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www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 612
N.° 59, ENE-MAR 2020
Derecho y Cambio Social
N.° 59, ENE-MAR 2020
Testes genéticos preditivos: estudo da insuficiência
legislativa brasileira à luz do Direito Comparado (*)
Predictive genetic tests: research on the brazilian
insufficient legislation based on Comparative Law
Prueba genética predictiva: estudio de insuficiencia
legislativa brasileña a la luz del Derecho Comparado
Anna Karoliny Alexandre Fonseca1
Margareth Vetis Zaganelli2
Matheus Lopes Dezan3
(*) Recibido: 21 agosto 2019 | Aceptado: 05 noviembre 2019 | Publicación en línea: 1ro. enero
2020.
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-
NoComercial 4.0 Internacional
1 Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora
da Sociedade de Debates da Universidade Federal do Espírito Santo (SDUFES), grupo de
trabalho da Liga Universitária de Direito da UFES (LUDUFES). Membro do Grupo de
Pesquisa Trabalho, Seguridade Social e Processo: diálogos e críticas.
2 Doutora em Direito (UFMG). Mestre em Educação (UFES). Estágios Pós-doutorais na
Università degli Studi di Milano – Bicocca (UNIMIB) e na Alma Mater Studiorum Università
di Bologna (UNIBO). Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
Docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Bioethik (UFES).
3 Bacharelando em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Grupo de Estudos
Constituição, Empresa e Mercado (GECEM). Membro do Grupo de Pesquisa Direito,
Racionalidade e Inteligência Artificial (DRIA). Membro do Laboratório de Políticas Públicas
e Internet (LAPIN).
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Sumário: Introdução. 1. Genética, sociedade pós-genômica e
testes genéticos preditivos. 2. Importância da tutela jurídica dos
testes genéticos preditivos. 3. Estudo de legislação internacional.
4. Estudo de legislação nacional. – Referências bibliográficas. –
Referências legislativas. – Conclusão.
Resumo: Este artigo tem por escopo apresentar o quadro
legislativo brasileiro regulatório dos testes genéticos preditivos e
da matéria genética, a fim de elencar os bens jurídicos a serem
tutelados pelo direito material nacional, por meio de metodologia
de natureza exploratória e pesquisa comparativa, bibliográfica e
documental. Escolhem-se esses elementos com base em
legislação internacional de países de civil law, quais sejam a
França, a Alemanha e Portugal, que contam com sólida
experiência na regulação do assunto, e que se mostram como
elementos comparativos, exemplificativos e sugestivos de
produção legislativa. Por fim, evidencia os efeitos da falta de
legislação específica para as relações interpessoais juridicizadas.
Palavras-Chave: bioética, sociedade pós-genômica, testes
genéticos preditivos, direito comparado, lege ferenda, direito e
literatura.
Abstract: The article aims to present the Brazilian regulatory
framework on genetic predictive tests and on genetic matter, in
order to catalogue the legal assets to be protected by the law.
These elements are chosen based on international law of civil law
countries – namely France, Germany and Portugal – which have
shown huge regulatory experience, reason why they outstand as
good comparative, illustrative and suggestive legislative models.
The article also wants to demonstrate the effects of the lack of
specific rules.
Keywords: bioethics, post-genomic society, predictive genetic
tests, comparative law, lege ferenda, law and literature.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar el marco
regulatorio brasileño para las pruebas genéticas predictivas y los
asuntos genéticos, con el fin de enumerar los activos legales a
proteger por la ley material nacional. Estos elementos se eligen
con base en el derecho internacional de países de derecho civil, a
saber, Francia, Alemania y Portugal, que tienen una sólida
experiencia en la regulación del tema, y que se muestran como
elementos comparativos, ejemplares y sugestivos de producción
legislativa. Finalmente, destaca los efectos de la falta de
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legislación específica sobre las relaciones jurídicas
interpersonales.
Palabras Clave: bioética, sociedad postgenética, prueba genética
predictiva, derecho comparado, lege ferenda, derecho y literatura.
Introdução
Este artigo compreende explanação acerca do panorama em que se insere o
estudo contemporâneo dos testes genéticos preditivos, segue para abordagem
valorativa do quadro legislativo brasileiro em matéria de bioética e finda-se
apresentação do conteúdo de direito material estrangeiro e nacional. Para
tanto, elenca-se como chave da crítica presente a insuficiência legislativa
brasileira para regular a realização de e o cuidado para com os testes
genéticos preditivos nas relações jurídicas da vida civil. O objetivo do estudo
é elencar os objetos a serem contemplados por normas que se pretendam à
tutela dos testes genéticos preditivos, por meio de metodologia de natureza
exploratória e pesquisa comparativa, bibliográfica e documental.
Entende-se por teste genético preditivo, com base em definição extraída de
recomendação oficial fornecida pela Comissão sobre Acesso e Uso do
Genoma Humano, que pertencera ao Ministério da Saúde – extinta mediante
revogação da portaria que a instituía por meio da Portaria nº 1.679, de
28/08/03, embora posteriormente consolidada, como se verá mais para frente
– a análise das características genéticas individuais com finalidade de
detectar
anormalidades e deficiências, incluindo o status de portador, responsáveis
pela determinação de doenças ou condições associadas a anomalias do
desenvolvimento físico e mental, ou ainda [...] [de] identificar a
suscetibilidade a uma determinada doença ou condição (2003, p.5).
Ressalte-se que, segundo Silvia Salardi, em Determinism and Free Will in
the Age of Genetics, realizam-se testes genéticos preditivos,
majoritariamente, em pessoas assintomáticas e que os testes predizem a
suscetibilidade à doenças genéticas, apenas, e não a certeza de manifestação
da doença (2012, p. 1); há a possibilidade de o indivíduo portar os dados
hereditários para a doença, mas nunca a manifestar.
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1. Genética, sociedade pós-genômica e testes genéticos preditivos
O descobrimento das leis de hereditariedade pelo monge agostiniano Gregor
Johann Mendel (1822-1884), austríaco, desperta a formação da ciência
genética, ramo da biologia que estuda a transmissão de caracteres
hereditários e os efeitos deles sobre os seres vivos. Neste artigo, abordar-se-
ão as intersecções entre ciência biológica e ciência jurídica quando da
necessidade de produção normativa para regulamentação da realização de
testes genéticos preditivos.
Por essas vias, novos paradigmas científicos (KUHN, 2011) se consolidaram
nas áreas do conhecimento, sobretudo quando da passagem do século XX
para o século XXI, momento em que, por influência das operações de
pesquisa ministradas, a genética passa a ser vista como o domínio do saber
cujo progresso (o que inclui o desenvolvimento das biotecnologias, da
engenharia genética, das terapias gênicas e dos testes genéticos preditivos,
objeto deste estudo, entre outros) melhor impulsiona o bem estar e reduz as
complicações da vida humana, motivo pelo qual se diz ser esta a era da
genética, em que pese, também, aludir à sociedade pós-genômica.
Falar sobre a capacidade do homem de operar com a genética, portanto,
demanda que se fale, também, da iniciativa Human Genome Organization
(HUGO), ou Projeto Genoma Humano, em português, começada
formalmente em 1990 e concluída em 2003, e que obteve êxito na tarefa de
mapear e de identificar os genes humanos (aproximadamente todos os
20.500 que compõe o DNA) e o sequenciamento dos nucleotídeos do DNA
(3 bilhões), armazenando a informação em bancos de dados e desenvolvendo
ferramentas de análise desses dados, como consta no Human Genome
Project Information Archive.
No plano da literatura de ficção científica, o autor inglês Aldous Huxley,
ainda nos anos 30, escreveu e publicou a obra Brave New World, ou, em
tradução para o português, Admirável Mundo Novo. Já no primeiro capítulo,
o autor insere o leitor no ambiente instado no livro: uma sociedade na qual a
ciência ganha sobressalente relevância sobre os aspectos subjetiva e
naturalmente humanos. Huxley escreve:
’We also predestine and condition. We decant our babies as socialized human
beings, as Alphas or Epsilons, as future sewage works or future…’ He was
going to say future World Controllers, but correcting himself, said ‘future
Directors of Hatcheries’ instead (HUXLEY, 2018, p.10).4
4 Tradução nossa: “nós também predestinamos e condicionamos. Nós decantamos nossos bebês
como seres humanos socializados, como Alfas ou Ípsilons, como futuros trabalhadores ou
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No livro em discussão, a sociedade em que vive Bernard Marx (o
protagonista da distopia) é pautada no uso da inseminação artificial como
substitutiva da reprodução orgânica, o sexo recreativo é incentivado desde a
infância, e os bebês – com características físicas dadas mediante sua casta
social – são mantidos em câmaras para controle de gostos e aptidões:
Described the artificial maternal circulation installed on every bottle at metres
II2; showed them the reservoir of blood-surrogate, the centrifugal pump that
kept the liquid moving over the placenta and drove it through the synthetic
lung and waste-product filter. Referred to the embryo’s troublesome tendency
to anaemia, to the massive doses of hog’s stomach extract and foetal foal’s
liver with which, in consequence, it had to be supplied (HUXLEY, 2018, p.
9).
Ainda que a obra seja vista por muitos estudiosos como crítica da sociedade
capitalista, percebe-se preocupação – por parte do autor – em ensaiar os
riscos do uso ilimitado dos mecanismos científicos.
Como na obra de Huxley, o elemento imprevisibilidade associado à condição
de vida humana é, cada vez mais, reduzido e desconsiderado – ainda que não
anulado – pela solidificação dos conhecimentos em genética.
Nesse seguimento, associa-se à amenização da imprevisibilidade aquilo que
Erving Goffman, estudioso da ação humana, chama de momentos não
extraordinários, quais sejam aqueles momentos e aquelas situações em que
não se fazem presentes os elementos problemáticos e imprevisíveis da vida,
responsáveis por tornar árduo o cálculo para escolha das ações individuais.
Para o autor,
há muitas boas razões para considerarmos confortável esse caráter não
extraordinário e desejá-lo, privando-nos voluntariamente de apostas práticas
com seus riscos e oportunidades - estas simplesmente porque muitas vezes
estão relacionadas ao risco. Isto é uma questão de segurança (2011, p. 166 -
167).
De tal forma, é em momentos ordinários que há administração racional,
maximamente previsível, do curso e dos eventos da vida, e é neste sentido
que aponta a genética e, com especial atenção neste trabalho, os testes
genéticos preditivos: atenuam-se as imprevisibilidades e propicia-se o
exercício do controle racional, na terminologia de Goffman.
Há, portanto, afastamento entre o pensamento que considera benéfica a
consolidação de sociedade cientificada e o pensamento que demanda
restrições e limitações ao uso da ciência na sociedade. Ambos os
futuros...’ Ele ia dizer futuros controladores do mundo, mas se corrigiu e disse ‘futuros diretores
de incubação’”.
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posicionamentos, contudo, compartilham a assunção da existência de uma
sociedade pós-genômica, aquela em que o conhecimento e o domínio das
informações subjetivas hereditárias lança nova perspectiva sobre os
problemas mais diversos do cotidiano.
Importante notar, entretanto, que não se há de falar em certeza, em
previsibilidade absoluta ou em determinismo genético como limitadores da
autodeterminação. Segundo concepção apresentada por Silvia Salardi (2012,
p. 65), a ciência, da forma como é estruturada hoje, não comporta a
racionalidade e o conhecimento plenos, mas abre espaço para que a incerteza
seja considerada nos modelos cognoscentes. Como assenta o escritor russo
Ievguêni Zamiátin, na distopia Nós, escrita nos anos 20: “[…] O homem é
como um romance: até a última página não se sabe como vai terminar”
(ZAMIÁTIN, 2017, p. 220). É por essa perspectiva que se entende que, no
romance da ciência, o homem é o protagonista e nós, protagonistas e leitores,
aguardamos pelo surpreendente desfecho.
São inegáveis, portanto, os impactos de cunho ético, social e legal, levando
a divergentes posicionamentos e debates ainda intermináveis acerca dos
limites da ciência, o que faz bem-vinda a tutela jurídica para essa matéria,
como se verá a seguir.
2. Importância da tutela jurídica dos testes genéticos preditivos
Ao Direito interessa contemplar matérias variadas que sejam de relevância
social, motivo pelo qual se regulam as relações interpessoais. Não é por outra
razão que deve ser do interesse do legislador brasileiro legislar sobre os testes
genéticos preditivos.
São influenciados pelos resultados de testes genéticos preditivos e pela
possibilidade de realizá-los de forma ordenada e segurada juridicamente o
planejamento familiar, o planejamento financeiro individual ou familiar, o
acesso aos sistemas de saúde público e privado, as relações de emprego e de
filiação societária etc. Ainda, há de se falar em tutela jurídica dos direitos
personalíssimos associados aos dados genéticos, da intimidade genética, da
discriminação, da liberdade de ciência ou não dos resultados dos testes
genéticos preditivos e do sigilo dos dados coletados para fins medicinais ou
para fins de pesquisa.
Como defendem João Golçalves Barbosa Neto e Marlene Braz (2005, p.
205), deve-se dedicar atenção aos testes genéticos porque “os testes pré-
natais para defeitos congênitos são bem-difundidos e têm grande utilização”
e também porque “o segmento de testes para doenças que eclodirão na vida
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adulta [...] deverá experimentar uma demanda crescente e conseqüente
pressão dos custos sobre o sistema de saúde e seguradoras”.
Tomemos como exemplo a possibilidade de discriminação com base em
características genéticas. No momento em que um indivíduo opta por saber
seu mapa genético, essa informação pode ser canalizada como uma fonte de
preconceito, como casos que foram vedete nos últimos tempos.
Com o conhecimento do perfil genético, planos de saúde podem ser
recusados. Isto é, caso um indivíduo necessite de um seguro saúde e a
seguradora dispuser de informações sobre predisposição do indivíduo a
determinadas doenças – que podem demandar um tratamento de alto custo –
a seguradora pode se recusar a firmar o contrato, ficando desamparada
jurídica e biologicamente a pessoa que ansiava firmar o contrato.
Semelhantes casos se verificam em admissão em empregos e em filiações,
como se mostrará a seguir.
Há, no Brasil, um caso que ganhou notoriedade no início dos anos 2000.
Uma atleta de onze anos, que já havia se destacado em diversas competições
de vôlei, foi convocada para disputar uma vaga na seleção brasileira. Na fase
de testes físicos, foi comprovado que a criança possuía traço de anemia
falciforme, uma doença muito comum no país e que acomete, sobremaneira,
negros e pardos (DINIZ; GUEDES. 2007). Contudo, possuir o traço e possuir
a doença são completamente diferentes. Estudos recomendam que
portadores da anemia falciforme não pratiquem atividades físicas que
exigem muito esforço físico. A atleta citada possuía apenas o traço, e foi
desvinculada da seleção.
Um dos fatores que imperam quando se fala de legislação brasileira no
assunto é a falta ou a insuficiência dela. Não há no ordenamento brasileiro
lei ou texto normativo que tutele casos como esse de forma satisfatória. Por
esse motivo, faz-se necessário analisar a legislação internacional.
A Alemanha, tomada, aqui, como exemplo, possui a Lei de Diagnóstico
Genético, que dispõe sobre os testes genéticos para fim de pesquisa e sobre
as análises genéticas para fins de detecção de características. O § 4º da lei,
explicita:
Niemand darf wegen seiner oder der genetischen Eigenschaften einer
genetisch verwandten Person, wegen der Vornahme oder Nichtvornahme
einer genetischen Untersuchung oder Analyse bei sich oder einer genetisch
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verwandten Person oder wegen des Ergebnisses einer solchen Untersuchung
oder Analyse benachteiligt werden.5
Com isso, tematiza sobre a discriminação e versa que ninguém deve sofrer
preconceito pelas suas características genéticas provenientes ou não dos
testes ou análises genéticas.
Da completude da legislação alemã sobre o assunto, a mesma lei dispõe,
ainda, sobre as relações com as seguradoras. O §18 prescreve que a
seguradora não pode, antes ou após a conclusão do contrato, exigir a
realização de testes genéticos e exigir a comunicação de resultados ou dados
de exames genéticos já realizados. A lei põe a salvo a comunicação de
doenças pré-existentes.
No que tange à relação de emprego, o §21 enuncia que o empregador não
pode discriminar trabalhadores em um acordo ou medida por causa de suas
características genéticas. Além disso, os funcionários não são obrigados a
relatar resultados de análises feitas e não podem ser obrigados a realizar
nenhum tipo de teste genético.
Portanto, sabe-se que a discriminação genética é uma, apenas, das situações
de fragilidade jurídica que acontecem no Brasil e que a legislação disponível
atualmente não é específica, deixando questões da vida civil não seguradas
pelo direito nacional.
3. Estudo de legislação internacional
A compreensão dos desafios legislativos a serem enfrentados pelo direito e
pelo legislador brasileiros demanda que se observem as soluções normativas
apresentadas por países de tradição civilista (civil law), com vistas a fazer
útil ao caso pátrio a robusta e ampla experiência jurídica internacional de
regulamentação da matéria genética.
3.1. Legislação francesa
Tem início o tratamento das questões bioéticas no ordenamento jurídico
francês no ano de 1994, quando aprovadas as leis de bioética (lois de
bioéthique), destacando-se, para os fins deste trabalho, as leis de n° 94-653
e de n° 94-654, ambas de 29 de julho de 1994, (esta revista em 2004 pela lei
n° 2004-800, de 6 de agosto).
5 Tradução nossa: “(1) ninguém deve ser discriminado pelas suas características genéticas ou de
uma pessoa geneticamente relacionada, com a finalidade de realizar ou não o teste ou análise
genética de si mesmo ou de pessoa relacionada, ou do resultado de tal exame ou análise”.
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Pela lei n° 94-653, consagram-se a primazia e o respeito da pessoa humana
no artigo 16 do Código Civil francês, quando disposto que “la loi assure la
primauté de la personne, interdit toute atteinte à la dignité de celle-ci et
garantit le respect de l’être humain dès le commencement de sa vie”6.
Simultaneamente, por efeito dessa lei, o artigo 16-1 positiva i) que há, para
todos, o direito ao respeito de seus corpos, ii) que o corpo humano é
inviolável e iii) que o corpo humano, seus elementos e seus produtos não
podem ser objeto de um direito patrimonial (“chacun a droit au respect de
son corps. Le corps humain est inviolable. Le corps humain, ses éléments et
ses produits ne peuvent faire l'objet d'un droit patrimonial.”7).
No artigo 16-10, modificado pela lei 2004-800, supracitada, prescreve-se que
“l'examen des caractéristiques génétiques d'une personne ne peut être
entrepris qu'à des fins médicales ou de recherche scientifique”8, pelo que fica
claro que os testes genéticos, preditivos ou não, limitam-se às finalidades
médicas ou científicas, sendo vedados aos interesses distintos.
Constam no artigo 16-10, in fine, as exigências formais – regras de boa
prática, nos termos da lei vigente – a serem observadas para que se informem
o consentimento expresso do paciente – revogável a qualquer momento, sem
forma exigida em lei – e a finalidade e a natureza do exame de material
genético a ser realizado.
Le consentement exprès de la personne doit être recueilli par écrit
préalablement à la réalisation de l'examen, après qu'elle a été dûment
informée de sa nature et de sa finalité. Le consentement mentionne la finalité
de l'examen. Il est révocable sans forme et à tout moment.9
Para regular a matéria, o Decreto de 27 de maio de 2013 (JORF n° 0130 de
7 de junho de 2013, página 9469, texto n° 14) define as regras de boa prática
aplicáveis ao exame de características genéticas de uma pessoa para fins
6 Tradução nossa: “a lei garante a primazia da pessoa [humana], veda qualquer atentado à
dignidade dessa pessoa e garante o respeito do ser humano desde o começo de sua vida”.
7 Tradução nossa: “cada um tem direito ao respeito de seu corpo. O corpo humano é inviolável.
O corpo humano, seus elementos e seus produtos não podem constituir objeto de direito
patrimonial”.
8 Tradução nossa: “considera-se rigorosa a opção do legislador francês. O exame de características
genéticas de uma pessoa não pode ser realizado senão para fins médicos ou de pesquisa
científica”.
9 Tradução nossa: “o consentimento expresso da pessoa deve ser recolhido por escrito
previamente à realização do exame, após ser devidamente informado sobre sua natureza e sobre
sua finalidade. O consentimento menciona a finalidade do exame. Ele é revogável sem forma e a
qualquer momento”.
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medicinais. A seguir, discorre-se brevemente sobre elementos constantes no
Decreto e selecionados, neste artigo, com finalidade exemplificativa, mas
não exaustiva, haja vista que a extensão material do texto legal em análise
excede o espaço disponível neste trabalho.
Conforme o Decreto, há de haver ponderação dos impactos do resultado do
exame sobre os cuidados médicos a serem tomados (devem ser adequados à
pessoa e ao estilo de vida dela) e das consequências psicológicas da
realização ou da abstenção da realização do exame, bem como devem ser
observados o contexto familiar do paciente, a existência ou não de
planejamento familiar e a possibilidade de realizarem-se exames menos
onerosos e capazes de auferir diagnóstico igual.
Quanto ao prescritor, exige-se que seja um médico geneticista ou um médico
conhecedor dos quadros clínico e familiar do paciente e capaz de interpretar
o resultado, havendo, ainda, obrigação de que o responsável pela prescrição
esteja acompanhado de equipe de geneticistas. É lícito prescrever exame
genético a pessoas sintomáticas ou assintomáticas, capazes ou relativamente
capazes, desde que devidamente representadas.
O consentimento do paciente deve ser registrado de forma escrita, livre (não
viciada), clara, expressa (não tácita, consequentemente) e revogável a
qualquer momento. Nele devem constar a natureza e a indicação do exame,
bem como apresentar a técnica que será utilizada e a seleção de genes que
será analisada para que seja feita a identificação de doenças específicas. Dito
outra forma, elencam-se, primeiro, as doenças para análise.
Resguarda-se ao paciente o direito de dispensar a ciência do resultado dos
exames realizados (“la liberté et le droit de chacun de recourir ou non à
l'examen et d'en connaître ou non les résultats”10).
Por fim, destaque-se que o Decreto decide que a divulgação do resultado
deve ser acompanhada da informação das consequências emergentes para o
indivíduo e para a família e que ao médico prescritor surge o dever de
orientar o paciente no concernente aos auxílios profissionais a serem
buscados, quais sejam médicos especialistas, médicos generalistas,
fisioterapeutas, psicólogos, assistentes sociais etc.11.
10 Tradução nossa: “a liberdade e o direito individual de recorrer ou não ao exame e de conhecer
ou não resultados”.
11 Texto original: “des médecins spécialistes, des médecins généralistes, des kinésithérapeutes,
des psychologues, des assistants de service social...”.
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Pelo artigo L1133-4-1 do Código de Saúde Pública francês, a solicitação de
exame de material genético próprio ou de terceiros em condições não
estabelecidas pela lei deve ser punida à luz do artigo 226-28-1 do Código
Penal francês (valor estabelecido de 3.750 euros).
Encerra-se o estudo dos dispositivos franceses pela análise conjunta dos
artigos L1141-1 do Código de Saúde Pública e L133-1 do Código dos
Seguros (em tradução livre12), que proíbem às entidades privadas –
companhias de seguro ou “organismos que propõem garantia de riscos de
invalidade”, nos termos da lei – armazenar ou exigir informações sobre
resultados de testes genéticos de qualquer pessoa, mesmo que haja
consentimento mútuo de contratado e de contratante (faz-se nula a cláusula
contratual que dispuser nesse sentido). A contravenção a esse tipo penal
implica em aprisionamento pelo tempo de um ano e em multa de 15.000
euros, conforme o artigo 226-25 do Código Penal.
3.2. Legislação alemã
O legislador germânico, ao considerar os eventos componentes da história
alemã recente, não dispensa atenção à matéria de bioética. Estudos mostram
que na Operação Reinhardt, realizada durante o governo nazista,
aproximadamente 1.5 milhões de judeus foram assassinados em apenas 100
dias, como relata em Lewi Stone, em Quantifying the Holocaust: Measuring
murder rates during the Nazi genocide.
Havendo em sua história um dos maiores genocídios do mundo, a Alemanha
hodierna procurou criar leis que impedissem, com rigor, uma nova
ocorrência nas proporções nazistas, motivo pelo qual o legislador alemão
optou por dedicar atenção à matéria bioética. Destacam-se, neste artigo, a
Präimplantationsdiagnostikgesetz, Embryonenschutzgesetz.e a
Gendiagnostikgesetz, tratada anteriormente nesse trabalho.
Em 2011, após prologada deliberação, a lei de diagnóstico genético pré-
implantação (Präimplantationsdiagnostikgesetz) foi aprovada. Comenta o
jornalista Paul de Maeyer:
O texto (Bundestagsdrucksache 17/5451) permite submeter embriões
concebidos in vitro a uma pesquisa genética ou “screening” quando há um
alto risco de transmissão, de pais para filhos, de graves doenças hereditárias
ou malformações comprovadas, a possibilidade de um aborto espontâneo ou
de que a criança nasça morta. Os elementos-chave para permitir que o PID
são a gravidade da doença ou defeito genético e o critério de probabilidade.
Para não incorrer em abusos, o projeto de lei, assim que aprovado, prevê uma
12 Em francês, “Code Des Assurances”.
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consulta especialista obrigatória, a aprovação de um comitê disciplinar e o
consentimento por escrito da mulher. O teste é realizado apenas em centros
aprovados. No caso de um resultado “positivo”, o embrião “defeituoso” não
é transferido para o útero da mãe, mas destruído (MAEYER, 2011).
Nesse sentido, entende-se haver a permissão da realização de testes genéticos
preditivos na hipótese de fertilização in vitro, quando há grande
possibilidade de a criança ser acometida por doenças genéticas graves ou
nascer morta ou de a mãe sofrer aborto espontâneo.
Em sequência, observar-se-á que existe, desde 1990, na Alemanha,
legislação específica para a proteção ao embrião (Embryonenschutzgesetz).
A lei referida veda (com pena de privação de liberdade de, no máximo, um
ano ou de multa) a engenharia genética para escolha do sexo do embrião em
seu terceiro parágrafo, ao dispor que
Wer es unternimmt, eine menschliche Eizelle mit einer Samenzelle künstlich
zu befruchten, die nach dem in ihr enthaltenen Geshlechtschromosom
ausgewählt worden ist, wird mit Freiheitsstrafe bis zu einem Jahr oder mit
Geldstrafe bestraft. Dies gilt nicht, wenn die Auswahl der Samenzelle durch
einem Arzt dazu dient, das Kind vor der Erkrankung na einer
Muskeldystrophie vom Typ Duchenne oder einer ähnlich schwerwiegenden
geschlechtsgebundenen Erbkrankheit zu bewahren, um die dem Kind
drohende Erkrankung von der nach Landesrecht zuständigen Stelle als
entsprechend schwerwiegend anerkannt worden ist.13
Contudo, a lei põe a salvo os casos em que a escolha do sexo do embrião
ocorre para impedir que a criança seja acometida por Distrofia Muscular de
Duchenne ou por doença hereditária sexualmente transmitida de similar
gravidade.
O §3ºa, I, da Präimplantationsdiagnostikgesetz, prevê pena de prisão de até
um ano ou de multa para quem faz o teste genético pré-implantação antes de
sua transferência intrauterina. O inciso III dispõe que o diagnóstico genético
pré-implantação deve ser realizado:
1. nach Aufklärung und Beratung zu den medizinischen, psychischen und
sozialen Folgen der von der Frau gewünschten genetischen Untersuchung von
Zellen der Embryonen, wobei die Aufklärung vor der Einholung der
Einwilligung zu erfolgen hat;
13 Tradução nossa: “quem fertilizar artificialmente um óvulo humano com um espermatozoide
selecionado de acordo com a informação genética nele contida será punido com privação de
liberdade de até um ano ou multa. Isto não se aplica se a seleção do espermatozoide for realizada
por um médico a fim de proteger a criança de ter distrofia muscular de Duchenne ou uma doença
hereditária sexualmente transmitida similarmente grave”.
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2. nachdem eine interdisziplinär zusammengesetzte Ethikkommission an den
zugelassenen Zentren für Präimplantationsdiagnostik die Einhaltung der
Voraussetzungen des Absatzes 2 geprüft und eine zustimmende Bewertung
abgegeben hat und;
3.durch einen hierfür qualifizierten Arzt in für die Präimplantationsdiagnostik
zugelassenen Zentren, die über die für die Durchführung der Maßnahmen der
Präimplantationsdiagnostik notwendigen diagnostischen, medizinischen und
technischen Möglichkeiten verfügen.14
Isto é, o diagnóstico genético pré-implantação deve ser realizado, em
primeiro lugar, depois de a mulher ser informada e aconselhada sobre as
consequências médicas, psicológicas e sociais do exame. Além disso, ela
deve dar seu consentimento. Em segundo lugar, deve ser realizado somente
após apreciação por parte de um comitê de ética interdisciplinar nos centros
de testes genéticos credenciados e após ter sido apresentada classificação
positiva na avaliação de cumprimento de requisitos. Em terceiro lugar, deve
ser realizado por médico competente e em um ambiente com as condições
necessárias para realizar o procedimento.
Em seu §5º, a mesma lei positiva, a alteração artificial de células
germinativas humanas como sendo punível com prisão de até cinco anos ou
multa para quem alterar artificialmente a informação genética de uma célula
germinativa humana15. É também punido quem usa este tipo de célula
modificada artificialmente para fertilização. Vale ressaltar que a tentativa
também é punível.
I. Wer die Erbinformation einer menschichen Keimbahnzelle künstlich
verändert, wird mit Freiheitsstrafe bis zu fünf Jahren oder mit Geldstrafe
bestraft;
II. Ebenso wird bestraft, wer eine menschliche Keimzelle mit künstlich
veränderter Erbinformation zur Befruchtung verwendet;
III. Der Versuch ist strafbar.16
14 Tradução nossa: “1. Após informar e aconselhar sobre as consequências médicas, psicológicas
e sociais do diagnóstico genético das células embrionárias desejadas pela mulher, que devem ser
esclarecidas antes que o consentimento seja obtido; 2. Depois de um comitê de ética
interdisciplinar nos centros de testes genéticos pré-implantação competentes ter cumprido os
requisitos do §2º e ter tido uma avaliação afirmativa, e; 3. Por um médico qualificado em centros
competentes para realização deste tipo de diagnóstico genético, com as necessárias instalações
diagnósticas, médicas e técnicas para realizar o procedimento”.
15 Célula que dá origem aos gametas.
16 Tradução nossa: “I. Quem alterar artificialmente a informação genética de uma célula da
linhagem germinativa humana será punido com privação de liberdade de até cinco anos ou multa;
II. Também é punido quem usa célula germinativa humana com informação genética
artificialmente modificada para fertilização; III. A tentativa é punível”.
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Constata-se, por essas vias, que a Alemanha só permite a realização de testes
genéticos em casos específicos de fertilização in vitro quando há risco para
a mãe e para a criança, e não dispõe acerca das variações que esses
diagnósticos podem ter.
3.3. Legislação portuguesa
São de interesse do estudo do direito bioético comparado a Lei de n° 12/2005
e o Decreto-Lei de n° 131/2014 portugueses. Aquela dispõe sobre as
informações genéticas pessoais e sobre as informações de saúde, bem como
sobre os testes genéticos preditivos, tema deste trabalho. Este, em sequência,
regulamenta a Lei acima referida naquilo que diz respeito à “realização de
testes genéticos [e] [...] [às] regras de proteção da informação genética, em
termos de acesso, segurança, confidencialidade e sigilo dos dados”.
A preocupação do legislador lusitano recai, especialmente, sobre a proteção
da informação genética – definida, no artigo 6°, inciso 1, como “a
informação de saúde que verse as características hereditárias de uma ou de
várias pessoas” –, sobre a não discriminação e sobre a intimidade genética.
Nesse sentido, merecem atenção os princípios norteadores do trato com a
informação genética, elencados pelo acima referido Decreto-Lei 131/2014,
quais sejam “a) primado da pessoa; b) equidade e acesso aos cuidados de
saúde; c) prática ética; d) transparência; e) qualidade laboratorial; f) uso das
melhores práticas científicas; g) proporcionalidade e h) responsabilidade
social”.
Afere-se a postura protetiva de intimidade a partir do inciso 7 do artigo 6° da
Lei 12/2005, que impõe que a relação entre médico e titular da informação
genética deve ser revestida por “regras deontológicas de sigilo profissional
dos médicos e dos restantes profissionais de saúde”. É nesse mesmo sentido
que opera o artigo 20 do Decreto-Lei 131/2014, responsável por proibir “a
divulgação a terceiros de informação genética relacionada com a saúde do
respetivo titular”.
A regulamentação do consentimento do paciente é contida no artigo 9°, 2,
por determinação de que os testes genéticos realizados em pessoas saudáveis
só podem ser feitos com autorização por escrito e expressa do paciente,
mediante prescrição de médico geneticista e seguidos de aconselhamento
genético.
A Lei – artigo 9°, 4 – dispõe que a comunicação dos resultados dos testes
genéticos deve ser seita ao paciente cuja informação genética fora analisada
e veda a comunicação a terceiro não autorizado, “incluindo a médicos ou
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outros profissionais de saúde de outros serviços ou instituições ou da mesma
consulta ou serviço mas não envolvidos no processo de teste dessa pessoa ou
da sua família.” Adicionalmente, a lei determina que é condição para a
realização do teste a avaliação psicológica e social do paciente antes e após
a comunicação do resultado (inciso 7).
O artigo 10°, inciso 3, da Lei 12/2005 conceitua “testes genéticos preditivos”
como aqueles que “permitam a detecção de genes de susceptibilidade,
entendida como uma predisposição genética para uma dada doença com
hereditariedade complexa e com início habitualmente na vida adulta.”
A proteção dos dados genéticos contra seguradoras é apresentada no artigo
12, que veda às companhias de seguros a exigência de informações genéticas
ou de realização de testes genéticos como critério aceitação de segurados.
Semelhante postura pode ser verificada quando da proibição da exigência de
apresentação de resultados de testes genéticos para fins de contratação
laboral (artigo 13, 1), mesmo que com consentimento mútuo (inciso 2)
excetuando-se casos em que dada condição genética possa afetar a segurança
ou apresentar riscos ao trabalhador (inciso 3).
4. Estudo de legislação nacional
A atenção do legislador brasileiro para matéria de genética, embora
questionada por flagrantes incompletude e lacunas, pode ser verificada na
Constituição Federal de 1988, quando o artigo 225, §1°, II declara ser de
interesse estatal a fiscalização das entidades “dedicadas à pesquisa e à
manipulação de material genético”. Ademais, o inciso V do mesmo artigo
atende à bioética pela disposição de que é função do Estado “controlar a
produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias
que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.
Ademais, é exemplo de atuação governamental sobre os testes genéticos o
trabalho da Comissão instituída em 2001 – porém extinta mediante
revogação da portaria que a instituía por meio da Portaria nº 1.679, de
28/08/03, em 2003 – pelo qual se publicaram recomendações para a
realização de testes genéticos, as quais se coadunam com a posição
internacional exposta neste trabalho. Essas recomendações, embora
destituídas de valor vinculante, servem de baliza ao legislador e ao
profissional da área médica, e, por isso, não dispensam atenção.
Destacam-se as orientações de que a realização dos testes genéticos
preditivos ocorram “após orientação [médica] apropriada, e sempre
precedidos pela assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido,
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pelo próprio indivíduo ou por seu representante legal”; de que os testes
“sejam realizados com finalidade médica”; de que “seja vedada a solicitação
de testes genéticos como pré-requisito para admissão e contratação” e de que
“seja vedada a comunicação dos resultados de testes genéticos a qualquer
outra pessoa”.
Comissão semelhante foi criada em 2003, por meio da portaria n° 1.679/GM,
alterada pela Portaria n° 2.702/GM, em 2004, e aprovada pela portaria n°
277/GM, de 2005, que instituiu Comissão sobre Acesso e Uso do Genoma
Humano, para a qual se delegaram as funções de
I - realizar o levantamento das normas e dos procedimentos referentes ao
acesso e uso do genoma humano existentes nos diversos níveis normativos e
propor a revisão daquelas de interesse deste Ministério; II - propor a inclusão
de procedimentos, diagnósticos e terapêuticas, nas ações e serviços prestados
pelo SUS; III - propor normas e regulamentos relativos a atividades que
envolvam o acesso e uso do genoma humano; IV - propor áreas prioritárias
para a pesquisa na área de genética humana; V - apoiar tecnicamente
atividades destinadas a oferecer subsídios ao acesso e uso do genoma
humano, em especial aquelas desenvolvidas no âmbito do Ministério da
Saúde; VI - subsidiar os órgãos e entidades da administração pública na
discussão do tema e nos processos de tomada de decisão; VII - subsidiar a
participação do Ministério da Saúde nos colegiados interministeriais
relacionados ao assunto; VIII - promover debates, eventos e consultas
públicas sobre o tema; IX - revisar seu Regimento Interno; e X - publicar, na
forma de relatório e recomendações, o resultado de suas atividades.
É de valia, ainda, dizer que o Brasil conta com lei de proteção de dados (Lei
Geral de Proteção de Dados Pessoais, ou Lei n° 13.709, de 14 de agosto de
2018), que insere o dado genético como dado pessoal sensível, motivo pelo
qual há de se falar em tutela dos dados genéticos, mesmo que com baixa
densidade normativa (como é o caso de toda a matéria genética nas
codificações brasileiras):
Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se: II - dado pessoal sensível: dado
pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política,
filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou
político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico,
quando vinculado a uma pessoa natural;
Considerações Finais
Este artigo, por fim, conclui que as relações jurídicas da vida privada não
contam com amparo normativo suficiente ao seu bom desenvolvimento,
seguro juridicamente e efetivo, muito embora estejam – essas relações –
presentes no cotidiano nacional e em expansão. Portanto, sugere-se ao Poder
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Legislativo criar regras que regulem a matéria, que prevejam os ilícitos
oriundos de sua contravenção e que condigam com o perfil do povo
brasileiro, aceitando como exemplo inicial, mas a ele não se limitando, as
normas de direito internacional.
Por esse motivo, elencam-se, exemplificativamente, como objetos a serem
tutelados 1) a exigência de consentimento prévio e revogável, 2) a liberdade
do paciente para escolher tomar ciência ou não do resultado dos testes, 3) o
sigilo dos dados genéticos, incomunicáveis a terceiros sem a autorização do
portador desses dados, 4) o acompanhamento psicológico do paciente, 4) a
exigência de realização de testes genéticos para a filiação ou para a
realização de vínculos empregatícios, 5) a qualificação do prescritor do testes
genético, 6) a qualificação da instituição responsável por realizar os testes
etc.
Ainda, é imperioso que essa atividade normativa observe e resguarde os
direitos da personalidade, em paridade com os direitos constitucionais à
dignidade e à intimidade e com os princípios da dignidade humana e da
primazia da pessoa humana, assegurados desde a concepção.
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