERRA, Sidney. Direito

    Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015. p. 179. 30 “Além da Convenção Americana de Direitos Humanos, o sistema interamericano conta com diversos

    instrumentos internacionais que protegem direitos específicos. O mais importante deles é, sem dúvida, o

    Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de Diretos Econômicos,

    Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), adotado em 1988 e ratificado pelo Brasil em 1996”.

    CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 315. 31 “Quanto aos demais instrumentos internacionais do sistema interamericano de direitos humanos, cite-

    se, entre outros, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir o Crime de Tortura, adotada em 1985

    e ratificada pelo Brasil em 1989; o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos

    relativo à Abolição da Pena de Morte, adotado em 1990 e ratificado pelo Brasil em 1996; a Convenção

    Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada em 1994 em Belém

    do Pará (Brasil) e ratificada pelo Brasil em 1995, e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento

    Forçado de Pessoas adotada em 1994 e já ratificada pelo Brasil”. CARVALHO RAMOS, André de. Ob.

    Cit. p. 315 - 316.

  • 23

    Em que pese sua grande relevância ao estabelecer um rol direitos sociais que

    devem ser assegurados pelos Estados, destaca-se o Protocolo de San Salvador, que foi

    aprovado em 1988 pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos,

    para consagrar direitos sociais que anteriormente não haviam recebido destaque pelos

    outros instrumentos.

    Dito Protocolo cuidou de um importante rol de direitos sociais, qual sejam:

    direito ao trabalho; direito à seguridade social; direito a condições equitativas de

    trabalho; direito à associação sindical; proteção à família; proteção à criança; proteção

    ao idoso; proteção à cultura; proteção ao meio ambiente equilibrado e outros32.

    No que concerne ao controle e monitoramento e implementação do

    cumprimento das obrigações previstas nos tratados e demais instrumentos internacionais

    que cuidam dos Direitos Humanos, o SIPDH conta coma Comissão Interamericana de

    Direitos Humanos (CIDH) e com a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte

    IDH)33.

    É possível afirmar que no âmbito americano existem dois sistemas normativos

    de proteção aos direitos humanos34: o geral, baseado na Carta da OEA e na DADDH e o

    sistema que abarca apenas os Estados signatários da Convenção que estão submetidos,

    além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já prevista no geral, a

    Corte Interamericana de Direitos Humanos35.

    A Comissão é um órgão planejado desde a fundação da Organização dos

    Estados Americanos (OEA), pelo qual não se pode olvidar sua importância, e teve sua

    criação estabelecida através do artigo 106 da Carta da OEA36.

    A CIDH teve sob sua tutela as atribuições que seriam posteriormente cabíveis à

    Corte IDH, vez que enquanto não estivesse em vigor a Convenção que tratasse da

    32 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

    p. 194. 33 WERMUTH, Maiquel Angelo Dezordi; GHISLENI, Pâmela Copetti. O sistema interamericano de direitos humanos e a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos. Revista da Faculdade de Direito

    UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 62, n. 2, maio/ago. 2017. ISSN 2236-7284. p. 64. Disponível em:

    . Acesso em: 11 de maio de 2020. DOI:

    http://dx.doi.org/10.5380/rfdufpr.v62i2.49287. 34 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela

    jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 75. 35 GUERRA, Sidney. Ob. Cit. p. 180. 36 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. A COMISSÃO

    INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Artigo 106: Haverá uma Comissão Interamericana

    de Direitos Humanos que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e

    servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.

    Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a estrutura, a competência e as

    normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal

    matéria.

  • 24

    matéria de direitos humanos, prevista no artigo 106, a referida Comissão seria a

    responsável pelas atribuições àquela previstas37.

    A criação da Comissão, oficialmente, ficou a cargo da Resolução VIII, oriunda

    da V Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores, realizada em Santiago,

    Chile, em agosto de 1959. Seu estatuto foi aprovado em junho de 1960, em Washington

    D.C., Estados Unidos, mesmo ano em que suas atividades foram iniciadas.

    Sediada em Washington D.C., dita Comissão teve sua composição, estrutura e

    funcionamento previstos pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH),

    que tratou da matéria nos artigos 34 ao 40, assim como sua competência e função foram

    reguladas, através dos artigos 41 ao 47 da mesma Convenção.

    A CIDH é composta por sete membros da nacionalidade de qualquer dos

    Estados-membros da OEA, eleitos pela Assembleia Geral da Organização, e é

    competente para atuar tanto na proteção relativa à OEA quanto na proteção assegurada

    pela CADH38. Dita Comissão também pauta sua atuação tendo como base seu estatuto e

    regulamento.

    A Comissão é um órgão autônomo e figura entre os principais da estrutura da

    Organização dos Estados Americanos, servindo como órgão supervisor, promocional e

    consultivo39.

    Há de se destacar que a referida Comissão desempenha um relevante papel de

    acesso ao sistema de proteção dos direitos humanos, vez que serve de ponte de atuação

    entre o indivíduo, que não tem capacidade processual para acionar diretamente a Corte

    IDH, e o SIPDH.

    A CIDH opera através de mecanismos quase judicial e judicial40. Alguns

    doutrinadores comparam esta função da CIDH com o Ministério Público41, pois tem

    37 CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. A COMISSÃO

    INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Artigo 145: Enquanto não entrar em vigor a

    convenção interamericana sobre direitos humanos a que se refere o Capítulo XV, a atual Comissão

    Interamericana de Direitos Humanos velará pela observância de tais direitos. 38 Composta em 26 de maio de 2020 pelos seguintes membros: Joel Hernández García, Antonia Urrejola

    Noguera, Margarette May Macaulay, Esmeralda Arosemena de Troitiño, Julissa Mantilla Falcón, Edgar

    Stuardo Ralón Orellana e pela brasileira Flávia Piovesan, que ocupa a segunda vice presidência da

    comissão. Atualmente, Flávia Piovesan é a nacional brasileira que integra a CIDH, com mandato de

    01/01/2018 a 31/12/2021. 39 PEREIRA, Antônio Celso Alves. Apontamentos sobre a Corte Interamericana de Direitos

    Humanos. In: GUERRA, Sidney. (Org.) Temas emergentes de direitos humanos. Rio de Janeiro: FDC,

    2006. p. 93. 40 AGUIAR, Marcus Pinto. Acesso à Justiça nos Sistemas Internacionais de Proteção de Direitos

    Humanos. 2ª ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017. p. 62. 41 “[...]Sua atuação é, portanto, bastante semelhante em alguns aspectos a do Ministério Público

    brasileiro, pois tem tanto legitimidade para encaminhar um caso ao órgão jurisdicional, como pode

  • 25

    competência para receber e processar as denúncias que lhes são apresentadas por

    indivíduos, grupos de pessoas e Estados, além de exercer uma função investigativa e de

    conciliação. É ainda o intérprete da Convenção Americana de Direitos Humanos e para

    que sua estrutura seja acionada é necessário o peticionamento escrito referindo-se à

    suposta violação de algum direito humano que esteja disposto na Convenção, na

    Declaração Americana ou em outros documentos do Sistema Interamericano42.

    Diferentemente da Corte IDH, como se verá oportunamente, não é exigida

    formação jurídica para os membros da Comissão e o seu mandato é de quatro anos,

    cabendo uma única reeleição, não sendo permitida a presença de mais de um nacional

    de mesmo Estado na sua composição.

    A Corte IDH é composta por sete juízes43, nacionais dos Estados Membros da

    Organização, eleitos a título pessoal dentre os juristas da mais alta autoridade moral, de

    reconhecida competência em matéria de direitos humanos, que reúnam as condições

    requeridas para o exercício das mais elevadas funções judiciais, de acordo com a lei do

    Estado do qual sejam nacionais, ou do Estado que os propuser como candidatos44,

    destacando-se aqui a diferença nas qualificações pessoais exigidas dos membros da

    CIDH.

    Os juízes são eleitos em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos

    Estados-Partes na Convenção, na Assembleia Geral da Organização. Cada Estado pode

    propor uma lista de até três candidatos, podendo ser de sua nacionalidade ou nacional de

    um dos Estados parte da OEA, conforme definido pelo artigo 53 da CADH, isto porque

    não pode haver mais de um juiz da mesma nacionalidade.

    Estes juízes são eleitos para mandato de seis anos, podendo serem reeleitos

    uma única vez. As eleições para Corte acontecem de forma fracionada, sendo que a cada

    período de três anos acontecem ditas eleições para eleger três ou quatro juízes, a

    depender do período.

    Em outra característica distinta, a Corte IDH pode contar com juízes ah hoc

    para tratar de matérias específicas, conforme preceituado pelo artigo 55 da Convenção

    fiscalizar o respeito aos direitos humanos no plano regional”. MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p.

    77. 42 AGUIAR, Marcus Pinto. Ob. Cit. p. 65. 43 Atualmente composta por Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Patricio Pazmiño Freire

    (Equador); Elizabeth Odio Benito (Costa Rica), atual presidente; Eduardo Vio Grossi (Chile); Eugenio

    Raúl Zaffaroni (Argentina); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo Pérez Manrique

    (Uruguai). 44 CADH, Artigo 52.

  • 26

    Americana, resguardando-se os requisitos pessoais dos juízes, conforme definido no

    artigo 5245.

    A Corte IDH é sediada em São José, Costa Rica. Dita Corte tem dupla

    competência: contenciosa e consultiva. Para atuar nos casos litigiosos, é absolutamente

    necessário que o Estado denunciado tenha aceitado a jurisdição da Corte. Em relação à

    segunda competência, nos anos iniciais de seu funcionamento, a Corte robusteceu a

    proteção aos direitos humanos ao emitir várias opiniões consultivas, contribuindo para a

    interpretação e aplicação das normas previstas na CADH46.

    Impende destacar que o Sistema Interamericano47, ao lado dos sistemas

    europeu e africano, é um dos três sistemas regionais consolidados no mundo, tendo se

    consolidado ao longo dos anos, com grande peso para a década de 90, como catalizador

    da promoção e proteção dos direitos humanos, num cenário em que diversos Estados do

    continente aceitaram sua jurisdição48, motivo pelo qual seu estudo guarda importante

    relevância.

    Neste capítulo, serão abordados os instrumentos normativos e jurisprudenciais

    oriundos do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, do qual o Brasil

    é parte.

    Para tanto, como recorte, serão utilizados os instrumentos internacionais de

    âmbito regional, para que se possa realizar uma espécie sindicância de compatibilidade

    entre a legislação interna brasileira e os instrumentos internacionais regionais.

    Assim, para se averiguar a possível [in]compatibilidade do ordenamento

    jurídico interno face ao ordenamento regional, este capítulo abordará os instrumentos

    internacionais que serão utilizados como base, diga-se a Carta da OEA, a DADDH, a

    CADH e outros instrumentos, assim como os posicionamentos e manifestações da

    Comissão Interamericana e a jurisprudência da Corte Interamericana, que é considerada

    intérprete natural da CADH, conforme será abordado a seguir.

    45 GUERRA, Sidney. Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2015.

    p. 201. 46 MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p. 78. 47 AGUILAR CAVALLO, Gonzalo. Surgimento de um derecho americano de los derechos humanos

    en la America Latina. Revista Mexicana de Derecho ConstitucionalNúm. 24, enero-junio 2011.

    Disponível em https://revistas.juridicas.unam.mx/index.php/cuestiones-

    constitucionales/article/view/5945. Acesso em 11 de maio de 2020. 48 Cf. RAMANZINI, I. G. G. (2017). Mudança Institucional em Regimes de Direitos Humanos: o Sistema Interamericano e os Estados “em cima do muro”. Carta Internacional, 12(2), 150 - 173.

    https://doi.org/10.21530/ci.v12n2.2017.618. Acesso em 26 de maio de 2020.

  • 27

    2.2 CARTA DA OEA, DADDH, CADH E DEMAIS INSTRUMENTOS

    NORMATIVOS DO SISTEMA INTERAMERICANO

    Considerando o recorte material deste trabalho, qual seja a questão da temática

    sobre migrações, passa-se ao estudo dos dispositivos de tais instrumentos oriundos do

    SIPDH, que guardem relação com o tema.

    A OEA implementou o sentimento de organização regional tendo como

    principais características o compromisso com a democracia, a manutenção da paz e da

    segurança no continente e, ainda, a valorização dos direitos humanos49, o que

    certamente guarda importância para as pessoas em situação migratória.

    Aliás, o trabalho da OEA também tem ganhado relevo em relação à proteção dos

    direitos humanos relacionados aos migrantes. Nas palavras de Thiago Oliveira Moreira,

    a Organização dos Estados Americanos tem uma importante contribuição à seara dos

    Direitos Humanos dos Migrantes, vez que adotou o entendimento de que a proteção aos

    Direitos Humanos independente da condição de nacional50, embora a Carta da OEA não

    tenha tratado especificamente da temática em apreço.

    Um importante instrumento normativo que compõe o Sistema Interamericano

    de Proteção dos Direitos Humanos (SIPDH) é a Declaração Americana dos Direitos e

    Deveres do Homem.

    Especificamente quanto à proteção aos migrantes, a DADDH não dispôs de um

    rol significativo, contudo, há de se destacar seu artigo 27 ao prever que “toda pessoa

    tem o direito de procurar e receber asilo em território estrangeiro, em caso de

    perseguição que não seja motivada por delitos de direito comum, e de acordo com a

    legislação de cada país e com as convenções internacionais”.

    Ao prever que à pessoa vítima de perseguição por motivos escusos à lei (seja

    de ordem política, religiosa, sexual, dentre outros) é dado o direito de acolhida por outro

    Estado, de modo que assegure sua proteção e manutenção dos direitos inerentes à sua

    condição humana, dito dispositivo (art. 27) trata acerca do direito de asilo,

    mundialmente reconhecido.

    Aliás, é importante destacar que o asilo mencionado nessa norma pode ser

    considerado sinônimo de refúgio. Dita norma, editada anteriormente ao Estatuto dos

    49 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Concretização dos Direitos Humanos dos Migrantes pela

    Jurisdição Brasileira. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019. p.

    110. 50 MOREIRA, Thiago Oliveira. Ob. Cit. p. 112.

  • 28

    Refugiados (de 1951), representa um nítido reconhecimento da existência de um direito

    humano a solicitação de refúgio.

    Nas palavras de Sidney Guerra, a Declaração Americana buscou elencar um rol

    de recomendações para os indivíduos, fazendo com que se reconheçam direitos e

    deveres ao ser humano51. A DADDH, notadamente, representa um marco importante

    nesta temática, pois contemplou os Direitos Humanos de forma integral (direitos civis,

    políticos, sociais, culturais e econômicos)52.

    A CADH foi aprovada durante a Conferência Especializada Interamericana

    sobre Direitos Humanos, no ano de 1969, em San José, Costa Rica, motivo pelo qual a

    CADH também é conhecida como Pacto de San José, entrando em vigor no ano de

    197853.

    Considerada como sendo o principal instrumento normativo do SIPDH, dita

    Convenção foi ratificada por 25 dos 35 países que integram a Organização dos Estados

    Americanos, dentre eles o Brasil54, o que demonstra sua notável abrangência - embora

    se saiba que o ideal seria a ratificação pela totalidade dos países americanos.

    Diferente dos demais instrumentos até então abordados, a Convenção

    Americana é um tratado internacional, com características hard law55, ratificado pelo

    Brasil, através do Decreto nº 678, de 6 de novembro, no ano de 199256.

    Este instrumento pode ser dividido em três partes. Na primeira parte, a

    Convenção Americana estabelece os deveres dos Estados e os direitos protegidos pelo

    tratado. Na sua segunda parte, a Convenção Americana estabelece os meios de proteção:

    a CIDH e a Corte IDH, aos que declara órgãos competentes para “conhecer dos assuntos

    relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados Partes

    nesta Convenção” (art. 33). Já na terceira e última, trata sobre disposições gerais e

    transitórias57.

    51 GUERRA, Sidney. Ob. Cit. p. 188. 52 Ibidem. p. 190. 53 Nos termos do art. 74.2 da CADH, a sua vigência iniciaria quando onze Estados houvessem realizado o

    depósito dos instrumentos de adesão ou ratificação. 54 Disponível em: < https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm>.

    Acesso em 24 de março de 2020. 55 No âmbito do Direito Internacional, muito se discute sobre normas hard law e soft law. Este status

    normativo hierárquico quer dizer, em uma tradução literal, que a regra é forte ou firme, ou que ela é leve,

    fraca. Neste sentido, ao utilizar a expressão hard law, está se referindo à instrumentos normativos com

    força cogente, que vinculam os Estados parte. 56 MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos pela

    jurisdição brasileira. Natal: EDUFRN, 2015. p. 75-76. 57 “A Convenção Americana é composta por 82 artigos, divididos em três partes: Parte I sobre os Deveres

    dos Estados e Direitos Protegidos; a Parte II sobre os “Meios de Proteção” e a Parte III, sobre as

  • 29

    Como se percebe de seu objetivo, o Pacto de São José reafirmou o propósito de

    criar no continente americano um ambiente de liberdade e de justiça social, respaldado

    pelo respeito aos direitos humanos.

    Neste sentido, a Convenção Americana reitera enunciado da Declaração

    Universal no sentido de que o ser humano só é realmente livre se forem criadas as

    condições que o permitam gozar os seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e

    culturais, bem como reafirma o propósito de consolidação de um continente americano

    pautado pela liberdade pessoal e justiça social58.

    Revelando sua abrangência e importância para proteção dos direitos da pessoa

    humana, dita Convenção traz um rol de direitos, com vistas a proteger o gozo de direitos

    civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, tendo enfoque principal no exercício e

    proteção dos direitos civis e políticos (arts. 3º ao 25). Contudo, a Convenção Americana

    não enuncia de forma específica qualquer direito social, cultural ou econômico; limita-

    se a determinar aos Estados que alcancem progressivamente, a pela realização desses

    direitos, mediante a adoção de medidas legislativas e outras que se mostrem

    apropriadas, nos termos do art. 26 da Convenção59.

    Assim, somente após o Protocolo Adicional à CADH (Protocolo de São

    Salvador), no ano de 1988, relativo aos direitos sociais, econômicos e culturais, foi

    elencada uma série de direitos relativos ao trabalho, seguridade social, proteção à

    família, proteção à criança, proteção ao idoso, à cultura e ao meio ambiente equilibrado.

    Considerando o recorte deste trabalho, especificamente em relação aos direitos

    dos migrantes, destaca-se o artigo 22, que merece ter seu estudo aprofundado, uma vez

    que dispõe sobre regras inerentes ao direito de livre circulação e residências de pessoas.

    No seu primeiro item, dito artigo faz referência ao que se conhece como direito

    à livre circulação e residência, que consiste, de modo resumido, no direito que toda

    pessoa tem de se movimentar de um lugar para outro, no país que vive, e estabelecer sua

    residência onde queira.

    Contudo, como poderá ser visto, embora aparentemente simples, este direito se

    apresenta de forma bastante complexa por apresentar múltiplos aspectos, como a

    liberdade de poder sair de qualquer país ou a de que pessoas em situação migratória não

    “Disposições Gerais e Transitórias””. CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 5ª

    ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 318. 58 GUERRA, Sidney. Ob. Cit. p. 193. 59 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo:

    Saraiva, 2013, p. 333.

  • 30

    poderiam ser expulsas arbitrariamente por exemplo. No mesmo sentido, a efetivação

    deste direito depende de diversas ações por parte dos Estados (que assegurem tais

    direitos), bem como da divisão político-jurídica do mundo globalizado60.

    Importa destacar que o direito à livre circulação e residência não é um direito

    universal, vez que a própria CADH prevê que é aplicado a “toda pessoa que se ache

    legalmente” naquele território. Esta especificidade acarreta diferenças de tratamento aos

    nacionais e estrangeiros, vez que cada Estado pode estabelecer condições e regras de

    aceitação de pessoas não nacionais em seu território.

    No seu item 2, trata sobre o direito de emigração, ao reconhecer que “toda

    pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio”, ou seja,

    embora não exista o reconhecimento ao direito de imigração, há um reconhecimento do

    direito de emigrar61.

    Este direito à emigração se mostra mais abrangente e oponível a qualquer

    Estado, sendo um direito de titularidade da pessoa, independentemente da sua condição

    de nacional. Inclusive, a liberdade de sair de um Estado independe de finalidade

    específica e/ou de prazo que a pessoa decida permanecer fora do país62.

    Tal direito também gera ao Estado uma obrigação de facilitar a obtenção de

    documentos necessários para viagem, como o passaporte, por exemplo, e de eliminar

    qualquer trava burocrática que possam impedir o acesso a tais documentos63.

    No item 3 do artigo 22, há previsão de restrições possíveis aos direitos de livre

    circulação e residência e de sair livremente de qualquer país. Segundo item 3, estes

    direitos só podem sofrer restrição em “virtude de lei, na medida indispensável, numa

    sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança

    nacional, a segurança ou a ordem pública, a moral ou a saúde pública, ou os direitos e

    liberdades das demais pessoas”.

    60 UPRIMNY YEPES, Rodrigo; SÁNCHEZ DUQUE, Luz María. Artículo 22. Derecho de Circulación

    y de Residencia. In.: Convención Americana sobre Derechos Humanos Comentada. STEINER,

    Christian; URIBE, Patricia (Orgs.). México: Suprema Corte de Justicia de la Nación; Bogotá, Colombia:

    Fundación Konrad Adenauer, Programa Estado de Derecho para Latinoamérica, 2014. p. 533. 61 Embora alguns autores entendam que que este dispositivo fundamentaria um direito humano a

    imigração, discordamos deste posicionamento. Caso fosse este o entendimento dos Estados-legisladores,

    o teriam positivado como fizeram com a previsão ao direito a emigração. Neste mesmo sentido vide

    MOREIRA, Thiago Oliveira. A Concretização dos Direitos Humanos dos Migrantes pela Jurisdição

    Brasileira. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019. p. 318. 62 Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral nº 27, parágrafo 8. 63 UPRIMNY YEPES, Rodrigo; SÁNCHEZ DUQUE, Luz María. Ob. Cit. p. 541

  • 31

    O item 4 do mesmo artigo também traz uma possibilidade de restrição ao

    direito à livre circulação, prevendo que “pode também ser restringido pela lei, em zonas

    determinadas, por motivo de interesse público”.

    Assim, percebe-se que existem requisitos para que tais restrições sejam

    consideradas legítimas. O primeiro deles é que a restrição seja estabelecida por lei. Uma

    forma de garantir segurança jurídica e prevenir as pessoas da arbitrariedade de uma

    autoridade administrativa.

    Importante destacar que não se trata de uma autorização geral para estabelecer

    novas restrições aos direitos protegidos pela Convenção através de uma lei, no sentido

    literal da legalidade. Do contrário, trata-se de condição adicional para que as restrições,

    singularmente autorizadas, sejam legítimas64.

    No mesmo sentido, existem requisitos substantivos para satisfação da

    legitimidade das medidas de restrição. Deste modo, para que sejam legítimas, as

    restrições devem perseguir os propósitos autorizados pela Convenção, quais sejam a

    proteção da segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral pública ou, ainda,

    direitos e liberdades de terceiros, bem como guardar proporcionalidade com o fim

    legítimo perseguido65.

    Já o item 5 do referido artigo assegura o direito de não expulsão e de entrada

    do nacional em relação ao território do seu país. Nestes termos, o nacional jamais

    poderá ser expulso do seu país, nem ter seu ingresso impedido.

    De outro modo, no item 6, há uma determinação para que seja cumprido o

    princípio da legalidade, exigindo-se que “o estrangeiro que se ache legalmente no

    território de uma Estado-Parte nesta Convenção só poderá dele ser expulso em

    cumprimento de decisão adotada de acordo com a lei”, numa clara proteção ao direito

    de não expulsão, não sendo possível operar expulsão de forma arbitrária.

    Já o direito ao asilo, ou ao refúgio em alguns casos66, é reconhecido através do

    item 7, que garante que “Toda pessoa tem o direito de buscar e receber asilo em

    64 VÍQUEZ FERNANDO, Castillo; LOAIZA OLMAN, Rodríguez; RODRÍGUEZ GRACIELA,

    Arguedas. Convención Americana sobre Derechos Humanos Anotada y concordada con la

    Jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Heredia, Costa Rica: Corte

    Suprema de Justicia. Escuela Judicial, 2013. p. 511. 65 Neste sentido, Corte IDH. Caso Ricardo Canese vs. Paraguai. Sentença de 31 de agosto de 2004. Série

    C, nº 111, parágrafo 125. 66 Em que pesem as discussões doutrinárias acerca da diferença entre asilo e refúgio, entendemos se tratar

    de institutos semelhantes, contudo obtidos em situações diferenciadas pela motivação da solicitação.

    Neste sentido: “a expressão asilo político é utilizada para o asilo diplomático, concedido a perseguidos

    políticos, enquanto que o asilo territorial é o obtido pelos refugiados” ALARCÓN, Pietro. Direitos

    Humanos e Direitos dos Refugiados: a Dignidade Humana e a Universalidade dos Direitos

  • 32

    território estrangeiro, em caso de perseguição por delitos políticos ou comuns conexos

    com delitos políticos e de acordo com a legislação de cada estado e com os convênios

    internacionais”.

    O direito ao asilo político, aliás, se mostra como um exemplo da contribuição

    do direito interamericano ao direito internacional, vez que se trata de um direito que se

    desenvolveu nesta região ao longo do século XX, sendo bem aceito posteriormente pela

    Declaração Universal67.

    Embora o artigo 22.7 da CADH remete somente ao asilo em caso de

    perseguição por delitos políticos, em razão das regras de interpretação da Convenção,

    previstas no seu artigo 29, deve-se entender que a CADH não exclui o amplo rol de

    direitos relacionados ao asilo (previstos na DADDH e DUDH, por exemplo). Sem

    embargo, deve-se compreender que o direito ao asilo abarca uma ampla situação de

    perseguição e não somente os casos de perseguição por motivos políticos.

    Já os itens 8 e 9 completam uma série de limitações à expulsão. Enquanto os

    itens 5 e 6 preveem a proibição de expulsão de nacional do seu próprio Estado e as

    condições para expulsão de estrangeiro que se ache legalmente em um país, o item 8

    positiva o princípio non-refoulement, ou não devolução.

    Segundo tal princípio, que também está positivado no artigo 33 do Estatuto dos

    Refugiados de 1951, em nenhum caso o estrangeiro pode ser expulso ou entregue a

    outro país, seja ou não de origem, onde seu direito à vida ou liberdade pessoal esteja em

    risco de violação por causa da sua raça, nacionalidade, religião, condição social ou de

    suas opiniões políticas.

    Em âmbito interamericano, tem-se que tal direito à não devolução é absoluto e

    não depende da condição da pessoa interessada como refugiado68, o que demonstra sua

    fundamental importância para o Direito Internacional.

    Por fim, o item 9 do artigo 22 reconhece que não pode haver expulsão coletiva

    de estrangeiros, como meio de proteção as condições individuais da pessoa. Segundo

    entendimento do direito internacional, o Estado deve promover uma avaliação pessoal

    das condições do migrante para decidir sobre a possibilidade de sua expulsão.

    Humanos como fundamentos para superar a discricionariedade estatal na concessão do refúgio. In:

    Cadernos de Debates, Refúgios, Migrações e Cidadania, v. 8, n. 8 . Brasília: Instituto Migrações e

    Direitos Humanos, 2013. p. 99. 67 Cf. YEPES, Jesús María. El derecho de asilo. Síntesis histórica, jurídica, política y filosófica. In.:

    Universitas, nº 15, Bogotá, 1958. 68 CIDH. Informe sobre terrorismo e direitos humanos, parágrafo 394.

  • 33

    Em que pese sua importante contribuição normativa ora explanada, uma grande

    contribuição da Convenção Americana diz respeito à criação dos meios de controle,

    com a criação de órgãos de monitoramento do cumprimento dos compromissos

    assumidos pelos Estados69, com o efetivo funcionamento da Comissão Interamericana e

    a implementação da Corte IDH. No próximo tópico, serão abordadas as manifestações

    desses órgãos, no que concerne a proteção dos direitos humanos dos migrantes.

    Ainda em sede normativa, cabe destacar a Convenção Interamericana para

    Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), que trouxe em seu

    artigo 9 a previsão de que “os Estados Partes levarão especialmente em conta a situação

    da mulher vulnerável a violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante,

    de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos”, o que atribui ao Estado um dever

    de atenção especial à mulher em situação de migração que possa ser submetida a algum

    tipo de violência.

    Em sentido semelhante, cujo objetivo é mitigar as injustiças causadas em razão

    da origem nacional da pessoa, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a

    Discriminação Racial e Formas Conexas de Intolerância (2013) reconhece em seu artigo

    1 que “A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem

    nacional ou étnica”.

    Do mesmo modo, a Convenção Interamericana contra toda Forma de

    Discriminação e Intolerância (2013), em seu artigo 1, também reconhece que “A

    discriminação pode basear-se em nacionalidade [...] condição de migrante, refugiado,

    repatriado, apátrida ou deslocado interno [...]”.

    Não menos importante, através da Resolução nº 04/19, a CIDH adotou

    “Princípios Interamericanos sobre os Direitos Humanos de todas as Pessoas Migrantes,

    Refugiadas, Apátridas e as Vítimas de Tráfico de Pessoas”, cujo objetivo principal é

    orientar os Estados membros da OEA acerca dos seus deveres de respeitar, proteger,

    promover e garantir os direitos humanos de todas as pessoas independentemente de sua

    nacionalidade ou situação migratória, incluindo pessoas migrantes, refugiadas, apátridas

    e as vítimas de tráfico de pessoas.

    Dito documento serve de importante guia para as autoridades estatais para o

    desenvolvimento de legislação, regulamentação, decisões administrativas, políticas

    69 No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, para acompanhar o cumprimento

    dos compromissos assumidos pelos Estados, foram criados órgãos de fiscalização denominados “treaty

    bodies”, comitês que monitorariam a implementação dos principais tratados que tenham como objeto

    Direitos Humanos.

  • 34

    públicas, práticas, programas e jurisprudência pertinente. Além de trazer diversas

    definições de termos utilizados em relação a temática, que visa facilitar sua aplicação e

    interpretação, aglutina em um único documento 80 princípios decorrentes do SIPDH

    que devem ser observados pelos Estados membros70.

    Vencidos os principais aspectos relativos aos instrumentos normativos que

    compõem o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SIPDH), passa-

    se, então, à analise acerca da tutela jurisdicional, oriunda de tal sistema, acerca da

    proteção aos direitos humanos dos migrantes.

    2.3 A PROTEÇÃO INTERAMERICANA JURISDICIONAL DOS DIREITOS

    HUMANOS APLICADA A PESSOAS EM SITUAÇÃO MIGRATÓRIA

    Para tratar da tutela jurisdicional de proteção dos Direitos Humanos das

    pessoas em situação migratória, abordar-se-á a competência e a atuação da CIDH, bem

    como da Corte Interamericana. Ambos os órgãos, como se verá, tem relevante trabalho

    para proteção de tais direitos.

    2.3.1 A Comissão Interamericana De Direitos Humanos (CIDH)

    A CIDH funciona como mecanismo de controle ao cumprimento dos

    instrumentos interamericanos que versam sobre direitos humanos. É o fato de a

    Comissão trata do monitoramento de todos os Estados que são partes da OEA e não

    somente dos que ratificaram a CADH71. Ao receber uma denúncia relativa aos Estados

    que não ratificaram dita Convenção, a CIDH observará o que dispõe a DADDH e a

    Carta da OEA72.

    70 Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/Principios%20DDHH%20migrantes%20-

    %20ES.pdf. Acesso em 30 de junho de 2020. 71 ESTATUTO DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. (Aprovado pela

    resolução AG/RES. 447 (IX-O/79) Artigo 1: 1. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um

    órgão da Organização dos Estados Americanos criado para promover a observância e a defesa dos direitos

    humanos e para servir como órgão consultivo da Organização nesta matéria. 2. Para os fins deste Estatuto,

    entende-se por direitos humanos: a. os d