254
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO O DESENHO DE OBRA E A PRODUÇÃO DE ARQUITETURA TAÍS JAMRA TSUKUMO SÃO PAULO 2009

Tese Ta's - Capa

  • Upload
    vothuy

  • View
    248

  • Download
    10

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Tese Ta's - Capa

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

O DESENHO DE OBRA E A PRODUÇÃO DE ARQUITETURA

TAÍS JAMRA TSUKUMO

SÃO PAULO2009

Page 2: Tese Ta's - Capa
Page 3: Tese Ta's - Capa

O DESENHO DE OBRA E A PRODUÇÃO DE ARQUITETURA

TAÍS JAMRA TSUKUMO

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre

Área de concentraçãoTecnologia da Arquitetura

Orientação

Prof. Dr. Jorge Hajime Oseki (in memoriam) eProfa. Dra. Angela Maria Rocha

São PauloJunho de 2009

Page 4: Tese Ta's - Capa

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho,por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo epesquisa, desde que citada a fonte.

E-mail: [email protected]

II

Tsukumo, Taís JamraT882d O desenho de obra e a produção de arquitetura / Taís

Jamra Tsukumo. São Paulo, 2009.252 p.: il.

Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Tecnologia da Arquitetura) - FAUUSP.

Orientadores: Jorge Hajime Oseki (in memoriam) e ÂngelaMaria Rocha

1. Arquitetura (Produção) 2. Desenho arquitetônico3. Desenho técnico 4. Canteiro de obras 5. Divisão do trabalhoI. Título

CDU 72

Page 5: Tese Ta's - Capa

Resumo

Esta dissertação trata do desenho de obra, tomado como um meio deaproximação aos processos de produção do projeto e da obra e àsrelações que se estabelecem entre eles. O desenho de obra é propostocomo objeto de pesquisa, sobretudo, por representar mediação entremomentos e instâncias de concepção e de execução na produção doespaço, constituindo fruto do processo de projeto que orienta aconstrução em canteiro. A partir de aproximações teóricas ao desenho deobra, que o situam como instrumento técnico no modo de produção, foiestudado seu uso ao longo da história. Procurou-se entender os processosque engendraram a separação entre instâncias distintas de concepção ede execução na produção de arquitetura, determinados por uma crescentedivisão do trabalho. Essas aproximações teóricas e históricasfundamentam as questões que guiaram a observação do trabalho e asconversas com os agentes de projeto e de obra em quatro situaçõesconcretas de canteiros de obras residenciais em São Paulo. As análisessobre essas situações buscam compreender as determinações recíprocasentre os processos de produção do projeto e da obra e suas implicaçõespara o desenho de obra e para a produção de arquitetura.

Abstract

The building-work drawing and the production of architecture

The present dissertation discusses the building-work drawing, addressed asa means of approaching the production process of design and the building-works, as well as the relations established between them. The building-workdrawing is proposed as the research object, especially because it representsthe mediation between moments and instances of conception and ofconstruction in the production of space, and constitutes the result of theprocess of design that guides the construction in the building site. The useof building-work drawing was studied along history, starting from theoreticalapproaches that situate it as technical instrument in the mode of production.It aimed at understanding the processes that engendered the separationbetween distinct instances of conception and of construction in theproduction of architecture, determined by an increasing division of labor.These theoretical and historical approaches support the questions thatguided the observation of the labor activities and the conversations with theagents of projects and works in four specific situations of residential buildingsites in São Paulo. The analysis of these cases seeks to understand thereciprocal determinations between the production process of the design andthe building-work, and its implications for the building-work drawing and theproduction of architecture.

Key-words: Architecture (Production); Architectural drawing; Technicaldrawing; Building site; Division of labor.

III

Page 6: Tese Ta's - Capa
Page 7: Tese Ta's - Capa

Agradecimentos

Esta pesquisa contou inicialmente com o apoio do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e,posteriormente, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado deSão Paulo - FAPESP, instituições às quais agradeço o auxílioconcedido.

A Jorge Oseki (in memoriam), criador de espaços de discussão e dereflexão, desde os tempos da graduação, pelo estímulo naorientação e acolhimento. Sinto sua falta.

A Angela Rocha, que pude conhecer através do Jorge, no grupo deleituras, pela condução da banca de qualificação e pelo amparo naorientação para a finalização do trabalho.

A Renata Paoliello, pelas generosas contribuições, e a GeraldoPuntoni pela participação crítica na banca de qualificação.

A todos os entrevistados, que se dispuseram a compartilhar suasvivências de trabalho, sem o que as reflexões aqui apresentadasnão seriam possíveis.

Aos colegas do grupo de estudos do Capital e da Produção doEspaço com quem tanto aprendo. Especialmente a Luciana Ferrarae Guilherme Petrella, companheiros na orientação com o Jorge, e aRenata Moreira, Carolina Heldt e Ângela Pilotto, pelas conversas.

A Usina, que proporcionou um espaço de atuação e de formação.Especialmente a Beatriz Tone e Heloisa Diniz, que além dasentrevistas, contribuíram com comentários ao longo do trabalho.

A Ana Paula Bruno, pela amizade, e ao Guilherme, pela companhiae força na conclusão do trabalho. A Iara e ao Irineu.

A meus pais, Nina e Vivaldo, pelo apoio fundamental.

V

Page 8: Tese Ta's - Capa
Page 9: Tese Ta's - Capa

Sumário

Agradecimentos

Resumo / Abstract

Lista de Figuras

Lista de Quadros

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1O DESENHO DE OBRA: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS 1

1.1 O desenho como meio de comunicação e expressão da arquitetura 5

1.2 O desenho como instrumento de produção da arquitetura 16

O objeto arquitetônico como mercadoria

Processo de produção do objeto arquitetônico: a “forma canteiro”

O desenho para a produção do objeto arquitetônico

CAPÍTULO 2O USO DO DESENHO DE OBRA NA HISTÓRIA 29

2.1 Do não-desenho ao desenho na produção do espaço 41

Não-desenho/ Espaço analógico

Debuxo canônico/ Espaço cosmológico

2.2 Do desenho prático à ciência do desenho 50

Debuxo simbólico/ Espaço simbólico

Desenho como projeto e instrumento cognitivo/ Espaço perspectivo

Desenho abstrato/ Espaço capitalista

CAPÍTULO 3“DE PERTO E DE DENTRO”: APROXIMAÇÕES EMPÍRICAS AO DESENHO DE OBRA 71

3.1 Campo empírico da pesquisa 76

3.2 Primeira aproximação: processos de produção do projeto e suas implicações para o desenho de obra 92

Mutirão Paulo Freire

Edifício Aimberê 1749

Edifício Maison Alinne

Condomínio Parque do Sumaré

VII

Page 10: Tese Ta's - Capa

3.3 Segunda aproximação: tradução do projeto à obra – divisão ereunião do trabalho pelo uso do desenho no canteiro 150

Divisão do trabalho em canteiro

Reunião do trabalho pelo uso do desenho

3.4 Terceira aproximação: significados e limites do desenho de obra 175

Sobre significados do desenho de obra

Sobre limites do desenho de obra

CONSIDERAÇÕES FINAIS 195

REFERÊNCIAS 203

Bibliografia 205

Legenda das imagens 208

Lista de quadros

Quadro 1 – Referências históricas

Quadro 2 – Entrevistas realizadas, por obra

Quadro 3 – Roteiro para entrevistas

Quadro 4 – Entrevistas realizadas, em ordem cronológica

Lista de figuras

Figura I – Escola de agroecologia – reuniões de trabalho, com uso demaquetes, desenhos e tabelas

Figura II – Escola de agroecologia – desenhos para elaboração das peças,e oficina de construção do bason

Figura III – Escola de agroecologia – confecção das fôrmas e montagemdas placas de argamassa

Figura 1 - Representação da aldeia Pypyiny

Figura 2 - Representação da aldeia Ajawary

Figura 3 - Tablete de Umma, Mesopotâmia, 2000 a.C.

Figura 4 - Planta de um desembarcadouro, fragmento, Egito

Figura 5 - Desenho de um naos, papiro de Gur’Ab, Egito, 2500 a.C.

Figura 6 - Planta do Mosteiro de S. Gall, aprox. 820

Figura 7 - Páginas 30v, 32r e 32v do álbum de Villard de Honnecourt,1225-1250

VIII

Page 11: Tese Ta's - Capa

Figura 8 - Página 15r do álbum de Villard de Honnecourt, 1225-1250

Figura 9 - Compasso de Guidobaldo del Monte, séc. XVI

Figura 10 - Traçados geométricos e esquemas a partir de base quadrada,em diversos desenhos de Villard de Honnecourt

Figura 11 - Épura de uma cúpula pendente, folha 115 do tratado dePhilibert de l’Orme

Figura 12 - Esboço para estereotomia, Gérard Desargues, 1639

Figura 13 – Intersecção de um cilindro e de um plano, Gaspar Monge,Geometria descritiva – prancha XII, 1820

Figura 14 – Desenho de máquina rotativa à vapor

Figura 15 – Mutirão Paulo Freire - ocupação do terreno, discussão deprojeto em galpão construído pelo grupo, maquete eletrônica do projetofinal, início de um dia de mutirão, situação da obra em março de 2008

Figura 16 – Edifício Aimberê 1749 - abertura do site e perspectivasilustrativas do empreendimento

Figura 17 – Edifício Maison Alinne - abertura do site e perspectivasilustrativas do empreendimento

Figura 18 – Condomínio Parque do Sumaré - abertura do site, implantaçãoe perspectiva ilustrativas do empreendimento

Figura 19 – Mutirão Paulo Freire – exemplos dos desenhos de obra utilizados

Figura 20 – Edifício Aimberê 1749 – Fotos da fachada principal e da lateraldo edifício

Figura 21 – Esquema da seqüência de execução da alvenaria de umedifício e foto da construção do Edifício Maison Alinne em maio/08

Figura 22 – Perspectivas ilustrativas das fachadas de diversos projetos deItamar Berezin

Figura 23 – Condomínio Parque do Sumaré - Projeto de alvenaria e construçãodos prédios com uso de escantilhões e de gabaritos dos vãos de janela

IX

Page 12: Tese Ta's - Capa

X

Page 13: Tese Ta's - Capa

INTRODUÇÃO

XI

Page 14: Tese Ta's - Capa

XII

Page 15: Tese Ta's - Capa

Esta dissertação estuda os diversos usos e significados que odesenho de obra assume nas relações de produção da arquitetura edo espaço, a partir da observação do trabalho em quatro canteirosde obras residenciais em andamento em São Paulo. O desenho deobra, o desenho para a produção da arquitetura e da engenharia, étomado como objeto de pesquisa por constituir mediação entre osprocessos de produção do projeto e da obra, determinado históricae socialmente, podendo ser suporte de diversas relações entre osagentes envolvidos: relações de comunicação, dominação,exploração, cooperação, formação, entre outras.

A análise dos processos de produção do projeto e da obra e desuas implicações para o desenho de obra, a partir das quatrosituações concretas, espera reconhecer em que medida diferentestipos de obra e a representação necessária, utilizada para suaconstrução, acarretam diferentes relações de trabalho no canteiro e,por outro lado, em que medida as relações de trabalho determinama representação necessária para sua concretização. Ou seja, aoselecionar situações diversas, segundo critérios de porte das obras,do grau de industrialização do processo e de sua forma de gestão,esperamos observar diversas relações entre desenho e canteiro,contribuindo para a identificação de diferentes formas de inserçãodo arquiteto na produção do espaço.

Nesse sentido, coloca-se como pano de fundo um debate presentena arquitetura brasileira, principalmente no campo da habitaçãopopular, entre a aposta na industrialização e na racionalidade, paraa construção de uma sociedade justa, e o questionamento dasrelações de produção da arquitetura e da inserção do arquiteto numprojeto desenvolvimentista por vezes ambíguo. Ambigüidade estaque se encontra nas contradições do próprio modo de produção,cujo crescimento implica necessariamente na distribuição desigualdos valores produzidos socialmente.

Nesse debate, estamos em desacordo com a posição deautoridade, positiva, do arquiteto, na proposição de projetos e

XIII

Page 16: Tese Ta's - Capa

espaços para uma sociedade desigual e complexa, que traz umdescompasso entre o possível, enquanto potência, e o vivido, entreo que se concebe e o que se percebe, sem deixar de considerar apositividade que a capacidade de projetar e abstrair traz comopossibilidade futura de realização da cidadania, no sentido de uma(re) apropriação da produção do espaço.

Por outro lado, a crítica a essa posição de autoridade que situa otrabalho do arquiteto na divisão técnica e social do trabalho deixauma inquietação, num primeiro momento, ao negar o desenho comopossibilidade de contribuição na emancipação humana. Ao atribuirao desenho, como produto parcial e necessário à realização daconstrução, não apenas a função de instrumento técnico, mas aposição de instrumento de dominação, por determinar a forma dereunião dos trabalhos parcelares, característicos da manufatura,acaba também por atribuir à posição do arquiteto autoridade sobreo trabalho alheio, porém negativamente.

Esse debate é ainda bastante marcado por possibilidades deatuação profissional resumidas nas posições representadas porVilanova Artigas e Sérgio Ferro nos anos da ditadura militar brasileira.De um lado, o privilégio do projeto de arquitetura, em suas váriasescalas, como meio de atuação na sociedade, contribuindo para aconstrução de um ideário arquitetônico, que muitas vezes não serealiza. De outro, a busca pelo reconhecimento da cidade real e suasformas de produção, que ensejam novas maneiras de inserção doarquiteto na sociedade, através de outros meios, que não apenas oprojeto de arquitetura. Essas posições acabam configurando umadicotomia entre desenho e canteiro, do ponto de vista da arquitetura,que não favorecem a compreensão das possibilidades de atuaçãono sentido da qualificação das relações de produção do espaço, eassim do próprio espaço produzido.

Entre essas inquietações e acreditando no potencial da arquiteturapara a qualificação do espaço construído, que privilegia o uso (emoposição à troca), buscamos aprofundar o conhecimento sobre asrelações de produção da arquitetura atual. Entendemos aarquitetura e suas relações de produção não apenas pelo ideáriorepresentado nos projetos e desenhos que lhe dão suporte, masprincipalmente como construção, ou seja, pela materialidade de suaprodução e realizaçãoI. A arquitetura faz parte da produção materialdo espaço social – é produzida por relações sociais concretas,determinadas historicamente, relações essas de trabalho, de classe,de poder. Ou seja, a realização da obra arquitetônica não prescindede seu modo de produção material, como às vezes se faz crer aotomarmos a arquitetura como discurso estético e formal, no campodas idéias, independente do conteúdo social que apresenta. Ela éproduto das relações sociais e pode produzir ainda novas relações.É também manifestação do desenvolvimento técnico, da relaçãoentre o homem e a natureza, em que cada vez mais as relações de

XIV

I. A “questão da construção” foielaborada por Jorge HajimeOseki em sua dissertação demestrado, “Arquitetura emconstrução”, que a coloca comopossível complemento aoquadro referencial teórico deanálise sobre a produção doespaço urbano, ao aproximar aquestão urbana e a questão doalojamento, da habitação.

Page 17: Tese Ta's - Capa

trabalho são mediadas e controladas por determinações alheias aosprodutores, e a distância entre o trabalho daqueles que concebem edaqueles que executam aumenta.

A pesquisa procura olhar a produção arquitetônica inserida em seucontexto social (histórico, político e econômico), como um campode relações, ou seja, não como um campo autônomo, contandopara isso com uma abordagem mais próxima às ciências sociais, afim de contribuir para uma teoria da arquitetura que compreenda asrelações de produção que a determinam.

As questões que permeiam o debate exposto tratam então daseparação entre os trabalhos intelectual e manual e suas relações,da divisão do trabalho, técnica e social, na produção do espaço eda arquitetura, procurando compreender como essas categoriasabstratas estão representadas na experiência concreta a partir davivência de trabalho na produção de obras residenciais em SãoPaulo e da compreensão das formas como o arquiteto aí se insere.

Ponto inicial do entendimento dessas relações está na própriaconstituição da profissão do arquiteto e na separação entre ostrabalhos de concepção e de execução das obras. No curso dahistória e do desenvolvimento técnico, o arquiteto se separa, e cadavez mais se afasta, do canteiro de obras. Se antes o domínio sobre asferramentas de trabalho, os materiais, a geometria e a aritméticaencontravam-se em uma mesma pessoa – o mestre construtor – numaforma artesanal de trabalho, no Renascimento esses conhecimentos,mantidos em segredo pelas corporações de ofício, começam a sersistematizados e publicizados na forma de teorias. Ganhamautonomia, tornando-se ciência. São abstraídos da prática construtivae abrem caminho para o desenvolvimento de técnicas próprias àconcepção da obra, por um lado, e, por outro, à sua execução.

A recente presença da informática na produção do projeto colocaainda uma nova distância nesse processo. São meios maisespecializados que acarretam transformações nas técnicas derepresentação gráfica e nos modos de concepção do projeto. Alinguagem mesma da arquitetura passa por mudanças. O espaço“virtual” do computador é calculado e fragmentado a ponto depossibilitar geometrias não-euclidianas, dificilmente representadas emprojeções ortogonais. As novas tecnologias de projeto, como BIM –Building Information Modeling e CAD/CAM – Computer-Aided Designand Manufacturing, além de intensificarem o trabalho à distância devários projetistas, das diversas especialidades, sobre um mesmomodelo eletrônico tridimensional, visam à automação dos processosprodutivos, integrando através da informática o projeto e suaconfecção em máquinas controladas numericamente por computador.

Se o espaço está sendo representado e concebido cominstrumentos cada vez mais alheios aos da construção, interessa-nos compreender como se estabelece o diálogo na produção, quais

XV

Page 18: Tese Ta's - Capa

meios são necessários para a comunicação entre os responsáveispela concepção do projeto e aqueles que executam a obra, comose relacionam.

A identificação e a construção do objeto de pesquisa remetem àprática profissional e aos debates junto à assessoria técnica Usina –Centro de trabalhos para o ambiente habitadoII, onde trabalhei apósa conclusão da graduação em 2002. A formação das assessoriastécnicas aos movimentos sociais pelo direito à moradia recolocoupossibilidades para a prática do projeto de arquitetura em outrasbases, a partir de uma reflexão sobre a técnica e sobre o desenho,inseridas em relações mais diretas entre o arquiteto e a populaçãoorganizada, estabelecendo um diálogo entre “canteiro” e “desenho”III.

A experiência de assessoria a movimentos sociais na produção doespaço construído era permeada por um questionamento da práticaprofissional do arquiteto e de sua inserção social. Nas experiênciasde construção habitacional pelas associações de futurosmoradores, ligadas aos movimentos de moradia, por meio demutirão autogerido, por exemplo, foi criado um espaço departicipação na elaboração do projeto de arquitetura que contribuíapara rever possibilidades de inserção profissional e política naprodução do espaço. O diálogo na concepção do projeto dearquitetura, com agentes que em geral não são consultados, e umenvolvimento mais próximo com as atividades de canteiro traziamquestões teóricas para a prática profissional, que se colocava entãocomo objeto de reflexão. Um dos trabalhos realizados junto à Usinafoi a elaboração do estudo preliminar para a Associação Quilombodos Palmares – Movimento Sem Terra Leste 1, no início de 2004. Oprojeto, contratado pela associação, que firmou convênio com aprefeitura por meio da COHAB, inserido no Programa de Mutirões,em sua chamada terceira geração, deveria contemplar 200 unidadeshabitacionais e áreas de lazer e convívio. O processo de projeto foirealizado por meio de oficinas, elaboradas pela assessoria, a fim dese iniciar o processo de formação do grupo que iria não só gerir aconstrução do conjunto, mas também habitá-lo. As oficinasabordaram temas sobre as formas de morar em São Paulo, atrajetória e a experiência de moradia dos participantes, e exercíciosconjuntos de projeto que foram traduzidos e guiaram a elaboraçãodos estudos pelos arquitetos e técnicos sociais da assessoriaIV.Durante o processo de projeto, foi possível perceber os limites daparticipação, pelas questões técnicas e de atribuições envolvidas.Limites esses que não se pretendia ultrapassar, pois cada uma dasinstituições que participam do processo de construção do mutirãoautogerido, as associações ligadas ao movimento de moradia, acompanhia habitacional estatal e a assessoria técnica, tem papel einteresses definidos no processo, que visam objetivamente àconstrução de moradias. Dentre esses interesses, a assessorialidava com questões como a racionalização dos sistemasconstrutivos, para a otimização dos custos e a diminuição do

XVI

II. A Usina - Centro de trabalhospara o ambiente habitado é umaentidade sem fins lucrativos,formada em 1990, compostapor profissionais de diversasáreas do conhecimento quepresta assessoria técnica amovimentos populares e aadministrações públicas nasáreas de arquitetura, construçãoe planejamento urbano.

III. Em seu livro, “Arquiteturanova: Sérgio Ferro, FlávioImpério e Rodrigo Lefèvre, deArtigas aos mutirões” (SãoPaulo: Ed. 34, 2002), PedroArantes traça uma trajetóriaentre essas posições.

IV. Participaram dessaexperiência os arquitetos JoãoMarcos Lopes (coordenador),André Carrasco, GuilhermePetrella, Luciana Ferrara e TaísTsukumo, e o técnico socialLuciano Onça.

Page 19: Tese Ta's - Capa

trabalho em mutirão, a colaboração no fortalecimento dosmovimentos de moradia, que lutam pela realização de direitossociais, por meio de acesso aos fundos públicos, e a construção deprocessos autogestionários e cooperativos, tanto internos a cadamutirão e à própria assessoria, quanto entre eles.

Outro espaço importante de discussão das questões abordadas sedeu na experiência de formar uma cooperativa de construção, oCanteiroV, em que pedreiros, marceneiros, arquitetos, mestres de obra,trabalhavam juntos. Ali, a divisão técnica e social do trabalho,representada por seus membros, pôde ser experimentada evivenciada no dia a dia de inúmeras discussões sobre a constituiçãoda cooperativa, a forma de avaliação dos trabalhos, a divisão dastarefas e a troca de papéis, pedreiros participando da elaboração dosprojetos e arquitetos manipulando serras, pincéis, alicates. Uma daspremissas da cooperativa era a igual remuneração para todos os seusmembros, independentemente de sua formação, a partir de um valorfixo para a hora de trabalho. Se nas experiências de mutirãoautogerido o diálogo se estabelecia entre os arquitetos e demaistécnicos e os futuros moradores, também produtores, sobre o projetode moradia a ser construído, e aí não apenas o arquitetônico, nacooperativa, o diálogo se dava entre trabalhadores, e a própria divisãodo trabalho aparecia como questão, suscitando uma reflexão sobre asrelações entre capital e trabalho, por estar inserida no mercado,devendo “concorrer” com outras empresas, e sobre a própria técnicae o quanto ela é determinada pelo modo de produção.

Se o desenho no modo de produção atual é instrumento de dominação,a procura por alternativas na produção do espaço que visam distribuiros ganhos da exploração do trabalho entre os próprios produtoresencontra limites dados pelo próprio contexto onde se inserem. Comocompetir com as empresas capitalistas que formam seus preçosotimizando essas explorações em níveis cada vez mais agudos,utilizando para isso instrumentos técnicos, tais como o desenho? A“troca de papéis” experimentada no trabalho da cooperativa foiimportante como momento de formação mútua, entre os diversostrabalhos desenvolvidos, mas colocava uma inviabilidade no processo,entre outras razões, pelo tempo demandado para a aprendizagem dasdiversas tarefas com as quais não se estava familiarizado.

Era necessária uma aproximação à teoria para compreender tantoas proposições colocadas por essas experiências, quanto aspossibilidades concretas de intervir ou propor alternativas nacondição de arquiteto, já que ambas tratam da contribuiçãopossível pela prática profissional. E, nesse sentido, o encontro como grupo de estudosVI de “O capital”, de Karl Marx, e de “A produçãodo espaço”, de Henri Lefebvre, entre outros, possibilitou umaaproximação ao texto de Sérgio Ferro, “O canteiro e o desenho”,que apesar de permear as práticas desses grupos, não encontravaali espaço para aprofundamento.

XVII

V. A cooperativa Canteiroconsistia num espaçoexperimental buscando pornova articulação entre asfunções do arquiteto e deexecução de obras civis e demarcenaria. Envolvia atividadesde projeto, execução egerenciamento de obras,associando na forma decooperativa, arquitetos,estudantes e profissionais daconstrução civil e demarcenaria. Participaram dessaexperiência Francisco Barros,Pedro Ekman, Julia Saragoça,Renata Moreira, José Baravelli,William Itokazu, Carolina Heldtentre tantos outros.

VI. O grupo de estudos seformou ao final de 2004,realizado na FAUUSP ecoordenado pelos Profs. Drs.Jorge Hajime Oseki e ÂngelaMaria Rocha, com a presençade vários estudantes da pós-graduação e da graduação.

Page 20: Tese Ta's - Capa

O conhecimento e a análise dessas vivências, que também sãomarcantes pela procura de um constante diálogo entre visõesteóricas e experiências práticas, e de suas determinações concretasmotivaram o início da pesquisa de mestrado. Mas foi através dareflexão sobre uma experiência concreta no trabalho de construçãode uma escola de ensino médio técnico em agroecologia que oobjeto da pesquisa pôde ser identificado e, a partir daí, elaborado.

O projeto e a construção dessa escola, localizada no município deItapeva, no sul do estado de São Paulo, faziam parte de um projetomais amplo de desenvolvimento do Assentamento FazendaPirituba, fruto das lutas pela reforma agrária, conduzidas peloMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desde adécada de 80 na regiãoVII.

A proposta inicial, apresentada à UsinaVIII ao final de 2004, tratava dedesenvolver projeto arquitetônico para a escola como um todo e,num primeiro momento, de organizar e acompanhar a obra de umdos edifícios, que abrigaria os alojamentos, vestiários e salas deaula. O local indicado para a construção era a pocilga da antigafazenda, compreendendo quatro galpões e o trabalho foi iniciadopela reforma de um deles. Desde o início, as condições financeirase políticas indicavam que a obra seria desenvolvida comtrabalhadores não especializados, em regime de mutirão, por meiode brigadas de trabalho formadas por assentados e acampadosligados ao movimento.

Essa contingência nos conduziu a propor que a construção fosseaproveitada como um momento de formação, momento de troca deexperiências e elaboração conjunta do projeto arquitetônico e dassoluções construtivas. Assim, o projeto foi sendo desenvolvidoconcomitantemente à obra, em São Paulo, local do escritório dearquitetura, e os encontros na obra aconteciam quinzenalmente,momento em que eram realizadas reuniões de trabalho com todosos envolvidos. Os momentos das reuniões eram os de formaçãopropriamente ditos. As propostas dos arquitetos eram discutidas eaprimoradas em conjunto com os trabalhadores, que depoisindicavam atividades a serem desenvolvidas nos próximos quinzedias e construíam cronograma com atribuições para cada um,constituindo tabela de organização geral do trabalho.

Nessas reuniões tornou-se evidente a dificuldade de comunicaçãoque o desenho técnico implica, por conter código e constituirlinguagem especializada, condição que se intensificou pela nãoespecialização dos trabalhadores envolvidos. Mais ainda, para aexecução, os desenhos elaborados pelos arquitetos não serviamcomo meio de comunicação. Se, por um lado, havia a necessidadedos arquitetos de projetar, conceber e desenhar o que seriaconstruído, buscando otimizar o trabalho e os custos, devidoprincipalmente a exigências dos órgãos financiadores e à exigüidadedos recursos, por outro, os trabalhadores detinham conhecimentos

XVIII

VII. Para uma melhorcompreensão do contexto desseassentamento, ver FELTRAN,Gabriel de Santis. Limites davirtude isolada: movimentossociais e política no Brasil. In:Bettina Levy (org.). No prelo.Buenos Aires: CLACSO, 2006.

VIII. Participaram da experiênciade construção da escola deagroecologia os arquitetosDaniela Motisuke, MelissaMatsunaga, Renata Moreira,Taís Tsukumo e William Itokazu.

Page 21: Tese Ta's - Capa

empíricos sobre a maneira de execução que muitas vezesprescindiam dos desenhos dos arquitetos. A presença dos arquitetosno canteiro de obras poderia criar condições para um diálogo maisefetivo através de suportes e instrumentos outros, além do desenho.De qualquer forma, os momentos de trabalho conjunto representavamuma desconstrução do projeto arquitetônico trazido pronto, e umareelaboração, dentro de certos limites, das soluções apresentadas.

Numa situação específica, para a construção de sanitários secos noalojamento, foi proposta a construção do bason - um caixote deargamassa armadaIX. Por ser algo novo, nunca experimentado pelaequipe, foi sugerido um momento diferenciado na obra: uma oficinade três dias, em que executaríamos um bason juntos, buscandoenvolver também outros assentados da região, que lidam com oproblema no cotidiano. A fim de introduzir os trabalhadores nasquestões executivas, levamos desenhos técnicos do bason e dasplacas que o compõem e uma maquete em escala, desmontável,que possibilitava a visualização simultânea de cada placa-componente e do caixote montado. Propusemos, então, que, apartir da observação da maquete, os trabalhadores desenhassem

XIX

Figura IEscola de agroecologia –reuniões de trabalho, com uso de maquetes,desenhos e tabelas (fotos daautora, julho 2005)

Figura IIEscola de agroecologia –desenhos para elaboração daspeças, e oficina de construçãodo bason (fotos da autora,agosto 2005)

IX. O bason é um tipo desanitário seco que, comooutros, dispensa o uso dedescarga de água econseqüentemente seuposterior tratamento,protegendo as águas dosubsolo da contaminação. VerLENGEN, Johan van. Manual doarquiteto descalço. PortoAlegre: Livraria do arquiteto; Riode Janeiro: TIBÁ, 2004.

Page 22: Tese Ta's - Capa

cada placa-componente do bason, como meio de compreensão doque seria executado em seguida, como projetação.

Depois dessa primeira aproximação às questões executivas,partimos para a confecção das fôrmas das placas. Para isso,levamos folhas de borracha que serviriam de gabaritos das fôrmas,executadas em madeirite. Nesse momento, foram utilizadosinstrumentos de desenho técnico e de locação em obra, de maiorfamiliaridade para os trabalhadores.

O que se buscou foi uma aproximação entre os instrumentos dedesenho e os instrumentos de obra, régua e esquadro, trena eprumo, lápis e linha. E também o exercício da concepção,imaginada, anterior à confecção, praticada.

Apesar de experiência pontual e singela, pudemos percebercaracterísticas diferentes dos trabalhos e sua divisão, apossibilidade da troca de experiências, o desenho como meio dediálogo possível, e também possibilidades de investigação dasformas e códigos do desenho como linguagem, que facilitariamesse diálogo. O “desenhar” em escala 1:1, real, para a execuçãodos moldes de borracha foi momento de diálogo importante,projetação e execução num mesmo suporte e ao mesmo tempo.Por outro lado, percebemos como o corpo se molda aosinstrumentos que utiliza, e não apenas o inverso, a dificuldade quealguns dos trabalhadores tinham em segurar um lápis, ou, ainabilidade de um arquiteto ao usar um alicate.

Em outra situação, o Mutirão Paulo Freire, que também pudeacompanhar através da Usina, o projeto executivo, que compõe aetapa final de concepção, novamente não era apropriado para acomunicação com a obra. A partir dele, foi necessário elaboraroutros desenhos. Ao invés da divisão “setorial” dos projetos,constante do projeto executivo (arquitetura, estrutura – fôrmas earmação, instalações elétricas e hidráulicas etc.), os desenhos eramfeitos para cada etapa da obra (escavações, fundações – brocas ebaldrames, montagem de lajes, alvenarias etc.) e continhaminformações também sobre a quantidade de materiais necessáriospara aquela atividade e alguns procedimentos executivos. Alémdisso, a própria representação gráfica e o suporte dos desenhos, otamanho da folha, por exemplo, eram mais apropriáveis, menos

XX

Figura IIIEscola de agroecologia –confecção das fôrmas emontagem das placas deargamassa (fotos da autora,agosto 2005)

Page 23: Tese Ta's - Capa

abstratos, mais ilustrativos. A linguagem técnica do desenho estavasendo adaptada para as condições de realização da obra, que aosfins de semana era tocada pelos mutirantes, futuros moradores, quenão são necessariamente trabalhadores da construção civil.Destaca-se também o fato de que os técnicos que participaram daelaboração do projeto estavam presentes no canteiro, contribuindoem seu gerenciamento e acompanhamento técnico. Os desenhoscontinuaram a ser elaborados para as diversas etapas de obra,como meio de comunicação do trabalho a ser feito, mas tambémcomo facilitadores do gerenciamento da obra, contribuindo naquantificação dos materiais e na elaboração de cronogramas.

Nesses canteiros, a presença de outros meios de comunicação erauma constante. Os rabiscos e croquis para a compreensão de umasituação, um detalhe da obra, a utilização de marcações edesenhos no próprio edifício em construção, gestos e conversas, acomunicação oral, e até a execução direta, sem a mediação ouabstração do projeto, foram exemplos de “desenho” para alémdaquele sistematizado em projeto, segundo os padrões do desenhotécnico, feito pelos arquitetos e engenheiros em seus escritórios. Aobra necessita também de outros recursos, outras mediações, natradução do projeto.

Em geral, no setor da construção civil de produção de edificações,as etapas e os agentes de projeto e de obra estão definidos e sãodistintos (pelo menos aparentemente). O projeto é contratado comoproduto, ficando a cargo do escritório de arquitetura, ou daincorporadora/ construtora, coordenar as diversas etapas (estudospreliminares, ante-projetos e projetos executivos) e centralizar ecompatibilizar os diversos segmentos que compõem o todo(arquitetura, estrutura, instalações etc.). Uma vez pronto o projetoexecutivo, o produto está “finalizado”, e a obra se inicia com outrosagentes. Cabe agora à incorporadora/ construtora coordenar ostrabalhos de obra, contratando a mão-de-obra e adquirindo osmateriais necessários. Os técnicos que participaram da etapa deprojeto raramente são solicitados no canteiro. Daí em diante, oprojeto é mais um dos produtos que compõem o leque denecessidades para a realização da obra.

A partir da observação de que o desenho não é a única forma decomunicação do projeto a ser realizado presente no canteiro deobras, a pesquisa foi orientada no sentido de investigar o desenhode obra, como produto final do processo de projeto que seráutilizado no canteiro, e essas outras formas de “desenho” emcanteiro, tanto nos mutirões, em que o próprio processo e divisão dotrabalho já apresentam distinções em relação ao canteiro“convencional”, quanto em obras do mercado imobiliário residencial.

O desenho de obra parece ser importante, mas não o único, suportee mediação para o diálogo entre aqueles que concebem e aquelesque executam a obra, podendo indicar formas de inserção do

XXI

Page 24: Tese Ta's - Capa

arquiteto na produção do espaço, por ser produto de seu trabalho.Também, o desenho de obra foi tomado como meio de aproximaçãoà história e à produção da arquitetura, por ser produto de relaçõessociais e do modo de produção hegemônico, constituindo registromaterial e cultural de certo tempo. A pesquisa foi então conduzida,mais especificamente, para o conhecimento da produção daarquitetura através do desenho de obra, ou ainda, para oconhecimento dos usos e significados do desenho de obra naprodução da arquitetura.

A dissertação espera contribuir para aprofundar o conhecimentosobre as relações de produção da arquitetura, ou da construção, nomodo de produção atual, através do uso do desenho de obra nesseprocesso, pelos diversos agentes envolvidos. Procura aindaexplorar os limites do desenho de obra, de comunicação, de ordeme de prescrição e, também, saber como são preenchidas, na práticaconstrutiva e no processo de tradução do projeto à obra, as lacunasdeixadas pela separação dos momentos de concepção e deexecução.

Foi observado o trabalho em quatro canteiros de edifícioshabitacionais em andamento em São Paulo, onde foram realizadasentrevistas com agentes envolvidos no processo produtivo, entrearquitetos, engenheiros, mestres, encarregados, pedreiros eajudantes. Nessas situações, foi possível presenciar várias etapasdo processo de obra, as diferenças de porte, forma de gestão etécnica construtiva. Procurou-se com isso encontrar variedade dasformas de relação entre os trabalhadores, que possibilitassemexperimentar diversas formas de mediação no processo construtivo,diversidade de instrumentos, hierarquias e determinações.

No Capítulo 1, apresentamos uma aproximação teórica ao objeto depesquisa, o desenho de obra, que contribuiu para formular questõesa serem estudadas através da pesquisa histórica e da pesquisa decampo. O desenho de obra é situado como um dos tipos dedesenho de arquitetura, constituindo o produto do processo deprojeto que orienta a execução. Por outro lado, ao tomá-lo comoinstrumento técnico de produção, suas determinações concretas,fundadas na separação dos momentos de concepção e de execuçãodas obras em instâncias distintas, começam a aparecer e colocamquestões para a pesquisa histórica, apresentada no Capítulo 2 – Ouso do desenho de obra na história. As passagens históricas,apresentadas em duas partes, procuram compreender os processosde separação que fundamentam o desenho de obra e que sãoacompanhados pelo processo de constituição da própria linguagemdo desenho em um sentido cada vez mais técnico. Foram abordadosos usos do desenho de obra ao longo da história, procurandoidentificar as mudanças nas relações entre canteiro e desenho,motivadas por processos sociais mais amplos. Procuramosidentificar quais qualidades o desenho de obra vai perdendo e

XXII

Page 25: Tese Ta's - Capa

ganhando, nos processos de racionalização e de industrialização daprodução do espaço, representadas em um quadro de referências.Ao identificar a gênese dos processos históricos que marcam odesenho de obra atualmente, foi possível uma aproximação àssituações concretas, com um olhar mais fundamentado.

A apresentação das situações pesquisadas e a análise sobre osseus processos produtivos, do projeto e da obra compõem oconteúdo do Capítulo 3 – “De perto e de dentro”: aproximaçõesempíricas ao desenho de obra. O capítulo foi organizado em quatropartes. A primeira apresenta as situações escolhidas e a trajetóriade aproximação a elas, bem como a elaboração do roteiro deentrevistas e os entrevistados. Em seguida, as análises sobre assituações e sobre as entrevistas são apresentadas em três partes.Assim, na primeira aproximação analítica (3.2 Processos deprodução do projeto e suas implicações para o desenho de obra)procuramos apresentar as determinações do desenho de obra quese relacionam aos contextos de cada situação, nos aproximandodos processos produtivos que têm como fruto os desenhosexecutivos e dos processos de produção em canteiro. Na segunda(3.3 Tradução do projeto à obra: divisão e reunião do trabalho pelouso do desenho no canteiro), são descritos os postos de trabalhoem canteiro que acabam por determinar o modo como o desenho éusado ao longo da construção na tradução do projeto. Em umaterceira aproximação (3.4 Significados e limites do desenho de obra)são reunidas as considerações sobre a percepção que se tem dodesenho em canteiro e sobre seus limites, principalmente nacomunicação e prescrição dos trabalhos.

As análises apresentadas procuram aprofundar as questões de quetrata a pesquisa de mestrado, qualificando o debate acerca dasrelações entre canteiro e desenho, em busca de suas determinações.

XXIII

Page 26: Tese Ta's - Capa

XXIV

Page 27: Tese Ta's - Capa

CAPÍTULO 1O DESENHO DE OBRA:APROXIMAÇÕES TEÓRICAS

Page 28: Tese Ta's - Capa
Page 29: Tese Ta's - Capa

O desenho para a arquitetura assume diversos significados e pode serabordado de diversas maneiras. Como linguagem da arquitetura, é seumeio de expressão e de comunicação e o seu estudo pode evidenciaro processo de criação de um projeto, as intenções de seus autores, asrelações entre a concepção do espaço e sua representação. Podetambém contribuir para a identificação de categorias de análise quepossibilitem conhecer como a estrutura dessa linguagem vem seconstituindo ao longo da história. O desenho pode ser tomadotambém como instrumento de trabalho e de produção, produto dediversos momentos da concepção do projeto que irá ao final doprocesso servir à sua comunicação para aqueles que irão executar aobra. Nesse sentido, o desenho participa de processos de concepçãoe de produção do espaço, servindo a funções práticas, como meio ecomo fim, recebendo outros significados, para além daqueles que sepode conhecer estudando-o como linguagem.

Um texto que tem sido considerado fundamental para acompreensão do significado do desenho para a arquitetura, nocontexto da pesquisa, é “O desenho” de Vilanova Artigas, aulainaugural pronunciada em 1967 na FAUUSP, que reflete o momentohistórico por que passava o país diante do retrocesso políticoimposto pelo golpe de 1964. Nesse texto, ao resgatar a origem e osentido do termo desenho, que “se de um lado é risco, traçado,mediação para expressão de um plano a realizar, linguagem de umatécnica construtiva, de outro lado é desígnio, intenção, propósito,projeto humano no sentido de proposta do espírito” (ARTIGAS,1975, p. 9), sentido este cunhado no período do Renascimento, oautor indica também uma direção para a arquitetura e o desenhomodernos, de caráter até certo ponto utópico, que agora devereconciliar a arte e a técnica na produção industrial, marcada pelopredomínio da máquina e da tecnologia. Aponta um caminhopossível para a contribuição da arquitetura na superação dosproblemas sociais brasileiros, apostando no desenho enquantoprojeto, racionalidade técnica e sensibilidade artística, comocapacidade humana de idear e realizar seu destino.

3

Page 30: Tese Ta's - Capa

O forte sentido propositivo do texto deixa de lado a idéia daneutralidade da prática arquitetônica e lança ao debate aspossibilidades de um desenho que seja instrumento para aemancipação social, com sentido humanista.

Se, por um lado, o desenho é linguagem, meio de comunicação,traços sobre o papel, expressão da forma da arquitetura, por outro, édesígnio, projeto, expressão de seu conteúdo. O estudo do desenhode arquitetura implica então no estudo de seu duplo caráter, que seassenta sobre as bases materiais concretas, as relações de produçãohistoricamente constituídas que, ao mesmo tempo, determinam seuideário e as condições de sua realização. A arquitetura, situando-seentre técnica e arte, compõe o campo da cultura, criando e reiterandovalores simbólicos, por meio da produção material de valoreseconômicos. O desenho, situando-se entre a idéia arquitetônica e suaexpressão, como imagem determinada, participa também de outramediação, entre a imagem e sua concretização, assumindo nessasmediações características técnicas e artísticas próprias.

A elaboração de desenhos constitui prática social recorrente naprodução do espaço. Ao longo da história, podemos verificar diversosusos e significados que o desenho, como representação gráfica de umobjeto a ser construído, assume na produção da arquitetura. Em cadamomento, o desenho serve a um propósito e a uma necessidade; édeterminado por relações culturais e modos de produção; condensaconhecimentos técnicos, científicos e artísticos; assume sentidospolíticos e econômicos; e possui materialidade que deve condizer comas condições do desenvolvimento tecnológico contemporâneo à suafeitura. Por essas razões, essa prática está sendo tomada como meiode aproximação às relações de produção da arquitetura, pois podecontribuir para o conhecimento das determinações concretas daprática do arquiteto no modo de produção atual. O desenho de obrapode ser então um bom indicador das relações de produção que seestabelecem entre aqueles que concebem e aqueles que executam,principalmente por representar mediação dessa relação.

Partimos da compreensão do desenho como linguagem, como meiode comunicação e expressão técnica e artística, em sua formaabstrata e supostamente neutra, para sua inserção no contextohistórico e social concreto, enquanto técnica de produçãodeterminada. Esse movimento procura passar do entendimento dalinguagem do desenho em sua objetividade descrita e conhecida porsua estrutura, estática, à compreensão das funções práticas que elatem cumprido ao longo da história (BOURDIEU, 2003, p.44). Essasfunções são próprias à sua condição de linguagem da arquitetura, decomunicação e de conhecimento, mas também, políticas eeconômicas quando abordadas a partir da prática social. Dessa forma,o interesse da pesquisa está na observação, descrição e interpretaçãodo uso que se faz do desenho de obra atualmente, inserido emdeterminado contexto e a partir de certas situações concretas.

4

Page 31: Tese Ta's - Capa

1.1O desenho como meio de comunicação eexpressão da arquitetura

O conhecimento do desenho de arquitetura como linguagem podecontribuir para a compreensão da constituição do “campo gráficoarquitetônico” em sua autonomia tanto em relação à própriaarquitetura quanto em relação a outros campos produtivos quetambém utilizam o desenho como mediação. Essa autonomiaaparece, por um lado, como uma valorização dos desenhos dearquitetura independente do valor arquitetônico das obras querepresentam e, por outro, como fator da própria constituição docampo arquitetônico1.

Um trabalho pioneiro de sistematização para uma teoria do desenhode arquitetura, que propõe estudar como as idéias e realidadesarquitetônicas se refletem num plano gráfico, a partir de uma teoriageral da arquitetura e de uma breve pesquisa histórica, já que umahistória específica sobre esse tipo de grafia ainda está por serelaborada, encontra-se no livro “El dibujo de arquitectura”, de JorgeSainz, arquiteto e professor espanhol. No livro, fruto de pesquisa dedoutorado realizada em 1985, o autor defende a tese de que entreos desenhos artísticos e os desenhos técnicos configura-se um“campo gráfico” próprio à arquitetura, o desenho de arquitetura,propondo uma abordagem específica que une a visão sobre osdesenhos reconhecidos por seu valor estético e expressivo comaquela que trata os desenhos como instrumento de comunicação aserviço do arquiteto, ou seja, como instrumento técnico. O autorconsidera que o desenho de arquitetura possui característicaspeculiares que o fazem transcender os simples aspectos técnicosou artísticos para alcançar a categoria de um verdadeiro “sistemagráfico” específico da arquitetura (SAINZ, 2005, p. 14).

Nesse sentido, o desenho de arquitetura engloba desde os esboçose croquis iniciais que traduzem em imagem as idéias epensamentos dos arquitetos (mesmo aqueles que não sãoedificáveis); os desenhos de levantamento e documentação;modelos e esquemas de soluções espaciais; aqueles produzidospara apresentação dos projetos a clientes e patrocinadores;ilustrações e análises gráficas de obras; até os desenhosexecutivos, propriamente realizados para a construção dos edifícios.O desenho de arquitetura compreende então tanto desenhosautorais, feitos de forma mais livre e pessoal, no decorrer doprocesso de criação do projeto, até os desenhos padronizadosconforme as normas técnicas vigentes, que se aproximam de umalinguagem determinada e, na maioria das vezes, são elaborados porequipes especializadas como a última etapa de um projeto, ou seja,os desenhos executivos.

5

1. A noção de campo adotadana pesquisa procura seaproximar daquela elaboradapor Pierre Bourdieu, como um“campo de forças, e também delutas que visam transformar essecampo de forças” (BOURDIEU,2003, p. 38), ou seja, um campoé um conjunto de instituiçõessociais, indivíduos e discursosque se suportam mutuamente,espaço de um sistema derelações onde cada membroexerce uma força proporcional àcomposição e à natureza docapital específico (econômico ousimbólico) que controla, e noqual competem por seucontrole. No caso da arquitetura,esse campo seria constituídopor “arquitetos, críticos,professores de arquitetura,construtores, todo tipo declientes, a parcela do Estadoenvolvida com a construção,instituições financeiras e, ainda,o discurso arquitetônico e asexigências legais quanto aedificações, entre outras coisas”(STEVENS, 2003, p. 91).

Page 32: Tese Ta's - Capa

Diante da ampla variedade de formas e conteúdos propostos peladelimitação do domínio do desenho de arquitetura, esse autorestabelece alguns conceitos preliminares que orientaram aconstrução de categorias de análise para seu estudo.

Sainz ressalta que o interesse e a importância do estudo dodesenho como campo específico da disciplina da arquiteturaencontram-se no fato dele se situar entre “a idéia arquitetônica e arealidade construída”, podendo ser tomado como atividade artística– o desenho em si; por seu interesse documental – o desenho emrelação ao que representa; e na relação que mantém com odesenvolvimento da própria arquitetura, como indício da evoluçãoartística e técnica da disciplina, o que transcende suas finalidadesinstrumentais ou expressivas (SAINZ, 2005, p. 18). Essa abordagemprivilegia aspectos da relação entre desenho e arquitetura no âmbitoda tradução das idéias e conceitos espaciais arquitetônicos aimagens gráficas, portanto, no campo do ideário arquitetônicorepresentado pelos desenhos. Mas possibilita também que odesenho seja tomado com indício dos processos produtivos de queparticipa e das relações entre arquitetura e construção.

Assim, é proposto pelo autor o estudo do desenho de arquiteturacomo se fosse uma linguagem para aprofundar a organização darepresentação gráfica em arquitetura e se aproximar de sua estruturaespecífica, os elementos que a compõem e as relações que seestabelecem entre eles. Apesar da constatação de que o desenho dearquitetura não constitui uma linguagem, nos termos colocadospelos lingüistas e semiólogos, e sim mais um dos sistemas de signosde caráter não lingüístico, ou meio de comunicação.

Uma das características do desenho de arquitetura é seu duplocaráter de simultaneamente servir como meio de comunicação e designificação. Um plano de projeto é, sem dúvida, comunicativo: écomposto de alguns sinais que o receptor deve saber interpretar ese faz para que assim seja, para que se construa referido projeto.Portanto, o desenho faz parte de um meio de comunicação, quepode chegar a constituir um sistema, se esse meio utiliza elementose relações baseadas em convenções, como é o caso dos grafismostécnicos de projetos de instalações hidráulicas e elétricas, porexemplo. Como meio de comunicação há a necessidade de seutilizar um código que permita ao emissor traduzir os pensamentos asignos gráficos e ao receptor decodificar essa mensagem paratornar a convertê-la em idéias (SAINZ, 2005, p. 71). No entanto, umrascunho inicial que com quatro traços representa a primeira idéia doprojeto não tem pretensão de comunicar nada a ninguém, a não sera seu próprio autor. Mas é, por outro lado, um indício das intençõesde seu criador e, portanto, faz parte de um meio de significação. Domesmo modo, os desenhos de obras diversas, de diferentes épocase localidades, quando uniformizados para uma publicação, porexemplo, representam idéias arquitetônicas conforme uma mesma

6

Page 33: Tese Ta's - Capa

convenção e só se diferenciam no que comunicam e não no quesignificam. Enquanto um desenho arquitetônico medieval e outrobarroco se diferenciam à simples vista, não só pela mensagem desua comunicação, mas também pelo conteúdo de sua significação(SAINZ, 2005, p. 27). Esse duplo caráter é um dos motivos pelo qualo desenho de arquitetura não pode ser considerado uma linguagemde forma estrita. Sua leitura implica em interpretações, acomunicação não se estabelece de forma imediata.

Por um lado, o desenho de arquitetura aproxima-se da idéia de um“código gráfico”, entendido como um sistema de convençõesexplícitas, preestabelecidas e imperativas que funcionam como signossubstitutivos. O sentido estrito de código poderia ser encontrado nosdesenhos de alto conteúdo tecnológico, em que a leitura pressupõe oconhecimento de determinada convenção, estabelecida no tempo eno espaço. Por outro lado, a linguagem gráfica tem caráter universal eintuitivo por estar baseada na percepção visual e por utilizar signosicônicos. Sua leitura não necessita de tradutores, a comunicaçãoatravés da imagem transita mais facilmente no tempo e no espaço doque através de um texto, por exemplo, em que se deve dominar alíngua em que está escrito, ao menos.

Os desenhos técnicos arquitetônicos, que mais se aproximam dalinguagem dos desenhos realizados para a produção de objetosindustrializados, são considerados por Sainz como exemplos dedesenho de arquitetura que ocupam um lugar marginal, não sendorepresentativos da prática habitual do arquiteto e de seus desenhosmais significativos, que manteriam ainda um caráter expressivo eautoral. Mas, com a disseminação do uso da computação gráficacomo ferramenta não só para a composição dos desenhos executivos,técnicos, mas também para a concepção do projeto, surgem novaspossibilidades e questões para a arquitetura. Como a possibilidade dereprodução dos desenhos, projetos e soluções, incrementada pelo usodo computador, repercutem na produção da arquitetura e na inserçãodo arquiteto nos processos produtivos? Ou ainda, a uma crescenteconvenção do desenho corresponde uma padronização da arquitetura,dos projetos? Quais as relações entre a padronização de projetos, apré-fabricação de elementos construtivos, a racionalização do canteirode obras e as novas possibilidades técnicas de desenho?

O autor dedica-se a delimitar o domínio estrito em que se move odesenho de arquitetura, a fim de valorizá-lo como distinto dodesenho artístico e do desenho técnico, justamente pelo valor doque representa, a própria arquitetura, entendida como campo quecombina valores artísticos e técnicos. Sendo assim, o meio gráficono qual se desenvolve o desenho de arquitetura ganha amplitudeque vai do desenho autoral ao desenho padronizado; dos primeirosrabiscos que dão forma às idéias arquitetônicas, às diversaspranchas que compõem o projeto executivo; de meio a linguagemgráfica, entre finalidades funcionais, formais e técnicas.

7

Page 34: Tese Ta's - Capa

Podemos observar que essa amplitude conhecida atualmentecorresponde, em certa medida, ao próprio desenvolvimento históricodo desenho enquanto técnica – se nos primeiros grafismos já estápresente o uso da geometria, na construção e representação deproporções e vistas, seu desenvolvimento acontece no sentido doestabelecimento de convenções que tornam possível representarquaisquer objetos segundo uma mesma linguagem gráfica. Ao seaproximar de uma linguagem gráfica, o desenho de arquiteturacomeça a extrapolar a finalidade de representar o ideárioarquitetônico, que se materializa na produção do projeto dearquitetura, e passa a estabelecer relações com outros camposprodutivos, entre eles, o da engenharia e dos desenhos técnicos. Deuma situação primeira em que o desenho se apresenta comoinstrumento imediato para a concepção e a representação dos objetosa se construir, sendo usado também no próprio canteiro de obras, odesenho passa a representar situações cada vez mais mediadas, queavançam com a divisão do trabalho, fazendo-se necessária a adoçãode convenções para que a comunicação se estabeleça.

Outra característica atribuída por Sainz ao desenho de arquitetura,para além da representação gráfica, consiste no sentido de criação ouinvenção que o próprio termo vai assumindo ao longo da história.Desde suas primeiras formulações teóricas no Renascimento, odesenho de arquitetura foi concebido como algo que transcende osimples instrumento de que se valem os arquitetos para que seusprojetos se tornem realidade. Nessa época, o desenho começa a serentendido como um procedimento criativo de busca e indagação deidéias artísticas, que imediatamente depois de concebidas, “seplasmam e se congelam em um ponto determinado de seu processode desenvolvimento”. Portanto, além de ser um instrumento deprodução, estamos diante de “um autêntico meio de indução egeração de concepções arquitetônicas no sentido mais amplo dotermo” (SAINZ, 2005, p. 51). A representação gráfica seria então odesenho externo, ou seja, a concretização de um desenho interno, daidéia mental do arquiteto; e o ato de desenhar, parte integrante eimpulsora da própria atividade criativa. E, nesse sentido, começa aficar mais claro o que o autor denomina “campo gráfico arquitetônico”:

“Atualmente, existe a tendência de separar claramente o instrumentográfico de produção de arquitetura do autêntico desenho arquitetônico,que tem seus valores próprios e diferenciados dos que podem seratribuídos ao desenho como arte em geral. Se reconhece no desenhode arquitetura um duplo papel de comunicação e de significaçãodentro da atividade do arquiteto. Esse tipo de desenhos não énormalmente exposto como uma obra artística que se deve admirarpendurada na parede. Mas tampouco se limita à execução de gráficosinequívocos que o construtor deve interpretar sem vacilação. Se aoprimeiro freqüentemente denominamos desenho “artístico” e aosegundo, desenho “técnico”, temos que dizer que o desenhoarquitetônico é algo distinto. Pode compartilhar alguns valores e algunsprocedimentos com esses dois tipos de desenho, mas não é nem a

8

Page 35: Tese Ta's - Capa

soma de ambos, nem o conjunto de suas características comuns. Seucaráter distintivo vem exatamente de seu objeto, a arquitetura, e daíntima relação que mantém com ela.” (SAINZ, 2005, p. 58)

Essa característica do desenho remete à sua valorização como umcampo autônomo, pois o ato de desenhar, em si, produz valoresculturais. Nesse sentido, é bastante significativo que o termo desenhocomece a ser entendido como desígnio no momento em que seconstitui o campo arquitetônico como distinto ao campo daconstrução e ao da engenharia, a partir do Renascimento. A distinçãoentre esses campos se dá pelos aspectos artísticos e criativos que setornam próprios ao campo arquitetônico, presentes nos tratados eteorias que irão reger sua produção a partir daí. Essa distinçãopossibilitou a própria noção atual de um campo gráfico autônomo,específico da arquitetura, em relação ao campo do desenho técnico,do qual também irá se servir. O termo assume então o sentido deprojeto, intenção, uma linguagem que expressa tanto a técnicaquanto a arte da construção do espaço, a arquitetura.

“Enquanto eram considerados apenas como ferramentas, osdesenhos de arquitetura desapareciam imediatamente após haveremcumprido sua missão. Os pergaminhos eram como lousas nas quaisse traçava e se apagava à medida que ia avançando a construçãodo edifício gótico. (...) Quando, além de úteis, começaram a serolhados como portadores de valores estéticos, seus admiradores –não seus autores – começaram a conservá-los. (...) Os desenhosdeviam durar para que os homens aprendessem e recordassem.”(SAINZ, 2005, p. 64)

Aprofundando a noção do “campo gráfico arquitetônico”, o autorestabelece algumas categorias de análise que podem contribuir para oconhecimento do desenho de arquitetura como meio de comunicaçãoe expressão ao longo da história (SAINZ, 2005, p. 45). São elas:

- o uso: finalidades e empregos que cumpriram e ainda cumprem osdesenhos de arquitetura;

- o modo de apresentação: referente aos aspectos formais dosdesenhos - sistemas de representação, geométricos ou não;variáveis gráficas, como linhas, manchas, cores; e presença ou nãode linguagem alfanumérica, como cotas e legendas; e

- a técnica gráfica: os procedimentos, suportes e materiais utilizadosem sua produção ou reprodução.

Dessa forma, “um desenho de arquitetura consiste em uma imagemarquitetônica realizada dentro de um determinado estilo gráfico [queengloba os aspectos formais e técnicos] e com uma determinadafinalidade arquitetônica” (SAINZ, 2005, p. 46).

Ainda, o estudo estabelece qualidades e atributos do desenho dearquitetura, resumidas a seguir, que acabam por compor esse“campo gráfico” específico. São características heterogêneas quepodem ser sintetizadas em uma propriedade geral única: o desenhode arquitetura deve ser capaz de representar todos e cada um dos

9

Page 36: Tese Ta's - Capa

valores, categorias e dimensões que são próprios da arquitetura;deve ter capacidade de refletir os aspectos funcionais, formais etécnicos (SAINZ, 2005, p. 77-8):

1. Características gerais: utilidade, beleza, solidez – característicasgerais próprias aos objetos arquitetônicos, identificadas na Grécia eRoma antiga (Vitrúvio); a utilidade do desenho está em constituir ummeio para se conseguir um fim; a beleza se faz presente naqualidade estética dos próprios desenhos; a solidez do desenhoestá ligada à sua valorização como documento, ao reconhecimentode que possui valor em si, como objeto artístico, quando deixa deser mera ferramenta descartada ao final da construção.

2. Características intrínsecas: estático, fragmentário, constante,produto artesanal ou manufaturado – o desenho de arquiteturapossui características contrárias às da experiência arquitetônica;um desenho é estático, não possibilita a mesma experiência que opercurso em uma obra arquitetônica, não representa a experiênciatemporal; o desenho necessariamente fragmenta o objetorepresentado ao apresentar diferentes planos e pontos de vistaque ajudam a construir mentalmente a imagem global, sem nuncareproduzir a experiência do observador; o desenho é constantepois mantém suas qualidades figurativas ao longo do tempo,sendo importante registro; os desenhos constituem a parteartesanal do labor profissional, um artesanato que se pratica naprancheta de desenho, independentemente de os autores doprojeto serem ou não os autores do desenho2.

3. Características lógicas: reflexiva – uma imagem é sempre amelhor representação de si mesma; anti-simétrica – se umaimagem representa um objeto, este não tem porque representarpor sua vez sua própria imagem; transitiva – se uma imagemrepresenta outra imagem, e esta, por sua vez representa umobjeto, a primeira imagem também representa dito objeto.

4. Características técnicas: precisão – a busca da forma mais exata nareprodução dos elementos, conveniente para a compreensão desuas medidas, por meio dos sistemas de projeção geométrica,sejam projeções ortogonais (sistema diédrico – planta, corte,elevação), projeções cônicas (perspectiva) ou projeções paralelas(axonometria); clareza – uso dos recursos gráficos mais adequados aexpressar as intenções do autor também no sentido de suaprecisão; escala – sistema de proporções que possibilite identificar oque uma imagem representa e deduzir aproximadamente seutamanho real, podendo ser antropométricas, modulares ou métricas.

As características apresentadas procuram constituir as noções do“campo gráfico” e do “campo arquitetônico” pelo que se percebecomo comum aos diversos usos, modos de apresentação etécnicas do desenho ao longo da história. Como característicasinerentes aos campos que, portanto, se tornam atemporais.

“(...) uma autêntica obra arquitetônica não se encerra no mero fatofísico de uma justaposição material de volumes e de uma seqüênciade imagens visuais variáveis no tempo e no espaço, mas torna-serealidade de certo modo nessa espécie de campo de forças que

10

2. O livro de Sainz é baseadoem tese de doutorado de1985, quando o uso de meiosdigitais de produção ereprodução dos desenhos nãoestava ainda difundido.

Page 37: Tese Ta's - Capa

emana dela e que quase parece dominar o espaço que a circunda e aluz que lhe dá vida. (...) somente os temperamentos especificamentereceptivos sofrem em maior ou menor medida a ação de nossocampo arquitetônico.” (VAGNETTI, 19583, apud SAINZ, 2005, p. 78)

Sainz sugere, dessa forma, que o “campo arquitetônico”,transcendente, só pode ser apreciado através de uma experiênciareal da arquitetura. Assim, nenhum meio de representação poderefletí-lo porque não pode substituir a vivência direta, e tampouco orepresenta, nem o descreve, nem o expressa. Estabelece-se umarelação diferente entre “campo gráfico” e “campo arquitetônico” doque aquela entre desenho e arquitetura. O campo gráfico constitui-se como um campo autônomo, pois possui o valor próprio de umarepresentação gráfica com independência do valor arquitetônico doobjeto que reproduz (SAINZ, 2005, p. 78). Dessa forma, o campográfico que é próprio à arquitetura não coincide com esse campoarquitetônico, que no entendimento do autor possui característicassensoriais, que não podem ser representadas. Disso decorre, porum lado, uma incompletude do campo gráfico em relação ao campoarquitetônico, e, por outro, a relativa autonomia entre ambos.

Estamos presumindo, a partir dessas elaborações, que a autonomiado “campo gráfico arquitetônico”, composto por um repertóriográfico do qual o arquiteto se utiliza para comunicar e expressarsuas idéias arquitetônicas, é indício da separação entre os camposda arquitetura, da construção e da engenharia, possível motivaçãopara a noção de que nem toda construção seja arquitetura, que sedistingue por outros valores.

Tratamos até aqui das relações entre as idéias arquitetônicas e suarepresentação gráfica, da passagem da idéia à imagem, suascaracterísticas, qualidades e atributos que compõem categoriaspróprias da estrutura do “sistema gráfico” arquitetônico. Essaabordagem privilegia as relações que o “campo gráfico” estabelececom o “campo arquitetônico” tomado por seu significado em si, emrelação a si mesmo, ou seja, por suas qualidades e atributosespecíficos em relação às qualidades e atributos que representa, oideário arquitetônico. Mas, é importante considerar que a produçãodo desenho de arquitetura se assenta sobre as bases produtivas. Aarquitetura depende de outros processos para que se concretize,processos esses que determinam a própria produção de desenhos,e exatamente por este constituir meio de comunicação e não umfim em si (a princípio), cabe compreender em que medida oprocesso de produção do desenho e o processo de realização daobra, onde a comunicação deve se efetivar, se determinammutuamente, a partir de uma prática social.

Nesse sentido, os desenhos de arquitetura interessam não só peloideário que representam, mas nesta pesquisa principalmente pelosprocessos de produção de que participam, sendo necessário especificaro tipo de desenho que possibilita maior aproximação a esses processos.

11

3. VAGNETTI, Luigi. Disegno earchitettura. Genova: Vitali eGhianda, 1958, p. 13.Importante referência teóricapara o autor.

Page 38: Tese Ta's - Capa

A tese de doutorado de Rafael Perrone, arquiteto e professor daFAUUSP, de 1993, intitulada “O desenho como signo daarquitetura”, apresenta uma tipologia do desenho de arquiteturaatual, segundo suas diferentes finalidades. Na tese, o autorpretende demonstrar que o desenho pode ser um meio deconhecimento, ferramenta operativa de produção e de ensino,veículo de divulgação e o signo mais competente da arquitetura.Apóia-se no trabalho de Sainz para estabelecer o conceito dedesenho de arquitetura e a partir daí, propõe a seguinte tipologia:

A – desenhos sugestivos/ representativos – cumprem a função decomunicação e significação, mantendo caráter expressivo dosdesenhos e por isso, maior variedade dos modos deapresentação e técnicas gráficas, participando em váriosmomentos do processo de projeto, e podendo ser realizadospelo autor do projeto ou por outros desenhistas:

A.1 – desenhos de finalidade gnosiológica/ metodológica – sãoaqueles utilizados para a concepção e desenvolvimento doprojeto, participando nas fases iniciais de sua elaboração,bem como para a análise de obras já construídas, numnível pessoal:- desenhos de estudos ou croquis: desenhos autorais e,

portanto, “pessoais e livres”, que compõem o método detrabalho de cada arquiteto;

- esquemas ou diagramas: representações não icônicas,como fluxogramas que traduzem as relações doprograma de necessidades espaciais.

A.2 – desenhos de finalidade comunicativa – sua principalfinalidade é a de traduzir os principais elementos doprojeto a determinado público, que não necessariamentedomina a linguagem arquitetônica:- desenhos de apresentação: elaborados no sentido de

apresentar os aspectos mais significativos da obra a serrealizada para clientes, empreendedores, ou jurados deconcursos, através de plantas, cortes, elevações,perspectivas e fachadas ilustrativas;

- desenhos de memoriais ou explicativos: visam introduzira apresentação de um projeto, contribuindo para acomunicação de seu processo criativo, de forma analíticae sintética, por meio de notações gráficas e escritas,esquemas e diagramas;

- desenhos para vendas: realizados para a comercializaçãode empreendimentos, geralmente sem a participação doautor do projeto, buscam transformar a obra arquitetônicaem um conjunto de valores identificáveis comdeterminado público alvo, têm caráter ilustrativo.

A.3 – desenhos de finalidade cognitiva – utilizados pelosarquitetos para o conhecimento de outras obras eelementos de arquitetura, tanto com intuitos didáticos,quanto de documentação e registro de soluçõesespaciais:

12

Page 39: Tese Ta's - Capa

- desenhos de documentação e reconstituição: têm comoobjeto obras executadas e finalidade de registro damemória arquitetônica, contendo informações dimensionaisprecisas que permitam aos técnicos e aos estudiososcompreender a constituição de determinada obra;

- desenhos de tratados: têm a finalidade de constituir guiaspara a elaboração de outros projetos, geralmenteconfigurando tipologias que não se destinam a nenhumaobra específica, mas apresentam modelos que contêm osatributos visíveis de sua classificação morfológica.

A.4 – desenhos de finalidade prospectiva – desenhos queapresentam novas propostas arquitetônicas, sem ocompromisso com sua futura realização:- desenhos fantásticos ou visionários: com finalidade

ilustrativa das possibilidades de inovação arquitetônica,esses desenhos não têm obrigação nem com o uso, nemcom a exeqüibilidade da obra que representam, e emgeral utilizam recursos gráficos expressivos eacentuados.

B – desenhos descritivos/ operativos – desenhos maisespecificamente voltados para a comunicação do projeto aosseus realizadores, seguem as convenções e normas técnicasvigentes, tendo menor grau de variação em relação aos modosde apresentação (são em geral realizados pelo sistemadiédrico, e quando necessário por axonométricas) e àstécnicas gráficas (atualmente predomina o meio digital), sãoconsiderados os produtos finais do processo de projeto de umobjeto que se queira construir e não são necessariamenteelaborados por seu autor:

B.1 – desenhos para obras – são registros gráficos destinados àexecução da obra, tanto em suas versões finais, quantointermediárias que se destinam aos diversos técnicosespecializados envolvidos na elaboração do projeto, têmcaráter icônico e são compostos por vários elementosgráficos simbólicos e codificados:- desenhos de execução: são o conjunto de elementos

gráficos que tem a finalidade de indicar as operaçõesconstrutivas e assegurar a recomposição, através de umacodificação precisa, das informações em linguagembidimensional para formas tridimensionais, seguindo paraisso normas próprias do desenho técnico,complementadas com informações alfanuméricas,caracterizando-se assim como não autorais. Destinam-seaos técnicos, mestres, operários e artesãos da obra asplantas, cortes, elevações e detalhes que permitem oclaro entendimento da obra a ser construída;

- desenhos de detalhes: destinados à compreensão dospormenores do projeto e da obra a ser construída, podemocorrer em todas as fases de projeto e apresentam,sobretudo, relações entre os vários materiais, sistemasconstrutivos e etapas da obra.

13

Page 40: Tese Ta's - Capa

B.2 – desenhos de instrumentação – destinados a facilitar odesenvolvimento do projeto executivo, apresentandosoluções técnicas padronizadas para a utilização demateriais e componentes na obra:- desenhos de componentes: representam peças e

elementos isolados em geral industrializados, quecompõem subsistemas construtivos (por exemplo,caixilhos, peças pré-moldadas de concreto etc.). Emgeral, são disponibilizados em catálogos das fabricantes,acompanhados das especificações técnicas do produto.

- desenhos de manuais: apresentam um conjunto desoluções técnicas para os detalhes executivos da obra aser executada, seguindo as normas técnicas de desenho.

Em relação aos desenhos para obras, devemos acrescentar maisum item, os chamados “desenhos de produção”, distintos dosdesenhos executivos por conterem informações sobre a sucessãode etapas de realização dos serviços e por reunirem informações devárias especialidades num mesmo desenho, representando maisfielmente os procedimentos construtivos, tais como os desenhos deprodução de fôrmas e de alvenarias.

Dentre os diversos tipos de desenho de arquitetura, interessampara esta pesquisa aqueles que têm por finalidade a descrição doprojeto a ser realizado (do tipo B), que participam no processo deprodução da obra, na tradução da imagem à matéria. São osdesenhos que cada vez mais seguem padronizações, numaescala de menos a mais codificados, indo do croqui ao desenhotécnico, e onde é menor a relevância da participação do arquitetoautor do projeto em sua execução, quando o projeto deve terapenas um sentido descritivo, inclusive como suporte decomunicação entre os diversos técnicos (também autores)especializados. Os desenhos de obra correspondem então àúltima etapa do processo de projeto, quando esse é objetivado erepresentado para guiar a execução. Sua linguagem não é sóprópria do desenho de arquitetura, mas comum ao campo dodesenho técnico, utilizado também pelas engenharias.

Mas, o projeto não é a obra. Por mais que se avance naspadronizações e convenções de desenho no sentido de garantirque os projetos sejam bem comunicados, há limites dados pelaprópria condição de representação que deixam margem paraoutras formas de comunicação e de desenho no canteiro deobras: desenhos na escala real, croquis improvisados nos cantosdas folhas, reelaborarão das soluções, são constantes narecomposição da idéia, traduzida em imagem, à matéria. Anecessidade histórica de uma padronização do desenho técnicopara que constituísse uma linguagem não elimina essas outrasformas de desenho do canteiro. Ou seja, a constituição de um“campo gráfico” específico à arquitetura, de produção do projetona tradução da idéia à imagem, não se relaciona apenas com o

14

Page 41: Tese Ta's - Capa

“campo arquitetônico”, mas também com o campo da construçãoe seus processos produtivos, quando essas idéias e imagensdevem ser materializadas. E, mais ainda, as relações entre essescampos se determinam reciprocamente no processo de produçãodo espaço social.

É nessa direção que propomos o estudo do desenho de obra, tantocomo (re-) presença no canteiro, como desenho executivo,“técnico”, com suas características específicas, quanto comoausência, pelos limites da própria condição de representação, mastambém pelo conhecimento empírico que se faz necessário para atradução do desenho pelos agentes da obra, determinado pelaforma de produção em canteiro.

Ao abstrair-se os processos históricos que conformaram odesenho de arquitetura atual, os usos práticos a que servem, oseu sentido de projeto, como intenção propositiva, resta apenasao desenho sua forma “neutra”, enquanto linguagem formal,como um objeto em si, com suas qualidades visuais e gráficas decomunicação. Fixar seus usos, modos de apresentação etécnicas gráficas como categorias possibilita uma aproximação àestrutura específica do desenho de arquitetura, seus elementos eàs relações entre eles (de acordo com sua finalidade, um modode apresentação é requerido e realizado segundo determinadatécnica), mas não nos permite conhecê-lo em sua concretudeefetiva: quais relações estão representadas? Por que osdesenhos são necessários? Para que servem? Por quem e paraquem são feitos? O que permanece e o que muda nodesenvolvimento das técnicas de concepção e representação doespaço? Quais as relações entre essas técnicas, os processosprodutivos e o espaço construído? Essas são as principaisquestões que alimentaram o desenvolvimento do trabalho.

15

Page 42: Tese Ta's - Capa

1.2O desenho como instrumento de produção da arquitetura

O desenho de obra está sendo proposto, então, como objeto depesquisa por compor mediação na relação entre os processos deprodução do projeto e da obra. Processos esses que nem sempreestiveram separados em instâncias distintas, o desenho de obra,executivo, constitui atualmente o produto do processo de projetoque irá guiar o processo de execução da obra. No panorama dostipos de desenho de arquitetura presentes, o desenho de obraassume caráter de menor significação em termos dos conceitos eatributos próprios ao “campo arquitetônico”, artísticos e técnicos.Nele, estão representadas em determinada linguagem as intençõesdos autores do projeto, cada vez mais especializados, traduzidasem soluções construtivas e espaciais. O desenho de obra encontra-se na posição mais distante em relação aos desenhos iniciais queainda carregam significados em si – seu significado está emconstituir apenas meio de produção. Dentre os diversos tipos dedesenho de arquitetura, configura a sua forma mais abstrata, a sualinguagem mais codificada. E, apesar dessa linguagem seratualmente regida por normas específicas, ela ainda tem como basea geometria descritiva, que possibilita a representação de qualquerobjeto tridimensional em planos.

Para compreender o desenho como instrumento de produção daarquitetura procuramos delimitar o papel que ele cumpre nosprocessos de produção, enquanto instrumento técnico que édeterminado pelo modo de produção em que está inserido.

No texto “O canteiro e o desenho” de 1976, Sérgio Ferro, aluno deArtigas, com quem trava debate acerca dos rumos da práticaprofissional, do papel do projeto, em circunstância de acirramentodas posições políticas frente à ditadura militar, discute em termosteóricos o sentido do desenho, pelo ângulo do marxismo, a partirdas relações de produção da arquitetura, que têm base no canteirode obras. Em contraposição ao projeto de desenvolvimento dasforças produtivas como maneira possível de emancipação social,em que aposta Artigas, a análise de Sérgio Ferro das contradiçõesentre este modelo de desenvolvimento e as relações de produçãona construção civil aponta para uma crítica radical a esse projeto,na medida em que o desenvolvimento das forças produtivasimplica num aprofundamento das formas de exploração dotrabalho. O autor procura mostrar que o desenho, fazendo parte doaparato tecnológico, está determinado social e historicamentecomo técnica de dominação do trabalho pelo capital. O desenho,elaborado por técnicos especializados, entre eles o arquiteto, agecomo instrumento de dominação por representar a reunião das

16

Page 43: Tese Ta's - Capa

atividades parcelares de diversos trabalhadores, subtraindo delesparte das decisões e escolhas sobre seu próprio trabalho eafastando-os de seu produto, num processo gradual demercantilização dos objetos arquitetônicos. Essa reunião dosdiversos trabalhos representada no desenho, no entanto, só énecessária porque a própria presença do desenho separa aatividade produtiva em momentos distintos de concepção eexecução, que já foram parceiros. A retirada dos momentos deprojeto do canteiro se daria de forma a aumentar a produtividadedo trabalho em benefício do capital, como modo de produção eacumulação de riquezas. O desenho representaria assim a cisãoentre o pensar e o fazer na produção do espaço, constituindoinstrumento indispensável para a concretização do trabalho naforma manufatureira de produção em que o canteiro está baseado.O texto aponta para o conteúdo concreto do desenho, inserindo oarquiteto na divisão técnica e social do trabalho, e também parasua história, indicando o momento de ruptura em que o desenhoganha autonomia e passa a ser regido por determinações alheias àprática construtiva, ou seja, ao trabalho.

Não pretendemos nesta pesquisa analisar em profundidadeaspectos específicos e divergentes entre formas maisindustrializadas ou menos de produção, entre diferenças estruturaisde países centrais e periféricos, mas apontar as relações que seestabelecem entre o desenho de arquitetura e a organização dotrabalho no canteiro de obras que possam contribuir para umaabordagem crítica sobre a produção da arquitetura atual.

Tampouco pretendemos explorar todo o conteúdo abordado em “Ocanteiro e o desenho”, que traz a densidade de amplo quadro dereferências teóricas – da semiologia, psicologia, filosofia,economia, sociologia – mas procuramos ressaltar a compreensãodas determinações do desenho de arquitetura na produçãomaterial do espaço, marcadas pelo processo de dissociação entreinstâncias de concepção e de execução da obra e pela separaçãodo trabalho intelectual do manual em momentos distintos. Nessetexto, é analisada a forma manufatureira de produção daarquitetura que determina a heteronomia do canteiro de obras,sendo o desenho uma de suas “corporificações”. Assim, foramdestacadas passagens do texto que configuram momentospertinentes à pesquisa, quais sejam, o entendimento do objetoarquitetônico como mercadoria, sua forma de produçãomanufatureira e as implicações que daí decorrem para o desenho.Essas passagens se apóiam na obra de Karl Marx e foramcomplementadas, quando possível, por análises mais específicasdas questões abordadas pela pesquisa, principalmente pelo exameda “forma canteiro” de Benjamin Coriat.

17

Page 44: Tese Ta's - Capa

O objeto arquitetônico como mercadoria

Como Marx, em “O Capital”, Sérgio Ferro introduz sua análise a partirda “forma social mais simples que assume o produto do trabalho nasociedade contemporânea: a mercadoria”, constatando que o “objetoarquitetônico, assim como a pá ou a arma, é fabricado, circula e éconsumido, antes de mais nada, como mercadoria” (FERRO, 2005, p.23). Assim, o objeto arquitetônico não foge às determinações do modode produção capitalista e deve ser compreendido historicamentecomo produto desse momento do desenvolvimento tecnológico.

Ponto comum a qualquer outra mercadoria, o objeto arquitetônico,quando assume essa forma, tampouco é produzido para uso própriode seus produtores, mas para que seja trocado, no mercado, poroutras mercadorias de valor equivalente. Ou seja, o objeto arquitetônicodeve responder a uma necessidade humana, determinadahistoricamente, tendo assim um valor de uso, como utensílio, que variaqualitativamente de acordo com sua função, característica que não odistingue de produtos de outros momentos históricos. A particularidadeque o faz participar da forma mercadoria, nesse nível de abstração,encontra-se no fato de que seja produzido para a troca. Seu valor éassim determinado não pela sua utilidade ou funcionalidade em si, maspela possibilidade, que o acompanha desde as intenções iniciais desua produção, de ser trocado por outras mercadorias que representemigual valor quantitativo, este medido em relação ao tempo de trabalhosocialmente necessário despendido em sua produção. Esse tempo,cristalizado em valor de uso, difere ao longo da história de acordo como desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, determinadas“por meio de circunstâncias diversas, entre outras pelo grau médio dehabilidade dos trabalhadores, o nível de desenvolvimento da ciência esua aplicabilidade tecnológica, a combinação social do processo deprodução, o volume e a eficácia dos meios de produção e ascondições naturais” (MARX, 1988, p. 48). O valor de uso como objetivoreaparece somente na medida em que é condição para que a trocaaconteça. Assim, as mercadorias não são “coisas”, tampouco umadeterminação permanente do produto, mas dão forma a umadeterminada relação social da qual se reveste o produto no modo deprodução capitalista (FOLIN, 1976, p. 32).

O objeto arquitetônico, porém, tem especificidades em relação àsoutras mercadorias, em geral. Uma delas, que implica em diferençasem seu processo de produção, é o fato de ser imóvel. Além disso,os edifícios, casas, fábricas etc., são também meios de produção,e, assim, capital fixo, tendo especificidades na esfera da circulaçãodas mercadorias. Esses aspectos não serão aqui aprofundados, portratarmos do uso do desenho de obra no processo de produção doobjeto arquitetônico. Processo este que implica sua reprodução, naesfera da circulação e da formação profissional, que de fato sãoinseparáveis. A análise do processo de produção da arquiteturaatravés do desenho de obra pode contribuir para a compreensãodos processos de sua reprodução, ainda que indiretamente.

18

Page 45: Tese Ta's - Capa

Processo de produção do objeto arquitetônico: a “forma canteiro”

Sérgio Ferro parte da análise da manufatura como forma de produçãoda arquitetura atual para a compreensão do papel do desenho nocanteiro de obras, apoiando-se para isso na análise do desenvolvimentodas forças produtivas no capitalismo. Tal análise espera contribuir para oentendimento do desenho, assim como de outros meios técnicos, comoinstrumento que não é neutro, mas que se desenvolve no sentido deaumentar a produtividade do trabalho e assim os ganhos de capital.

A primeira condição para que os instrumentos técnicos passem a tercaráter de dominação sobre o trabalho é a diferenciação daspessoas entre detentoras de meios de produção e de subsistência enão detentoras, entre proprietários privados e não proprietários, nosprocessos de acumulação primitiva. Essa diferenciação obriga osúltimos a vender sua força de trabalho aos primeiros, detentores docapital. O processo de transformação de dinheiro em capital,enquanto valorização do valor, passagem do dinheiro, forma de valorequivalente universal, de meio a fim, requer “uma mercadoria cujopróprio valor de uso tivesse a característica peculiar de ser fonte devalor, portanto, cujo verdadeiro consumo fosse em si objetivação detrabalho, por conseguinte, criação de valor” (MARX, 1988, p. 135).Essa mercadoria específica é a própria capacidade de trabalho, ouforça de trabalho, entendida como “o conjunto das faculdadesfísicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidadeviva de um homem e que ele põe em movimento toda vez queproduz valores de uso de qualquer espécie” (MARX, 1988, p. 135).

Para a produção de mercadorias, portanto, o capitalista deve aplicarparte do capital em meios de produção (oficina de trabalho,instrumentos, matérias-primas), que compõem o capital constante,representando trabalho morto, e parte em força de trabalho, o capitalvariável, representando trabalho vivo, que corresponde ao custo dereprodução dessa mesma força de trabalho, segundo as condiçõeshistoricamente necessárias para que os trabalhadores vivam, trabalheme se reproduzam. Porém, o valor da força de trabalho e sua valorizaçãono processo de produção são grandezas diferentes. Ou seja, a força detrabalho é comprada por seu valor, pelo valor de sua reprodução, masgera um valor de outra grandeza. O trabalhador trabalha além do custode sua reprodução e isso significa uma valorização do valor, a mais-valia. A esfera da circulação das mercadorias é regida pelo princípio daigualdade, da troca de equivalentes. Assim sendo, a força de trabalho,como mercadoria, também é paga por quanto vale no mercado, naforma de salário. Mas, do ponto de vista da esfera produtiva, que estádeterminada pela distinção entre proprietários e não proprietários, adistribuição dos valores produzidos se baseia no princípio dadesigualdade, sendo determinada pelo tamanho da propriedade decapital e não pela quantidade de trabalho, enquanto substância da

19

Page 46: Tese Ta's - Capa

mercadoria, condição esta que proporciona a própria reprodução domodo capitalista de produção. Assim, “o valor da força de trabalho, istoé, o tempo de trabalho exigido para produzí-la, determina o tempo detrabalho necessário para reprodução de seu valor” (MARX, 1988, p.237), ou seja, quanto menor for o custo de reprodução da força detrabalho (e assim das mercadorias), maior será a valorização do capital,que então é determinada pelo estágio de desenvolvimento das forçasprodutivas do trabalho – meios e métodos de trabalho, dadas certascondições técnicas e sociais. Ou ainda, quanto mais desenvolvidas asforças produtivas do trabalho, ou seja, quanto menor o temposocialmente necessário para a produção de determinada mercadoria,maior será o tempo de trabalho cristalizado em valor a ser apropriadopelo capital, mantida a jornada média de trabalho. “Por isso, é impulsoimanente e tendência constante do capital aumentar a força produtivado trabalho para baratear a mercadoria e, mediante o barateamento damercadoria, baratear o próprio trabalhador” (MARX, 1988, p. 242).

A manufatura, sem o amparo do desenvolvimento tecnológico (dasmáquinas, por exemplo), mas como forma de produção, possibilita,portanto, maior expropriação do trabalho, se comparada às formasprecedentes de produção, artesanais, na medida em que, através dotrabalho cooperativo, pode-se obter uma força produtiva maiselevada “por aumentar a potência das forças mecânicas do trabalho,ou por estender sua escala espacial de ação, ou por estreitar ocampo espacial de produção em relação à escala de produção, oupor mobilizar no momento crítico muito trabalho em pouco tempo,(...), ou por imprimir às operações semelhantes de muitos o cunho dacontinuidade e da multiplicidade, ou por executar diversas operaçõesao mesmo tempo, ou por economizar os meios de produçãomediante seu uso coletivo, ou por emprestar ao trabalho individual ocaráter do trabalho social médio (...)” (MARX, 1988, p. 249).

A manufatura caracteriza-se pela separação do trabalho, antesexecutado por um artífice em diversas operações e com diversosinstrumentos, em atividades parciais, com instrumentos diferenciados eespecializados que devem ser manipulados por trabalhadores parciaisespecíficos. Ela decompõe a atividade artesanal, podendo serheterogênea, em que o produto é a (re) composição, ou justaposição, deprodutos parciais autônomos, que podem ser produzidos em domicílio(ou seja, não há necessidade de um edifício fabril), sendo que apenasalguns dos produtos parciais passam por diferentes mãos, sendofinalmente reunidos na mão que os combina para formar a mercadoria.Ou orgânica, em que o produto passa por vários trabalhadores até estarfinalizado, em geral, todos localizados num mesmo espaço. “De umasucessão no tempo, os diversos processos graduais transformam-seem uma justaposição no espaço” (MARX, 1988, p. 260).

Na manufatura orgânica, há dependência direta entre ostrabalhadores, na medida em que o produto parcial de um é a matéria-prima do seguinte, havendo sucessão de atividades e simultaneidade,

20

Page 47: Tese Ta's - Capa

já que “a matéria-prima se encontra simultaneamente em todas assuas fases de produção de uma vez” (MARX, 1988, p. 259). Acooperação, ou “a forma de trabalho em que muitos trabalhamplanejadamente lado a lado e conjuntamente” (MARX, 1988, p. 246)requer continuidade, uniformidade, regularidade e ordenamento, ouseja, comando e planejamento. E, com a cooperação de muitostrabalhadores assalariados, cabe ao capital comandar e planejar, a fimde explorar ao máximo a força de trabalho para extrair dela a maiormais-valia possível. “Com a massa de trabalhadores ocupados aomesmo tempo cresce também sua resistência” e uma nova função, ade supervisão, se faz necessária (MARX, 1988, p. 250).

Os trabalhos parciais ou “as diferentes funções do trabalhador coletivo”têm qualidades variadas, podem ser mais simples ou mais complexos,mais baixos ou mais elevados, exigindo diferentes graus de formação epossuindo valores diferentes, criando uma hierarquia das forças detrabalho e separando os trabalhadores em “qualificados” e “nãoqualificados”. A existência de atividades que não exigem formação dotrabalhador, além de possibilitar o emprego na manufatura de muitosque estavam excluídos pelo artesanato, reduz o custo da reproduçãoda força de trabalho, valorizando ainda mais o capital.

Por outro lado, como manifestação do capital, a manufatura “aleija otrabalhador convertendo-o numa anomalia, ao fomentarartificialmente sua habilidade no pormenor mediante a repressão deum mundo de impulsos e capacidades produtivas”. “Os trabalhosparciais específicos são não só distribuídos entre os diversosindivíduos, mas o próprio indivíduo é dividido e transformado nomotor automático de um trabalho parcial” (MARX, 1988, p. 270). E,essa “mutilação”, “uma vez que a habilidade artesanal continua a sera base da manufatura e que o mecanismo global que nela funcionanão possui nenhum esqueleto objetivo independente dos própriostrabalhadores (...)” (MARX, 1988, p. 275), faz com que o capital luteconstantemente com a insubordinação dos trabalhadores, o queconfigura a subsunção formal do trabalho ao capital, que devedesenvolver ainda outras técnicas de dominação e exploração.

O que diferencia a produção manufatureira da industrial é que “amaquinaria específica do período manufatureiro permanece opróprio trabalhador coletivo, combinação de muitos trabalhadoresparciais”, não estando plenamente desenvolvidos os instrumentosque possibilitarão a mecanização do trabalho. A base artesanal damanufatura só será superada pela produção mecanizada, momentoda subsunção real do trabalho ao capital (MARX, 1988, p. 262).

Nesse sentido, a divisão do trabalho se justifica não pelodesenvolvimento isento, natural, das forças produtivas, mas peloincremento do controle do capital sobre o trabalho, que dessa formapode explorar ao máximo a força de trabalho sob seu comando eassim aumentar a taxa de mais-valia. Assim, “é próprio do modo deprodução capitalista separar os diferentes trabalhos, e portanto o

21

Page 48: Tese Ta's - Capa

trabalho intelectual e manual (...) e atribuí-los a pessoas diferentes, oque não impede, contudo, que o produto material seja o produtocomum dessas pessoas (...)” (GORZ, 2001, p. 215). A separação entretrabalho intelectual e manual é fruto de um processo histórico, dedesenvolvimento tecnológico que, então, não é neutro, nem abstrato.

Dessa forma, a separação entre instâncias de concepção e deexecução na produção do espaço, que contribui para a constituiçãodos campos da arquitetura e da engenharia, encontra umfundamento econômico e político, fruto do processo de divisãotécnica e social do trabalho. E o desenho, como instrumento técnicodeterminado pelo modo de produção, sendo também fruto de umprocesso produtivo (de arquitetos, engenheiros, técnicos etc., nosescritórios), acaba por se tornar então meio de (re) unir o trabalhoseparado no canteiro, possibilitando o planejamento, a coordenaçãoe o controle das atividades e das tarefas parciais. O desenho deprodução da arquitetura, o desenho de obra, que será utilizado nocanteiro, é produto parcelar necessário à concretização do objetoarquitetônico, fruto do trabalho também parcelar do arquiteto. “Odesenho de arquitetura é [então] mediação insubstituível para atotalização da produção sob o capital” (FERRO, 2005, p. 25).

Se, num primeiro momento, podemos compreender as relações dodesenho de arquitetura com a organização do trabalho no canteiro pelaforma manufatureira de produção, que se funda na separação entre aconcepção e a execução e ainda na fragmentação das atividades deprojeto e obra em tarefas parciais, o que constitui uma dualidade entredesenho e canteiro, uma aproximação às especificidades dessa formaprodutiva, baseada no canteiro de obras, possibilita reconhecer asdeterminações recíprocas entre esses dois campos, constituídas aolongo do processo histórico de desenvolvimento das forças produtivas.

A análise do canteiro de obras, como forma de produção, requeruma caracterização que permita compreendê-lo em suasespecificidades, para não tomá-lo simplesmente como uma forma“atrasada”, manufatureira, em comparação a outras formasprodutivas mais “avançadas”, industrializadas e programadas.

Sérgio Ferro aproxima-se da forma de produção em canteiro,descrevendo as atividades que ali são desenvolvidas:

“A areia, a pedra são descarregadas. Um servente as amontoa noslocais previstos do canteiro; um outro leva parte para o ajudante depedreiro que ajunta água e cal ou cimento, trazidos do depósito por umajudante diferente; um quarto despeja a argamassa em baldes oucarrinhos e a conduz ao pedreiro que coloca tijolos, faz um revestimentoou enche uma fôrma, seguido por seu ajudante que segura o vibrador ourecolhe o excesso caído. Em cima, o carpinteiro prepara outras fôrmascom a madeira empilhada perto dele depois de encaminhamentosemelhante ao da argamassa e percorrido por ajudantes e serventespróprios; o armador dobra as barras de ferro assistido do mesmo modoe, por todos os lados, pintores, marceneiros, eletricistas, encanadoresetc., sempre rodeados por ajudantes e serventes, constituem equipes

22

Page 49: Tese Ta's - Capa

numerosas, separadas, especializadas, verticalizadas. Avançada divisãodo trabalho e, em cada parcela, hierarquia detalhada.

Pás, enxadas, desempenadeiras, colheres, prumos, esquadros,réguas, fios, serrotes, martelos, alicates, goivas, plainas, rolos,espátulas etc. Instrumentos simples, isolados, adaptados às diversasoperações, resultado de lento aperfeiçoamento e diferenciação paraum uso preciso. Mais raramente, betoneiras, elevadores, guinchos,vibradores, serras elétricas etc. Sempre, entretanto, máquinassomente auxiliares nas tarefas pesadas; nenhuma operatriz que reúnaos instrumentos particularizados.” (FERRO, 2005, p. 34)

No canteiro de obras, trabalhadores organizados em equipesnumerosas, separadas, especializadas, verticalizadas, executamatividades parciais sucessivamente, contando, em maior ou menorgrau, com sua habilidade e seu conhecimento para concluir o produto.O canteiro é manufatura heterogênea, na medida em que recebeprodutos parciais que irão ser justapostos para compor a mercadoria(produtos estes que têm forma de produção específica, em geral, hojeem dia, industrializada), e também manufatura orgânica, em que nummesmo espaço, trabalhos parciais se somam e se sucedem,raramente simultaneamente, havendo etapas de trabalho bemdefinidas e distintas, o que o distingue de outras manufaturas.

A “forma canteiro” de produção, segundo Benjamin Coriat em textode 1983, caracteriza-se pela variabilidade na produção. Estavariabilidade se determina tanto por aspectos externos à formaprodutiva (a variação dos tipos de obras que abrange, ou seja, anão homogeneidade do produto, que vai de casas populares ausinas hidrelétricas; os aspectos referentes à localização da obra,características físicas do terreno, do solo, do relevo e da legislaçãourbanística e edilícia), quanto por aspectos internos (a nãorepetitividade das tarefas, a rotatividade da mão-de-obra, airregularidade das tarefas no tempo em volume e ritmo), refletindonuma variabilidade dos valores de uso que produz.

No aspecto referente à irregularidade das tarefas no tempo, o autorressalta que no canteiro se percebe mais uma banalização dastarefas do que sua fragmentação em unidades que permitam ocontrole dos tempos e ritmos de produção. O conjunto de gestosou de tarefas banalizados não chega a ser associado a temposelementares rigorosos de operação, o controle do tempo se fazmais sobre as equipes e parcelas (etapas) do processo de trabalho:

“(...) coexistem então no canteiro e sob a direção de um conjunto detécnicos que continuam a desempenhar um papel chave, a reuniãode trabalhos banalizados freqüentemente não rigorosamenterepetitivos, trabalhos especializados e trabalhos qualificados, o quedistingue claramente esta forma de organização de qualquer outraorganização da produção.” (CORIAT, 1983, p. 5)

Por outro lado, essa mesma característica influi na determinaçãodos valores de troca produzidos, já que a diminuição do tempo deprodução é fator fundamental no estabelecimento dos custos de

23

Page 50: Tese Ta's - Capa

produção. A variabilidade encontrada nas formas e funções dosprodutos, que determinam seu valor de uso, é determinantetambém de seu valor de troca, pois influem nas pesquisas sobre aeconomia de tempo no processo produtivo, que deve levar emconta as múltiplas dimensões de necessidades que asvariabilidades externas e internas impõem.

Assim, a “(...) forma canteiro pode ser definida como: o tipo deprocesso de trabalho que é pertinente às indústrias de formas [nasquais a relação entre o ritmo de trabalho e a quantidade de produçãoobtida por unidade de tempo é direta, influindo no estabelecimento doscustos de produção], em que as restrições que lhe são essenciais, devariabilidade, ligadas ao valor de uso, delimitam e limitam o espaço deaplicação dos princípios tayloristas de parcelamento e repetitividade dotrabalho e em que prevalece ainda uma busca por uma maior rapidezna execução das tarefas.” (CORIAT, 1983, p. 6)

Ou seja, a padronização dos produtos e a programação do trabalho,no sentido do avanço das forças produtivas, devem incorporar naprodução da construção civil as especificidades da forma deprodução em canteiro, que é invariavelmente não constante.

Nesse sentido, começam a aparecer as especificidades dessa formaprodutiva que implicam também em especificidades do desenhoinserido na produção da arquitetura. Se a variabilidade do produtodetermina o desenvolvimento das forças produtivas e a divisão dotrabalho, na busca pelo aumento da produtividade e pela diminuiçãodo tempo de produção, pela racionalização e sistematização dosprocessos, o desenho deve também ser determinado dessa maneira.Ou seja, diferentemente dos projetos da indústria de bens móveisem que a padronização de todos os elementos é possível, podendoser repetidos infinitamente, como por exemplo, na indústriaautomobilística, o desenvolvimento dos projetos no campo daconstrução, representados nos desenhos de obra, será determinadopela variabilidade da própria forma de produção em canteiro.

O desenho para a produção do objeto arquitetônico

“(...) é porque o canteiro deve ser heterônomo sob o capital que odesenho existe, chega pronto e de fora. O desenho é uma dascorporificações da heteronomia do canteiro4. (...) o desenho dearquitetura é caminho obrigatório para a extração de mais-valia enão pode ser separado de qualquer outro desenho para aprodução.” (FERRO, 2005, p. 26)

A análise de Sérgio Ferro sobre o desenho procura inserir odesenvolvimento da arquitetura no desenvolvimento tecnológico nomodo de produção capitalista e apresenta, em certa medida, umenfoque pioneiro na compreensão do papel do desenho do arquitetonas relações de produção. Assim como a técnica na indústria em geralavança no sentido do aumento da produtividade pela racionalização dos

24

4. cf. Dic. Aurélio – heteronomia:condição de pessoa ou degrupo que receba de umelemento que lhe é exterior, oude um princípio estranho àrazão, a lei a que se devesubmeter; autonomia: faculdadede se governar por si mesmo,propriedade pela qual o homempretende poder escolher as leisque regem sua conduta.

Page 51: Tese Ta's - Capa

processos produtivos, pela fragmentação das tarefas e de seus tempos,na busca por maior controle e planejamento da produção, utilizandopara isso conhecimentos e instrumentos específicos, a produção daconstrução civil, onde a arquitetura se insere, não escapa a essasdeterminações. Como instrumento técnico, então, o desenho serve aoplanejamento e ao controle, e assim ao domínio do trabalho emcanteiro, pela necessidade de se prever, controlar, planejar a obra, assimcomo em outros setores produtivos. Daí a heteronomia do trabalho nocanteiro que, assim como na fábrica, é determinado de fora.

Nesse sentido, quanto mais especializado o instrumento técnico,quanto mais o desenho se aproxima de uma linguagem gráfica,cada vez mais abstrata, maiores as possibilidades de exercício decontrole e domínio do trabalho pelo estabelecimento de umdiferencial de conhecimento que justifique uma hierarquia na divisãodo trabalho do canteiro.

“O desenho para o canteiro, ‘técnico’, como dizem, poderiaempregar diferentes códigos. (...) Não é evidente que ohabitualmente utilizado seja o melhor, se o julgarmos pelos critériosda eficácia produtiva imediata: reduz o espaço a planos cuja escolhanão pode evitar o arbitrário e a confusão de leitura; empregareferências mongianas5 de difícil aplicação no canteiro; confunde nasimultaneidade da representação a sucessão das etapas; seusistema métrico e ortogonal não se adapta a vários materiais eformas. (...) Entretanto, uma de suas funções é segregar – o queajuda a explicar sua manutenção. Código é coisa de comunicação,mas também de exclusão. (...) Uma das camadas do privilégio dearquitetos e engenheiros provém do fato que guardam a totalidadedas informações e ordens que são codificadas. Algumas sãoorientadas para a produção exterior e não chegam ao canteiro senãosob a forma de componentes acabados. O mestre, desse modo, temmenos informações que arquitetos e engenheiros – mas mais quetodos os outros no canteiro e, se não é a fonte das ordens, é seuportador principal. E a posse das chaves para qualquerdecodificação é a garantia ‘intelectual’ para sua posição. A partirdele, em desdobramentos afuniladores, as informações descemempobrecidas, o código perde generalidade, e, em degradaçõessucessivas, atingem os baixos da produção. O servente já recebeordens só orais – sua não participação radical no campo do códigoassinala sua dependência e inferioridade.” (FERRO, 2005, p. 59)

Até aqui, são apontadas características comuns a outros camposprodutivos. A distinção do desenho no campo da arquitetura remete,por um lado, ao que define a própria arquitetura, que se situa entretécnica e arte, e, por outro, ao duplo caráter que o desenho assume.Se de um lado é meio de comunicação e expressão, aproximando-se de uma linguagem gráfica, que deve servir em última instância àprodução, de outro, é desígnio, projeto, criação. Aspecto esse quepode esconder as determinações concretas da própria arquiteturaquando tomado como discurso, contribuindo para a aparência deautonomia do desenho. O desenho também é heterônomo, o projeto

25

5. Referente a Gaspar Monge,que desenvolveu a geometriadescritiva, publicada em 1799.

Page 52: Tese Ta's - Capa

de arquitetura acaba por se acomodar às formas de representaçãoque estão determinadas pela forma de produção.

“Se o desenho, numa aproximação simplista, representava oespaço, o espaço progressivamente será acomodado às formas derepresentação que, de certo modo e modo certo, o antecipam. (...)Ponto por ponto, o espaço arquitetural seguirá as normas do espaçode representação: ele se fará homogêneo, regulado, ortogonal,modulado etc. Apresenta a representação de si mesmo. (...) Nodesenho, é como aparência de relação que as separações do fazer edo pensar, do dever e do poder, da força e dos meios de trabalho semanifestam. E que os laços que o desenho propõe são laços doseparado mantido separado. (...) Ora, a separação corrompe ospólos que separa: castra o trabalhador, impede a criação. Se odesenho se põe como móvel imediato da produção e se imprimenela seu guião simbólico é porque é materialização da separação,reificação da ruptura.” (FERRO, 2005, p. 105)

Essa separação não é própria da arquitetura, mas o discurso deharmonia, equilíbrio, proporção e os valores simbólicos que odesenho suporta acabam por esconder ou ignorar seu sentidotécnico e político na divisão do trabalho. Na visão de Sérgio Ferro,essa separação não se justifica, a não ser pelo acréscimo decontrole e domínio e, assim, de exploração do trabalho. Talvez porvislumbrar um desenho inserido na produção, e não apartado dela.

“O desenho, com suas categorias atuais, é filho da separação. Se aprodução é separada, o desenho, para impor-se como norma (regrae medida) de coagulação do trabalho dividido no produto que émercadoria, não pode perder-se no movimento da produção. Pararejuntar o trabalho dividido, faz-se direção despótica - e, portanto,separada. Separado, o desenho vai buscar força para convencer emsi mesmo. Daí ser desenho só, em si. Na ausência de necessidadeefetivamente real que resultaria de sua dispersão transformadora nomovimento da produção, procura envolver-se de ‘necessidades’abstratas - harmonia, equilíbrio, margeação... Mas tais recursos têmcomo corolário o aprofundamento da separação. O desenhoseparado da produção, ao hipostasiar sua intervenção autoritária, seexibe como desenho da separação. Inclui a separação, agora suaessência - seu conceito. Filho, absorve sua origem. E, no seuisolamento desesperado, só lhe resta a separação como coisa aedificar, isto é, exaltar.” (FERRO, 2005, p. 133)

Se, por um lado, a variabilidade dos valores de uso produzidos emcanteiro possibilita uma maior absorção das noções de “equilíbrio eharmonia” que se aplicam ao desenho de arquitetura, como obraúnica, pela forma manufatureira de sua produção em que a base dotrabalho continua sendo a habilidade artesanal, por outro, essamesma variabilidade pode implicar em espaços não dominados, emaberturas, onde cabem experimentações em vários níveis. Se aracionalidade técnica, representada no desenho, busca por ganhosquantitativos, a variabilidade dos valores de uso pede umaabordagem qualitativa. Diferentemente da indústria, em que os

26

Page 53: Tese Ta's - Capa

trabalhos estão mais fragmentados e a distância entre a concepçãoe a execução é maior, a padronização de componentes e deprojetos no campo da arquitetura se vê diante de limites maisestreitos, e o desenho de arquitetura encontra assim maior espaçode criação, o que também contribui para sua aparente autonomia.

Se, como constatou Sérgio Ferro em “O canteiro e o desenho”, ocanteiro é determinado de forma heterônoma, ou seja, não porrazões próprias e internas, intrínsecas à produção, mas sim porrazões alheias, conformadas à dominação e à exploração dotrabalho, sendo o desenho de obra uma das corporificações dessaheteronomia, torna-se necessário reconhecer quais processoshistóricos engendraram por um lado essa heteronomia do canteiro,e por outro a aparente autonomia do desenho, como campoprático, já que a presença de desenhos como mediação emprocessos construtivos é prática muito anterior ao modo deprodução capitalista. Mais ainda, a constatação empírica de que odesenho no canteiro não é absoluto na prescrição das atividades aserem realizadas, estando presentes outras formas decomunicação, outras práticas, nas relações entre os diversosagentes que participam do processo, sugere uma aproximação quepossibilite reconhecer em que medida essas categorias separadas,desenho e canteiro, se realizam em situações concretas.

Essa abordagem orientou a pesquisa para dois momentosfundamentais. De um lado, buscou-se uma história do desenho deobra que contribua para a compreensão dos usos que se fez delena construção do ambiente ao longo do tempo e de como ocorreuo processo de separação entre instâncias de concepção eexecução na produção do espaço. Esse percurso espera expor agênese do uso do desenho na construção, quais seus motivos efinalidades, bem como contribuir para a interpretação das situaçõesobservadas, no sentido de datar algumas das relações percebidas.

De outro lado, procurou-se compor um campo empírico para apesquisa, onde pudessem ser observadas a prática construtiva e asrelações que estabelecem entre si os diversos atores e agências,mediadas pelo desenho. Nesse sentido, a pesquisa de campo foidelimitada por canteiros de edifícios habitacionais, em várias etapasdo processo e com diferenças de porte, forma de gestão e técnicaconstrutiva. Procurou-se observar variedade nas relações deprodução, tanto do desenho, quanto do canteiro, que possibilitassemexperimentar diversas formas de mediação no processo construtivo,diversidade de instrumentos, hierarquias e determinações.

Espera-se com isso verificar como são preenchidas, na práticaconstrutiva e no processo de tradução do projeto à obra, as lacunasdeixadas pela separação dos momentos de concepção e deexecução. Ou seja, a pesquisa, ao propor uma experiência maispróxima à prática, deve contribuir para reconhecer o modo comocertas categorias teóricas abstratas, aqui conceituadas através dos

27

Page 54: Tese Ta's - Capa

textos de Sainz e Ferro, que podem ser tomadas como estruturasobjetivas, se relacionam com as disposições subjetivas, falas,gestos e ações, que por sua vez tendem a estruturar, como habitus.

A noção de habitus, que Pierre Bourdieu apresenta em seu texto“Esboço para uma teoria da prática”, de 1972, constitui-se comocategoria que possibilita a mediação entre a teoria, subjetivista ouobjetivista, e a prática, no sentido de uma teoria da prática, ou doconhecimento praxiológico, que tem como objeto não somente asrelações objetivas, mas a relação dialética entre as estruturas e asdisposições estruturadas, entre sujeito e objeto do conhecimento, paraevitar um determinismo da teoria em relação à prática, por um lado, epor outro, uma arbitrariedade criativa que atribui sentido às ações.

“Assim, o objetivismo metódico – que constitui um momentonecessário em toda pesquisa, a título de instrumento de ruptura coma experiência primeira e de construção das relações objetivas –exige a própria superação. Para escapar ao realismo da estruturaque hipostasia os sistemas de relações objetivas convertendo-os emtotalidades já constituídas fora da história do indivíduo e da históriado grupo, é necessário e suficiente ir do opus operatum ao modusoperandi, da regularidade estatística ou da estrutura algébrica aoprincípio de produção dessa ordem observada, e construir a teoriada prática, ou, mais exatamente, do modo de engendramento daspráticas, condição da construção de uma ciência experimental dadialética da interioridade e da exterioridade, isto é, da interiorizaçãoda exterioridade e da exteriorização da interioridade. As estruturasconstitutivas de um tipo particular de meio (as condições materiaisde existência características de uma condição de classe), quepodem ser apreendidas empiricamente sob a forma de regularidadesassociadas a um meio socialmente estruturado, produzem habitus,sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadaspredispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, comoprincípio gerador e estruturador das práticas e das representaçõesque podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’, sem ser oproduto da obediência a regras; objetivamente adaptadas ao seufim, sem supor a intenção consciente dos fins; e o domínio expressodas operações necessárias para atingí-los e coletivamenteorquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de umregente.” (BOURDIEU, 2003, p. 53-54)

A interpretação das situações observadas, no sentido de identificaros limites do desenho, em suas possibilidades concretas, deveentão procurar compreender as relações que se estabelecem entreas condições objetivas percebidas e sua estrutura, entre o habitus eas ações e os gestos que dele são incorporados, que não estãopresentes nem no desenhos, nem nas obras acabadas, mas emsuas relações de produção. O que talvez possibilite pôr emmovimento o impasse entre desenho e canteiro e qualificar o debateacerca de suas relações.

28

Page 55: Tese Ta's - Capa

CAPÍTULO 2O USO DO DESENHO DE OBRA NA HISTÓRIA

Page 56: Tese Ta's - Capa
Page 57: Tese Ta's - Capa

O processo histórico que culmina com a identificação de umcampo gráfico específico à arquitetura, reconhecido como sualinguagem, pode ser marcado por algumas passagens maissignificativas nas mudanças das relações de trabalho e sua divisão.Mudanças essas que fundamentam a separação entre a concepçãoe a realização da obra, marcada também pela separação entrecampos teóricos e práticos na produção do espaço. Dessa forma,não podemos falar de campo gráfico arquitetônico semcompreendermos o processo histórico de sua constituição, tendoem vista que a própria noção atual do que seja o arquiteto, ou aconstituição da profissão, data da institucionalização da prática dodesenho como separada da obra.

Assim, é significativo no trabalho de Sainz, por exemplo, que omaterial documental seja primordialmente do período entre o“despertar do Renascimento e a aurora da arquitetura moderna”(SAINZ, 2005, p. 14) – momento fundante da compreensão doque seja o arquiteto hoje e da configuração do campoarquitetônico. Situar tal recorte histórico é fundamental paracompreender o que o autor denomina campo gráficoarquitetônico.

A identificação das passagens históricas que se mostraram maissignificativas teve como fonte de pesquisa a história do desenhotécnico, que mais se aproxima da abordagem sugerida pelodesenho de obra. Porém, em diversos momentos, principalmentenas passagens pós Renascimento, a bibliografia sobre o desenhotécnico não aborda a produção da construção civil, nem apontapara a compreensão das relações sociais e da divisão dotrabalho. Quando possível, complementamos essa bibliografiacom referências sobre a história do desenho de arquitetura esobre os modos de produção. Procuramos, nesse momento,esboçar a história do uso do desenho na construção, no sentidode identificar a gênese de algumas das determinações atuais dodesenho de obra.

31

Page 58: Tese Ta's - Capa

Consideramos que o desenho de obra está determinado, primeiro,pela separação dos momentos de concepção e execução da obraem instâncias distintas, fazendo-se necessário na medida em que adivisão do trabalho avança, o que o coloca como condição para arealização da obra. Essa condição, por sua vez, determina odesenho como linguagem gráfica, cada vez mais abstrata ecodificada. E indica ainda que o desenho de obra, na medida emque configura mediação de processos produtivos, estádeterminado pela variabilidade na produção encontrada na “formacanteiro” da manufatura.

A pesquisa sobre a história do desenho de obra começou a seconstituir pela leitura de “O canteiro e o desenho” de SérgioFerro, que relaciona a história do desenho técnico ao modo deprodução capitalista. A partir daí, vários desdobramentos forampossíveis. A referência principal nesse momento foi um autorfrancês, citado por Ferro, Yves Deforge, que desenvolveupesquisa sobre a história e o ensino do desenho técnico nasáreas de comunicação gráfica, metodologia da tecnologia ehistória das técnicas. Yves Deforge, em seu livro “Le graphismetechnique: son histoire e son enseignement”, de 1981, apresentaa tese de que o grafismo técnico6 é um bom indicador dasrelações de produção que se estabelecem entre a concepção e arealização, através de um estudo da história do desenho e de seuensino, processos que estão imbricados.

Paralelamente, foram consultadas dissertações e teses,principalmente da FAUUSP, dado o contexto da pesquisa, queabordassem o desenho como objeto. A maioria dos textosencontrados discute o desenho como instrumento de trabalho doarquiteto, focando no ato criativo, como meio de expressão, e noprocesso cognitivo que é possibilitado pelo desenho, o que podeser indicativo do próprio papel atual do arquiteto. Em doistrabalhos, encontramos abordagens históricas do desenvolvimentodo desenho de arquitetura, que foram importantes referências paraesta pesquisa: a tese de Adriana Righetto, “Do desenho aomodelo: a apresentação do projeto arquitetônico”, de 2005, queestuda como a representação gráfica tem se modificado com aintrodução da informática, principalmente na questão do desenhode apresentação do objeto arquitetônico, que faz a comunicaçãoentre quem projeta e o usuário; e a já citada tese de RafaelPerrone, “O desenho como signo da arquitetura”, de 1993, quecontém um extenso levantamento e análise históricos, umaclassificação tipológica do desenho de arquitetura e a análise dedesenhos significativos do movimento moderno. A partir dessestrabalhos, tivemos contato com ampla bibliografia sobre odesenho de arquitetura e sua história. Essas primeiras leiturassugeriram possíveis aprofundamentos através da história datécnica, e também da matemática e da geometria. Essa

32

6. Entendido como “todos osmeios que servem em ummomento ou em outro aapresentar informaçõestécnicas. (...) Trata-se de umacomunicação dirigida a um serhumano com suascompetências e seu statusprofissional. (...) Na medida emque responde a essascondições, todos os modos deapresentação: figurativos, semi-figurativos, simbólicos; e todosos meios: maquetes, desenhos,esquemas, gráficos, modelosmatemáticos, símbolos eescrituras, palavras e gestossão aceitáveis” (trad. livre,DEFORGE, 1981, p. 12).

Page 59: Tese Ta's - Capa

bibliografia, no entanto, mostrou-se muito genérica, podendoapenas constituir pano de fundo para a compreensão do uso dodesenho no canteiro.

Outro caminho de pesquisa que tem se mostrado frutífero trata dahistória do ofício e da profissão do arquiteto. As origens doarquiteto moderno remontam ao Renascimento e a partir daí ahistoriografia da arquitetura parece que se separa da historiografiada engenharia, pois até então se aproximavam. Uma história daconstrução a partir do canteiro de obras, que relacione as visõesartísticas e técnicas com o desenvolvimento das forças produtivase a divisão do trabalho, com uma história do espaço, é para ondeaponta a continuidade desta pesquisa, onde nos situamos aindade forma introdutória.

Pano de fundo/ Referências teóricas

Os processos históricos que engendram a separação entre asinstâncias de concepção e de execução das obras não sãoapenas próprios da produção da arquitetura. Se abordarmos ocampo de pesquisa tendo em vista a produção do espaço7,entendendo que a arquitetura se insere aí, esses processos nosremetem à história do trabalho, das ciências, da técnica. Nessesentido, o desenho de obra passa a participar tanto de obras devulto, monumentos, templos e catedrais, quanto da construçãorealizada com ou sem arquitetos. O interesse que o desenho deobra porta está nos recursos materiais e nos conhecimentosempregados em sua confecção e, também, na mediação querealiza ao participar dos processos produtivos, enquanto técnicaque é determinada pelos mesmos processos.

Assim como a história da arquitetura não tem sua origem noRenascimento, o uso do desenho como instrumento para aconstrução remete à necessidade de comunicação, decoordenação do trabalho e de representação do objeto em escalareduzida, tanto para quem, ao mesmo tempo, concebe e executa,quanto para agentes com funções diferentes na produção, emrelações por vezes mais próximas, por vezes mais distantes. Asrazões e os sentidos para a separação dessas atribuições variamao longo da história e partem do princípio de que já houve (econtinua havendo) momento em que não se distingue a concepçãoda realização da obra – momento em que a produção do espaçonão se diferencia da produção da própria vida.

Historicamente, a separação entre os momentos de concepção e deexecução na produção do espaço, em pessoas e instânciasdistintas, constitui uma abstração de um processo que antes eraimediato. Este passa a ter uma manifestação concreta, uma

33

7. Em “A produção do espaço”,de 1974, Henri Lefebvreapresenta o conceito de espaçosocial como um métodoaproximativo às relaçõeshistóricas de (re) produçãosocial, desenvolvendo emprofundidade uma análise sobreas passagens do espaçoabsoluto, ao espaço abstrato,do espaço contraditório aoespaço diferencial.

Page 60: Tese Ta's - Capa

existência mental e uma realidade social concretas. Essa divisão dotrabalho, que se dá pela separação do trabalho intelectual domanual, acaba por criar uma nova prática, da produção dodesenho. A prática do desenho passa a constituir, dessa forma,abstração concreta, mediação nas relações de produção, inserindo-se numa prática social e, portanto, numa prática espacial.

A proposição do desenho de obra como objeto de conhecimentorelaciona-se assim com a compreensão do espaço social comomediação das práticas sociais, questão desenvolvida emprofundidade na obra de Henri Lefebvre. Uma história do espaço,compreendida dessa maneira, não como sucessão de fatos,costumes, leis e instituições, mas como a história das relaçõesentre as forças produtivas e as relações de produção, ou dosmodos de produção, evidencia que a transição de um modo deprodução a outro gera um novo espaço, este, produto e produtordas relações sociais. Na concepção de Lefebvre, de um espaçoabsoluto, que se descreve como fragmentos da natureza nosquais se desenvolvem ritos e cerimônias, como suporte dosespaços de representação, vividos, onde as relações religiosas epolíticas se apresentam imediatas, o desenvolvimento das forçasprodutivas em contradição com as relações de produção aolongo da história conduz a uma transformação do espaço nosentido da abstração.

“O espaço social, inicialmente biomórfico e antropológico, tende aultrapassar esta imediação. Entretanto, nada desaparececompletamente; o que subsiste não poderia se definir somente pelovestígio ou pela lembrança, ou pela sobrevivência. O anterior, noespaço, permanece o suporte daquilo que segue. (...) O espaçoassim concebido poderia dizer-se ‘orgânico’. Na imediação darelação entre os grupos, entre os membros de cada grupo, da‘sociedade’ com a natureza, o espaço ocupado manifesta em seupróprio plano a organização da sociedade, as relações constitutivas.Essas relações não dão senão um pequeno espaço para aabstração.” (LEFEBVRE, 1974, p. 265)

Um espaço abstrato, formal e quantificado, em que a atividadeprodutiva (o trabalho) deixa de ser confundida com a reproduçãoda vida social, tornando-se trabalho social abstrato, passa a serproduzido e mediado por concepções abstraídas da práticasocial. Lefebvre identifica três elementos formantes do espaçoabstrato, que se implicam e se dissimulam: o geométrico – oespaço euclidiano, espaço de referência, representação doespaço; o ótico – o sentido visual se apodera da primazia emrelação aos demais sentidos, por assimilação, por simulação; ofálico – metaforicamente simboliza a força, a fecundidade viril, aviolência masculina, privilégio da verticalidade (LEFEBVRE, 1974,p. 329-330). A representação do espaço, no plano do concebido,deixa aí apenas um lugar mínimo aos espaços de representação,no plano do vivido.

34

Page 61: Tese Ta's - Capa

Enquanto práticas sociais e, portanto, espaciais, desenho ecanteiro são também mediações no processo de abstração daprodução do espaço. A separação entre concepção e execuçãoencontrada na produção da arquitetura atual faz parte desseprocesso, sendo o desenho de obra um possível indicativo dasrelações que se estabelecem entre as representações do espaço eos espaços de representação na produção da arquitetura dedeterminada época.

As passagens que seguem têm como referência a história doespaço apresentada brevemente por Jorge Oseki em “O único e ohomogêneo na produção do espaço”8, a partir da obra de Lefebvre.Ela se apóia na noção de formação econômico-social9, que buscaestabelecer semelhanças e diferenças entre estágios da evoluçãohistórica da divisão social do trabalho, do processo deindividualização do homem e da constituição da propriedadeprivada. Esses estágios não são sucessivos, nem cronológicos, masconfiguram afastamentos em relação a uma situação primitiva:

“(...) uma unidade original entre uma forma específica decomunidade, ou unidade tribal, e a propriedade natural relacionadacom ela, ou, o que dá no mesmo, a relação com as condiçõesobjetivas de produção, tal como existentes na própria natureza,como o ser objetivo do indivíduo mediado pela comunidade. Ora,esta unidade, em certo sentido, mostra-se como a forma particularde propriedade, tem sua realidade viva num modo de produçãoespecífico e este modo mostra-se, igualmente, como orelacionamento de indivíduos uns com os outros e como seucomportamento cotidiano, específico, frente à natureza inorgânica,seu modo específico de trabalho (que é sempre trabalho familiar emuitas vezes comunal).” (MARX, 2006, p. 89)

Há então concomitância entre esses estágios, como camadas quese sobrepõem, ou melhor, um modo de produção maisdesenvolvido não apaga completamente os traços do anterior. Ele ocoloniza, o submete, permitindo que sobreviva na medida em queseja funcional à acumulação. O que, por sua vez, pode gerar modosde produção distintos.

Nesse sentido, o presente, em sua “horizontalidade”, praticada,manifesta-se como uma sobreposição de tempos (e espaços), ouformações econômico-sociais, que “verticalmente” se justapõem.Na regressão ao passado, às datas e às idades das relações sociaise dos elementos da cultura material e espiritual, podemos encontrarpossibilidades não realizadas, virtualidades bloqueadas peladominação e pelo poder que estão presentes na produção atual doespaço, como resíduos.

“Na descoberta da gênese contraditória de relações e concepçõesque persistem está a descoberta de contradições não resolvidas,de alternativas não consumadas, necessidades insuficientementeatendidas, virtualidades não realizadas. Na gênese dessascontradições está de fato a gestação de virtualidades e

35

8. OSEKI, Jorge Hajime. Oúnico e o homogêneo naprodução do espaço. In:MARTINS, José de Souza (org.).Henri Lefebvre e o retorno dadialética. São Paulo: Hucitec,1996, p. 109-119.

9. “Trata-se de uma idéia queaparece ocasionalmente na obramarxiana, apenas indicada, paradar conta da sedimentação dosmomentos da história humana,da história da constituição dahumanidade do homem, dahistória da práxis” (MARTINS,1996, p. 15). E ainda “A noçãode formação econômico-socialretomada e aprofundada porLênin engloba a dedesenvolvimento desigual, comoengloba a de sobrevivências naestrutura capitalista deformações e estruturasanteriores” (LEFEBVRE, 1957apud MARTINS, 1996, p. 17).

Page 62: Tese Ta's - Capa

possibilidades que ainda não se cumpriram. Porque é odesencontro das temporalidades dessas relações que faz de umarelação social em oposição a outra a indicação de que um possívelestá adiante do real e realizado.”10

Essa abordagem possibilitou montar um quadro de referências(Quadro 1 – Referências históricas), apresentado a seguir, queprocura ilustrar as alterações qualitativas que podem ser percebidasnos espaços produzidos e nos desenhos de obra correlativos,conforme a transição entre modos de produção. Esse quadroconstitui um pano de fundo para as passagens históricas queseguem e procura orientar suas leituras.

As questões que foram elaboradas sobre as passagens históricaspartiram também aqui de alguns pressupostos contidos na análiseque Sérgio Ferro apresenta em “O canteiro e o desenho” para acompreensão do processo de separação entre instâncias deconcepção e execução da obra. Por um lado, é identificado operíodo de consolidação da hegemonia burguesa como momentode ruptura e gênese do campo arquitetônico, tal qual oreconhecemos hoje. Por outro, é sugerido que o modo artesanal deprodução das corporações de ofício na época medieval teria sidoexercício de trabalho mais autônomo, em que o próprio artesãodeterminava os procedimentos, formas e matérias de seu trabalho,não estando plenamente separados os momentos de concepção eexecução em instâncias distintas.

“Os primeiros desenhos técnicos... que remontam à Idade Médianão exprimem senão as principais intenções do autor; comportavampoucas informações precisas e sugeriam globalmente alguns temaspara reflexão... tais desenhos estavam longe de trazer umainformação unívoca, tudo era possível e o bom artesão deveriaencontrar como pudesse as intenções do autor... A partir do séculoXVII, a necessidade de fabricações repetitivas provoca umaevolução dos desenhos no sentido da precisão. A solução é a dacodagem homológica, isto é, uma correspondência traço a traçocom o real (ex., o Atlas dito de Colbert)... No século XVII, o desenhofaz ainda um progresso no sentido da precisão ao respeitar umaescala, o que facilita a reprodução (ex., as gravuras de Le Bas paraa Enciclopédia)... Progressivamente, as representações senormalizam, certas homologias desaparecem em proveito de uma...simbolização arbitrária... A informação contida num desenho técnicoé percebida da mesma maneira por todo sujeito possuidor dosdiferentes códigos... Um desenho completo é uma ordem. (...) porlongo tempo, até o século XIX praticamente, o desenho foiraramente um documento de trabalho; não era senão a transcriçãodas formas do ser acabado, uma imagem geralmente ingênua eexterior das coisas.” (DEFORGE, 197011 apud FERRO, 2005, p. 93)

E continuando:“Há progresso, não podemos duvidar; a exteriorização doconhecimento prático abre caminho - mas a longo prazo - para

36

10. MARTINS, José de Souza.As temporalidades da Históriana dialética de Lefebvre. In:MARTINS, José de Souza (org.).Henri Lefebvre e o retorno àdialética. São Paulo: Hucitec,1996, p. 22.

11. DEFORGE, Y. L’ÉducationTechnologique. Casterman,1970, p. 108-112.

Page 63: Tese Ta's - Capa

sua democratização. Antes, porém, e como precondição, omesmo movimento que retira dos trabalhadores suaautodeterminação relativa e seu saber é também o que faz dodesenho uma ‘ordem’ codificada que só os iniciados podemutilizar.” (FERRO, 2005, p. 94)

Sérgio Ferro identifica o processo de “retirada daautodeterminação relativa e do saber dos trabalhadores” ao de“codificação do desenho”, ou seja, à medida que o desenho vaisendo codificado, aproximando-se de uma linguagemdeterminada, os trabalhadores vão perdendo sua autonomiarelativa no trabalho e a exclusividade sobre seu saber. Asistematização dos saberes práticos numa ciência do desenhoacontece no sentido de possibilitar maior coordenação,planejamento e, assim, controle sobre o trabalho em canteiro,refletindo uma maior divisão do trabalho.

Esse primeiro recuo histórico, através da bibliografia citada,confirma o entendimento de que a gênese da separação entremomentos e agentes de concepção e execução, onde se constitui otrabalho do arquiteto moderno, está no Renascimento. Porém, osdesenhos são utilizados nos canteiros de obra desde há muito maistempo. Os primeiros registros de desenhos realizados comoorientadores do trabalho de construção remontam à Mesopotâmia eao Egito antigo. Mas qual a divisão do trabalho de então? Quais asmotivações e finalidades de tais desenhos?

Se na Idade Média os desenhos elaborados pelos arquitetosmestres construtores continham suas intenções gerais, cabendoaos canteiros, carpinteiros e pedreiros interpretar e re-significardurante a execução o que se pretendia, cada vez mais os desenhosperdem essa abertura, deixando de ser apenas um dosinstrumentos de trabalho, no canteiro de obras, para constituircampo de conhecimento específico. O que antes compunha umsegredo dos construtores, conhecimento inserido no fazer, ao sertornado público, como conhecimento teórico, ensinadoinstitucionalmente, acaba por criar um campo de domínio, processoque se inicia em meados do século XVI.

As passagens históricas que se mostraram mais relevantes têmcomo ponto em comum questões gerais, que buscam a origemdo uso do desenho no canteiro de obras: com qual finalidade osdesenhos eram produzidos (projeto, registro, apresentação,cadastro, instrumento para obra ou divisão de terras etc.); quaisos motivos de sua existência (religiosos, místicos, produtivos,econômicos etc.); quais os instrumentos utilizados na suaprodução (régua escalonada, esquadro, compasso, convenção demedidas, escala padronizada, computador etc.); quais ossuportes do desenho (pedra, argila, pergaminho, papel, vídeoetc.); de quais conhecimentos se dispunha (geometria,matemática, ótica etc.).

37

Page 64: Tese Ta's - Capa

Mais especificamente, como se dava a presença do desenho comorecurso de construção – quem o elaborava, quem o manipulava,quais as relações entre eles. Ou ainda, que qualidades os desenhosvão ganhando e perdendo ao longo dos processos de constituiçãodo campo arquitetônico e de industrialização. O foco na relaçãoconcreta de produção da arquitetura, que vê a obra a partir docanteiro e não pára na produção do projeto em si, com seuspreceitos e conteúdos simbólicos, levou-nos a investigar amaterialidade do desenho, por um lado, e por outro, osconhecimentos que são dispostos para sua feitura. É impossíveldissociar os usos práticos do desenho de seus significadossimbólicos nas diversas passagens que seguem, mas propomos vê-los como instrumentos técnicos na relação entre os diversosagentes que participam da produção das obras, como recursoanalítico. É difícil também relacioná-los, já que a documentação éescassa e a bibliografia sugere várias interpretações, o quedemandaria uma pesquisa mais cuidadosa sobre esses documentose as visões dos diversos autores citados.

Destacamos então momentos que contribuem para aprofundar oconhecimento sobre as determinações concretas do desenho deobra e sobre os pressupostos enunciados, por meio dosdocumentos gráficos que chamaram mais atenção. Organizamosas passagens históricas em duas partes. A primeira, compostapor dois itens, refere-se aos antecedentes que de alguma maneiracontribuíram para formar as condições apresentadas na segundaparte, que explora a transição que entendemos como gênese daseparação dos momentos de concepção e execução eminstâncias distintas, divida em três itens. Seria possível recontartoda essa história, pois cada momento desses abre inúmerasperguntas sobre as relações sociais, as técnicas utilizadas, asteorias da época, suas visões de mundo. Mas esse é objeto paraoutro trabalho.

38

Page 65: Tese Ta's - Capa

Quadro 1 - Referências históricas

Page 66: Tese Ta's - Capa

40

Page 67: Tese Ta's - Capa

2.1Do não-desenho ao desenho na produção do espaço

Reunimos aqui as passagens sobre o Não-desenho/ Espaço analógico esobre o Debuxo canônico12/ Espaço cosmológico que constituemantecedentes, camadas subjacentes, às passagens em que se podeidentificar com maior proximidade a separação entre instâncias deconcepção e de execução distintas, apresentadas em seguida. Nessaspassagens, fica ressaltada a necessidade do uso do desenho comoinstrumento técnico na medida em que a organização da sociedade setorna mais complexa, constituída em poderes políticos e religiosos quese representam em obras de alto valor simbólico, ou como necessidadede documentação de contratos das atividades comerciais e citadinas.

Não-desenho/ Espaço analógico

Espaço da presença, do não-desenho. A produção do espaço não sedistingue da produção da própria vida. Aí, não há mediaçõesobjetivadas em representações gráficas nas relações de produção doespaço. As concepções espaciais se apresentam como práticassociais, vividas de forma imediata, pela experiência corporal esensória, numa relação entre o natural e o social. Em outras palavras:

“Espaço analógico: espaço das comunidades arcaicas e tribais, queé apropriado por analogia ao corpo humano - real e imaginário -, seconfigurando com uma projeção desses corpos no espaço.” (OSEKI,1996, p. 113)

Em trabalho desenvolvido por Catherine Gallois são apresentadasrepresentações atuais de aldeias indígenas e discutidos os seussentidos, que reproduzimos aqui por ilustrarem a idéia do espaçoanalógico:

“As aldeias waiãpi são compostas de vários pátios, ligados porcaminhos, que também levam ao igarapé, às roças e à floresta. Numaaldeia pode morar só uma família extensa, com poucas casas emtorno de um único pátio, ou várias famílias relacionadas porcasamentos, morando em vários pátios. Nenhuma forma de ocupaçãoespacial numa aldeia waiãpi, do ponto de vista formal, se repete. Oque se ‘repete’ são formas de apropriações culturais do espaço, masque não se traduzem por uma mesma ‘aparência’. Por exemplo: umaaldeia é composta de roças e pátios. Nos pátios, estão não somenteas casas, mas também os jardins, onde se encontram as ‘plantas dopátio’, ao redor e na proximidade das casas: pimenta, cuia, biribá,pupunha, açaí, caju, gengibre, e outras... Os pátios não têm ummesmo ‘paisagismo’, ou seja, a mesma ordenação espacial das suasplantas e habitações. O arranjo espacial dos pátios varia bastante edecorre do arranjo das famílias, ou seja, de suas relações sociais.”

41

12. Empregamos aqui o termodebuxo, pouco usual na línguaportuguesa, que remete aosentido da palavra desenhocomo esboço, risco. Assim,temos design/ diseño/ dessein/desenho (desígnio) e draw/dibujo/ dessin/ debuxo (traçado).

Page 68: Tese Ta's - Capa

42

“No mapa da aldeia Ajawary, estão representadas nitidamente ascategorias espaciais de uma aldeia waiãpi: ko’o - roça, ka’a -floresta, okary - pátio.

No mapa da aldeia Pypyiny: - Um conceito: os caminhos que saemdas casas (retângulos pretos) no mapa não têm um traçado físico narealidade, mas sim um traçado mental do caminho de cada famíliano pátio que contém as casas ali representadas. - Dois exemplos deprática de ocupação do espaço: em preto, as árvores derrubadas

Figura 2Representação da aldeiaAjawary, delimitada por doisrios, Inipuku e Ajawary, comdois pátios, okary. Umapequena roça, ko’o pari, e aroça ativa. Ao redor, ka’a, afloresta. (autor: Aikyry Waiãpi,desenho feito no Curso deHistória e Geografia/ Magistério(2000), para Formação eCapacitação de ProfessoresWaiãpi, pelo Programa deEducação Waiãpi do Centro deTrabalho Indigenista / CTI, inGALLOIS, 2001)

Figura 1Representação da aldeiaPypyiny, com seus caminhos‘espinha de peixe’, saindo dascasas em direção ao rio.Árvores derrubadas em clareirasrecentes e pupunhas (pypyi).(autor: Japu Waiãpi, desenhofeito na Oficina de Desenho‘Roças, pátios e aldeias’ (2000),atividade do Programa deEducação Waiãpi do Centro deTrabalho Indigenista / CTI, inGALLOIS, 2001)

Page 69: Tese Ta's - Capa

para dar lugar às clareiras para plantio de roças, em azul claro: aspalmeiras pypyi (nome da aldeia: Pypyiny - lugar de pupunhas),tradicional marco de ocupação das aldeias waiãpi.

Foi importante para o autor do mapa da aldeia Ajawary identificar ashabitações, oka, (com nomes dos chefes de cada família em cadacasa) e delimitar bem os pátios (com elipses marrons) como espaçoentre-casas, enquanto que no mapa da aldeia Pypyiny, são maissignificativos os caminhos e as árvores derrubadas.”

“Essas duas aldeias são aldeias ‘tradicionais’, não estão atingidaspelos problemas de sedentarização que existem em outras aldeias,ou seja, em alguns anos não existirão mais: seus habitantes(algumas famílias) terão se deslocado para lugares novos (ka’a -floresta virgem) ou lugares ocupados muito tempo antes (ko’o kwer-capoeiras de roças antigas).

Esses desenhos não são uma representação tradicional dos índiosWaiãpi de seu espaço. Esses mapas e todos os outros desenhos(ambientes, espécies da flora e fauna...) que foram feitos durantecursos/oficinas do CTI/ Centro de Trabalho Indigenista, sãoportanto traduções culturais, ou seja, representações feitas paraque possam ser entendidas por nós, brancos. Os Waiãpivivenciam seus espaços, os conhecem profundamente, portantotêm deles construções mentais, não necessitando de mapas oudesenhos para percorrê-los, experimentá-los, ocupá-los, usá-los,mas podem perfeitamente representá-los espacialmente quandosurge um motivo para essas representações: as trocas culturaisentre alguns Waiãpi e antropólogos do CTI. Obviamente asrepresentações não têm o nosso questionável ‘rigor’ - exatidão narepresentação da realidade e escala, mas apresentam de formasintética alguns conceitos e/ou práticas de ocupação do espaço.”(GALLOIS, 2001)

Onde encontramos essa imediatez da produção do espaço? Háainda restos dessas formas de relação entre o natural e o social,entre o corpo e o espaço, sensível, tátil?

Debuxo canônico/ Espaço cosmológico

“Espaço cosmológico: espaço do modo de produção antigo (ouasiático), desenho no espaço de uma imagem do Cosmo. A cidadecontém um lugar (ágora, panteão, fórum), considerado como o centrodo mundo, de onde se representa - e na prática, se conquista - umespaço dominado.” (OSEKI, 1996, p. 114)

Os primeiros documentos que podem ser considerados comodesenhos de arquitetura, realizados para a construção, provêm daMesopotâmia e do Egito e datam aproximadamente de 2500 a. C.

Na Mesopotâmia, sociedade onde estavam muito desenvolvidasas atividades comerciais e produtivas, inclusive com sistemascontábil e bancário, são encontrados registros de desenhos que

43

Page 70: Tese Ta's - Capa

tinham por finalidade documentar contratos de compra e venda,como para a descrição e o dimensionamento de imóveis. Hátambém indícios do uso do desenho como auxiliar da construção.Um deles são as estátuas de Gúdea de Lagash, imagens maisantigas que retratam o que seria hoje a atividade de arquitetura.Nelas estão representadas um grande tablete de barro, com umaescala graduada e um estilete de gravação, e em uma delas umaplanta baixa, desenhada no tablete, o que indica a atividade deprojeto. Segundo Mario Mendonça de Oliveira, em seu livro“Desenho de arquitetura pré-renascentista”, que apresentapesquisa de 1976, Gúdea de Lagash, além de “patesi”, chefepolítico-religioso, “dedicava-se também às atividades daarquitetura, privativas dos intelectuais, especialmente dossacerdotes, monopolizadores da cultura e da ciência da época”(OLIVEIRA, 2002, p.27). Porém, há divergências entre oentendimento do exercício da arquitetura ligado ao poder,religioso e político, e a compreensão da atividade de construçãocomo parte dos ofícios manuais, havendo talvez níveis deatuação para os “arquitetos mestres de obra”, que não sedistinguiam socialmente dos escultores, ferreiros e sapateiros(PERRONE, 1993, p. 75). Está claro, por outro lado, que asociedade já apresentava certo grau de divisão do trabalho,refletida numa hierarquia.

Um exemplar bastante significativo é o Tablete de Umma, que datade 2000 a.C. e apresenta a planta de uma casa de formaretangular, composta provavelmente de seis cômodos e um pátiocentral. Assim como outros desenhos do período, seu suporte é otablete de barro, que passava por processo de queima, gravadopelo uso de estiletes de madeira ou metálicos, idênticos aosusados para a escrita, com auxílio de régua graduada, o que seobserva pela regularidade do traçado. Dispunham de esquadro ecompasso, e alguma convenção de medidas, provavelmenteantropométrica. Há semelhanças entre esse desenho e outros doperíodo, que indicam a existência de “convenções”, como autilização do sistema de projeções ortogonais, sendo maisfreqüentes as plantas baixas, e a forma de representação dasportas e paredes, muito similares às praticadas ainda hoje.Detalhes interessantes: todos os cômodos têm largura idêntica,exceção ao pátio central, comprovado não somente pela medidadireta, já que o desenho está em escala proporcional, mas tambémpelos sinais cuneiformes que são idênticos; os dois espaçosposteriores, que deveriam ser diferentes pela marcação dodesenho, foram igualados pela correção das cotas, semnecessidade de correção do desenho, o que sugere que aindicação cotada prevalece sobre a medição direta do desenho; háum sistema de modulação que tem por base a espessura daparede (OLIVEIRA, 2002, p. 28-33).

44

Page 71: Tese Ta's - Capa

Esse desenho chama a atenção, primeiro, pelo objeto representado,uma casa. Não se sabe o motivo de sua realização, mas parece maisprovável que servisse como documento cadastral, até porque as cotaspoderiam ser lidas por poucos. Mas a idéia de “convenção” que temoshoje permite reconhecer características semelhantes entre essesdesenhos e os atuais, como a utilização da projeção ortogonal, odesenho como suporte para as cotas, a forma abstrata de representaras paredes, por exemplo. Não está claro, no momento, seu uso comomediação nos processos produtivos, e em que medida se coloca aseparação entre quem elabora o desenho e quem constrói. Mas,podemos arriscar que a forma de representação, que nos permiteapenas reconhecer duas das dimensões do objeto representado,sugere também uma aproximação por analogia ao espaço,principalmente pela forma de representação da vegetação e da água,semelhantes tanto nos exemplares da Mesopotâmia, quanto do Egito.

45

Figura 4Planta de um desembarcadouro,fragmento, Egito (in OLIVEIRA,2002, p. 207)

Figura 3Tablete de Umma,Mesopotâmia, 2000 a.C. (inOLIVEIRA, 2002, p. 187)

Page 72: Tese Ta's - Capa

São semelhantes os preceitos que orientaram as atividades deconstrução, os instrumentos e os conhecimentos necessários para suarealização na Mesopotâmia e no Egito, “as atividades do desenhistase confundiam com as do escriba, pois todo ilustrado deveria dominara técnica da escrita, não fazendo exceção o arquiteto” (OLIVEIRA,2002, p. 27). O ato de desenhar correspondia ao ato de escrever, eassim o “arquiteto” iniciava sua formação como escriba. Os suporteseram pedras e blocos de argila, e também o papiro, no caso do Egito.Os instrumentos, esquadros, réguas, compassos e escalas graduadas.Entre as finalidades, parecem mais preponderantes nos documentos aque se tem acesso em ambos os casos, as de registro cadastral e deinventário de bens, havendo mais exemplares egípcios que indicamsua destinação à execução de obras.

Mas as descrições encontradas sobre a construção no Egitoapresentam algumas especificidades. O uso de cores nos desenhosseguiam um certo padrão, assim, as portas e os elementos demadeira eram amarelos, o traçado era feito em preto e osreticulados em vermelho, por exemplo. Para além dos aspectosgráficos, os conteúdos simbólicos dessas representações merecemdestaque, também por motivarem a realização de desenhos.

“A ‘iniciação’ dos arquitetos constava de um conjunto deconhecimentos religiosos, porque o ato de projetar era prenhe deconteúdos simbólicos e sinônimo de todo conhecimento. No casodo Egito, o treinamento básico, que passava pela formação doescriba, era um grande passo em direção à formação nas artes dodesenho, visto que o domínio da escrita hieroglífica exigia umdesenvolvimento gráfico excepcional.” (PERRONE, 1993, p. 73)

Essas atividades tinham um sentido religioso e procuravam elaborarcânones que representassem o permanente, o duradouro, como“simbolização da eternidade intemporal”. Na escultura, na pintura,no relevo e na construção de monumentos, eram utilizadasprojeções ortogonais para encontrar a melhor representaçãosegundo os preceitos cosmológicos. As quadrículas eram umamaneira de garantir a reprodução de certas proporções, quetambém se remetiam a esse simbolismo: “(...) tinham o objetivo degarantir o convencionalismo da representação, a segurança docânone, a delimitação da regra” (PERRONE, 1993, p. 74).

Um exemplar característico, considerado o desenho de maiortécnica quanto à execução, é o fragmento de um papiro comdesenho de um naos13, que data de 2500 a.C., em que estãorepresentadas suas elevações frontal e lateral, fazendo uso dasprojeções ortogonais e da quadrícula como recurso de projeto.

“Esse desenho é um plano geométrico (traçado sobre papiro)representando a fachada e um lado de um naos em madeira.Somente falta a vista em planta que pode ter sido traçada sobreoutra folha hoje desaparecida. O tema foi desenhado em tinta pretasobre um fundo quadriculado em vermelho”. (Leroi-Gourhan, 1962apud Yves Deforge, 1981, p. 20)

46

13. “Os naos são pequenascapelas de pedra ou de madeiraonde habitava em qualquertempo o espírito, certas festas,o corpo mesmo do Deus”. In:MASPERO, Gaston (1846-1916). L’archéologie égyptienne.<http://www.gutenberg.org/ebooks/10841> acessado emmaio de 2008.

Page 73: Tese Ta's - Capa

Yves Deforge entende, porém, que a planta baixa não serianecessária para a compreensão pelo realizador do objetotridimensional. Bastava marcar as medidas contidas nas elevaçõesno próprio local da construção, em procedimentos muito similaresaos encontrados hoje. Para ele, não é possível compreender a partirdesses poucos documentos quem fazia os desenhos. Mas assumeque são os primeiros desenhos técnicos, ou seja, “os desenhosportadores de informações técnicas necessárias e suficientes àexecução por um trabalhador determinado” (DEFORGE, 1981, p. 22).

De qualquer forma, na bibliografia consultada, parece havervariadas características para os trabalhos de construção e suadivisão. O trabalho do arquiteto está associado ao do sábio,poderoso, sacerdote-escriba, que concebe as obras maiscomplexas e significativas para que outros a realizem. E, ao mesmotempo, essa atividade se situa entre os demais ofícios manuais, nãose distinguindo o trabalho manual do intelectual no fazer. Mas,numa sociedade hierárquica e baseada no trabalho escravo,podemos entender que haja uma definição de atribuições,determinando uma divisão entre o trabalho manual e o intelectualem vários níveis. A construção de grandes obras público-religiosas,de alto valor simbólico, no Egito, vem responder à centralização doEstado, que aí se representa. Os arquitetos eram sacerdotes,próximos ao Faraó, mas não necessariamente deixavam departicipar do processo construtivo. A condição escrava nãonecessariamente correspondia univocamente a trabalho manual. Ehá uma hipótese de que camponeses, no período de entressafras eatraídos pelo valor simbólico dos monumentos, dirigiam-se aoscanteiros das pirâmides pela honra de participar da construção datumba do Faraó-Deus. A execução de obras de tal vulto foiprovavelmente precedida de planejamento e de projeto.

47

Figura 5Desenho de um naos, papirode Gur’Ab, Egito, 2500 a.C. (inDEFORGE, 1981, p. 21)

Page 74: Tese Ta's - Capa

Cabem ainda alguns comentários sobre a prática da arquitetura naGrécia e Roma antigas. Apesar de não terem chegado até nósdocumentos e registros de desenhos realizados para a construçãodas obras, a grande difusão e desenvolvimento da arquitetura gregasó seria possível pelo “uso de um instrumental de desenhospreparatórios para a execução das obras, (...) isso porque a análisedas obras construídas e o nível geométrico e matemático que sesubentendem de sua existência não possibilitam outras alternativasde produção” (PERRONE, 1993, p. 77). Mas essa é uma questãointerpretativa, já que se reconhece que tanto o traçado dos perfis ecurvas, quer obedecessem ou não a expressões geométricas,quanto as regras nas aplicações dos módulos e as épuras para oscortes de pedras, constituíam práticas da atividade construtiva. Seo desenho não foi instrumento anterior à obra, de concepção, seusrecursos ao menos estavam sendo empregados diretamente nocanteiro. São citados também o uso de modelos - “paradeigma”, dememoriais sobre as construções que continham detalhadasespecificações feitas pelo arquiteto da obra - os “syngraphe”, e os“anagrapheus”, que indicam com maior proximidade a realização deum projeto por meio de um desenho, possivelmente cotado.

Um exemplar significativo é a especificação para o Arsenal de Pireu,obra de Filon de Eleusis14, que data de 347-346 a. C., em que estãodescritos em detalhe as dimensões que deve ter o depósito deequipamentos náuticos, os procedimentos e etapas de execução eos materiais a serem empregados. No texto, há referência ao uso deum modelo que deve ser respeitado quando da execução da obra,assim como as especificações ditadas pelo arquiteto e os prazosestabelecidos por contrato. Pela qualidade da informação queapresenta, fica difícil imaginar que o arquiteto não tenha feito uso dedesenhos, ao menos pessoalmente, para depois descrever a obraconcebida. De onde se deduz que os desenhos faziam parte dosrecursos técnicos empregados no período (OLIVEIRA, 2002, p. 90).

“É de se prever que o arquiteto grego tenha emergido em grandeparte do artesão escultor e tenha tido seu trabalho vinculado aocanteiro, o que fez com que sua prática projetiva estivesseinicialmente contida pelos limites de um ‘desenho’ imediato eoperativo e que esse trabalho, aos poucos fosse adquirindo certaautonomia para chegar, à época de Vitrúvio, como um campo devasto conhecimento.” (PERRONE, 1993, p. 78)

Na falta de documentos que comprovem o uso de desenhos para aconstrução entre os romanos, existem outras fontes que indicamindiretamente sua existência. Uma delas é o tratado de Vitrúvio, “Dearchictettura”, do século I a.C., que constitui uma das poucasreferências para o conhecimento da arquitetura da Antigüidade eapresenta conhecimento sistematizado sobre uma prática que foi sedefinindo no decorrer do tempo, tendo influenciado a práticaarquitetônica na época medieval, e principalmente os arquitetos etratadistas do Renascimento. Supõe-se que era ilustrado, mas

48

14. Reproduzido em OLIVEIRA,Mário Mendonça de. Desenhode arquitetura pré-renascentista.Salvador: EDUFBA, 2002, p. 90.

Page 75: Tese Ta's - Capa

esses documentos não chegaram até nós. Nele há referênciaexplícita à utilização de processos gráficos de representação, bemcomo sobre o conhecimento do desenho e o domínio de suatécnica constituírem conteúdos importantes na formação doarquiteto. Sobre os processos de representação são citados a“ichonographia” – que é o desenho em escala reduzida da plantabaixa do edifício, feito a compasso e régua; a “ortographia” – quecorresponde à elevação da fachada, com medidas; e a“scenographia” que é o que se aproxima da perspectiva comoentendida hoje, que permite a visão simultânea de duas fachadas(OLIVEIRA, 2002, p. 95).

De tantas sociedades, com características próprias, as relaçõesentre a técnica, a geometria, a matemática e suas cosmologias,parecem ser motivações predominantes para a necessidade do usode desenhos, que representem essas concepções, ainda poucoabstraídas da prática como formas produtivas. Ou melhor, inseridasna prática produtiva e fundamentadas no nível teórico por razõessimbólicas. As referências a medidas são em geralantropométricas, dedos, palmos, cúbitos, nenhuma precisão seespera daí. E as “convenções”, se existem, não parecem estarsistematizadas como regras.

49

Page 76: Tese Ta's - Capa

2.2Do desenho prático à ciência do desenho

Nesta parte, estão reunidas as passagens em que se evidencia oprocesso de constituição de campos distintos de concepção e deexecução na produção do espaço, tendo em vista o período deretomada da vida urbana, que se apóia tanto nas atividades ruraisquanto em atividades comerciais crescentes. O poder político-religioso das Cidades medievais começa a dar lugar ao poderpolítico-econômico de Estados laicos em formação. O resgate devalores da Antigüidade contribui para a constituição da Ciência.Essas passagens abordam o uso do desenho como instrumentotécnico para a construção, que passa a ser, cada vez mais,determinado por conhecimentos teóricos que foram abstraídosdas práticas construtivas, são elas: Debuxo simbólico/ Espaçosimbólico, Desenho como projeto e instrumento cognitivo/ Espaçoperspectivo e Desenho abstrato/ Espaço capitalista. Comocamadas sobrepostas, espaciais, que se correlacionam aosmodos de produção em que se inserem, conforme exposto noquadro de referências, subsistem na prática presente comosuporte do que segue.

Debuxo simbólico/ Espaço simbólico

“Espaço simbólico: espaço da cidade medieval, que emerge dossubterrâneos (das catacumbas) em direção à claridade, à luz, aoVerbo. Espaço simbólico-religioso e também simbólico-político: daluta entre a classe burguesa emergente e os senhores feudais,donos da terra.” (OSEKI, 1996, p. 114)

Há muitos exemplares de desenhos de arquitetura medievais,principalmente do período entre os séculos XIII e XV, a maioriadeles tendo por finalidade a apresentação de projetos paraclientes, especialmente ordens monásticas ou conselhos comunais.Outros têm por finalidade o cadastro de obras e oacompanhamento de contratos. E os desenhos destinados a guiara execução se apresentam de diversas formas, em cadernos deestudos, croquis, detalhes e análises geométricas, estudos decorte de pedras, locação e distribuição das mesmas, moldes etambém desenhos de máquinas.

Uma fonte importante de conhecimento sobre os desenhos dearquitetura na Idade Média, bastante estudada, é o caderno de Villardde Honnecourt15, que contém 33 folhas de pergaminho desenhadasem frente e verso, realizadas entre 1225 e 1250. Nele, estãoregistrados “por um lado, numerosos desenhos de figuras, homens,animais, motivos decorativos, imaginados ou reproduzidos, por outro,

50

15. Ele seria um praticante dasciencia de ingeniis, umingeniator, architector ougeometricus e carpentarius.Nascido na Picardia, no séculoXIII, trabalhou em várias cidadesda França e na Hungria (GAMA,1986, p. 92).

Page 77: Tese Ta's - Capa

projetos ou indicações de máquinas e de dispositivos, de canteiro oude guerra, máquinas primitivas e acessórios móveis, figuras degeometria elementar, enfim, planos, elevações e cortes de edifícios ecroquis de construção ou detalhes técnicos” (BECHMANN, 1993, p.73). Esses croquis, mais ou menos elaborados, acompanhados ounão de observações e notas, não são desenhos de execução, parauma obra específica, mas sim indicações que representam objetos oumonumentos existentes ou projetados, bem como procedimentospara a execução. Na tentativa de compreender o significado dessesdesenhos, procuramos referências sobre as relações de trabalho emque o arquiteto, mestre construtor, estava inserido.

Muito citadas são as corporações de ofício, de artesãos e decomerciantes, como forma de organização do trabalho nas cidadesno período medieval, que mantinham em segredo o conhecimentosobre suas práticas, exercendo o domínio e o privilégio sobre oofício, tanto na forma de monopólio quanto no controle daqualidade dos produtos, transmitindo seu conhecimento oralmenteno processo de formação dos aprendizes pelos oficiais e mestres.Mas, “os ofícios urbanos certamente não cobriam toda a técnica,pois um grande número de invenções e inovações ocorreu fora da

51

Figura 6Planta do Mosteiro de S. Gall –é um dos mais antigosdocumentos da épocamedieval, provavelmente umesquema ideal de um mosteirobeneditino, traz aespecificação das funções dosdiferentes espaços e pode serconsiderado um “projeto tipo”,empregado na fundação denovos mosteiros, adaptando-se sua altura, materiais etécnicas construtivas aos usose costumes dos diferentespaíses, aprox. 820 (in SAINZ,2005, p. 114)

Page 78: Tese Ta's - Capa

área de privilégio das corporações” (GAMA, 1986, p. 90), como naagricultura e na construção de moinhos, por exemplo.

O construtor de moinhos, considerado por alguns autores como oantecessor do engenheiro moderno, assim como o arquiteto mestreconstrutor, fazia parte do campo de atividades designado como dasartes liberais, em oposição às artes mecânicas. Eles deviam dominaruma grande variedade de conhecimentos, práticos e teóricos, paraa realização das obras e máquinas, e assim, circulavam entrediversas cidades.

“O arquiteto, o mestre de engenhos e o engenheiro militar sempreescaparam, por vocação, dos regulamentos e da rotina, da fixaçãogeográfica e do isolamento intelectual. Fato constante, a construçãode cidades, de catedrais, de castelos, era confiada a artesãos que,por sua mobilidade e pela complexidade de suas tarefas,demoraram muito a se integrarem nas confrarias e no sistemacorporativo.” (MOSCOVICI16 apud GAMA, 1986, p. 92)

No caso da construção de edificações, havia também umaorganização independente das corporações, as “sociedades doscompanheiros”. Constituídas nos tempos das cruzadas, eramformadas por pedreiros, canteiros e carpinteiros que compunhamuma espécie de corpo de engenheiros militares, encarregados daconstrução de pontes, templos e fortificações. A origem da palavra“companheiro” remete ao “compasso”, instrumento fundamental paratraçar arcos de círculo, mas também para medir e transferir medidas(GAMA, 1986, p. 93). Essas sociedades secretas guardavamzelosamente os segredos da geometria prática usada no corte daspedras, a estereotomia, que fundamenta a técnica de construção dasigrejas góticas, e faziam uso, provavelmente, de gabaritos “quepermitiam a rápida realização de formas estereotipadas: grades,persianas, sacadas e escadas” (DEFORGE, 1981, p. 25).

A atividade de construção das catedrais, símbolos importantes doperíodo, apresentava diferenças em relação à prática maiscorriqueira das corporações e dos Companheiros. As catedraiseram encomendadas por um conselho de obra que recebia doaçõese cuidava para que os trabalhos andassem bem. Esse conselhopromovia concursos para a escolha do arquiteto e do projeto a serrealizado. Assim relata Yves Deforge:

“O arquiteto apresentava provavelmente uma planta baixa, nãodimensionada, expondo, sem entrar nos detalhes arquitetônicos, umaidéia da forma e da distribuição das capelas. A planta deveria ser emseguida adaptada ao terreno disponível. A planta poderia ser umacriação original do arquiteto, como aquela que Villard de Honnecourt dizter traçado discutindo com seu colega e amigo Pierre de Corbie. (...) Masos administradores da obra17 não podiam sonhar em correr o risco deuma inovação que se acrescentaria aos riscos já numerosos doempreendimento; o arquiteto então tinha o recurso de extrair de seuscadernos plantas que ele havia copiado mais ou menos fielmente,quando de seus deslocamentos ou de seus trabalhos anteriores. Villard,

52

16. MOSCOVICI, S. Essai surl’Histoire Humaine de la Nature.Paris: Flammarion, 1977, p. 218.

17. (bourgeois de l´ouvre)

Page 79: Tese Ta's - Capa

tendo que reconstruir a cabeceira (deambulatório) da Notre Dame deCambray, vai a Reims e, estudando a cabeceira e a nave, fazendo algunscroquis, escrevendo algumas notas, não toma uma só medida; de volta,faz suas épuras, encontra ‘a seu gosto’ (‘em torno de seu cérebro’) asdimensões que convêm e constrói.” (DEFORGE, 1981, p. 26)

Villard de Honnecourt seria, então, um desses arquitetos-artesãosque elaboravam os esboços das construções mais importantes.Seus cadernos apresentam estudos de outras obras, como registrosde viagem, mas também anotações sobre como construir figurasgeométricas que auxiliavam no corte de pedras.

53

Figura 8Página 15r do álbum de Villardde Honnecourt. “Duas plantasde igrejas. No texto: esta éuma igreja com deambulatórioduplo projetada por Villard deHonnecourt e Pierre de Corbie.A segunda planta é da igreja deSt. Stephen de Meaux”. 1225-1250 (in BORGES, 2005, p. 78)

Figura 7Páginas 30v, 32r e 32v doálbum de Villard deHonnecourt. “30v – Elevaçãoda capela; 32r – Quatrodetalhes arquitetônicos depilares e modelos para corte depedra; 32v – Vista esquemáticada cobertura e arcobotantes;para Catedral de Reims”. 1225-1250 (in BORGES, 2005, p. 81)

Page 80: Tese Ta's - Capa

Esses desenhos, porém, tinham um significado para além de seu usotécnico. A geometria era tida como um modelo físico do cosmos, daestrutura do Universo. E através dela era possível realizar obras querepresentassem simbolicamente o reino de Deus na terra. Daí a idéiada representação por “esquemas” ou “universais” a que se referePerrone, a partir de Gombrich, em seu trabalho.

“Substantivos comuns tais como ‘homem’, ‘canteiro’, ‘cachorro’ ou‘leão’, denotam conceitos, isto é, ‘universais’. Referem-se à classede coisas das quais os individuais são meros exemplos. Uma grandebatalha travou-se nas escolas medievais em torno disso. Discutia-sese os ‘universais’ eram mais ‘reais’ que as coisas particulares (...).Nessa terminologia, aquilo que venho chamando de ‘esquema’reporta-se aos universais. (...) Nos contextos normais à artemedieval, o esquema podia funcionar como um hieróglifo oupictograma.” (GOMBRICH18 apud PERRONE, 1993, p. 106)

De qualquer forma, os desenhos eram instrumentos de projeto etambém de construção. Não estavam ainda determinados por umsistema de medidas, escalas, ou convenções gráficas, sendoexpressões individuais de seus produtores, mas já serviam comosuporte para a discussão em torno da obra que iria ser construída.Também porque “mais do que em outras construções, aconservação da idéia diretriz ao longo do período de edificação [dacatedral] fez necessário o uso de substitutos, retransmissores:modelos, maquetes e desenhos” (DEFORGE, 1981, p. 25).

O arquiteto, nesses termos, participava do trabalho de execução.Um indício é o fato de que muitos dos desenhos de fachadas decatedrais, que eram apresentados aos executores e aos clérigos,aos conselhos de obra, não terem correspondência com o que defato foi construído (COLOMBIER19 apud PERRONE, 1993, p. 109).Provavelmente, durante o processo construtivo cabiam alterações eadaptações, ou mesmo inovações, sobre a primeira imagemconcebida, com a participação do arquiteto, mas também depedreiros, canteiros e carpinteiros. Mas a atividade de desenho e ouso da geometria não se restringiam às etapas anteriores ao inícioda obra. O traçado das épuras se dava na obra, assim como odesenho de moldes e gabaritos auxiliares do corte das pedras:

“Conhecer a arte de construir é, antes de mais nada, traçar um desenho,traçar as pedras, talhá-las, construir um vigamento... o método deconstrução utilizado pelo engenheiro medieval consiste em traçar painéisou ‘pranchas traçadas’ no canteiro da catedral e em fazer talhar aspedras nas pedreiras. Estas, de volta ao canteiro, serão ajustadas echumbadas na argamassa.” (VIEUX20 apud PERRONE, 1993, p. 104)

Em trabalho de Roland Bechmann, historiador e arquiteto francês,encontramos descrição sobre o trabalho em canteiro para aconstrução das catedrais góticas. Segundo o autor, o mestre deobras era ao mesmo tempo arquiteto, engenheiro, empreiteiro echefe de canteiro, representado em geral com um compassopequeno de pontas secas, o compasso do desenhista.

54

18. GOMBRICH, E. H. Arte eilusão. São Paulo: MartinsFontes, 1986, p. 134.

19. COLOMBIER, Pierre du. Leschantiers des cathedrales. Paris:A&J, 1953.

20. VIEUX, Maurice. O segredodos construtores. Rio deJaneiro: Difel, 1977, p. 83.

Page 81: Tese Ta's - Capa

“Se ele foi um antigo talhador de pedras, que passou pelas suascapacidades particulares ao escalão superior de projetistacoordenador e mestre de canteiro, ele se reservava às vezes certasesculturas delicadas, importantes ou em vista, deixando de procurara ajuda de práticos. Se ele foi carpinteiro de origem, podia serconduzido a intervir pessoalmente em uma obra de carpintaria difícilou decorativa.” (BECHMANN, 1981, p. 229)

Era auxiliado por colaboradores, ou condutores do trabalho, natarefa de transpor as concepções iniciais à obra. Um deles éconhecido como “appareilleur”21, ou “emparelhador”, quase tãocompetente quanto o mestre, era encarregado de traçar emverdadeira grandeza sobre as pedras, e não sobre os planos dedesenho, aquilo que o mestre lhe passava, sendo representado comum grande compasso, usado para tal fim.

Os canteiros das catedrais góticas mobilizavam vários trabalhadoresdas cidades, entre artesãos pagos (o pedreiro, talhador de pedras; oque quebra as pedras para fazer cimento – mortellier; o telhadista –couvrieur; vidraceiros; aquele que nivela o terreno – terrassiers;carpinteiros; marceneiros) e trabalhadores não especializados,sazonais, por vezes voluntários que auxiliavam no transporte depedras, madeira e na execução de construções de apoio, andaimese cestarias (BECHMANN, 1981, p. 266). Apresentavam entãoelaborada divisão e hierarquia no trabalho, havendo diferenças noconhecimento e no domínio das técnicas aplicadas.

“Mas o que seria criticável para os arquitetos-artistas do século XIX, amarca de um certo deixa-estar, um abandono, de uma falha deorganização prévia que deixa muito espaço à improvisação, justificava-se para o arquiteto gótico: os planos eram raros e pouco explícitos, ostrabalhadores eram iletrados [daí a ausência de cotas nos desenhos],

55

Figura 9Compasso de Guidobaldo delMonte (séc. XVI), aperfeiçoadopor Galileu, permitia obter oslados de um polígono inscrito,a partir do diâmetro do círculo;ou dividir e multiplicar umamedida em n vezes. (inBECHMANN, 1981, p. 237)

21. O termo remete a “pareille”(parecido, parelha) e a “parlieur”(falador), que poderia designaraquele que fala aos trabalhadores,mas segundo Bechmann, indicacom maior proximidade umpedreiro experiente.

Page 82: Tese Ta's - Capa

fazia-se necessário que o mestre ele mesmo velasse para que todos osdetalhes fossem executados progressivamente conforme suaconcepção, o que o obrigava a uma presença e a uma participaçãocontínua no trabalho. Mas ele devia materializar sua concepção, tornarsuas intenções, seu ‘projeto’ comunicável aos executores. Não erasempre pelo desenho que ele o alcançava.” (BECHMANN, 1981, p. 230)

A ausência de desenhos elaborados, pelo que descreve o autor, sejustifica por constrangimentos materiais: não existiam meiosmecânicos de reprodução dos planos em diversos exemplares, sendonecessário copiá-los um a um manualmente; nem de grandes folhasde papel, superfícies de gesso ou pranchas de madeira eram ossuportes em que se podia “fazer o traço”; as condições deluminosidade demandavam muito tempo livre em pleno dia paradesenhar; os pergaminhos eram custosos e de dimensões restritas.Diante disso, “estava fora de questão fazer planos completos,numerosos e detalhados, correspondendo a uma obra tão importantequanto uma catedral, sobretudo pela necessidade de se fazer osdesenhos da maior parte das pedras que compõem sua construção,mesmo levando em conta as repetições” (BECHMANN, 1981, p. 232).Daí os desenhos somente da fachada e de alguns detalhes.

A simplificação e a redução do número de desenhos eram tambémfacilitadas pela padronização esquemática desenvolvida pelos góticos.Por outro lado, os mestres de obra da época utilizavam amplamente atécnica dos modelos em verdadeira grandeza para explicitar suasintenções, modo de maior facilidade comunicativa, procurandotambém a redução de seu número, da variação, sobretudo a partir domomento em que a “pré-fabricação” das peças se torna uma práticacorrente, principalmente pela distância das pedreiras e pela dificuldadede transporte das pedras, o que exigia que os blocos fossemtrabalhados antes de chegarem aos canteiros de obra.

56

Figura 10Traçados geométricos eesquemas a partir de basequadrada, em diversosdesenhos de Villard deHonnecourt (in BECHMANN,1981, p. 235)

Page 83: Tese Ta's - Capa

Para aquilo que não era possível representar em modelos naescala real, e na ausência de um padrão métrico, eram utilizadosdesenhos que podiam ser reproduzidos pela transferência dasmedidas, com o uso do compasso ou da linha, de figurasgeométricas simples, o círculo, o quadrado, o triângulo eqüilátero.Assim, a relação entre a base e a altura de uma fachada, porexemplo, era freqüentemente estipulada por proporções simples,baseadas no quadrado (altura igual à base) ou no triânguloeqüilátero (altura igual àquela do triângulo eqüilátero construídosobre a base). O compasso seria importante instrumento para“extrair a elevação a partir do plano”, considerado por algunsautores como o segredo dos construtores da época, mas queRoland Bechmann entende como a técnica de elaborar e construira elevação a partir da planta:

“Graças à geometria descritiva, assegura-se a concordância entreelevação e plano, mas não se ‘extrai’ do plano a elevação: essasrepresentações devem ser concordantes entre si e sãointerdependentes, mas cada uma tem sua concepção própria; elasnão se deduzem uma da outra: pode-se ter sobre um planoquadrado, uma elevação construída a partir de triângulos. Porconseguinte, o sentido dessa expressão talvez signifique,sobretudo, passar do plano - ou seja, do desenho sobre uma folhaplana - à elevação, isto é, à construção realizada em elevação;dito de outra forma, seria essencialmente assegurar aconcordância do desenho e da execução, por isso mostramos anecessidade dos traços geométricos, os quais podem utilizareventualmente quadrados ou triângulos ou os dois.” (BECHMANN,1981, p. 233)

Apesar da complexidade que o trabalho de execução das catedraisapresenta, sendo possível reconhecer uma clara hierarquia nadivisão do trabalho, o mestre construtor coordenando o processode construção a partir de uma intenção inicial, o trabalho conjuntode artesãos especializados e de trabalhadores braçais,participando, provavelmente, da elaboração da forma acabada, odesenho não estava separado do trabalho em canteiro comoprocesso produtivo anterior. Era um dos instrumentos de trabalho. Oconhecimento da geometria se traduzia nos desenhos auxiliares,esses abundantes, da produção das formas, das peças, refletindonas soluções estruturais adotadas a partir dos materiais disponíveis,o arco ogival, as abóbodas e cúpulas, os arcobotantes. Mas o usode desenhos na produção das peças já se anunciava comopossibilidade de racionalidade técnica. Algumas das condições paraa separação da produção do desenho como momento anterior jáestavam presentes, refletindo na sistematização dos conhecimentosdas corporações e no questionamento de seu poder, numa épocaem que o trabalho corporativo começa a ser entrave para odesenvolvimento das forças produtivas.

57

Page 84: Tese Ta's - Capa

Desenho como projeto e instrumento cognitivo/Espaço perspectivo

“Espaço perspectivo: espaço das cidades renascentistas, do capitalbancário associado à empresa comercial, dos palácios burgueses nocampo, rodeados pelas ‘mezzadrie’*. Ligando os palácios, caminhosplantados com ciprestes. Espaço composto por perspectivas e visuais,que conduzem o viajante ou o morador aos lugares centrais. Momentode criação única de um código único que rege desde o cômodo, oimóvel, o quarteirão, o bairro, à cidade e seu entorno. Espaço de gozoe alegria, espaço da arte e da obra. (*A mezzadria clássica toscana,estrutura agrária fundada na parceria entre senhores e servos, mostra ainfluência da cidade sobre o campo. ‘Florença, Siena, Pisa, Luca,Pistóia modelaram os campos que as rodeavam.’ Cf. Henri Lefebvre,Clases sociales en la sociedad rural, in De lo rural a lo urbano,Barcelona: Península, 1975, 3ª. ed., p. 39)” (OSEKI, 1996, p. 114)

O período do Renascimento é reconhecido como momento em quese origina o arquiteto moderno, reflexo de mudanças e rupturasprofundas na sociedade e em sua visão de mundo. Representa pontode inflexão na separação dos trabalhos intelectual e manual por serperíodo da consolidação da classe burguesa, da dissolução dascorporações de ofício, da realização da separação entre proprietáriose não-proprietários: dos meios de produção e dos produtos, da terrae das condições da própria (re-) produção. É momento também doresgate dos valores clássicos e da constituição da ciência.

Até então, o desenho estava diretamente relacionado ao canteiro, eo arquiteto era também mestre construtor. Esse desenho servia apropósitos místicos, religiosos, tinha atributos táteis, apresentavauma antevisão do objeto a ser construído que representava visõesde mundo, do cosmos. Em alguns casos, era memória, registro degrandes obras, que levavam tempo para serem construídas, comoas catedrais góticas. Em outros, orientava um corte de pedra ou demadeira. A divisão do trabalho ainda não estava definida eminstâncias de concepção e execução e as decisões sobre a obraocorriam simultaneamente e no mesmo lugar, o canteiro.

Há, porém, várias interpretações e caminhos para se compreenderessa passagem do ponto de vista da arquitetura e da construção,olhando pelo lado da arte e pelo lado da técnica. Procuramos entendero que ocorre nas formas de divisão do trabalho ou por que essemomento é caracterizado como fundador se, nas passagens anteriores,já foram identificados momentos de projeto e desenho separados darealização da obra. Quais as determinações concretas dessasmudanças e rupturas? Quais alterações ocorreram no conjunto dasrelações sociais que repercutiram naquelas entre arquitetos e artesãos?

Compreendendo a arquitetura do Renascimento como “aquela quese utiliza de um repertório de formas normatizadas, retiradas daantigüidade clássica” (PERRONE, 1993, p. 129), um primeiro pontode interesse para entender essa passagem trata da vinculação da

58

Page 85: Tese Ta's - Capa

arquitetura ao campo das artes, ligando-se mais à pintura e àescultura e afastando-se das outras atividades que envolvem aconcepção e a execução de artefatos, os ofícios manuais, que seconstituem como técnica.

“A arquitetura no Renascimento irá se caracterizar como uma atividadeque se incorpora, que se inclui no campo da ‘Arte’ (vista comoatividade unitária), colocando-se junto com a pintura e a esculturanuma esfera que as distingue de outras atividades humanas às quaisestiveram por muito tempo incorporadas. (...) Em outros termos, noRenascimento, o trabalho de arquiteto vai emergir, distinguindo-se domodo de fazer do artesão (do simples trabalho manual). O trabalho doarquiteto aparecerá, claramente, como trabalho intelectual, idealizador,diretivo e coordenativo.” (PERRONE, 1993, p. 130)

Nesse sentido, o desenho em relação à arquitetura doRenascimento toma duas direções, proporcionadas pelodesenvolvimento da perspectiva exata. Por um lado, é instrumentode projeto, ideativo, possibilitando a constituição de uma linguagemcomum aos diversos ofícios, a realização de estudos e um maiorcontrole sobre o espaço proposto.

“No Renascimento, com a perspectiva exata e a ampliação do papeldo desenho, cada particularidade e todas as relações de partes daobra podem ser determinadas com antecipação. (...) O desenhoaparece como meio de projetar, meio de avaliar soluções, configuraseu caráter gnosiológico como ação de conhecer e reconhecerdiversas proposições arquitetônicas antes que elas sejamexecutadas.” (PERRONE, 1993, p. 136)

Por outro lado, o desenho é instrumento de conhecimento, meio deinterpretação e registro das obras clássicas, no campo da ciência, oque marca o surgimento de uma teoria da arquitetura, de umatratadística, com vocabulário e repertório próprios.

“A perspectiva entendida como uma representação ‘exata’ abarcauma coerência que visa atingir a totalidade do mundo representável.Através de um espaço único, das intersecções entre um plano derepresentação e um conjunto de raios visuais que se dirigem ao olhode um observador, todas as coisas podem ser estudadas, medidas,colocadas em relação, obtendo-se, desse modo, um ‘modelo danatureza’. Nesse modelo, cada objeto, cada elemento pode serdissecado, definido em uma posição e em um lugar no espaço,relacionado com os outros elementos e submetido a um conjunto dereferências gerais.” (PERRONE, 1993, p. 135)

É nesse momento também que o termo desenho passa a significardesígnio, diferenciando-se do termo debuxo22. Mas, se a perspectivapossibilitava representar essa visão de mundo que se constituía noRenascimento, questionava-se sua “veracidade” na representaçãode obras arquitetônicas. Para Alberti, o desenho deveria representara forma do objeto tal como é, e não tal como se vê, em suaaparência. Em detrimento da perspectiva, que distorcia a proporçãoe as medidas das coisas, mais ligada à pintura, ele propunha o

59

22. Ver HOLLANDA, Franciscode. Da ciência do desenho.Portugal: Livros Horizonte,1985, reproduzido emPERRONE, 1993, p. 133. Essetexto, que data de 1571, foi umdos primeiros na línguaportuguesa a apresentar eregistrar o conceito de desenhono Renascimento.

Page 86: Tese Ta's - Capa

modelo e a planta como formas mais “verdadeiras” de serepresentar os objetos arquitetônicos, suas medidas e proporções.Rafael acrescenta ao pensamento de Alberti a noção de “exatidão”,acrescentando à planta e à maquete, os cortes e as elevações,formando a base do sistema de projeções ortogonais que serádesenvolvido em seguida (SAINZ, 2005, p. 65).

Prática importante no período do Renascimento, a elaboração detratados que resgatassem o repertório arquitetônico clássico,estabelecendo princípios e regras para a produção arquitetônica,também influi nas suas formas de representação e concepção. Emseus desenhos, eram representados modelos ideais a serem seguidosna composição do objeto, que não apresentavam um conteúdodescritivo para a construção da obra, mas sim o “tipo” do edifício, a“ordem” a ser utilizada e o “caráter” a ser manifestado pela edificação(PERRONE, 1993, p. 165). Ao mesmo tempo, começam a se formaras Academias de Arquitetura nos países europeus, a mais célebre, aAcademia Vitruviana de Roma, foi criada em 1542.

“Na arquitetura renascentista, as obras clássicas são modelos aserem perseguidos e reprojetados; na arquitetura advinda dasilustrações dos tratados, o modelo acaba sendo substituído pelodesenho de representação de suas partes, o projeto decorre de umjogo de escolhas entre normas, regras e tipos e uma vaga noçãoexpressiva de ‘caráter’.” (PERRONE, 1993, p. 166)

Mas como esse desenho, que ao representar o edifício a serconstruído era tomado às vezes por sua própria imagem, chegavaao canteiro? O que distinguia o arquiteto do artesão?

Gérard Ringon cita em seu texto “Histoire du métier d’architecte enFrance” que inúmeros (hoje conhecidos como) arquitetos italianosdo século XV também exerciam as múltiplas atividades de ourives,carpinteiro, pintor, escultor, atribuindo a essas atividades ponto emcomum, a necessidade de “medida” e “proporção”:

“A prática desses diferentes ofícios não emerge de um ecletismoamador, a unidade profunda desses ofícios se encontra no fato de queeles recorrem ‘à medida e à proporção’, saberes associados desde aAntigüidade ao deus Mercúrio, (...). Esse uso do cálculo e da medida,que dotava o exercício cotidiano dos ofícios, sobretudo, de umaspecto prático, vai tomar uma nova dimensão com a referência àaritmética e à geometria que fazem parte das sete artes liberais. Essasartes – a gramática, a lógica, a retórica, a matemática, a geometria, amúsica e a astronomia – que constituem o saber ensinado em umadas quatro faculdades da universidade, se diferenciam das artesmecânicas, que são caracterizadas pelos ofícios manuais; essadiferença, que durante a Antigüidade separava em uma hierarquiasocial estrita as atividades dos homens livres e aquelas dos escravos,prolonga-se até o Renascimento”. (RINGON, 1997, p. 29)

Nesse sentido, e remetendo-se à idéia que se fazia da Antigüidade,as atribuições dos arquitetos deixam de se basear em suacapacidade de construir, ligadas às artes mecânicas, e passam a ser

60

Page 87: Tese Ta's - Capa

regidas por seu talento e saber sobre os princípios fundadores daarte, de simetria, regularidade, proporção e ordens, representadosconceitualmente através do desenho e sua composição.

“A referência às artes liberais define novas regras para a prática dosofícios pertencentes até então às artes mecânicas, e apoiando-senesse fato, aqueles que os praticam vão reivindicar sua saída dostatus social inferior ligado tradicionalmente desde à Antigüidade aessas artes. (...) Como o conjunto desses ofícios artísticos, o ofíciode arquiteto vai portanto se constituir sobre essa separação radicaldos ofícios manuais que intervêm no processo de edificação.”(RINGON, 1997, p. 36)

Essa separação não ocorre sem conflitos, entre artistas, quecirculavam por várias cidades, e as corporações que ali atuavam. Atése emanciparem, as corporações exigiam que eles se adequassem asuas regras. Por outro lado, as mudanças acabam por aproximar osartistas de seus patrocinadores, gerando novas relações.

“A maquete permanece ainda por muito tempo para os arquitetoscomo o meio de comunicar suas intenções aos seus patrocinadores.O desenho, quando é utilizado para esse efeito, não comporta nemescala, nem medida, o que significa que ele não é um desenhodestinado a guiar a construção propriamente dita. Os desenhos deexecução raramente referem-se ao conjunto do edifício, massobretudo aos detalhes, por exemplo, uma janela, uma cornija.Esses desenhos parecem ter sido amplamente suficientes, o quesignifica que o arquiteto continuava a supervisionar ele mesmo odesenvolvimento cotidiano do canteiro.” (RINGON, 1997, p. 33)

A distinção entre as artes liberais e as artes mecânicas marcatambém o desenvolvimento do desenho de arquitetura, em seusaspectos artísticos e técnicos. Há, por um lado, os tratados, asperspectivas e os desenhos de apresentação dos projetosarquitetônicos, mais expressivos de suas qualidades artísticas. Entreos conhecimentos requeridos para a concepção e a realização daobra, o desenho, em seu caráter técnico, começa a se configurarcomo código, como ciência, que irá ser sistematizado para maistarde constituir a geometria descritiva, desenvolvida por GasparMonge e apresentada em 1799.

O tratado “Da arquitetura” de Philibert de l’Orme (1514-1570),considerado o primeiro arquiteto francês, publicado em 1567,apresenta uma das primeiras sistematizações dos saberesconstrutivos, que procura conjugar a prática da arquitetura com ateoria de Euclides que, embora estivesse disponível aos arquitetosda Antigüidade, foi bastante usada nos canteiros medievais, nosdesenhos de análise geométrica para obtenção de formas, após suatradução e divulgação no século XII, permanecendo como segredodos construtores até o século XV (OLIVEIRA, 2002, p. 139).

Philippe Potié, arquiteto francês que fez parte do laboratóriocoordenado por Sérgio Ferro em Grenoble, Dessin/ Chantier, emartigo, apresenta essa sistematização como um dos primeiros

61

Page 88: Tese Ta's - Capa

momentos em que os segredos das corporações sobre a técnica docorte de pedras, que fazia uso de instrumentos específicos enoções da geometria euclidiana, são publicizados. Em oposição aosaber prático, ao qual De l’Orme tinha acesso por ser filho demestre construtor e iniciado na carreira, seu tratado se constituicomo teoria. Segundo o autor, seria essa a origem do poder doarquiteto, através da representação:

“Imaginemos Philibert de l’Orme chegando num canteiro onde osmestres-pedreiros se preparam para erguer uma porta de umedifício. Se ele se limita a dar conselhos orais, estes últimos traçarãoa épura em verdadeira grandeza sobre o solo, da maneira como elesentendem. No caso contrário, isto é, munido de um desenho, (...),antecipando-se ao traçado deles, De l’Orme poderá efetivamenteobrigá-los a reproduzi-lo em verdadeira grandeza. O poder doarquiteto é apenas, pois, o poder da representação do desenho cujacapacidade de antecipação materializa sua força. (...) Assim, não é onovo saber ‘teórico’ que fundamenta pragmaticamente o poder doarquiteto, mas sim a manipulação da representação de um saber hámuito tempo constituído.” (POTIÉ, 1988, p. 110)

Porém, o tratado de De l’Orme, que contém projeções, épuras,como soluções de problemas do corte de pedras para a construçãode arcos, abóbodas e escadas, não se completa na intenção deconstituir uma teoria geométrica, uma técnica unificada para oprojeto. Essa teoria, capaz de ser generalizada, foi desenvolvida porGérard Desargues (1591-1661), também a partir do conhecimentoda geometria prática do canteiro, denominada estereotomia.Desargues, engenheiro, arquiteto e geômetra, tinha como “intençãofundamental estabelecer uma ciência geométrica, capaz de servir deapoio à operação de diversas técnicas, da perspectiva, do corte depeças de pedra ou de madeira” (GAMA, 1986, p. 97).

62

Figura 11Épura de uma cúpulapendente, folha 115 do tratadode Philibert de l’Orme (inPOTIÉ, 1996, p. 87)

Page 89: Tese Ta's - Capa

“A estereotomia, no entanto, nunca pôde se constituir eminstrumento de trabalho durante o século. As soluções para cada umdos problemas estudados por Philibert de l’Orme, por exemplo, sãotão específicas que resulta impossível entendê-las no nívelpuramente conceitual. A dimensão fundamental é ainda aexperiência do artesão; sem ela, a teoria é totalmente inútil e, aindamesmo com ela, praticamente supérflua no que se refere a seu valorcomo técnica.” (GÓMEZ23 apud GAMA, 1986, p. 97)

Ruy Gama, em “A tecnologia e o trabalho na história”, sugere queseria esse o momento da transição da técnica para a tecnologia,entendida como “a técnica do técnico”, nas palavras de Ortega yGasset24, que propõe estágios para a compreensão da evolução datécnica: a técnica do acaso, a técnica do artesão e a técnica dotécnico. A reunião de uma técnica com uma disciplina científica,que atinge um alto nível de generalidade e de sistematização, deabstração, resulta em processos próprios de trabalho, possibilitandoo avanço de sua divisão, ampliando-se o campo de atividades queprecedem a construção e a orientam.

A transição de uma teoria prática em direção a uma prática teórica naprodução da arquitetura parece ocorrer nesse momento. Aconstituição de um código, único, de desenho, baseado nageometria, foi capaz de servir a todos os objetos que se queriaproduzir, como antevisão. Deu ferramentas, por um lado, ao arquiteto,para que pusesse em prática as regras dos tratados e pudesse assimcomunicar como ordem suas intenções. Por outro, retirou dosartesãos o domínio exclusivo sobre o conhecimento empírico do

63

23. GÓMEZ, A. P. La génesis ysuperación del funcionalismoem arquitectura. México:Limusa, Instituto PolitécnicoNacional, 1980, p. 329.

24. GASSET, José Ortega y.Meditación de la técnica y otrosensayos sobre ciencia yfilosofía. Madri: Alianza Editorial,2004, p. 74.

Figura 12Esboço para estereotomia,Gérard Desargues, 1639. (inRIGHETTO, 2005, p. 55)

Page 90: Tese Ta's - Capa

construir e restringiu sua contribuição sobre as decisões formais daobra. Esse processo deu origem a um campo de conhecimentodesvinculado da prática construtiva, que acaba por estabelecer ummomento e um espaço distintos do canteiro para a elaboração dosprojetos e institucionalizar uma nova prática, a do ensino do desenho.

Desenho abstrato/ Espaço capitalista

“Espaço capitalista: concebido a partir da vanguarda da pinturamoderna (Picasso, 1907) que decretou o fim dos referenciais (do espaçoeuclidiano, do espaço perspectivo). Dissociação e descompasso brutalentre forma e conteúdo, com superfetação e delírio da forma e dovisual. Projeção no espaço da crise do sujeito. Prenúncio do espaço daModernidade: do espaço homogêneo-quebrado. A Bauhaus e LeCorbusier instauram o espaço abstrato.” (OSEKI, 1996, p. 114)

Procuramos destacar alguns marcos importantes nodesenvolvimento do desenho técnico que possibilitaram o seu usocomo meio de planejamento e controle da produção em geral. Asrelações que se estabelecem entre a institucionalização do ensino,artístico e técnico, e a codificação do desenho para que seconstitua como linguagem são significativas para a compreensão doprocesso de separação entre projetistas e executores, querepercutirá também na produção da arquitetura.

Após as contribuições de Desargues, inúmeros tratados que abordama estereotomia foram elaborados, constituindo antecedentes ao quehoje reconhecemos como as bases conceituais para que o desenhotécnico, por um lado, pudesse ser utilizado como meio operativo,exato, na concepção das máquinas, dos objetos industrializados eem resposta às novas atividades ligadas à vida urbana, e, por outro,constituísse uma teoria geral a ser ensinada nas escolas e academias.

Primeiro, a contribuição de René Descartes (1596-1650) possibilitou aunião entre a geometria e a álgebra, ao representar determinadasfunções matemáticas por meio de curvas, com pontos conhecidospor suas coordenadas, o que significou uma “matematização” doespaço. Em segundo lugar, a elaboração da geometria descritiva porGaspar Monge (1746-1818) possibilitou a representação de quaisquerobjetos tridimensionais em planos, de forma sistematizada, pelo usode projeções ortogonais. E também, o trabalho de William Farish(1759-1837) contribuiu para o desenvolvimento da perspectivaaxonométrica, já presente nos estudos de Leonardo da Vinci, muitoutilizada no projeto de máquinas, por sua maior facilidadecomunicativa (PERRONE, 1993, p. 194-197).

É significativo que tanto Monge quanto Farish estivessemenvolvidos com o ensino, o que contribuiu para a difusão de suasteorias. Monge atuou inicialmente na “Petite École des Ingénieurs-Constructeurs de la Marine”, aberta em 1741, e depois na “École

64

Page 91: Tese Ta's - Capa

Polytechnique”, fundada em 1794, tendo contribuído na formulaçãode seus objetivos e programa. Farish lecionava na Universidade deCambridge e aprofundou-se no estudo da perspectiva paralelacomo recurso didático na exposição dos diversos modelos dosaparelhos mecânicos a seus alunos.

Mas essas elaborações não tiveram rebatimento direto na prática dodesenho de representação dos objetos mecânicos e industriaisdurante o século XVIII. Eles continuavam a ser representadosconforme as práticas mais ligadas à representação da arquitetura,ou seja, por meio de plantas, cortes e elevações, ainda poucoinformados por convenções, gráficas e métricas, e por um métodode representação dos corpos.

“Em desenho de arquitetura, bem antes do desenho mecânico, utilizou-se um certo número de artifícios destinados a: - torná-lo portador deuma quantidade maior de informações (como os cortes ou semi-cortes);- suprimir a informação supérflua (interrupção do desenho); - limitar aredundância (por vistas parciais); - facilitar o exame do desenho (partesampliadas, correspondência marcada por pontilhados), etc… Nomomento do desenvolvimento do desenho mecânico, esses artifícios,que compunham um tipo de convenção tácita entre emissor e receptor,serão retomados e adaptados, reforçados se necessário, e sobretudocompletados por outras convenções próprias unicamente ao desenhode mecânica. ” (DEFORGE, 1981, p. 131)

O sistema métrico começa a ser adotado em finais do século XVIII.As convenções começam a ser estabelecidas de forma dispersa naatividade dos diversos setores produtivos, em empresas particulares,

65

Figura 13Intersecção de um cilindro ede um plano, Gaspar Monge,Geometria descritiva –prancha XII, 1820 (inDEFORGE, 1981, p. 195)

Page 92: Tese Ta's - Capa

pela padronização do tamanho das folhas, expressão gráfica para osdiversos materiais, tipos de linhas, maneiras de cotar, durante oséculo XIX. “Essas definições, entretanto, apenas irão se concretizarcomo regras gerais quando os países industrializados precisaremconcentrar sua produção industrial no esforço de guerra” (PERRONE,1993, p. 198), para a produção de armamentos e munições, já noinício do século XX. A disseminação da prática do desenho técnicocontou também com aprimoramentos nos instrumentos eequipamentos de desenho e com a possibilidade de reproduçãomecânica em cópias heliográficas ocorrida no início do século XX. Aprodução industrial caminha no sentido de uma padronização e deuma normalização dos produtos e de seus processos produtivos.

O processo que leva ao estabelecimento de convenções para odesenho técnico é acompanhado pelo processo de institucionalizaçãodo ensino do desenho, apontado por Deforge como fator, ou até mesmofundamento, da separação dicotômica entre as atribuições daquelesque concebiam e daqueles que executavam. A institucionalização doensino contribui para a manutenção e a reprodução dessas mesmasrelações que ajudou a criar. O ensino da geometria descritiva parece tersido o seu primeiro uso prático abrangente.

“A tese que afirma a proeminência do desenho de arquitetura sobreos outros domínios técnicos, até o fim do século XVIII, é devida ànecessidade de se criar um sistema de convenções próprio àrepresentação das construções de grande volume, sem que essasconvenções tivessem um rebatimento no desenho das peças depequeno volume, talvez pela falta de um ensino unificador e porquea necessidade dessa extensão se fazia sentir fracamente. Essa teseé confirmada pela análise dos desenhos de conjuntos que contémuma mistura de pedra e metal.” (DEFORGE, 1981, p. 34)

Ou seja, a representação de máquinas seguia ainda as formas derepresentação da arquitetura, eram desenhadas como parte do

66

Figura 14Desenho de máquina rotativaà vapor (in PERRONE, 1993,p. 225)

Page 93: Tese Ta's - Capa

edifício. A falta de generalização das regras e a elaboração dedesenhos de forma um pouco casual evidenciam que as práticasconstrutivas e a divisão técnica e social do trabalho, entreprojetistas e executores, ainda não estava institucionalizada.

O processo caminha, por um lado, através da criação de escolastécnicas e profissionalizantes, que formalizam as práticas de ensino-aprendizagem que se davam nas oficinas dos artesãos e noscanteiros de obras. O ensino do desenho técnico era definido peladistinção entre artes liberais, voltada aos criadores, e artesmecânicas, voltada aos executores, distinção marcada pela maiorvalorização das primeiras em detrimento das últimas.

Por outro lado, é por meio desse mesmo processo deinstitucionalização da aprendizagem que a geometria descritivacomeça a ser ensinada e assim incorporada na prática dos agoraprofissionais do desenho técnico. A necessidade prática dageometria descritiva não estava clara no momento de suaformulação por Monge, mais interessado na resolução deproblemas teóricos. O estabelecimento de uma necessidade socialdo desenho técnico acontece no sentido dele constituir instrumentoque contribua para a padronização e a normalização dos produtos eprocessos, nas relações entre o ensino e a indústria.

“O próprio Monge reconheceu que existiam, antes da descobertadas considerações geométricas sobre as quais ele se fundamenta,métodos gráficos que, se não valiam no plano da racionalidade e daclaridade, eram eficazes visto que haviam sido aqueles dos artesãose, em particular, dos pedreiros e carpinteiros dos séculos anteriores.(...) Pode-se dizer, portanto, fazendo a hipótese da ausência deMonge, que na falta da geometria descritiva os práticos dispunhamde métodos gráficos eficazes e mesmo de uma teoria geralsuficiente.” (DEFORGE, 1981, p. 190)

O alheamento do artesão dos processos de ensino técnico formal acabapor destituí-lo do domínio e do poder sobre o conhecimento, que agoraé exercido por profissionais inseridos nos processos produtivos e comcapacidade social de acessar os meios de ensino. As corporações deofícios foram sendo extintas, legalmente, a partir do século XVIII.

Reproduzimos aqui trecho em que Deforge descreve brevementeesse processo:

“Os representantes das artes liberais como os arquitetos,desenhistas e decoradores, mais ‘pintores de arquitetura’ quetécnicos, estavam preocupados, em primeiro lugar, mais comproporções, pesquisas de simetria, de harmonia e de perspectiva,do que com a construção no sentido tecnológico do termo.

O papel dos arquitetos era de propor as idéias, fosse através dedesenhos para projetos específicos, fosse para coleções de modelosdesenhados para realizações por encomenda. As obras dearquitetos que ofereciam aos serralheiros, ornamentistas,marceneiros, carpinteiros, modelos de construção (...) tiveram, nosséculos XVII e XVIII, um sucesso considerável. (...)

67

Page 94: Tese Ta's - Capa

A resolução de problemas práticos que se colocam no domínio doentalhamento de pedras, da carpintaria, da serralheria e daconstrução das ‘máquinas’, desenhadas pelos engenheiros (que eramtambém freqüentemente arquitetos), restabelece os homens de ofício,para os quais a maestria é um certificado evidente de competência.Se se considera, restritivamente, que o desenho de que precisavamos artesãos constituía o desenho profissional, constata-se que naorigem ele não era objeto de um ensino autônomo, tendo suafinalidade própria e a abrangência geral de uma disciplinainstrumental como poderiam já ser a escrita, a leitura e o cálculo. Issose deve a várias causas cuja principal era a inexistência de umateoria geral suscetível de se integrar na formação profissional, umavez que ela era passada ao aprendiz pelo mestre. Isso se devetambém à inutilidade de uma tal teoria. As regras da representaçãovisual (elevação e planta) bastavam para representar os corpossegundo os dois pontos de vista principais, a partir do que ageometria plana dava os traços e as construções gráficasnecessárias a cada grupo de ofícios. (...) Encontram-se nos tratadosdos séculos XV ao XVII algumas teorias, como aquelas das máquinassimples, das polias dentadas e lanternas, mas eram especulaçõesmatemáticas e geométricas que não eram destinadas aos práticos.

A partir do início do século XVIII, o crescimento da demanda porbens mobiliários e imobiliários e sua diversificação fizeram com quecriadores e realizadores fossem solicitados para projetos queestavam fora dos cânones tradicionais da construção e aos quaisnão se adaptavam mais as soluções estereotipadas que permitiam,por transformação e extrapolação, responder à encomenda. ‘Ogosto demanda estudo, a mecânica exige princípios’.

A ciência pôs um certo número desses princípios à disposição dasartes mecânicas ao longo do século XVIII, mas somente uma classeos aproveita plenamente. Foi aquela que perseguiu os gabinetes dafísica e os cursos públicos, que podia comprar e ler asenciclopédias, que freqüentava as academias e se formou nasescolas em tempo integral, para arquitetos e engenheiros, onde ascláusulas de nome e título agiam como filtros.

Assistiu-se a uma captação do saber por uma intelligentsia maisburguesa que nobre, face à qual não existiam para os artesãos maisque paliativos sem alcance. As associações de companheiros,porque elas eram abertas à mudança e porque possuíam umaestrutura de ensino muito flexível e saberes muito particulares que aciência dificilmente reduziu ‘em princípios’, resistiram melhor àmonopolização do saber. (...)

A separação funcional, concepção/ realização, que deixava aoartesão a posse de um poder estendido - aquele que lhe era dadopor seu saber zelosamente conservado, pela propriedade de suasferramentas de trabalho e pelo prazer de criar materialmente -, sesubstituiu pela dicotomia nascente, concepção-organização/execução, própria do sistema manufatureiro, que reunia o poder doconhecimento e os meios de produção entre as mãos deengenheiros e homens de negócios, não deixando ao operário maisque a liberdade de produzir de forma maquinal.

68

Page 95: Tese Ta's - Capa

O hábil artesão do início do século XVIII caiu na armadilha de umasociedade pré-industrial que se estruturou em função das capacidadesde seus membros de se adaptarem.” (DEFORGE, 1981, p. 147-148)

De uma separação funcional de atribuições entre quem concebe,idealiza e quem realiza passamos a uma separação dicotômicaentre projetistas e executores, no nível técnico. A divisão dotrabalho é técnica e social, marcada pelas distinções que o ensinoformal promove. O desenho técnico é sistematizado comolinguagem, mas também influi nos métodos de projeto e de ensino.Quando e como a geometria descritiva, ou melhor, as convençõesdo desenho passam a ser usadas na produção da arquitetura? Oque acontece com os canteiros de obra?

A reflexão sobre os pressupostos nos quais a pesquisa se apóia, a partirdos conceitos e conteúdos explorados até aqui, possibilita aprofundar acompreensão sobre como se configura, por um lado, a heteronomia docanteiro e, por outro, a aparente autonomia do desenho.

A idéia de “autodeterminação dos trabalhadores”, no sentido de umaautonomia sobre seu próprio trabalho, parece mais uma projeção decertos ideais, ou mesmo de certas utopias, presentes atualmentecomo projeto político. Na Antigüidade, a divisão do trabalho já secolocava como uma separação entre a concepção e a execução dasobras. Em níveis diferenciados, podemos supor o trabalho dosacerdote/ arquiteto, do arquiteto/ construtor, do artesão/ lavrador, doartesão/ escravo, do escravo/ trabalhador braçal. Talvez, a idéia de“autodeterminação” não caiba naquele contexto, nem represente umvalor na época, mas provavelmente o trabalho se aproximava mais daidéia de artesanato – cada artesão com seus instrumentos econhecimentos, colaborando para a composição de uma obra emcomum, como “uma sucessão no tempo”. Na Idade Média, oscanteiros de obra também já apresentam divisão do trabalho bastantehierárquica. O arquiteto detinha uma posição de privilégio,relacionando-se diretamente com os “clientes”, que em geral exerciamo poder político ou religioso. A formação dos artesãos era umprocesso árduo, marcado pela submissão dos aprendizes à vigilância,disciplina e vontades dos oficiais e mestres (GAMA, 1986, p. 86). E odesenho era um instrumento de trabalho, inserido nos processos deexecução, mas também instrumento de concepção, de antevisão,porém sem a capacidade de prescrever todas as medidas e formas daobra acabada. Dessa maneira, cada artesão devia contribuir, com seusconhecimentos técnicos e estéticos, na produção das obras. O quetalvez signifique uma certa forma de “autodeterminação” dostrabalhadores, não necessariamente positiva nas relações de trabalho.O objeto a ser construído era representado tridimensionalmente pormodelos, que não guiavam a execução da obra propriamente dita,mas orientavam decisões dos patrocinadores e arquitetos. Osdesenhos bidimensionais deveriam ser “interpretados”, não livremente,mas a partir de proporções e regras geométricas conhecidas, para se

69

Page 96: Tese Ta's - Capa

chegar à terceira dimensão e ao formato final de cada peça. Osprincípios da racionalização do trabalho já aparecem, como no casocitado da padronização de peças.

Nesse momento, e seguindo a necessidade de padronização daspeças e de racionalização do trabalho, começam a sersistematizados os conhecimentos da geometria prática, de forma apermitir uma maior abrangência dessas elaborações em suaaplicação, como antevisão que possibilita aprimorar os processos detrabalho, gerando perdas e ganhos diferentes para uns e outros.Sistematizados, esses conhecimentos passam a constituir umateoria, cada vez mais abstrata em relação a seus usos e aplicaçõespráticas, até o ponto de, através do ensino, não terem maisaplicação direta, imediata, e se constituírem como ferramentas deum pensamento espacial que possibilita a antevisão plena emetódica dos objetos e obras a se construir. Na relação com aexecução, esses conhecimentos são de domínio daqueles quefreqüentaram as escolas, que assim aparecem nos canteiros de obrae nas fábricas, agora, com o poder de antever o objeto a serrealizado em todas as suas características dimensionais epropriedades físicas. O desenho como instrumento de trabalho éabstraído cada vez mais do canteiro, passando a constituirconhecimento teórico, com seu próprio campo, desvinculado daprática do fazer. O que não significa que ele seja autônomo ouindependente das relações de produção e das técnicas construtivas.Por outro lado, o conhecimento empírico sobre esse fazer nãodesaparece, mas se modifica. A idéia de “autodeterminação dostrabalhadores” se torna mais distante, ao mesmo tempo em que otrabalho passa a ser mais organizado, de fora e anteriormente. Oproblema se coloca na distribuição dessas perdas e ganhos.

Nessas considerações, acabamos por nos afastar da constituiçãodo campo gráfico arquitetônico, mais especificamente, focando emum de seus aspectos, da constituição do desenho técnico, queacreditamos ser mais significativo para a compreensão dasmudanças nos processos produtivos. Também, ao longo da história,ainda não foi possível investigar em profundidade os aspectosreferentes às determinações da “forma canteiro” de produção emrelação à variabilidade dos valores de uso produzidos, das formas efunções possíveis de serem produzidas em canteiro. Osdocumentos a que se tem acesso são esparsos e diversificados,não foi possível percorrer toda a variação na produção e a inserçãodo desenho em relação à produção de catedrais e casas, porexemplo, mas sim reunir indícios da evolução do desenho técnicopor meio de seus vários usos.

70

Page 97: Tese Ta's - Capa

CAPÍTULO 3“DE PERTO E DE DENTRO”:APROXIMAÇÕES EMPÍRICAS AODESENHO DE OBRA

Page 98: Tese Ta's - Capa
Page 99: Tese Ta's - Capa

As considerações sobre o desenho de obra a partir das aproximaçõesteóricas e históricas, sobre seus diversos significados e usos, compõemuma abordagem “de longe e de fora” que dificilmente consegue abarcarvisões dos agentes envolvidos nos processos descritos, principalmentedaqueles que têm seu trabalho afetado e que não participam daelaboração sobre sua história. É nesse sentido que propomos umaaproximação a situações concretas, nas quais possam ser ouvidos osdiversos agentes que participam dos processos produtivos do projeto eda obra na construção do espaço, e observadas suas práticas erelações, mediadas pelo desenho de obra. Um olhar “de perto e dedentro”25 possibilita uma aproximação empírica às ações e atividades, àstomadas de decisão, que pode contribuir para rever, ponderar, confirmaras questões levantadas sobre os processos de institucionalização daprática de projeto, representada através do desenho, e de seu ensino,que têm repercussão na crescente organização racional do canteiro deobras de forma alheia àqueles que ali trabalham.

O uso do desenho de obra foi observado em quatro situações decanteiros de obras residenciais como uma das mediações entre osprocessos produtivos do projeto e da obra, como elemento que deverepresentar a concepção e ser traduzido durante a execução. Assim, odesenho de obra está sendo tomado como (re-) presença nos canteirosde obra, como representação gráfica de um projeto concebido poralguém que não participa diretamente de sua execução. Isto é, pelosdesenhos executivos que devem variar conforme os processos deprodução do projeto e da obra de que participam, sendo determinadospela relação entre as formas produtivas do desenho e do canteiro. Odesenho de obra está sendo tomado também como ausência, pelasinformações e conteúdos dos projetos que não estão representadosnos desenhos executivos, fazendo-se necessárias outras mediaçõesentre a concepção e a execução. Nesse sentido, além dos limites daprópria condição de representação do desenho, são solicitados osconhecimentos práticos dos trabalhadores no canteiro de obras,referentes tanto a técnicas e procedimentos construtivos, que podemconstar de memoriais descritivos ou manuais técnicos, quanto ao

73

25. As expressões “de perto ede dentro” e “de longe e defora” fazem referência ao artigode José Guilherme CantorMagnani, “De perto e de dentro:notas para uma etnografiaurbana” (Revista Brasileira deCiências Sociais, vol. 17, nº49,jun. 2002, p. 11-29), em que oautor pretende articular linhasde reflexão sobre a cidade esobre a etnografia, contrastandoenfoques mais correntes sobrea questão da cidade, queclassifica como “de longe e defora”, com uma abordagem decunho etnográfico, quedenomina “de perto e dedentro”, sinalizando para umolhar “distanciado”, que ampliao horizonte de análise ecomplementa a perspectiva “deperto e de dentro” proposta.

Page 100: Tese Ta's - Capa

próprio saber fazer, dos mestres, encarregados, pedreiros, ajudantes,na interpretação dos desenhos e informações técnicas e em suatradução a formas de fazer, a procedimentos de execução. Dessamaneira, cada posto de trabalho, determinado pelo grau de suadivisão, demanda conhecimentos específicos aos quais são atribuídosvalores distintos que contribuem para a organização hierárquica dotrabalho em canteiro. Assim, o domínio sobre a informação e alinguagem técnicas pode representar um conhecimento maisvalorizado, um trabalho mais “qualificado”, pela possibilidade deantevisão que permite organizar e controlar o trabalho como um todo,enquanto o domínio sobre o saber fazer, que interpreta os desenhosem procedimentos e gestos durante a construção, se torna cada vezmais “desqualificado”, banalizado, e assim desvalorizado pela própriafragmentação do trabalho. A divisão do trabalho em postos mais oumenos “qualificados”, mais ou menos especializados, se fundamentatambém no tipo de formação profissional requerida para odesenvolvimento de cada atividade, o que acaba por distinguir ostrabalhadores numa hierarquia que tem como base mais a distânciasocial entre eles do que uma razão simplesmente técnica, peladiferenciada condição de acesso aos meios formais de educação e aocapital simbólico que aí se representa. A pesquisa sobre o uso dodesenho de obra nos canteiros se depara com essas questões.

Em processos produtivos mais ou menos racionalizados, mais oumenos industrializados, procuramos verificar em que medida oconhecimento do trabalhador se faz necessário na concretização doprojeto, representado no desenho de obra, compondo assim partede suas próprias determinações. E, por outro lado, em que medida odesenho de obra serve como instrumento dos processos deracionalização e industrialização dos canteiros em que se inserem,constituindo um saber específico, de domínio de alguns, queprescreve as atividades a serem realizadas por outros. No campodesses conhecimentos práticos talvez haja espaço para certa“autonomia” ou “autodeterminação” dos trabalhadores, que por suavez se reflete nas determinações do desenho, no quanto ele é capaz,como instrumento, de reger de forma heterônoma o canteiro. Dessaforma, procuramos compreender as relações recíprocas quedeterminam canteiro e desenho e a articulação entre essesprocessos produtivos, considerando ainda que a separação entreinstâncias de concepção e de execução comporta também divisõesdo trabalho internas às agências que as realizam – em cada umadelas, nos escritórios de projeto e nos canteiros de obra quepudemos observar, há momentos de concepção e de execução,trabalhos mais intelectuais e mais braçais, mais e menos“qualificados”, o que traz nuances para essa separação que podemcontribuir para a revisão das próprias categorias canteiro e desenho.

As situações foram escolhidas a partir de alguns critérios. Em primeirolugar, foi importante a possibilidade de visitar os canteiros de obra e,quando possível, acompanhar os trabalhos enquanto aconteciam. Em

74

Page 101: Tese Ta's - Capa

segundo, interessava encontrar variadas formas de relação entre osagentes de projeto e de obra, pela gestão do empreendimento e dasagências que dele participam, por formas mais ou menosracionalizadas e industrializadas de produção e pelo porte da obra,que influi diretamente na necessidade de mediações nos processosprodutivos. Nesse sentido, as obras habitacionais pareciam nosapresentar melhores condições para a pesquisa, pois comportaminiciativas privadas e públicas, obras de maior porte, como conjuntoshabitacionais, e de menor porte, como casas, a presença dediferenciadas escalas de produção, grandes incorporadoras atuantesno mercado imobiliário e a autoconstrução. Também, pela proximidadeque a minha vivência de trabalho proporcionou.

A provisão habitacional, inserida no campo da construção, se apresentasob diferentes formas de produção, que também se definem pela formade seu consumo26: a produção doméstica, realizada por e para uso dospróprios produtores, de forma mais imediata; a produção porencomenda, em que o proprietário do terreno empreende a construçãoem contato direto com um empreiteiro, para seu consumo próprio oupara dela extrair renda; a produção para mercado, que acompanha osprocessos de formação tanto de um mercado de trabalho, quanto deum mercado imobiliário, tendo por objetivo final a troca no mercado; e aprodução estatal, que procura atender à demanda social por habitação,estabelecendo relações por vezes ambíguas com políticas de geraçãode emprego e de incentivo à economia.

Essas formas de provisão habitacional, que coexistem na produçãoda construção, refletem-se em diversas relações entre a concepção ea execução e em suas técnicas, em diversas modalidades deinserção profissional do arquiteto (assalariado, profissional liberal,funcionário público, cooperativado etc.), em diversos meios técnicosde representação gráfica (desenho, modelagem eletrônica, esquemas,cartilhas etc.) e em diversos graus de racionalização dos canteiros deobras (com maior ou menor participação de elementosindustrializados e de padronização de procedimentos, seriados, maisartesanais na produção de obras únicas etc.). O campo da produçãohabitacional também interessou pela experiência do não-desenho,pela possibilidade de construção que não utiliza o desenho de obracomo mediação, pela forma de produção doméstica, como nassituações de autoconstrução. Por outro lado, como setor da indústriada construção que tem participação importante na economia do país,a adoção de procedimentos cada vez mais controlados pelasconstrutoras e incorporadoras, em busca de ganhos de produtividadee assim de competitividade no mercado, interessa pelo que poderefletir nas práticas de produção dos desenhos de obra e de seu uso.

Este capítulo está organizado em quatro partes. A primeiraapresenta as situações escolhidas, as questões que forampropostas em entrevistas e a maneira como foram agrupadas. Apósessa primeira contextualização, são apresentadas as aproximaçõesanalíticas, que compõem suas outras três partes.

75

26. O processo histórico deconstituição dessas formas deprodução, principalmente apassagem da produção porencomenda para a produçãopara mercado, e as relaçõesque se estabelecem entre osprocessos de industrialização ede urbanização nodesenvolvimento capitalista daconstrução são elaborados porPaulo Cesar Xavier Pereira em:São Paulo: a construção dacidade, 1872-1914. (São Carlos:Ed. Rima, 2004).

Page 102: Tese Ta's - Capa

3.1Campo empírico da pesquisa

Inicialmente, apresentamos a trajetória de aproximação às situaçõesescolhidas. Em seguida, e a partir das primeiras observações, foipossível elaborar um roteiro para as entrevistas, que foi utilizado nasconversas junto aos trabalhadores dos canteiros visitados que lidamcom os desenhos em seu dia a dia, os engenheiros, mestres eencarregados de obra. Após uma primeira reflexão, foram realizadasentrevistas com engenheiros coordenadores e arquitetos queparticiparam da concepção dos empreendimentos, ecomplementadas as entrevistas com os trabalhadores dos canteiros,pedreiros e ajudantes, cuja atividade não necessariamente dependedo uso dos desenhos. As questões que foram elaboradas após aanálise das entrevistas se seguem a essa primeira parte, queapresenta então as situações pesquisadas e os entrevistados.

Situações escolhidas

Mutirão Paulo Freire

A primeira obra que se mostrou interessante para a pesquisa foi oMutirão Paulo Freire, já que as primeiras considerações sobre odesenho de obra decorreram da observação do trabalho de projetoe de obra junto à assessoria técnica Usina/ CTAH. Os desenhosexecutivos resultantes do final do processo de projeto, elaboradosconforme as práticas correntes e as normas técnicas vigentes,foram reelaborados para seu uso em canteiro. Além do fato de queaos finais de semana a construção era realizada em sistema demutirão, contando com a participação dos futuros moradores,trabalhadores não especializados, o próprio gerenciamento dasatividades e também a programação das etapas da obra quesolicitam materiais e ferramentas específicos, demandavam umaoutra apropriação do projeto elaborado, que não a fragmentaçãoconvencional entre áreas do conhecimento, como arquitetura,fundações, estrutura, instalações hidráulicas etc. A representaçãográfica do projeto, para uso tanto dos arquitetos quanto dosmutirantes no canteiro, foi adaptada de forma a facilitar oplanejamento do trabalho e sua organização, por meio daelaboração de cadernos para cada etapa da obra, que reuniam asinformações contidas em cada projeto específico de acordo com asatividades a serem realizadas.

Localizado no distrito de Cidade Tiradentes, zona leste de SãoPaulo, consiste em 100 unidades habitacionais que estão sendoconstruídas em regime de mutirão autogerido. O conjunto estásendo viabilizado como parte do Programa de Mutirões da COHAB

76

Page 103: Tese Ta's - Capa

(Companhia Metropolitana de Habitação), com recursos do FMH(Fundo Municipal de Habitação), cuja gestão fica a cargo daAssociação de Construção Comunitária Paulo Freire, filiada aoMovimento Sem Terra Leste 1 e à União dos Movimentos porMoradia (UMM). O projeto foi desenvolvido pela assessoria técnicaUsina – Centro de trabalhos para o ambiente habitado, entidadesem fins lucrativos, que também acompanha a obra e desenvolvetrabalho social junto à Associação. A obra pode ser considerada deporte médio para a produção habitacional, foi iniciada em 2003 eencontra-se em fase de finalização (acabamentos e infra-estrutura).Apresenta diferencial em relação à técnica construtiva pelautilização de estrutura metálica, pouco comum na produçãohabitacional, o que representa um “avanço” no sentido daindustrialização do canteiro de obras, já que toda a estrutura dosedifícios é apenas montada em canteiro e seus componentes sãopré-fabricados. Além disso, o mutirão apresenta forma de gestãoespecífica, em que cabe à própria Associação, composta pelosfuturos moradores, a contratação dos serviços técnicos (entre eleso projeto arquitetônico, elaborado pela assessoria técnica, queterceiriza alguns dos projetos complementares) e da mão-de-obra,a compra de materiais, negociações junto ao órgão financiador,bem como o controle sobre o trabalho, num sistema deautogestão, em que a instância máxima de decisões é aassembléia dos associados.

Nesse caso, a assessoria técnica, composta por equipe deprofissionais de várias áreas, arquitetos e engenheiros, cientistassociais e historiadores, variando sua composição ao longo dosúltimos seis anos27, foi contatada desde a ocupação do terreno,primeiro passo na reivindicação dos movimentos pelo cumprimentodo direito à moradia. Nesse momento já se inicia o diálogo entre aassessoria técnica e os futuros moradores na construção desseespaço. O processo de projeto, participativo, tem início em reuniõesem que são discutidas as formas de morar, a implantação dosedifícios, o projeto dos apartamentos, o uso e desenho das áreascomuns. E também na discussão para a realização da primeiraconstrução, que abriga o canteiro de obras, com almoxarifado,cozinha, vestiários, escritórios e salão de reuniões, que devepermanecer após a conclusão do conjunto para abrigar o futurocentro comunitário do mutirão. Esse processo contribui tambémpara a formação do grupo, que irá, além de participar das decisõesde projeto, gerir a obra, e posteriormente o conjunto. Dessa forma,o mutirão autogerido apresenta diferenças significativas em relaçãoaos processos de produção voltados para o mercado habitacional,quais sejam, os mesmos técnicos estão presentes nas etapas deconcepção e de execução, em diálogo constante com os futurosmoradores que também são gestores e trabalhadores da obra, oque acaba por criar condições para que experiências diversificadasnas relações de produção sejam vivenciadas.

77

27. Da equipe da Usina para oMutirão Paulo Freireparticiparam João MarcosLopes (arquiteto coordenador),Pedro Arantes, Joana Barros,Beatriz Tone (arquitetos); IraniBraga, Flávio Simões(engenheiros), Yopanan Rebelo(colaborador no projetoestrutural); Edson Miagusko,Jade Percassi, Tiarajú Pablo,Éder Camargo, Melina Andrade(trabalho social); LucianaFerrara, Heloisa Rezende,Guilherme Petrella, RenataMoreira (arquitetos,colaboradores no projetoexecutivo). No momento dapesquisa, a equipe estavacomposta por Pedro Arantes,Beatriz Tone, Heloisa Rezende ePaula Constante (arquitetos);Jade Percassi e Tiarajú Pablo(trabalho social).

Page 104: Tese Ta's - Capa

Edifício Aimberê 1749

A segunda obra que despertou interesse foi a do Edifício Aimberê1749. A situação do mutirão autogerido é muito específica nopanorama da produção habitacional de São Paulo e assimprocuramos nos aproximar de obras voltadas para o mercado, quepudessem apresentar relações de trabalho mais “convencionais”. OEdifício Aimberê 1749, no entanto, chamou a atenção pelaarquitetura diferenciada que apresenta, em relação à usualmentepresente em obras do mercado imobiliário residencial, que poderiarefletir em processos de trabalho também diferenciados.

Localizado do distrito de Perdizes, zona oeste de São Paulo, trata-se de um prédio com 12 apartamentos de “alto padrão”, daincorporadora Zarvos, que se insere no mercado apostando em“boa arquitetura”, de arquitetos premiados em concursos públicos,que raramente se vê associada aos empreendimentos do mercadoimobiliário residencial. O intuito da incorporadora é construir em

78

Figura 15Mutirão Paulo Freire - ocupaçãodo terreno, discussão deprojeto em galpão construídopelo grupo, maquete eletrônicado projeto final, início de um diade mutirão, situação da obraem março de 2008 (arquivoUsina/ CTAH)

Page 105: Tese Ta's - Capa

áreas consolidadas da cidade, em terrenos pequenos, com projetosque se integrem na paisagem, compondo com ela28. Além disso, aincorporadora aposta na flexibilização dos projetos dosapartamentos. Nesse edifício, por exemplo, cada um é diferente dooutro e o proprietário tem a possibilidade de reformularcompletamente os espaços internos. Isso implicou na adoção desoluções ainda na fase de projeto que permitissem a localizaçãodas áreas molhadas em qualquer ponto do apartamento, comprumadas hidráulicas e elétricas posicionadas externamente aoedifício. E também na adoção de sistema de vedação leve, empainéis de gesso acartonado, que substitui a alvenariaconvencional. O escritório de arquitetura contratado para odesenvolvimento dos projetos foi o Andrade Morettin. A obra podeser considerada de pequeno porte, encontrava-se, no momento dasvisitas, em fase de finalização de estrutura e alvenarias e início deacabamentos internos e revestimentos externos.

A Zarvos, como incorporadora, tem uma parceria noempreendimento com a CPA/ CP3 que é a construtora responsável ecom a Axpe, encarregada das vendas e da campanha de marketing.Esse núcleo, que se denomina Movimento Um, coordena e contratatodos os serviços necessários para a realização do empreendimento,desde o escritório de arquitetura e os escritórios de engenharia, parao desenvolvimento dos projetos estruturais e de instalações, até asempreiteiras de mão-de-obra, que no caso se dividem em “civil”(estrutura e alvenarias) e “de instalações” (sanitárias e elétricas).Conforme a obra avança, são contratadas empresas especializadas,para o revestimento das fachadas, instalação dos painéis devedação, execução de acabamentos, etc. Os arquitetos eengenheiros que elaboraram os projetos são algumas vezessolicitados na obra para esclarecimento de dúvidas. A gestão docanteiro cabe ao engenheiro residente, único contratado da CPA nocanteiro, que media a relação entre os investidores (Zarvos, CPA,Axpe), os projetistas e os trabalhadores, contando para isso comapoio de uma equipe de escritório da CPA para pedido deorçamentos, compra de materiais e administração de pessoal.

Nas palavras dos empreendedores:“Nossos projetos são criados a partir de uma profunda reflexãosobre o que é viver numa cidade como São Paulo no século 21.Você não vai encontrar nada parecido – porque fazemos tudocompletamente diferente do que está sendo feito pelo mercado.Buscamos alto impacto estético, perfeita funcionalidade e fácilmanutenção. Queremos que você more muitíssimo bem, faça umexcelente investimento e venha juntar-se a nós para mudar a cara dacidade, um prédio de cada vez.

O Movimento Um é uma associação entre a Idea!Zarvos, a Axpe e aCP3. A Idea!Zarvos é a incorporadora de Otávio Zarvos, um nomeque é praticamente sinônimo dos prédios mais bacanas da VilaMadalena. A Axpe é uma imobiliária, fundada pelo publicitário José

79

28. Depoimento de OtávioZarvos, diretor da incorporadoraZarvos, em 19/mar/07.

Page 106: Tese Ta's - Capa

Eduardo Cazarin, especializada em imóveis de caráter e importânciaarquitetônica. A CP3 reúne Rafael Canto Porto, da empresa deengenharia CPA (que constrói residências de alto padrão há 25 anos)e Tonico Canto Porto, oriundo do mercado financeiro. Para oAimberê 1749 o Movimento Um juntou-se ao premiado escritórioAndrade Morettin, de Vinicius Andrade e Marcelo Morettin, um dosmais conceituados da arquitetura brasileira contemporânea.

Nossos prédios valorizam o essencial, não seguem modismos e sãoprojetados para se tornarem marcos arquitetônicos. Nossos imóveissão um ótimo investimento: o m2 tem valores super competitivos e oapartamento ainda oferece valorização e liquidez. Além disso, oscustos de manutenção dos edifícios não são altos.”29

80

Figura 16Edifício Aimberê 1749 - aberturado site e perspectivas ilustrativasdo empreendimento (emhttp://www.movimentoum.com.br/movimentoum/aimbere1749/default.asp, acessado em22/05/08)

29. Em<http://www.movimentoum.com.br/movimentoum/aimbere1749/default.asp?area=realizacao>, acessadoem 22/05/08.

Page 107: Tese Ta's - Capa

As primeiras visitas às obras do Mutirão Paulo Freire e do EdifícioAimberê e as entrevistas iniciais, realizadas no início de 2008,mostraram que esse campo estava se configurando mais como“exceção” na produção habitacional, em termos de práticas degerenciamento e racionalização da obra, adotadas porincorporadoras mais presentes na produção da cidade, o que noslevou a procurar obras de grandes empresas do mercado imobiliário.Referências a essas práticas foram encontradas em revistasespecializadas e trabalhos acadêmicos da área de engenharia30, quetranspõem para o setor da construção de edifícios habitacionaismétodos de gerenciamento de empresas de outros setores. Oacesso a essas situações, no entanto, foi dificultado talvez pelo fatodo mercado de habitação se encontrar em “fase aquecida”, sendoque justamente as práticas de gerenciamento e racionalização daobra possam representar vantagens no mercado competitivo.

Edifício Maison Alinne

A obra do Edifício Maison Alinne, à qual tivemos acesso, interessoupela incorporação de etapas de projeto posteriores ao projetoexecutivo, desenvolvidas pela equipe da construtora, levando, porexemplo, à adoção de certos procedimentos de execução dasalvenarias conforme as referências técnicas encontradas emapostilas da Escola Politécnica. Além disso, a construtora adquiremaior número de componentes prontos, que em outras obras sãoem geral feitos no canteiro, como, por exemplo, as fôrmas earmaduras da estrutura. Trata-se de um prédio de 27 andares, com37 apartamentos de “alto padrão” em Perdizes, da incorporadora econstrutora Zabo. O projeto de arquitetura foi desenvolvido peloescritório Itamar Berezin e as vendas ficaram a cargo da Solai. Aobra pode ser considerada de médio porte pelo montante envolvidona produção e apresenta caráter de negócio no processo produtivo,incorporando elementos de marketing imobiliário, desde asprimeiras etapas do empreendimento, de gerenciamento de obras ede práticas construtivas racionalizadas. Encontrava-se em fase deexecução de estrutura e alvenarias, no momento da pesquisa.

À semelhança do Edifício Aimberê 1749, os apartamentos doMaison Alinne também podem ser “personalizados” e como essa éuma prática recorrente da incorporadora, fica ressaltado o papel doengenheiro residente no contato com o cliente e seu arquiteto, quedesenvolve o projeto interno do apartamento, além de seu papelcomo mediador entre incorporadora/ construtora, projetistas eempreiteiras de mão-de-obra. Foi nessa obra que pudemospresenciar os procedimentos de marcação e execução dealvenarias e as etapas de confecção das lajes encontrados nasreferências técnicas, de revistas, trabalhos acadêmicos e apostilas,como “recomendados” para o setor, para se atingir “níveis deprodutividade satisfatórios, racionalizando o canteiro”, que serãodescritos a seguir.

81

30. Foram consultados apostilasdos cursos de Tecnologia daConstrução de Edifícios doDepartamento de EngenhariaCivil da Escola Politécnica daUSP (disponíveis emhttp://graduacao.pcc.usp.br/,acessadas em abril de 2008),artigos da revista Techné emonografias do curso deespecialização em Tecnologia eGestão na Produção deEdifícios do Programa deEducação Continuada – PECEda Poli-USP.

Page 108: Tese Ta's - Capa

As obras residenciais de “alto padrão”, porém, parecem ter umamargem mais flexível na determinação de materiais, deprocedimentos e técnicas construtivos. O Edifício Aimberê e oEdifício Maison Alinne localizam-se no mesmo bairro da cidade,na mesma quadra, e apresentam valor de venda do metroquadrado do apartamento equivalente. Porém, procedimentosconstrutivos bastante diferentes, o que nos levou a supor que,nesses casos, a racionalização dos processos de trabalho emcanteiro e a padronização de soluções técnicas teriamimportância secundária na determinação dos preços. O que nãodeve ocorrer na produção de imóveis habitacionais populares, emque provavelmente a adoção de processos de trabalhoracionalizados e a padronização de projetos representemdiferenciais significativos para as empresas.

82

Figura 17Edifício Maison Alinne -abertura do site e perspectivasilustrativas do empreendimento(em http://www.zabo.com.br/institucional/imo_lista.asp,acessado em 22/05/08)

Page 109: Tese Ta's - Capa

Condomínio Parque do Sumaré

Nesse sentido, a quarta situação escolhida é a obra doCondomínio Parque do Sumaré, localizada no município deSumaré, na região metropolitana de Campinas31. Oempreendimento da Construtora A, que atualmente faz parte deum conglomerado empresarial privado, com capital aberto, contacom 30 edifícios de 4 andares, totalizando 480 apartamentos. Édestinado à faixa de mercado denominada “primeiro imóvel”, queprocura atender as faixas de renda menores. A tradição daconstrutora está na produção de conjuntos habitacionais poriniciativa de órgãos do poder público, como a CDHU e a CEF. Éuma obra de grande porte, que se encontra em fase de execuçãodas alvenarias e lajes. O sistema construtivo adotado, dealvenaria estrutural, vem sendo aperfeiçoado pela empresa nodecorrer dos seus 30 anos de experiência no setor “popular”, oque possibilitou a racionalização e a industrialização do canteiro,num sistema que compõe a produção de pré-moldados, ainstalação de componentes industrializados e a execução in loco.Além disso, a Construtora A, como parte desse conglomerado,desenvolve o papel de incorporadora, construtora e contratantede mão-de-obra, como também de projetista de todo oempreendimento. As terceirizações são pontuais. Outracaracterística a ser ressaltada foi a adoção dos padrões dequalidade receitados pelas certificadoras, que implicam emmudanças em procedimentos de projeto e de obra. Nessa obrapôde ser observada na prática a adoção das recomendaçõestécnicas já citadas em seu nível mais “avançado” para aconstrução em alvenaria estrutural.

O Condomínio Parque do Sumaré foi inicialmente concebido paraacessar o Programa de Arrendamento Residencial do Ministériodas Cidades, operacionalizado pela Caixa Econômica Federal, quevisa atender à demanda por moradias de famílias com renda deaté R$ 1.800,00. Mas, devido a mudanças internas à construtora,está sendo desenvolvido com financiamentos privados ecomercializado no mercado. O projeto do empreendimento, noentanto, foi alterado apenas pela incorporação de áreas de lazerdentro do condomínio, de “praças” que o tornam um “condomínioclube”, sendo que o custo da unidade cresceu emaproximadamente 70%.

O empreendimento faz parte do processo em curso que aliainteresses das grandes construtoras e incorporadoras aos dosmercados financeiros na produção de moradias “econômicas” e“populares”. E, nesse caso, a padronização dos projetos e aracionalização dos processos produtivos têm um impactosignificativo sobre os custos.

83

31. A construtora autorizou asvisitas ao canteiro de obras e asentrevistas desde que fosseomitido o nome da empresa,que na pesquisa chamamos deConstrutora A.

Page 110: Tese Ta's - Capa

Sobre as entrevistas

Num primeiro momento, acabamos por privilegiar na escolha paraas entrevistas os agentes envolvidos no processo construtivo quetêm participação direta e ativa na tradução do projeto à obra. Sãoengenheiros residentes e gestores, mestres e encarregados de obraque utilizam o desenho como orientador de seus trabalhos e estãolocados no canteiro. Num segundo momento, procuramoscompreender como os desenhos são produzidos, sob quaisdeterminantes, entrevistando, em cada situação, engenheiroscoordenadores de projeto e arquitetos. E também, para averiguar deque maneira as informações contidas nos desenhos são recebidaspor pedreiros e ajudantes, conversamos com alguns deles.

Da obra Mutirão Paulo Freire, foram entrevistados:

- O atual mestre de obras, Batista, formado inicialmente em obra,começou como ajudante de carpinteiro em 1995, trabalhou depoiscomo carpinteiro, pedreiro, apontador e fez curso de mestre deobras do Senai, em 2003. Já trabalhou em vários tipos de obra,residenciais, de infra-estrutura, de edifícios, e esse é o primeiromutirão do qual participa, contratado pela Associação. Construiusua própria casa;

84

Figura 18Condomínio Parque do Sumaré -abertura do site, implantação eperspectiva ilustrativas doempreendimento (em endereçoeletrônico da construtora)

Page 111: Tese Ta's - Capa

- O mutirante e atual almoxarife, Roberto, já teve algumaexperiência de trabalho como ajudante na construção civil, eparticipou da “equipe de laje” do mutirão, formada por associadosque foram contratados para a montagem das lajes durante asemana, como empreiteira terceirizada, que possuía formaautônoma de gestão;

- O mestre de obras Ataíde, atualmente trabalha como fiscal naobra da Universidade Federal do ABC, e já trabalhou no MutirãoPaulo Freire e em mais 22 deles. Foi formado em obra,começando como ajudante de pedreiro, há 22 anos, depois deficar desempregado de metalúrgica. Fez curso de mestre de obrasno Senai. Já trabalhou como tarefeiro e contratado emconstrutora, mas sua trajetória de formação e trabalho está maisligada à história dos mutirões e do movimento de moradia de SãoPaulo. Mora em casa construída por mutirão autogerido.

- As arquitetas, Beatriz, Heloisa e Paula, associadas da assessoriatécnica Usina/ CTAH, acompanham a obra do mutirão, tendoparticipações diferenciadas ao longo do processo. Beatrizparticipa desde o início do projeto em 2001, Heloisa integrou aequipe com o início das obras em 2004, e Paula, a partir de 2008.As três são formadas pela FAUUSP, Beatriz e Heloisa em 2002, ePaula em 2007.

Da obra Edifício Aimberê 1749, foram entrevistados:

- O engenheiro residente, Ralf, formado em engenharia civil em1999, sempre trabalhou em campo, em diversas empresas e tiposde obras diferentes (edifícios residenciais, edifícios comerciais,obras públicas, casas de alto padrão). É o único contratado daCPA no canteiro;

- O encarregado geral, Mauro, formado em obra, começou comoajudante de armação em 1994, depois de um períododesempregado do trabalho em fábrica, e com o tempo foiaprendendo e assumindo postos mais altos, de ajudante aarmador, a encarregado de armação, a encarregado geral.Desempenha na obra o papel de mestre, mas não é reconhecidoassim pela empreiteira que o contrata, terceirizada da CPA.Construiu sua própria casa.

- O pedreiro, Joanite, formado em obra, começou como operadorde guindaste, passando a ajudante e depois a pedreiro. Construiusua própria casa e participou da construção das casas devizinhos.

- O arquiteto, Marcelo, formado em arquitetura em 1991 pelaFAUUSP, estagiou no escritório de Joaquim Guedes e éatualmente um dos sócios do escritório Andrade Morettin,constituído em 1998.

85

Page 112: Tese Ta's - Capa

Da obra Edifício Maison Alinne foram entrevistados:

- O engenheiro residente, José Luiz, formado em engenharia civilem 1996, trabalha em campo há 14 anos na mesma empresa, aincorporadora Zabo, no setor de edificações residenciais demercado em São Paulo.

- O encarregado de alvenaria, Jorge, se formou em obra, tendoiniciado as atividades como ajudante, passando a pedreiro e aencarregado. Construiu sua própria casa.

- A arquiteta Beatriz, que inicialmente cursou o colegial técnico, emedificações, para depois, já trabalhando com projetos, cursararquitetura na Faculdade Belas Artes. Trabalha há 23 anos nosetor e há 9 anos no escritório de Itamar Berezin, atualmentecomo coordenadora dos projetos executivos.

Da obra Condomínio Parque do Sumaré foram entrevistados32:

- O mestre de obras, Tonico, aprendeu com o pai o ofício, tendo seaperfeiçoado no canteiro de obras, passando de pedreiro aencarregado, e chegando a mestre na própria construtora.Reformou a própria casa.

- O diretor de obras, Maurício, um dos sócios da construtora,formado inicialmente como técnico em agrimensura, e depois emengenharia civil, iniciou na empresa como topógrafo em 1976,passando a diretor técnico sócio em 1986.

- A engenheira residente, Tatiana, formada em engenharia civil em2000, sempre trabalhou em obra, desde os estágios durante afaculdade, em geral acompanhando obras de conjuntos habitacionaispela construtora ou fiscalizando-as pela CDHU, mas também comobras de infra-estrutura, industriais e de equipamentos públicos.

- O coordenador de obras, Matheus, formado em engenharia civilem 1980, trabalha com construção habitacional voltada para baixarenda desde 1982, tendo experiência também nas obras de infra-estrutura necessárias aos conjuntos, está na construtora háaproximadamente 15 anos, onde iniciou como engenheiro de obrae hoje supervisiona as várias obras em andamento.

- Os pedreiros, José Galileu e Abrahão, e o ajudante, Maciel, vindosda Paraíba para trabalhar uma temporada na obra, assim comooutros 60 trabalhadores desse canteiro, são formados na prática ereceberam algum treinamento da construtora, ligado aosprocedimentos que o sistema de qualidade exige. Abrahão trabalhaem obra desde 1986, em idas e vindas entre a Paraíba e São Paulo,já foi encarregado de obra, mas prefere o trabalho de pedreiro,tendo também experiência como carpinteiro e azulejista, trabalhajunto à Construtora A desde 1992. José Galileu começou a vir em2003 e trabalha principalmente como pedreiro, e Maciel veio pelaprimeira vez para essa obra. Os três formam uma equipe detrabalho. Abrahão e José Galileu construíram as casas onde moram.

86

32. Participou também dasentrevistas na obra doCondomínio Parque do Sumaréa arquiteta Beatriz Bezerra Tone,que desenvolve pesquisa demestrado sobre o processo devalorização imobiliária em SãoPaulo hoje, através do estudo daprodução de empresas do setor.

Page 113: Tese Ta's - Capa

Inicialmente, propusemos questões sobre o significado dodesenho na obra e para o trabalho em canteiro, e a partir daconstatação de que há lacunas, ausências deixadas pelarepresentação que dá suporte ao projeto, propusemos tambémquestões sobre quais meios de comunicação e representação sãousados na tradução do projeto à obra, o que nos levou a abordara relação entre o conhecimento empírico e o teórico na formaçãoprofissional desses trabalhadores.

Essas questões foram sendo elaboradas no decorrer dasentrevistas, que tinham como temas (conforme roteiro abaixo) atrajetória pessoal de cada um, sua situação de moradia (paraaqueles que construíram suas próprias casas), a inserção atual nadivisão do trabalho, e sobre o uso e os limites do desenho na obra.Foi também a partir das primeiras impressões de campo e dasprimeiras conversas que surgiu um maior interesse pelostrabalhadores que usam o desenho na construção, que traduzemsuas informações, apesar dos meios de realizar a obra estarempresentes nos trabalhos de outros agentes também, que foramentrevistados num segundo momento.

87

Quadro 2 - Entrevistas realizadas, por obra

Obra Cargo Nome Duração Data

Paulo Freire 1 mestre de obra Batista B 40 min 23/fev/08

30 min 05/mar/08

2 mutirante/ almoxarife Roberto Ro 60 min 26/fev/08

3 mestre de obra Ataíde A 60 min 02/mar/08

4 arquitetos Beatriz, Heloisa, Paula Bi, H, P 90 min 04/set/08

Aimberê 1 engenheiro de obra Ralf Ra 55 min 24/jan/08

2 encarregado geral Mauro M 60 min 02/fev/08

3 pedreiro Joanite Jn 42 min 11/nov/08

4 arquiteto Marcelo Morettin MM 63 min 17/nov/08

Maison Alinne 1 engenheiro de obra José Luiz JL 55 min 18/abr/08

2 encarregado de alvenaria Jorge Jo 29 min 13/set/08

3 arquiteta Beatriz Be 60 min 20/fev/09

Parque do 1 mestre de obra Tonico To 40 min 24/set/08Sumaré 2 diretor de obras Maurício Mr 60 min 12/nov/08

3 engenheiro de obra Tatiana Tt 90 min 10/dez/08

4 coordenador de obra Matheus Ma 144 min 18/fev/09

5 pedreiros/ servente Abrahão, José Galileu, Maciel Ab, JG, Mc 60 min 18/fev/09

Page 114: Tese Ta's - Capa

Quadro 3 - Roteiro para entrevistas

Trajetória pessoal

Trajetória de vida:

1. nome, idade, estado civil, filhos, profissão, escolaridade

2. nascimento e trajetória de migração

3. situação de moradia: onde mora? construiu a própria casa? como? fez umprojeto antes de construir?

Trajetória profissional:

4. formação básica

5. tipos de trabalho e emprego que desenvolveu

6. como começou o trabalho na construção civil? há quanto tempo? comoaprendeu o ofício?

7. o que faz atualmente?

Situação atual

8. há quanto tempo está nessa obra/ projeto?

9. qual a sua função? quais as atividades que desenvolve? qual é a maisimportante? qual a mais trabalhosa?

10. qual o estágio da obra?

11. qual é a estrutura/ divisão do trabalho no canteiro? quantas equipes/ empresasestão trabalhando ou vão trabalhar?

12. os arquitetos, ou outros técnicos envolvidos na concepção do projeto,freqüentam a obra? quando? como?

Sobre desenho

Como o desenho é produzido?

13. já trabalhou na etapa de projeto? na produção de desenhos?

14. como a experiência prática, de construção, pode contribuir para a elaboraçãodo projeto, e vice-versa?

15. pela sua experiência, como poderia se dar o diálogo entre a concepção e aexecução da obra?

Como o desenho é utilizado?

16. quais desenhos/ projetos estão sendo utilizados na obra? quais são mais úteis(plantas, cortes, elevações, detalhes...)?

17. quem recebe/ com quem ficam os desenhos?

18. quem usa os desenhos? como? para quê?

19. há diferenças entre o uso do desenho nessa obra e em outras em quetrabalhou antes? quais (porte, gestão, grau de industrialização, etapas)?

20. em quais etapas da obra o desenho é mais importante/ necessário? e em quaisetapas ele é desnecessário?

Desenho/ comunicação:

21. como são definidas as atividades a serem executadas (cronograma/ equipe/material)? como elas são transmitidas/ organizadas?

22. que meios são utilizados para a comunicação do trabalho a ser feito? como éfeita a marcação da obra?

23. além dos desenhos, que outros instrumentos de projeto são usados na obra?planilhas, esquemas, etc. – como eles são usados nessa organização dasatividades?

88

Page 115: Tese Ta's - Capa

24. a representação gráfica dos projetos executivos está adequada? poderia sermelhorada? em que sentido?

25. que informações são mais importantes? elas estão representadas graficamentede forma adequada?

Limites do desenho:

26. há incompatibilidade entre o que está projetado e a forma de execução? comosão decididas alterações de projeto ou imprevistos na obra? ou, como asincompatibilidades entre projeto e obra são resolvidas? lembra de algum caso?

27. há momentos de projeto no canteiro? como acontecem? são feitos esquemas/croquis?

28. os desenhos são suficientes (em quantidade e qualidade) para o bomandamento da obra? por quê?

29. o desenho atrapalha em algum momento?

30. o que é imprescindível para que a obra aconteça?

31. como garantir uma boa construção? como o desenho/ projeto contribui nisso?

32. para você o que significa o desenho na obra?

33. você acha que seria possível construir sem desenho? como?

O roteiro que guiou as entrevistas com trabalhadores dos canteiroscomporta três partes. As duas primeiras procuraram abordar atrajetória pessoal e a situação atual de trabalho dos entrevistados, afim de informar o contexto em que atuam e sua experiência, e serelacionam com a questão principal, sobre o desenho, na medidaem que situam cada entrevistado na divisão do trabalho em canteiroe informam sobre sua trajetória de formação, que irá contribuir paradiferentes compreensões do papel do desenho no canteiro. Asquestões mais especificamente voltadas ao desenho de obra foramorganizadas em quatro temas principais:

1. como o desenho é produzido – com qual intuito, como dialogacom a obra;

2. como o desenho é utilizado – quem tem acesso, em quemomentos é indispensável ou dispensável;

3. desenho/ comunicação – como são comunicados os trabalhos eatividades, como são definidas as atividades/ equipes/ prazos/procedimentos, quais meios são utilizados; e

4. limites do desenho – como são resolvidos alterações/adaptações/ imprevistos/ incompatibilidades e se há momento deprojeto no canteiro.

Principalmente, procurava-se compreender, nesse primeiromomento, o que era o desenho para esses agentes, quais seususos e significados, colocando-se a possibilidade de umaconstrução sem desenho, que não utilizasse o desenho comoinstrumento técnico.

Num segundo momento, na conversa com os arquitetos eengenheiros que participaram da concepção dos projetos, além desua trajetória pessoal, interessou compreender:

89

Page 116: Tese Ta's - Capa

Aproximações analíticas

A análise das entrevistas permitiu organizar as questões em trêspartes. A primeira (3.2 – Primeira aproximação: processos deprodução do projeto e suas implicações para o desenho de obra)procura descrever os processos de projeto e de obra nas situaçõespesquisadas, olhando-as como conjunto de relações, e suas

90

1. o processo de produção do projeto – a estrutura dos escritórios,quais as equipes e etapas de trabalho, qual a relação com outrosprojetistas, como se dá a compatibilização dos projetos;

2. sobre determinações formais – como são definidas as plantas eas fachadas, se há uso de tipologias padronizadas;

3. a relação que esses agentes estabelecem com a obra – em quemedida os desenhos são elaborados pensando-se na obra, comose define o que cotar, por exemplo, nos projetos executivos;

4. sobre o uso de computadores – se houve alterações no processode projeto; se houve alterações na relação com a obra.

Quadro 4 - Entrevistas realizadas, em ordem cronológica

Primeiro momento

Obra Cargo Nome Duração Data

1 Aimberê engenheiro de obra Ralf Ra 55 min 24/jan/08

2 Aimberê encarregado geral Mauro M 60 min 02/fev/08

3 Paulo Freire mestre de obra Batista B 40 min 23/fev/08

30 min 05/mar/08

4 Paulo Freire mutirante/ almoxarife Roberto Ro 60 min 26/fev/08

5 Paulo Freire mestre de obra Ataíde A 60 min 02/mar/08

6 Maison Alinne engenheiro de obra José Luiz JL 55 min 18/abr/08

Segundo momento

Obra Cargo Nome Duração Data

7 Paulo Freire arquitetos Beatriz, Heloisa, Paula Bi, H, P 90 min 04/set/08

8 Maison Alinne encarregado de alvenaria Jorge Jo 29 min 13/set/08

9 Parque do Sumaré mestre de obra Tonico To 40 min 24/set/08

10 Aimberê pedreiro Joanite Jn 42 min 11/nov/08

11 Parque do Sumaré diretor de obras Maurício Mr 60 min 12/nov/08

12 Aimberê arquiteto Marcelo Morettin MM 63 min 17/nov/08

13 Parque do Sumaré engenheiro de obra Tatiana Tt 90 min 10/dez/08

14 Parque do Sumaré coordenador de obra Matheus Ma 144 min 18/fev/09

15 Parque do Sumaré Pedreiros/ ajudante José Galileu/ Abrahão/ Maciel JG/ Ab/ Mc 60 min 18/fev/09

16 Maison Alinne Arquiteta Beatriz Be 60 min 20/fev/09

Page 117: Tese Ta's - Capa

implicações para o desenho de obra, de forma que contribuam paraformar um pano de fundo para as análises que se seguem. Ao situaros agentes e as agências e seus papéis nesses processosprodutivos, procuramos estabelecer semelhanças e diferenças entreeles que se relacionam com os desenhos de obra e seus usos.

A segunda parte (3.3 – Tradução do projeto à obra: divisão e reuniãodo trabalho pelo uso do desenho no canteiro), foca o uso dodesenho de obra nos canteiros pesquisados. Desenvolve a idéia deque é realizada no canteiro a tradução do projeto, que ali estárepresentado por meio de desenhos (plantas, cortes, elevações,esquemas), tabelas (quantitativos de materiais e cronograma) etextos (memoriais descritivos). Essa tradução não é realizadaindistintamente por todos os trabalhadores, mas sim determinadapela divisão do trabalho no canteiro, que atribui a cada posição umpapel na realização da obra, o que será abordado no primeiro itemdessa parte, procurando olhar cada posto de trabalho e as relaçõesentre eles como conjunto.

A divisão técnica e social do trabalho é pano de fundo paramomentos, que foram destacados pela fala dos entrevistados,importantes na reunião do que a forma de representação do projetosepara, tema do segundo item dessa parte. Esses momentos foramidentificados como anteriores ao início das obras, em reuniões entreos projetistas, coordenadas e organizadas pelos gestores doempreendimento e no decorrer da obra, no uso e manuseio dosprojetos, planilhas e memoriais em canteiro.

Na terceira parte (3.4 - Significados e limites do desenho de obra),foram reunidas as considerações sobre os significados do desenhoe seus limites. Foram abordadas as falhas, inconsistências eincompatibilidades dos projetos, bem como os imprevistos na obra.Apesar de pouco significativos pelas falas, contribuem paracompreender o sentido do desenho e as lacunas da representação,que aparecem também nas respostas para as perguntas “o que é odesenho na obra?” e “seria possível construir sem desenho?”.

O duplo caráter do desenho, de que tratamos no primeiro capítulo,que se por um lado é expressão, representação gráfica, por outro,é projeto, intenção, gera uma confusão de termos nas entrevistas.Estamos assumindo que o desenho de obra, seja uma das formasde representação do projeto, um dos meios para sua objetivação.O projeto englobaria também, além dos desenhos que orepresentam no canteiro, a concepção do empreendimento,determinações referentes a prazos, custos e relações de trabalho,memoriais descritivos, planilhas, e uma idéia do todo. Nas falas erelatos de campo, muitas vezes, um é tomado pelo outro,principalmente projeto, tomado como desenho, ou seja, o projetosendo apenas a representação gráfica, contida nas pranchas depapel, da obra a ser construída.

91

Page 118: Tese Ta's - Capa

3.2Primeira aproximação: processos deprodução do projeto e suas implicaçõespara o desenho de obra

Apresentamos aqui as determinações do desenho de obra que serelacionam aos contextos de cada situação, nos aproximando dosprocessos produtivos que têm como fruto os desenhos executivos edos processos de produção em canteiro que utilizam essesdesenhos, e ainda outras mediações, na concretização da obra.Procuramos relacionar as semelhanças e diferenças encontradasem ambos os processos produtivos com as semelhanças ediferenças do desenho de obra utilizado nas situações pesquisadas,através das falas de alguns dos agentes envolvidos e dasobservações de campo.

As quatro situações pesquisadas apresentam processosparticulares de produção dos projetos e das obras, se olharmos asespecificidades de cada contexto, os agentes envolvidos, seusinteresses e suas disposições. Não pretendemos, ao propor umavariedade de situações, compará-las a partir de uma análise queavalie o nível de produtividade, a eficiência do processo ou os níveisde exploração do trabalho, através de dados quantitativos ou decategorias fixas e objetivas, mas sim ampliar o campo deobservação das práticas de concepção e de execução que utilizamo desenho como mediação, esse sim um ponto comum a todas assituações observadas. Essa abordagem procura valorizar aspectosqualitativos das relações que se estabelecem nos processosprodutivos por meio de observações sobre os aspectos técnicosque em alguma medida o desenho de obra suporta. Ao apontarmossemelhanças e diferenças nos processos esperamos reconhecer asdeterminações do desenho de obra e em que níveis elas atuam, dasociedade, dos grupos e indivíduos.

A primeira distinção que marca as situações pesquisadas seapresenta pela forma de produção de que participam na provisãohabitacional. Enquanto os edifícios Aimberê e Maison Alinne sãoproduzidos para o mercado, o Mutirão Paulo Freire e o CondomínioParque do Sumaré não podem ser caracterizados dessa forma. OMutirão Paulo Freire pode ser considerado como uma forma híbridade produção, com aspectos da produção doméstica mediadospelos movimentos de moradia, e da produção estatal, que acabouincorporando suas reivindicações como uma política habitacional,constituindo uma forma específica, marcada pela autogestão dosprocessos. O Condomínio Parque do Sumaré, apesar de atualmenteparticipar da forma de produção para o mercado, é fruto de umprocesso que tem uma relação muito próxima às políticas estataisde provisão de moradias, já que a construtora tem atuado nesse

92

Page 119: Tese Ta's - Capa

contexto há 30 anos e que apenas em 2007 foi incorporada àprodução direta para o mercado. Essa passagem não ocorreu commudanças significativas em sua forma produtiva, principalmente noprocesso de trabalho em canteiro, que apresenta um acúmulo deexperiências na produção habitacional de interesse social, que foiincorporada à promoção privada.

Uma segunda distinção refere-se ao grau de divisão do trabalhoque cada situação apresenta nos processos de produção dosprojetos e das obras, que se relacionam com a adoção deprocedimentos mais ou menos padronizados e com aincorporação de sistemas construtivos mais ou menosindustrializados.

No livro “Processo de trabalho na construção habitacional: tradiçãoe mudança”, fruto de pesquisa de doutorado em sociologia de1992, Marta Farah descreve o processo de trabalho “tradicional” naconstrução habitacional brasileira a partir de algumas características(FARAH, 1996, p. 79-100):

1. Uma sucessão de etapas, constituídas por atividades diversificadas,agrupadas em a) preparação de materiais (argamassas, corte demadeira e ferragens), componentes (elementos industrializados) e deequipamentos auxiliares (andaimes, caixas de massa), b) aconstrução propriamente dita, c) apoio às atividades produtivas(armazenamento e transporte). Essas atividades envolvem umagrande variedade de materiais e componentes e trabalhadores comdistintas qualificações que executam os elementos da edificação -fundações, estrutura, alvenarias, cobertura - no próprio canteiro deobras e para cada edifício.

2. Predomínio do trabalho manual, baseado na habilidade e noesforço físico dos trabalhadores, que utilizam ferramentasmanuais especializadas de acordo com diferentes “ofícios”,ferramentas elétricas e equipamentos mecânicos auxiliares quenão substituem sua habilidade na atividade produtiva. Essahabilidade corresponde a um saber parcial, relativo a frações doprocesso de produção, característicos do estágio manufatureiroda divisão do trabalho, que contribui para distinguir ostrabalhadores em “qualificados” e “não-qualificados”. Porém,esses dois tipos de trabalho se complementam na atividadeprodutiva, permanecendo com os trabalhadores o domínio sobreo processo de trabalho - os procedimentos de execução, aconstituição de equipes, o estabelecimento do ritmo de trabalho-, sob a liderança do mestre e do encarregado de obras, e nãosubmetidos totalmente à máquina, seus ritmos e demandas. A“autonomia” na condução da atividade produtiva tem comocontrapartida a existência de uma estrutura hierárquica bastanterígida no canteiro de obras. Os mestres e encarregadosassumem o papel de controlar o trabalho, por vezes,autoritariamente, em busca do engajamento dos trabalhadorescom o ritmo e a qualidade da obra. Esse engajamento muitasvezes é alcançado pelo sistema de pagamento por produção.

93

Page 120: Tese Ta's - Capa

3. A formação dos trabalhadores se dá no próprio canteiro de obras,sua habilidade e seu saber advêm da experiência prática, oaprendizado acontece na relação direta entre oficiais e ajudantes.O próprio engenheiro de obra participa desse processo, e passa aconhecer o “como fazer” pela vivência de canteiro e na relaçãocom os mestres. Por outro lado, nessas relações, ostrabalhadores aprendem também a exercer controle sobre otrabalho de outros, que se torna necessário na estruturahierárquica em que o canteiro está baseado.

4. Os projetos indicam apenas a forma final do edifício ou ascaracterísticas técnicas de elementos da edificação, nãoestabelecendo prescrições sobre os modos de executar e sobre asucessão das etapas de trabalho, constituindo um projeto deproduto que não se traduz em especificações sobre “comoproduzir”.

Segundo a autora, são percebidas mudanças técnicas eorganizacionais nesse processo de trabalho, impulsionadas pelocrescimento do setor de construção habitacional a partir do apoioestatal, que têm início com a criação do BNH na década de 1960.Dentre essas mudanças, destacamos algumas que apresentam umimpacto mais direto sobre as relações de trabalho nos processosprodutivos do projeto e da obra no sentido de sua racionalização epadronização, e que conseqüentemente implicam numaprofundamento da divisão do trabalho (FARAH, 1996, p. 178-201):

1. A produção de novos materiais, cujo desenvolvimento e aplicaçãoenvolvem um saber científico, que em geral não advém do canteiro;

2. A adoção de recursos computacionais na elaboração do projeto edo planejamento da obra, que incrementam a aplicação deconhecimentos científicos nas etapas de concepção;

3. A pré-fabricação de elementos construtivos, que, por um lado,retira algumas das atividades do canteiro, muitas vezessimplificando-as, e, por outro, estabelece no momento defabricação formas mais racionalizadas de produção e apadronização do produto;

4. A padronização do projeto e, assim, do produto, o que facilitou oestabelecimento da repetitividade de operações no processoprodutivo, no sentido da racionalização e do planejamento daobra, adotados principalmente em função do porte da obra e daescala de atuação dos empreendedores.

Essas mudanças, no entanto, não fizeram prescindir das habilidadese dos conhecimentos tradicionais dos trabalhadores na execução daobra, que se articulam agora a um maior grau de prescrição para astarefas simplificadas e parcelizadas. O desenvolvimento do setor deconstrução habitacional, na busca pela redução de custos e porganhos de produtividade, segue o caminho da padronização e daracionalização estimuladas pela crescente normatização técnica epela criação de programas e sistemas de qualidade, de gestão e deprodutos. Mas também se apóia em expedientes que não têmrelação com a incorporação de mudanças tecnológicas e

94

Page 121: Tese Ta's - Capa

organizacionais: no comprometimento da qualidade final do produto,através da utilização de materiais de baixa qualidade e da reduçãoda área das edificações, por exemplo, e na redução de gastos comforça de trabalho, através de compressão salarial, ausência devínculo empregatício, entre outros (FARAH, 1996, p. 237).

Nesse panorama, as situações pesquisadas apresentamaproximações e afastamentos em relação ao processo de trabalho“tradicional” no sentido das mudanças descritas pela autora,considerando também que elas não acontecem linearmente,elaborados a seguir. Os procedimentos de racionalização e depadronização, que repercutem nos modos de trabalho em canteiro,na distribuição e definição das tarefas, nos instrumentos detrabalho, na seqüência das atividades, são adotados no momentode elaboração dos projetos e refletem também na própria forma desua produção. São possíveis racionalizações e padronizações dotrabalho em canteiro, mas também do trabalho de elaboração dosprojetos. Dessa forma, procuramos abordar essas relações e suasimplicações para o desenho de obra nessa primeira aproximação àssituações pesquisadas, a partir principalmente das observações decampo e dos relatos dos agentes que participaram dos processosde produção dos projetos e desenhos, complementados por visõesdos trabalhadores do canteiro.

Mutirão Paulo Freire

O processo de produção do projeto e da obra do Mutirão PauloFreire, e dos mutirões autogeridos em geral, se distingue dasdemais situações pesquisadas por não se inserir na produção parao mercado e, pelo contrário, por constituir alternativa de produçãohabitacional popular que escapa a essa lógica, na intenção deacessar os fundos públicos sem a intermediação das construtorasque participam das políticas estatais de provisão habitacional,criando a possibilidade de maior controle dos futuros moradoressobre o processo produtivo. Os mutirões autogeridos, atualmenteconstituídos como política pública, são fruto de um processo deluta dos movimentos de moradia e se revestem de outrasdeterminações que não as estritamente produtivas, que visam atroca no mercado, envolvendo a militância política de seusparticipantes pelo cumprimento de direitos sociais.

Dessa forma, a divisão do trabalho no processo de projeto e narealização da obra é marcada por essas posições e as decisõestécnicas, compartilhadas entre os agentes, tomam assim um sentidopolítico distinto. Torna-se difícil, então, inserir a análise sobre oprocesso produtivo do mutirão autogerido nas mesmas categoriasque servem às outras situações pesquisadas, correndo-se o riscode, ao aproximar as experiências que ali ocorrem das de outros

95

Page 122: Tese Ta's - Capa

processos de obra, deixar passar justamente o que os caracterizaque, no âmbito desta pesquisa, se dá por uma revisão na prática epor um questionamento dos papéis estabelecidos tradicionalmente.As especificidades e, mais ainda, o sentido político diverso queassumem as relações entre os agentes que participam do mutirão,frente às outras situações pesquisadas, mereceriam um estudo àparte33. Porém, arriscamos inserí-los nas categorias mais comuns àsobras “convencionais” a fim de investigar outras formas de relaçõestécnicas possíveis, que não deixam de ter seus paralelos com adivisão “tradicional” do trabalho, tanto na elaboração do projetoquanto em canteiro. Mesmo porque esses processos produtivos, deprojeto e de obra no mutirão autogerido, dos quais participamtrabalhadores com experiências diversas das do mutirão, não fogemcompletamente às determinações do modo de produção em queestão inseridos e visam objetivamente à construção de moradias.Assim, as análises sobre as demais situações pesquisadas, queparticipam da forma de produção para mercado, podem encontrarum contraponto na experiência do mutirão autogerido, pelo que sepode conhecer de um, a partir do outro.

O processo de produção do projeto e da obra do Mutirão PauloFreire é conduzido por três agentes principais: a Associação deConstrução Comunitária Paulo Freire, filiada ao Movimento SemTerra Leste 1 e à União dos Movimentos por Moradia (UMM),composta pelos futuros moradores do empreendimento; aassessoria técnica Usina – Centro de Trabalhos para o AmbienteHabitado, que colabora com a associação na organização dotrabalho e é responsável pela elaboração dos projetos; e a COHAB(Companhia Metropolitana de Habitação), que media a liberação derecursos do Fundo Municipal de Habitação através de convêniocom a associação, parte do Programa de Mutirões, participando daaprovação dos projetos e da fiscalização da obra. Esses trêsagentes estão presentes tanto no processo de produção do projetoquanto no da obra, não havendo uma separação nítida entre osmomentos de concepção e de execução, uma vez que o processode construção pressupõe o diálogo constante ao longo daelaboração dos projetos e da execução da obra. Esse vai e vementre momentos de projeto e de obra é devido à própria forma deprodução, em que as soluções em vários níveis, desde a escolha dosistema construtivo até a de materiais e acabamentos, sãodiscutidas entre todos ao longo da execução da obra. Mas também,se faz necessário pela demora na liberação de recursos, que muitasvezes inviabiliza o que estava previsto anteriormente, em termos decustos, solicitando a retomada do projeto e significando umretrabalho que seria dispensável.

A associação escolheu e contratou a assessoria que orientoutecnicamente a construção, estabelecendo-se entre elas umarelação de parceria. As decisões foram partilhadas, tanto durante a

96

33. Há ampla bibliografia sobreo tema, da qual destacamos olivro de Pedro Fiori Arantes,“Arquitetura Nova: Sérgio Ferro,Flávio Império e RodrigoLefèvre, de Artigas aosmutirões” (São Paulo: Ed. 34,2002), pela análise queapresenta dos mutirões tendoem vista as elaborações deSérgio Ferro sobre o desenho esuas relações com o canteiro.

Page 123: Tese Ta's - Capa

elaboração dos projetos, por meio de metodologias participativas,que teve início com reuniões entre os técnicos da assessoria e osassociados, quanto durante a construção, na organização docronograma da obra, na compra de materiais e contratação deserviços específicos, nas negociações junto ao órgão do poderpúblico. A autogestão marca a organização e a divisão do trabalhonos processos de projeto e de obra, tanto internamente àassessoria e à associação, quanto na relação entre elas. Aassociação elegeu uma coordenação que a representa junto aosórgãos públicos e nas reuniões do movimento, mantendo umarelação mais próxima com a assessoria nas decisões do dia a dia,em que não se faz necessária a convocação da assembléia.

Durante o processo de projeto interno à assessoria, que aconteceupor meio de reuniões entre a equipe, a divisão do trabalho nãoseguiu uma hierarquia nem atribuições pré-definidas. A elaboraçãodos desenhos, memoriais, quantitativos, orçamentos, foi sendoassumida por uns e outros e todos os envolvidos tiveram apossibilidade de participar dos momentos de concepção,contribuindo na medida de sua experiência. Os projetos foramsendo então levados à assembléia da associação para seremapresentados, discutidos e submetidos à aprovação, conforme suasetapas, estudo preliminar, projeto básico e projeto executivo, iamsendo concluídas. Para o Mutirão Paulo Freire, a assessoriaelaborou os projetos de arquitetura e de estrutura e contratououtros escritórios para a elaboração dos projetos complementaresde instalações hidráulicas e elétricas, entre outros.

O processo de obra é composto por dois momentos distintos.Durante a semana, conta com a participação de técnicos daassessoria que elaboraram o projeto, uma equipe deadministração e uma equipe de obra que em conjunto executamos trabalhos de construção propriamente ditos e de administraçãodos recursos. A equipe de administração, composta por auxiliar deescritório, comprador, almoxarife e apontador, e a equipe de obra,composta por mestre de obra, pedreiros e ajudantes também sãocontratadas pela associação e podem contar com a participaçãodos próprios associados. Quando necessário, são contratadasequipes de pequenos empreiteiros para a realização de serviçosespecíficos, como serralheria, revestimento externo dos edifícios,ou mesmo para reforço da equipe de pedreiros. A equipe daassessoria compartilha parte do que seria o posto do engenheirode obras com a equipe de administração, cabendo a seustécnicos mais especificamente a orientação sobre procedimentose etapas de execução junto ao mestre de obras. A equipe deadministração se encarrega mais propriamente do gerenciamentoda obra, na compra de materiais, na definição de orçamentos, nacontratação de serviços específicos e nas negociações com oórgão financiador, contando também com a colaboração dos

97

Page 124: Tese Ta's - Capa

técnicos da assessoria, que devem aprovar os pedidos demateriais e a contratação de serviços. Não há entre eles umarelação estruturalmente hierárquica, mas uma cooperação em quecada um tem uma atribuição definida, de acordo comcompetências técnicas, e as decisões são tomadas conjuntamenteentre as partes, que não distinguem os trabalhos entre“qualificados” e “não-qualificados”.

O mutirão propriamente dito, quando os associados trabalham emcanteiro, como mutirantes, acontece nos finais de semana e éregido por um regulamento de obras que é elaborado emassembléia com a participação de todos, em que estão acordadosos horários de trabalho, regras de convivência e de uso dosmateriais e ferramentas, condições de segurança, entre outros. Nofim de semana, a equipe da assessoria e o mestre de obrastambém estão presentes e em conjunto distribuem e acompanhamas atividades dos vários grupos de mutirantes, que realizam desdetarefas mais braçais, como limpeza, transporte de materiais eescavação, até aquelas que exigem maior familiaridade com aprática construtiva, assentamento de blocos, montagem de lajes,preparação de argamassa, dobra e corte de ferragens, tarefas essasmuitas vezes aprendidas enquanto estão sendo feitas. Além dasequipes de trabalho para a construção, os mutirantes tambémcompõem equipes de apoio de enfermaria, segurança, prevençãode acidentes, cozinha e creche, o que possibilita a participação detodos no trabalho.

O momento da obra nos finais de semana constitui então o queapresenta maiores distinções em relação ao canteiro“convencional”. O próprio trabalho pode ser experimentado soboutras determinantes, ganhando um sentido de produção coletiva,em que a racionalização do processo e as economias geradas apartir daí são distribuídas e apropriadas pelos própriostrabalhadores. É com esse intuito que o projeto foi desenvolvido eque foi proposta, por exemplo, a estrutura metálica para osedifícios34, que retira do canteiro grande parte do esforço detrabalho, que recairia tanto nos mutirantes quanto nostrabalhadores contratados durante a semana, transferindo-o paraa fábrica e para os montadores da estrutura. A estrutura metálicaenvolveu, por outro lado, um esforço de projeto, seja pelanovidade que representava para os projetistas da assessoria epara os técnicos da COHAB, seja pela especificidade que suaprodução envolve. Nesse caso, o próprio fabricante da estrutura, aempresa Pórtico, desenvolveu o projeto executivo, adequado àssuas máquinas, materiais e formas de operar, a partir de umprojeto desenvolvido à revelia pela assessoria, que estava cientedas especificidades e conhecimentos que apenas o fabricantedomina, cumprindo uma exigência da COHAB. No relato dasarquitetas da equipe:

98

34. O sistema construtivoadotado no Mutirão Paulo Freire,composto por estruturametálica, lajes painel e vedaçãode alvenaria, é fruto de umprocesso de pesquisa eexperimentação que acompanhao próprio histórico de assessoriatécnica da Usina – CTAH aosmutirões autogeridos. Tem iníciocom a construção de edifíciosem alvenaria estrutural nomutirão Cazuza, passando pelacomposição da alvenariaestrutural com a estruturametálica, adotada em escadas epatamares, que servem degabarito e circulação verticaldurante as obras, utilizadas nosmutirões Copromo, União daJuta, e Juta Nova Esperança.

Page 125: Tese Ta's - Capa

Beatriz e Heloisa, arquitetas do Mutirão Paulo Freire

Bi – [...] a COHAB exigiu que a gente fizesse um projeto executivo,sendo que o procedimento padrão pra uma obra em estruturametálica é o escritório de arquitetura fazer até o projeto básico e aíquem faz o executivo é a fábrica, porque depende muito dasmáquinas que eles têm, do processo de produção da fábrica. Masde qualquer forma a gente teve que fazer o projeto executivo, nósfizemos esse projeto executivo, que foi praticamente descartado, edepois quem fez o projeto, foi a empresa de Belo Horizonte, aPórtico...

H – Eu lembro que, no final das contas, depois que a fábrica entrouno meio, tiveram várias coisas que precisaram ser readaptadasporque tem também o conhecimento de algumas coisas daprodução da fábrica.

Bi – É... E teve também uma coisa interessante que aconteceu, quefoi que a gente desenvolveu todo o projeto dentro [da Usina], naépoca o Irani e o Flavio estavam na equipe, e a gente usou umcatálogo, com alguns perfis extrudados, que estavam no mercado,supostamente iriam entrar no mercado dali a 6 meses, e daí todasas vigas, lembra?, eram um perfil extrudado, específico, porque iriaagilizar o processo, tinha maior qualidade, enfim, mil coisas... Daí, nahora em que a gente contratou a empresa, eles foram ver que nãotinha entrado em produção, e eles não só não tinham colocado emprodução, como não avisaram ninguém, eu não lembro se era aAçominas ou..., qual empresa, e venderam o maquinário pra algumoutro país, e então passou de extrudado, pra chapa dobrada esoldada. E foi muito chato porque..., estrutura metálica sempre omenor peso é o que mais compensa, e teve que rolar umaadaptação que foi bem significativa, os perfis tinham 24 cm dealtura, que combinava com a modulação de todos os blocos, e coma adaptação, a Pórtico substituiu por alguns perfis de 20 cm dealtura, e com isso sobrou um toquinho assim em algumas paredes,que teve que ser preenchido com argamassa expansora, quer dizer,de certa forma a gente resolveu, mas teve que ter uma releitura.

Esse processo de trabalho, de idas e vindas entre a elaboração deprojeto e a execução em canteiro, de tomada de decisões emconjunto, que utiliza o desenho como suporte de projeto e dediálogo traz outras necessidades para o desenho de obra.Contratualmente, a assessoria deve elaborar os desenhos seguindopadrões técnicos fornecidos pela COHAB, para cada etapa deprojeto, estudos preliminares, projetos básicos e projetosexecutivos. Esses desenhos servem também como base para odesenvolvimento dos projetos complementares. A partir da análisetécnica e da aprovação dos projetos pela COHAB, para o início dasobras, outros desenhos se fazem necessários, tanto para ostécnicos da assessoria, quanto para os membros da associação. Osdesenhos do projeto executivo foram reelaborados para o trabalhoem canteiro de modo a comunicar as atividades a serem feitas, naforma de cadernos para cada etapa da obra, que reúnem ecompatibilizam as informações contidas em vários dos projetos

99

Page 126: Tese Ta's - Capa

“setoriais”, como arquitetura, estrutura, instalações, informandotambém sobre alguns procedimentos e passos de execução e sobrea quantidade de materiais, utilizada para orçamentos e compras.Esses desenhos apresentam uma linguagem gráfica mais icônica,estando representados os elementos construtivos de forma quaseilustrativa. Por exemplo, são utilizadas cores para distinguir fases oucomponentes, prática que não é usual na elaboração dos desenhosexecutivos. Os desenhos de obra dessa forma se tornam maisapropriáveis, tanto para a quantificação de materiais quanto para avisualização dos procedimentos de execução de cada etapa, indoalém das definições do “produto”. Servem dessa maneira tanto aosarquitetos e técnicos da assessoria, quanto à equipe deadministração, como auxiliares da organização da obra. Servemtambém ao mestre de obras e às equipes de trabalho, durante asemana e nos momentos de mutirão.

100

Figura 19Mutirão Paulo Freire –exemplos dos desenhos deobra utilizados (fotos daautora, fev/08)

Page 127: Tese Ta's - Capa

Beatriz e Heloisa, arquitetas do Mutirão Paulo Freire

Bi – Então, o que aconteceu, [...] foi que a COHAB tem um cadernode especificações técnicas para o desenvolvimento de todas asetapas de projeto, que a gente teve que seguir estritamente, emesmo tendo consciência de que aqueles desenhos não serviriampra obra, a gente teve que fazer. Esse projeto executivo foidesenvolvido dentro da Usina e aquela parte que eu estava falando[projetos de instalações hidráulicas e elétricas] foi contratada.Então, teve uma parte que foi feita pela KML, que é subdividida emduas áreas [uma responsável pela elaboração dos projetos deinstalações hidráulicas e sanitárias e outra, por instalações elétricas,de TV, telefone e pára-raios], uma parte foi feita pelo Danilo, dedrenagem, e aí com o início da obra a gente começou a fazer, cadaetapa a gente fazia uma espécie de tradução do projeto executivoda COHAB pra execução em obra, em geral na forma decaderninhos. Então, um caderno, que era de folhas grandes assim,porque não tinha como dividir, isso serviu pra locação, bate-estacase execução da fundação, dos baldrames e blocos, e dasarmaduras, aí depois teve um outro caderno que..., a gente fez umcadernão, você deve ter visto...

T – Eu vi vários caderninhos...

H – Da parte da execução de laje?

Bi – Aí era um caderno completo que tinha laje, colocação dospainéis...

H – Tinha como se colocasse tudo...

T – Por partes...

H – É, então tinha lá o trecho da laje, com as caixinhas de esgoto...

Bi – Painel de laje, armadura, caixinha, pra bloquear o concreto ondeestá a abertura de esgoto. E a gente dividia os conduítes, tinha umdesenho que tinha todos os conduítes, outro desenho que tinha osconduítes só de TV, só de...

T – Esses cadernos vocês pensaram mais neles por causa domutirão, pro trabalho de fim de semana, ou era também pro trabalhodurante a semana?

H – Acho que era pra todo mundo...

Bi – Era, pra todo mundo.

H – Porque na verdade os desenhos que a KML entregava erammuito confusos, porque eram todas as informações, então vocêtinha cruzamento de telefone, energia, com TV, e aí era muita fiação,você conseguir encontrar de onde ele partia, pra onde chegava... Evocê não tinha muito definido, por layer, não era muito claro o queera TV, o que era energia, então era confuso pra todo mundo. E agente também estava enfrentando..., estava todo mundoenfrentando a obra pela primeira vez. Então se a gente também nãotivesse clareza de como a coisa iria ser executada a gente tambémiria se perder... Depois foi chegando uma hora em que..., eu lembrode que a gente sempre tinha um procedimento de, na hora deexecutar a laje, ir olhando esses desenhos e conferindo, “ah,telefone, não sei quê”..., chegou uma hora em que a gente..., porque

101

Page 128: Tese Ta's - Capa

tinha os separados, a gente fazia telefone, TV, etc..., e tinha umoutro que juntava tudo...

Bi – A outra era conduíte no teto, a outra era conduíte no piso, e aoutra era com tudo, que era mais usada pra conferir geral.

H – E chegou uma hora em que..., eu acho que no final, não sei se agente já estava também entendendo melhor..., já tinha tantas lajesassim, que a gente já conseguia olhar toda essa..., que seria odesenho da KML, que era essa confusão...

Bi – Sintético.

T – Porque a KML preparou a prancha com tudo junto mesmo,imprime...

H – E sempre sem interferência nenhuma, de nada...

Bi – É, teve um problema, que eu acho que foi sério, que aí entra anovidade da técnica construtiva em estrutura metálica, porque odesenho..., todos os nossos desenhos tinham a alvenaria comoreferência, só que na hora de bater a laje, de fazer a laje e pôr osconduítes, a gente não tem a alvenaria como referência, e daí nãodá pra locar os conduítes, levando em consideração modulação debloco e tal...

T – Que teria que casar direitinho...

Bi – É... Então, por isso também a gente teve que fazer essesdesenhos. Porque aí era partindo do que existia, a estrutura, locar osbicos dos conduítes. E tudo mais, as caixinhas de esgoto... Semnenhuma parede.

H – E tinha uma série de problemas, que a própria KML, essa coisatambém da estrutura metálica, tinha o lugar certo pra fazerperfuração...

Bi – Os furos na viga...

H – ... pra passar pela laje, que só podia ser 1/3 da viga, porque nomeio ia ter problema para furar a viga. E isso, a gente não tinha esseconhecimento, a KML muito menos, então teve uma adequação...,na verdade a gente foi fazendo a adequação pra gente, mas tambémpra ir fazendo as interfaces mínimas pra não dar problema depois...

Bi – Depois disso tinha alvenaria também, e o projeto de hidráulica,de tubulação de água e de tubulação de esgoto, e os kits. Daí aidéia era fazer um caderno..., vários cadernos totais, com tudo, praque todo mundo tivesse um mínimo de conhecimento do processoprodutivo todo, e fizesse as partes necessárias na obra. E aí, foiaté engraçado, porque no fim a gente percebeu que os mutirantesque estavam fazendo elétrica, que no fim começaram a conseguirler o desenho, se apropriar do desenho, eles arrancavam, lembra?Tinha alguns cadernos que começaram a ficar desdentados,porque o pessoal arrancava, assim, e usava só o que ia fazer alinaquela hora...

H – Começava a atrapalhar você ter aquele calhamacinho...

Bi – É... Aí a gente viu que também..., em termos, essa história deter “consciência do projeto todo”, também tem muita gente queestá ali e não está a fim mesmo, e pronto. Aí, ia lá, arrancava apágina e pronto.

102

Page 129: Tese Ta's - Capa

Nessa situação, cada trabalhador assume, se reveste de diversospapéis – arquitetos, que são também “engenheiros de obra”,gestores, aprendizes; “futuros usuários”, que são também gestores,autores, mutirantes, “contratantes dos serviços” e, ao mesmotempo, “força de trabalho”. O que não acontece em detrimento daeficiência do trabalho, nem sem conflitos e dilemas. Ao contrário, éo que possibilita que os conflitos apareçam e possam serdiscutidos. As tarefas e atividades no mutirão são tão parcelizadasquanto num canteiro “convencional”, assim como o trabalhomanual em diversas atividades se faz necessário e depende doconhecimento prático dos trabalhadores. Porém, assumem outrocaráter pelo envolvimento que os produtores têm no processo, umacompreensão maior do todo, algum domínio sobre as razões dasatividades, a noção de que a parcela de cada um contribui para umproduto que será apropriado coletivamente. Há uma busca pelaracionalização da obra, por parte dos projetistas, que acumulamexperiências de processos anteriores de mutirão, e assim adotamsoluções técnicas já utilizadas, aprimorando-as no sentido detornar o trabalho em canteiro mais organizado e menos árduo.Nesses termos, não cabem padronizações de projeto, pois cadaprocesso deve gerar produtos diferentes, obras únicas de múltiplosautores. Na fala de alguns deles, em que aparecem algumasdiferenças percebidas entre processos produtivos “convencionais”e do mutirão, mas que não devem ser tomadas comorepresentativas, pela diversidade de opiniões e visões que oprocesso abarca:

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E você já tinha trabalhado com mutirão antes?

B – Antes não.

T – E o que você está achando?

B – É diferente sim, bastante diferente. Porque é como eu já tinhaexplicado antes, na obra de construção civil as dúvidas surgem, nodecorrer da obra, mas dependendo do engenheiro, ele não quersaber da dúvida, ele quer saber do que está no projeto. Então omestre na maioria dos casos tem que executar o que está noprojeto, independente do que ocorrer, vai ter que executar sempre oque está no projeto. Aqui é o contrário, se surge a dúvida, tiramos,mudamos, alguma coisa, logicamente que os arquitetos, aassessoria muda se precisar mudar, e resolve também. E na obraparticular normalmente os engenheiros que estão comandando aobra não resolvem... eles sempre pedem...

T – E aí fica a dúvida, como que faz?

B – Não, não fica... Eles não resolvem ali no momento, entendeu?“Vou resolver, vou mudar isso, colocar isso aqui, isso aqui não deucerto, vamos fazer isso”, nada, nada disso, eles não mexem emprojeto, eles preferem que alguém depois deles lá, mexam emandem pra eles, eles normalmente não mexem...

_______

103

Page 130: Tese Ta's - Capa

T – Você acha que o clima de trabalho é diferente, por exemplo,aqui, durante a semana e durante o fim de semana?

B – É bem diferente, é. Durante a semana a coisa anda mais..., nofim de semana dá uma puxadinha no freio aí, o pessoal trabalha,mas é no passo deles, não é no passo que a gente determina praeles. Então lá também não adianta nem determinar, tem que seguir oritmo deles, senão a gente aperta, “pô, meu, tá trabalhandodemais!...”, começa a reclamar, então tem que deixar seguir o ritmoque eles determinam pra eles mesmos. De vez em quando a gentedá uma cutucadinha, “vamos... dá uma chegadinha aí que estámuito devagar...”, mas só pra dar um toque, não pra...

T – Mais essa diferença do ritmo mesmo, de trabalho, você achaque tem?

B – Ah..., é substancial, muito grande, o ritmo de trabalho dosmutirantes, considerado ao meio de semana. Meio de semana andamesmo, os caras estão..., bate mesmo e vão embora. Se não tivertrabalho eles vão pra casa, se tiver eles mandam e vão embora. Finalde semana, não, já é mais..., pezinho no freio ali mesmo. O pessoalfaz um pouquinho, senta, descansa, conversa, bebe uma água...

_______

T – Nas outras obras em que você trabalhou tinha..., porque aqui opessoal, os arquitetos estão sempre na obra... Como era nas outrasobras?

B – Não, pra te falar a verdade eu nunca tinha trabalhado comarquiteto, direto, mais com engenheiro, estagiário, engenheiroformado ou engenheiro estagiário em processo de formação.Inclusive é até um processo um pouquinho delicado..., é parecidocom o de vocês. Por exemplo, se você quer entender um pouquinhode obra e quer estar dentro, aí o mestre que tem que estar dandoauxílio pra vocês, de alguma forma..., “Batista, eu tenho uma dúvidavou tirar aqui, qual processo isso daqui?”, a gente vai ter queexplicar passo a passo, é igual o engenheiro estagiarista quando eleestá começando na obra, terminou o estudo teórico, ele vai proprático, e a gente que tem que ensinar passo a passo.

_______

T – E você sente diferença no desenho mesmo, no jeito de mostraras informações, você sente diferença dos desenhos daqui com osdesenhos de outras obras?

B – Totalmente diferente. Olha, eu tinha sentido isso antes de eu fazercurso de mestre, mas aí surgiu essa pergunta lá de algum aluno,justamente na aula que a gente estava fazendo projeto, aí a moça falou“olha, cada projetista, cada arquiteto, usa um..., é diferente, usa um...”,por exemplo, tem alguns que coloca tudo detalhado, bem bonitinho,você não vai ter muito trabalho, você não faz conta..., tem uns quecoloca tudo por cima, aí o mestre vai ter que estar fazendo conta, vaiter que estar..., quebrando mais a cabeça. Por exemplo, aqui, é superdinâmico, aqui você vai fazer uma coisa, está a medidinha certinha,você só vai ter que localizar aquilo ali. Aqui eu achei tudo mais fácil,aqui, sinceramente eu não achei dificuldade com esse projeto.

_______

104

Page 131: Tese Ta's - Capa

B – Eu acho que eles fazem isso justamente porque eles não estãotempo integral, na obra. Por exemplo, não tem um arquiteto queesteja aqui na obra todo dia. E na construção particular tem umengenheiro diariamente na obra, qualquer dúvida, qualquer coisavocê tem que ir lá e tirar com eles. Então eu acho que vocêsfacilitam mais o trabalho da gente por isso, vocês pensam porquevocês vão estar na obra duas vezes por semana, no máximo, umavez por semana, então “vamos deixar tudo bem mastigadinho” praeu não ter muito trabalho de fazer.

_______

T – E com a estrutura metálica, mas você não pegou essa parte daobra... mas você já trabalhou com estrutura metálica?

B – Não, não... nunca tinha trabalhado...

T – Tem muito detalhe diferente?

B – A única diferença que eu acho na estrutura é que tudo quevocê for fazer você tem que pensar sempre nela, ela tem que estarali, o que você for fazer em qualquer ponto do apartamento vocêtem que pensar na estrutura, você não pode cortar, você não podepassar, por exemplo, um cano de água por cima dela, que ela vaificar aparente na parede, é uma coisa meio complexa pra mim...,delicada eu acho, tem muito conduíte aí pro lado de fora ainda,porque a gente... Está a estrutura metálica, não tem como cortar aestrutura porque o engenheiro que projetou isso..., nossa!, tem queligar pra ele, pra ver se aceita, se não aceita..., que não aceitacorte no meio da estrutura, tem que ser sempre no cantinho daestrutura, pra mim é tudo meio complexo isso daí, meiocomplicado... Pra mim o mais legal se fosse estrutural, porqueonde você quer cortar, você só tem que ver se não está passandocano de água, conduíte de elétrica... É só isso, o resto você podecortar normal, aqui não...

T – É, acaba tendo que prever essas coisas todas antes, né?

B – Tem que estar ligando pra assessoria, a assessoria ligando profabricante e pedindo informações...

T – O prédio estrutural já pode fazer mais independente...

B – Pode... Você só tem que olhar no projeto se não está passandoum conduíte de elétrica, um cano de água..., fazer um buraquinho,por exemplo, se vai descer uma prumada aqui, nesse cantinho aqui,você quer cortar a laje, furando o bloco, você só tem que estarolhando pra ver se não tem algum reforço, também, de aço, ali,alguma coisa, se tiver também, não pode mexer, mas o resto, vocêpode estar fazendo...

Ficam ressaltadas, nas falas em seguida, as possibilidades deensino e aprendizado que acontecem no mutirão, tanto do pontode vista de Ataíde, que já trabalhou como mestre em váriosmutirões autogeridos, quanto na fala de Roberto, que no MutirãoPaulo Freire, além de mutirante, já foi coordenador, contratadodurante a semana para montagem de lajes, integrante da equipede laje, e almoxarife.

105

Page 132: Tese Ta's - Capa

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

A – [...] E dali pra cá sempre eu estou dentro dos mutirões, trabalheiassim..., a gente aperfeiçoou mais no mutirão que é por autogestão, aí agente trabalhava com o povo. De segunda a sexta trabalha comalgumas empreiteiras, e sábado e domingo vem o pessoal que vai seros futuros donos das casas, dos apartamentos, e daí tem que fazer umtrabalho com eles que é diferente do que trabalhar numa construtora.Daí você tem que saber conversar com eles, porque eles às vezes jávêm cansados, trabalhar 5 dias lá fora, e depois vir no sábado edomingo trabalhar no mutirão, tem que saber trabalhar com o povo.Primeiramente, tem que ser bem consciente, ter bastante educação, nojeito de conversar com eles. E em relação ao projeto, as equipestécnicas fazem o projeto lá, daí a gente senta discute como vai ser oandamento da obra, aí a gente com o povão aqui no canteiro, aí a gentecomeça a fazer marcação de gabarito, aí depois vem estaca, vemestaqueamento, aí a gente começa a fazer escavação, aí a gente treinaos homens, as mulheres a fazer ferragem, porque muitos nãoconhecem. Tem pouco profissional, às vezes assim, aí manda sempre...,a maior parte é as mulheres, então a gente tem que sempre aproveitar amão-de-obra delas, a gente ensina elas. Tem muitas que aprendem afazer alvenaria, outras ferragem, que aí é um serviço mais leve, e tudo,dobrar estribo, amarrar, então o serviço é esse, assim, que a genteexecuta. E depois levantar alvenaria, a gente trabalha com a montagemda laje também, mais ou menos nesse caminho, a gente vai começandoa obra por esse caminho. Da execução do projeto..., eles fazem oprojeto pra lá e a gente executa aqui na obra. E a gente tem muitocontato com os engenheiros, com os arquitetos, porque daí, eles estãoacompanhando o dia a dia também, qualquer dúvida que a gente tem, agente chama eles pra tirar as dúvidas, que é o acompanhamento jámais técnico, pra execução, do papel pra implantação na terra, então agente sempre está com os arquitetos do lado, sempre ajudando a gentee a gente ajudando eles no que a gente pode e vamos indo assim...

__________

A – Mas é gostoso o trabalho no mutirão, até hoje eu ainda sinto falta,estou trabalhando lá na Universidade, mas eu gostei muito do trabalhode mutirão. Porque no mutirão você tem uma diferença, você chega, vaifazer o mutirão, você fala “nós fizemos” e na construtora não, os carasnão contam como o povão fez, falam assim “eu fiz o serviço”. Então émuito diferente, você falar “nós” e “eu fiz”, então isso é muito ruim, vocêchegar, que nem os engenheiros mesmo falam, “eu que estou fazendoo serviço”. Só que eles mesmos ficam dentro do escritório, mal saemdo escritório e os coitados que estão se matando lá no meio do barro,do serviço pesado, escavando, quebrando estaca tudo, ele não contacomo que eles estão trabalhando, conta que é ele que fez o serviço,então é muito diferente esse trabalho... Aqui consegue formar o grupo,você conta que você está trabalhando com a equipe. Não é vocêsozinho que faz as coisas, você nunca vai conseguir fazer nada sozinho,e lá não, lá eles batem no peito e falam “eu que fiz o serviço”, não fala“nós fizemos”, então eu acho que isso aí é muito ruim, porque vocêestá desconsiderando todo mundo que está trabalhando...

106

Page 133: Tese Ta's - Capa

Roberto, mutirante e almoxarife da obra Mutirão Paulo Freire

Ro – Exatamente, como ela sai dali do papel pra obra, como você...Enfim, o que você quer saber é assim, na comparação daempreiteira, pra mutirante o que eu vejo assim desse tempo que euestou aqui na Associação, desde o início, lógico, é que aempreiteira, ela tem, no caso, o mestre de obra..., não, vem oarquiteto, ela tem o arquiteto, tem o mestre de obra, provavelmente,não sei, não tenho certeza, de repente teria um encarregado ali praestar comandando os pedreiros, os ajudantes. Basicamente, nomutirante funciona mais ou menos quase a mesma coisa, tem o...,que no caso é a Usina, que são os arquitetos, tem o mestre de obra,porém já não tem o encarregado. Porque vamos colocar assim queos encarregados seriam os próprios mutirantes, porque um cuida dooutro. Só que, eu vejo assim, a diferença é que o que você destacade um pro outro é que na empreiteira tem, do encarregado prabaixo, fica limitado, fica ali, pára ali, porque de repente pode ter atéalguma pessoa interessada em querer subir ali, mas só que opróprio..., acho que o encarregado ou o mestre de obra, acho queeles não..., de repente pra eles não é interessante de repente estarensinando alguma coisa pro pessoal... Aqui eu já meio que...

T – Porque não é interessante?

Ro – Não, eu digo o encarregado, da empreiteira, de repente pra elesnão é interessante estar ensinando alguém, porque na correriatambém eles de repente não têm tempo, acho que é desse ponto devista. Eu já cheguei a trabalhar numa empreiteira assim, poucotempo, nunca vi interesse do encarregado pra poder te ensinar, umpeão, vamos colocar assim, já vi peão querer, se interessar, mas apessoa, que saiba, que sabe daquele serviço não querer ensinar. Aquinão, aqui já foi diferente. Eu, por exemplo, aqui, eu já aprendi muitoaqui, eu não conhecia planta, e hoje, se você me der uma planta, sevocê me falar pelo menos o início do começo da planta, eu me enfiono resto, essa é a diferença que eu estou vendo, referente assim, desair do papel pra construção. Porque queira quer não, o mestre deobra ele vem com a planta pra você executar aquele serviço. Eleaqui, pelo menos aqui no mutirão, você junta aquela quantidade depessoas que vai fazer aquele determinado serviço e ele explica comoé que vai fazer e, dentro desse grupo, uma pessoa ou outra sedestaca e a planta fica com ele e ele acaba executando sozinho...

T – Ele, essa pessoa do grupo?

Ro – É, essa pessoa do grupo, o encarregado passa a planta pra ele, eleacaba se destacando do grupo ali, ele se interessa mais, como foi o meucaso, eu me interessei mais e eu peguei pra mim a responsabilidade decolocar a laje, de estar montando a laje. Passou a planta pra mim, pedialgumas informações, “o que é isso, o que não é aquilo, o que significaisso, o que significa aquele determinado ponto”, e eu toquei a laje com aequipe que a gente montou aqui. E ninguém da equipe de laje nuncatrabalhou, assim, numa construção civil grande, dessa proporção que éhoje aqui, que são 100 apartamentos. Um ou outro já fez..., já trabalhouassim de ajudante, fazendo uma massinha pro pedreiro, uma ou outracoisa assim, uma casinha pequena, mas desse tamanho, não.

_______

107

Page 134: Tese Ta's - Capa

T – Tem diferença de trabalhar como contratado durante a semana ede mutirão, além de que você está empregado e tal...

Ro – Não tenha dúvida que tem, tem uma grande diferença, comomutirante, vamos dizer assim, que você se limita. Por que você selimita? Porque tem mais gente, você sabe que conviver, você lidarcom o ser humano é meio complicado, então você também acaba,pelo fato de ter mais gente também, você acaba diminuindo a suacarga, então quer dizer, eu, por exemplo, eu não me esforçavatanto, porque não dependia só de mim... Então, porque, queira quernão, são as 100 famílias que estão ali, são 100 famílias, então, meuponto de vista acho que você vai se esforçar..., logicamente que eume esforçava pra que aquele determinado serviço saísse..., porémeu não me esforçava tanto, porque eu falava assim “poxa, eu voufazer isso daqui enquanto fulano não está nem aí”, vamos dizer,mais ou menos assim que ocorria, e no grupo, na equipe de laje,você tinha que fazer... Você tem um cronograma, você tem umadata pra você estar entregando o serviço, então quer dizer, vocêtinha que correr e ao mesmo tempo executar bem o serviço, entãovocê já se esforçava muito mais... Então tem essa diferença, devocê trabalhar mais porque, uma porque você está ganhando porisso... Tem essa diferença, acho que você contratado, você temalém da sua responsabilidade, você tem que seguir umcronograma, é..., como poderia te colocar..., queira quer não, vocêtem uma pressão em cima de você, pra você estar entregando umserviço na data que eles estão estipulando... É diferente de vocêestar trabalhando com mutirante que é só de final de semana, e nãotem, vamos colocar assim, não tem a mesma pressão que a equipede laje tem. Porém, o mutirante também tem que estar fazendo praentregar o mais rápido possível também aquele determinadoserviço, então eu vejo essa diferença...

T – Mas aí também acaba sendo um trabalho..., como já é umtrabalho de fim de semana também... não precisa ser pique total,pode trabalhar um pouco mais sossegado, NE?

Ro – A equipe de laje pelo menos eu acho que não pensava tantoassim não. É, porque no caso, é como eu estou dizendo pravocê, tanto os mutirantes como a equipe de laje, no todo, vocêtem uma data pra entregar, você tem que entregar, vamos supor,se é em um mês, você tem que entregar em um mês. Só quecomo você trabalha, você é contratado, o seu ganho era pormetragem, você tinha que dar mais sangue durante a semana, nofinal de semana você não dava tanto sangue, porque aí você sealiviava mais, tirava um pouco a carga de você porque tinha maisgente, só que a entrega dos dois é a mesma, só que a carga emcima de você é menos.

O processo de trabalho no Mutirão Paulo Freire está menosfragmentado em postos e atribuições específicos, hierarquicamenteorganizados, o que possibilita outras formas de representação doprojeto no canteiro. O desenho de obra, nessa situação, constituiinstrumento e suporte de diálogo em relações mais democráticasde produção.

108

Page 135: Tese Ta's - Capa

Edifício Aimberê 1749

O processo de projeto e de obra do Edifício Aimberê 1749apresenta um grau de fragmentação maior do que no MutirãoPaulo Freire, porém menor do que nas outras situaçõespesquisadas, que também se inserem na forma de produção paramercado. Os momentos de concepção e de execução estão bemdefinidos, contando com agentes distintos. O núcleoempreendedor, denominado Movimento Um, é composto pelaincorporadora Idea/ Zarvos, a imobiliária Axpe, e a construtoraCPA, que contrata os serviços de projeto e de obra, coordenandotodo o processo.

Esse núcleo elaborou o conceito do empreendimento e contratou oescritório de arquitetura, Andrade Morettin, que o concebeformalmente, e os escritórios de engenharia, entre outros, para aelaboração dos projetos complementares. A idéia de uma obraúnica e diferenciada, preocupada com a inserção no local e napaisagem, e ainda a possibilidade de que cada futuro moradormodifique internamente o apartamento, tornam o projeto desseedifício específico, não seguindo padronizações prévias, nem desoluções técnicas, nem de procedimentos construtivos. Parte-se deuma “folha em branco” para a concepção formal doempreendimento, guiada pelo conceito proposto. O escritório dearquitetura foi escolhido dentre aqueles que se destacaram naprodução arquitetônica recente, reconhecidos pelas publicaçõesespecializadas e em concursos públicos.

Essa forma de encarar a produção do projeto se reflete nosprocessos produtivos da obra, que não seguem estritamente asrecomendações dos manuais técnicos sobre a racionalização dotrabalho em canteiro, por exemplo, nem para a construção daestrutura em concreto armado, moldado in loco, nem para aexecução das alvenarias, apesar de competirem na mesma faixade mercado de empresas que adotam esses procedimentos.Tampouco são seguidas as padronizações sugeridas pelosprogramas e sistemas de qualidade. O trabalho em canteiroacompanha as orientações contidas nos desenhos de obra, atravésde uma divisão do trabalho mais próxima à “convencional”. Aconstrutora associada ao núcleo empreendedor atuaprincipalmente na construção de casas de alto padrão. Ela estárepresentada em canteiro pelo engenheiro de obra e contratouduas empreiteiras de mão-de-obra, uma civil e outra de instalaçõeshidráulicas e elétricas, que devem lidar com as especificidades doprojeto. Cada andar é diferente do outro, e assim cada laje, comsuas fôrmas e armaduras, cada abertura e seus caixilhos também.O que sugere uma obra mais complicada, pelo próprio caráter maisexperimental, menos sistemático de conduzir tanto os processosde projeto quanto os de obra.

109

Page 136: Tese Ta's - Capa

A obra foi iniciada com os projetos executivos concluídos, quepassaram por algumas alterações e adaptações no decorrer daconstrução, principalmente motivadas por revisões internas àincorporadora, que prevê a participação do escritório dearquitetura também no acompanhamento da obra em visitasperiódicas. O desenho de obra, nesses termos, se aproxima do“convencional”. São os projetos executivos, parciais,apresentados em folhas grandes, que devem ser cotejados nomomento de execução da obra e apropriados para a elaboraçãodos quantitativos e orçamentos. Trabalho esse que fica a cargo doengenheiro de obra e do mestre, apoiados por equipe de escritórioda construtora.

Marcelo, arquiteto do Edifício Aimberê 1749

MM – O projeto começou, eu sou um pouco ruim com datas, masmais ou menos há uns... um ano e meio atrás, por aí [2007].Porque, foi uma iniciativa da Idea/ Zarvos, junto com outros sóciosque na época estavam formando o Movimento Um, que hoje em diajá conta com vários prédios, não só o nosso. E foi curioso porqueeles vieram com uma... uma proposta mesmo, uma proposta... nãocomercial, uma proposta de iniciar ali a confecção de uma série deprédios. Então foi bacana porque eles mostraram, como se fosseum vídeo, uma conceituação, de quais características esses

110

Figura 20Edifício Aimberê 1749 – Fotos da fachada principal eda lateral do edifício (fotos daautora em maio/09)

Page 137: Tese Ta's - Capa

empreendimentos teriam, para quem seriam, onde eles estariam,uma coisa muito bem pensada. Então acho que tem esse... Estoufalando isso porque acho que tem que contextualizar um poucoquem são esses empreendedores. Porque, tudo bem, é mercadoimobiliário, mas pelo que eu conheço, pelo menos, eles têm umamarca um pouco diferente, uma maneira de atuar um poucodiferente, graças a Deus... Já até falo, que espero que isso seja umpouco a sinalização de que, pelo menos em São Paulo, tem gentequerendo morar em prédios que não sejam somente repetições doque vem sendo feito nos últimos 20 anos. Então, quais eram ascaracterísticas desses prédios: sempre em bairros centrais, todosos terrenos que eles procuravam ou já tinham adquirido eram embairros centrais. Terrenos relativamente pequenos, até por isso queeles eram viáveis, eles conseguiam um terreno bacana ali naAimberê ou na Vila Madalena, são terrenos de tamanho, mais oumenos, pequenos. E com uma arquitetura que fosse...interessante, um pouco diferente, e além disso maisespecificamente, daí isso vem muito com o Otávio, com a Zarvos,um tipo de apartamento que permitisse que o morador, de algumaforma, interferisse na planta interna dele, quer dizer, no que dizrespeito, é claro, de todas as questões de volumetria, fachada,mas lá dentro, dentro de certos limites também, quem comprapode atuar. Então isso é super importante, porque vai refletir lá nafrente, acho que um pouco dentro do que você está pesquisando,a maneira como o projeto é desenvolvido. É... mas foi assim, ocontato veio deles então, e desde lá eles vêm contratando umasérie de escritórios muito legais...

Por apresentar uma proposta em certa medida inovadora para omercado imobiliário, a viabilidade do empreendimento deve sergarantida, apesar de fugir aos estilos e sistemas construtivosadotados mais comumente pelas incorporadoras e construtoras,mais determinados por procedimentos padronizados. A sociedadeentre os diversos agentes, a incorporadora, a imobiliária e aconstrutora, contribui para viabilizar o empreendimento, contandocom a experiência e os contatos de cada um.

Marcelo, arquiteto do Edifício Aimberê 1749

MM – Mas eu lembro que isso foi falado, é claro, uma certapreocupação, na justa medida deles, com o orçamento, quer dizer...,os escritórios não fazem..., uma liberdade dentro de determinadosparâmetros, mas como é um apartamento, no fundo são prédiospra..., não sei definir também, exatamente, classe média alta?, vocêtem condições de fazer coisas interessantes, mas ela não é maiscara do que o concorrente, do que o prédio que está do lado, naVila Madalena...

T – Do que o lançamento do prédio do lado...

MM – Isso, exatamente. Agora, sem dúvida é um tipo de..., poroutras razões até, por essa certa customização, até levada a umcerto..., extremo mesmo, porque isso não é novo, você podermexer em planta, isso qualquer prédio mais ou menos oferece apossibilidade. Mas a maneira como ele encara, encampa, faz com

111

Page 138: Tese Ta's - Capa

que o projeto seja muito elaborado. Então não é uma produção emmassa, mesmo considerando a faixa de mercado para quem elestrabalham. Agora, eu acho que as coisas começam um pouco poraí, e espero que isso não vire também moda, espero que issoinfluencie outras maneiras de fazer, mas não que de repente acidade vire isso.

________

MM – [...] Então, por exemplo, nesse caso do Zarvos, quer dizer, umdos sócios, digamos é quem faz a venda, a Axpe, que é uma pessoatambém, que entrou no negócio porque está a fim de fazer coisasdiferentes.

T – Não parte de lá pra cá, é uma vontade...

MM – É, coletiva...

T – Da Idea/Zarvos...

MM – Isso... E até você vê que todas essas coisas andam juntas. Avenda é feita, mesmo que você vá na Axpe e veja alguma coisa, amaioria das vendas é feita no escritório do Otávio, ele queapresenta o projeto... É, enfim, uma maneira de encaminhar todoprocesso, eu acho muito mais interessante. Agora, dentro domodelo de mercado, isso não escapa, eu acho que pelo menos éuma prova de que você pode fazer..., ou pelo menos tentar fazer,coisas melhores dentro desse modelo. Você não precisanecessariamente, eu acho que isso é importante, você não precisanecessariamente revolucionar a maneira de fazer, para que vocêtenha qualidade..., pelo menos nessa faixa de mercado..., isso nãoé verdade pra outros.

A arquitetura produzida tem caráter autoral. O arquiteto aindacontrola, nessa situação, o projeto desde a sua concepção inicialaté a elaboração dos projetos executivos. A concepção formal émenos guiada por determinantes externas, vindas daincorporadora e da construtora, havendo maior espaço de criação,que parte de um conceito, uma idéia que é desenvolvida até osdetalhes. Internamente ao escritório de arquitetura, uma mesmaequipe, de arquitetos prestadores de serviço, coordenada por ummesmo arquiteto, sócio do escritório, participa da elaboração doprojeto do início ao fim, com graus diferentes de contribuição aolongo da concepção do edifício, conforme relatado a seguir. Elesparticipam ativamente nas compatibilizações entre os váriosprojetos setoriais, ficando ressaltada a figura do gerente deprojetos da incorporadora na condução desse processo. A suapresença na obra é pontual, sendo necessária em conversas comfornecedores, para especificação de materiais, no esclarecimentode dúvidas e revisões de soluções.

Marcelo, arquiteto do Edifício Aimberê 1749

MM – [...] Então depois disso, eles apresentaram o terreno na Aimberê,e a gente começou a desenvolver o projeto junto com o Otávio.

T – Quer dizer, o primeiro esboço, tudo..., veio da arquiteturamesmo?

112

Page 139: Tese Ta's - Capa

MM – Isso, ele deu o programa...

T – Aí já sabiam que seriam 12 unidades?

MM – Mais ou menos, porque isso..., como o prédio tem essacaracterística de ser um pouco componível, então não se sabia queera exatamente isso, mas se tinha uma idéia de “olha, vão serpoucas unidades, por volta de...”

T – E aí é o limite de área construída, por exemplo, dado pela taxade ocupação, pelo coeficiente de aproveitamento...?

MM – Isso, exatamente, a gente até no começo..., porque tem essacoisa da lei, “ocupa 25% da área, ou senão paga outorga, vocêpode construir duas vezes...” Daí no final se chegou à conclusão deque era melhor fazer uma ocupação de 50%, pagar para a prefeiturao direito..., chegar aos mesmos dois [coeficiente de aproveitamento],nesse caso, desse bairro, você não ultrapassa. E daí foi o estudo daarquitetura, junto, sempre como ele, que acabou determinando que,no fundo, seriam 12 unidades, com tais características. Mas, amorfologia do prédio nasceu da gente. Agora, ele é uma pessoa queatua, mas de uma maneira boa, que é o jeito que eu gosto detrabalhar com qualquer cliente, ele não dá a solução, ele diz o queele quer, você dá a solução para ele. Ele não pega o papel e...

T – “Eu quero a janela assim, inclinado assim...”

MM – É... Mas ele sabe bem o que quer, mas é um jeito que é fácil,combina... E pelos outros prédios, você vê que não é de um jeito só,é meio fácil, pra falar a verdade, é um cliente muito legal detrabalhar... Todos, a sociedade, são quatro sócios, eu acho, masquem acaba levando no dia a dia é mais ele, porque tem aexperiência mesmo de projeto.

_______

T – E então vocês desenvolveram um estudo preliminar, digamos?

MM – O estudo começa sempre eu e o Vinícius [sócios doescritório], conversando. Nasce muito de um conceito, não de umdesenho. Assim que isso ganha alguma forma, em geral a gente fazpequenas maquetes de papel... ou de espuma..., questão deimplantação, a gente se preocupa muito com implantação..., arelação com o terreno e tal..., e quando a gente decide que o partidoestá feito, daí a gente prepara uma apresentação para o cliente, eisso varia um pouco. No caso dele, a gente levou tudo. A gentelevou desde a maquetinha pequenininha que a gente fez, quase umaescul... A primeira definição foi desses sulcos...

T – Do volume?

MM – Do volume escavado, porque era um pouco isso mesmo... Daía gente elabora, em geral, tem sido assim nos últimos anos, juntocom isso, um modelo, mas um modelo não renderizado brutal,eletrônico, mais porque você pode dar uma olhada, é muito fácil depilotar... E daí algumas plantas básicas... o térreo, sempre, pramostrar a relação com a rua, e, nesse caso, como já tinha desde oinício a idéia dos andares variados, a gente pegou, sei lá..., trêspossibilidades, e como a gente sabia que isso ia mudar, tambémnão ficou fazendo todas as plantas...

113

Page 140: Tese Ta's - Capa

T – Desenvolvendo, tudo...

MM – É. E como ele também gosta de interferir, a gente tambémlogo percebeu que não era bom chegar com uma coisa muitoacabada. Controla algumas coisas que interessam e vai conversarcom ele. Daí, desse primeiro estudo, foi um processo...

T – E aí, depois, mais gente aqui do escritório participou também?

MM – Na hora em que a gente decide o partido, isso vai para oescritório, na hora em que eu falo “ah, não, definiu o partido”, isso jáimediatamente passa... No começo duas pessoas, em geral,trabalham na apresentação com a gente, no modelo, confecção dasplantas, tudo... E daí uma delas vai até o fim, desenvolvendo.

T – A partir de quando começam a entrar as outras... engenharia,estrutura, instalações...?

MM – Na hora em que o estudo preliminar virou anteprojeto, que oOtávio concordou, de alguma forma o projeto se cristaliza, por maisque ele ainda mude um pouco, nessa hora entram os projetoscomplementares de instalação, estrutura, fundação, paisagismo,iluminação, quer dizer... o pacote usual. Foi assim lá também.

T – E a compatibilização aconteceu aqui?

MM – É nossa. Quer dizer, o Otávio tem um gerente de projetos,sempre.

T – Que é um arquiteto?

MM – Nesse caso foi um arquiteto, porque a equipe da Zarvos, hojeem dia, até cresceu um pouco. No nosso caso foi um arquiteto. Eele gerenciava, ou seja, ele coordenava as reuniões..., porque chegauma hora também que o Otávio não tem tempo. Então, a hora queele ficou satisfeito, o gerente pega. Então eu falo isso porque essegerente, ele também olhava a questão de compatibilização deprojeto. Mas a compatibilização mais fina, principalmente estruturale de instalação hidráulica, que são as mais intrincadas, isso é umtrabalho feito mais aqui no escritório.

_______

T – E aí esse contrato é direto com a Zarvos, e vocês tinham essasreuniões com o gerente de projetos...

MM – O processo de projeto então conta com esses escritórios,quem contrata sempre é a Zarvos, e o gerente, no fundo, encaminhaas reuniões, ele que marca o cronograma, quer dizer, isso é bom,você ter um gerente do lado do cliente, eu acho excelente, porquesenão quem faz isso é você.

T – É ele que demanda?

MM – Ele que demanda, ele que marca o passo, porque senão quemacaba fazendo é o arquiteto também. Porque, ele é o único ator quesabe de tudo, é o único, os outros só sabem do seu pedaço e ficamsatisfeitos de só saber do seu pedaço. Então na hora em que vocêtem um gerente ele é obrigado a prestar atenção, nessa questão queé anterior ao projeto, tecnicamente a gente continua comandandoum pouco, eu acho isso também mau. Mas do ponto de vista dacondução do processo é o gerente que conduz.

114

Page 141: Tese Ta's - Capa

T – É uma questão mais de gerenciamento.

MM – Gerenciamento mesmo, prazo, marcar as reuniões, saber seas coisas estão sendo..., a questão de entrega, de revisão, depoisorçamento..., e daí isso entra obra adentro, então eu acho isso bom.

T – E aí, a obra foi iniciada com os executivos concluídos?

MM – Foi, concluídos, tudo certinho.

T – E os executivos de arquitetura foram desenvolvidos aqui dentro?

MM – Foram, o detalhamento foi todo feito aqui.

_______

T – E aí, iniciada a obra, como que fica a relação do escritório com...

MM – Então, tinha desde o início do processo, já havia o acordode que o escritório acompanharia a obra. E a gente tem uminteresse, é uma prática nossa, a gente não tem nenhumprojeto..., eu não lembro pelo menos, que a gente tenha feito quea gente não tenha conseguido acompanhar, eu acho isso bastanteimportante. Ainda mais nesse caso, por que? Nesse caso daAimberê, porque foi o primeiro prédio do Movimento Um que foiconstruído, apesar do Otávio ter experiência, não é o primeiroprédio que ele faz, mas com essas características era o primeiro...[...] Então ele de alguma maneira foi um piloto, então, porexemplo, uma série de experiências, eu acho, isso daí eu já nãoposso garantir, você teria que perguntar para ele, porque umasérie de experiências, aquelas coisas que a gente passou nesseprojeto, foram usadas pra melhorar o processo dos outros. Então,por exemplo, um detalhe singelo, mas que eu acho que tem a vercom a sua pesquisa, na hora em que o cliente pode, por exemplo,mudar a característica de um banheiro, como é que fica proprojeto original nosso, o detalhamento desse banheiro? Vocêdetalha baseado no memorial descritivo ou você não detalha? Nósdetalhamos. Então, isso hoje em dia já é encarado de outramaneira, que eu acho muito mais inteligente, que é você ter ummemorial, porque isso precisa orientar o orçamento..., porque seaquele apartamento não for vendido...

T – Que é o que o cliente compra?

MM – É, digamos, é o direito que ele tem. Se aquele apartamentonão for vendido, ele precisa ficar prontinho ali. Hoje em dia é feitoum trabalho que, esse detalhamento..., você tem a base 1:50 bemfeitinha, um memorial explicando..., dá condição de você orçardireitinho, definir o que o cliente tem direito, só que, como de fato amaioria é vendida na planta, isso não é desenvolvido, até a hora emque seja necessário. E no nosso caso não, na Aimberê a gente feztodos, e muito desse trabalho...

T – Fez até o final...

MM – E como os apartamentos têm..., quer dizer, não é cada umdiferente do outro, não são doze diferentes, mas são..., sei lá, sãosete, então a gente teve muito trabalho nisso.

T – Então, ficam quase que sete projetos?

MM – Tem coisas que não foram usadas... Não, quase não, sãosete, por mais que você adote... Então isso foi uma coisa que..., é

115

Page 142: Tese Ta's - Capa

engraçado, hoje parece tão óbvio, mas na época não se percebeumuito bem, você não sabe muito bem os limites, quando você vaiprecisar dessa informação... Então, tem hoje lá uma série deampliações, em 1:25, de áreas molhadas, que não vão ser usadas.Mas tudo bem, eu acho que isso é uma otimização do processo, agente como contrato, foi contratado para fazer e fizemos.

T – É são ajustes mais também da Zarvos...

MM – É, mas eu diria assim, que esse tipo de prédio, com essacaracterística, ele implica num desenvolvimento de um projeto umpouquinho diferente do..., se você olhar um caso extremamenteoposto, que é um caso de um prédio mais alto, em que o miolodele é “tipo” mesmo, esse cara, no limite, desenvolve uma planta,e repete. Nesse caso, o Aimberê, ele é quase doze casasempilhadas, estou exagerando um pouco, mas é quase isso.Então, como uma casa, cada um tem seu detalhamento. Então,isso resulta num projeto muito mais trabalhoso, mais caro. Então,pra contrapor um pouco isso, você tem essa característica, aarquitetura é quase uma base dentro da qual o cliente temcondições de desenvolver...

T – E a obra está assim, eu estive lá na semana passada, e eles vãoentregar, agora, a obra, pras obras internas, é a mesma coisa...

MM – Isso, exatamente, também a mesma coisa. E isso não foi umacoisa que ficou clara, desde o início, teve muito debate durante aobra de como fazer isso. Muitas coisas foram sendo aprendidas e osoutros poderão se beneficiar disso.

Essa concepção do empreendimento, que propõe o edifício comouma estrutura a ser ocupada de diversas formas internamente, deacordo com as necessidades e vontades de cada futuro morador,marca a obra em dois momentos distintos. A equipe da construtoraé responsável pela construção do “corpo” do edifício, sua estrutura,vedação externa e infra-estrutura, que será depois ocupado dediversas formas, sendo possíveis inclusive alterações na localizaçãodas áreas molhadas, por exemplo, prática incomum em outrosedifícios que permitem a “personalização” dos apartamentos.Terminada essa fase, cada cliente contrata um arquiteto quedesenvolverá um projeto específico para a ocupação interna doapartamento, que será executado por diferentes equipes de obra,apoiadas pela equipe da construtora.

Essa proposta do empreendimento, que se reflete em seu projeto,acaba por determinar a forma de produção em canteiro, que entãose torna mais específica, mais particularizada. A possibilidade de“otimização” é vista a partir de mudanças no processo de projeto,que pode se ater ao “corpo” do edifício e a uma quantificação demateriais e serviços, que não se refletem em desenhos executivosdetalhados das áreas internas. As possibilidades de racionalizaçãoe padronização a partir da forma de trabalho em canteiro,presentes nas obras do Edifício Maison Alinne e do CondomínioParque do Sumaré, descritas em seguida, parecem não interessar

116

Page 143: Tese Ta's - Capa

ao conceito dos empreendedores de oferecer “espaçosdiferenciados”. E nesse sentido são buscadas soluçõesespecíficas, próprias, com a participação do arquiteto em ajustesjunto a fornecedores, durante o processo de obra, que garantam ocontrole sobre o produto final.

Marcelo, arquiteto do Edifício Aimberê 1749

T – E que tipo de coisas aparecem, de dúvidas, incompatibilidades?

MM – Olha, é muito variado, desde coisas que para mim são banais,que bastava ter olhado o desenho com um pouco mais de calma,isso acontece muito, por incrível que pareça. Mas na maioria dasvezes, nesse caso pelo menos, não é muito assim, “ah, o engenheiroteve preguiça de olhar o desenho”, como é novo pra ele também,ele fica inseguro, então ele quer confirmar algumas coisas que estãono desenho. Então essa é uma circunstância que eu diria que é maisda metade das ocorrências, daí fora isso tem a...

T – Você diz que é a novidade do tipo da obra mesmo?

MM – Do prédio, é... Pelo fato dele não ser um “tipo”...

T – Um pavimento tipo, quer dizer, faz um, acerta tudo e vairepetindo...

MM – Outro tipo de dúvida que tem, e essa é a que eu mais esperoter que atender, é dúvida de fornecedor. Fornecedor quando não é ofornecedor da coisa pronta, é o cara do caixilho, o cara daserralheria... A gente, por exemplo, tem séries de caixilho e deserralheria, que são relativamente bem detalhadas, só que eu ponhono meu desenho, que antes do cara fazer, eu quero fazer umareunião e discutir algumas informações com ele. Por quê? Porque euacho que, vou pegar o caso de uma serralheria, que é o mais claro,se você vai fazer um portão a partir de perfis, ou a partir de tubos,um guarda-corpo, essas coisas, existe um conhecimento que ofornecedor tem, que é bom você comparar com aquilo que vocêprojetou, eu acho isso importante. Então essas reuniões ocupamboa parte das visitas, então você vai lá e discute, o cara faz umprotótipo, você vai e confere o protótipo, vê, ficou bem feito, nãoficou, não gostou, então vamos trocar, ajustar...

T – Seria quase que um afinamento até do próprio projeto, juntocom quem vai fazer...

MM – Sem dúvida, pra mim serve pra isso. Eu conto com isso. Agente chegou à conclusão, depois de um tempo, que você pegarum projeto desses e detalhar até o parafuso, ele no fundo não é amelhor garantia, por razões um pouco estranhas, mas queacontecem. O fornecedor às vezes não vê e faz do jeito dele,então tem isso. E depois porque às vezes você realmentesubestima algumas questões. Então na hora que você tem ali oengenheiro e o fornecedor vendo alguns detalhes do seu projeto,às vezes você melhora.

T – Ou até às vezes são adaptações para o jeito de fazer do cara,que não prejudica...

MM – Exatamente, muito pelo contrário, facilita... Então, eu faloisso, porque eu acho que é um assunto controverso, porque de

117

Page 144: Tese Ta's - Capa

alguma maneira você está deixando uma possibilidade de mudançade projeto pra época de obra. Falando assim não parece bom, masna prática a melhor solução se dá com isso. [...] E daí a gente vai látambém pra resolver problemas, coisas que nós não previmos noprojeto..., acontece. A gente tem que ter a humildade de saber quevocê não consegue..., por mais que você se esforce, em olharcada..., tem horas que você não antevê algum tipo de problema, evocê tem que estar lá pra olhar e dar uma solução junto com aengenharia para resolver aquele problema, então isso também éoutra ocorrência.

Nessa situação, os desenhos executivos são elaborados contandocom possíveis ajustes e revisões no momento de execução,principalmente de detalhes. Apresentam certa abertura naprescrição de elementos e procedimentos construtivos que sãodefinidos em conjunto pelo arquiteto, pela construtora e pelosfornecedores, com a realização de protótipos já em canteiro.

Na visão da equipe de obra, por outro lado, essa especificidade doprojeto não parece ser percebida como algo que dificulte otrabalho em canteiro, que se deve mais à “desatualização” daempreiteira frente aos procedimentos de trabalho mais recentes. A“complicação” que a variedade de formas de ocupação internatraz, por exemplo, é mais um dado a ser trabalhado, do que algoque mereça ser repensado no processo de trabalho. No entanto,são citadas experiências de trabalho em outras construtoras queadotam procedimentos de racionalização, que são percebidascomo vantajosas para o trabalho em canteiro, ou pela diminuiçãodas possibilidades de variação interna dos apartamentos, ou pelaadoção do “projeto de marcação”, o projeto da primeira fiada dealvenaria, por exemplo.

Ralf, engenheiro de obra do Edifício Aimberê 1749

T – Mas você acha que é um pessoal que trabalha há pouco tempona área?

R – Não, é um pessoal que..., pra ser sincero, é assim, essa equipeque veio fazer o prédio aqui, isso já foi muito debatido, sãopessoas que há muitos e muitos anos não faziam mais prédio. Pelafalta de ritmo de executar um prédio, [a equipe da empreiteira],eles apanharam feio. Então se você contrata pessoas,empreiteiros, empresas que estão acostumadas a fazer prédio, éóbvio tem erro, alguns deslizes, tem, só que você consegue chegarmais junto do cara, e o cara vai entender, o dono da empreiteira,por exemplo, você vai estar falando a mesma língua. Quer dizer, édiferente daqui, aqui eu tentava colocar as necessidades e osproblemas que aconteciam e ficava aquela coisa “você estáfalando mas eu estou acostumado a fazer”, mas peraí “você estáacostumado a fazer há dez, quinze anos atrás”, as tendênciastécnicas, a modernidade de como se faz a obra, de lá pra cámudaram, há coisas que ficaram mais fáceis, coisas quedificultaram um pouco mais, até pelo arrojo do projeto. Então, énesse ponto que pega.

118

Page 145: Tese Ta's - Capa

T – E teve alguma necessidade de mudança de projeto, imprevistos,como isso foi conversado?

R – Existem problemas no dia a dia, que é devido a uma falha noprojeto, às vezes até por desenho. Isso está acontecendo muito. Oscadistas aí... existe uma falha bem costumeira, por exemplo, vaiescrever “10”, escreve “1”, no CAD, então isso acontece muito. E émeio normal..., então você vai, entra em contato ali com o projetistae tal, “não realmente e tal”, aquela história toda, então a gentemanda uma revisão, alguma coisa assim. Agora existem sim asmodificações, ou alterações de projeto, mas isso devido talvez auma mudança de conceito dos serviços, quer dizer, uma coisa quevem ali de um projeto de arquitetura, de repente pleiteada pelaincorporadora, ou por algum projetista, quer dizer, existe sim no diaa dia da obra a possibilidade de acontecer isso. Acredito que nasempresas grandes, nas construtoras grandes, é difícil de acontecer.Os projetos são muito bem definidos, muito bem amarrados, elesquando lançam um empreendimento aí no mercado, a coisa já estáde tempos, já está tudo amarradinho, dificilmente acontece algumimprevisto de projeto.

T – É, porque aqui além de ser cada apartamento uma planta, temessa coisa dos layouts ainda estarem sendo definidos...

R – É, aqui você construiu a casca do prédio, baseado num projeto,e hoje, agora, no caso, você tem pra cada apartamento um layoutdefinido pelo proprietário, então você tem que readaptar algumascoisas pra isso. O que está sendo bem complicado...

_______

T – Do tempo que você passa aqui dentro, onde você gasta maistempo, fazendo que atividade?

R – Administrando pessoal. Você deve estabelecer metas econseguir o comprometimento deles pra isso. Isso, nessa obra aqui,é o que eu sinto mais. Devido talvez a essa baixa qualidade da mão-de-obra você tem esse problema, porque uma coisa é quando vocêtem uma equipe que se compromete a fazer, eles mesmos vêm atrásde você pra solucionar dúvidas...

T – Você acha que o fato do projeto ser meio diferente influi nisso?Por exemplo, não é tudo igual, repetido...

R – Não, não. Pode gerar sim uma..., como se diz assim, “cada um éde um jeito”, aquela incerteza, mas ao mesmo tempo eles estãobaseados no projeto. E tem a mim pra consultar. Então, a únicacoisa que realmente pega mesmo, é aquela coisa de fazer.

_______

T – Você já tinha pegado alguma obra desse tipo antes?

R – Não, eu já peguei prédio residencial de alto padrão, também etal. Mas o que acontece, eu administrava mudanças de layout deapartamento só que isso já vinha pré-definido. Então, por exemplo,eu tinha 72 apartamentos. Dos 72, 64 tinham modificações deparedes, instalação. Só que quando eu ia começar a fazer asparedes desses apartamentos, eu já tinha essas modificações.Então a gente afixava na entrada do apartamento todo o memorial

119

Page 146: Tese Ta's - Capa

do que tinha que ser feito, toda uma seqüência, então era umacoisa muito bem pensadinha, não tinha porque errar, não temporque errar. Agora, aqui não. Aqui você fez..., e agora meio queassim, você subiu, agora você vai descer o prédio olhando um porum. Então, coisas que não eram previstas...

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê

T – E tem alguma diferença, dessas outras obras, pra essa agora,nesse sentido do projeto, de como você fazia essa marcação?

M – Tem, logicamente que tem construtora que trabalha de ummodo diferente. Por exemplo, tem construtora que você trabalha quevocê não precisa estar comparando projeto de estrutura com projetode alvenaria, ou seja, de arquitetura. Não tem precisão. Por quê?Porque tem projeto que tem o projeto de marcação, você fazendo amarcação do jeito que está no projeto ali, quando chegar na alturade janela dá exata a medida, você não precisa estar batendo cabeçacom medida.

A produção de uma obra única e diferenciada, que carrega umsentido de arquitetura autoral, de valor simbólico próprio, vai deencontro a uma demanda específica do mercado, que procuraespaços distintos dentro da produção de edifícios de “alto padrão”presentes em maior escala na construção da cidade. Nessestermos, o desenho de obra, fruto de um processo de projeto único,também acaba por determinar a forma de produção em canteiro,que então deve se acomodar à especificidade de cada projeto.

Maison Alinne

Os processos produtivos do projeto e da obra do Edifício MaisonAlinne apresentam grau de racionalização e de padronização quecorrespondem, em certa medida, às referências encontradas emapostilas e artigos técnicos para a construção de edifícios emestrutura de concreto armado moldado in loco, com lajes deconcreto maciças e vedação em alvenaria. A obra do edifício segueuma seqüência de execução que possibilita a realização simultâneadas atividades de construção da estrutura (fôrmas e armaduras),das lajes (concretagem e cimbramento), da alvenaria, instalação deeletrodutos e tubos, contrapiso, instalação de batentes econtramarcos e revestimento interno, sucessivamente, entre osandares, conforme a torre vai sendo erguida. Esse processoprodutivo acaba por determinar o projeto do edifício, limitando-o emtermos dos sistemas construtivos e das possibilidades formais,tendo conseqüências também na forma de produção do projeto ede elaboração dos desenhos.

120

Page 147: Tese Ta's - Capa

A incorporadora e construtora Zabo atua no mercado imobiliárioresidencial de alto padrão e atinge uma maior escala de produção,se comparada à da incorporadora Idea/ Zarvos. Procura se destacarapostando na qualidade do produto, tanto em termos construtivos,quanto estéticos:

“Zabo – sofisticação em cada detalhe: Fundada em 1986, atuandohá mais de 20 anos no segmento da construção civil, a Zabo éhoje um sinônimo de alto padrão. Nossa missão é sercolaboradora dos desejos dos clientes, prestando um serviçodiferenciado e atuando sempre com muita ética eresponsabilidade. Nossa política é contínua na busca de qualidadee aprimoramento para produzir sempre o melhor produto. Nossafilosofia de trabalho é baseada no respeito aos clientes, aosfornecedores e aos parceiros comerciais. E justamente por isso, seantecipa às tendências do mercado e faz absoluta questão decumprir prazos e compromissos. Compromissos com a qualidadede vida de seus clientes. Cada detalhe recebe uma atençãoprivilegiada desde a definição do terreno e sua localização até aescolha dos métodos de construção e material de acabamento.Líder no segmento de construções de alto padrão, a Zabo estásempre inovando nas soluções de arquitetura e na funcionalidadedos espaços fazendo prevalecer o bom gosto, o requinte e asofisticação nos detalhes. Assim, mais que prédios, a Zabo estáconstruindo sonhos.”35

121

Figura 21Esquema da seqüência deexecução da alvenaria de umedifício (em apostila do cursode Tecnologia da Construçãodo Prof. Luiz Sérgio Franco, doDepartamento de EngenhariaCivil da Poli-USP, em<http//pcc2435.pcc.usp.br/textos.htm> acessado em11/04/08); e foto da autora daconstrução do Edifício MaisonAlinne em maio/08.

35. Em <http://www.zabo.com.br/institucional/empresa.asp>,acessado em 22/05/2008.

Page 148: Tese Ta's - Capa

Os momentos de concepção e de execução estão definidos e seusagentes são distintos. O único que se mantém em ambos osprocessos é a incorporadora/ construtora, que contrata os serviçosdo escritório de arquitetura e as empreiteiras de mão-de-obra egerencia todo o processo de construção. Ela está presente nocanteiro de obras na figura do engenheiro de campo e do mestre deobras, que nesse caso também é contratado direto da construtora.

O processo de projeto tem início a partir de uma encomenda daincorporadora/ construtora que apresenta um programa maisdefinido ao escritório de arquitetura do que no caso do Aimberê,estipulando as características dos apartamentos que devem serprojetados, sua área construída aproximada, o número dedormitórios, a partir de um estudo de viabilidade, feito internamente,que avalia as condições de venda e aquelas dadas pela legislaçãourbanística. A escolha do escritório é determinada conforme o“estilo”, a marca que se pretende dar para o empreendimento.

O escritório Itamar Berezin foi contratado para o desenvolvimentodo projeto, desde os estudos de implantação, fachadas e plantas“tipo”, até o executivo. Internamente, o arquiteto Itamar Berezinparticipa principalmente das etapas iniciais do projeto, maispropriamente de concepção, junto a uma equipe de viabilidade e auma equipe de fachadas. Além dessas, o escritório é composto pormais duas equipes, de projeto legal e de desenvolvimento dosprojetos executivos. A divisão em quatro equipes distintas,compostas por arquitetos, em que cada uma se torna responsávelpor uma parte da elaboração do projeto, não segue exatamente adivisão em etapas mais “tradicional” na produção dos projetos,aquelas de estudo preliminar, anteprojeto, projeto básico, projetoexecutivo, em que o nível de informação e de detalhamento seaproxima cada vez mais das especificações para a construção, quevão sendo desenvolvidas ao longo do processo, até pela escala dedesenho adotada em cada etapa.

O processo de projeto se inicia pela revisão do estudo deviabilidade legal do empreendimento, que fornece a área construídatotal, o gabarito, os recuos. Ao mesmo tempo, vão sendoelaboradas a planta do andar “tipo” do edifício, que constitui oelemento básico do projeto, e as fachadas, que apresentam suascaracterísticas visuais externas. A planta “tipo” fornece osparâmetros para a implantação do edifício no lote e será repetidapara todos os andares, com exceção do térreo, subsolo ecobertura. No caso do Maison Alinne, o edifício é composto porduas plantas “tipo”, uma que serve até o 10º andar, e outra até o27º. Após aprovação da incorporadora, uma outra equipe assume odesenvolvimento do projeto legal do empreendimento, a partir doselementos já elaborados, que será encaminhado para aprovação naprefeitura. Essa equipe completa o projeto a partir da planta “tipo” edas fachadas, “assentando” o edifício no lote e detalhando os

122

Page 149: Tese Ta's - Capa

andares superiores, ou seja, desenvolvendo o que é mais específicoa cada projeto, pela variação do relevo, do solo e da legislaçãourbanística. Com esse material, a concepção do projeto estáfinalizada e a partir daí são elaborados os folders de divulgaçãopara vendas, por equipe interna à incorporadora, que guiam odesenvolvimento dos projetos executivos.

Beatriz, arquiteta do Edifício Maison Alinne

Be – [...] Aqui eu estou já há nove anos, trabalhando com o ItamarBerezin. Sempre no mesmo segmento, o segmento de projetosexecutivos. O diferencial é que aqui no escritório nós temos quatroequipes bem separadas. As quatro fases de projeto são realizadaspor equipes separadas, coisa que até vir pra cá, pra mim isso nãotinha acontecido ainda. Eu sempre pegava o projeto de cabo a rabo.

T – E como que é, então, essa divisão das quatro?

Be – É assim, o projeto, aqui dentro do escritório, o projeto se dásempre com o Itamar Berezin, ele que tem o contato com o cliente,ele traz a planta... “tipo”, vamos dizer assim, ele faz a planta tipo, elepassa pra equipe que é de estudos, então eles fazem toda aviabilização, viabilidade do projeto, e ao mesmo tempo em que essepessoal está fazendo a viabilidade do projeto, tem uma outra equipeque está fazendo as fachadas, então esse pessoal trabalha junto como Itamar. Então, constrói-se o prédio, a idéia do prédio, nessa fase, eaí a partir do momento em que o cliente aprova o projeto, a fachada, aplanta do “tipo”, tal, passa pra equipe de prefeitura. Nós temos essaterceira equipe, que é uma equipe de prefeitura, que faz somente aparte legal. Então ela vai desenvolver térreo, subsolos, a caixa d’água,todas essas... essa parte do prédio mesmo..., sempre em funçãodaquilo que está na fachada, e o que foi vendido ao cliente. Quando...teoricamente, quando a prefeitura aprova, aí passa pra gente, que é aequipe de executivo... Eu falo teoricamente porque o ano passado...,faz dois anos, as coisas andam meio atropeladas. Então, ao mesmotempo em que está na prefeitura, a gente já está trabalhando. Então,quando tem alguma coisa que tem que ser revista, a gente tem querever também. Isso tem dado um pouco de conflito.

Quando eles fazem a primeira base de prefeitura, já é mandado pratodos os projetistas, então aí a construtora já passa pra gente quemé a equipe que vai trabalhar, o pessoal de estrutura, hidráulica,elétrica, ar-condicionado..., e eles já dão uma base do que eles vãoprecisar pra prefeitura aprovar. E aí, depois que passa dessa fase daprefeitura, que vai começar o pré-executivo, aí a gente literalmentecomeça o desenho do zero. A gente pega aquela prefeitura, comaquelas medidas que foram vendidas, que foram aprovadas pelaprefeitura, que são as medidas que foram vendidas pro cliente, enós mantemos aqui no escritório, por isso que eu achei até estranhoquando você comentou que eles [na obra do Maison Alinne] mudamos tamanhos das alvenarias, então todos os ambientes são..., daprefeitura, são em acabado pra gente. Então o prédio acaba atéaumentando um pouquinho. Porque a gente usa aquela medida [dosambientes] como acabada, e aí passa a colocar as alvenarias. Apartir do momento em que a gente faz essa primeira base, a gente já

123

Page 150: Tese Ta's - Capa

solta pra todos os projetistas novamente, e aí sim eles vão fazer oprojeto de pré-executivo. E aí eles vão dizer por onde que vai passar,qual o tamanho das vigas, qual o tamanho dos pilares, por onde vaipassar a tubulação de esgoto, por onde vai passar a elétrica, ondevai passar a tubulação de ar-condicionado.

Esse projeto vem pra gente, e a gente começa a fazer acompatibilização. Geralmente a gente faz o “tipo”, solta pra todomundo, e aí começa a ver os tamanhos de shafts, os tamanhos devigas, tamanhos de pilares... No “tipo” ainda a gente não tem muitoproblema com a estrutura, porque como a gente já mandou umaprévia do que a gente quer, eles já fazem em cima daquilo. O nossomaior problema é do térreo pra baixo, porque os pilares sempreaumentam, então a gente precisa compatibilizar. Então, uma vez quea gente consegue compatibilizar todos os projetos, então a gentecheca toda a estrutura, toda hidráulica, elétrica, infra-estrutura...,avisa “ó, vocês estão passando pelo mesmo canto, temos queseparar...”, então a gente faz uma coordenação. Em alguns projetos,as coordenadoras são de fora, são coordenadoras da construtora.Mesmo elas tendo essa coordenação a gente precisa fazer essacompatibilização aqui pra poder fazer o nosso executivo. Entãoassim, é mais fácil quando tem uma coordenadora contratada,porque nos auxilia, mas de qualquer forma a gente tem que fazerisso aqui dentro. Então a gente faz...

Quando se encerra toda essa compatibilização, aí então a gentepassa pro projeto executivo. Esse projeto executivo nada mais é doque acrescentar informações pra obra. Então até aqui eu dei sómedidas, cotas totais, do tamanho de sala... A partir do executivo eucomeço a dar as cotas de vão de janela, de vão de porta, boneca eetc. Eu preparo realmente o projeto pra ser enviado pra obra. Aí oque acontece, a partir do momento em que a gente fecha essa partedo executivo, nessa parte a gente já soltou a caixilharia, já fizemos oscortes e as elevações como vai ser mesmo o projeto. A partir dessemomento a gente acaba, encerra a nossa equipe e volta prodetalhamento, que foi o pessoal que fez a fachada, que tem um outrosetor que cuida só de detalhamento. Nesse detalhamento, então elesvão fazer todos os detalhes mesmo de projeto, piso, forro, azulejo,bancadas..., então saem todos os desenhos detalhados de como agente quer. E quem manda pra gente o memorial descritivo é aconstrutora. Então a gente segue toda a solicitação de tamanho, depaginação, essas coisas, da construtora. Mas a gente dá todas essasinformações. Independente de ser a Zabo ou a Cyrella, como eu tefalei, a diferença é que a Zabo a gente pode dizer de onde a gentequer que saia, na Cyrella já não, na Cyrella eles têm um padrão que agente segue. Então assim, acabou essa fase do detalhamento, oprojeto pra gente está entregue.

T – E a obra se inicia em que momento desse processo?

Be – A obra geralmente se inicia quando nós estamos entregandonosso executivo. O correto seria sempre a gente entregar oexecutivo e começar a obra. Porque ao mesmo tempo em que euentrego o meu executivo, a estrutura está entregando o executivodela, a hidráulica, a elétrica, ar-condicionado, paisagismo, a

124

Page 151: Tese Ta's - Capa

alvenaria, a decoração, todo mundo entrega esse executivo, e comesse executivo eles começam a trabalhar.

O que acontece muitas vezes é que a coisa se atropela. Entãogeralmente quando a gente faz essa parte do executivo, a gentecomeça a fazer a parte do “tipo”, que é quem manda no projeto, evai lá pra baixo. Exatamente porque aí o pessoal de fundaçãoconsegue trabalhar e eles conseguem ir trabalhando e fazendo.Então na maioria das vezes a gente está na 2ª fase do executivo eeles já estão em obra. Mas a gente não tem esse contato, porque apartir do momento que a gente entrega o executivo, a construtora,ela já libera pra fazer os orçamentos, fazer todas as coisas que elesprecisam. E aí a gente não tem esse feed-back da obra. Quandocomeça realmente essa fase de construir mesmo a obra, pra gentejá é passado. Já é muito tempo depois, já se passaram 6, 7 mesesda nossa entrega de projeto. Então muitas vezes a gente atendeligação de engenheiro depois de 6, 7 meses que a gente já entregouo projeto e a gente tem que buscar a informação e entender o queaconteceu. Mas a gente não tem muito..., essa mudança. Na maioriadas vezes o que acontece também é que quando tem especificaçãode material que não existe mais no mercado, eles pedem uma ajuda.Aí o pessoal de detalhamento e o próprio Itamar, ele vai até a obra eele dá o acompanhamento. Então ele faz a escolha de mudar decor... Então, é mais o Itamar que faz essa parte de ir lá e dar umaolhadinha. Mas é só quando é solicitado mesmo, e é muito raro.

O folder de divulgação guia toda a elaboração dos projetos pré-executivo e executivo, que devem respeitar o tamanho dasaberturas, a altura das vigas, o hall de entrada com a proporção dospilares, grades, peitoris, conforme estão representados. Essaseqüência de etapas na elaboração dos projetos, que desde o iníciojá define a aparência final do edifício, pressupõe a fixação a prioride parâmetros construtivos. Não se parte da “folha em branco”,mas sim de composições e arranjos de plantas “tipo” jáexperimentadas, que vão sendo aperfeiçoadas, e de soluçõespadronizadas, de detalhes, que foram elaborados tendo em vistauma racionalização da construção, principalmente no sentido doaumento da produtividade, tanto da produção do projeto quanto daobra. Esse processo acaba por configurar um “sistema”, amplo, deprojeto e de obra, de construtoras e fornecedores. As soluções demodulação da alvenaria, conforme o tamanho do bloco, implicamna definição de pés-direitos, alturas de vigas e peitoris, espessurados revestimentos, entre outros. São elaboradas e fornecidas pelasconstrutoras, a partir de um estudo minucioso desses diversosaspectos que estão inter-relacionados, compondo um manualtécnico de detalhes, um caderno de parâmetros. O desenvolvimentodo projeto passa a ser a composição desses detalhes jáelaborados, de acordo com um sistema construtivo pré-determinado. Os projetos são autorais, assinados por ItamarBerezin, mas se movem num campo mais restrito de possibilidadestécnicas e formais. Internamente, os cerca de quarenta arquitetos

125

Page 152: Tese Ta's - Capa

contratados do escritório se dividem entre as equipes, organizadoshierarquicamente entre gerentes, coordenadores e arquitetos. Aequipe que desenvolve os projetos executivos participa ativamenteda compatibilização dos projetos, que é gerenciada por umcoordenador da incorporadora.

Beatriz, arquiteta do Edifício Maison Alinne

T – Inclusive eu perguntei [para o engenheiro de obra, José Luiz] sevocês ainda mantinham contato, e também ele falou que não, que sóno caso de uma dúvida maior... Então, depois do projeto entregue,tem uma certa autonomia de uma coisa em relação à outra...?

Be – Tem, tem, mas é que a Zabo é muito livre, eles não têmnenhuma padronização que a gente tenha que seguir... Porque aCyrella, a Toledo Ferrari, algumas outras construtoras, a gente temque seguir o padrão deles...

T – Padrão de quê?

Be – Padrão de desenho mesmo, de..., principalmente a Cyrella.Eles têm um caderno de detalhamento. Então assim, não somosnós que dizemos onde que vai começar o piso, já é padrão deles.Então a gente faz os nossos desenhos em cima do padrão deles.E assim, essa questão deles mexerem nas alvenarias, a Zabo faz,porque nenhum outro projeto, eles não mexem, o que a gente fazé seguido à risca, porque tudo tem um por quê, não é à toa...Então assim, é diferente na Zabo, a Zabo é um pouquinho maislivre, mais solta...

_______

T – E o escritório tem tipologias...?

Be – Padrões?

T – É, mais ou menos padrão, que são adaptadas...?

Be – Padrões de desenho ou padrões de projeto?

T – Qual que é a diferença? [risos]

126

Figura 22Perspectivas ilustrativas dasfachadas de diversosprojetos de Itamar Berezin,New York Club, MaisonMichelle, Maison Jacqueline,Maison Madeleine (aprimeira, em<http://www.vivendanobre.com.br/website/site/empreendimentos/em_obras.asp>; as seguintes em<http://www.zabo.com.br/institucional/portifolio.asp>,acessados em 05/09)

Page 153: Tese Ta's - Capa

Be – É aquilo que eu estava te falando. Algumas construtoras elesmandam pra gente um padrão, um caderno de padrões de desenho,mesmo, hoje a gente encontra muito essa dificuldade...

T - ... Da representação?

Be – ... da representação deles, então a gente tem que seguir.Quando não, a gente segue a nossa aqui. Teoricamente a gente fazum... padrão meio Cyrella, porque eles são os mais exigentes, entãoa gente faz isso pra todo mundo...

T – E de tipologia mesmo de projeto, por exemplo, um apartamentotipo padrão?

Be – Isso já é..., na verdade assim, existe essa diferença, a gentetem os prédios de altíssimo padrão, os de alto padrão e os declasse média, então o nível de projeto é igual, a apresentação deprojeto pra gente é igual, não existe diferença. Porque a informaçãoque eu tenho que passar pra um pedreiro que está fazendo umapartamento de classe média é igual pro de altíssimo padrão, aúnica diferença é que os materiais são diferentes, então às vezes agente tem mais material pra colocar no de altíssimo padrão do queno outro, mas pra gente o projeto significa a mesma coisa, não temessa distinção. Agora, pro Itamar sim, na hora em que ele faz oprojeto ele tem um padrão..., ele tem a diferenciação..., a diferençade conceito de projeto pra cada... classe.

T – Por exemplo, vocês chegam a... cada projeto é um projeto, dozero, ou chega a aproveitar soluções? É mais no sentido do padrãodas construtoras? As soluções de detalhe...?

Be – Não, existe assim, eu acho que..., a gente consegue reconheceros projetos do Itamar, assim como você consegue reconhecer osprojetos de outros arquitetos, porque cada arquiteto tem o seu jeitode projetar, então existe uma... E eu acho que é isso que o mercadotambém procura, porque às vezes eles sabem... Como é que elesdividem, os terrenos? Então eles sabem que aquele segmento vaificar bom pra tal arquiteto, então eles pegam esse arquiteto. Então agente tem sim um... não um padrão, mas tem...

T – Uma linguagem?

Be – Uma linguagem. Tem uma linguagem.

T – É que eu vi no jornal uma propaganda de um prédio, afachada..., a fachada não, a fachada era diferente, mas aorganização do prédio era muito parecida com o Maison Alinne, quetem uma base de 10 andares, de dois apartamentos por andar e aísobe a torre com mais 17 andares e aí fica um por andar... E não sei,mas essa solução era muito parecida, e não era do Itamar...

Be – Mas o que acontece é assim, quando dá certo um projeto, opróprio cliente, ele já vem e fala “eu quero igual àquele”, então daívem a solução. Então, ele já vem com um projeto pré-determinado,e aí você tem que adaptar pro terreno que ele tem. Então, existeessa coisa de que eles vêm e pedem “a gente quer um projetoÇiragan”, então a gente já sabe qual é o conceito do Çiragan[empreendimento da Cyrella, de uso misto, uma torre deapartamentos de 36 andares e outra de escritórios de 12 andares nomesmo terreno, com fachada integrada, mas acessos

127

Page 154: Tese Ta's - Capa

independentes, próximo à Av. Paulista]. Então em cima desseconceito o Itamar trabalha...

________

T – Esse pessoal da equipe de fachada e do estudo de viabilidadetem contato com o pessoal de marketing, de vendas, como que é?

Be – Na verdade, o contato maior é com o Itamar, é o Itamar que fazessa...

T – Ele é quem faz essa relação?

Be – Ele que faz o projeto, ele bola o projeto, ele fala “eu quero isso”e aí vai saindo o projeto como ele quer. Ele é o arquiteto. E o contatoque as meninas têm com o pessoal de marketing é porque a gentemanda as elevações. A gente envia os projetos e eles fazem todosaqueles desenhos “maravilhosos”, mandam pra gente e a gentearruma, então tem esse contato de checar. A maioria dos folders saijá com o nosso aval. Porque é em cima disso que a gente depoisque faz o executivo tem que trabalhar.

T – É, porque é o que está na mão do cliente...

Be – É o que está vendido, então a gente tem esse cuidado dechecar, o que sai no folder.

T – E nesse sentido, o projeto, o que você acha que determina maiso projeto, se ele vai ser de um jeito ou de outro, que elementos, quefatores que compõem, principalmente?

Be – Isso quem compõe é o cliente, ele já vem com uma idéia. Porqueele hoje, é diferente. Antigamente, quando eu comecei a trabalhar eu melembro que vinha muito isso “olha, eu tenho um terreno, o que dá pragente fazer?”, e aí então nós arquitetos saíamos atrás de informações.Hoje as próprias construtoras e os próprios empreendedores já têm umaequipe que faz essa parte, quando eles chamam o arquiteto eles jásabem o produto que eles querem. Então, eles lançam o projeto jádefinido “eu quero 2 apartamentos, tantos metros quadrados...” e aí agente trabalha em cima disso. É raro o dia que vem o inverso.

T – Você sabe se esse pessoal, são arquitetos também?

Be – São todos arquitetos, são todos arquitetos.

_______

T – Quantas pessoas mais ou menos participam de cada projeto, aequipe é formada por quantos? Varia?

Be – [risos] Nós temos um problema crônico aqui dentro... Na verdade,cada arquiteto tem uns 3 projetos... Eu tenho 3 projetos e agora temum arquiteto me ajudando, nesses 3 projetos. Então, ele está meajudando em um e eu estou fazendo os outros dois. Geralmente, naequipe de prefeitura, cada arquiteto tem 1 ou 2 projetos. Aí quando acoisa aperta, a gente pega alguém, dá uma força, entrega e aí vaifazendo... Mas geralmente é um arquiteto por projeto...

T – A relação é ao contrário do que eu perguntei... Tem mais projetospor pessoas...

Be – É o inverso... Mas é por isso que o escritório, graças a Deus, foi oúltimo que teve demissões, porque todos os outros escritórios já estãodemitindo há muito tempo e a gente segurou até a semana passada...

_______

128

Page 155: Tese Ta's - Capa

T – Em que medida os desenhos são elaborados pensando na obra?

Be – Desde que a gente passa ele pro pré-executivo, ele é pensado naobra. Então desde a distância da boneca, a gente sabe que não podeser menor do que 7,5 cm, é o ideal. Porque hoje..., há uns 10..., maistempo, acho que de uns 15 anos pra cá, entrou um novo profissional,que é o arquiteto que faz alvenaria. Esse arquiteto faz toda acompatibilização de toda a obra em questão de custo. Então ele falapra gente, “a sua viga vai ter 53, porque a modulação de tijolos pra essaaltura de pé-direito de 2,88 tem que dar 53”, porque que dá 53? Porquese eu fizer com 50, eu vou ter esses 3 cm que eu vou ter que preenchercom algum outro material, ou se eu fizer com 45, vai ter quebra dealvenaria. Então hoje, nós já temos essa noção também, então todaaltura de peitoril, de caixilho, de distanciamento entre janela, porta,parede, alvenaria, a gente já faz em cima de uma modulação...

T – Esse arquiteto de alvenaria trabalha onde? Aqui?

Be – Não, eles são contratados. Algumas construtoras contratamesse profissional. Então, nessa fase da pré a gente manda pra eles eeles trazem pra gente. E eles deslocam às vezes alguns centímetros,a janela pra um lado, pro outro, mas nada que mexa no conceito doprojeto, e sim pra viabilizar o custo de obra. Não é toda construtoraque faz isso, são só as grandes. Mas em função da gente trabalhar,então já tem uma noção, a gente sabe a modulação que tem queusar. Então já desde o conceito de montar o pré-executivo, a genteutiliza essa informação. E aí, a gente começa a pensar como que ocara vai construir mesmo. Então quando a gente faz uma checagemde fôrma, a gente sabe, a gente pode pedir pra ele deslocar essaviga pra um lado ou pro outro, mas não porque eu quero, e simporque eu sei que na obra não vai gerar nenhum problema. Então agente tem essa noção, do que pode ser feito ou não. Muitas vezes agente erra, porque não está lá direto, então a gente chama oengenheiro e fala “olha, o que você acha da gente fazer assim?”, eeles também têm essa... a gente tem uma noção...

A maneira de elaboração do projeto não repercute na forma deapresentação dos desenhos executivos, em folhas grandes, comconteúdos parciais, que devem ser cotejados no momento deexecução da obra e que exigem um esforço de compatibilização, nomomento de elaboração, por parte das equipes especializadas. Aconstrutora Zabo, apesar de ser mais “solta”, está inserida nesse“sistema” de produção, seja pela contratação de escritórios queatuam nesse mercado, seja pelo processo construtivo. Os cadernosde parâmetros, elaborados por outras construtoras, servem aosprocedimentos construtivos adotados na obra do Edifício MaisonAlinne. A “liberdade” que a construtora exerce em relação aosdesenhos executivos está ligada à possibilidade, oferecida aosclientes, de modificar internamente os apartamentos, que ficarestrita aos acabamentos e a pequenas alterações na disposiçãodas paredes que conformam os ambientes. O que leva aconstrutora a adotar procedimentos específicos em canteiro demarcação das alvenarias, principalmente pela elaboração de um“projeto de marcação”.

129

Page 156: Tese Ta's - Capa

Beatriz, arquiteta do Edifício Maison Alinne

T – Da compatibilização o que dá mais problema, que em geral vemmais difícil?

Be – Desde o início, como a gente tem as equipes trabalhandojuntas, e os prazos sempre, que os clientes solicitam, são muitocorridos, muitas vezes quando chega pra gente, a gente vai olharo folder, quando a gente chega pra fazer o executivo, chega ofolder, chega a prefeitura, e chega o projeto..., o estudo que foipassado pro cliente, a gente encontra algumasincompatibilidades, nada de grave, mas coisas que a gente temque fazer. Muitas coisas na prefeitura não passam..., e isso agente acaba compatibilizando aqui dentro depois, na parte deexecutivo. O nosso maior problema sempre é, sempre, com opessoal de estrutura, porque eles fazem uma estimativa e depoisquando eles vão calcular mesmo, geralmente lá embaixo, dáalguns problemas, mas depende também do projetista. Porqueisso é uma coisa interessante, a maioria das construtoras tambémtrabalha com equipes fechadas, e a gente conhece muita gente.Então, geralmente é até engraçado, quando a gente pega oprojeto, geralmente pergunta “quem é a equipe?”, então a gentesabe qual é o nível de problema que a gente vai ter, porque agente já está acostumada a trabalhar. Então depende muito daequipe, depende bastante da equipe. [...] Outro dia eu estavaconversando com a minha coordenadora, assim “ele não olhou omeu projeto, ele fez outro projeto...” [risos]. É, a gente encontrasim, mas depende realmente do projetista, não são todos que têmesse problema. A gente já teve casos em que o engenheiro ligoupra gente e falou assim “olha, eu estava fazendo aqui a viga, masse eu fizer assim, não vai ficar melhor?”, então assim, é raroacontecer, mas existe, existe um pessoal que olha o projeto.

T – Não fica só na sua parte...

Be – Não, não. Isso vai muito também da coordenação, acoordenação tem essa função de realmente colocar todo mundo noseu cantinho. Se a coordenação consegue fazer isso, fica mais fácilpra gente, às vezes a gente tem que correr atrás. A gente nãotrabalha sozinho, não existe isso... [...] Aí então, existe essacomunicação sim, essa comunicação ela tem que ser muito rica,senão o projeto não sai. E isso tudo é transformado em desenho.Em detalhes, então secções, muitas vezes a gente tem que fazersecçõezinhas pra entender como é que vai ser feito... O pessoal dehidráulica e o pessoal de ar-condicionado, eles fazem secções...

Então assim, eu já vi..., não aqui dentro do escritório, mas emprojetos meus, é que você chega na obra, e o peão, ele não tem ohábito de abrir a folha. Porque o problema de você mostrar odesenho, é que você tem que dar muitas informações, e no dia-a-diado peão, aquilo lá ele já está cansado de ver, então pra ele, édaquele jeito. Mas, já aconteceu, do Itamar chegar aqui e falarassim, “o que aconteceu em tal projeto? Porque eu cheguei lá eestava feito assim...”, quando a gente pega o projeto não é aquiloque a gente tinha projetado... Então também vai do engenheiro, se o

130

Page 157: Tese Ta's - Capa

engenheiro olha mesmo o projeto, e ele atende o que a gente fez,saem menos erros. Mas muitas vezes acontece que eles vão poreles mesmos, porque como o desenho..., pra um desenho não ficarmuito poluído, às vezes, a gente tem que chamar o detalhe pra outrafolha, e na obra, ele está lá no 19º andar e não vai descer até nosubsolo pra pegar o detalhe, entendeu? Então eu acho que issoacontece muito também.

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

JL – Aí a gente vê isso, normalmente eu faço a marcação, porque eutenho muitos projetos...

T – Você que faz mesmo?

JL – ... não, o encarregado, aí depois que ele acaba a marcação,onde eu determino pra ele as espessuras de bloco, quando não vemespecificado em projeto... Então, por exemplo, tem muito projetopersonalizado, essa 2ª gaveta aqui é só de modificação. Eu entregoum projeto pra ele, ele vai lá, sobe, faz a marcação seguindo oconceito do apartamento padrão, para o apartamento modificado.Acabou de marcar o 1º andar, ou está prestes a acabar, eu subo,confiro e libero pra ele elevar a alvenaria.

Jorge, encarregado de alvenaria do Edifício Maison Alinne

T – Porque aqui cada andar é de um jeito, a alvenaria?

Jo – De um jeito... Tem muita modificação os apartamentos.

T – Aí isso já complica um pouquinho...?

Jo – Já complica um pouco, porque se fosse todos “padrão”, aí sim,porque era um só. Olhando o primeiro andar você estava vendopraticamente todos, mas tem deles que..., principalmente aqui, temmuita modificação. E essas modificações, sempre a gente..., cadaandar você tem que estar com um papel diferente. Um desenhodiferente. Aí acaba tendo mais coisa pra você estar vendo, e tirandoessas dúvidas.

Nessa situação, o processo de projeto acaba por se conformar àsdeterminações do processo de produção do canteiro, cada vezmais racionalizado e padronizado por procedimentos elaboradoscom apoio do conhecimento científico, a partir de uma avaliação daprodutividade alcançada pela “forma canteiro” de produção. Oprojeto, ao deixar menor espaço para a arquitetura autoral queencontra um valor simbólico específico, se reflete no desenho deobra através da ordenação de elementos pré-concebidos querespondem a uma composição entre o uso de componentes eelementos construtivos industrializados, o trabalho intensivo emcanteiro e prescrições cada vez mais limitadas de procedimentos,próprias dessa forma de produção em canteiro.

131

Page 158: Tese Ta's - Capa

Condomínio Parque do Sumaré

Nos processos de produção do projeto e da obra do CondomínioParque do Sumaré está clara a adoção de padronizações deprojeto, configuradas em tipologias de prédios e casas, e deracionalização do processo produtivo, tanto pela escolha dosistema construtivo, quanto pela adoção de um sistema dequalidade composto por procedimentos padronizados. A formaprodutiva distingue-se das demais situações quanto à divisão dotrabalho pela concentração dos processos e das decisões em umúnico agente. A construtora, que atua na produção de habitação“popular” em escala, controla desde a concepção doempreendimento até sua finalização, sendo relatadas inclusiveatividades de pós-obra junto às famílias futuras moradoras. Aempresa desenvolve a incorporação, elabora o material dedivulgação e os projetos, contratando os projetistas, engenheirose arquitetos, a equipe de obra, composta por engenheiroscoordenadores, residentes, mestres e até os ajudantes, todos,seus funcionários.

A forma de trabalho, sobretudo na relação entre projeto e obra, vemse constituindo ao longo de 30 anos de experiência na produção deconjuntos habitacionais, inserida nas políticas estatais de provisão.Atualmente, com a aquisição da Construtora A por umconglomerado empresarial privado, de capital aberto, seu produtopassou e a ser comercializado diretamente no mercado e visaatender à demanda habitacional na faixa de renda de 4 a 6 saláriosmínimos, pelo denominado “primeiro imóvel”. O Condomínio Parquedo Sumaré, que inicialmente seria realizado com verbas do PAR –Programa de Arrendamento Residencial, está sendo construído comfinanciamento privado, sem sofrer, contudo, grandes alterações emseu projeto. Para ser comercializado no mercado, a construtorainvestiu em material de divulgação para vendas e na inclusão deáreas de lazer internas ao condomínio, antes ausentes. Conta com480 apartamentos de 44 m2, distribuídos em 30 prédios de 4andares, localizados em um terreno afastado do centro de Sumaré,construídos em alvenaria estrutural, com lajes pré-moldadas deconcreto armado.

Internamente, a empresa apresenta clara divisão do trabalho, quesepara em departamentos os momentos de concepção e deexecução. A concepção do empreendimento se inicia na diretoriade Incorporação, da qual fazem parte os departamentos de novosnegócios, marketing e arquitetura, que localiza os terrenos e estudaa viabilidade do empreendimento, definindo a demanda a que sedestina e, assim, a tipologia a ser empregada e os complementos,ou “diferenciais”, de cada conjunto, como as áreas de lazer. Nessafase, há maior participação de arquitetos, que colaboram naimplantação da tipologia padrão no terreno e na configuração das

132

Page 159: Tese Ta's - Capa

áreas remanescentes, que receberão um projeto paisagístico e deáreas de lazer. Definido o “produto” que será comercializado, oempreendimento passa a ser desenvolvido pelo departamento deProjeto, parte da diretoria de Projeto e Obras, que irá elaborar osprojetos executivos tanto das edificações, a partir da tipologiadefinida, quanto da urbanização, que engloba a terraplenagem, ainfra-estrutura condominial, a pavimentação etc., ou seja, o que évariável entre os empreendimentos. A obra é iniciada com outraequipe, locada em canteiro, que não participa da elaboração dosprojetos, mas que contribui com sua experiência para oaperfeiçoamento do sistema construtivo utilizado pela empresa.Assim, apesar da separação dos departamentos de projeto e deobra, o fato da empresa englobar ambos possibilita que aexperiência prática em canteiro seja incorporada aos projetos e aosprocedimentos construtivos.

A adoção da alvenaria estrutural como sistema construtivo, para aprodução de habitação de interesse social, se relaciona nessasituação às possibilidades que esse sistema apresenta na reduçãodos custos de produção, devido a diversos fatores: simplificação datécnica construtiva, baseada no assentamento de blocos; facilidadede treinamento da mão-de-obra; menor diversidade de materiais ede mão-de-obra, pela eliminação das etapas de construção daestrutura em concreto armado, moldado in loco (confecção defôrmas em madeira por carpinteiros; corte, dobra e montagem dasferragens por armadores); facilidade de controle da qualidadeconstrutiva; facilidade de integração com outros sub-sistemas(instalações elétricas e hidráulicas, esquadrias etc.); facilidade deorganização do processo de produção; e possibilidade de diferentesníveis de mecanização36.

Essas possibilidades, no entanto, para que se efetivem em reduçãode custos, se relacionam principalmente a uma racionalização daprodução em obra, possibilitada, por um lado, pela padronizaçãodos projetos e sua repetição em escala e, por outro, pela adoção deprocedimentos em canteiro prescritos e controlados.

O sistema construtivo é passível de ser examinado, fragmentado ematividades simples, que não exigem a confecção de fôrmas e apresença de uma equipe numerosa de carpinteiros para a execução daestrutura, por exemplo, que vai sendo erguida em conjunto com aalvenaria. Essa pode ser feita pelos próprios pedreiros, cominstrumentos cada vez mais pensados para o aumento daprodutividade, que acabam por facilitar a execução, tais como oescantilhão, que marca o prumo da alvenaria a ser erguida em duasdireções e define o nível das fiadas, os gabaritos metálicos para vãosde portas e janelas, a paleta no lugar da colher de pedreiro. Aseconomias na produção se devem também a um cuidadoso estudo deprojeto, baseado na composição das paredes a partir da modulação dobloco a ser utilizado, o que evita o corte de blocos e seu desperdício.

133

36. Esses fatores são citadosem apostila do curso deGerenciamento de Obras, daUniversidade Federal da Bahia,ministrado pelo Prof. Luiz SérgioFranco (em<http://www.gerenciamento.ufba.br/Disciplinas_arquivos/MóduloIVTecnologia/ArquivosemPDFparaimpressão-AULA5-2004-AlvenariaEstrutural.pdf>,acessado em maio/09).

Page 160: Tese Ta's - Capa

Para o Condomínio Parque do Sumaré foi realizado um projeto dealvenaria estrutural específico, elaborado por consultoria externaespecializada em racionalização construtiva, a partir dacoordenação das dimensões dos diversos elementos construtivos eda verificação das interfaces entre os projetos executivos deestrutura, instalações e esquadrias. Nesse projeto acabam por sercompatibilizados os projetos setoriais, configurando uma etapaposterior à do executivo, como um projeto para a produção, queservirá mais diretamente à execução. O projeto das tipologias deprédios e casas é determinado então pela busca de maiorprodutividade em canteiro e os projetos parciais (arquitetura,estrutura, instalações) nessa situação, ficam submetidos,principalmente, à concepção estrutural que se relaciona àmodulação da alvenaria.

Além do projeto de alvenaria, também são contratados externamenteos projetos de fundação e de instalações elétricas, pelaespecificidade que cada obra exige. A produção de algunscomponentes também é realizada por equipes externas, como asvigas baldrame e as lajes, que foram pré-fabricadas, compondo maisum dos elementos no sentido da racionalização e da produtividadedo canteiro, e as fundações, por serem específicas a cada obra epor ocorrerem ocasionalmente nos diversos canteiros da empresa,não justificando sua incorporação à equipe permanente.

Quanto à padronização de procedimentos, a empresa opera sob asnormas de certificadoras do sistema de qualidade, ISO 9001(ABNT), PBPQ-H (CEF) e Qualihab (CDHU), registrando todos osprocedimentos que são especificados previamente, como forma decontrole e de organização internos. Os certificados representamtambém uma necessidade externa, pressuposto para participar definanciamentos da CEF e CDHU, por exemplo. O sistema dequalidade coloca todos os trabalhos, todas as equipes, desdeRecursos Humanos, passando por projeto e por obra, sob umamesma regra, um mesmo “procedimento”, pré-concebido, aos quaistodos devem se encaixar.

Cada empreendimento é composto então por projetos padrãopara tipologias de prédios e casas, projetos de implantação e deinfra-estrutura específicos, muitas vezes contratadosexternamente, de acordo com um “projeto do produto”, que defineas tipologias de acordo com a demanda, e as especificidades deimplantação. Os desenhos executivos não fogem do“convencional”, sendo parcelares, a não ser pelo projeto dealvenaria. São usados na obra croquis, em folhas A4, e cópias dosprojetos executivos “controlados”.

134

Page 161: Tese Ta's - Capa

Maurício, diretor de obras, e Elisa, responsável pelo sistema dequalidade, da construtora da obra Condomínio Parque doSumaré

T – Meu olhar é um pouco para entender as mudanças no projetomesmo e como que isso tem a ver ou não com a obra...

Mr – O que acontecia era o seguinte, antes da implantação dosistema de qualidade, isso começou a acontecer em 1998, aempresa tinha um procedimento operacional que acho que a maioriadas empresas têm ainda, cada obra tem a cara do engenheiro que atoca. Então, nós resolvemos por bem tentar mudar isso, de tal formaque cada obra tivesse a mesma cara, a cara da empresa, o mesmoperfil, o perfil da empresa. De tal forma que se você saísse de umaobra A e fosse para uma obra B, você sabia que era uma obra daConstrutora A e não sabia que era uma obra do engenheiro José oua outra do engenheiro João ou a outra do engenheiro Joaquim, eraassim antigamente. Então, nós resolvemos por bem entrar nosistema de gestão de qualidade e tirar a ISO 9001, mesmo antes daCEF começar, e da CDHU começar a exigir isso, a gente já estavainserido dentro do programa. Por quê? Porque nós queríamos umapadronização dos processos e dentre as padronizações deprocesso, estava embutido o projeto, porque a ISO 9001, elaengloba inclusive a parte de projeto. Então, por que era importantepra gente a parte de projeto também? Porque nós não tínhamosanteriormente aquele controle de manuseio de projeto. O projetovinha para a obra para ser executado, depois vinha uma outraversão alterada de projeto e às vezes acontecia de não seremsubstituídas as versões anteriores, então conflitos de execução quepoderiam ser observados depois de uma coisa já executada. Então,daí a gente resolveu em 1998 partir para um sistema depadronização, tanto que um dos itens da nossa política de qualidadeé a padronização dos procedimentos.

Então, quando um projeto é feito hoje, a obra não faz nenhumaalteração, nada, se não fizer uma consulta ao departamento deprojeto. Então a obra vem aqui para o departamento de qualidade,fala “ó, precisamos mudar, está dando um problema no projeto”, outem alguma alteração necessária que é normal na obra, na hora deadaptar o projeto à obra, tem que sofrer algumas alterações, àsvezes, isso volta para a área de projeto, o projeto faz a correção,recolhe as plantas antigas, as versões anteriores, cria uma novaversão e manda para a obra com o carimbo liberado para obra.Dessa forma, a gente garante que o projeto passou a ser executadode acordo com a última versão. É essa a relação que a gente temcom o departamento de projeto. Toda vez que a obra sente umproblema na execução de um determinado projeto, esse projeto édiscutido com o departamento de projeto, essa planta é discutidacom o departamento de projeto e retorna pro projeto para aseventuais alterações. Mesmo se a obra sugerir a alteração, ela nãopode fazer a alteração e implantar. Ela pode fazer a alteração,sugerir uma alteração em projeto, mas ela tem que mandar para odepartamento de projeto, lá eles atualizam a versão que estávalendo, dentro da área de projeto e dentro do nosso PQO, o nosso

135

Page 162: Tese Ta's - Capa

PQO é o Plano de Qualidade da Obra, é uma “bíblia” da obra, é o“retrato escrito” de como vai ser a obra.

T – Seria um memorial ou não?

Mr – Não, é um pacote...

E – É um conjunto de procedimentos...

Mr – ... É o pacote que tem desde a comunicação com o Ministériodo Trabalho, todos os memoriais, o cronograma de obra, todos osprocedimentos que vão ser executados na obra, o que deve se fazer,como fazer, os materiais que vão ser utilizados na obra. Então issofaz parte do PQO, a gente fala que o PQO é uma “bíblia” ou um“retrato escrito” do que é a obra.

_______

Mr – É específico por obra. Esse PQO é elaborado na fase inicial,anterior ao início da obra. Então, o engenheiro analisa os projetosantes de executar, de começar a obra, e preenche uma listagem que osistema da qualidade nosso tem, a Elisa manda pra ele uma listagemonde ali está explicitado tudo que ela precisa pra montar o PQO.

T – Você que monta Elisa?

E – Eu que monto e as obras seguem esse conjunto deprocedimentos, todos eles são padrão, todos os formulários quegiram em todos os departamentos da empresa, em todas as obras,são padrão da qualidade, ninguém faz um formulário separado,ninguém faz uma lista de qualquer coisa separada, tudo é formatadonum padrão e a gente segue esse padrão. Isso foi conquistado como passar dos anos, porque a gente foi padronizando, ainda tinhagente que fazia formulário separado...

T – Formulário de que?

E – Qualquer formulário...

T – De pedido de material?

E – De pedido de material, histórico de funcionário, lista depresença, recebimento de materiais, execução de serviços, a partede projeto tem um procedimento específico pra projeto. Entãotodos os formulários que são um check list de verificação deprojeto, análise crítica de projeto, a gente tem formuláriosespecíficos por departamento. Então, assim, foi montado umprocedimento específico pro departamento de projetos, então,antes do projeto vir para a obra, ele passa por uma análise, umcheck list que a gente chama, de vistoria do projeto que foielaborado internamente, se ele vier de fora é feita uma análisecrítica do projeto... Então, é feito todo um trabalho pelodepartamento de projetos antes de soltar para a obra.

A idéia de melhoria contínua, no sentido do aumento daprodutividade e da qualidade do produto oferecido se dá pela pré-fabricação de elementos construtivos, pela padronização deprocedimentos sugeridos pelo sistema de qualidade, como formade “industrialização possível”, que compõe uso intensivo detrabalho em canteiro com a pré-fabricação de elementos, como aslajes e as vigas baldrame.

136

Page 163: Tese Ta's - Capa

Maurício, diretor de obras da construtora da obra CondomínioParque do Sumaré

Mr – Nós estamos juntos desde 1976, então é um casamento que deucerto e nós estamos sempre procurando fazer padronização deprocedimentos e, principalmente, um procedimento de melhoriacontínua. Então, essa parte de melhoria contínua é importante pragente, porque nós conseguimos agilizar processos. Eu consegui, alémde agilizar processos, tem também o retorno financeiro. Porque no finala agilização do processo me traduz uma economia financeira. Pode aprincípio não ser mais barato no momento, mas o que eu ganho commão-de-obra, o que eu ganho com economia de material, de retrabalho,com o que eu ganho de desperdício, isso me traz retorno. Então, eutenho desde vigas baldrames pré-fabricadas, eu tenho lajes içadas, eunão uso quase madeira na obra, eu uso pouca [...]. Então, essesprocedimentos, esse processo de melhorias contínuas tem trazido esseresultado que a gente tem. Nós temos uma obra de 750 apartamentosque é executada em 12, 13 meses. Então, é um negócio muito rápido,flui muito rápido porque é bem industrializado o processo. Então, nóstemos alguns parceiros da área de projeto, por exemplo, o Luiz SérgioFranco, lá da Poli, ele é um parceiro nosso na área de projeto dealvenaria estrutural, ele já está bem afinado com nosso procedimentode trabalho, com o que a gente gosta. Então quando ele vai fazer umprojeto ele já foca o projeto dele num processo construtivo maisindustrializado porque ele sabe que é isso que a gente vai buscar.

T – É que ao mesmo tempo eu vejo que é industrializado, mas é umindustrializado possível...?

Mr – Não é o industrializado caro. Então, eu uso o industrializado ondeele é viável e uso a minha mão-de-obra para assentamento de bloconormal. Não faço parede em fôrmas, paredes de concreto armado, eunão faço, eu ainda acho que a alvenaria é economicamente maisviável e a mão-de-obra que a gente tem é uma mão-de-obra bemtreinada. Então meu produto é bom, com qualidade...

_______

Mr – A gente ganhou muito com a implantação [do sistema dequalidade]. Porque eu tenho uma padronização, todas as obras sãodo mesmo jeito. Um problema que a gente encontra hoje numa obra agente transmite para as outras obras, de tal forma que eles consigamevitar que essas outras obras tenham tantos problemas que jáaconteceram naquela. O que a gente chama de uma ação corretiva ouuma ação preventiva. Então, esses procedimentos só vieram a ajudar,só vieram a somar. Nós tivemos uma evolução, um salto muito grandede qualidade, em diminuição de re-trabalho, quando nós implantamoso sistema. A partir do instante que a gente começou a implantar essesistema, houve uma redução muito grande e isso foi muito importantepra gente porque nós conseguimos fixar nosso pessoal, tem genteque está com a gente há 10, 15 anos, funcionários nossos.

T – Conseguiu por que?

Mr – Porque é um processo fácil, eles são treinados, eles são bemtratados, eles podem ir no mercado buscar uma outra empresa, masdepois eles acabam voltando porque eles vêem que aqui funcionadentro de um sistema padronizado de gestão.

137

Page 164: Tese Ta's - Capa

T – Eu estou visitando outras obras também e vocês são uma daspoucas construtoras que contratam mão-de-obra diretamente. Nogeral, você tem uma construtora associada a uma incorporadora eeles contratam uma outra...

Mr – De terceirizado...

T – ... uma outra empreiteira só de mão-de-obra.

Mr – Não, a gente faz questão de ter um padrão próprio. Por que umpadrão próprio? Mesmo quando eu contrato uma empreiteira pra umserviço que eu não executo. Tipo um serviço de gesso, não justificater uma equipe de gesso, eu contrato uma empresa que mexe comgesso, eu registro esse pessoal dentro da empresa. Com isso, eugaranto os recolhimentos dos encargos desses funcionários, então,eu garanto o recolhimento do fundo de garantia dele, eu garanto opagamento de férias dele, que sou eu quem pago, eu garanto orecolhimento de INPS, do INSS dele. Então, eu tenho a via do GFIPdesses funcionários, que eu preciso, eu dou condições dealojamento e de alimentação pra eles, entende? Então, eu trato bemeles porque eles me dão retorno.

E – Diminui a rotatividade também.

Mr – Então, esse pessoal nosso, mesmo o pessoal do norte, opessoal de fora, é um pessoal que vai, visita sua família, fica lá 30,40 dias, 2 meses e depois ligam ansiosos pra voltar. E voltam, eficam alojados aqui, comem em refeitórios aqui, a comida nós quefazemos, nós não damos cesta básica, nós damos alimentação.Porque nós partimos do princípio de que se o cara dormir bem ecomer bem, ele produz bem. Você entende? Então a gente trabalhanesses aspectos.

E – Qualidade de vida...

O desenvolvimento dos projetos padrão se dá no sentido de umganho de escala, que possibilita a compra de materiais diretamentejunto aos fornecedores, eliminando intermediários no processo. Nessesentido, as “quebras” ou conformações espaciais diferenciadas nosprojetos, que são relacionadas à arquitetura, tornam-se inviáveis. Aarquitetura nesse processo participa mais da concepção do “produto”,relacionando-se à fase de incorporação do empreendimento.

Maurício, diretor de obras, e Elisa, responsável pelo sistema dequalidade, da construtora da obra Condomínio Parque do Sumaré

Mr – Nós fizemos, nós estamos ainda desenvolvendo 2 dos projetospadrão, nós já temos uma série de 8 projetos padrão. Então,dependendo da área, do local, da cidade, da demanda, da faixa derenda que se quer atender, nós temos um projeto já pré-definido. Porque dessa padronização? Porque eu tenho ganho de escala, eles jáestão treinados pra fazer aquilo daquele jeito, eu consigo fazer aquilomais rápido, com menos desperdício, eu consigo fazer aquilo melhor...

T – E também na obra seguinte você já corrige...

Mr – Os problemas que eventualmente possam ter acontecido nasobras anteriores, e isso já está sendo feito. A empresa já tem hoje 8projetos padrão. Então, a gente define o produto em funçãodaqueles 8: aqui cabe o tipo A...

138

Page 165: Tese Ta's - Capa

T – Mas esses projetos foram desenvolvidos internamente àempresa ou, por exemplo, contratou-se um escritório de projetos...

Mr – Não.

T – Isso é um processo também longo...?

Mr – Um processo evolutivo.

T – Ou é uma questão, por exemplo, “vamos desenvolver um projetopadrão”...

Mr – Não, a empresa já chegou a ter 50 tipos de unidades e daí nóscolocamos isso na mesa, sentamos todos, inclusive a equipe dearquitetos, hoje a empresa tem um departamento próprio deIncorporação, que é lá em Campinas, tem um departamento própriode Arquitetura, tem um departamento próprio de Marketing, tem umdepartamento próprio de Projeto e Obras e, inclusive, trabalhosocial.

T – Arquitetura e Projeto são diferentes?

Mr – É, são diferentes porque eu tenho o departamento deArquitetura que cuida da parte de arquitetura, paisagismo, e aconcepção do produto, em si. E aí isso vai pro executivo, odepartamento do projeto executivo é outro.

T – O departamento de Projeto cuida mais do executivo, instalações,engenharia, terraplenagem...

Mr – Exatamente, estão sempre afinados, têm sempre reuniões decompatibilização. Mas a arquitetura cria, dá o aspecto urbanístico doempreendimento, paisagístico. E isso vai para a parte técnica fazeros projetos...

T – A arquitetura acaba participando mais do início do processo deprojeto, quer dizer, implantação...?

E – Eles participam do produto, eles escolhem o produto, eles quedão a definição do produto.

Mr – Eles que dão a definição do produto, que é feita em cima depesquisa de mercado, é feita em cima do estudo do pessoal daincorporação, que é nosso também e define: “ó, aqui tem que serum produto na faixa de tanto, com essa característica”. E dentrodaqueles projetos padrão que nós estamos fechando, eles escolheme definem um produto. Aí entra a parte de arquitetura, de fazer aurbanização da área... Aí depois, vai para a parte de projeto.

T – Seria a parte de implantação, paisagismo...

Mr – Implantação, paisagismo, se vai ter espaços de lazer grandes,se vai ter espaços menores, quantos tipos de lazer vai ter lá dentrodo empreendimento... Eles que definem, de acordo com a pesquisaque eles têm e de acordo com o perfil que eles querem atingir.

_______

T – E na construção das tipologias teve participação do pessoal deobra?

Mr – Tem. Foi uma mesa redonda, em que participaram o pessoal daincorporação, o pessoal da arquitetura, o pessoal do projeto técnicoexecutivo e o pessoal de obras, pra discutir o que era possível, oque não era possível, ou quais eram os processos, as unidades mais

139

Page 166: Tese Ta's - Capa

fáceis de se executar ou mais difíceis de serem executadas. Porexemplo, tinha sido definido um tipo de padrão habitacional que eramuito difícil de executar, muita quebra e tal, era um procedimentomais difícil. Então, como troca, numa mesa, numa discussão, aquelepadrão foi readaptado pra uma forma em que ele ficasse mais fácilde ser executado. Isso traz um ganho no final.

T – Então, pode-se dizer que essa tipologia que, por exemplo, estásendo implantada aqui, a forma dela tem mais a ver com osaspectos construtivos e do marketing, quer dizer, da avaliação dedemanda, do que aspectos, por exemplo, da arquitetura mesmo,como qualidade espacial...?

Mr – Não, tem mais do que você pretende implantar e a faixa que vocêpretende atingir. Você sabe que quanto mais você produzir o produto,isso agrega preço. Se você começar a fazer muita quebra, muitadeflexão em paredes, em estruturas, isso começa a agregar valor, e issopode alterar a faixa que você pretende atingir. Então, você tem que fazeruma análise de forma que você consiga fazer um bom produto, dentrode uma faixa de preço que vá atingir aquele mercado que você pretende.

Na execução da obra, o engenheiro residente é peça chave: definea gestão do canteiro, dentro dos limites do sistema de qualidade,inclusive participando das decisões sobre as técnicas construtivasque serão empregadas. A evolução do sistema construtivo adotadopela empresa conta com certa “liberdade” dos engenheiros de obraque, em conjunto com os demais trabalhadores, realizamexperiências concretas e põem à prova novas soluções, que semostram viáveis ou não, na relação entre produtividade e custo, oque foi indicado como “ganhar uma certa dinâmica” em obra. Aelaboração de novas soluções se dá também a partir da obra, daprática, e o processo de industrialização leva em conta a“viabilidade do processo” que é composta pela “disponibilidade”dos trabalhadores em aderirem às novas técnicas e pelo seu custo.

Matheus, coordenador de obra da construtora do CondomínioParque do Sumaré

T – Você estava comentando que você acha que o canteiro evoluiu,a obra evoluiu muito mais nesses tempos do que o projeto, apesardo projeto ter técnicas, tecnologias... você estava falando detecnologias de desenho mesmo?

Ma – Isso, sem dúvida, exatamente...

T – Fala um pouco mais disso, como foi essa evolução do canteiromesmo, a gente vê que tem as lajes pré-fabricadas, as vigasbaldrame, tem soluções aqui no canteiro, que tem umaracionalização da obra e tal, como que aconteceu isso?

Ma – É assim, de uma maneira geral, o pessoal de obra sempretem..., isso é do sangue, vamos dizer assim, sempre procura umasolução prática pra construir as coisas. Então, sempre que ele pegaum projeto, ele estuda como que ele vai fazer e, às vezes, se temalguma opção boa, ele faz. Então, por exemplo, essa laje fabricadano local, isso daí não é uma tecnologia da Construtora A, isso é umacoisa que já vem faz muito tempo, então alguma construtoradesenvolveu isso daí e deu certo, e vamos tocar...

140

Page 167: Tese Ta's - Capa

T – Você sabe a partir de quando mais ou menos vocês começarama usar?

Ma – Não, eu não tenho idéia... Isso aí deve ter uns... Acho que tem20 anos. Assim, específico pra prédio. Até então o pessoal faziamesmo moldado in loco, e tal, porque a regra, tudo que manda vocêprocurar novas tecnologias é o dinheiro. Então, o que acontece,esse sistema, se você for comparar com o sistema pensado, ele émais caro...

T – Com o sistema qual?

Ma – Com o sistema pensado, que seria uma laje moldada in loco,aquele monte de madeira, de pontalete, tal... Ele é mais caro, essesistema, porque se você computar aí guincho mais não sei o quê,ele se torna um pouco mais caro. Só que ele cria, ele dá umadinâmica na obra muito grande, e essa dinâmica você não conseguemedir, você consegue apurar alguma coisa, sei lá, 30% do quedeveria apurar, então você não consegue, você só percebe nadinâmica da obra...

T – Não dá pra pôr na “ponta do lápis”...

Ma – É, ele acaba sendo interessante. Eu tive uma experiênciadessas, por exemplo, na obra do Da Mata, a minha obra foi muitorápida, muito rápida... Por quê? O fator principal foi exatamente essalaje, ela criava uma dinâmica muito grande na obra. Masfinanceiramente, comparando assim...

Bi – Isoladamente...

Ma – ... sem esse lado indireto, ela é mais cara do que a outra, masela trouxe essas vantagens. Porque tem esse pessoal que defendemuito a teoria do pré-moldado, que “o pré-moldado tal, tal, tal”... Jápra construção de casas, eu conheço vários sistemas pré-moldados, mas que não chegam a ganhar do pedreirinho com acolher... pra casa.

T – Você diz pra vedação, pra alvenaria?

Ma – Isso, exatamente. Inclusive eu estive na feira do Concreshow elá tinha uns 4 ou 5 processos de pré-moldados. Mas a fôrma é cara,a mão-de-obra tem que ser uma mão-de-obra especializada e vocênão encontra. Lá é tudo bonitinho, mas na hora de executar, vocêvai ver que o pedreirinho lá mesmo, com a colher, tem a mesmavantagem. Agora, pra esse tipo de construção já é diferente, vocêprecisa da tecnologia pra poder criar uma dinâmica, então vocêganha tempo. Cada laje dessa aí, se você for moldar in loco, vocêvai demorar no mínimo uma semana de tempo de cura, e pelomenos mais uma semana pra armar, concretar, a fôrma etc.

_______

T – Mas em geral isso vem da obra mesmo? Quer dizer, osengenheiros que estão na obra vão descobrindo isso e vãoaplicando e isso chega a ir pro pessoal de projeto...?

Ma – Isso vem da obra, exatamente. Você procura uma alternativa...Aí você manda pro projeto, fala “pô, vamos projetar...”. Hoje, porexemplo, na empresa, todos os projetos de casa são feitos comradier. Mas, por exemplo, já os projetos de prédio, o calculista, ele tedá as duas opções...

141

Page 168: Tese Ta's - Capa

T – Da laje?

Ma – Da laje, a moldada in loco ou a moldada no chão.

T – Aí é opção do engenheiro?

Ma – A opção é nossa. Então a gente contribui muito com o pessoal,por exemplo, eles ligam direto pra gente, querendo saber detalhes. Eexiste dentro do programa do ISO 9000 a análise crítica de projeto.

T – Quem faz a análise crítica?

Ma – É o pessoal de projeto.

T – E o pessoal da obra não participa?

Ma – Talvez o pessoal da obra é que deveria fazer...

Tatiana, engenheira de obra do Condomínio Parque do Sumaré

T – E dentro dessas incompatibilidades, desses problemas que vocêsvão encontrando, tem casos, tem níveis, por exemplo, do que se resolveaqui na hora mesmo e tudo bem, fica uma coisa simples, corriqueira, atéum que você precisa consultar realmente o pessoal de projeto?

Tt – Existe, por exemplo, ali tem um projeto de salão de festas e nãotem tubulação de gás, que é necessária, liguei para Barretos só prainformar que não existia tubulação de gás e eles falaram “olha, nãoprecisa fazer”. Então, não foi essa a decisão que eu tomei, não énada, eles falaram que não precisava, mas é necessário, uma horavai ter que ter, não pode ficar botijão lá dentro, vai ter que quebrar...,então essas coisas eu faço. Agora, por exemplo, nós mexemos nainstalação hidráulica, aí sim, eu passo pra eles, dou meu projeto,meu croqui, do que eu estou pensando em fazer, e daí eles aprovamou não. Algum serviço, a esquadria também, a esquadria a genteteve a visita do fornecedor e eles têm outro sistema de instalação deesquadrias e assim fica mais barato, coisa de 30%, só que aí mudao vão, então isso tem que passar pra eles. Se eu estou mexendomuito no meu projeto, aí eu passo.

_______

Bi – No caso de uma alteração maior, vocês fazem um pedido jásugerindo uma alternativa também para eles aprovarem, como que é?

Tt – Na maioria das vezes, sabe aquele projeto que estava todorabiscado na parte das lajes? Então, aquilo lá foi uma sugestão, temum engenheiro elétrico aqui, eu fiz uma conversa rápida com ele,uma proposta, passamos para ele e ele aprovou. É muito difícil agente ligar e pedir uma solução, muito difícil.

_______

T – Essa parte da evolução do sistema construtivo, pela conversacom Maurício eu não consegui contar muito passo a passo, masparece que é uma coisa que a empresa procura mesmo, irevoluindo... A empresa incentiva isso?

Tt – Ela dá essa liberdade pra gente, para os engenheiros. Por exemplo,estou indo atrás agora, estive a semana passada agora, fazendo umavisita num lugar em Limeira que faz reciclagem de concreto. A gentenunca fez, vamos ver se vale a pena, vou levantar o custo, ver se éviável ou se não é. Porque reciclagem é uma coisa muito cara, então, agente procura viabilizar N coisas, eles dão essa liberdade. Parte do

142

Page 169: Tese Ta's - Capa

tempo que eu tenho aqui dentro também é pra ver isso, é pra ir atrás deum equipamento melhor, se não está funcionando...

T – E, nesse sentido, as várias obras...

Tt – A gente se conversa bastante, muito, a gente troca bastanteinformação. Essa história do caixilho foi feito o teste aqui, mas vaiser aplicado em outras 3 obras.

As adaptações aos projetos padrão acontecem de acordo com asmodificações no terreno, no solo, que se relacionam à variabilidadeda “forma canteiro”. E, nesse sentido, o processo de projeto secomplica justamente no momento da implantação e das definiçõesreferentes à urbanização dos terrenos, em que padronizações nãosão possíveis, e são percebidos como problema pela equipe de obra.

Maurício, diretor de obras, e Elisa, responsável pelo sistema dequalidade, da construtora da obra Condomínio Parque do Sumaré

T – Mesmo com essa padronização toda, eu imagino que aindatenham incompatibilidades, como você comentou em relação aprojeto e a obra...

Mr – Eu sempre defino o seguinte, cada obra é uma indústriadiferente. É diferente você ter uma indústria de produzir automóvel,de produzir peça, que todo dia você está fazendo a mesma coisa.Cada obra é uma indústria diferente, porque tem uma topografiadiferente, tem um subsolo diferente, tem uma conformaçãotopográfica, uma forma geográfica e geométrica diferente, então,cada obra é uma indústria diferente. Então, as padronizações àsvezes têm que sofrer alter..., adaptações, não seriam alterações,adaptações. Então, às vezes, nós temos que fazer adaptações e osistema permite, o nosso sistema de gestão permite.

E – Desde que seja tudo registrado, ele permite ter particularidades,as exceções.

Mr – Mas tudo isso na fase de concepções, quando se estáconcebendo o produto. Depois dele fechado, formatado, aí a genteadmite que não se pode alterar mais, só pequenas alterações praexecução de obra.

Matheus, coordenador de obra da construtora do CondomínioParque do Sumaré

T – Mas a sua experiência é mais na área de projeto, de obra?Canteiro mesmo?

Ma – Não, construção, construção. Eu era muito consultado praprojeto, o pessoal de Barretos me consulta muito... Infelizmentedepois que já aconteceu o problema. Porque a gente apanha muito.Existe um conflito muito grande com relação ao projeto. Aconstrução, ela evoluiu muito mais do que o projeto, e é uma coisaengraçada, porque o projeto está intimamente ligado com atecnologia, hoje você tem mil recursos.

_______

T – Mas, pelo que você foi falando, me deu a impressão que essesproblemas que não são resolvidos em projeto com a antecedência

143

Page 170: Tese Ta's - Capa

necessária, são mais o que está fora do padrão, então, por exemplo,os prédios que já tem...

Ma – Então, não existe o “fora do padrão”, existe assim, por issoque eu quero dizer, fora do padrão seria uma coisa diferenciada, praquem está projetando...

T – Acho que eu não me expliquei bem, porque o que eu entendi é quea empresa trabalha com algumas tipologias, de prédios e de casas, e aío que vai mudando de um empreendimento pro outro é a implantação,e aí nessa implantação..., fora do padrão eu quis dizer isso...

Ma – Isso, exatamente. O prédio em si, a tipologia, a casa, isso aínão tem problema, o apartamento, se o prédio é em H, isso aí nãotem problema. Mais o geralzão, o geralzão...

T – Infra-estrutura...

Ma – Toda a parte de infra-estrutura, essas coisas que não sedecidem antes. Então, por exemplo, tem muito isso daí, a gente quasenão tem área pra fazer canteiro de obra. Porque faltou uma áreainstitucional próxima, alguma coisa assim, pensando nisso daí... Entãoeu associo assim, eu acho que o projeto tem que estar intimamenteligado a um planejamento. Então quando ele vem pra obra, ele já vemsolução, ele já te dá o que você tem que fazer, e é tudo pensado.

A relação entre as equipes de projeto e de obra acontece mais no casode modificações significativas nos projetos, por uma necessidade deexecução, percebida pela equipe de obra que já sugere uma soluçãoque deve ser aprovada pela equipe de projeto executivo.

Tatiana, engenheira de obra do Condomínio Parque do Sumaré

T – E o pessoal que fez o projeto vem no canteiro, participa dealguma forma da obra, tem alguma relação, como que é?

Tt – Quando tem algum problema vem sim, muitas vezes a gentetenta resolver por telefone porque eles ficam em Barretos. Muitacoisa, a gente tenta aplicar o projeto, não consegue, faz um as built,manda para Barretos aprovar e aí já responde por projeto.

T – Chega a voltar pro arquiteto que participou do projeto?

Tt – Volta pra eles, eles que fizeram a execução do projeto, eles quetêm que aprovar.

T – Porque eu entendi que a arquitetura participava mais daconcepção do produto, do paisagismo..., depois a parte deexecutivo mesmo era mais a engenharia...

Tt – Em Campinas fica mais essa parte de arquitetura e implantação,a “perfumaria” do empreendimento, e depois passa pra Barretos aparte de estruturas e instalações.

T – E daí tem arquitetos trabalhando nisso também?

Tt – Tem projetistas, arquitetos, engenheiros, mas a parte dearquitetura a gente acaba não mexendo muita coisa não, é mais aparte de execução da estrutura...

T – E o que dá mais dúvida, problema?

Tt – Às vezes assim, ficam alguns detalhes mínimos que envolvemmuitos projetos, por exemplo, de um pro outro você se esquece de

144

Page 171: Tese Ta's - Capa

alguma coisinha que não se encaixa no outro. Instalação eu tivevários problemas, porque uma coisa é você desenhar a instalaçãoretinha e aí você acaba encontrando na obra um bloco de fundação,e você tem que sair desviando... Isso às vezes passacorriqueiramente. Instalação elétrica também...

T – O que eu vi aqui em baixo da outra vez, que a gente conversoucom o Tonico e ele estava com outro encarregado, eles estavammontando a alvenaria do primeiro prédio, acho que estavam umpouco testando até o projeto, daí eu vi uma planta da alvenaria só...

Tt – As paredes.

T – Das paredes já com todas as instalações, e tal, e mesmo assimteve problema?

Tt – Às vezes não dá certo.

T – Eu lembro que ele estava mudando um bloco lá porque não iadar certo...

Tt – Sempre encontra, no papel é muito fácil, esquece...

_______

Bi – E você teve alguma participação com a equipe de projeto daempresa?

Tt – A gente dá uma analisada nos projetos, o que consegue vertambém, algumas coisas de experiência nossa a gente lembra de prestarmais atenção. A gente confia muito no profissional, o projeto já passoupor uma análise crítica, está na obra para execução, deveria estar 100%.

T – Análise crítica seria como?

Tt – São feitos os projetos e eles fazem uma análise crítica lá emBarretos, entre eles, na parte de projetos, uma reunião, pra ver senão pulou, não passou nada. Unem todos os projetos pra ver,deveria ali peneirar tudo e vir pra obra só pra execução mesmo...

Bi – Os responsáveis por essa análise crítica já trabalharam em obracomo você?

Tt – Não sei.

T – É uma etapa dentro do sistema de qualidade?

Tt – É.

T – E você acha que daria pra melhorar, mudar alguma coisa nessarelação do projeto com a obra?

Tt – O que a gente faz é assim, eles dão essa liberdade pra gente, aempresa entende que nos projetos existem problemas, então elesdão essa liberdade da gente sugerir também, é bem aberto, nadaamarrado. Então, acontece alguma coisa, o tubo não passa ali,então a gente tenta fazer isso aqui, vê se eles aprovam, vê se dácerto. É bem flexível, não é uma coisa amarrada. Mas eles são bemflexíveis, escutam muito o que a gente tem pra falar. E talvez, teruma pessoa com uma visão melhor de obra, para o projeto vir commais detalhes construtivos, a parte de cobertura ter mais detalhes, aparte de rufos, a parte de instalações, pensar mais nessasdificuldades... A partir do momento em que eles deixam essa brechade conversar, interagir e modificar, eu já acho muito importante. Temlugar que é aquilo, acabou e se vira, não tem muita flexibilidade.

145

Page 172: Tese Ta's - Capa

Na percepção do coordenador de obra, a adoção do sistema dequalidade contribuiu para a diminuição do desperdício em canteiro epara maior controle sobre a qualidade dos materiais, mas nãorepercutiu no modo de trabalhar em si, tentando integrar as etapasde projeto e obra, sendo mais significativo ao acrescentarprocedimentos de registro e de controle.

Matheus, coordenador de obra da construtora do CondomínioParque do Sumaré

T – E essa parte da qualidade mudou muito o canteiro, o trabalho...o dia-a-dia mesmo?

Ma – Eles deram muito destaque, por exemplo, na parte deargamassa, toda essa parte que envolve betoneira, traços, essascoisas, a parte de bloco, a gente procura comprar um material... Euacho que a grande sacada do ISO 9000 foi que a gente passa adirecionar as compras pra empresas que tem ISO 9000, com issovocê tem uma qualidade de material melhor...

Bi – Desperdício menor também...?

Ma – Exatamente... Mas assim, “ah, mudou a forma de trabalhar?”,não sei se mudou muito não. Eu acho que continua do mesmo jeito,a única diferença é que antigamente não tinha registro, mesmoporque se você pegar, por exemplo, uma ficha, uma especificaçãode execução de um serviço, por exemplo, você vai ver que é umareceitinha que nós mesmos elaboramos, “como faz uma alvenaria?”.Eu fiquei um ano fazendo isso na empresa...

T – Elaborando esses...

Ma – Alguns procedimentos eu criei e outros procedimentos eu deiuma filtrada naquilo e adaptei pro nosso sistema de trabalho.Então o que está ali é um dia-a-dia que já tem há muito tempo, aúnica diferença é que nós não registrávamos, agora a gente temum registro...

T – E esse registro serve pra quê? Como que é usado depois?

Ma – O registro... ele não é objetivo. O sistema é uma obrigação, sevocê não tiver, você não trabalha. A Caixa não aceita, nada disso,então hoje você tem que ter...

Na visão da engenheira residente da obra, apesar daracionalização do projeto e dos procedimentos construtivos, aindahaveria maior necessidade de detalhamentos dos projetos, queacabam sendo resolvidos em canteiro. Nesse sentido, o desenhode obra acaba sendo composto pelos projetos executivos,utilizados pela engenheira e pelo mestre, principalmente, para aquantificação de materiais e a marcação da obra, e por soluçõesque não estão presentes nos desenhos, em detalhes, mas sãoadotadas durante a execução. Para o trabalho em campo, sãoproduzidos “croquis controlados” a partir dos desenhosexecutivos, conforme a etapa de execução, distribuídas entremestre e encarregados.

146

Page 173: Tese Ta's - Capa

Tatiana, engenheira de obra do Condomínio Parque do Sumaré

T – Os desenhos mesmo, os projetos, você quase não usa no seudia a dia?

Tt – Projeto? Uso o dia inteiro. Dentro do nosso escritório a gente temos originais e as cópias controladas, e dentro da obra a gente lança oscroquis controlados, por exemplo, equipe de alvenaria, eu entrego paraele uma cópia de cada alvenaria controlada para eles executarem.

T – O que é o croqui?

Tt – A gente manda imprimir, por exemplo, o desenho menorzinho,em A4, alguns projetos para eles seguirem. Esse aqui é das lajes, eumando imprimir em A4 para saber onde está L1, L2, L2D, para terdentro da obra. Porque lá a gente usa croqui, quando precisa elespedem pra gente, a gente entrega outro. Agora esse aqui a genterecebe uma via, se for pôr na obra vai uma cópia por semana.

T – Mas você usa mais pra essa parte de quantificação?

Tt – Eu uso mais pra quantificação, alguma dúvida, às vezes umainformação que não casa, daí eu vou conferir na obra pra ver se éaquilo mesmo.

T – E quais projetos usam mais?

Tt – Hoje, no momento é o da alvenaria, bastante.

T – Por causa da etapa da obra?

Tt – É o que mais a gente usa, os que tem revestimento a gente nãousa muito, arquitetura, por exemplo... Instalação você começa a usarno início da montagem do kit, depois vira corriqueiro. Você não usamais mesmo alvenaria, porque todo dia tem uma marcação nova,tem uma equipe subindo, daí você tem que colocar ferro para fazeras amarrações das alvenarias...

T – Mesmo sendo uma tipologia só?

Tt – São várias equipes de alvenaria. Cada uma tem um croqui e ficacom aquilo e toda vez que vai fazer marcação é conferido. E cadafiada você tem que conferir os vãos, se está no esquadro, e ali nahora você tem que estar com o projeto conferindo.

_______

T – Falando mais da representação gráfica mesmo, você acha queestá adequado, o desenho está legível, está fácil de entender oupodia melhorar?

Tt – Eu acho que precisa de mais detalhes, o que é apresentado élegível, não tem nada. Mas é mais fraco em detalhes, tem algunsdetalhes que são necessários na obra e eu sinto um pouco falta disso.

Bi – Por exemplo?

Tt – A cobertura, tem N coisas na cobertura, você tem que mostrardetalhes das tesouras, telhas, caimento, os vãos, se vai ter forrinho, se vaiter tabeira, quando eu tenho a platibanda e a cobertura está embutida,todos os detalhes de rufo, calha, dos condutores, que tipo de solda queeu uso, se eu uso solda, se eu faço a emenda, se coloco silicone nascalhas, isso tinha que vir mais detalhado, isso a gente não tem.

T – Acaba resolvendo por conta, na obra?

Tt – Eu pego mais ou menos como foi feito na outra obra e tentoaperfeiçoar, então isso tinha que ser bem mais detalhado.

147

Page 174: Tese Ta's - Capa

De um lado, a racionalização do projeto, do processo de projeto,pela adoção de tipologias e procedimentos construtivospadronizados e, de outro, a construção a partir do elemento maisbásico, o bloco, que é modulado e paginado, são estudadas asformas de composição que criam a melhor relação de custo porárea construída, e se baseiam na construção através do trabalhointensivo de pedreiros e ajudantes. Na visão dos pedreirosentrevistados, a adoção de instrumentos de trabalho auxiliares naexecução da alvenaria, como o escantilhão, e o uso de máquinassão percebidos positivamente. Além de aliviar o esforço físico detrabalho, possibilitam maior velocidade de produção, o que influidiretamente em seus salários. O “engajamento”, o“comprometimento” deles com a produtividade em canteiro sãoconquistados pelo fato de que são pagos por quanto produzem,forma de pagamento adotada comumente.

José Galileu e Abrahão, pedreiros da obra do CondomínioParque do Sumaré

JG – A tecnologia é bem mais fácil agora, tem esses guindastes,munck, betoneira..., já põe tudo lá onde você está e aí o serviço dámais progressão, você trabalha com mais facilidade, você nãoprecisa estar se esforçando muito. Porque de primeiro a gente sematava demais, agora não, agora com essas tecnologiasaparecendo, pra nós fica bem melhor, a gente adianta mais.

_______

Bi – Mas vocês acham que das primeiras obras que vocês fizeram,essas máquinas todas ajudam muito, como você estava falando?

JG – Ajuda, ajuda.

Bi – E mudou muito de uns tempos pra cá, como você vê?

JG – Mudou, mudou. Porque antigamente você sofria demais, tinhaque estar puxando na corda, agora não, e leva até ali para o andaronde você está. Antigamente não, você puxava de pouquinho nacorda, sofria mais, agora com essas máquinas aí, guincho, essascoisas, ficou muito mais fácil, anda mais rápido. E antigamente vocêtinha que puxar de pouquinho e aquilo ali matava muito a gente.

148

Figura 23Condomínio Parque doSumaré - Projeto de alvenariae construção dos prédios comuso de escantilhões e degabaritos dos vãos de janela(fotos da autora, nov/2008)

Page 175: Tese Ta's - Capa

Ab – E a dormida também era muito ruim.

JG – A dormida era muito ruim, os alojamentos em geral. Hoje não,hoje está melhor...

Ab – Só dormem 6 pessoas no alojamento, é bem cuidado, é bom.

_______

Bi – E já tinha esse esquema do gabarito da cantoneira antes? Nosoutros que vocês fizeram, para alvenaria?

JG – O escantilhão? Não, esse aqui é o primeiro. E é bem maisprático, é bem melhor, é muito bom.

Bi – É, ajuda mesmo?

Ab – Ajuda, ajuda muito, e esses negócios de botar na janela, sabe?

JG – Aquela outra esquadrilhazinha de ferro.

Ab – O cabra não usa prumo, nada, só...

JG – Já está tudo aprumado, está tudo no esquadro direitinho.

Ab – Quando chega na altura dela...

T – Aí você faz a parede em volta?

Ab – Isso, faz a parede em volta, bota a canaleta e enche deconcreto.

Bi – E isso aqui é a primeira vez que vocês usam?

Ab – É a primeira vez que está usando.

JG – É bem mais prático, anda mais rápido.

Apesar de toda a racionalização do processo produtivo, que parte doestudo e da observação do trabalho em canteiro, na construção emalvenaria, que acabam por determinar os projetos das edificações,conformando tipologias que são repetidas, algumas incompatibilidadesentre os projetos ainda se mantém. Além disso, aquilo que é próprio acada empreendimento, sua implantação, sua infra-estrutura, suasfundações, que variam de acordo com condições naturais do terreno ecom a legislação urbanística, não é padronizável em termos de desenho,o que leva a empresa a adotar soluções específicas para cada obra eonde se encontram também as maiores dificuldades de realização. Osistema de qualidade não altera substancialmente as formas detrabalhar, no sentido de um aumento da produtividade, mas sim de seucontrole, por meio de registro das atividades e da diminuição indiretados custos, pela melhora na qualidade dos materiais e pela diminuiçãodo desperdício. A aplicação de procedimentos racionalizados em obrapela empresa, que pode ser considerada de nível avançado, não éacompanhada de uma inovação em projeto, seja pela configuraçãoespacial proposta, seja pela forma de sua produção. Por outro lado, osdesenhos de obra são apresentados na forma de croquis, “controlados”,reproduções dos projetos executivos em folhas A4, menores, e maisespecíficas para cada atividade em canteiro, que são passadas aosencarregados e ao mestre. Nessa situação, o desenho se aproxima maisao campo da engenharia e acaba por ser determinado pela forma deprodução em canteiro. A padronização do projeto é uma padronizaçãode desenho, feita fora do canteiro, pelo conhecimento científico, a partirda observação da produção e da busca por aumento de produtividade.

149

Page 176: Tese Ta's - Capa

3.3Segunda aproximação: tradução do projeto à obra – divisão e reunião dotrabalho pelo uso do desenho no canteiro

Na tradução do projeto à obra, o uso do desenho de obra édeterminado pela divisão do trabalho em canteiro e pelaorganização hierárquica entre os postos de trabalho. Essa hierarquiase relaciona à formação que cada posto exige, às atribuições decada um na realização da obra, que nem sempre se refletem nodomínio sobre a linguagem do desenho técnico.

O processo de produção de arquitetura se constitui atualmente apartir de uma primeira divisão do trabalho: entre quem concebe equem executa, entre processos de produção do projeto e daobra, divisão essa determinante de todas as etapas de suarealização. Uma segunda divisão do trabalho pode serrelacionada à fragmentação na produção dos projetos, pelasdiversas especialidades técnicas e pelo parcelamento doconhecimento teórico e prático, que se apresenta em canteiroatravés de documentos específicos com linguagens gráficaspróprias a cada especialidade. A própria forma de representaçãodos projetos também fragmenta o objeto de arquitetura emplantas, cortes, elevações e detalhes executivos, através deconstruções geométricas bidimensionais, de caráter abstrato.Pelo lado da obra, o conjunto de informações parcelares chegaao canteiro e também é recebido e entendido de diferentesformas por cada trabalhador, de acordo com seu posto e suaatribuição funcional, ou seja, conforme a divisão do trabalho emcanteiro, que fragmenta então ainda mais o processo deprodução de arquitetura.

No entanto, o processo de construção deve reunir, na realidade daobra, todas essas informações e situações parcelares,tradicionalmente fragmentadas. Cada posto de trabalho contribui dedeterminado modo para isso; as atividades do engenheiro, dosmestres e encarregados se liga mais diretamente ao uso dosdesenhos na coordenação das várias atividades, lidam com maiorquantidade de informações, cotejando os projetos, estudando-os,mas, também, os demais trabalhadores, de uma forma ou de outra,se apropriam de suas especificações gráficas, reunindo na obra oque a forma de representação do projeto separa.

Nas situações pesquisadas, de modo geral, os desenhos erammanipulados principalmente pelos engenheiros de obra, pelosmestres e encarregados, e de maneiras distintas. O engenheiro deobra tem acesso a todos os projetos executivos, enquanto aomestre e ao encarregado são passadas as plantas das etapas em

150

Page 177: Tese Ta's - Capa

execução. Apesar de o desenho orientar o trabalho como um todo,sua linguagem e seus códigos não são apreendidos e acessadospor todos da mesma maneira. A hierarquia entre os postos detrabalho se reflete na maneira dos trabalhadores lidarem com osprojetos, não apenas pelo domínio ou não da linguagem dodesenho, que em geral é compreendida, mas principalmente poratribuições e responsabilidades que cada um assume. Há tambémoutras formas de comunicação e “desenho” durante o trabalho emcanteiro, que não as ensinadas e praticadas pelos desenhistastécnicos. Cabe ao mestre e aos encarregados da obra,supervisionados pelo engenheiro residente, traduzir o conteúdo dodesenho ao objeto construído, ao campo, e inclusive a orientaçãosobre os procedimentos de execução, a ordem das tarefas e amaneira de realizá-las, que não estão representadas nas pranchasdos projetos executivos.

As diferentes maneiras de lidar com os desenhos executivosparecem ser reflexo de um conhecimento específico, de acordocom cada posto de trabalho, que se desenvolve na práticacotidiana de cada trabalhador e na experiência vivida, em que ocanteiro é também local de formação. Mesmo para osengenheiros de obra, que cursaram engenharia civil, a formaçãopara o trabalho de gerenciamento e de supervisão da obra sãoaprendidas na prática. No encontro dessas diversas capacidadese atribuições, parece haver uma troca de conhecimentos para arealização da obra, da qual o desenho é um dos suportes, ouuma das formas. O desenho de obra, como uma das formas derepresentação do projeto, condensa um determinadoconhecimento, mas não encerra em si todas as condições paraque a obra se realize.

Por outro lado, são adotados pelos mestres procedimentos paraa “marcação” da obra que remetem ao seu conhecimentoempírico da construção, ao saber fazer. Com pequenas variaçõesentre eles, a “marcação” é momento fundamental da transposiçãodo desenho à obra. A primeira fiada da alvenaria, por exemplo, oua quarta ou quinta, a das janelas, são momentos em que odesenho e, mais especificamente, as medidas que contém sãochamados. Os instrumentos básicos que utilizam são a linha, oprumo e a trena. Como um desenho na escala real. Algunsrelataram também a presença de topógrafos para a marcação,principalmente nas etapas de fundações e estruturas. A partir daí,carpinteiros, armadores e pedreiros executam suas tarefas,seguindo as guias colocadas pelos mestres.

151

Page 178: Tese Ta's - Capa

Divisão do trabalho em canteiro

Foram reunidas aqui, as descrições que os entrevistados fazem deseu próprio papel na obra e, também, o de outros postos detrabalho, buscando compreender quais conhecimentos específicossão necessários, em que medida a hierarquia entre os postos detrabalho se define conforme esses conhecimentos e se o domínioda linguagem do desenho de obra influi nisso. As falas poderiamestar inseridas na descrição e análise de cada situação, masoptamos por agrupá-las por posto de trabalho a fim de investigar osconhecimentos específicos dispostos por cada trabalhador natradução do projeto à obra, pelo uso do desenho.

1. Engenheiro de campo, gerente de obras:

Os engenheiros de campo estão no topo da hierarquia do canteiro.Seu papel é chave na mediação entre incorporadora e construtora,empresas responsáveis pela concepção dos empreendimentos, aquem estão subordinados, e os fornecedores, as empreiteiras demão-de-obra e a equipe de canteiro, que participam da execução.Trazem a palavra final em caso de dúvidas e imprevistos, momentosem que são solicitados para a interpretação dos desenhos e para aespecificação de procedimentos de execução, mais raros. No geral,têm participação mais administrativa, como relatado a seguir, sendoimportante sua formação específica principalmente na compra demateriais, na negociação junto a fornecedores e no esclarecimentode dúvidas em relação aos projetos e procedimentos construtivos.O desenho é importante como instrumento de planejamento daobra, sendo fonte de informações para a elaboração dosquantitativos de materiais e do cronograma físico-financeiro, queficam em geral sob sua responsabilidade. No caso das informaçõessobre o projeto em si, medidas e especificações técnicas, que sãoindispensáveis para a construção, os desenhos são consultados poreles mais em casos de esclarecimentos de dúvidas trazidas pelosmestres do canteiro. O diálogo com a equipe de obra se faz porintermédio do mestre e também dos encarregados, que colaboramnas revisões constantes do cronograma, nas solicitações dematerial e na condução do trabalho.

Ralf, engenheiro de obra do Edifício Aimberê 1749

T – Como que é o seu trabalho? Quais atividades que você temaqui?

R – O que eu faço, seria a parte de gerência da obra, quer dizer, quealém do engenheiro de campo, você ainda tem algumas atribuiçõesque é o gerenciamento administrativo da obra, que é gerenciarempreiteiro, gerenciar limpeza, manutenção, gerenciar segurança,compra de materiais, enfim, você está realmente preocupado comcronograma, custo da obra, você abraça o canteiro de obra ali como

152

Page 179: Tese Ta's - Capa

uma pequena empresazinha, a verdade é essa. Que é o que a gentechama de um “centro de custo” da empresa, então se você tem umcentro de custos significa que você vai ter receitas e despesas, entãoo gerente de obra é responsável por isso, quer dizer, ele tem, óbvio,que fazer a coisa bem feita, dentro de um prazo estipulado, atémenor se for possível, e dentro de um custo, super, enfim, enxuto.

__________

R – É... na verdade aqui a minha atuação está super básica,digamos assim, porque quando eu cheguei aqui a empresa que é aMarelis [empreiteira de mão-de-obra terceirizada], que está fazendoa parte civil, já estava contratada, quer dizer, basicamente eu sópeguei o pacote de projetos e com chicotinho na mão a gente fezexecutar a obra.

T – E esse chicotinho na mão como que é? Vocês fazem reuniões,como são passadas as atividades?

R – Então, é isso que a gente estava comentando antes, o ato deadministrar a obra, de gerenciar a obra, é bastante complexo e pormuitas vezes complicado, cansativo. Porque assim, você tem umavisão técnica e administrativa diferente, bem diferente, às vezes, daspessoas que estão executando, e é muito difícil você passar aresponsabilidade, como diria..., o comprometimento, a palavra certaseria isso, então é muito difícil você passar o comprometimento quevocê tem como técnico, você está entendendo a dificuldade daquelaobra, prazo, custo..., e é difícil você passar tudo isso pras pessoasque executam, você fazê-las entender que eu preciso economizar,que eu preciso fazer a coisa bem feita – por que? Porque lá nafrente, quando o pedreiro for fazer a parede, a viga não pode estartorta. Quer dizer, então, é nesse ponto que a gente tentadiariamente, e quando precisa a gente se reúne, com as pessoasdevidas, pra uma conversa um pouco mais firme, vamos dizerassim, pra resolver as coisas.

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

JL – A gente faz tudo, a gente só não “cata no gol”, na gíria que opessoal fala. Mas você tem que percorrer o campo, tem queadministrar compra de material, não existe um departamento decompra específico, é você que faz também, você tem que tratardireto com o cliente... Então isso já são coisas diferenciadas deoutras construtoras, são atividades que você acaba adquirindo earcando pelo sistema de trabalho da construtora. Então, se existe àsvezes um atraso em obra, pode ser pelo departamento de compras,que é falho, então se você deixa na mão de um engenheiro, ele sabemuito bem quando comprar e quando não comprar...

__________

T – Mas aí no dia a dia você acaba lidando com quem dostrabalhadores, com os encarregados?

JL – Mais com a parte de liderança mesmo, com os encarregados,diversos, mestre, quando eu tenho o meu mestre aqui,administrativo, às vezes tem profissionais contratados, técnicos desegurança, engenheiros de segurança que prestam serviço de apoio

153

Page 180: Tese Ta's - Capa

pra gente e agora vai ter o pessoal de qualidade também, que vai vircom empresas auditoras, contratadas pra fiscalizar, vai ter maisgente nova aí pra gente conhecer...

__________

JL – Existem esses riscos, mas normalmente a gente impõe isso aoempreiteiro, por ser terceiro. Então ele me dá um preço global ondeeu exijo no contrato que ele me cumpra o cronograma. É certo queeu não posso exigir que ele faça algo mais do que ele já vemfazendo, por atraso de outros, eu tenho que acabar adequando elena situação. Agora, quem atrasa, é punido, o primeiro da lista, vamosdizer assim, por causa da impermeabilização, não fez a distribuiçãohidráulica, depois da distribuição hidráulica não entrou a equipe civil,não entrou o mármore, não entrou o forro, não entrou a pintura. Entãotem todo um ciclo, se a culpa é da impermeabilização, ele de umacerta forma é penalizado por esses dias de atraso...

Tatiana, engenheira de obra do Condomínio Parque do Sumaré

T – Como é seu dia-a-dia aqui, como é um dia de trabalho aqui?

Tt – Cada dia é um dia, todo dia tem uma novidade, todo dia é novo,nunca tem um dia igual, obra, além de ser engenheiro, você tem queser psicóloga, tem que ser um monte de coisa, então, eu entro aquisete, sete e meia no máximo todo dia e fico aqui até quase setehoras da noite, seis, seis e meia da noite, depende...

__________

T – O que ocupa mais seu tempo, ficar no canteiro, contratação demão-de-obra?

Tt – Em geral de escritório, é o que mais toma o meu tempo, desdecontratação de pessoal, tem muito problema, tem demissão, existemN procedimentos que a gente tem que tomar em relação a RH,depois a gente tem também a parte financeira, muita coisa, muitanota fiscal que circula aqui, muito contrato que circula aqui, entãoisso é uma coisa que toma muito meu tempo.

T – E as compras?

Tt – Eu não compro, eu faço todas as requisições, faço todos ospedidos, passo para Barretos [onde fica a sede da construtora],recebo a resposta de cotação, daí eu faço o pedido.

Bi – A quantificação já vem pronta, junto com o projeto ou você que faz?

Tt – Nas instalações a parte de elétrica e hidráulica vem, mas comotem essas alterações, daí a gente tem que dar uma reavaliadanessas quantidades, o restante a gente tem uma planilha, mas nemtudo dá certinho, a gente dá uma conferida, por exemplo, todoquantitativo de alvenaria fui eu que fiz, quantos blocos de 19, tudoisso é a gente, o engenheiro, que faz.

T – E a parte mais de execução mesmo fica mais com o Tonico[mestre de obra]?

Tt – Fica muito mais com ele, a parte de campo eu estou presente mas...

T – Ele te procura quando tem problema?

Tt – Todo problema que ele não consegue resolver ele me passa, nocampo, infelizmente, é ele que fica mais lá.

154

Page 181: Tese Ta's - Capa

Ficaram bastante ressaltadas as atividades administrativas que sãode atribuição do engenheiro de obra, o que despertou interessesobre a questão de sua formação específica, em geral nos cursosde engenharia civil. Por um lado, todos os entrevistadoscomentaram que durante o curso da faculdade, tiveram noçõesvagas sobre a prática de obra e que o aprendizado se inicia emestágios nos canteiros, assim como o de todos os outrostrabalhadores que ali estão. O aprendizado em campo trata deprocedimentos construtivos, detalhes técnicos, conhecimento sobremateriais e fornecedores, e também, talvez principalmente, sobre aadministração da obra, lidar com o cronograma físico-financeiro, eacima de tudo chefiar a equipe. De qualquer forma, o conhecimentotécnico requerido para o planejamento e o saber lidar cominstrumentos como planilhas, desenhos, memoriais, formuláriosparecem distinguí-los dos demais trabalhadores em canteiro.

Tatiana, engenheira de obra do Condomínio Parque do Sumaré

Tt – Eu perco meu tempo muito administrando, eu virei uma gestorana verdade.

T – Tem menos a ver com sua formação de engenharia, ou precisaser engenheira pra fazer isso?

Tt – Poderia ser um administrador.

T – Que conhece obra, quer dizer?

Tt – Que tenha conhecimento de obra, mas eu perco muito do meutempo fazendo a parte administrativa da obra.

________

T – Durante o curso, na faculdade, você teve formação pra trabalharem obra?

Tt – Tem laboratório, que é feito dentro da faculdade, ali elesensinam a assentar bloco, fazer chapisco, fazer azulejo e tal, mas émuito superficial, e daí você tem a parte de materiais também,conhecimento dos materiais, mas também muito... e a parte decálculo. É muito irrelevante, a prática mesmo foi devido aos meusestágios, que eu fiz.

T – Foi aprendendo já trabalhando...?

Tt – Já trabalhando.

T – Você acha que o curso é mais voltado para o pessoal deprojeto?

Tt – Não, não,o curso que eu fiz é mais para o cálculo, nem projeto,daí foi bem simplezinho o que eu tive, eu tive um ano de arquiteturae o restante mesmo eu tive cálculo e depois eu tive uma demateriais e uma de laboratório. [...] A maior parte é cálculo, 80%.

A fala do encarregado de obras do Edifício Aimberê 1749, contribuipara esclarecer a distinção entre quem trabalha mais com a“mente” e quem trabalha mais com o “corpo”. O “olho” dosupervisor, a “mente” de quem estuda. A posição superior que seatribui às distintas responsabilidades e como elas são percebidasno dia a dia do canteiro.

155

Page 182: Tese Ta's - Capa

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – Mas também você pode ter a mão-de-obra aqui, o material ali...

M – Aí se não tiver uma pessoa pra soltar o serviço, pra executar oserviço, que saiba, logicamente também não vai fazer, mas aí é mão-de-obra, faz parte, o encarregado faz parte da mão-de-obra, como oengenheiro faz parte da mão-de-obra... Logicamente tem aquele quevai..., no caso do engenheiro pode-se dizer que não faz parte da mão-de-obra não, porque ele está ali só pra... Só de olho mesmo, pra ver oque faz, o que acontece na obra... O engenheiro, ele está ali, na saladele, mas está de olho no serviço, porque ele está ganhando pra aquiloali, então ele está de olho no serviço, ele vai ali de repente, se elecisma, muitas vezes o engenheiro pela..., tem muito engenheiro quetem uma prática que ele olha, de longe ele olha e já vai matar, “pô,peraí, tem algum problema aqui”, aí ele vai, só no olhar o cara já...

T – Já pega?

M – O cara sabe, entendeu? A mesma coisa o arquiteto, o arquitetofaz um projeto de um prédio, ele tem um..., com certeza ele tem umamente bem melhor, porque ele só pensa naquilo, então se ele faz umdesenho acho que ele..., com certeza ele estudou, ele viu aquilo ali,então se ele chega, se ele viu alguma coisa ali, ele vai pensar “pô,peraí, eu não desenhei aquilo assim não, tem algum problema ali”, aíele vai ali..., então ele pega mais fácil. Já aconteceu isso aqui...

Arquitetos e técnicos no mutirão:

Parece significativa a presença dos arquitetos que elaboraram oprojeto no canteiro, para o esclarecimento de dúvidas e a resoluçãode imprevistos e incompatibilidades da obra, o que tornaria o trabalhomais “dinâmico”. Conforme já descrito, o trabalho no Mutirão PauloFreire durante a semana se aproxima ao canteiro “convencional”, e osarquitetos acabam assumindo algumas das funções do engenheiro deobra. O trabalho durante o fim de semana, em mutirão, apresentamaiores especificidades, sendo importante a presença dos arquitetose dos técnicos sociais na organização das equipes de mutirantes.

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E também quem fez o projeto está no canteiro, não?

A – Isso, porque no mutirão, ele está no canteiro e lá na construtoravocê nem conhece quem fez, porque está à distância. Então apessoa ganha a concorrência, tem vezes que você está fazendouma obra com um projeto, aí chega o mesmo projeto com outrarevisão, você tem que pegar, mudar tudinho o que você estavafazendo ali, porque chegou outra revisão atrasada, de modo queacontece muito, lá onde a gente está mesmo...

________

T – E também se você percebe alguma falha de projeto na obra,você consegue mudar na hora,?

A – Não, aí você tem que levar pro escritório, tudo, pro engenheiroanalisar pra levar de novo pro engenheiro calculista que está longedali, que ele fica em São Paulo, o escritório deles, então é bemcomplicado nesse sistema aí.

156

Page 183: Tese Ta's - Capa

2. Mestre de obras:

O posto do mestre representa efetivamente a ponte entre aquelesque concebem e aqueles que executam a obra, no sentido de quetranspõem as medidas e indicações contidas nos desenhosexecutivos para a construção, e assim recai sobre ele parte daresponsabilidade sobre o “gerenciamento do trabalho”, em termosde prazos, e sobre a execução em si, em termos de qualidade efidelidade ao projeto. É também o mestre que alerta o engenheirode obra sobre a falta de materiais, por exemplo, contribuindo naelaboração do cronograma da obra.

Cabe aos mestres a distribuição das atividades aos encarregados, aespecificação dos procedimentos de execução e a posteriorconferência dos serviços com base no projeto, sendo necessáriopara isso conhecer “um pouco de cada serviço”, carpintaria,armação, alvenaria, instalações, impermeabilização. Também, omestre é quem passa as medidas contidas no projeto para que osencarregados, pedreiros, armadores, carpinteiros executem suastarefas, utilizando para isso meios diversos, dependendo daatividade, seus materiais e instrumentos. As atividades de obra sãodistribuídas às equipes oralmente, mais diretamente para “líderes”de equipe, pedreiros, carpinteiros e armadores, que contam comseus ajudantes. As informações contidas nos desenhos que sãomais usadas nesse momento são as medidas.

A tradução do desenho à construção acontece de maneiras mais oumenos espontâneas, mais ou menos mediadas, de acordo com aatividade em realização.

Para o posicionamento e dimensionamento das estruturas, ordensfaladas são suficientes para passar os tamanhos das fôrmas ebitolas da armação e suas localizações, contidos no desenho. Hápara isso pontos de referência que são seguidos durante toda aobra, pontos deixados pelo primeiro gabarito de locação, referênciapara a execução das fundações, muitas vezes marcados com aparticipação de um topógrafo. Em alguns casos, eles mesmosrealizam a marcação das atividades a serem feitas, por meio degabaritos de madeira que servem de referência de medidas ao longoda obra, em outros, conferem a marcação feita pelos encarregados.

Os procedimentos de marcação das alvenarias, por exemplo, sãorealizados em algumas situações com o auxílio de um desenhoespecífico, a planta da primeira fiada, executada em escritório deprojeto, que é um elemento de racionalização da obra ao retirar docanteiro algumas das atividades de adaptação de medidas contidasnos desenhos executivos para a locação das alvenarias, sendopercebida como facilitadora do trabalho. A execução da 1ª fiada étarefa acompanhada de perto pelo mestre de obras e realizada comos próprios elementos construtivos (blocos, argamassa),

157

Page 184: Tese Ta's - Capa

instrumentos de “desenho” (linha, prumo, esquadro, régua, nível) eferramentas de trabalho (colher de pedreiro, paleta, brocha).

Os mestres têm maior familiaridade com os instrumentos deconcepção, como desenhos, planilhas, manuais técnicos e foram emsua maioria formados no trabalho em canteiro, tendo iniciado comoajudantes. Eles conhecem, portanto, o saber fazer, os procedimentose gestos de cada atividade. Foi relatada também a necessidade deestudar os desenhos para realizar o trabalho. Alguns, paraalcançarem o posto de mestre, ou melhor, para serem reconhecidoscomo tal, fizeram cursos de mestre de obras. Inserimos as falas deMauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê aqui, já que,na ausência de um mestre de obras nesse canteiro, ele acaba porassumir esse papel frente à equipe de obra civil.

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – E quem faz essa parte de organizar as equipes, as pessoas?

M – Sou eu, é o encarregado, sou eu mesmo. Tem que passar,definir o serviço pra cada pessoa, cada pedreiro tem o seu ajudante,então você vai definir o serviço pro pedreiro, o ajudante vai junto,não precisa mais nada, que ele sabe, o ajudante tem que dar omaterial pro pedreiro, ou seja, se ele estiver na alvenaria, é o blocoou a massa, se ele estiver tirando um ponto é só a massa. Aí, deacordo com cada serviço, ele já sabe o que vai fazer também.

_______

M – Porque o Ralf [engenheiro de obra] cuida praticamente dosproblemas extra-obra, que é o pedido de material, alguma coisa quefaltar na obra, tal. Então isso eu sempre tenho que estar em contatocom ele, passando pra ele. Material pra estar comprando, essascoisas, ou então quando tem algum serviço de elétrica, ouhidráulica, que é ele quem vai passar direto, pros encarregados.

T – Mas o que é um problema extra-obra?

M – Por exemplo, assim, um problema... Você tem o projeto, vai seguiro projeto, se deu algum problema do projeto não bater, aí isso já é coisaque eu tenho que passar pra ele, e ele vai passar pra fora da obra...

_______

T – E você encontra os arquitetos, ou o pessoal que fez os projetos?

M – Não.

T – Eles aparecem na obra?

M – Eles aparecem na obra, sim, mas quando eles vêm na obra, elestêm contato direto com o Ralf, é diretamente com o Ralf, semprecom ele.

_______

T – Tem mais gente aqui que sabe ver o projeto, pode te ajudarnessa parte?

M – Não, aqui não, só da armação tem um.

T – Que também já vê o projeto, e você deixa mais na mão dele...?

M – Que na realidade ele é responsável pela armação, e eu pelaconferência.

158

Page 185: Tese Ta's - Capa

T – E como você faz para passar pras pessoas as medidas, comoque tem que ser feito...?

M – Aí com certeza nessa hora eu tenho que estar junto, pra poderpassar a medida pra eles, o modo de fazer...

T – É só falando?

M – É só falando...

T – E o pessoal lembra de tudo?

M – E porque eu passo a medida, a altura, ou seja, a cota de nível,pra eles e o pessoal, como eles sabem trabalhar, você passou acota de nível e medida pra eles, o restante, eles fazem, o importantepra eles é a medida e a cota.

_______

T – E no prazo, como que você administra isso?

M – Nossa, o prazo aqui é que é o problema... A gente procurafazer..., dar o máximo da gente, fazer o mais rápido possível. Agoraprazo, não é uma coisa que eu chego na pessoa e falo “olha, vocêtem 3, 4 dias pra fazer”, isso eu não exijo do pessoal. Porque se apessoa faz num ritmo, não adianta você querer forçar a pessoa,porque duas, pode ser que a pessoa vá fazer do jeito que euquero, mas não vá fazer do jeito que ela sabe fazer, então vaiacabar acontecendo algum serviço mal feito, então é melhor vocêdeixar a pessoa trabalhar no ritmo dela, se não der certo você faztrocar a pessoa...

_______

T – E aí não vem pressão de cima, pra você?

M – Pressão vem, pressão vem de todo jeito, então se você foresquentar a cabeça com a pressão que vem, Nossa Senhora! Aívocê fica doido. Tem, pressão tem demais. Tem pressão doengenheiro, tem pressão do patrão [da empreiteira contratada]...,que o engenheiro vai cobrar do patrão, o patrão vai cobrar de você,o engenheiro vai cobrar de você também... Então, tem pressãodemais, tem dia que dá vontade de você pegar suas coisas e irembora, mas se você for fazer isso aí, você não vai ser encarregadoem lugar nenhum, porque o que mais tem é pressão. E é demais!

T – Mas você tenta segurar..., não pressionar os pedreiros,ajudantes...

M – Não, porque não adianta eu pressionar, é o que eu falo pravocê, não adianta. Se um serviço, quando o pessoal quer que andebem, só se colocar mais pessoas, porque não adianta. Se tiver 1 ou2 pedreiros pra fazer um serviço, não adianta você querer pressionarse só tem eles pra fazer. Não adianta você querer apertar eles, “não,nós temos que ser mais rápidos, vamos correr, vamos fazeraquilo...”, pro serviço sair mal feito...

T – Você acha que isso tem a ver com o fato de você já ter sidoajudante, ter sido já armador, que já te deu essa experiência dooutro lado?

M – É..., não vou dizer pra você que tem, também não vou dizer pravocê que não tem...

159

Page 186: Tese Ta's - Capa

T – Por exemplo, de você já saber que o serviço demora um certotempo, que não adianta você pressionar...

M – Sim, com certeza, ter trabalhado na “ferramenta”, isso comcerteza. Só que você vai ter mais ou menos uma base, se você vaicolocar um pedreiro num apartamento, você tem um no 1º andar eum no 2º andar, os dois não são iguais, com certeza um vai sermelhor do que o outro. Então, não é porque o pedreiro do 2ºandar vai fazer 80 metros num dia que o outro é obrigado a fazeressa mesma quantidade. Ele vai fazer o que ele pode fazer, não oque eu quero. Não adianta eu exigir dele. Porque primeiro, euposso estar colocando uma pressão em cima dele, aí o cara vaipensar, “poxa vida, eu vou ter que me esforçar mais senão derepente eu posso acabar sendo mandado embora”, aí o cara vaificar num desespero, nessa aí ele vai ter uma falta de atenção, vaiacabar fazendo um serviço errado, ou seja, o que ele vai correr,depois vai ter que voltar desmanchando... Então você tem quelevar tudo isso em consideração, que é uma coisa que muitasvezes o patrão não leva... Ele quer que faça o serviço, nãointeressa no jeito. Mas aqui não tem esse problema não, aquigraças a deus, o pessoal tem feito o serviço direitinho, bem feito...Eu deixo a pessoa fazer, do jeito dela. Logicamente que seja bemfeito, seguindo as medidas do projeto e tudo. Mas quem vaideterminar o ritmo é ele mesmo. Por isso que o pessoal já ganhapor metro, porque quanto mais ele fizer, mais ele vai ganhar... Temque ter o interesse dele, e todos têm.

_______

T – E desenho, como que você aprendeu...

M – Aprendi olhando. Assim, logicamente que o projeto,logicamente que sem a gente perguntar algumas coisas, você nãovai saber. Mas era mais olhando, questão de entender dasmedidas, projeto praticamente só não faz falar, mas é como sefalasse, você vê, está ali, é só você saber. Só que logicamentepara ver o projeto pela primeira vez, eu fiz algumas perguntas, edaí passei pra frente.

Na obra do Edifício Maison Alinne, aparece uma distinção entre oconhecimento e a função de um encarregado e de um mestre deobras: os encarregados dão conta dos serviços mais “brutos”,enquanto dos mestres já se exige maior atenção em serviços maisminuciosos, de acabamentos, pelas variações na planta “tipo” deacordo com a personalização dos apartamentos.

Jorge, encarregado de alvenaria da obra do Edifício MaisonAlinne

T – Mas aqui nessa obra tem outro encarregado pelas instalações?

Jo – Isso, tem. Tem encarregado da hidráulica, encarregado daelétrica, encarregado de carpintaria, encarregado de armador...

T – E está com mestre aqui?

Jo – Tem, tem mestre também.

T – E aí vocês todos são...

160

Page 187: Tese Ta's - Capa

Jo – É uma equipe. Cada pessoa cuida daquela equipe. Então eucuido da equipe dos pedreiros e ajudantes, o encarregado decarpinteiro cuida da carpintaria e os armadores... O encarregado dearmador cuida dos armadores, que é a parte da ferragem. Então, osencarregados, qualquer coisa, alguma dúvida que ele quer tirar, praisso tem o mestre. Porque a gente chega até o mestre, pergunta, tiraalguma dúvida, tira com o mestre. Qualquer dúvida, se o mestre nãoconsegue tirar essa dúvida com a gente, ele vai e passa proengenheiro, pra poder a gente chegar no ponto que a gente quer.

T – Porque quando eu vim aqui estava sem mestre ainda a obra,vocês que estavam tocando...

Jo – Isso, praticamente pra ficar, o mestre fixo mesmo vai virsemana que vem. Por enquanto está quase naquele mesmo ritmoque você passou.

T – E faz falta o mestre?

Jo – Faz, faz... Às vezes, o engenheiro tem aquela coisa, a gentevem pra tirar dúvida com o engenheiro mas nem todo tempo eleestá disponível pra você e o mestre está... Dia a dia, está semprejunto com você, subindo na obra, sempre vendo, e o engenheiro, elefica mais aqui dentro no escritório, cuidando mais da papelaria...Tem muita coisa que ele tem que ver também...

José Luiz, engenheiro residente da obra Maison Alinne

JL – Hoje, é isso, normalmente o mestre também é da construtora,mas eu ainda não tenho mestre pela fase ainda que não requer. Nãotem tanta atividade assim que haja a necessidade do mestre, aí euconsigo administrar...

T – Mas está sem mestre?

JL – Sem mestre, eu tenho só um encarregado de estrutura e umencarregado de alvenaria.

T – Porque agora está na estrutura e alvenaria...

JL – Sim, quando começar a parte de acabamentos o negóciocomplica um pouco mais pela personalização.

T – Porque começa a contratar empresas mais especializadas...

JL – Ou requer técnicas de execução especializadas. Então, temapartamento que, por exemplo, numa sala vai madeira, tem outroque vai mármore, tem outro que vai pôr cerâmica, então pra cadasituação você tem um tipo de execução de contrapiso, por exemplo.Então essas informações em princípio elas são sintéticas, e fazemcom que a gente consiga evoluir bastante em campo na parte deinfra-estrutura. E quando a gente fala de acabamentos finais, aí simsão contratadas outras empresas que fazem os serviços deacabamento final.

Na obra do Condomínio Parque do Sumaré, pela escala deprodução, a equipe conta com encarregados que lidam com maiorproximidade das atividades de execução, cabendo ao mestreacompanhar, supervisionar, distribuir tarefas e conferir as marcaçõesfeitas pelos encarregados.

161

Page 188: Tese Ta's - Capa

Tonico, mestre de obras do Condomínio Parque do Sumaré

T – E aí, quais são as atividades do mestre aqui?

To – É acompanhamento, a atividade que toma... as marcações,projetos, é isso que envolve os projetos, que você vai jogar pra obra,então a função da gente é pegar o projeto e colocar no terreno, aconstrução. E acompanhar a execução de todos os serviços, querdizer, quem passa os serviços... toda a construção, toda a execuçãoé o mestre, que passa pro pessoal, passa pros encarregados, quevão executar o serviço, essa é a função dos mestres de obra. Eacompanhar a execução, mesmo que ele tenha um encarregado, afunção da gente é ajudar a acompanhar a execução...

Mestre de obras no mutirão:

A principal distinção apontada é a necessidade de trabalhartambém formando a equipe, explicando e demonstrando asatividades a serem realizadas, e para isso a necessidade de “pôr amão na massa”, no trabalho de fim de semana.

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E como você define quais as atividades que vão ser feitas?

B – Bom, eu dou umas dicas, logicamente que quando os arquitetoschegam aqui no sábado ou então no meio de semana, eles vão meperguntar o que está faltando, o que precisa ser feito, aí eurespondo com umas dicas, que eu estou no dia a dia, então eutenho mais noção disso, aí a gente coloca em prática no final dasemana.

T – E pra passar o trabalho pro pessoal, no mutirão é mais aassessoria...?

B – É mais a assessoria...

T – E durante a semana, quem faz?

B – Durante a semana, sou eu.

_______

T – E agora está com a equipe do reboco, do serralheiro...

B – E a do gás. Estamos com 3 equipes aí durante a semana.

T – E cada equipe dessas também tem seu encarregado, ou fiscal?

B – Não, eu fiscalizo tudo. Cada equipe dessas..., só a do gás e dafachada é que é um empreiteiro só, mas essa equipe que estácolocando corrimão e parapeito é uma equipe, como se diz,particular..., é uma outra empresa. Eu tenho que estar acompanhando,cada serviço pronto eu tenho que estar acompanhando pra ver seestá tudo ok, tudo normal. Por exemplo, eu vou pedir pra um pedreirofazer essa fachada, eu dou as dicas, eu quero assim, quero dessejeito, quero que corte isso, quero que requadre direitinho, quero quedeixe tudo na linha, na régua, e deixo ele fazer o trabalho. Terminou,eu vou ver se está igual, está igual, tudo bem...

_______

B – Quando você trabalha de encarregado você é mais execução deprojeto. Você não tem muito tempo pra estar estudando, a funçãomais de estudar projeto é do mestre. Ele senta ali, fica horas e

162

Page 189: Tese Ta's - Capa

horas, depois é só demandar, distribuir trabalhos... Quando euestava trabalhando de encarregado minha função mais era executartrabalhos. Logicamente que se tiver o projeto pra gente acompanharé melhor, e a gente acompanha...

_______

B – O mestre de obra, a função dele maior na obra particular éconferir trabalhos, que estão sendo executados. Antes do concreto,antes dele entra ferragem, já conferiu a fôrma, já conferiu a ferragemdepois, “tá tudo pronto, então vamos programar o concreto...”. Eaqui é o contrário, a gente tem mesmo que estar conferindo e estarfazendo ao mesmo tempo, porque o mutirante, ele faz, logicamente,mas tem sempre que a gente estar auxiliando ali, em alguma coisa,e auxiliar é pôr a mão na massa mesmo, não tem jeito...

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E qual você acha que é... o que faz um mestre de obra, o quefaz uma pessoa ser mestre de obra?

A – Eu acho que ele tem que ter um pouco de conhecimento de cadatipo de serviço que vai ter, o jeito dele se comportar como um líder, eser humilde também. Assim, tratar todo mundo igual, não querer sermelhor do que ninguém, do que um ajudante ou..., ninguém. Assim,ele tem que ter um espírito de liderança, pra liderar o grupo.

_______

A – Eu participei de 22 desses aí, mas foi muito bom, a experiênciamuito boa, você trabalhar com o povo que é totalmente diferenteque você trabalhar numa construtora, então é muito bom praexperiência da gente...

T – O que é mais diferente, quando você fala que é diferente?

A – O diferente é que numa obra de uma construtora, o mestre deobra ele só manda, não ensina uma pessoa a fazer nada, aqui agente trabalha ensinando as pessoas, praticando..., praticando aspessoas. Aqueles que têm um pouco de dificuldade a gente tentapraticar ele a fazer, executar um serviço, e sempre trabalhando emconjunto, e lá na construtora não, o mestre de obra pega osprofissionais e põe lá, se ele produzir..., bem, se não produzir...manda embora e põe outro no lugar, substitui. E no mutirão a gentetem que trabalhar com as peças que a gente tem, porque até averba que vem pra fazer é pouca, você tem que aproveitar a mão-de-obra que tem dentro do mutirão. Porque daí você tem homem,tem mulher, tem poucos profissionais, o que puder formar deprofissional dentro do mutirão a gente tem que formar, tem que estarali pra ajudar eles, qualquer dúvida, tirar deles ali, e pronto, que é osistema aqui do mutirão, é esse.

__________

A – É, final de semana, sábado e domingo era esse grupo, que eramos próprios mutirantes, e no meio de semana aí a gente trabalhavacom os contratados, outros eram por empreiteira. Aí os empreiteirosjá vêm com as equipes deles feitas, e nós tínhamos que fazer osuporte aqui. Mas a distribuição de serviço a gente que fazia.

163

Page 190: Tese Ta's - Capa

3. Encarregado:

Os encarregados são “líderes” de equipe, alguém a quem sãopassadas as atividades e de quem se cobram prazos e qualidadedo trabalho. Foi muito citada a atividade de “conferência”desempenhada pelos encarregados, que assim devem lidar com osdesenhos, principalmente com suas medidas. Uma de suasprincipais responsabilidades está na fiscalização do trabalho dospedreiros, carpinteiros e armadores, subordinados a ele e aomestre, e daí a necessidade de saber “lidar com gente”, uma dasdificuldades de seu trabalho.

Ralf, engenheiro residente da obra Aimberê 1749

T – E a hierarquia, tem você como coordenador geral, gerente,depois viria o Mauro, que é o encarregado, e aí tem mais alguma...

R – Não..., aí é assim cada setor, por exemplo, a equipe decarpinteiros, sempre tem o que a gente chama de líder, são um oudois no grupo em geral que se destacam, vamos dizer assim.

T – Se destacam em que?

R – No sentido de que, a gente costuma falar, são os puxadores deserviço, os caras que falam por outros, como se fossemrepresentantes de um grupo, a verdade é essa. Os armadores é amesma coisa, quer dizer, sempre tem um líder, ou dependendo doporte da obra, que você tem uma empresa de armação, você temum encarregado que coordena aquela equipezinha de armação, eassim vai... Quer dizer, hoje aqui, somente o Mauro é o cacique daobra, e abaixo dele tem lá a equipe de carpinteiros, a equipe dearmadores, que todos ali falam em comum...

Jorge, encarregado de alvenaria da obra do Edifício Maison Alinne

T – E qual a diferença que você acha do trabalho de encarregadopro trabalho de pedreiro?

Jo – Tem muita... Porque de encarregado você tem que ter muita...“responsa”, que aumenta muito mais, e estar ciente daquilo quevocê está fazendo. E muita “dor de cabeça” devido aquele grupo,porque nem todo mundo é igual, e você tem que luta... lidar commuita gente que às vezes... tem gente que não compreende vocêmuito bem, e você tem que lidar com isso tudo, tipo de gente, mas agente sabendo relevar, a gente consegue chegar lá...

T – E você acha que pode ter a ver também com... porque essesdesenhos, essas plantas de eixo e tal, ficam com você?

Jo – Isso...

T – Você acha que também tem uma diferença por isso? Quando vocêtrabalhava de pedreiro, você também usava os desenhos, ou não?

Jo – Não, não... O desenho sempre fica com o encarregado, a maiorparte fica aqui na engenharia, quando você precisa, que vai mudar, àsvezes você está marcando um apartamento aqui hoje, aí você vem, pegaaquele desenho já, pra você fazer essa marcação. E quando você acabaaquele, você já vem, pega o outro, pra dar continuidade e sempre subir,mas sempre o desenho fica com o engenheiro ou o encarregado.

164

Page 191: Tese Ta's - Capa

T – E como você aprendeu a ler o desenho?

Jo – Isso foi só na prática. Também devido ao tempo de ver. Àsvezes o engenheiro também, eu via como que ele estava fazendo,como ele conseguiu chegar até aquele ponto em que ele está, e eu,com a prática, devido à prática, e à boa vontade que eu sempre tive,eu consigo ler também.

Abrahão, pedreiro da obra do Condomínio Parque do Sumaré

T – Qual, vocês acham, é a diferença do trabalho do encarregadopro trabalho do pedreiro?

Ab – Eu acho que o do encarregado é bem pior, viu.

T – Por quê?

Ab – Eu trabalhei uma vez de encarregado e eu sofria muito comcabra que não sabe trabalhar. E o cara ter que chegar e pegar nopé, dizer que não é assim, chegar a hora de mandar o cabra irembora sem saber fazer, aí é duro.

Bi – Então você já trabalhou como encarregado...?

Ab – Já, já trabalhei como encarregado.

Bi – E desistiu?

Ab – Prefiro trabalhar, do que mexer com gente.

T – Porque aí tem que ficar olhando o trabalho do outro, é isso?

Ab – É, ficar olhando o trabalho do outro. Daí não faz do jeito que é,porque o encarregado fica com o projeto na mão, direto, que é paranão sair nada errado. Se sair algo errado, daí o mestre chama ele alinum canto e vai dar dura no encarregado. Não dá dura notrabalhador, quem leva a dura é o encarregado. É bem difíciltrabalhar de encarregado, tem gente que não sabe trabalhar, sabe?Agora quando pega uma equipe boa do cabra trabalhar, daí oencarregado é bem bom, não quebra tanto a cabeça, porque já sabefazer, só faz o pedido. Mas pega muita gente que não sabe, e temmuita gente que não sabe trabalhar, e o encarregado dá muito duro,tem encarregado aí que sofre muito.

4. Pedreiros, carpinteiros, armadores:

Os pedreiros, carpinteiros e armadores recebem principalmenteinformações orais, sobre as medidas, do que deve ser feito. É o quebasta para que exerçam seu trabalho, já que a técnica e oconhecimento sobre os procedimentos eles dominam. Tambémmanipulam os desenhos, para conferir medidas ou no momento damarcação da alvenaria, mas essa não é uma responsabilidade sua.A conferência sobre as medidas, armaduras, fôrmas cabe aoencarregado, ao mestre e ao engenheiro da obra.

Sua formação se dá na prática, observando quando ajudantes otrabalho dos pedreiros, carpinteiros e armadores, e se“interessando” pelo serviço, em aprender, em “subir”.

165

Page 192: Tese Ta's - Capa

O trabalho dos pedreiros é mais simples e depende menos do domíniosobre o desenho, já que uma vez que a primeira fiada está feita, elesseguem essa marcação no assentamento de blocos. Já os armadorese carpinteiros lidam com mais variáveis em seu trabalho, cominformações mais técnicas contidas nos desenhos. As fôrmas earmaduras para a estrutura em concreto armado, moldado in loco,variam de um andar para o outro ou de peça para peça, mesmo queapenas a montagem se dê em canteiro, quando são encomendadas asferragens já dobradas e as fôrmas cortadas em empresas específicas.E talvez esse seja um dos motivos para a adoção da alvenariaestrutural como sistema construtivo passível de ser racionalizado,considerado um modo mais “fácil” de trabalhar, ou de controlar.

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Tem uns que até eu não preciso explicar tanto, eu chego, eudeixo o projeto, explico por onde começar o projeto, e eles..., eu vousó conferir o que eles fizeram, se está tudo certinho...

T – Tem uns que já lêem desenho?

B – É, a maioria de pedreiro, carpinteiro, armador, você dá umdesenho de armação pra eles, eles sabem tudo na verdade, a gentesó vai mesmo conferir.

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E dos projetos assim, nessas obras que você trabalhou comconstrutora, de empreitada, não de mutirão, você sentiu algumadiferença nos projetos mesmo?

A – Olha, quando a gente trabalha de pedreiro, ou de tarefeiro numaconstrutora a gente não vê o projeto na mão, fica só na mão domestre, do encarregado e a gente tem que fazer o serviço do jeitoque eles querem, a gente nem tem noção do que a gente estáfazendo, sabe que você está levantando uma parede ali, mas nãosabe o que vai ser ali dentro, o que vai ser feito ali, então tem essadiferença... isso aí, que é a grande diferença, fica preso...

Joanite, pedreiro da obra do Edifício Aimberê 1749

T – E de pedreiro como que é o trabalho?

Jn – De pedreiro é levantar parede, depois rebocar..., então são aspartes mais que a gente faz de pedreiro. Aí agora, chega a parte deacabamento, então agora, é a parte mais fina, que você tem quecaprichar, que é a parte de acabamento.

T – E está mexendo com o que agora?

Jn – Aí a gente mexe com massa, que às vezes tem que retocar,fazer requadramento... Mas tem que estar toda em prumo, em nível,esquadro...

T – Isso aí também você que faz, você tira o prumo, o nível...

Jn – Isso, tem que estar em prumo também. Aí a gente faz isso, aí agente chama o engenheiro ou o encarregado, aí eles conferem.

_______

166

Page 193: Tese Ta's - Capa

Jn – É, a gente mesmo leva a massa... Não precisa só de ocupar oajudante, porque às vezes é um serviço que o pedreiro sozinho faz.Só que tem pedreiro que às vezes fala “ah, não, sou pedreiro, nãovou carregar essa massa não...”, aí chega um ajudante pra podercarregar. Aí a gente não, a maioria está aqui, quando a gente entroufoi combinado, se precisar fazer um serviço sem ajudante a gentefaz, então, sem problemas...

_______

T – E foi difícil aprender a trabalhar de pedreiro?

Jn – Não, não, é simples. Só que aí, você tem que trabalhar deajudante e, se tem assim, um atalho de aprender, aí você vai pegandoas práticas com o pedreiro que você está trabalhando. Aí, se terminouo material ali que você está levando pro pedreiro, terminou, pra mor devocê não ficar à toa, você pega a colher e começa soltando o serviço.Aí, com o tempo, se o patrão vir que merece, foi o que aconteceucomigo. Eu trabalhei bastante de ajudante, mas fazia serviço depedreiro, aí ele achou que merecia me classificar, e me classificou.

_______

Jn – Isso, aí ela fica requadrada, aí depois... só que você vai deixar aestrutura dela, a quantidade da massa que ela vai pegar. É, porqueali na requadração, já indica tudo, porque quando a gente fazalvenaria já deixa com esse desconto, já, pra quando for fazer arequadração.

T – Aí dá o tamanho certo...

Jn – Isso, numa comparação, a porta é de 80, a gente deixa com82..., até 84 a gente deixa, aí pega 2 cm de massa de cada lado.

T – Esse tipo de ajuste assim, isso está no desenho ou vocês naobra que sabem que tem que deixar...?

Jn – Está no desenho, é que ali já vem no desenho, só que aí,através do encarregado também, a gente na marcação, quando agente está marcando, a gente já está deixando esse desconto, já.

T – Porque no desenho vem marcado o quê? O 80?

Jn – Isso, vem marcado 80. Daí esse desconto aí a gente já deixa porquesabe que é o principal, porque ali no desenho vem 80, mas o 80 quevem é acabado, então essa parte aí acabada é o que a gente vai ter quedeixar, porque a porta que vier, ela vai vir de 80, então ela vai encaixar...

_______

T – E você mexe com desenho, entende, ou é difícil, achacomplicado...?

Jn – É, tem umas partes que a gente entende. Não, não difícil. Massó que aí, você tem que ter um tempozinho pra você ler aqueledesenho, como que começa. Então, é muito difícil a gente pegar umdesenho pra gente poder dar uma lida nele pra ver como quecomeça. Porque o encarregado, não, o encarregado e o engenheiro,esses daí têm tempo. Porque sempre eles trabalham só com ele,então tem como ele pegar e ler um desenho. Já a gente não, porquese for ficar lendo um desenho, a gente vai ganhar o quê? Vai ganharé nada, então tem que deixar com eles mesmo, aí eles explicam pragente, como que começa.

167

Page 194: Tese Ta's - Capa

5. Ajudantes:

Os ajudantes respondem às demandas dos pedreiros, carpinteiros,armadores, organizando o material e preparando-os para o uso.Para seu trabalho, o desenho não é necessário, mas devemconhecer quantidades, materiais e os momentos em que devem serservidos. Colaboram também com a organização geral do canteirode obras e sua limpeza.

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Na verdade, arranca pregos, seleciona madeira, auxilia na horade montagem da fôrma..., essas coisas, ajuda o carpinteiro na horado corte, quando estiver cortando a madeira na policorte... Naverdade a função dele é auxiliar o carpinteiro ali, precisou de umprego, precisou de uma tábua, precisa de um sarrafo, de umpedaço... seleciona por tamanho e por medida, então é isso que é otrabalho de ajudante de carpinteiro, é selecionar a madeira praquando for procurar alguma madeira não ficar perdido, ficarsambando num monte de madeira que tem lá no meio da obra.

Jorge, encarregado de alvenaria da obra do Edifício Maison Alinne

T – E como é o trabalho de ajudante geral?

Jo – Ajudante geral é aquele ajudante que faz de tudo, que tem naobra, que... o encarregado colocar você pra fazer..., de tudo você fazum pouco, então esse se chama o ajudante geral.

Matheus, coordenador de obra da construtora do CondomínioParque do Sumaré

Ma – Ele levantava às 4 horas, quando era 6 e meia ele já estavacom a massa lá pronta pro pedreiro. O cara que trabalha comprodução, ele adora isso, porque ele não vai parar. Aí tinha umpessoal, eles levantavam às 5 e meia da manhã, já pegavam omunch, já colocavam os blocos lá “ah, o guindaste vai estar em talprédio”. A hora que o operador de guindaste chegava, os blocos jáestavam todos do lado do guindaste, assim, bloco, betoneira..., e elesabia a quantidade, quantas canaletas, quantos J, quantoscompensadores, sabia tudo. Então a hora que o muncheiro jálevantava a laje, pum, colocava a laje, eles já subiam lá “ó, podetrazer, pega isso, o outro...”, eles já distribuíam tudo na lâmina. Opedreiro chegava lá, já estava tudo ali, os blocos, a argamassa, abetoneira, a extensão..., tudo! O cara chegava com a pázinha namão, isso aí dá uma tranqüilidade enorme pro cara...!

6. Mutirante:

Amplia-se, com a participação dos mutirantes na obra, aqueles quetêm acesso ao desenho, o que também contribui para sua formaçãoe para certa “democratização” da informação. Os mutirantes acabampor ocupar um lugar híbrido de patrão-empregado no canteiro.

168

Page 195: Tese Ta's - Capa

Roberto, mutirante e almoxarife da obra Mutirão Paulo Freire

Ro – Mas, assim, na área civil eu já trabalhei um pouco com meucunhado.

T – O que você fazia com ele?

Ro – É... mais ajudante, se precisava quebrar uma parede, você ia láe quebrava, se precisava fazer uma massa, ia lá fazer massa..., nãotinha uma coisa definida, assim “olha, você vai aprender a fazerisso”, não tinha esse tipo de coisa. Aqui não, aqui eu já aprendimuito mais do que eu já sabia. Uma coisa que eu acho que foiexcelente pra mim foi você saber mexer com a planta, saber pegar oprojeto ali, você olhar, falar assim “poxa, é dessa forma”, ou atémesmo você olhar o projeto, você pegar, você tem uma visão...

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Um pouquinho diferente. Aqui a gente trabalha mais com umpessoal que sabe muito..., logicamente que na teoria, mas na práticaa gente tem que estar dando uma mãozinha lá, ajudando, comofalam “Batista, o pessoal aí às vezes a gente pensa que sabe muito,mas é só...”, só já viu fazer, só acha que sabe...

T – Os mutirantes?

B – Precisa estar dando uma auxiliada de vez em quando, vocêpercebeu ali?

T – Percebi, eu até hoje fui um pouco mutirante também... [aentrevista aconteceu logo antes do almoço, num sábado, dia demutirão, em que estavam presentes poucas famílias, 17 de um totalprevisto de 33. As atividades então ficaram reduzidas a limpeza docanteiro – retirada de entulho, e montagem de gaiolas de armaçãode baldrames e brocas de muros de arrimo. Eu fiquei um pouco comesse grupo, amarrando estribos, e o auxílio a que Batista se referefoi tanto em como fazer, procedimentos, e também em medidas ebitolas das ferragens]

__________

T – E quem usa o desenho aqui, na obra?

B – Na obra sou eu...

T – Você e o...

B – Pessoal da assessoria, trabalhando em conjunto...

T – Mas ninguém mais mexe com isso?

B – Não, também porque nem há necessidade, o pessoal domutirão, tudo bem que se precisa..., na época que a gente estavacolocando caixinha de elétrica, sim, com cada grupo a gentedeixava uma apostila, uma pastinha com o projeto pra eles. A gentedava umas coordenadas ali, tinha uns meio espertos ali quemanjavam legal, “não, Batista, pode deixar que a gente...”

T – “Já pegou...”

B – “Já pegou aqui”, a gente deixava o projeto pra eles selocalizarem um pouco ali, “qualquer dúvida, procura a gente...”.

169

Page 196: Tese Ta's - Capa

Reunião do trabalho pelo uso do desenho

O projeto como condição para a realização da obra compõe-se deum pacote de informações que chegam ao canteiro como produto.O desenvolvimento do projeto fragmenta a obra a ser construída emvárias pranchas de desenho, organizadas por especialidade doconhecimento e elaboradas conforme as normas técnicas derepresentação gráfica, fazendo a transposição do objeto que estásendo concebido ao plano bidimensional da folha de papel, emescala proporcional. Na obra, essas informações devem serreunidas para compor o edifício. Uma etapa anterior ao início dasobras, conhecida como de compatibilização dos projetos, tentaminimizar as incongruências deixadas por essa parcelização doconhecimento, e pelo meio de representação, entre a finalizaçãodos projetos executivos e o início efetivo das obras.

Pelos relatos, os engenheiros de campo não participam dessasatividades, que consistem em reuniões entre os projetistas sob acoordenação da incorporadora/ construtora responsável peloempreendimento.

De outro lado, uma vez iniciada a obra, o projeto, como produto, nãoé retomado, mas faz parte da obra como mais um dos elementosque informam a execução, junto com o conhecimento dos técnicos etrabalhadores envolvidos, que solucionam em campo as possíveis“falhas” ou “imprevistos” deixados pela representação do projeto.

Ralf, engenheiro residente da obra Aimberê 1749

T – Você não chegou a participar dessas reuniões de compatibilização?

R – Não, eu não participo disso... Por enquanto não.

T – Você gostaria?

R – Eu já participei, nas outras empresas em que eu trabalhava, eujá participei por várias vezes dessas reuniões. Você tem ali um pré-projeto, vamos dizer assim, um pré-executivo, e você dentro dealgumas reuniões, você afina ali algumas...

T – E você participava como engenheiro de obra?

R – É, você utiliza tua experiência de engenheiro de obra, enfim,tudo que você já viu pra tentar enxergar e mostrar possíveisconflitos. Enfim, prevendo lá na frente conflitos. Você enxergando oproduto final, você já tenta se precaver na execução daquilo.

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

JL – A empresa em que eu trabalho tem como filosofia, que toda aparte de projetos, de desenvolvimento de projetos, deve ser elaboradanão pelo engenheiro de campo e sim por uma pessoa específica noescritório, que no caso é o nosso gerente, é o nosso diretor. Aelaboração desse projeto sofre mudanças, adaptações, em função dareunião entre projetistas. Porque às vezes existem interferências, emfunção delas todo mundo se adéqua pra poder chegar a um conjuntootimizado. Quando esse projeto chega em campo, o engenheiro decampo faz a sua avaliação, em nível de execução, e é passível de

170

Page 197: Tese Ta's - Capa

mudanças sim, porque o projeto, ele nunca chega a uma obra 100%.E aí normalmente, as alterações têm grandezas de bom senso, que éa experiência de outros prédios, e reclamações de clientes, sãoafinadas em campo. Assim como também têm questões técnicas,porque às vezes, numa situação de vista, o projetista, por maisexperiência que tem, ele não tem a mesma visão que a gente in loco.Então, a gente faz adequações no campo, no projeto, em campo, parao campo. Mas que normalmente não são solicitadas revisões domesmo para o projetista, porque apesar dele ter feito o projeto e nãoter enxergado, a gente não entra nesses pequenos detalhes. Porquequando você termina o prédio, o projeto não é entregue aocondomínio, e sim o edifício, o empreendimento em funcionamento.

T – Você participa dessas reuniões?

JL – Não, é muito difícil. Eu acho que deveria participar, tem certascoisas que a gente consegue minimizar, lá, mas a gente começa adar a cara do prédio no que a gente acha que é ideal, mas esqueceum pouco do lado da função do prédio. Então como a gente lidamuito com o cliente, às vezes a gente acaba colocando muita coisapor excesso, e é por isso que a nossa diretoria, nossa gerência,toma a frente disso e aí toda alteração, toda mudança que a gentefaz, a gente pede autorização em função de benefícios ounecessidades. Não é também “aqui eu faço o que eu quero”, agente tem que sempre comunicar, se reportar ao superior.

Na obra em andamento, os desenhos são solicitados, para aorganização das atividades e no esclarecimento de dúvidas a partirdos próprios elementos em construção, a partir do concreto. Depoisda primeira locação, das fundações, o próprio desenvolvimento daconstrução aglutina os trabalhos, demandando atividades esoluções, que seguem as orientações contidas nos desenhos. Paracompor o que já esteve na imaginação de tantos outros, presente nocanteiro na forma de desenhos, é necessária a elaboração tambémimaginária por aqueles que irão de fato produzir a obra. Foramcitados: gravar o projeto na memória, usar ao mesmo tempo váriosprojetos, distribuir lembretes orais sobre procedimentos e atividadesentre os trabalhadores, lembrar deles, recorrer a eixos imaginários...

Por outro lado, configura-se um sistema de construção de edifícioshabitacionais, que acaba por preencher também algumas daslacunas da representação. Um sistema que ordena os diversostrabalhos, fornecedores e procedimentos, mais claramenteconfigurados nas situações de obra do Edifício Maison Alinne e doCondomínio Parque do Sumaré.

Ralf, engenheiro residente da obra Aimberê 1749

R – É, numa prancha só, então assim, você tem excesso dedetalhamento que você fica... confuso, fica muito carregada aprancha, até o tamanho de carimbo, enfim, coisas assim que quantomais limpo o projeto, eu acredito que no campo, na execuçãomesmo ali, pro mestre, pra nós engenheiros e tal, fica uma coisamais fácil de se entender e até de gravar, o que é hoje em dia maisimportante,,você conseguir gravar as imagens ali...

171

Page 198: Tese Ta's - Capa

T – Gravar na memória?

R – Na memória, porque às vezes tem assuntos que você tem estarali com a coisa...

T – Bem na cabeça mesmo...

R – Exatamente.

__________

T – Você tava falando do desenho, que vocês estão sempre usando,recorrendo aos projetos, em todas as etapas. Mas tem alguma etapaem que ele é mais importante, mais necessário?

R – Obviamente, tudo que envolva estrutura, você tem que ter umaatenção ali, porque são dois projetos que você tem que trabalharconcomitante, que é fôrma e armação, e você tem um terceiro pontoaí, que tem que estar também sempre dando uma checada ao longodas lajes, é confrontar fôrma com arquitetura, porque às vezesacontece da arquitetura estar te pedindo por exemplo um buraconuma viga, ou sei lá o quê, um detalhe específico, coisa que opessoal da estrutura não viu, e vice-versa.

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – Fazendo projeto?

M – Não..., fazendo projeto não, isso aí é só pra arquiteto, o negócioda gente é só desenvolver o serviço, só.

T – Mas eu já vi que você dá umas desenhadas por aí, não dá?

M – Eu? Não..., umas desenhadas, quem faz é o pessoal daencanação, o pessoal da hidráulica, eu não desenho não... [uma vez,encontrei diversas pranchas de instalações soltas no canteiro, todasamassadas e com alguns rabiscos e anotações]

T – Mas você não desenha aqui na cabeça?

M – Na cabeça, na realidade, eu não desenho não, porque normalmenteeu ando com o projeto o tempo todo, estou com a prancheta,justamente porque às vezes pelo fato de que você tem que estar..., nahora que você tem que passar..., normalmente sempre tem um pessoalem cada andar, então de repente você está num andar e o cara temalguma coisa para fazer, e você não sabe de cabeça, aí você tem queestar com o projeto na mão, porque senão você fala “eu vou lá embaixopegar o projeto”, se a pessoa de cada andar que eu tiver que passar...,então eu já ando logo com a prancheta na mão, entendeu?

__________

M – Aí é doído. Que nem, quando está fazendo a estrutura do prédioe está fazendo a alvenaria ao mesmo tempo, aí é duro. Aí dói. Daí sevocê vacila, se você pensa que não, daí você está fazendo a medidadaqui, que é a medida de lá de cima, aí, Nossa Senhora!, dali apouco você põe a medida de uma parede que é a medida de umacarpintaria, Virgem! Cansei de fazer isso...

__________

T – Você chega a anotar essas coisas, pra não esquecer? [sobredistribuição das atividades]

M – Não, não precisa anotar não. Mas a maioria das vezes, no diaantes eu peço a eles pra me lembrar, às vezes, porque senão euesqueço. Muitas vezes eu esqueço...

172

Page 199: Tese Ta's - Capa

T – É muita coisa na cabeça...

M – Muitas vezes eu faço isso, eu peço pra eles, às vezes eu vou nofinal da tarde, que eu vejo que eles estão terminando, eu falo “olha,você me lembra amanhã que nós temos que fazer tal serviço”, porquesenão eu esqueço. Acontece, já aconteceu de muitas vezes, issoacontece e vai acontecer sempre, muitas vezes eu mandar a pessoa irfazer um serviço, passa alguns minutos, eu vou lá e mando aquelapessoa fazer outro serviço, sendo que eu já tinha mandado fazer,entendeu? Aí a pessoa chega pra mim “não, mas você não me faloupra fazer isso?”. Eu só ponho a mão na cabeça e falo “não, esquece...”

__________

T – Essa mudança, por exemplo, você chegou a passar pro Ralf, ouvocê já resolveu sozinho?

M – Não isso aí eu sou obrigado. Tudo que for tirar medida deprojeto, de medidas, eu sou obrigado a passar tudo pra ele, nãoposso fazer... isso eu nunca vou poder fazer...

T – E você concorda com as coisas que ele traz? Ou você já tinhapensado num outro jeito de resolver isso, e na hora que ele vemcom a resposta...?

M – Não porque a gente resolve junto. Todos esses problemas queaconteceram nós resolvemos juntos. Ele dá opinião dele, eu dou aminha, e a gente procura resolver da melhor maneira possível.Normalmente a gente sempre chega num acordo, de acordo. Se derpra gente resolver, agora se não der pra gente resolver aí tem quepassar pra frente.

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Todo dia. E... lá era casinha, era casinha geminada, era umprojetinho pra 4 casinhas, mas tudo igual, era um conjunto dividido...,era um quarteirão de 24 casinhas, era virada cada uma pra uma rua,eram 4 casinhas, duas pra um lado, duas pro outro, ia na seqüência,cada casinha tinha uma dilatação, cada 4 casinhas tinha umadilatação que dividia as 4. E o projetinho lá era ideal, não tinha jeito, agente às vezes, o cara falou “mas essa parede tem quanto?”, eu digo“tem tanto”, “mas você não vai olhar no projeto?”, eu digo “não, eu jásei...”, logicamente, eu trabalhei lá 2 anos, eu digo “isso aí eu játenho na cabeça, não preciso olhar no projeto”, mas...

T – Porque era sempre repetido...

B – Sempre repetido, mas gerou uma dúvida, tinha que olhar, nãotem jeito, o projeto é importante, gerou uma dúvida tinha que ir ládar uma olhada no projeto.

__________

B – Os três são iguais, pra mim eu interpreto tudo sempre normal,quando eu olho pro desenho eu estou vendo o que eu vou fazer...[sobre diferenças entre plantas, cortes e elevações]

T – Já dá pra ver?

B – Já dá pra ver... Isso também depende muito de como ele écolocado no papel, eu quando vejo um desenho, ou elevação..., euolho ele e já vejo o que eu vou fazer, normalmente...

__________

173

Page 200: Tese Ta's - Capa

B – Projeto pra mim é, você fez o segundo pavimento, por exemplo,você tem um prédio de 5 andares, eu fiz o segundo pavimento eunão preciso mais de projeto, porque está tudo na cabeça...

T – Aí é repetir...

B – É só repetir, qualquer dúvida, até o pedreirinho vai lá, olha aliembaixo, mede, aí vai lá em cima, coloca em prática e vai embora...

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

A – É, a gente usa..., por exemplo, da fundação a gente usa...,ferragem, e daí a gente usa também o de hidráulica, que pegaesgoto, água fria, e o de entrada de energia, aí a gente usa isso tudojunto, hora que está começando a alvenaria, aí a gente já usatambém o de estrutura e arquitetura, pra gente detalhar as janelas,as portas, tudo isso, aí a gente segue mais com arquitetura eestrutura, e da estrutura, pra gente ver cortes essas coisas assim,tudo... a gente usa praticamente quase todos ao mesmo tempo,então aí é difícil ver, o que usa mais mesmo assim é o de estrutura eo de arquitetura, da parte..., depois que sai da fundação, é isso.

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

JL – Normalmente são mais plantas, mesmo... É claro que uma elevação,ela esclarece a dúvida que a planta não nos oferece, mas a consulta étotal, quando você quer ver uma interferência, de um problema porqueque ele existe, muitas vezes você tem que verificar 5 tipos de plantasdiferentes, pra poder solucionar o problema, então vai envolver umaplanta de arquitetura, vai envolver uma planta de impermeabilização, vaienvolver uma planta de instalações hidráulicas, muitas vezes naquelamesma parede que está vendo essas duas, tem um serviço de elétricaatrás, num outro ambiente, que também pode estar envolvido com umapassagem de tubulação de dreno de ar-condicionado, então você acabatendo que fazer um conjunto de consultas pra chegar num resultado.

T – Então na verdade são compatibilizações que acabamacontecendo na obra?

JL – Sim. E 60% dessa compatibilização são problemas que vocêpode já ter passado, ou ouviu alguém dizer que passou, porque agente se fala muito, a engenharia; 20% acaba sendo conceitual, nãoligado ao problema, mas que seja uma seqüência de atividades quevocê já antevê o outro problema; e 20% do restante acabaacontecendo naturalmente. Nessas proporções...

__________

JL – O importante é assim, ficar bem claro pro pessoal, bem detalhado,bem nítido, não faltar informações básicas, que acontece, e acho que só,o resto é super tranqüilo, você pega um prédio, sai desse, vai pra outro,é sempre o mesmo conceito, não muda muito não, agora quando vocêparte pra um edifício comercial aí já é outra história, são outros sistemas,outras empresas que trabalham, diferente das que atuam no residencial...

174

Page 201: Tese Ta's - Capa

3.4Terceira aproximação: significados e limites do desenho de obra

Foram reunidas as considerações sobre os significados e os limitesdo desenho de obra a partir das entrevistas tanto dos queparticiparam da concepção dos empreendimentos, quanto dostrabalhadores dos canteiros das situações pesquisadas.

Os significados do desenho de obra aparecem como resposta àsperguntas “seria possível construir sem desenho?” e “o que é odesenho para você em seu trabalho?”, que procuram uma aproximaçãoà percepção que se tem do desenho nas relações de produção.

Nas considerações sobre os limites do desenho de obraprocuramos identificar aqueles que são determinados pelo própriomodo de produção, por sua condição de representação, pelaspossibilidades de comunicação e de prescrição do trabalho.

Sobre significados do desenho de obra

O desenho de obra aparece primeiro aos trabalhadores do canteiro,nas situações de produção para mercado, como condição para aexistência do trabalho. Se não houver projeto, não há obra. Numsegundo momento, representa mediação de relações, para além deseu uso como instrumento de trabalho. Ele significa “medida”, “lei”,“aproveitamento do terreno”, “registro”, “mapa”. Para osentrevistados que não participaram das etapas de concepção dasobras, a informação fundamental que o desenho traz é numérica ouverbal – são as medidas, cotas e as especificações dos materiais,legendas e recomendações. Tanto que um projeto “mal feito” éaquele cujas cotas não correspondem às que serão necessáriaspara a execução do “serviço” e exigem dos mestres e encarregadosficar “quebrando a cabeça” para encontrar as medidasindispensáveis para a construção. O desenho em si, linhas,hachuras, texturas, é o suporte para essas informações textuais.

Nas falas, aparece muito a noção de que “o desenho é tudo”, comoum mapa, um guia do trabalho a ser feito. “Tudo” está alirepresentado: o desenho determina o trabalho em canteiro, emmomento anterior e separado. Por necessidade de produtividade docapital e a partir da racionalização do trabalho em canteiro,promovida pelas construtoras, num processo contínuo deaperfeiçoamento de uma obra para a outra, em alguns casos apoiadopor pesquisas científicas, tanto no campo da engenharia, quanto pelaprodução de componentes e materiais, chegam determinações parao desenho, que acabam por ser incorporadas no processo de projeto.

175

Page 202: Tese Ta's - Capa

Quando indagados sobre a elaboração dos projetos executivos eem que medida foram feitos pensando-se na obra, os arquitetosentrevistados, para as situações de produção para mercado,explicitam uma preocupação com a construção, com as cotas e asmaneiras de prescrever o trabalho.

Marcelo, arquiteto do Edifício Aimberê 1749

MM – Eu falo pros arquitetos aqui, “se o desenho que você estáfazendo, se a linha que você fez, não significa..., não tem umarepercussão construtiva, ela é inútil”. Porque tem uma questão dalinguagem, que é uma espécie de prazer do desenho, de fazer umdesenho que é elaborado, que é belo, em si mesmo.

T – O desenho em si...

MM – É. E que ele é inútil muitas vezes... Mas se você vê umdesenho de produção, de uma peça metálica, por exemplo, ele équase incompreensível, sob esse ponto de vista, mas ele é odesenho que é útil para se fazer a peça. Então, eu acho que a gentetem que aprender um pouco essa lição, de fazer um desenho queele é mais informação mesmo, e menos apresentação. Porque émuito sedutor pro arquiteto. Mas eu te confesso que isso é assimum esforço que ainda não virou nada muito sistemático.

_______

MM – Então nesse trabalho com o [arquiteto Joaquim] Guedestambém, eu lembro, era o contrário, você cotava, e vocêpropositalmente não cotava algumas coisas, para que essa algumacoisa fosse conseqüência daquela que você deu. Você fixa o que teinteressa, o resto você não faz, justamente porque como a obra éimprecisa, pra ele não começar pelo lado que você não quer, e daíaquela que te interessa dar menor, por exemplo. Então você vê, essetipo de raciocínio vem daquele que justamente compreende que odesenho, no fundo, ele só serve pra ser uma ferramenta da obra, ereconhece os limites da obra, porque esse é outro problema. Aindahoje, por mais que se industrialize a construção, pelo menos no Brasil,a obra é imprecisa, o CAD é preciso, até o milímetro, e aí, como é quevocê faz? Você tem que ter algumas sabedorias, porque não adiantavocê chegar depois pro engenheiro e falar “desculpa, eu tinha pedidodois metros e trinta e dois e meio, você fez dois metros e trinta e dois”,não adianta, não vai mandar o cara quebrar por causa disso... Entãotem que ter um pouco essa esperteza. Agora, por outro lado, a genteaqui acredita cada vez mais, mas daí tem o limite do cliente, em usarsistemas o mais componíveis possível, sistemas..., não industrializados,mas que lancem mão de, pelo menos, uma série de produtos, decompetentes, deixando o mínimo possível para ser feito na obra.

Beatriz, arquiteta do Edifício Maison Alinne

Be – E principalmente eu vejo assim, o pessoal que vem direto docomputador, o pessoal que se forma direto no computador, tem umavisão muito menor do que nós que trabalhamos no projeto à mão. Eisso é uma briga que a gente tem constante com todo mundo dentro doescritório, usar papel, a gente não consegue abolir o papel, porque natela do computador você não tem a visão do projeto, você tem a visão

176

Page 203: Tese Ta's - Capa

daquele espaço. E na verdade aquele desenho é um 2D, ele não é oque você está vendo, o que você tem que ver é a obra, ele é só umarepresentação do que você quer. Então a gente tem que ver o projetocomo um todo, não o projeto como um segmento, aquela partezinha.

_______

Be – Quando a gente passa a fazer o executivo, principalmentenessa questão de cota, que eu acho engraçado, porque elescomeçam a cotar do lado de fora, aí eu olho, eu sempre falo prosestagiários principalmente “olha, se coloca no lugar do peão, comoé que ele vai medir lá fora? Ele vai pegar um andaime pra medir láfora, pra saber da parede que está aqui dentro? Não, você tem quecolocar a distância interna, o fato de você colocar a cota pro lado defora, não significa que você está cotando o externo, você estácotando o interno, mas você está limpando o desenho. Então é umaquestão de representação, pra facilitar a leitura. Mas quando vocêcota, quando você transforma o projeto num executivo, você temque se imaginar o pedreiro, dentro da obra, e daí saem todas asinformações, que informações o cara precisa pra fazer isso? Então,se coloca nessa situação...”. E aí eles começam a trabalhar melhor...

O que não significa que o desenho deixa de ser suporte paradiscursos formais e valores simbólicos, mas aproxima-se, quandodesenho de obra, de uma linguagem técnica, determinada pela formade produção em canteiro. Nas falas dos trabalhadores dos canteiros,o desenho, como representação da forma do que se deve construir,não é percebido como problema para a execução, para o trabalho. Asdecisões sobre a concepção formal dos edifícios não cabem a eles.Seu trabalho fica então destituído desse sentido de “criação”, étrabalho, em qualquer caso, não importa a forma do produto final, daobra, mas principalmente as condições objetivas de sua realização. E,nesse sentido, quanto mais simplificados os procedimentos, quantomais organizados os canteiros, em termos de materiais e ferramentas,melhores as condições para a realização do trabalho, para que aprodutividade aumente e assim o salário ao fim do mês, para aquelesque ganham por produção e que devem ter também o seu “interesse”incluído no processo de trabalho. A questão que se colocada refere-se menos ao desenho, como instrumento técnico, e mais àdistribuição dos valores produzidos, dos conhecimentos necessários,dos avanços técnicos, que no modo de produção em que se inseremfavorecem diferentemente a uns e a outros.

Dentro do que lhes cabe, onde detêm certo poder, há umaparticipação crítica, em detalhes construtivos e métodos deexecução, nas situações em que são assalariados e “vendem suaforça de trabalho”. Por outro lado, muitos construíram suas própriascasas, “bolando na mente” e desenhando no terreno seu projeto apartir do conhecimento prático. Quando produzem para si, asmediações que aparecem na forma de produção para mercado, dodesenho como obrigação, como lei, se atenuam, já que aresponsabilidade sobre a construção recai sobre eles, comoprodutores e usuários na forma de produção doméstica.

177

Page 204: Tese Ta's - Capa

A necessidade do desenho na obra aparece relacionada ao porte,tanto da obra em si quanto das responsabilidades frente a todos osagentes envolvidos, pelos diferentes conhecimentos técnicos, peladivisão do trabalho e as atribuições de cada posto.

Desenho como orientador do trabalho

Ralf, engenheiro residente da obra Aimberê 1749

T – Dessas etapas todas que a gente foi conversando, quais queusam mais desenhos, o que é mais importante?

R – Os projetos, na verdade, são café da manhã, almoço e lanche datarde pra gente. É difícil você ter um serviço que não necessite daorientação do projeto. Seja ele pra uma mera orientação ourealmente pra um detalhe mais específico. Então assim, você desdeo comecinho da obra até praticamente o final da obra, você estáusando os projetos específicos pra cada tipo de serviço, óbvio, masvocê vai utilizar dia a dia ali todo o teu pacote de informação.

__________

T – O que significa o desenho pra você, na obra?

R – Os projetos, os desenhos, pra mim são um mapa. É um mapapra mim, por onde eu tenho que me guiar pra começar e terminar, averdade é essa. Quer dizer, sem isso você não tem nada deinformação, não tem como. É a essência, na verdade, é o documentoda obra, o registro do que foi feito, antes, durante e depois.

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – É, o que é o desenho? Na obra...

M – O desenho na obra é tudo, é a forma de você fazer um serviço,porque você chega, não tem..., por exemplo, no terreno não temnada, vão dar um desenho pra você ali, você dali você vai seguindo,você vai tirar o prédio do chão pelo desenho, se não tiver odesenho, não tem nada. Então, o desenho na obra significa tudo.

Joanite, pedreiro da obra do Edifício Aimberê

Jn – O desenho na obra é aquele detalhe, é quase o serviço mesmoque a gente faz. E o desenho ali, divulga muito as coisas que às vezesvocê está confuso, naquele serviço. O desenho é pra isso, se vocêtiver uma dúvida, você vai no desenho e vê pelo desenho, se estácerto o que você está fazendo ou se está errado. Então por isso que odesenho na obra é bom, por isso. Não tem como você fazer errado.

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Eu prefiro trabalhar com projeto. Dependendo de qual tipo deobra, até, por exemplo, uma casinha comum, preciso que tenha pelomenos um rascunho, alguma coisa parecida, pra você ter umanoção do que você está fazendo... Não adianta nem eu falar pravocê que eu sou mestre, logicamente que eu estudei, me formei demestre, não sou mestre por acaso, não fui mestre formado em obra.Eu venho da obra, mas eu fui formado no Senai, tem todo um

178

Page 205: Tese Ta's - Capa

aparato. Mas eu prefiro trabalhar sempre com desenho, uma coisaque defina, pra ter também até..., como que se diz, uma noção doque estou fazendo. Aqui por exemplo, tudo que eu for fazer tem queter um desenho. Eu tenho que seguir no mínimo 90, 85% dodesenho, alguma coisa que eu preciso mudar, logicamente, que nãosou eu que tenho que mudar, eu tenho que ligar pra assessoria...,ver se pode, ver se não pode..., eles que tem que me indicar sepode ou não mudar... Mas no mais é isso. Projeto pra mim ajuda, euacho que quase na totalidade dos trabalhos.

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

JL – Ah, o desenho, praticamente ele é 80% de um apartamento, oude uma execução, porque em cima dele é que você vai fazer tudo secriar.

T – Você acha que daria pra construir sem desenho? Junta todomundo...

JL – Não, não dá. Dá uma confusão, você vai fazer um risco nopapel de pão, você vai acabar tendo que fazer algum desenho, evocê vai passar aquele papel de pão pra todo mundo, você acaboufazendo um desenho e todo mundo vai seguir o papel de pão, nadasai sem um projeto.

Tonico, mestre de obras do Condomínio Parque do Sumaré

T – E o que significa o projeto, o desenho na obra pra você?

To – Pra mim, o projeto significa pra mim o meu saber. Porque euvou construir em cima daquilo que eu tenho em mãos. Então eu nãoestou aqui pra adivinhar, eu não preciso ficar adivinhando o que apessoa está pensando, ou o que alguém está pensando, ou ficar“quebrando a cabeça” pra tentar fazer alguma coisa por contaprópria... Então, aquilo seria, vamos supor, o meu próprioaprendizado pra construir. Eu acho que significa isso, é tudo... Vocêestá com o projeto na mão você sabe o que você vai fazer, vocêlevanta de manhã, você sabe o que você tem que fazer. Então, euacho que significa isso, o projeto é importante demais, pra mim énecessário e importante.

Abrahão e José Galileu, pedreiros, e Maciel, ajudante, da obrado Condomínio Parque do Sumaré

T – Você acha que é melhor trabalhar com projeto, ou tanto faz? Ouno final o trabalho é igual?

Ab – Mas é bem bom o cabra trabalhar com projeto sabe, porque ocabra não erra nada, está tudo escrito ali no projeto, como é parafazer. Agora sem projeto, tem cara que num dá projeto pro carafazer, aí aqui, ali, o cara faz um negócio errado, quando ai ver temque desmanchar para fazer de novo. E no projeto não, o cara faztudo certo.

_______

T – A casa que vocês moram, vocês ajudaram a construir,construíram?

JG – A minha quem construiu foi eu mesmo.

179

Page 206: Tese Ta's - Capa

T – E aí, como que foi para construir a casa?

JG – A minha foi da minha mente, eu bolei...

Mc – Um projeto.

JG – Num caderno lá, do jeito que eu queria. E daí fui estudando,estudando.

T – Mas como é que faz, como é que é, bola lá direto no terreno oufaz um desenho?

JG – Não, faz um desenho no papel lá, vai estudando.

T – Vai dando as medidas...

JG – É, fiz ela sozinho, e desenhei num caderno, fui estudando, asmedidas certinho.

_______

T – E se fosse para fazer um predinho desse, dava para fazer assimtambém?

JG – Não.

T – Sem o projeto?

JG – Não, daí é difícil. É mais difícil.

T – Agora vocês já fizeram tantos...

JG – Mas é... Prédio tem mais segredo. Tem que ter mais segurança,não vou dizer que a casa não tenha segurança, mas o peso é maior.A casa não, o pesinho, pequeno que seja, o peso mesmo é só dastelhas, a madeira..., enquanto no prédio aí vai peso. Então, tem queser uma coisa bem bolada, bem estudada.

_______

T – Só para cada um falar um pouco o que acha que é o desenho naobra. Para você, pro seu trabalho, se é alguma coisa, se tambémnão é nada...

JG – Eu acho que desenho é muito importante. Eu acho que semdesenho a gente fica assim meio cego, meio perdido. E comdesenho não, já tem tudo definido ali, vai só acompanhar, prestaratenção direitinho, eu acho que a chance de errar é mínima. E semdesenho não, sem projeto, você fica meio indeciso, não sabe se vaidar certo, põe e depois vai ter que tirar. E no desenho não, vocêolha no desenho você vai ver o que está ali, definido, tem quecolocar ali e está certinho, é só seguir.

_______

T – Mas quando você fez a sua casa, você não usou desenhodesses de engenheiro, mas mesmo assim deu certo...

JG – Deu certo, bolei lá e fui estudando, falando olhando para ele edeu certo. Fiz a minha casa assim, até porque para fazer umdesenho ia ficar meio caro, ter que pagar um arquiteto, cobram bemcaro, às vezes até o valor da casa, aí não compensa. Daí, é tirar damente mesmo, fazer, ver se dá certo.

_______

Ab – Eu acho que o desenho é muito bom, porque pro cara construiresses prédios, que nem aqui, sem o desenho o cara não conseguefazer de jeito nenhum, sem o desenho ele não faz. Se for levar a

180

Page 207: Tese Ta's - Capa

olho assim, depois o cara vem com desenho, aí está tudo errado,que no desenho ali o cara já leva tudo certo.

_______

Bi – E você acha que tem desenho diferente, desenho que é maisfácil de entender, desenho que é mais difícil...?

Ab – Tem desenho que é bem fácil do cara entender e tem desenhoque é bem difícil. Tem desenho que é fácil demais, ali no papel jámostra tudo, parede, como vai fazer tudo. Tem uns que só vêm unsriscos, pro cabra tirar dali e fazer medida no metro, na escala, fazermedida de milímetro, de metro, para achar as medidas tudo... Vemsó riscado ali, então o mestre que se vire para medida do prédiotodinho. E tem desenho que já vem prontinho, as medidas tudinho,os números como é tudo, os tamanhos dos apartamentos, osbanheiros, tudo, já vem indicando. E tem uns que não vem nada,vêm só os riscos pro cabra tirar na escala.

Desenho como medida

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – Por quê? O que tem, o que falta?

M – É porque... na realidade, aqui tem algumas partes, por exemplo,na estrutura que, tem algumas vigas que têm a medida, se vocêquiser, dependendo, eu vou ter que ficar lá na calculadora pra poderachar aquela medida. Nos outros projetos não, nos outros projetospor aí que você trabalha, você tem a medida de todas, aqui não,aqui tem muitas que você tem que estar somando. Por exemploaqui, no poço do elevador, eu não tenho uma medida, às vezes eletem uma medida por dentro, mas não tem uma medida por fora,então, não é bem elaborado. Tem muitos aí que você tem que estarfazendo uma conta, se você quiser saber um vão interno, você temque estar ali na calculadora, ou na cabeça mesmo... Os projetosaqui não são bons, não...

__________

T – E dos projetos, quais informações são mais importantes, quevocê usa mais?

M – Mais importantes? São as medidas. Se eu pegar um projeto quenão tiver as medidas 100%, ficar perdendo tempo, fazendo conta nacalculadora, então, o projeto não é bom. Concorda comigo?

Joanite, pedreiro da obra do Edifício Aimberê

T – E vocês chegam a fazer algum desenho, como que faz?

Jn – Não, desenho assim, eu nunca fiz isso, não.

T – E então vai começar a casa ali do zero, aí como que sabe ondevai ficar cada coisa, como que vai ser a casa?

Jn – É, porque aí é como eu estou falando, tem como a pessoa, senão estiver com um desenho, aí a pessoa que escolhe que medidaque ele quer. Vamos supor, se ele quer um quarto de 3 metros, elejoga 3 metros e aí já faz todo o esquadro...

181

Page 208: Tese Ta's - Capa

T – Já vai marcando no terreno mesmo?

Jn – Aí faz toda a marcação no terreno mesmo. Depois que ele fizera marcação, ele vê se o esquadro está bom, por aí que começa.Porque o meu pai também, ele é pedreiro, sabe, então a gentepegou muita informação com ele, só que ele faz mais casa só naBahia mesmo. Mas a gente trabalhava com ele, ele dava umaexperiência pra gente começar.

Desenho como obrigação, como lei

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – E você acha que seria possível construir sem desenho?

M – Sem desenho...? Ah, depende... Se construir uma casa, se umapessoa fala pra você, “eu quero uma casa com 4 cômodos, umbanheiro...” entendeu, a pessoa fala pra você, você tem aqueleterreno, se é uma pessoa que tem prática com construção, a pessoavai fazer, entendeu, mas não é o certo, porque hoje tudo você tem aobrigação de ter o desenho pra fazer. Mas é possível, dependendo,se você for fazer uma casa, logicamente, você faz, se você for fazerum prédio também...

T – É, a sua casa você fez, e sem desenho nenhum...

M – Fiz, sem desenho nenhum... Então, você faz, você faz...

T – E um prédio, você acha que dá pra fazer?

M – Se fosse permitido por lei, com certeza que dá pra fazer... Vocêfaz um prédio, você divide os apartamentos, sem problemanenhum... Sem projeto...? Lógico que faria!

T – E aí você acha que mudaria esse esquema de trabalho, da mão-de-obra, ou teria que ter um engenheiro, o encarregado, ospedreiros, os ajudantes...?

M – Teria que ter..., de todo jeito teria que ter, porque já pensou vocêchegar num prédio, pra você fazer um prédio, que nem eu estoufalando, pra fazer uma casa é uma coisa, agora pra você fazer umprédio é outra, totalmente diferente. Porque já pensou você chegarpra fazer um prédio, se não tiver um encarregado, se não tiver umengenheiro, com os peões lá pra fazer o que quiser...

T – Não sei. O que será que daria...?

M – Ah, com certeza, Virgem Maria! Com certeza o serviço ia sair, masnão ia sair um serviço bem feito, entendeu, não ia ter qualidade, comcerteza também não teria prazo... Ah, não... É igual assim, aí você fezduas perguntas, porque fazer um prédio sem projeto tem condição,agora mesmo assim, pra você fazer o prédio sem projeto você temque ter pelo menos umas duas pessoas que saibam fazer o serviço,que saibam trabalhar, que saibam comandar... Senão você não faz...

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E você acha que daria pra construir sem desenho, sem projeto,dependendo da obra?

182

Page 209: Tese Ta's - Capa

A – Olha, se for uma casa pequena, uma casa pequena dá, aí 2, uns3 cômodos, que nem tem muito aí..., dá pra construir..., mas assim,uma obra grande não dá, fica complicado, porque daí aresponsabilidade técnica, você tem que correr na Prefeitura prapegar licenciamento, a parte ambiental, tudo isso aí, tem que ser apessoa mesmo pro projeto, porque não dá, passar pela Prefeitura etudo, a fiscalização...

T – Mais essa parte toda da legislação e tal?

A – É, acompanhar isso aí daí, tem que ser tudo certinho mesmo,porque a obra também se ela passar de 60 m, ela pode ser parada,se você estiver fazendo sem projeto, sem nada, os fiscais daPrefeitura passam, eles podem embargar a obra, então tendo essaparte aí tudo certinho você não tem como ser parado...

Desenho como economia

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – Porque eu fico pensando assim, que o projeto ajuda muitotambém a saber quantidade de material, o que vem antes, o quevem depois...

M – É que o projeto, na realidade, a maioria das vezes eles usam oprojeto porque eles... Tem um terreno, aí o cara, por ali, ele vaiestudar e vai procurar pelo projeto aproveitar o máximo do espaçopossível. No caso, o apartamento, ele vai aumentar o máximopossível. Logicamente, se você for fazer sem projeto, um prédio, aívocê vai ficar meio perdido. Se for uma coisa assim que tiver umestacionamento, por exemplo, aí você já tem que pensar “o carrotem tanto, ele tem que fazer assim, assim, assado”, e o projeto ele jávem elaborado, então você não vai bater cabeça...

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – A gente também conversou um pouco, eu perguntei se erapossível, se você achava que era possível construir sem desenho,sem projeto...

B – Impossível... sem projeto é..., eu mesmo não faço, não adiantaque eu não faço.

T – E aí você falou que achava ruim, porque, primeiro você não tinhaum registro de onde estão, por exemplo, as tubulações, e depoisvocê quer fazer alguma modificação, você não sabe mais ondeestão passando os tubos, os conduítes e tal, então que o desenhopoderia ajudar nisso, e você falou também que se você já faz umesboço ali no papel, você já percebe, por exemplo, “ah, não gosteidessa parede aqui”, que é mais fácil apagar a linha no papel do quefazer a parede, achar que não ficou bom, derrubar...

B – Além de perder tempo, tem um desperdício de material... Issoaí inclusive está acontecendo numa obra que eu estou tomandoconta aqui na Casa Verde. O dono às vezes muda..., mudou umajanela 5 vezes...

183

Page 210: Tese Ta's - Capa

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – Você nunca fez casa sem projeto?

A – Já, a gente já fez, na Vila mesmo, a gente mesmo fazia, conversavacom o dono o quê que ele precisava fazer, na casa, 3 cômodos, 4cômodos, assim, a gente riscava num papel lá, a gente mesmo, e ialevantando alvenaria do jeito que..., conversando sempre com o donoda casa, a gente conseguia, já fizemos umas 4 ou 5 casas, ou mais até,e pegar o jeito, conversava com ele e via o jeito que ele queria o modeloda casa assim, e a gente ia fazendo, e tudo bem, deu tudo certo.

T – Mas aí fazia um rabisco antes?

A – Ah, a gente fazia um rascunho lá das paredes...

T – Mas já fazia lá no terreno mesmo, ou ia conversando...?

A – Não, a gente conversava com ele e dava uma chegada noterreno, pra ver como que era, e fazia lá, do jeito que ele queria,então sempre deu um bom resultado, pelo menos que aparente, eleficava contente, com a casa e com o jeito que a gente construía praele, então ficavam legal, as casas. Porque tem muitas pessoas quenão podem pagar o arquiteto, o engenheiro, pra fazer os projetos,então aí a gente mesmo faz, conversando com ele e com algumasmudanças que às vezes eles querem, sai o serviço.

Desenho como antevisão da obra

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

T – Mas que dá pra fazer... você acha que dá?

M – Tem condições de fazer sim, lógico que sim. Eu acho não, eutenho certeza...

T – Você acha que seria melhor ou pior?

M – Seria pior, você ia bater mais a cabeça, no projeto já está tudodefinidinho ali, então você pega, você vai embora... Agora, sem oprojeto, já pensou... Você tem que estar..., você ia fazer a 1ª laje evocê ia marcar as medidas todas ali num papel, de todo jeito você iater que seguir aquele papel pra fazer, estaria sendo seu projeto...Mas teria condições... Você mesmo elaboraria... Que tem condição,tem sim... lógico que tem. Desde que a pessoa saiba...

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Não sei... Sinceramente, não sei... Sem projeto... se a pessoa rabiscano chão alguma coisa, eu ainda tenho uma noção do que eu vou fazer.Agora sem isso, ah..., sinceramente, não dá pra fazer..., a não ser que euuse a imaginação e comece a construir uma coisa do imaginário, pramim é..., eu acho que seria inviável, porque não é só você construir oprédio em si, tem todo o aparato, tem esgoto, tem água, tem energia,tem tudo, cara, e você tem que pensar nisso tudo, e acho que umapessoa, pode ser um perito em construção civil, ele vai ter que precisarde um projeto, ele não vai pensar ao mesmo tempo nessas coisas, semter um projeto, eu acho que é inviável... Não conseguiria pensar em fazeruma obra com esse tanto de gente sem projeto.

184

Page 211: Tese Ta's - Capa

Desenho como registro

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E você, que fez sua casa?

B – Eu estou acabando, construindo sozinho mesmo.

T – E você fez um desenho, um projetinho...?

B – Eu tenho um mini-projeto, alguma coisa, só pra ter noção doque eu fiz. Se for desmanchar alguma coisa, a gente não ficarperdido ali.

T – Mais pra registrar...

B – Tenho fotos também, tive essa idéia de tirar fotos. Antes edepois, pra ficar arquivado aquilo ali, de repente vai derrubar umaparede, colocar uma janela no lugar, está passando um cano de águaali, ou um fio de elétrica, por dentro da parede, isso é complicado.

Desenho como saber/ poder, suporte de conhecimento técnico

Roberto, mutirante e almoxarife da obra Mutirão Paulo Freire

Ro – Quando não era de repente com o mestre, eu ia com o pessoalda Usina, eu ia atrás pra procurar saber o porquê daquilo, aí eucolocava, além das minhas dúvidas, eu colocava pra eles, “ô, nãopoderia ser dessa forma?”, eu tentava entender porque eles colocaramdaquele jeito ali, se de repente na minha visão poderia ser daqueleoutro jeito, então aí eles explicavam, falavam que é coisa técnica,porque aí não entra só você ter uma visão de querer colocar, vamossupor, eu pegar aqui a trena e eu colocar nesse ponto aqui, não, pramim colocar a trena nesse ponto aqui, tem que ter alguma..., a técnica,tem que ter uma metragem..., então tinha tudo isso, aí eu chegava iaatrás deles e falava “então, é isso daí? Então, tá tudo bem...”.

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

T – E uma obra assim, tipo a Paulo Freire, dava pra fazer sem oprojeto? Só todo mundo conversando...?

A – Não, aí não dava não, é muita coisa, é muito grande, vai ummonte de estudo, de cálculo, então pra gente não dá, tem que ter osengenheiros, os arquitetos mesmo, pra fazer, pra passar os papéis,pra gente executar, senão não tem condições não, fica meio difícil, édifícil fazer... Principalmente com estrutura metálica, que essa obraaqui foi a primeira que a gente fez de estrutura metálica em sistemade mutirão, então é muito complicado...

Joanite, pedreiro da obra do Edifício Aimberê

T – E um prédio desses, digo assim, grande?

Jn – Não, aí... Já um prédio desses não tem como você trabalharsem o desenho. O máximo que você pode fazer sem desenho é umacasa, uma casa térrea, aí sim. Mas um prédio desses... A partir doquarto andar pra cima, até o primeiro andar... do primeiro andar pra

185

Page 212: Tese Ta's - Capa

cima, se é um prédio, já tem que ter a estrutura própria pra aquiloali, então tem que ter o desenho.

T – Você diz mais assim, pra saber o tamanho das coisas?

Jn – Isso, porque talvez se você trabalhar sem o desenho, aí aestrutura do desenho de um prédio desses, ele vai pedir aquantidade que ele agüenta o peso ali do concreto, numacomparação, uma laje, tem a quantidade de ferro que ele vaiagüentar aquele peso em cima, do concreto. Então sempre, pelodesenho, você tem todos esses tipos de informação.

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

T – E você acha que essa sua experiência no gerenciamento daobra, no acompanhamento da execução, tudo, poderia contribuir,como que poderia contribuir na elaboração do projeto?

JL – Olha, existem..., como você falou, existem coisas mínimas que agente consegue visualizar, mas que não são grandes problemas, eramais nesse intuito, e ao mesmo tempo, entender porque em muitascoisas foram tomadas aquela decisão. O próprio engenheiro decampo saber porque o projetista projetou, porque raras vezes a gentechega e fala, “puxa, surtou, nesse momento...”, entendeu? Masexiste uma lógica técnica que às vezes nem chega pra gente e agente acaba tendo que executar o que consta naquela informação...

T – Mas daria para fazer de outras maneiras...?

JL – Nem sempre, nem sempre, coisas pequenas são possíveis,grandes mudanças requerem realmente o profissional projetista,porque senão a gente começa a mexer nisso, e se envolver, podemacontecer duas coisas, ou dá certo ou não. E a probabilidade de nãodar certo é maior, então quer dizer você não vai correr um risco,sabendo que você está pagando pra um profissional pensar pravocê e que está fazendo a coisa certa, na mudança que você fizer,se for grande você pode se comprometer, não num determinadomomento de execução, mas com o prédio entregue, vir a trazerproblemas que aí vão causar grandes dores de cabeça...

Desenho como instrumento de diálogo

Beatriz e Heloisa, arquitetas do Mutirão Paulo Freire

H – É porque também a necessidade do desenho, eu acho que tem aver às vezes até com a proximidade que você acaba tendo comaquela... O desenho acaba sendo um intermediário de umadiscussão, de uma conversa. Eu acho que se tem uma hierarquiaassim, que você joga o desenho na mão, e só na medida em quevocê tem dúvida, você conversa... Eu acho que talvez o desenho,algumas vezes ele era desnecessário mesmo, hoje assim, agora, quejá estamos há muito tempo, já tem um nível de conversa mais claro...

_______

Bi – Até com alguns mutirantes...

H – É... É que com os mutirantes, eu acho que hoje em dia, a genteacaba mexendo muito pouco com o desenho, eu acho que é muito

186

Page 213: Tese Ta's - Capa

mais na comunicação... Só quando às vezes na conversa parece quenão está resolvido, aí faz um desenho... Mas eu acho que essa coisade ter uma proximidade com o Batista, dele chegar na gente e a gentechegar nele, tem momentos que acho que não era..., só quando eramuito complexo, “o” sistema de drenagem, “o” sistema de água...

_______

H – Sem desenho, o que você quer dizer? Sem nenhum desenho?Porque o desenho na verdade é o planejamento do trabalho. Euacho que tem um limite que às vezes pode ser um exagero dedetalhe que muitas vezes você consegue resolver ali, mas ele é oque baliza uma obra toda, todo o orçamento, toda uma série decoisas. Ele é necessário, pra planejar a obra. A não ser que seinvente um novo instrumento de planejar, o planejamento eu achoque é importante, talvez o desenho seja uma forma dele, talvezexista outro tipo...

Bi – Também de conhecimento, porque se tivessem 100 famílias,que todo mundo soubesse calcular estaca, calcular fundação,calcular estrutura, pensar tudo isso junto, porque mesmo a gentenão ia ser capaz de construir sem desenho, uma obra daquele porte,com financiamento público, com cronograma...

Sobre limites do desenho de obra

A noção de limites do desenho de obra, como instrumento técnicodeterminado pelo modo de produção, constituído historicamente,que tem seu fundamento na separação entre momentos e instânciasde concepção e de execução na produção do espaço, encontraníveis de compreensão, de interesse para a pesquisa, ao apontarpara possibilidades no sentido da superação das contradições queo marcam. Num primeiro nível, compreendendo o desenho de obrainserido no contexto histórico, o limite é dado pelo próprio modo deprodução e suas contradições, principalmente aquelas que serelacionam ao desenvolvimento das forças produtivas, baseado naapropriação desigual dos valores produzidos socialmente. Adiscussão que se apresenta recai assim sobre a neutralidade datécnica e o sentido de seu desenvolvimento.

Em outro nível, o desenho de obra encontra limites na sua própriacondição de representação. Assim, por mais que se avance empadronização e racionalização de procedimentos e projetos ou, poroutro lado, que se reúnam as atividades parcelares em umaprancha, por exemplo, a representação gráfica estará incompleta,tanto no sentido de antever ou prescrever o trabalho de construção,quanto no de traduzir em imagens as idéias e concepçõesespaciais. Por outro lado, há várias formas de representaçãopossíveis, desenhos, maquetes, modelos eletrônicos, e váriasformas de arranjos entre esses tipos de representação que podemaproximar mais a representação gráfica do objeto a ser construído.

187

Page 214: Tese Ta's - Capa

Nesse sentido, o desenho como meio gráfico de representação doprojeto não esgota o conteúdo necessário para a construção. Oprojeto mesmo não chega a constituir unidade nas instâncias deconcepção. A unidade se dá somente na realização da obra, onde secompleta a informação gráfica e numérica do projeto comprocedimentos e gestos conhecidos e dominados por trabalhadoresdo canteiro, por seu conhecimento prático. São constantes as“falhas” e “incompatibilidades” que requerem “modificações”,“adaptações” e “alterações” de projeto ao longo do processo, dediversas maneiras. Às vezes, essas modificações são feitas sem anecessidade da mediação do projeto, realizadas em conversas entreengenheiro, mestre e encarregados de obra, pedreiros, que percebemproblemas e os solucionam mentalmente, abstratamente. Em outrassituações, são simuladas soluções por meio dos próprios elementosda obra, blocos, tábuas, tubos, concretamente, também em conjunto.

O desenho como medida para a obra requer cotas pensadas para aconstrução. A lógica de elaboração do desenho não é a mesma daexecução das fôrmas de tábua, por exemplo. Há distinção entre ascotas de projeto apresentadas e as cotas de obra necessárias. Oque em algumas situações deixa para o canteiro, ao menos para omestre de obras, a elaboração da medida de execução.

Como prescrição para a obra, o desenho deve representar umatécnica construtiva que pressupõe conhecimentos específicos parasua execução, sobre produtos e procedimentos, onde tambémencontra um outro limite. Por outro lado, a distribuição das tarefas,por exemplo, prescinde da mediação do desenho. Ao determinaruma técnica construtiva, as medidas e os materiais, as atividadesestão pressupostas e assim, uma vez que a obra é iniciada, opróprio trabalho, inerente a essa técnica construtiva, demanda umaseqüência de atividades próprias a sua realização.

Ralf, engenheiro residente da obra Aimberê 1749

T – Você acha que com esses imprevistos, essas alterações, vocêsacabam tendo que projetar aqui no canteiro?

R – Não, projetar não. Mas você por algumas vezes tem que adaptar oque está no projeto pra prática. Quando você tem um projeto, seja emtodos os setores da obra, quando você vai lá do comecinho, quandovocê afina ali todo mundo, amarra todas as informações, quandochega esse ponto de você ter que modificar um por um, obviamente jáse passou um tempo do início do empreendimento, então, o queacontece, coisas que você na ocasião do comecinho ali, você tinhabem esclarecido, do projetista, você obviamente acaba esquecendo,então você vai adaptando. Cada vez que você vai adaptando o que jáfoi adaptado, adapta de novo..., então tem coisas que na prática, nahora de você fazer mesmo, “aqui, não vai dar certo”...

T – Apesar de estar lá projetado, no desenho e tal, na hora do“vamos ver”...

R – É, na hora do “vamos ver” não funciona. Então você tem que daruma última adaptadazinha ali pra coisa virar.

188

Page 215: Tese Ta's - Capa

T – E tem coisas que você faz com autonomia, não precisa...

R – Tem coisas que pela vivência, pela experiência você sabe quenão vai gerar ônus nenhum pra ninguém, é como a gente costumafalar “faz parte da obra”, coisas que não desagregam nada.

Mauro, encarregado geral da obra do Edifício Aimberê 1749

M – É, o mais normal é quando você faz uma estrutura, às vezesquando você vai mexer com a parte de acabamento, que é no casovocê vai fazer uma parede, às vezes tem algum problema, aquelamedida não bate, a medida da estrutura não bate com a arquitetura,esses são problemas que normalmente acontecem na obra.

T – A medida do desenho mesmo, do projeto, que é diferente? Aí nahora que vai juntar os dois na obra...

M – Aí num bate um com o outro, aí tem que passar pra ele, pra elepassar pro arquiteto pra ver o que faz.

T – E porque será que a medida não bate?

M – Eu, pra dizer pra você, muitas vezes é uma falha de quem faz oprojeto, uma falha de atenção, uma coisa que acontece mesmo, nãotem como o cara fazer 100%, não tem como ele acertar tudo 100%.

T – Você acha que poderia ser mais fácil...? Porque como a pessoanão está na obra, vendo como é no dia a dia a construção...

M – É, aquele negócio, a maioria das vezes acontece isso aí porqueo cara que está ali ele sabe fazer o desenho bem, mas só que elenão pensa bem muito na hora de executar o serviço, então pra fazerno projeto ele sabe, só que na hora da execução às vezes dá umafalha. Se o arquiteto vem aqui, ele sabe que tem que ser aquelaparede, sabe que tem que ser daquele jeito, mas ele não vai sabercomeçar e não vai saber terminar, na hora de passar o serviço,entendeu, então aí é a grande diferença...

_______

T – É mais essa rampa?

M – Agora essa rampa aí..., pelo amor de Deus!

T – É, eu estava olhando ela... complicadinha, não?

M – Você olhou por baixo, se você olhar por cima aí que você vêmais ainda. Depois você dá uma olhada por cima...

T – Depois queria ver o desenho também. Eu perdi a parte quevocês estavam fazendo a fôrma, locação...

M – É, a gente viu o desenho, sem problemas..., é complicado, issoaí é complicado.

T – E aí você quebrou a cabeça pra entender?

M – Bastante! Porque tem algumas medidas que não dá no projeto.Então teve algumas medidas que eu fui obrigado a pedir pro Ralf eele puxou do computador... Aí passou pra mim.

_______

M – Não, o de cá. Esse de cá, o cara no projeto ele colocou a medidade um tubulão, colocou aquele eixo daquele tubulão, só que ele fezaquilo ali, mas com certeza ele não deve ter vindo olhar a obra, entãoa parede do vizinho não é alinhada, aí se você fosse seguir peloprojeto não ia dar, aí você tem que fazer, bolar isso na obra.

189

Page 216: Tese Ta's - Capa

Heloisa e Beatriz, arquitetas do Mutirão Paulo Freire

H – Altera muita coisa do desenho, que está ali, tem coisa que euacho que a gente talvez nem esteja mais reelaborando tanto nodesenho da COHAB. Porque eu acho que a gente acaba...,reelaborando lá, junto com ele [Batista, mestre de obra], e ele tambémvai falando, “ah, eu achava que assim podia ser melhor, assado...”

Bi – O desenho, ele é mais utilizado nas primeiras etapas, até aexecução da infra predial... Pra locação, pra parte de fundação,bate-estacas, até depois que a estrutura já estava pronta, aalvenaria, usou bastante...

H – É, porque exige uma precisão também maior, acho que é umnível de desenho que..., a estrutura é milimétrica, a alvenaria, vocêtem uma precisão maior, agora essa parte de infra, infracondominial, é muito mais questão de saber por onde caminha, doque os centímetros...

Bi – Como o terreno é muito apertado, os desenhos de infracondominial, foram feitos basicamente por 2 escritórios, e aí tevemuita interferência de um no outro, então muita coisa a gente teveque rearranjar ali na obra, porque o terreno é apertado e aí a melhormaneira de resolver a interferência era ir pro canteiro mesmo...

Batista, mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

B – Exatamente, e das estacas, eles estão em folhas independentes,vou te explicar melhor aqui, porque assim não dá pra... [pega osdesenhos com o projeto dos muros de arrimo que estão sendoexecutados agora, no pé dos edifícios] Então, por exemplo, isso aquió, essa medida aqui ó, eu tenho que estar fazendo umas continhas,porque ela não está..., batendo daqui, aqui, mas daqui a aqui eutenho 80, eu tenho um eixo aqui, esse eixo é imaginário pra mimaqui, lá é imaginário, eu tenho que estar sempre trabalhando comessa referência aqui ó...

T – Tá, entendi, aí falta essa medida...

B – Exatamente, falta esse espaço aqui...

T – E esse eixo está sem referência também?

B – E eu tenho essa medida aqui, mas aqui ó [mostra outrodesenho]. Então, 0.48, 0.41... Então, tem que estar semprefolheando isso daqui, se tivesse lá [na outra folha] estaria mais fácilda gente trabalhar... Mas tudo bem, isso aqui é coisa que...

_______

T – E além de conferir, de você estar usando o projeto pra conferir,pra fazer a marcação, o projeto te ajuda a distribuir as tarefas, a vero que é atividade de cada um, das equipes de trabalho, como queorganiza essa divisão das atividades?

B – As atividades a gente vai vendo no decorrer da semana, porexemplo, chegou final de semana passado e “ó, tem essa frente,tem essa outra, tem alguma coisa que ficou pra trás da semana...,por exemplo, aquele muro que a gente não tinha terminado, temaquela frente...”, e isso vai surgindo na semana, eu vou vendo, voutrabalhando com o pessoal e já vou dando uma olhada no que vaiprecisar fazer no final de semana, e é isso.

190

Page 217: Tese Ta's - Capa

Roberto, mutirante e almoxarife da obra Mutirão Paulo Freire

Ro – Eu vejo assim, o arquiteto, a pessoa que faz o projeto, elatem uma visão ali do projeto, mas você acaba achando problemasou defeitos no dia a dia, porque você entrega a planta, na planta éuma coisa, no construído, uma coisa definida, é outra. Porque aíque você vai ver se dá certo ou não, tanto é que aqui mesmo, euconversei com o arquiteto, ele mudou a parte de hidráulica,porque eu analisei, olhando a minha visão, pra mim estava erradaa parte de hidráulica.

T – Você percebeu isso como?

Ro – Eu percebi isso, meio assim..., é porque você tem o dia a diaseu. De casa, da sua casa, isso pra você ver, na parte de hidráulica,foi referente ao banheiro. Aí eu vi que a maneira que estavacolocando a hidráulica, no banheiro, não passaria o rodo, porexemplo, vamos supor, o ralo estava numa posição, que você iapuxar a água do banheiro depois de um banho, o rodo não iaconseguir levar a água aonde estava o ralo, o rodo não ia passar,então quer dizer, você tinha que se abaixar e secar com o pano...! Aíeu falei assim “não tem lógica isso!”. Aí eu conversei com o pessoalda Usina, e ele pegou, e realmente viu que o negócio estava erradoe fez uma modificação, na planta. Então, quer dizer, acho que umacoisa vai puxando a outra.

T – Mas você percebeu isso vendo a planta ou quando já estavamfazendo?

Ro – Eu não tinha visto a planta de hidráulica. Eu comecei aconhecer a planta..., é..., na verdade a planta que eu comecei aconhecer foi na fundação, eu comecei a conhecer planta nafundação. A parte de hidráulica, eu só fui ver esse defeito depois,quando tinha feito o primeiro térreo, aí eu vi a planta, peguei,conversei com o pessoal da Usina. Não foi assim de... eu olhar aplanta..., antes de fazer lá, não, fizeram errado, o térreo, aí eu vi aplanta, e falei assim “poxa, tem como mudar isso?”, porquesinceramente pra puxar..., eu no banheiro, puxar..., porque vai sertudo igual, do térreo até o último andar, não vai ter mudança... Aíeles pegaram, “não, tem como mudar, realmente, você estácerto”. Teve uma outra coisa também, antes da gente..., apesarque o projeto mudou razoavelmente bastante, os nossosapartamentos... Mas uma coisa que eu também vi, quando agente começou a ver esse negócio do projeto dos apartamentos,o Pedro..., comentou com a gente, como que a gente gostaria quefosse o nosso apartamento...

_______

Ro – [...] Agora, no mutirão, quando era final de semana, quando erameu dia de grupo, por exemplo, digo, estou falando por mim, nãovou falar pelos outros, eu, como você já veio durante a semanatrabalhando, eu não precisava pegar a planta, porque eu já sabiaonde que ia, onde que não ia, aí quando dava um branco eu pegavaa planta, sempre a gente estava com a planta, sempre a plantaacompanhava a gente...

191

Page 218: Tese Ta's - Capa

Ataíde, fiscal na obra da Universidade Federal do ABC, ex-mestre de obras do Mutirão Paulo Freire

A – Não, porque sempre ele vai estar ajudando, ele vai orientar o que agente vai fazer, que a gente vai ter que sempre estar acompanhando oprojeto, então a gente vai, o mestre de obra, assim, os pedreiros, elesnão podem mexer em nada no projeto, então você tem que estar com oprojeto todo dia, você tem que estar olhando, porque sempre temalgum detalhe dele que às vezes..., que não pode deixar passar, aresponsabilidade é grande e quem assina é sempre os arquitetos e osengenheiros, que é responsável pelo projeto, então a gente tem queestar acompanhando por causa da confiança deles e pra não fazernada errado do que está ali, pra não complicar ninguém, se você fazalguma coisa lá que não está de acordo com o projeto vai dar problemadepois, a não ser que seja alguma mudança que os arquitetos vai, faz,pode querer mudar, aí ele passa pra gente fazer, a gente conversa etudo, mas por conta da gente, a gente não pode fazer nada.

T – Mas pode ter o contrário também, você está fazendo, seguindolá o projeto, aí vê que tem um jeito melhor de fazer...

A – Sim, mas aí é o jeito de trabalhar, às vezes você pode mudar omínimo assim, o jeito de você trabalhar, mas em relação a mexer noprojeto a gente não pode mexer, aí o jeito de você trabalhar pode, àsvezes tem uma parede lá que ele está fazendo de um jeito, está noprojeto lá, você pode só executar ela diferente do que está ali,assim, por exemplo, você colocar os arranques a mais, a tela, porexemplo, conversa com os arquitetos e solda os grampinhos deferro mesmo..., então sempre alguma coisinha assim a genteconversa com eles pra favorecer o andamento da obra, não assimpra dizer que está mudando, só o jeito de trabalho mesmo, quemuda. Mas a execução, sempre é aquilo que está no projeto.

A padronização de projeto, que repercute nos procedimentos deobra, também encontra seus limites, seja pela alternância da equipeque participa na elaboração dos desenhos, seja pela variabilidadeda “forma canteiro” de produção, dada pelas condições naturaisdos terrenos ou pela legislação urbanística. O que acaba por reiterara necessidade do desenho no canteiro, já que este é elaborado emmomento anterior e separado, por outros agentes, limitando otrabalho em procedimentos repetitivos.

Beatriz, arquiteta do Edifício Maison Alinne

T – E você acha que em geral essa relação do projeto com obra,nesse setor, habitacional, está acontecendo de um jeito legal, temcoisas que poderiam ser melhores...?

Be – Eu acho que a gente está bem, porque o que a gente recebe defeed-back das construtoras eu acho que é bem legal, principalmenteessas que têm os padrões, elas criaram os padrões exatamente porcausa disso, pra facilitar a obra. Então quando eu comecei atrabalhar, eu ditava as regras, hoje eu recebo as regras. Pra gente émais difícil trabalhar? É, mas com certeza pra obra é mais fácil...

T – Mais difícil porque tem que seguir o padrão?

Be – Porque você me pede uma coisa, e o vizinho pede outra, entãoeu tenho que trabalhar de uma forma pra você e pro outro cliente eu

192

Page 219: Tese Ta's - Capa

tenho que trabalhar de outra forma... Então isso dentro do escritórioé bastante complexo, porque quando você padroniza, acaba virandoMcDonald’s, fica uma coisa mais fácil, mas assim, o que a gentesente é que dá melhor resultado quando é padronizado pelaconstrutora. Porque o resultado final é o que interessa...

T – E cada trabalho é diferente do outro...

Be – Não, cada projeto, é uma coisa impressionante, eu, porexemplo, agora, eu estou fazendo dois projetos que são juntos, olote H e o lote I, que são vizinhos. Se você olha o folder de um e deoutro é a mesma cara, você pega o projeto de um, o projeto deoutro não tem nada a ver. O andamento do projeto de um e de outrotem sido diferente, porque problemas que a gente encontrou nahidráulica de um, não encontrou no outro, porque a planta édiferente, então a planta te diz os problemas que vai trazer. Entãomesmo que tenha a mesma carinha, e que nem você falou, você viulá que era o mesmo conceito de projeto, a fachada, ela pode sermuito similar, mas na hora que a gente vai fazer o projeto, ele nãotem nada a ver. Porque a estrutura é outra, a hidráulica é outra, eaqui tem uma coisa bastante interessante, porque agora a gentecomeçou a fazer bastante projeto fora de São Paulo, então o mesmoprojeto que a gente tem aqui, a gente leva pra outro estado e asnecessidades são diferentes, então a forma de construir é diferente,então eu posso pegar a mesma planta, a prefeitura vai ser a mesma,mas o executivo vai ser totalmente diferente...

José Luiz, engenheiro de obra do Edifício Maison Alinne

T – Você acha que em linhas gerais, os projetos, pensando em cadaespecialidade, eles estão suficientes para representar uma obra, praorientar a execução?

JL – Sim, normalmente sim, eles atendem às expectativas, e o fato defaltar algo, numa primeira obra que você faz, você até ficaimpressionado e critica bastante, acaba acontecendo na segunda,acaba acontecendo na terceira, não os mesmos problemas, mas àsvezes na mesma linha de raciocínio, no mesmo segmento, você releva evira as costas e fala “ah, vamos trabalhar e a gente sabe o que fazer”.

Maurício, diretor de obras da construtora da obra CondomínioParque do Sumaré

T – O projeto das lajes, por exemplo, das fôrmas e tudo isso...

Mr – Tudo calculado, tem um projeto específico, tem um projetoespecífico, o pessoal recebe...

T – Mas é específico dessa obra ou nesse caso já é um projeto...

Mr – Não, ele é revisado pra cada obra, pra ver se cabe, porque àsvezes, eu tenho diferença de vãos, tenho uma mudança de tamanhode um cômodo ou outro, então, pra cada obra ele é revisado,recalculado, se precisar, porque às vezes muda também o tipo dematerial, a empresa de aço não tem mais aquela tela naquelepadrão, mudou a tela, então nós temos que consultar o estruturistapra fazer a alteração da tela, da armadura, pra fazer a alteração doprojeto. Então, todo projeto tem uma revisão.

193

Page 220: Tese Ta's - Capa

Tonico, mestre de obra do Condomínio Parque do Sumaré

T – Era mais uma dúvida assim, porque com essa coisa dapadronização e do projeto padrão, às vezes me dá a impressão que otrabalho vai ficando mais repetitivo, porque é tudo mais ou menosigual, ou muito parecido, e que não precisa mais quase ter o desenho...

To – Não, aí que é o problema, tudo bem, você vai chegar uma horaque realmente, pra conferir, por exemplo, você não precisa estartoda hora com o desenho na mão porque você vai ter asinformações, dentro do serviço, na mente. Mas é o que eu estoufalando, geralmente, a gente tem que ter, tem que trabalhar assim,porque gera uma dúvida, ou você volta 500 m lá, 100 m lá noescritório pra buscar um projeto, ou você acaba deixando a dúvidapra lá e faz errado, então é melhor você andar com ele, estar comele, porque se gerou a dúvida você já olha, “não, realmente, aqui euestou fazendo certo, ou aqui eu estou fazendo errado”. É isso queeu procuro sempre estar passando pros encarregados, cuidandocom isso aí, entendeu? Na dúvida, não faça, espere, vai atrás doprojeto, vai atrás do engenheiro ou vai atrás de alguém que vai teorientar, e fazer pra desmanchar é complicado...

Abrahão e José Galileu, pedreiros da obra do CondomínioParque do Sumaré

T – E vocês começam usando mais o desenho?

Ab – Não, os desenhos agora não está precisando mais.

JG – Os desenhos agora não está necessitando não, muito não,porque o desenho só na primeira debaixo, na primeira fiada.

Ab – Na hora que está fazendo a marcação sabe?

Bi – Depois é só...

JG – Depois da marcação não tem como errar.

Bi – Tem a canaleta pra errar...

JG – Tem que seguir aquilo que está ali.

Bi – E a canaleta? Já sabe?

Ab – Não esquece não, não esquece não.

JG – Quando chega naquela certa altura você já sabe que tem quepôr canaleta e já está tudo, como é que se diz, memorizado, tudo nacabeça.

194

Page 221: Tese Ta's - Capa

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Page 222: Tese Ta's - Capa
Page 223: Tese Ta's - Capa

O desenho de obra como objeto de análise da produção material dearquitetura possibilita reconhecer determinações recíprocas entreprocessos de projeto e de obra, ambos sujeitos ao modo deprodução em que se inserem com diferentes graus de heteronomia.Assim, desenho e canteiro, como formas produtivas, fazem parte deum mesmo processo, como momentos distintos, mas relacionados,da produção do espaço. O desenho de obra, dessa forma, consistena representação de uma técnica construtiva em sentido amplo.Representa não apenas os materiais construtivos e a forma de suaorganização, mas também as relações sociais de produçãohistoricamente constituídas.

A compreensão teórica do objeto – o desenho de obra na produçãoda arquitetura –, a partir das primeiras referências conceituais,abordadas através das obras de Jorge Sainz e, principalmente, deSérgio Ferro, permitiu levantar questões para o seu estudo histórico.De um lado, um processo que leva à constituição de um “campográfico arquitetônico” composto por um repertório gráfico do qual oarquiteto se utiliza para comunicar e expressar suas idéias. Esse“campo gráfico” específico se distingue de uma linguagem gráficameramente técnica por incorporar valores artísticos do desenho. Deoutro lado, e ao mesmo tempo, a constituição dessa linguagemgráfica, técnica, baseada em conhecimentos teóricos abstraídos daprática construtiva, contribui para uma organização mais racional daprodução e assim para o avanço das forças produtivas, no sentidoda acumulação e da produção de riquezas, na passagem doartesanato à manufatura, e da manufatura à indústria. Essalinguagem técnica possibilita antever, projetar os produtos e assimplanejar e controlar sua produção, contribuindo para a diminuiçãodo tempo de execução necessário, por exemplo.

A separação entre momentos e instâncias de concepção e deexecução na produção do espaço, que fundamenta o desenho deobra, se completa com a institucionalização do ensino e da profissão,da engenharia e da arquitetura, que se apropriam dessa linguagem, e

197

Page 224: Tese Ta's - Capa

é acompanhada pela dissolução das corporações de ofício e seusistema de aprendizagem, pelo menos para aqueles a quem cabe aconcepção. Além da distinção entre proprietários e não-proprietáriosdos meios de produção e dos produtos, da terra e das condições daprópria (re) produção, configura-se uma distinção entre trabalhadores“qualificados”, que têm acesso aos meios formais de educação, e“não-qualificados”, cuja formação acontece empiricamente. Ambasas distinções sustentam a reprodução do modo de produção,contribuindo para a organização hierárquica na divisão do trabalho epara uma determinada forma de gestão do processo produtivo, aoatribuir poderes diferenciados a cada posto de trabalho.

Essa separação marca então a forma manufatureira em que aprodução de arquitetura está baseada. O desenho de obra, fruto doprocesso de projeto que orienta a construção, se conforma, dessamaneira, à “forma canteiro” de produção, como uma forma demanufatura específica pela variabilidade dos valores de uso queproduz, que repercutem numa variabilidade de seus valores detroca. As especificidades da “forma canteiro” de produção queadvêm da variabilidade de seu produto, da sua nãohomogeneidade, em termos de uso (habitacional, equipamentosurbanos, infra-estruturas etc.) e também pela condição de sualocalização (aspectos físicos do terreno, legislação urbanística eedilícia etc.), implicam em especificidades do desenho, comoinstrumento utilizado em sua produção. E assim, o desenho comoinstrumento técnico que participa dos processos produtivos emgeral, da indústria e da manufatura, começa a aparecer em suasespecificidades para o campo da arquitetura. Por um lado, odesenho é instrumento da busca por aumento de produtividade,pela racionalização do trabalho e pela padronização decomponentes, projetos e procedimentos, característica que não odistingue de outros desenhos para a produção. Mas, a nãohomogeneidade dos valores de uso, das formas e das funções,produzidos em canteiro, solicita, além da busca por ganhosquantitativos, principalmente pela redução do tempo de produção,uma abordagem qualitativa ao lidar com as diversas variáveiscitadas, a fim de realizar esses ganhos quantitativos. Ou seja, namedida em que a padronização de componentes e de projetos nocampo da arquitetura se coloca diante de limites mais estreitos, odesenho deve lidar com uma margem maior de “criação”.

Essa formulação possibilita entender a produção de arquiteturacomo um processo que, ao estar baseado na forma manufatureiraque se apóia na habilidade artesanal dos trabalhadores na produçãode produtos variados, implica em espaços não dominados, emaberturas, onde cabem experimentações em vários níveis. Implicatambém em uma distinção do desenho no campo da arquiteturaque, ao se situar entre técnica e arte, atribui ao desenho um duplocaráter de simultaneamente representar meio de comunicação e

198

Page 225: Tese Ta's - Capa

expressão, aproximando-se de uma linguagem gráfica, e umaintenção, um projeto, um ato criativo. O desenho de arquiteturadessa forma é suporte de discursos formais e estéticos e de valoressimbólicos, que por vezes escondem ou ignoram as determinaçõesconcretas da própria arquitetura e o sentido técnico e político dodesenho na divisão do trabalho, contribuindo para sua aparenteautonomia em relação aos processos produtivos.

A aparente autonomia do desenho em relação às determinações domodo de produção pode ter então um de seus fundamentos naprópria variabilidade dos valores de uso produzidos pela “formacanteiro” que solicita a cada projeto novas soluções criativas. O quenão significa que o desenho deixe de ter caráter de controle sobre aprodução em canteiro, nem que as decisões sejam tomadas pelosprojetistas de forma autônoma. O desenho, como “corporificação”da heteronomia do canteiro, é também heterônomo, determinado defora e em momento anterior.

A percepção de uma dicotomia entre desenho e canteiro, com apreponderância de um sobre o outro, fruto do processo histórico deseparação entre quem concebe e quem executa as obras eminstâncias distintas, remete à crítica do desenho como discursoideológico. O desenho pode ser instrumento de emancipação, masda forma como está determinado pelo modo de produção configura-se em instrumento de controle sobre a produção em canteiro. O quenão significa que o desenho, como instrumento técnico, seja neutro.A crítica colocada dessa forma deixa a entender que o desenho emsua aparente autonomia poderia desempenhar outro papel naprodução. O que acaba por não esclarecer as determinações dopróprio desenho, como forma produtiva, que também é heterônoma,determinada pelo modo de produção.

A pesquisa histórica aponta nas diversas passagens para asdeterminações recíprocas entre desenho e canteiro na produção doespaço construído. A necessidade de sistematização dos saberespráticos em uma ciência do desenho se coloca no sentido deaumentar a produtividade no avanço das forças produtivas. Oaumento da produtividade pelo uso do desenho se dá, por um lado,com um aprimoramento do trabalho em canteiro, dado pelapossibilidade de antever e, assim, de planejar a construção a partirde uma racionalidade técnica. Por outro lado, o uso do desenhocomo instrumento permite maior coordenação e, assim, maiorcontrole sobre o trabalho em canteiro, refletindo uma maior divisãodo trabalho, marcada pelos processos de institucionalização doensino e das profissões.

As implicações para o desenho de obra e para a produção dearquitetura, a partir do reconhecimento de que canteiro e desenhose determinam reciprocamente, puderam ser observadas nas quatrosituações de canteiros de obras residenciais pesquisadas, quais

199

Page 226: Tese Ta's - Capa

sejam, o Mutirão Paulo Freire, o Edifício Aimberê 1749, o EdifícioMaison Alinne e o Condomínio Parque do Sumaré.

Enquanto o Mutirão Paulo Freire e o Edifício Aimberê apresentamnos projetos uma maior preocupação arquitetônica, com a inserçãourbana e paisagística, aproximando-se de obras únicas, fruto de umprocesso específico de concepção, nos processos de projeto doEdifício Maison Alinne e do Condomínio Parque do Sumaré é maissignificativa a adoção de soluções padronizadas, em vários níveis,desde detalhes construtivos até tipologias de plantas. Essesaspectos se relacionam com a forma de produção em canteiro e,nos casos do Mutirão Paulo Freire e do Edifício Aimberê, parecemser determinados com maior participação daqueles que concebema obra. Ou seja, no Mutirão e no Aimberê as determinações deprojeto, na escolha dos materiais e sistemas construtivos, pareceminfluir sobre as determinações de obra, sobre o trabalho emcanteiro, que no caso do Maison Alinne e do Parque do Sumaréconstituem parâmetros anteriores ao projeto, desde o início doprocesso de concepção, como procedimentos e padrões.

Nesse sentido, aparecem distinções entre as situações nosprocessos produtivos da obra que influem nas determinações doprojeto. Na situação do Mutirão, que não está orientadaestritamente pela busca de produtividade, mas onde os avançostécnicos são apropriados de forma coletiva pelos produtores-usuários, o desenho se coloca como um instrumento de diálogo ede planejamento, em que as decisões são compartilhadas durante oprocesso de projeto, levando-se em consideração o processo deobra. Para o Edifício Aimberê, se configura uma produção paramercado específica, que valoriza o projeto em seu sentido“artístico” e, portanto, não parte de soluções estritamente“técnicas”, definidas pela produtividade em canteiro. Apadronização de desenho, feita fora do canteiro, a partir doconhecimento científico e da observação da produção, na buscapor aumento de produtividade, acaba por determinar o próprioprocesso de projeto, nas situações do Edifício Maison Alinne e doCondomínio Parque do Sumaré, que atingem maior escala naprodução para mercado. O desenho, nesses termos, se afasta daidéia de desígnio e assume mais claramente o seu papel dedeterminante da forma de produção em canteiro, que por ser maisprogramada e repetitiva faz parecer até que o desenho deixe de sernecessário. Porém, a necessidade do desenho se mantém, pelavariabilidade da produção, a qual tenta também controlar, e aomesmo tempo por se tornar cada vez mais prescritivo dasatividades a serem realizadas em canteiro, justamente porque sãorepetições de algo que é determinado de fora e que chega aocanteiro como ordem que deve ser seguida.

Do ponto de vista dos trabalhadores dos canteiros, nas situaçõesde produção para mercado, o desenho é instrumento de trabalho

200

Page 227: Tese Ta's - Capa

que orienta a execução e deve ser seguido à risca. Apesar dodesenho de obra ser o que menos carrega significados em si, tendoum caráter descritivo da obra a ser feita, em linguagem técnica,sendo apenas meio de produção, constitui o que representa oprojeto, e, portanto, o seu significado, no canteiro. Se olharmos apartir do canteiro, o desenho de obra é projeto, pois é o únicoindício das intenções dos autores. Em canteiro, o desenho não épercebido com “duplo caráter”, o caráter dele é de instrumento detrabalho, orientador, medida, lei, assumindo, portanto, outrossignificados. A percepção sobre o desenho como projeto, forma,não influi no trabalho a ser feito, que é determinado pela técnicaconstrutiva. E, já que o desenho é ordem, orientação, quanto maiorsua precisão, de exatidão das medidas, por exemplo, melhor para arealização do trabalho.

A configuração de diferentes sistemas construtivos para asedificações residenciais, percebida nas situações do Edifício MaisonAlinne e do Condomínio Parque do Sumaré, conta assim com umapadronização dos projetos, em detalhes construtivos ou emtipologias de plantas, feita pelas incorporadoras/ construtoras, querepercutem na forma de produção do projeto e em uma maiordivisão do trabalho. No processo de obra, esse mesmo movimentobusca a pré-fabricação de elementos, a partir de soluçõesdisponíveis no mercado que são testadas e aprimoradas emcanteiro e que, nesse sentido, contam com o conhecimento dostrabalhadores para que esse “sistema” se complete.

Como instrumento que possibilita o controle e o planejamento, tantopela retirada de conhecimentos práticos, substituídos por suateorização, quanto pela possibilidade de fragmentar as atividades eordená-las de determinada forma, o desenho pode assumir diversosusos, observados nas situações pesquisadas, principalmente naexperiência do mutirão autogerido. O que coloca a questão sobre aneutralidade dos instrumentos técnicos, em si, que podem, aoassumir diversos usos, assumir diversos sentidos políticos. Odesenho como forma de produção, na medida em que se insere emum amplo e complexo campo de relações, constituídohistoricamente, assume as contradições do modo de produção,mas talvez não seja determinante, em si, daquelas mais agudas.

Como representação de uma técnica construtiva, o desenho deobra está determinado por relações sociais e faz parte dessatécnica como um de seus instrumentos, marcado pela separaçãoentre instâncias de concepção e de execução, pela divisão dotrabalho nos processos produtivos, pelos conhecimentos requeridospara a execução da obra, pelos materiais disponíveis, pela forma desua ordenação. A discussão sobre a neutralidade do desenho,como instrumento técnico, deve se dar à luz desse contexto e secoloca na própria discussão sobre a neutralidade da técnica, que sótem sentido quando inserida num contexto histórico.

201

Page 228: Tese Ta's - Capa

Quando perguntados sobre o desenho, os trabalhadores doscanteiros apontam para outros problemas: da distinção de formaçãoe do poder que isso acarreta, dos baixos salários. Percebem odesenho como condição para que o trabalho exista e seja realizado,e suas “melhorias”, das técnicas construtivas, da utilização demáquinas, por exemplo, vêm aliviar o trabalho em canteiro, o que épercebido positivamente. A idéia de que na divisão do trabalho emcanteiro cada um tem um papel específico e colabora na realizaçãoda obra, mesmo para aqueles que, ao não acessar a linguagem dodesenho, têm seu trabalho marcado pela dependência einferioridade, se coloca no sentido de reconhecer o papel de cadaum no processo, desviando o problema da divisão do trabalho emsi e direcionando-o para sua valorização desigual. O que marcaesses processos e a distribuição desigual dos valores produzidosparece ainda ser uma superioridade das artes liberais em relação àsartes mecânicas, do trabalho intelectual sobre o trabalho manual,que são valorizados diferentemente por razões de produtividade ede reprodução, do capital econômico e simbólico. Identificar o lugardo desenho de obra significa delimitar o campo em que o desenhoage e se situa, nas relações que estabelece com outros campostambém delimitados.

202

Page 229: Tese Ta's - Capa

REFERÊNCIAS

Page 230: Tese Ta's - Capa
Page 231: Tese Ta's - Capa

205

Bibliografia

ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: Sérgio Ferro, FlávioImpério e Rodrigo Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo:Ed. 34, 2002.

ARTIGAS, João Batista Vilanova. O desenho. In: GFAU, GrêmioFAUUSP. Sobre desenho. São Paulo: CEB/ GFAU, 1975.

__________. Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

ASCHER, François. Contribuição à análise da produção daconstrução civil. Espaces et Societés, nº 6-7, 1972. TraduçãoJorge H. Oseki. São Paulo: mimeo, s.d.

BECHMANN, Roland. Villard de Honnecourt – La pensée techniqueau XIIIe siècle et sa communication. Paris: Picard Éditeur, 1993.

BORGES FILHO, Francisco. O desenho e o canteiro noRenascimento Medieval (séculos XII e XIII): indicativos daformação dos arquitetos mestres construtores. Tese (Doutorado),orient. Issao Minami. São Paulo: FAUUSP, 2005.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ,Renato (org.). A sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olhod’Água, 2003, p. 39-72.

_________. A economia dos bens simbólicos. In: BOURDIEU, Pierre.Razões práticas. Campinas, SP: Papirus, 1996, p. 157-197.

_________. Trabalhos e projetos. In: ORTIZ, Renato (org.). Asociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003, p.32-38.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Introdução - Cidade de muros:crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp,Ed. 34, 2000, p. 9-23.

_______________. A presença do autor e a pós-modernidade emantropologia. Novos Estudos, CEBRAP, São Paulo, nº 21, jul.1988, p. 133-157.

CATTANI, Airton. Arquitetura e representação gráfica: consideraçõeshistóricas e aspectos práticos. Arqtexto, Porto Alegre, nº 9, 1ºsem., 2007, p. 110-123.

CORIAT, Benjamin. O processo de trabalho de tipo ”canteiro” e suaracionalização: observações sobre algumas tendências dapesquisa atual. In: O trabalho em canteiros. Plano, construção ehabitat. Atas de colóquio, nov., 1983. Tradução Jorge H. Oseki.Revisão João Sette. São Paulo: mimeo, 2007.

DEFORGE, Yves. Le graphisme technique: son histoire et sonenseignement. França, Seyssel: Champ Vallon, 1981.

Page 232: Tese Ta's - Capa

206

FARAH, Marta Ferreira Santos. Processo de trabalho na construçãohabitacional: tradição e mudança. São Paulo: Annablume, 1996.

FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. São Paulo: Prolivros, 2005.

___________. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify,2006.

FOLIN, Marino. Primera parte: La ciudad del capital. In: FOLIN,Marino. La ciudad del capital y otros escritos. Barcelona:Gustavo Gili, 1976.

GALLOIS, Catherine. Waiãpi Rena: Habitação dos Waiãpi do Amapá.Trabalho Final de Graduação. São Paulo: FAUUSP, 2001.

GAMA, Ruy. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo: Nobel,Edusp, 1986.

GEERTZ, Clifford. Parte I – Uma descrição densa: por uma teoriainterpretativa da cultura. In: A interpretação das culturas. Rio deJaneiro: LTC, 1989, p. 3-21.

GOODALL, George. The history of technical drawing. In<http://www.deregulo.com./facetation/>, jan. 2008, acessado emabril de 2008.

GORZ, André. Técnica, técnicos e luta de classes. In: GORZ, André(org.). Crítica da Divisão do Trabalho. São Paulo: Martins Fontes,2001, p. 211-248.

LEFEBVRE, Henri. El materialismo dialéctico. Buenos Aires: Ed. LaPleyade, 1971.

________. La Production de l’ Espace. Paris: Anthropos, 2000.

________. La presencia y la ausencia: contribución a la teoría de lasrepresentaciones. México: FCE, 2006.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas parauma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais,vol. 17, nº49, jun. 2002, p. 11-29. Disponível em<http://www.anpocs.org.br/portal/content/view/55/54/>. Acessoem: set. 2007.

MARTINS, José de Souza. As temporalidades da História nadialética de Lefebvre. In: MARTINS, José de Souza (org.). HenriLefebvre e o retorno à dialética. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 13-23.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política - tomo I, II e III.São Paulo: Nova Cultural, 1988.

___________. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo:Paz e Terra, 2006.

___________. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:Boitempo Editorial, 2004.

Page 233: Tese Ta's - Capa

207

NUNES, Edson de Oliveira (org.). A aventura sociológica:objetividade, paixão, improviso e método na pesquisa social. Riode Janeiro: Zahar, 1978.

OLIVEIRA, Mário Mendonça de. Desenho de arquitetura pré-renascentista. Salvador: EDUFBA, 2002.

OSEKI, Jorge Hajime. O único e o homogêneo na produção doespaço. In: MARTINS, José de Souza (org.). Henri Lefebvre e oretorno da dialética. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 109-119.

___________. Arquitetura em construção. Dissertação (Mestrado),orient. Gabriel Bolaffi. São Paulo: FAUUSP, 1983.

PEREIRA, Paulo César Xavier. São Paulo: a construção da cidade,1872 – 1914. São Carlos: Rima, 2004.

PERRONE, Rafael Antonio Cunha. Desenho como signo daarquitetura. Tese (Doutorado), orient. Lucrécia Ferrara. São Paulo:FAUUSP, 1993.

POTIÉ, Philippe. Philibert de l’Orme – Figures de la penséeconstructive. Marseille: Editions Parenthèses, 1996.

___________. A “teórica da geometria” ou o poder da representação.Projeto, São Paulo, v. 113, p. 109-110, ago., 1988.

RIGHETTO, Adriana Volpon Diogo. Do desenho ao modelo: aapresentação do projeto arquitetônico. Tese (Doutorado), orient.José Jorge Boueri. São Paulo: FAUUSP, 2005.

RINGON, Gérard. Histoire du métier d’architecte en France. Paris:PUF, 1997.

SAINZ, Jorge. El dibujo de arquitectura: teoría e historia de unlenguaje gráfico. Espanha, Barcelona: Ed. Reverté, 2005.

STEVENS, Garry. O círculo privilegiado: fundamentos sociais dadistinção arquitetônica. Brasília: Editora Universidade de Brasília,2003.

Page 234: Tese Ta's - Capa

208

Aldeia kaiapó de Pikararankre, Brasilhttp://www.brasildasaguas.com.br/diario_brasil_aguas/aldeia_kaiapo.html, acessado em 23/08/07

Aldeia indígenaExtraído da aula sobre a história do espaço, Prof. Dr. JorgeHajime Oseki

A esfinge de Gizé, com a pirâmide de Quéfren, Egitohttp://www.espacoauryn.com/espacoauryn/caibalion.htm,acessado em 23/08/07

Espaço analógico

Espaço cosmológico

Legenda das imagens(Quadro 1)

Page 235: Tese Ta's - Capa

209

Parthenon, GréciaExtraído da aula sobre a história do espaço, Prof. Dr. Jorge Hajime Oseki

Piazza del Campo, Palio di Siena, Itália, ?http://elbauldejosete.wordpress.com/2008/06/14/siena-y-sus-carreras-mediavales/, acessado em 24/04/09

Piazza del Campo, Itáliahttp://www.intl.armstrong.edu/siena.htm, acessado em 23/08/07

Piazza del Campo, Itáliahttp://www.aboutromania.com/tuscany51.html, acessado em 24/04/09

Espaço simbólico

Page 236: Tese Ta's - Capa

210

Medina, Marrakech, Marrocoshttp://photosaroundtheworld.wordpress.com/2006/09/09/marrakesh-labyrinths-souks-and-markets-inside-the-medina-of-marrakech-morocco/, acessado em 23/08/07

Medina, Fès, Marrocoshttp://www.davestravelcorner.com/photos/morocco/,acessado em 23/08/07

Page 237: Tese Ta's - Capa

211

Piazza San Marco, Veneza, Itáliahttp://www.delange.org/Venice1/Page38.htm, acessado em 23/08/07

Piazza San Marco, Canalleto, Veneza, Itália, 1760Extraído da aula sobre a história do espaço, Prof. Dr. Jorge Hajime Oseki

Piazza San Marco, Veneza, Itáliahttp://www.elitehotel.it/en/news.htm, acessado em 23/08/07

Espaço perspectivo

Page 238: Tese Ta's - Capa

212

Zona fabril da Cidade Industrial, Toni Garnier, 1918http://www.anxo.org/artigos/140200.html, acessado em 23/08/07

Bairro residencial da Cidade Industrial, Toni Garnier, 1918http://www.anxo.org/artigos/140200.html, acessado em 23/08/07

Nova York, EUAhttp://home.wangjianshuo.com/fr/20050103_skyscrapers_in_new_york.htm, acessado em 23/08/07

Espaço capitalista

Page 239: Tese Ta's - Capa

213

São Paulo, Brasilhttp://blogdofavre.ig.com.br/wp-content/uploads/2008/01/saopaulo_copan.jpg, acessado em 24/04/09

São Paulo, Brasilhttp://www.ivebeenthere.co.uk/places/brazil/sao-paulo/favela-morumbi-sao-paulo.jpg, acessado em 23/08/07

São Paulo, Brasilhttp://www.pulsarimagens.com.br/bancoImagens/12DM624.jpg,acessado em 23/08/07

Moscou, Rússiahttp://savvyatlanta.files.wordpress.com/2008/08/intersec.jpg,acessado em 23/08/07

Espaço da produção

Page 240: Tese Ta's - Capa

214

Vila Maria Zélia, São Paulo, Brasilhttp://www.fotoplus.com/dph/info19/i-estudos.htm,acessado em 27/04/09

Largo do Piques, São Paulo, Brasil, 1862http://www.aprenda450anos.com.br/450anos/vila_metropole/2-4_espaco_urbano.asp, acessado em 23/08/07foto: Augusto Militão de Azevedo

Largo da Memória, São Paulo, Brasil, 1929http://www.aprenda450anos.com.br/450anos/vila_metropole/2-4_espaco_urbano.asp, acessado em 23/08/07

Page 241: Tese Ta's - Capa

215

Usiminas, Cubatão, Brasilhttp://www.autoracing.com.br/1.php?id=43449, acessado em 23/08/07

Conjuntos habitacionais pré-fabricados em Dresdenhttp://www.tor.cn/chinfootball/dw/article/0,,1805308,00.html,acessado em 23/08/07

Cidade Tiradentes, São Paulo, Brasil, 1980-90Extraído da aula sobre a história do espaço, Prof. Dr. Jorge Hajime Oseki

Espaço da reprodução

Page 242: Tese Ta's - Capa

216

Guggenheim Museum, Bilbao, Espanhahttp://www.dragteam.info/forum/tours-locais-visitar/59797-bilbao-turismo.html, acessado em 27/04/09

Guggenheim Museum, Bilbao, Espanhahttp://www.dragteam.info/forum/tours-locais-visitar/59797-bilbao-turismo.html, acessado em 27/04/09

Guggenheim Museum, Bilbao, Espanhahttp://www.dragteam.info/forum/tours-locais-visitar/59797-bilbao-turismo.html, acessado em 27/04/09

Hotel Unique, São Paulo, Brasilhttp://www.educatorium.com/projetos/projetos_int.php?id_projetos=265, acessado em 23/08/07foto: Nelson Kon

Espaço como imagem

Page 243: Tese Ta's - Capa

217

Hotel Unique, São Paulo, Brasilhttp://www.educatorium.com/projetos/projetos_int.php?id_projetos=265, acessado em 23/08/07foto: Nelson Kon

Marginal Pinheiros, altura do WTC, São Paulo, Brasilhttp://www.sampaonline.com.br/postais/worldtracecenter.htm,acessado em 23/08/07

Representação da aldeia Pypyiny, Waiãpi, Amapá, Brasil in GALLOIS, 2001

Presença/ não-desenho

Page 244: Tese Ta's - Capa

218

Representação da aldeia Ajawary, Waiãpi, Amapá, Brasil in GALLOIS, 2001

Plano de trabalho de um escultor egípcio in PERRONE,1993, p. 88

Desenho de um naos, papiro de Gur’Ab, Egito, 2500 a.C. inDEFORGE, 1981, p. 21

Desenho/ debuxo canônico

Page 245: Tese Ta's - Capa

219

Páginas 30v do álbum de Villard de Honnecourt, elevação dacapela, Catedral de Reims, 1225-1250 in BORGES, 2005, p. 81

Página 32v do álbum de Villard de Honnecourt, vistaesquemática da cobertura e arcobotantes, Catedral deReims, 1225-1250 in BORGES, 2005, p. 81

Desenho/ debuxo simbólico

Page 246: Tese Ta's - Capa

220

Catedral de Reims

Portal, por Piero della Francesca in PERRONE, 1993, p. 149

Desenho como projeto einstrumento cognitivo

Page 247: Tese Ta's - Capa

221

Esboço para estereotomia, Gérard Desargues, 1639 inRIGHETTO, 2005, p. 55

La Rotonda, Andrea Palladio, 1570http://ville.inews.it/4rotomap.gif, acessado em 19/06/07

Page 248: Tese Ta's - Capa

222

Cúpula, Santa Maria del Fiori, Brunelleschi, 1434

Representação da Catedral Santa Maria del Fiori

Page 249: Tese Ta's - Capa

223

Traçados e práticas de canteiro, J. Polly, Grande tratado demoinhos, 1736 in DEFORGE, 1981, p. 39

Traçado de engrenagens e desenvolvimento de ummostrador comum, A. Thiout, Tratado de relojoaria mecânicae prática, 1741 in DEFORGE, 1981, p. 69

Desenho abstrato

Page 250: Tese Ta's - Capa

224

Hangar de Orly, E. Freyssinet, 1920http://www.tecnologos.it/Articoli/articoli/numero_010/concrete.asp, acessado em 19/06/07

Hangar de Orly, E. Freyssinet, 1920

System Dom-ino, Le Corbusier, 1914http://www.tecnologos.it/Articoli/articoli/numero_010/concrete.asp, acessado em 19/06/07

Page 251: Tese Ta's - Capa

225

Projeto executivo de residência em Ribeirão Preto, Angelo Bucci, MMBB, 2001Extraído da aula sobre representação gráfica na arquitetura,Prof. Minoru Naruto

Projeto executivo de residência em Ribeirão Preto, Angelo Bucci, MMBB, 2001Extraído da aula sobre representação gráfica na arquitetura,Prof. Minoru Naruto

Exemplo de projeto executivohttp://www.tpcarquitetura.com.br/executivo.htm, acessado em 24/08/07

Desenho para produção

Page 252: Tese Ta's - Capa

226

Exemplo de fachadas, Incorporadora HelborExtraído do portfólio da empresa,http://www.helbor.com.br/institucional2007/, acessado em 24/08/07

Exemplo de fachadas, Incorporadora HelborExtraído do portfólio da empresa,http://www.helbor.com.br/institucional2007/, acessado em 24/08/07

Desenhos iniciais de concepção de empreendimentoresidencial, Incorporadora Helbor, 2008Extraído de apresentação do empreendimento, fornecidapela empresa

Desenho como mercadoria

Page 253: Tese Ta's - Capa

227

Desenhos iniciais de concepção de empreendimentoresidencial, Incorporadora Helbor, 2008Extraído de apresentação do empreendimento, fornecidapela empresa

Perspectiva artística promocional do Parque Cidade Jardimhttp://www.parquecidadejardim.com.br/, acessado em 27/04/09

Imagens ilustrativas constantes do material promocional doEdifício Aimberê 1749, Zarvoshttp://www.movimentoum.com.br/movimentoum/aimbere1749/default.asp, acessado em 23/08/07

Imagens ilustrativas constantes do material promocional doEdifício Aimberê 1749, Zarvoshttp://www.movimentoum.com.br/movimentoum/aimbere1749/default.asp, acessado em 23/08/07

Desenho de marketing

Page 254: Tese Ta's - Capa

228