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Tese de Sociologia Sobre Rituais de Cura

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Doutorado

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

    A CURA PELA FE:

    Crenas, Saberes, Prticas e Poderes no Mundo Rural do

    Nordeste Brasileiro

    Maria da Conceio Mariano Cardoso van Oosterhout

    RECIFE

    2010

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    A CURA PELA F: Crenas, Saberes, Prticas e Poderes no

    Mundo Rural do Nordeste Brasileiro

    Maria da Conceio Mariano Cardoso van Oosterhout

    Tese elaborada por Maria da Conceio

    Mariano Cardoso van Oosterhout, sob

    orientao da Profa Dr

    a Josefa Salete Barbosa

    Cavalcanti e apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Sociologia da Universidade

    Federal de Pernambuco para obteno do grau

    de Doutora em Sociologia.

    Recife, dezembro de 2010

  • Catalogao na fonte

    Bibliotecria, Divonete Tenrio Ferraz Gominho, CRB4-985

    O58c Oosterhout, Maria da Conceio Mariano Cardoso Van

    A cura pela f : crenas, saberes, prticas e poderes no mundo rural

    do nordeste brasileiro / Maria da Conceio Mariano Cardoso van

    Oosterhout. Recife: O autor, 2010.

    281 f. ; 30 cm.

    Orientadora: Profa. Dra. Josefa Salete Barbosa Cavalcanti

    Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.

    Ps-Graduao em Sociologia, 2010.

    Inclui bibliografia.

    1. Sociologia. 2. Catolicismo. 3. Populao rural. 4. Cura. 5. F. 6.Crenas populares. I. (Orientadora). Cavalcanti, Josefa Salete Barbosa. II. Ttulo.

    301 (CDD) 22.ed. UFPE(BCFCH2011-15

    B UFPE ( CFCH).2011-13

  • Dedico este trabalho aos romeiros e

    romeiras, que tanto me acolheram e me

    mostraram a fora da f.

    memria do meu pai, Jos Mariano

    Cardoso, homem do campo, que me

    mostrou o cu e a terra.

  • AGRADECIMENTOS

    Muitas foram as pessoas que colaboraram para a produo dessa tese.

    Agradeo, especialmente, a Professora Dra. Josefa Salete Cavalcanti por sua valiosa

    contribuio, marcada por compreenso, estmulo e apoio, fundamentais para a realizao

    desta tese.

    Ao Professor Dr. Roberto Motta agradeo as preciosas contribuies na fase inicial desta tese.

    Agradeo aos demais professores do PPGS/UFPE pelas discusses, pelo aprendizado

    compartilhado em sala de aula, e por todas as oportunidades que este programa me ofereceu.

    Aos colegas do curso, por tudo que compartilhamos. Pelos momentos agradveis e por

    aqueles desafiantes que nos serviram de reflexo e aprendizado coletivo. Particularmente

    agradeo a sintonia com Tarcsio e Assuno, pelas afinidades da nossa ruralidade.

    Secretaria e demais colaboradores do programa, especialmente a Vincius e Priscila pela

    disposio com que nos atenderam.

    CAPES pela bolsa concedida que possibilitou a realizao deste trabalho.

    Especialmente agradeo ao curador Jacinto e sua famlia pelo acompanhamento nesta

    pesquisa, pelas infinitas colaboraes, esclarecimentos e a disposio que demonstraram em

    me atender e acolher, a qualquer dia, em sua casa.

    Aos padres amigos que se dispuseram com preciosas reflexes e colaboraes escritas.

    s irms da Congregao do Amor Divino por tudo que me ensinaram.

    Aos meus irmos que mesmo distantes e sem saber muito do que eu pesquisava, estiveram

    presentes em orao para que meu trabalho desse certo.

    minha me pelas infinitas lies de vida. Foram ela e o meu pai que me motivaram para

    conhecer melhor a religio e a espiritualidade no campo.

  • Por fim, agradeo ao meu marido Wouter van Oosterhout e aos meus filhos Jane Janaina e

    Joel Sebstian, pelo suporte e compreenso da minha luta na priorizao desta tese. Wouter, o

    antroplogo viajante que, quando esteve presente, sempre se disps para comentrios,

    sugestes e documentao fotogrfica.

    A Deus e as demais foras divinas por no faltar comigo neste trabalho.

  • RESUMO

    Esta tese busca analisar a cura religiosa no catolicismo popular e contemporneo, entre as

    populaes rurais do interior da Paraba, do Nordeste brasileiro. O estudo investiga a cura

    ministrada por vrios curadores, os tipos de curadores populares, as prticas de devoo

    pessoal e as experincias em perspectivas holsticas no universo religioso da cura. Constata-se

    que as aes dos agentes de cura no so excludentes entre si. Elas se associam e at certo

    ponto se complementam de acordo com a situao e o pblico atendido, configurando aes

    em torno de um hibridismo religioso-cultural. Na anlise, o trabalho confere especial

    relevncia s expresses simblicas distintas, ressignificao de valores culturais e a ddivas

    e reciprocidades que se constituem no mbito da cura. Neste sentido, discute a cura em

    perspectiva que vai alm da cura de um mal fsico e focaliza os elementos que sugerem a cura

    psquica, introduzindo-se assim para os propsitos deste estudo, o conceito denominado de

    cura social. A cura social se expressa a partir de particularidades culturais, polticas,

    econmicas e sociais que o processo de cura envolve e revela. Ganham destaque alguns

    aspectos considerados relevantes nas diferentes trajetrias pessoais dos curadores e suas

    repercusses na aquisio e no desempenho para com o Dom da cura. A cura religiosa

    entendida como algo que ultrapassa classes e categorias sociais; a cura est ao alcance de

    qualquer indivduo que nela confira f. O estudo foi desenvolvido com base em princpios

    metodolgicos etnogrficos, apoiados pela observao participante, seguida por entrevistas

    semi-estruturadas, por conversas informais e por demais contatos com pessoas dos dois

    segmentos curadores e curados. A pesquisa permitiu revelar de modo abrangente as

    concepes do publico na regio pesquisada em relao ao conceito de cura e doena, bem

    como verificar a relevncia social das experincias de cura.

    Palavras chave: cura - f crenas - ddiva catolicismo catolicismo popular rural

    nordeste Paraba

  • ABSTRACT

    This thesis investigates religious healing practices in the context of popular and

    contemporaneous Catholicism, among the rural population of Paraba, in the Northeast of

    Brazil. The study focuses on the healing practices of various healers, types of popular healers,

    personal devotion habits and the experiences related to holistic perspectives in the context of

    religious healing. It is observed that the actions of religious healers are not exclusive. These

    actions can be associated to complement each other in accordance with the situation and the

    public that is being attended, resulting in actions characterized by a religious-cultural

    hybridism. Specific attention is directed towards distinct symbolic expressions, to the re-

    signification of cultural values and to exchange and reciprocity that are established in

    connection with healing practices. Healing is discussed within a perspective that is not limited

    to the healing of physical defects and focuses on the elements that suggest psychic healing,

    introducing for the benefit of this study the concept of social healing. Social healing is

    expressed on the basis of cultural, political, economical and social factors that the healing

    process involves and reveals. Several relevant aspects of the personal trajectories of healers

    and their repercussion on the acquisition and performance of the Gift of healing are brought

    into the spotlight. Religious healing is understood to surpass social categories and classes; any

    individual that beliefs in religious healing can be healed. The investigation was developed on

    the basis of ethnographic methodological principles, assisted by participant observation, semi-

    structured interviews, informal conversations and other contacts both with healers as with

    healed persons. The study has permitted to reveal the conceptions of the public in the region

    concerning the concepts of healing and health, as well as to verify the social relevance of

    healing experiences.

    Keywords: healing belief popular belief gift Catholicism popular Catholicism rural

    Northeast - Paraiba

  • RESUME

    Cette thse analyse la gurison religieuse dans le catholicisme populaire contemporain, chez

    les populations rurales de Paraba, dans le nord-est brsilien. L'tude examine la gurison

    dispens par plusieurs gurisseur, les types de gurisseurs populaires, les pratiques de

    dvotion personnelle et leurs expriences sous la perspective holistique dans l'univers

    religieux de la gurison. On constate que les actions des agents gurisseurs ne s'excluent

    aucunement. Elles sont relis et dans une certaine mesure elles se compltent suivant la

    situation et le public vis. Dans le cadre de l'analyse la recherche met en relief les distinctes

    expressions symboliques, la re-signification des valeurs culturelles et les dons et rciprocits

    qui se constituent dans le domaine de la gurison. Dans ce sens on aborde le sujet dans une

    perspective qui va au de-l de la gurison des maux physiques et on le dirige vers des

    lments qui suggrent la gurison psychique en introduisant par ce biais le concept de

    gurison sociale. Celui-ci s'exprime partir de certaines particularits culturelles, politiques,

    conomiques et sociales enveloppes et dvoils par le processus de la gurison . On met en

    relief certains aspects significatifs dans la trajectoire personnelle des gurisseurs et leurs

    consquences dans l'acquisition et la pratique du don de gurir. La gurison religieuse est

    conue comme allant au de-l des classes et catgories sociales; elle est la port de n'importe

    quel individu qui y met de la foi. L'tude a t dveloppe sur des principes mthodologiques

    ethnographiques et appuye par l'observation participative suivie des entretiens demi

    structurs, par des conversations informelles et par d'autres contacts avec des personnes des

    deux segments, gurisseurs et guris. La recherche a permis de dvoiler de faon tendue les

    conceptions du public de la rgion tudi par rapport aux concepts de gurison et maladie, et

    elle a permis d'lucider le rle sociale des expriences de gurison.

    Mots-cl: gurison, foi, croyance, don, catholicisme, catholicisme populaire

  • SUMRIO

    INTRODUO 13

    i Universo e objetivos da pesquisa. 13

    ii O perfil dos entrevistados. 17

    iii Recorte da pesquisa, a capela e os pontos de devoo. 19

    I PERSPECTIVAS METODOLGICAS E DELIMITAO DOS

    CAMINHOS DA PESQUISA

    24

    1.1 Especificidades metodolgicas. 24

    1.2 Aspectos relevantes da prtica metodolgica: uma incurso pelos

    passos dos romeiros.

    32

    1.3 Aprendendo com a pesquisa: as lies oferecidas pela prtica de

    campo.

    45

    II O CAMPO RELIGIOSO: FACES DO CATOLICISMO NO BRASIL

    E NA REGIO NORDESTE

    50

    2.1 Histria do catolicismo na regio. 60

    2.1.1 Idas e vindas entre espiritualidade e ao: o trabalho das

    Pastorais e das Comunidades Eclesiais de Base.

    63

    2.2 Os Santurios religiosos como espaos de vivncia da cura e da F. 68

    2.3 O Centro Alternativo de Cura Bom Samaritano. 76

    2.4 A capela do Stio Olho dgua. 76

    2.5 Rstico ou Renovado: o Catolicismo como referncia. 80

    III CONCEPES E PRTICAS DE CURA: DO SOFRIMENTO

    RESISTNCIA NO COTIDIANO

    84

    3.1 Problemas, doenas e solues nos altares de cura. 91

    3.2 Vozes das mulheres do passado ao presente: entre angstias, perdas

    e formas de resistncia.

    94

    3.3 Do cuidado com os filhos: a dana dos obstculos e a fora da f. 111

    3.4 Os casos espirituais. 114

    3.5 As prticas de cura e a recomposio do cotidiano. 116

  • IV AGENTES DE CURA: TRAJETRIAS E HISTRIAS DE VIDA DE

    CURADORES E BENZEDORES

    118

    4.1 Do antigo curador: a topografia espiritual e a venerao natureza. 120

    4.2 Tabus, permisses, regras, lugares - o Stio Olho dgua como um terreno do sagrado.

    126

    4.3 Aes de reciprocidade para alm da cura religiosa: a bodega nos rumos de uma experincia de fundo rotativo.

    128

    4.4 A metfora da passagem para outra vida. 130

    4.5 Os rezadores e benzedores. 135

    4.6 As irms curadoras. 140

    4.7 Os Curadores Consagrados ou Almas Santas: Padre Ibiapina, Frei

    Damio e o Padre Ccero.

    142

    4.7.1 Padre Ibiapina, o Apstolo da Caridade. 142

    4.7.2 O Padre Ccero. 147

    4.7.3 Frei Damio: um pregador itinerante da palavra de Deus. 153

    V A AQUISIO DO DOM DA CURA: O DOM VEM DE DEUS 158

    5.1 O sofrimento como passaporte para alcance e plenitude do Dom. 161

    5.2 O Dom em trs faculdades: a vidncia, a escuta e a linguagem. 172

    5.3 Penitncia e renncia na esfera do Dom. 176

    5.4 Devoo e Pregao expressando capacidades no Dom. 179

    5.5 Transferncia ou continuidade do dom? 181

    VI O PROCESSO DE CURA: DAS GRAAS ALCANADAS E DO

    MERECIMENTO

    188

    6.1 Promessas, devoes e a interveno dos cones religiosos: Padre

    Ibiapina, Padre Ccero, Frei Damio e os Santos de Proteo.

    192

    6.2 Os curadores e suas formas de atendimento. 202

    6.3 Dos curadores aos mdicos: caminhos de mos duplas. 210

    6.4 A eficcia simblica da cura. 214

    CONCLUSO 229

    BIBLIOGRAFIA 237

  • ANEXOS

    I Mapa da regio da pesquisa

    II Ensaio fotogrfico

    III Perfil dos Entrevistados

  • 13

    INTRODUO

    A compreenso do fenmeno da cura atravs da f constitui a principal finalidade desta tese.

    Estudar as experincias de cura no mbito da religio implica em dar ateno re-

    significao das crenas religiosas e suas expresses. Particularmente, procuramos identificar

    a configurao de reciprocidades e mltiplas ddivas caractersticas de trocas simblicas

    nas relaes entre pessoas, divindades, Santos, Almas Santas e os agentes de cura.1 Com

    essas delimitaes iniciais, a nossa agenda emprica e terica foi acolhida pelo Doutorado no

    Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE.

    Desde cedo tivemos a oportunidade de nos envolver com trabalhos sociais na rea da

    pesquisa atual. Ainda, enquanto estudante universitria, participamos de trabalhos voltados

    aos Movimentos Sociais Populares que inicialmente surgiram vinculados Igreja Catlica da

    Paraba. Trabalhamos com ONGs, comeando pelo Projeto Educativo do Menor (PEM) numa

    experincia de educao popular na alfabetizao de crianas e adultos. Posteriormente, no

    Servio de Educao Popular (SEDUP), trabalhamos na formao de trabalhadores rurais e

    em atividades de assessoria junto aos Movimentos e Pastorais Populares, em dois momentos:

    primeiro por dentro da Igreja Catlica, quando ela criou esses organismos chamados

    Servios; depois em interface com essa mesma Igreja quando os Servios se tornaram

    autnomos, na dcada de 90. Nessa regio desenvolvemos tambm a pesquisa para minha

    dissertao de mestrado, na rea de sociologia rural.2 Mais recentemente, j como professora

    universitria, pudemos contribuir pesquisa e extenso na regio, o que nos inspirou para

    formular a proposta que hoje culmina na nossa tese.

    i Universo e objetivos da pesquisa

    Inicialmente quisemos visualizar, amplamente, a paisagem religiosa na regio

    pesquisada, situada dentro do Brejo e Curimata paraibano. Os Santurios religiosos

    chamaram nossa ateno, pela novidade que traziam com a atrao dos fiis s romarias.

    1 O termo almas santas nesta pesquisa se refere a pessoas que em vida demonstraram aes religiosas

    importantes no catolicismo e que aps suas mortes continuam de alguma forma dando assistncia, conforme se

    acredita no mbito da religiosidade popular. Nesse sentido, introduzimos no decorrer do trabalho, os padres

    Ibiapina , Ccero e Frei Damio; tambm inclumos nesta classificao um dos curadores falecidos que ainda tem

    significado especial na sua localidade de origem. 2 Que se dedicou ao estudo da formao das lideranas de trabalhadores rurais naquela localidade.

  • 14

    Romeiros vindos de muitos lugares, stios, cidades, povoados e mesmo outros estados trazem

    elementos novos ao campo religioso na Diocese de Guarabira.3

    Percebemos que experincias consideradas tradicionais, associadas ao catolicismo

    popular ou catolicismo rstico, estavam entrando em cena com expresses diversas e

    ampla aceitao por parte da populao catlica. Preocupamo-nos em entender o significado

    desse acontecimento. O que estava realmente acontecendo naquele cho to marcado pelo

    trabalho pastoral social, onde num passado prximo eu estive muito presente? Aparentemente

    a Igreja Catlica enquanto instituio estava investindo na retomada dos cultos aos antigos

    santurios e na implantao de novos. Entretanto, a instituio entendia essa retomada e

    investimento como algo relacionado no apenas vivencia religiosa, mas tambm como uma

    continuidade do trabalho social, do qual falaremos adiante.

    Vimo-nos atradas pela novidade. Inicialmente optamos por aprofundar a aparente

    influncia da religio nos processos de recuperao da sade das pessoas. Direcionamos nossa

    ateno para o pblico rural; com o qual compartilhamos nossas origens e que tm

    influenciado nossa sensibilidade prtica e profissional. Direcionamos nosso olhar tambm

    para outros lugares e experincias de destaque na regio. Priorizamos as mais localizadas,

    onde a vivencia da religiosidade dialogava com minha inteno de entender o significado

    social implcito nas prticas religiosas atravs da cura. Com esse propsito, entramos no

    estudo pela porta da Capela So Pedro do Stio Olho dgua no municpio de Tacima/PB,

    pelo Centro Bom Samaritano em Pirpirituba/PB e pelo acompanhamento a alguns Santurios,

    citados nas primeiras entrevistas que foram realizadas.

    A partir desse percurso na regio, procedemos neste estudo, guiadas por alguns

    questionamentos: Por que as pessoas recorrem cura religiosa? Tem relao com assistncia

    mdica insatisfatria na rede pblica? Como que locais aparentemente sem destaque

    ganham visibilidade e se tornam referncia para cura na vida das pessoas? Quem recorre e

    quem ministra a cura e em que procedimentos ela se firma? Quais as repercusses das

    prticas de cura, considerando o bem-estar fsico, social e at simblico? Como ocorre a

    reintegrao das pessoas ou fortalecimento social pelas prticas de cura, e como isso repercute

    na sobrevivncia e resilincia das pessoas e das comunidades envolvidas? Entender como

    circulam os saberes atuantes como reguladores entre curadores e curados nas relaes entre

    a pessoa, seus parentes e a comunidade, Deus e seus enviados, mortos e vivos, se tornou um

    tema transversal.

    3 A Diocese de Guarabira situa-se na regio do Agreste paraibano, a 98 quilmetros da Capital do Estado. Rene

    32 municpios, somando um total de 410 mil habitantes. Os dados provm do acervo da secretaria diocesana.

  • 15

    Agrupamos essas questes ancoradas em trs vertentes de investigao. A primeira

    vertente diz respeito existncia e funo dos curadores e rezadeiras4, ao resgate de suas

    trajetrias e origem ou forma de aquisio e/ou transmisso do dom de cura; a segunda

    vertente se refere existncia da cura pela devoo, relao da pessoa devota a um Santo

    Protetor ou s Almas Santas, como nos casos do Padre Ibiapina, Frei Damio e o Padre

    Ccero; a terceira vertente diz respeito a entender a cura numa perspectiva holstica religiosa,

    incluindo o exemplo de um grupo de Irms catlicas.

    Os curadores, geralmente, no se autodenominam como tal. Quem cura Deus.

    Eles so intermediadores ou mediadores da ao divina. Eles emprestam seus corpos e suas

    disponibilidades, seu tempo causa. So agentes de cura. Essa perspectiva serve para todas

    as denominaes de cura trazidas pela pesquisa.

    Analisamos duas geraes de curadores de uma mesma famlia, av e neto.

    Entrelaam-se ciclos de vida distintos, pocas histricas diferenciadas, bem como formas de

    aquisio e transmisso de dons especficos, abordando desde os anos 1950 at a atualidade,

    porm com grandes semelhanas entre uma histria e outra.

    A devoo surge como modalidade importante entre agentes e pacientes no

    processo de cura.5 Conforme veremos no decorrer deste trabalho, na devoo no figura uma

    pessoa fsica de um ser curador, mas a pessoa espiritual: o Santo, ou a Alma Santa. Para os

    fiis, o merecimento define tanto a necessidade a qual o ato da orao se destina, como a

    graa alcanada. a relao da pessoa com o Santo ou com a Alma Santa que vai atuar na

    cura. O merecimento visto de forma diferenciada entre o conjunto dos informantes. Ele pode

    ou no determinar a cura, pois, a princpio, Deus atende a todos que a ele recorrem.

    A perspectiva holstico-religiosa focaliza a cura na totalidade da pessoa em

    tratamento. Partindo da f, como nas demais vertentes, as irms trabalham com orientaes

    alimentares e terapias especiais. Csordas (2008:33) entende a perspectiva totalizante da cura

    4 Utilizamos os termos curadores e rezadores de forma diferenciada. Ambos podem compartilhar saberes,

    dons e prticas. No entanto, apresentam diferentes abordagens nos procedimentos de cura e na aquisio e mesmo na transmisso do conhecimento. Muitas vezes o rezador apenas um benzedor, como se atendesse aos primeiros socorros da cura. O termo curador tambm utilizado para diferenciar de curandeiro, para evitar que seja confundido com o curandeirismo, no sentido negativo da palavra. O curandeirismo tambm tem uma origem mgico-fetichista. Segundo Artur Ramos (1940), citado por Arajo (2004), a medicina nasceu do empirismo sacerdotal. O feiticeiro tambm um medicine-man, o homemmedicina do grupo social primitivo. Estas funes se separam, no Brasil. O medicine-man virou curandeiro. Todas as prticas de medicina e de feitiaria obedecem s leis de Frazer, da magia imitativa e da magia simptica (ARAJO 2004:186). 5 Usamos o termo devoto/a aqui para designar aquele/a que tem devoo, que segue um ritmo dirio nas suas

    prticas religiosas. Para estudiosos do catolicismo, o termo se refere a uma categoria religiosa que atravs de

    prticas devocionais capaz de atrair poderes para si e para o grupo social e podem at alterar a ordem natural

    das coisas, lugares, objetos, pessoas, smbolos, e ritos considerados sagrados.

  • 16

    enquanto um compsito tripartite que situa o processo de cura em trs dimenses: o corpo,

    a mente e o esprito. Procuramos entender a cura religiosa para alm da cura de um mal de

    natureza fsica. Ela principalmente uma cura psquica e com isso, torna-se tambm uma cura

    social. A cura no apenas tenta recompor a sade fsica e mental, mas serve para recuperar a

    segurana, o prestgio, a honra, contribuindo, assim, para reorganizar o caos (CSORDAS,

    2008).

    Thomas Csordas um dos autores que muito tem contribudo interpretao da cura

    religiosa no pas.6 Com sua pesquisa Corpo, Significado, e Cura, Csordas (2008) aborda

    diretamente a questo da cura religiosa e explora as implicaes tericas e metodolgicas que

    visam dar conta da experincia de quem passa pela cura. A preocupao fundamental desse

    autor a configurao de um paradigma para a interpretao dos sentidos do ser humano,

    um paradigma que seja capaz de dar conta tanto do vivido e de suas transformaes quanto do

    culturalmente estabelecido, do compartilhado e dos significados j sedimentados. Dentre

    outros grupos estudados, Thomas Csordas pesquisou os rituais de cura entre Catlicos

    Carismticos atentando para questes transculturais de procedimentos envolvidos no adoecer,

    no curar e nas relaes com o sagrado.

    Nesta tese, analisamos dimenses conceituais de cura bem como de doena que

    abrangem as esferas do pessoal, do familiar e do social. Tais esferas correspondem a casos em

    que uma pessoa ou sua famlia est procura de cura. Porm, no podemos desconsiderar que

    mesmo quando procurada por indivduos, a repercusso da cura tambm coletiva e tem um

    efeito social mais amplo, como atestam casos de reintegrao da pessoa na comunidade, de

    mudana de comportamento e de soluo de problemas relacionados relao conjugal e

    familiar, ao desemprego, depresso, a vcios e a algumas doenas fsicas e mentais.

    Realizamos o estudo no interior da Paraba nas micro-regies do Brejo, Curimata e

    Agreste.7 Parte dessas micro-regies localiza-se no semirido. O estudo compreendeu reas da

    Diocese de Guarabira abrangendo cerca de cinco municpios8, delimitados a partir da

    referncia relevante s atividades de cura. A regio do Curimata caracteriza-se pelos

    impactos negativos causados pelas secas, que geram frgeis condies do solo para o trabalho

    na terra. A situao atual do Stio Olho dgua est em pleno contraste com o passado,

    quando o local era conhecido por sua vegetao abundante.

    6 Csordas tem influenciado os estudos mais destacados no campo da cura no Brasil como os trabalhos de Negro

    (1997); Minayo (1994); Maus (2000; 2002); Rabelo (1994; 1993); Monteiro (1985) dentre outros. 7 Essas regies se diferenciam por clima, relevo e vegetao, no entanto, de acordo com a linguagem comum da

    diocese, em funo de sua rea de atuao, costumeiramente denomina-se em geral, regio do Brejo. 8 Os municpios Tacima, Pirpirituba, Bananeiras, Solnea e Guarabira.

  • 17

    Os sujeitos da pesquisa tm em sua maioria origem camponesa. Vale salientar que, em

    virtude de suas caractersticas scio-polticas particulares e experincia de carncia

    econmica, esses indivduos combinam, ao longo de suas histrias, o trabalho na agricultura

    com outras atividades.9 No entanto, como assinalam Cavalcanti (1984) e Garcia Jr. (1990), a

    migrao temporria para os grandes centros do pas, especialmente para o sudeste, constitua

    uma estratgia de sobrevivncia importante. Nas ltimas dcadas, problemas conseqentes da

    seca, violncia e assaltos, dos quais os idosos e aposentados so vtimas preferenciais,

    provocaram a migrao definitiva para as cidades do interior. Esses problemas interferem no

    livre trnsito das pessoas, inclusive na sua ida aos locais religiosos.

    ii O perfil dos entrevistados

    Foram entrevistadas 50 pessoas. Dadas as condies de realizao da pesquisa, com as

    50 entrevistas reunimos um total de 61 informantes (37 mulheres e 24 homens). Isso ocorreu

    devido forma como procederam as entrevistas. Freqentemente, a pessoa entrevistada esteve

    acompanhada do cnjuge, do filho ou da filha. Em alguns momentos pessoas interessadas se

    juntaram ao grupo, fazendo com que tivssemos de adotar uma abordagem adequada para um

    tipo de grupo focal. Das pessoas que entraram nas entrevistas ao lado de um narrador

    principal, no foram registrados dados especficos. Das 50 pessoas entrevistadas, 7 pertencem

    ao grupo dos curadores.

    Sexo, estado civil, composio da famlia

    Do grupo dos cinqenta entrevistados 24 so homens e 37 mulheres. Destes, 12 se

    descrevem como solteiros, incluindo algumas pessoas acima de 80 anos. Outras 12 pessoas

    no informaram o estado civil. Alguns se definem como moa ou rapaz e com isto

    sugerem ser celibatrios. O nmero de filhos entre os entrevistados variou de 1 a 22

    descendentes por famlia.

    9 Destaca-se o trabalho artesanal, a criao de animais para o corte e o servio pblico, basicamente na qualidade

    de professores municipais. So exemplos de estratgias para a vida rural, entendendo que prevalece o auto-

    reconhecimento como agricultor.

  • 18

    Faixas Etrias

    Quinze pessoas entrevistadas tm idade entre 21 e 50 anos, vinte pessoas entre 51 e 70

    anos e 15 entre 71 e 90 anos de vida. Os outros 11 informantes agregados no informaram a

    idade.

    Origem

    Do meio rural procedem a 44 entrevistados. Outros 4 provm da cidade; 3 pessoas no

    informaram sua origem. Entretanto, mesmo constatando uma maioria de origem rural, a maior

    parte do pblico entrevistado hoje reside na cidade: so 42 que residem nas cidades e

    povoados e 19 no campo; 5 pessoas no informaram sua procedncia. Parte das pessoas que

    hoje reside na cidade continua trabalhando no campo.

    Ocupao principal e secundria

    Os entrevistados se ocupam na agricultura, comrcio e servio pblico municipal;

    incluindo auxiliares de servios gerais, vigilantes e um motorista. Os aposentados somam 28

    do total. Alguns destes aposentados, mesmo vivendo nas cidades, ainda trabalham no campo.

    As ocupaes no so excludentes: as pessoas diversificam quando possvel e conveniente. A

    maioria dos aposentados rurais ainda trabalha em atividades agrcolas.

    Orientao religiosa

    Os entrevistados so de origem catlica e enfatizam seu catolicismo, exceto um deles

    que frequenta a Igreja Universal do Reino de Deus. Este explicou que, mesmo sendo

    evanglico, gosta de participar de tudo que representa coisa de Deus. Por isso estava presente

    no Santurio de Ibiapina. Os religiosos consagrados que foram entrevistados somam 05

    homens (trs padres, um bispo e um missionrio) e trs freiras. Alguns outros religiosos

    forneceram informaes por via escrita.

    Problemas citados

    Identificamos um total de cinqenta e dois casos caracterizando: dificuldades

    relacionadas a deficincias fsicas; consultas a respeito de negcios, venda de imveis, por

    exemplo; representao comercial; relaes familiares; atendimento com filhos deficientes

    que se perdem na capital do Estado; livrar-se de sujeio a patres; documentos perdidos;

    aposentadorias atrapalhadas; previses para o enfrentamento de situaes difceis; problemas

  • 19

    graves de sade como doenas cardacas; parto, ps-parto e aborto; e at casos de objetos

    perdidos.

    Somam-se aos 52 casos mais 45 sobre conselhos, previses, orientaes e doenas

    referentes a parentes e outras pessoas ligados aos entrevistados. Desse modo, o total de casos

    no mbito da cura religiosa, dentro do escopo da pesquisa, chega perto de 100 casos, a

    maioria destes registrada na Capela dos Avelinos.

    iii O campo da pesquisa, a capela e os pontos de devoo

    Realizamos um mapeamento preliminar das experincias de cura na regio e

    identifiquei experincias e campos distintos da cura. O recorte para a investigao foi

    orientado pela maior expressividade das experincias relacionadas cura. Dentro dos

    municpios mencionados centralizamos a investigao em trs espaos, considerando as trs

    vertentes de anlise, e abrangendo cinco locais conhecidos e considerados como espao-foco

    de cura religiosa: a Igreja do Stio Olho dgua, conhecida como a Capela dos Avelinos, o

    Santurio de Padre Ibiapina, o Santurio de Frei Damio e o Santurio de Roma, e o Centro

    Bom Samaritano em Pirpirituba. Desse modo, o estudo rene pessoas e experincias dos

    municpios Guarabira, Pirpirituba, Tacima, Bananeiras e Solnea, incluindo nesses

    municpios povoados circunvizinhos: o povoado Bola e o povoado de Cachoeirinha.

    De acordo com os eixos analticos pr-estabelecidos, iniciamos o estudo atravs da

    Capela dos Avelinos por consider-la favorvel para uma interpretao nos rumos e princpios

    de uma investigao etnogrfica. A Capela tornou-se o nosso laboratrio bsico para o

    entendimento e acompanhamento de uma srie de aes que um processo de cura religiosa

    possa conter. A partir da presena neste local e, principalmente, do acompanhamento dos fiis

    dessa Capela tentamos entender aspectos da circulao dos romeiros, em sua devoo e busca

    de graas, nos caminhos que os levam tanto aos Santurios como ao Centro Bom Samaritano.

    Embora separados fisicamente, esses locais complementam um ao outro, numa espcie de

    sintonia que se amplia dos espaos fsicos aos seres protetores, sejam eles Deus, Jesus, as

    Entidades Santas, as Almas Santas: Padre Ibiapina, Padre Ccero, Frei Damio e os agentes de

    cura.

    O pblico que freqenta a Capela dos Avelinos tem uma devoo especial a Frei

    Damio, em funo da histria desse Frade com a Capela. H tambm a articulao dos

    romeiros da Capela com o Centro Bom Samaritano e vice-versa. Encontramos romeiros do

  • 20

    Padre Ibiapina que conheciam no apenas a Capela, mas estavam em tratamento l. Esses

    exemplos revelam a importncia desses locais na vida dos romeiros. No mbito desse

    catolicismo, o romeiro faz seu prprio caminho, at certo ponto com total autonomia.

    Considerando aspectos particulares dos romeiros e tentando compreender a

    diversidade que esses romeiros representam no estabelecer do contato com os diferentes

    locais de cura, reunimos informaes mais precisas referentes s relaes estabelecidas

    entre romeiros e esses cones religiosos e atentamos para a interferncia desses ltimos no

    processo de cura. Estendemos a investigao ao mbito de ao de algumas lideranas

    religiosas citadas no decorrer da pesquisa, como por exemplo, padres e o bispo na regio.

    Observamos que cada local possui suas especificidades e modalidades de atendimento

    que dependem das disposies locais dos santurios, calendrios de atividades dentre outros.

    O romeiro estabelece sua devoo com um ou mais santurios, em momentos singulares ou

    mesmo num ciclo de romarias passando pelo menos por dois Santurios. Este tipo de circuito

    ocorre principalmente nos finais do ano - a partir de outubro - e culmina num dos locais onde

    esteja acontecendo uma missa ou atividade maior do calendrio religioso.

    Considerando aspectos da histria dos focos de cura na regio, a Capela dos

    Avelinos constitui um caso pouco comum. Embora esteja inserida entre os demais, ela se

    mantm particular e at certo ponto meio reservada. A Capela dos Avelinos faz parte da

    simblica rede de cura constituda na regio, mas com uma experincia impar. conhecida

    pelos romeiros locais desde o perodo de 1955 e est em plena rede de sintonia entre romeiros

    e outros curadores da regio. Por sua histria particular e considerando o perodo de criao,

    essa Capela tem vivenciado distintas pocas e paradigmas do catolicismo na regio. Data da

    dcada de 50 seu conhecimento que restrito aos fiis romeiros e pouco notado pelos

    religiosos da Diocese. No h uma divulgao por parte do atual agente de cura local, nem

    pelo proco que s vezes celebra no local. Os prprios fiis estabelecem a divulgao e

    qualquer elo entre a Capela e a comunidade local.

    As terapias religiosas curam ao impor ordem sobre a experincia catica do sofredor e

    daqueles diretamente responsveis por ele. No processo teraputico religioso no apenas a

    devoo, base da f, mas tambm os smbolos religiosos funcionam de modo tal que

    produzam a cura. preciso que sejam compartilhados pelo agente curador, o doente e sua

    comunidade de referncia; o espao propcio em que os religiosos entram em cena para

    expressar sua f est na comunidade de referncia. Esta relao com a comunidade se torna

    pressuposto bsico onde smbolos e significados interagem no processo de cura. Neste estudo

  • 21

    veremos tambm alguns exemplos em que no caso da cura realizada atravs da relao do fiel

    com um santo, via promessa ou devoo, torna-se elemento comum aps a cura o devoto

    oferecer um smbolo, representando um rgo, cabea, brao, p, perna, seios, fotos, objetos,

    casa, moldura de animais. So os conhecidos casos dos os ex-votos.

    Clifford Geertz (1989:104-105) definiu a religio como um sistema de smbolos

    agindo para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposies e motivaes nos

    homens, atravs da formulao de conceitos de uma ordem de existncia geral, e vestindo

    essas concepes com tal urea de fatalidade que as disposies e motivaes parecem

    singularmente realistas.

    Eliade (2002) tratando do simbolismo e a psicanlise entende que, o pensamento

    simblico no uma rea exclusiva da criana, do poeta ou do desequilibrado: o pensamento

    simblico consubstancial do ser humano, da linguagem e da razo discursiva. O smbolo

    revela aspectos da realidade, os mais profundos, que desafiam qualquer outro meio de

    conhecimento. As imagens, os smbolos e os mitos no so criaes irresponsveis da psique,

    mas respondem a uma necessidade e preenchem uma funo: revelar as mais secretas

    modalidades do ser. nessa linha de raciocnio que situamos a compreenso do simbolismo

    no catolicismo popular. No catolicismo popular tanto a expresso simblica como as

    concepes temticas envolventes do sentido dado vida e morte so aspectos profundos

    das realidades enfrentadas pelas diferentes pessoas envolvidas. Eliade reconhece a

    abrangncia e importncia que o smbolo representa numa cultura. Neste estudo, quisemos

    observar o alcance e significado dos smbolos quando relacionados f no processo de cura.

    Os casos de cura investigados com este trabalho so ligados ao universo catlico. No

    entanto, a cura rene caractersticas que so pertencentes a outros credos e a outras religies.

    Embora o catolicismo popular j seja algo diverso em si, as experincias apontam para outras

    crenas, principalmente criaes indgenas e afro-brasileiras. Essa constatao levou a

    introduzir o debate acerca do sincretismo religioso10

    , numa abordagem enquanto hibridao

    intercultural, usando este termo emprestado de Canclini (1997).11 Sanchis (1997) entende o

    campo religioso a partir da perspectiva de sincronia/diacronia e sugere, assim, uma condio

    10

    O termo sincretismo religioso tem uma longa tradio no mbito das cincias sociais e dos estudos da religio

    em geral. Bastide (1978) se destacou com a compreenso de representao coletiva. A explicao sociolgica aponta para uma situao em que os africanos tiveram que mascarar suas crenas sob um catolicismo emprestado, resultando numa fuso de orixs com os santos catlicos. 11

    Canclini (1997) no tratou especialmente da nossa temtica, pois suas investigaes foram centralizadas nas

    culturas urbanas. Entretanto, sua anlise acerca das prticas culturais enquanto campos hbridos so relevantes

    para a nossa compreenso.

  • 22

    dialgica na compreenso do passado e presente, em que h lugar para percepes e

    elaboraes prprias de cada grupo envolvido.

    No decorrer deste trabalho, dialogamos com diferentes estudiosos da religio e da cura

    religiosa. O marco terico da tese prioriza Marcel Mauss, Thomas Csordas e Emile Durkheim

    por suas contribuies tericas. Seus conceitos de dom, ddiva, religio e a prpria

    compreenso do sagrado em sua relao com o real so pertinentes para este trabalho.

    Esta tese no visa questionar descobertas realizadas no campo da medicina, nem fazer

    apologia a poderes supremos. Ns pretendemos trazer luz algumas explicaes para melhor

    compreender as prticas populares significativas, mas relegadas a um lugar marginal na

    sociedade. Reconhecemos que no dia-a-dia as pessoas transitam entre as diferentes

    especialistas da sade como tambm procuram os especialistas e locais religiosos em busca de

    assistncia. Elas circulam entre as solues possveis e acessveis, de acordo com suas

    carncias e/ou as ofertas predominantes no local.12

    Diferente das explicaes por vezes reducionistas da medicina, os sistemas religiosos

    de cura oferecem uma explicao para a doena que se insere no contexto scio-cultural mais

    amplo do sofredor.13

    Ou ainda, mais do que atribuir a estados confusos e desordenados, a

    interpretao religiosa organiza tais estados em um todo coerente (LVI-STRAUSS, 1967).

    Enquanto o tratamento mdico despersonaliza o doente, o tratamento religioso visa agir

    sobre o indivduo, como um todo, reinserindo-lhe como sujeito em um contexto de

    relacionamentos (TAUSSIG, 1980). A passagem da doena sade pode ser vista como

    reorientao mais completa do comportamento do doente, na medida em que transforma a

    perspectiva pela qual este percebe seu mundo e se relaciona com os outros.

    A tese est organizada em seis captulos e a concluso. No primeiro captulo

    registramos o processo metodolgico da pesquisa, com nfase na dimenso etnogrfica. No

    segundo captulo contextualizamos o campo religioso no Brasil e na regio da pesquisa,

    trazendo o debate acerca da constituio do catolicismo contemporneo e sua relao com o

    catolicismo tradicional voltado para a cura religiosa. O terceiro captulo analisa a percepo

    12

    Esse fenmeno bastante recorrente na pesquisa e na literatura afim tem adquirido denominaes diferenciadas

    que variam da terminologia de sincretismo ao transito ou mercado religioso. (BASTIDE, 1973; VALENTE,

    1976; SANCHIS, 2001). Tambm tem sido denominado por Heelas (1994) de prticas dos sem religio (HEELAS, 1994). No catolicismo popular o transito religioso existe e apresenta uma caracterstica bastante

    peculiar na juno de diferentes elementos num processo de cura. Por exemplo, a combinao da orao com os

    medicamentos fitoterpicos e muitas vezes a alimentao. Por esta razo daremos prioridade ao termo hibridismo

    cultural religioso em substituio do termo sincretismo. 13

    Este uma opinio que muitos estudiosos da cura religiosa compartilham; tanto a partir os analistas clssicos

    da teoria, a exemplo de Csordas (2008) e Taussig (1980), como entre os especialistas em estudos de carter mais

    local como Rabelo (1993; 1994), Minayo (1994), Vasconcelos (2006) e Maus (2002).

  • 23

    do publico informante acerca do sofrimento, da doena e da cura, contextualizada pelas

    ponderaes tericas atuais. No quarto captulo tratamos das trajetrias de vida e

    caractersticas de alguns curadores, identificando fatores relacionados ao dom de cura. No

    quinto captulo tratamos da aquisio do dom de cura em suas diversas modalidades e

    relacionado a exigncias e reciprocidades estabelecidas. No sexto captulo ponderamos os

    processos de cura relacionados percepo da eficcia dos procedimentos, com destaque

    para a orao e a f. Na concluso retomamos alguns aspectos referentes s concepes de

    cura e dos procedimentos utilizados. Inclumos informaes referentes posio da hierarquia

    religiosa a respeito da cura, abordamos o tema da relevncia social da cura religiosa e

    propomos algumas questes para investigao futura.

    As totalidades - prticas e simblicas - no campo religioso, no contexto dos

    saberes do passado e do presente, so ncoras na vida das pessoas. Na cura religiosa, uma

    cadeia de solidariedades e reciprocidades se faz presente nas ddivas construdas a partir da

    religio. Ddivas que so re/criadas no universo dos curadores e curados; que envolvem

    pessoas, geraes e pocas histricas, e Deus, Santos, Almas Santas e os agentes

    intermediadores no mbito da f e da cura.

  • 24

    CAPTULO I

    PERSPECTIVAS METODOLGICAS E DELIMITAO DOS CAMINHOS DA

    PESQUISA

    1.1 Especificidades metodolgicas

    Os caminhos percorridos com esta pesquisa foram diversos, surpreendentes e bastante

    sugestivos. Em meio a desafios constituram momentos reflexivos da prpria prtica

    metodolgica. Navegamos por guas claras e obscuras, mas sempre instigantes, seja pelas

    questes e possibilidades que foram surgindo, seja pelas interferncias que foram traando o

    desenvolvimento do caminho a ser seguido.

    Cada passo que nos levou a um novo informante somava complementaes que no

    estavam previstas no roteiro metodolgico pr-elaborado. O dilogo estabelecido com as

    pessoas idosas deu acesso a informaes abrangentes de diferentes ciclos de vida dos

    pesquisados e ao resgate de distintas formas de experincias com o sagrado. Experincias que,

    conservadas ou ressignificadas em suas formas de expresso na contemporaneidade,

    possibilitaram o acesso a um quadro explicativo mais completo acerca da espiritualidade e da

    sintonia estabelecidas entre as pessoas e delas com Deus. Deparamo-nos com variados

    conhecimentos, exemplos de aglutinaes de crenas, percepo de saberes e foras

    consideradas ncoras para o enfrentamento de pocas difcieis, segundo a linguagem e a

    observao dos comportamentos comunicados, na medida do possvel.

    Neste sentido, pudemos registrar experincias e as estratgias de sobrevivncia

    utilizadas por estas pessoas para enfrentar as dificuldades em pocas de fortes carncias, na

    maioria dos casos, referentes a tempos de secas. Distantes e carentes de polticas pblicas e

    do acompanhamento dos movimentos sociais, que ainda no se destacavam na regio, os

    agricultores foram levados a buscar estratgias de autoajuda para garantir a sobrevivncia.14

    A cura e as modalidades da cura que tratam primordialmente do corpo ou do esprito

    abrangem outros campos da vida humana e das relaes sociais. O somatrio de estratgias e

    14

    No decorrer do trabalho colocaremos exemplos. Em destaque, o caso de um dos curadores que atravs de um

    pequeno barraco colocava alimentos bsicos em circulao e as pessoas iam pagando quando podiam, de modo que os mais carentes no passavam necessidade.

  • 25

    modalidades de cura vai sendo modelado, segundo as regras de um campo que denominamos

    neste trabalho de cura social.15

    Por alguns momentos, questionamo-nos acerca de nossas reais competncias para

    levar um estudo dessa natureza frente. O questionamento surge no por duvidar de nossas

    capacidades terico-metodolgicas para com a pesquisa, mas por reconhecer-nos inseridos em

    um meio marcado por uma vivncia espiritual to profunda, cujo processo de apreenso e

    explicao exigiria algo mais que nosso conhecimento acadmico e at algo mais de nossa

    prpria vivncia religiosa, somados ao trnsito e demais experincias e/ou conhecimentos que

    reunimos em torno do catolicismo naquela regio.

    Adentrar na esfera de um universo religioso e poder entender as experincias pessoais

    e coletivas com o sagrado, to reais nas vidas prticas dos fiis, no se trata apenas de ter

    familiaridade com o tema. Essa tarefa exige do pesquisador uma capacidade impar de

    constituir sua prpria sensibilidade, sem perder cada detalhe de uma experincia que lhe

    apresentada, sem envolver-se emocionalmente com o assunto. Assim pudemos observar que

    cada relato de uma experincia religiosa se constitua nico e atuante em conjunto,

    complementando-se e explicando outros fenmenos como a prpria abrangncia e

    materializao da religio, que por mais abstrata que parea prtica; as experincias so

    tambm formas de interferncia e juno em diferentes universos - religioso, psicolgico,

    econmico, cultural - que estabelecem suas conexes com o divino ou vice e versa.

    Pois, embora se denomine popular, o universo religioso das pessoas devotas do

    catolicismo popular e principalmente das residentes no mundo rural, ao primeiro olhar, um

    universo impenetrvel, algo fora do comum, para quem de fora. Um coletivo, mas que

    extremamente particular repleto de modos prprios, envolventes de mistrios e sentidos

    prprios. Coisas vividas que nem sempre so coisas ditas. Conscientes dessa inteireza da cura

    no catolicismo prosseguimos com a certeza de estarmos inseridos em um campo muito

    instigante. Ao lado dos nossos propsitos e do nosso planejamento inicial, deixamo-nos guiar

    tambm pelas possibilidades surgidas, em torno de quem entrevistar e que passo dar; de certa

    forma, seguimos o rtmo de como essas possibilidades surgiram; constituindo assim, o prprio

    percurso da pesquisa.

    15

    Cura social um termo que perpassa o conjunto deste trabalho. Mas, sua funo destacar que no contexto

    desta pesquisa a cura realizada abrange distintas dimenses na vida das pessoas. Os males que aparentemente so

    fsicos quando sanados interferem fortemente nas relaes sociais. A exemplo: o acompanhamento psicolgico

    que o curador desenvolve em suas aes ao atender uma mulher cujo relacionamento conjugal ou familiar

    constitui um atropelo em sua vida. Incluem-se a tambm os casos de alcoolismo, traies conjugais, e mesmo os

    casos extremos como a escassez de alimentos, resolvidos pela estratgia de solidariedade.

  • 26

    Afinal, podemos reconhecer que o ato de pesquisar tambm pode ser considerado uma

    arte e o fato de pesquisar a dimenso da f na religio ter acesso a um conjunto de arranjos

    que juntos atuam com muita disposio em torno de um ou mais objetivos. Conforme afirma

    Geertz (1923:16) Quaisquer que sejam as fontes ltimas da f de um homem ou grupo de

    homens, indiscutvel que ela seja sustentada neste mundo por formas simblicas e arranjos

    sociais. O que uma religio dada seu contedo especfico - est incorporado nas imagens e

    metforas que seus seguidores usam para caracterizar a realidade.

    A oportunidade de contato com as pessoas idosas, pioneiras nas experincias de

    romaria ao Juazeiro do Padre Ccero do Juazeiro e pioneiras na construo da Capela do Stio

    Olho dgua tambm chamada de Capela dos Avelinos ou Capela So Pedro, portanto

    pessoas com experincias nas romarias locais, tornou-se um fato muito significativo para a

    pesquisa. O dilogo estabelecido e com isto o alcance a informaes abrangentes de diferentes

    ciclos de vida dessas pessoas, favoreceu substancialmente o processo de compreenso deste

    objeto de estudo. Consideramos essa possibilidade mpar porque ela resultou, tambm, na

    valorizao de distintas formas de experincias que as pessoas estabelecem com o sagrado

    que ressignificadas ou mesmo conservadas enquanto valores, trazidas ao debate atual

    possibilitaram-nos o acesso a um quadro explicativo mais completo acerca no s das curas

    ocorridas, mas em geral, das formas de espiritualidade e sintonia estabelecidas entre as

    pessoas e Deus; Deus e as pessoas e destas entre si em suas vidas prticas, em seus contextos

    especficos. Deparamo-nos com conhecimentos variados, com aglutinadas crenas, a

    percepo de saberes e foras, consideradas sustentao, ou arranjos simblicos acionados

    para o auxilio e enfrentamento de pocas difcieis, por esses atores a se comprovar nos relatos

    e depoimentos concedidos.

    Algumas experincias prvias influenciaram as nossas intervenes metodolgicas e

    contriburam na investigao do objeto, somados ao nosso conhecimento da regio, fruto de

    vivncias e experincias diversas, marcadas por diferentes perodos histricos e formas de

    insero. A experincia profissional extensa permitiu que percebssemos a delicadeza do

    tema e das pessoas envolvidas no contexto do prprio catolicismo que perpassam diferentes

    pocas e formas de construo e vivncia. Entretanto, no campo, as coisas raramente so o

    que parecem e raramente so como apresentadas ao pesquisador pelas pessoas do lugar.

    (WOLF 2003:349). Mas as possibilidades de aproximao e escuta so valiosos para que a

    anlise possa ser apresentada de forma aproximadamente fiel sua existncia, sua essncia e

    real expresso.

  • 27

    Priorizamos um trabalho de cunho etnogrfico16

    baseado nos princpios da observao

    participante - nos termos da participao observante, conforme prescreve Durham (1986).

    Prevendo o contnuo vaivm entre interior e exterior de cada situao ou como afirma Velho

    (1978) na tentativa de ser ao mximo imparcial para cada caso observado, colocando-se no

    lugar do outro e ao mesmo tempo sendo distante fsica e psicologicamente. Esses princpios

    constituem elementos das tarefas desafiantes ao pesquisador por requererem dele, at certo

    ponto, um desempenho rigoroso que interfere a cada situao. E conforme se sabe, numa

    pesquisa h limites em ambos os lados, do pesquisador e do pblico pesquisado; por mais que

    o pesquisador seja ousado em suas propostas metodolgicas, dificilmente alcanar a

    perfeio em se aproximar metodologicamente dos passos dos mestres fundadores da

    etnografia at mesmo porque a realidade do universo das pesquisas difere substancialmente

    daquele vivenciado por esses mestres, como apontam as crticas.

    Orientamos o nosso olhar, o ouvir e o escrever vigiados sob a tica de Oliveira (1998)

    identificado como as trs etapas de apreenso dos fenmenos sociais. De acordo com

    Oliveira, o ouvir e o escrever podem ser questionados em si mesmos, e quando essas

    faculdades so disciplinadas pela prtica cientfica influem nas formas de percepo que so

    expressas pelo ato do escrever; sem esquecer que observar aplicar os sentidos a fim de obter

    uma determinada informao sobre algum aspecto da realidade (OLIVEIRA 1998:18).

    Munida dessa preocupao chamamos a ateno para certos cuidados no campo da

    observao. A observao pode ser sistemtica e assistemtica. Sistemtica, aquela planejada,

    estruturada ou controlada; e assistemtica, ocasional e simples (RUDIO, 1985). Neste

    trabalho, usufrumos de ambas as modalidades da observao procurando adquirir o mximo

    de possibilidades para constituir, com segurana, um campo de elementos explicativos com

    coerncias e, portanto alcanar uma dimenso explicativa satisfatria ao nosso objeto.

    Na busca por respostas aos objetivos formulados, percorremos um caminho de

    mltiplas entradas. Resgatar histrias vividas, percorrendo uma trajetria dos anos 50

    atualidade, em um dos locais da pesquisa, tornou-se uma perspectiva bastante desafiante. Esta

    possibilidade fez do trabalho de resgate da memria um dos aliados importantes no processo.

    O trabalho com a oralidade no corresponde apenas a um ato ou procedimento nico.

    A histria oral a soma articulada, planejada, de algumas atitudes pensadas enquanto um

    conjunto. Atravs da tcnica da entrevista o resgate da oralidade prope um processo

    16

    Etnografia no nos modos clssicos de Malinowski (1978), mas na possibilidade de poder etnografar

    experincias que possibilitem a descrio e explicao das experincias vividas pelos informantes, com o

    mximo de detalhes possveis ao registro no mbito da cura, conforme descreve Geertz (1989).

  • 28

    dialgico, em virtude da possibilidade do contato direto de pessoa a pessoa (MEIHY e

    HOLANDA, 2007). Neste sentido, interpretar as histrias orais pode se tornar complexo em

    funo de interferncias de um acontecimento que entra no jogo dos relatos, a fim de explicar

    outro. Essa situao exige bem mais que o pesquisador consiga encontrar a convergncia

    efetiva dos narradores, com cuidados essenciais a explicao do que est sendo pesquisado.

    (QUEIROZ, 1988). Na apreciao dos casos de curas realizados tornou-se possvel observar

    uma linha explicativa de cada indivduo que prossegue em sequncias, como se obedecessem

    a determinaes que no so exclusivamente suas. Ela at certo ponto reflete um coletivo,

    uma situao econmica, uma vivncia individual que ao mesmo tempo coletiva; um

    coletivo que envolve pessoas e entidades divinas. Influncias se cruzam e interagem, e

    repercutem nas identidades individuais.

    No novidade alguma afirmar que o indivduo cresce num meio scio-

    cultural e est profundamente marcado por ele. Sua histria de vida se

    encontra, pois, a cavaleiro de duas perspectivas: a do indivduo com sua

    herana biolgica e suas peculiaridades, a de sua sociedade com sua

    organizao e seus valores especficos. A histria de vida, em resumo, se

    encontra apoiada em duas disciplinas, a psicologia e a sociologia.

    (QUEIROZ 1988:36)

    Em funo das especificidades do nosso campo da pesquisa, dentre estas, o desafio do

    dilogo entre diferentes geraes, estados civis e gnero17

    , optamos por priorizar e investir na

    valorizao das trajetrias de vida e da memria. A escolha pelo caminho da oralidade

    facilitou o trabalho de pesquisa, uma vez que as pessoas idosas se tornaram as principais

    fontes de informao acerca no s de suas experincias de cura, mas a respeito da trajetria

    de vida e da existncia dos curadores em diferentes pocas. Nesse trajeto, uma informao

    completava a outra, e todas traziam elementos importantes para compreender o processo de

    implantao e legitimao do atual agente de cura, assim como a legitimao daquele local

    originado na dcada de 1950.

    Entendemos a oralidade de acordo com Pollak (1992:201): (...) a memria parece ser

    um fenmeno individual, algo relativamente ntimo, prprio da pessoa. Mas, a memria deve

    ser entendida tambm, ou, sobretudo, como fenmeno coletivo e social, ou seja, como um

    fenmeno construdo coletivamente e submetido a flutuaes, mutaes constantes. Em

    conformidade com as observaes do autor tivemos a oportunidade de observar como na

    maioria dos relatos existem marcos e pontos relativamente invariantes e imutveis. No resgate

    17

    Cf. Perfil dos entrevistados.

  • 29

    de uma trajetria de vida, por exemplo, a ordem cronolgica no , necessariamente,

    obedecida. H uma permanente interao entre o vivido e o aprendido, o vivido e o

    transmitido. Surpreendeu-nos como para os mais idosos, situados numa faixa de 70 a 90 anos,

    os fatos relacionados cura so trazidos e revividos com grande emoo congregados a outros

    acontecimentos que foram importantes em suas vidas. A experincia de cada um tornou-se

    relevante para a anlise e compreenso da importncia da f e da devoo nas graas

    alcanadas, conforme os depoimentos e relatos fornecidos. H, inclusive, tradues de cantos

    e oraes que nos foram trazidos por essas pessoas, que foram utilizados em dcadas passadas

    quando seguiam os passos de romeiros do Juazeiro.18

    Outro ponto importante da investigao foi o acesso ao acervo de documentos escritos

    tais como as cartas de Frei Damio a um dos curadores antigos, embora afetadas pelo tempo

    da escrita, contendo aconselhamentos, reflexes e regras de comportamento dirio a serem

    praticados pelo curador.19

    Objetos e lembranas do antigo curador, alguns ainda guardados,

    que trazem elementos explicativos de sua vida no cenrio, suas crenas, seu trabalho e de sua

    total dedicao religio.

    Constatamos que Frei Damio tambm se constituiu em conselheiro e orientador

    pessoal com o atual agente de cura, porm no caso deste, diferentemente do que ocorreu

    com o curador anterior, as orientaes fornecidas no foram escritas, mas obtidas atravs de

    contatos pessoais. Podemos dizer que atravs de Frei Damio originaram-se as orientaes

    especficas e esclarecedoras favorveis iniciao e desempenho do atual curador,

    considerando o momento oportuno em que ele se encontrava no sofrimento como na fase de

    introduo sua misso de intermediador da cura. Esta informao foi confirmada, no

    apenas pelo agente atual de cura, mas pelos idosos conhecedores da histria daquele local de

    cura. O relato a seguir explica a afirmao anterior.

    A respeito do primeiro curador:

    O pessoal vinha de muitos cantos, recorria a ele e ele era muito feliz na casa

    dele. Foi muito feliz. O pessoal gostava muito dele. E as oraes dele,

    porque ele vivia de devoo, no sabe? Frei Damio adorava ele.

    Frei Damio podia estar no meio de muita gente, mas ele chegasse, parece

    que adivinhava! Quando ele chegava assim, ele podia est no fim do povo de

    onde vinha gente, Ele dava com a mo e fazia assim (sinal de chamar) e ele

    (Avelino) ia bater nos ps dele. Ele tinha muita f em Frei Damio. E ele

    nele.

    18

    Citaremos alguns exemplos na descrio sobre o processo de cura. 19

    H uma citao no captulo V deste trabalho.

  • 30

    Porque ele fazia uma devoo, no sabe? O povo dizia que era pecado, no

    era pecado porque a sorte dele era aquela, no era?

    Sobre o atual curador:

    Sabe? Ele tinha uma f nele (em Frei Damio) e no Padre Ccero. Ave

    Maria! Ele disse que tinha hora que parece que via ele assim na frente, perto

    dele... Ele era muito devoto, rapaz! Ele era muito devoto, desde criana. Ele

    disse que quando era criana todo dia rezava um Pai-Nosso para o padre

    Ccero!

    Esse camarada (referindo-se ao atual curador) comeou com sofrimento

    tambm a o povo tambm a porque vira e por que... A foi bater onde

    estava Frei Damio. Quando chegou l ele disse que ele podia seguir com a devoo dele. Mas a

    famlia, muita gente da famlia dele dizia que no tinha futuro no. Mas Frei

    Damio deu apoio a ele.

    (Josefa Barbosa, 90 anos)

    Dedicamo-nos com ateno a ouvir as histrias que foram contadas. De acordo com

    Queiroz (1988:20), a histria de vida atua como a tcnica que capta o que sucede na

    encruzilhada da vida individual com o social. Desta forma, as informaes recolhidas e

    registradas renem fatos que articulam vrias dimenses. Os relatos retratam, por exemplo,

    especificidades das comunicaes entre os pacientes e os curadores, os pacientes e os

    cones religiosos. H um entrelaamento da vida individual com o social, e da vida social com

    outros fenmenos da religiosidade. As formas especficas de se cumprir uma devoo

    chamam ateno; incluindo as prticas comuns no catolicismo, como rezas, oraes; a

    comunicao atravs dos sonhos e/ou mensagens recebidas pelos informantes, ou de suas

    relaes com os curadores, nas distintas pocas, tanto em vida, como aps a morte. Neste

    contexto, destaca-se a histria do primeiro curador ao lado de outras figuras importantes no

    catolicismo popular na regio como nos casos do Frei Damio e o caso do padre Ibiapina. Da

    mesma forma, foi-nos possvel compreender as especificidades com que essas pessoas

    estabelecem e mantm as suas relaes com os Santos Consagrados em suas devoes.

    Alguns exemplos sero citados no decorrer deste trabalho, mas em relao ao fenmeno da

    interveno dos sonhos na vida prtica das pessoas faz-se necessrio um pequeno comentrio:

    Eliade (1957:11) se refere aura religiosa de que certos contedos do inconsciente no

    surpreendem o historiador das religies, ele sabe que a experincia religiosa implica o homem

    na sua totalidade e, por conseguinte, tambm as zonas profundas do seu ser. H outro fato

    importante em que Eliade (1957:12) diz que isto no quer dizer que se reduz a religio aos

    seus componentes irracionais, mas simplesmente que se reconhea a experincia religiosa tal

  • 31

    como ela : experincia da existncia total, que revela ao homem a sua modalidade de ser no

    mundo.

    Neste sentido, os depoimentos concedidos, as situaes observadas, os objetos de

    alcance como as fotos, aquelas apresentadas pelos informantes bem como as produzidas nesta

    pesquisa; somadas s demais fontes, como cartas escritas por padres e por fiis ao agente de

    cura, tornaram-se valiosos complementos ao nosso campo de investigao.

    Por outro lado, saindo um pouco do mbito das tcnicas voltadas para a oralidade, a

    opo pela incluso de um questionrio no processo da pesquisa objetivou alcanar

    informaes para auxiliar a identificao de alguns pontos considerados importantes para a

    anlise. O uso do questionrio possibilitou o acesso a outras informaes de carter particular

    dos informantes, tais como dados sobre: sexo, ocupao, famlia, profisso, residncia, estado

    civil e moradia, e dados da prpria religio. Dessa forma, acreditamos que construmos um

    quadro explicativo que auxilia na construo do perfil dos entrevistados. Introduzir o

    questionrio num trabalho guiado pela observao, cujo objetivo manteve-se centrado na

    possibilidade de etnografar as experincias foi uma forma eficaz para recolher e adicionar

    informaes mais detalhadas acerca dos entrevistados. Entretanto, o ato de recorrer ao uso do

    questionrio no necessariamente resultou numa associao completa entre tcnicas

    qualitativas e quantitativas, em funo dos prprios limites e dimenso dessa introduo.

    Em relao associao de tcnicas, at certo ponto aspecto comum nas pesquisas

    qualitativas, Aguiar (1978), tratando especificamente dos surveys (levantamentos), observou

    que dados obtidos pelos usurios dos surveys so duros, isto , atingem um nvel de

    mensurao que a observao participante no conseguiria atingir. Entretanto, o grau de

    exatido atravs dos surveys, embora duros, com frequncia deixa o interprete em

    dificuldade quanto interpretao das correlaes alcanadas. E, os dados obtidos tanto

    atravs de observao participante, quanto atravs de surveys podem carecer de

    generabilidade na medida em que os de observao participante possam se ater a formas

    muito exclusivas ao contexto investigado, os de surveys, alm deste risco, podem gerar

    tambm outro risco de que a exatido tima no corresponde alcanada, dada a baixa

    explicao da varincia que possvel obter com esse recurso. Neste sentido, como

    demonstramos, nenhum caminho pode ser por si s suficiente no procedimento de uma

    pesquisa.

    necessrio enfatizar que as escolhas metodolgicas foram tratadas como campo de

    possibilidades, como caminhos possveis, avaliados mediante os critrios de aplicabilidade.

  • 32

    Assim fomos revendo formulaes e efetuando alteraes e complementos para cada situao

    a ser investigada, de acordo com as necessidades de viabilizar o trabalho de pesquisa.

    Entendemos que o campo de pesquisa se constitui em um campo de possibilidades, um

    espao social simblico (BOURDIEU, 1987; 2004; 2005). Sujeito a constantes interferncias,

    ele no est imune s contradies e pode se constituir, tambm, em um campo de poder

    (BOURDIEU, 1987). Neste, os sujeitos sociais elaboram suas estratgias. Na relao

    pesquisador-pesquisado, os atores podem recorrer a distintos argumentos no mbito de uma

    questo, dependendo dos diferenciados papis por eles vividos.20

    Nessa relao

    experimentam-se situaes que tanto podem favorecer o processo de pesquisa como dificult-

    lo.

    Em temos gerais, nosso contato com o objeto se beneficiou do nosso conhecimento na

    rea e uma relao fortalecida com parte dos informantes. Durante esta pesquisa pudemos

    usufruir de outras opes. Pudemos sempre que necessrio recorrer s pessoas fontes da

    pesquisa, a quem recorrer para tirar dvidas referentes a alguma questo que fora considerada

    obscura, aps anlise dos dados. Dispor do acesso a esse esclarecimento, principalmente

    quando se tratava de depoimentos dos idosos e das suas experincias de cura e de

    espiritualidade, foi bastante proveitoso para que pudssemos elaborar um quadro de referncia

    para um Modelo da Cura no Catolicismo Popular, desenvolvido no sexto captulo deste

    trabalho.

    Salientamos que as lideranas religiosas, responsveis pelos locais de cura, dentre

    estas, os agentes de cura, estiveram sempre dispostas a responder s nossas perguntas, at

    onde elas puderam ser respondidas. Essas pessoas, sempre com bastante disposio, prestaram

    esclarecimentos de situaes, completaram informaes fornecidas por outros informantes.

    Outro aspecto particular da investigao foi a colaborao de padres da Igreja Catlica que,

    mesmo distncia, estiveram dispostos a completar nosso quadro de informaes enviando

    depoimentos escritos.

    1.2 Aspectos relevantes da prtica metodolgica: uma incurso pelos passos dos

    romeiros

    Podemos afirmar que no decorrer da pesquisa re/vivemos e acompanhamos momentos

    emocionantes da vida dos romeiros. Tanto em suas histrias narradas como na expresso de

    20

    Goffman (1988, 1996) referncia neste aspecto.

  • 33

    suas prticas de espiritualidade, nas suas disposies diante do compromisso com o religioso

    e entre os agricultores, a disposio com que se dedicam ao trabalho na terra. Ao falar com

    um senhor de 69 anos perguntei: O senhor ainda trabalha no campo? Ele respondeu com

    muita nfase e espontaneidade, mostrou suas mos e disse: trabalho at o dia que Deus

    permitir.

    Embora o romeiro apresente de forma geral caractersticas identitrias que se

    assemelham nas diferentes regies do pas - conforme descrito nos trabalhos de Steil (1996);

    Barbosa (2007), dentre outros - podemos afirmar que o romeiro circulante nos Santurios e

    Capelas do Brejo da Paraba se diferencia substancialmente de outros romeiros participantes

    das grandes romarias, tal como acontece nas romarias de Juazeiro do Norte, de Aparecida.

    H diferena na forma como ocorre a romaria nesta regio. Embora existam calendrios de

    eventos e uma programao especfica, proporcionados pela Pastoral das Romarias, a romaria

    no Brejo tende a ser mais especfica, ou seja, trata-se de um evento menos espetaculoso.

    Talvez pela proximidade tanto entre os locais dos santurios como as facilidades de

    locomoo das pessoas, no circuito das suas casas aos locais de celebrao por si j ofeream

    um aspecto especfico daquele conhecido nos grandes Santurios, seja em Juazeiro, ou mesmo

    em Aparecida. Dessa forma, aspectos conhecidos como o fator da peregrinao no deixam

    de existir, mas percebemos que essa peregrinao adquire outro significado e/ou se torna

    mais leve, seja no aspecto da peregrinao em si, seja em outros aspectos comuns

    caminhada do romeiro. As facilidades de movimentao permitem um ir e vir muito

    especfico nesta regio.21

    Vale destacar que esses romeiros da regio do Brejo so e/ou foram tambm romeiros

    de Juazeiro do Norte, no Cear. H expresses de fidelidade e devoo que so mantidas

    mesmo entre aqueles que no conseguem mais viajar ao Juazeiro. Neste caso, mudam as

    condies em termos de espaos celebrativos, mas aqueles que ainda viajam para Juazeiro, ao

    lado de outros romeiros, certamente mantm a identidade de um romeiro peregrino.

    Um caso bastante particular acontece entre os romeiros frequentadores da Capela do

    Stio Olho dgua, tambm chamada Capela dos Avelinos. Entre estes, observamos

    momentos de muita emoo tambm quando eles resgataram fatos relacionados trajetria de

    vida e prtica espiritual do primeiro curador. Um homem comum, mas conhecido e

    relembrado nas memrias dos seus seguidores. Em relao cura, colocado em mesmo

    21

    Pudemos observar que muito comum que os Santurios do Brejo recebem romeiros Rio Grande do Norte e

    Pernambuco e uma concentrao maior de cidades paraibanas. Porm, a falta de infra-estrutura, at certo ponto

    adequada para hospedagem dos romeiros, nos locais de celebrao, favorece um ritmo de chegadas e sadas concentrados em um nico dia.

  • 34

    grau de importncia e ao lado dos grandes cones religiosos: Frei Damio e o Padre Ccero.

    Esse curador foi um devoto fervoroso do Padre Ccero e um amigo fiel do Frei Damio, com

    quem manteve contato pessoal e tornou-se um amigo. Uma amizade que se estendeu

    famlia, demonstrada por um dos seus filhos, que mesmo aps a morte do seu pai, o curador,

    deu continuidade amizade e ainda auxiliava o frade fornecendo o transporte nas misses

    da localidade.

    As senhoras que foram pioneiras do trabalho religioso ao lado do primeiro curador

    chegaram a se emocionar e chorar ou ficaram muito trmulas ao resgatarem os fatos que

    vivenciaram e curas que alcanaram com a intermediao do antigo curador que hoje falecido,

    no vive mais entre elas. A fidelidade e a cura continuam vivas na pessoa do atual curador

    que descrito pelos romeiros como reconhecido e legitimado por possuir dons semelhantes ao

    seu antecessor.

    O fato repetiu-se entre os novos romeiros ao relatarem graas alcanadas com o

    curador atual. H emoes fortes e expresses de gratido a Deus, em primeiro lugar, e em

    seguida ao curador. H tambm casos em que as pessoas chegam a rir das complicaes

    vividas. H relatos de situaes extremas, envolvendo jovens mes e filhos menores. Nesses

    casos os depoimentos ocorreram com choros e interrupes devido a essa penosa recordao.

    Escutamos a histria de trs mulheres de faixa etria diferenciadas. Duas em idade inferior a

    quarenta anos e uma acima de sessenta. Das duas mulheres abaixo de quarenta anos, uma teve

    um filho curado; a outra foi ela a prpria curada. Aquela que teve o seu filho curado

    permaneceu chorando todo tempo da entrevista. O relato continuou com uma segunda pessoa,

    no caso uma tia, conhecedora da histria, que, naquele momento a acompanhava em visita

    Capela.

    De forma semelhante, a outra senhora, que alega ter sido curada de uma febre

    reumtica, pausou o seu depoimento, por vrios momentos, pela dificuldade em reviver o seu

    incmodo. As demais senhoras de idade superior a 40 anos, alcanaram a cura numa

    associao estabelecida entre a Capela e Frei Damio; uma senhora por meio de uma

    promessa ao j falecido Frei Damio; a outra foi curada por contato direto envolvendo a

    Capela e Frei Damio, h 17 anos. Segundo o relato, essa cura se realizou atravs de uma

    bno que ela recebeu de Frei Damio. Nesse dia, ele pregava misso no povoado vizinho

    rea da Capela.

    Durante esta pesquisa os informantes s vezes recuavam. Se por um lado foram muito

    espontneos, por outro, se mostraram reservados, a depender do tema. Nas falas referentes

    sade da mulher, principalmente aquelas mulheres que vivenciaram situaes crticas nos

  • 35

    perodos de resguardo e/ou com a experincia de abortos mantinham reservas. Embora todas

    essas mulheres tenham falado de abortos naturais, elas no relataram, em detalhes, a respeito

    das suas causas efetivas e nem falaram de suas conseqncias. Foi s posteriormente que

    pudemos perceber que alguns problemas enfrentados pelas mulheres, bem como alguns dos

    abortos acontecidos, envolviam direto ou indiretamente a relao com os maridos e com os

    resguardos, conforme relatos sobre a frequncia de problemas ocorridos no ps-parto.

    Perguntamo-nos se o silncio existia em virtude de reservas pessoais, morais ou

    religiosas, ou quem sabe, do conjunto desses fatores. Pois, foi atravs de informaes

    paralelas que ficamos sabendo que em muitas situaes e necessidades as mulheres

    procuravam o curador, mas quando se tratava de casos muito particulares essa procura

    acontecia sem o conhecimento dos seus maridos. Foram citados exemplos de problemas

    srios de relacionamentos conjugais, envolvendo at violncia domstica.

    No temos a pretenso de induzir segundas interpretaes acerca dos problemas

    enfrentados pelas mulheres rurais. Queremos apenas chamar a ateno para as duas questes

    que se colocam: uma, da predominncia de abortos em nmeros considerveis, e a segunda, a

    existncia de problemas de violncia domstica no campo dos relacionamentos conjugais. De

    acordo com os relatos, no perodo ps-parto, algumas mulheres chegavam a enfraquecer o

    juzo, conforme elas mesmas relatam. Os filhos tambm mantm a lembrana, como

    expressada nos prprios relatos que nos foram fornecidos. Aqui, queremos destacar tambm

    que esse tipo de informao tornou-se possvel em virtude dos procedimentos metodolgicos

    adotados. Reconhecemos que a opo por uma tcnica isolada, tal como a opo unicamente

    por entrevistas, no teria permitido adentrar neste universo.

    Problemas semelhantes aos citados, e outros atuais, eram e ainda so trazidos Capela

    e chamam a ateno quando suas solues decorrem da interveno do curador.22

    No passado,

    para os problemas fsicos, receitava-se algum tipo de remdio, ou quando o caso estava fora

    do seu alcance, o curador encaminhava as pessoas ao mdico ou farmacutico. Na maioria dos

    casos, a cura acontecia tambm sem a interveno de medicamento ou de receita. Houve

    tambm os casos para os quais as solues estariam apenas disponveis em forma de

    orientaes psicolgicas. Casos em que se contou apenas com a fora do dilogo e a

    orientao. Boa conversa, uma escuta, s vezes realizada de forma descontrada, nem sempre

    na capela, mas na prpria residncia do curador, resolvia-se a situao. Esse tipo de narrativa

    22

    H por exemplo, casos de mulheres que procuram o atual agente de cura por motivo problemas com gravidez.

    H mulheres que o procuram por traio do marido; outras que o procuram em busca de auxlios espirituais para

    obter foras para se manter, para enfrentar situaes de muita carncia. Assim como h casos de mes que no

    conseguem paz em casa na relao com os filhos.

  • 36

    envolve fortemente os acontecimentos nas dcadas de 50 e 60, mas deve-se destacar que tanto

    as narrativas citadas quanto os procedimentos utilizados so atividades muito semelhantes

    com ocorrncias vividas e narradas por outros atores que compem o pblico cliente na

    atualidade, bem como so semelhantes os procedimentos efetuados pelo atual agente de cura.

    Conforme j dito, cada caso que pudemos escutar foi mpar. Mas surpreendeu a

    quantidade de casos referentes sade da mulher. Alguns relatos sero analisados no decorrer

    dos captulos e so reveladores de que houve interveno dos curadores como forma de

    soluo. H casos em que um simples ch de alecrim, ou a utilizao de gua inglesa serviram

    de meios para a cura. Isto sugere os mistrios da funo e do poder dos curadores

    enquanto assistentes espirituais e sua funo de psiclogo pela especificidade das orientaes

    que fornecem.

    Conforme se pode imaginar, penetrar no universo dos curados bem como dos

    curadores, deparar-se com um campo de muitas possibilidades, mas deve-se saber que o

    terreno frtil para muitas reservas e essas se tornam maiores quando se trata de trajetrias

    pessoais. Seja em relao experincia dos(as) romeiros(as) com Deus e seus enviados. No

    entanto, deparamo-nos tambm com relatos extremamente abertos e espontneos, mesmo em

    casos de histrias pessoais de carter mais ntimo.

    Atravs dessas constataes fomo-nos adequando situao conforme cada caso ia

    chegando a nos no desenrolar da pesquisa. Procuramos investir nas visitas regulares e nas

    possibilidades de aumentar o contato com as pessoas aps cada entrevista, quando era

    possvel. Com isto, acreditamos que adquirimos maior confiana e obtivemos mais

    informaes para a pesquisa. Embora essa estratgia no represente algo incomum ou novo

    para os especialistas em pesquisa de campo, insistimos em enfatiz-la porque tem sido

    bastante proveitosa no processo de observao. Essa estratgia facilitou o acesso s pessoas e

    fortaleceu a relao de confiana mtua. De um lado, da relao de confiana com o pblico,

    as conversas em coletivo com o curador; de outro, o acesso s histrias pessoais em suas

    dimenses possveis.

    A participao nos eventos acontecidos nos santurios foram momentos nicos para o

    contato com os romeiros e o resgate dos seus relatos acerca das graas por eles alcanadas.

    Foi surpreendente observar o fervor com que os romeiros expressam seus sentimentos, pagam

    as promessas e louvam as graas alcanadas. Esse tipo de expresso do romeiro pode passar

    rapidamente despercebido por um observador, mas se dada a ateno necessria, possvel

    destacar caractersticas relevantes acerca das especificidades do ser romeiro.

  • 37

    Os romeiros representam um pblico muito variado, que inclui diferentes idades,

    origens, classes sociais, dentre outros atributos. Porm, observamos que nas romarias do

    Brejo paraibano prevalecem pessoas idosas, boa parte de origem rural dos diferentes

    municpios da regio e at de outros estados. Observamos que entre aqueles de idade

    avanada, segundo comentam, a idade no constitui um obstculo.23

    Pelo contrrio, indica que

    h algo que sugere um amadurecimento da espiritualidade e da experincia com a f. As

    trajetrias de vida dessas pessoas renem e expressam essas caractersticas. Conversamos

    com pessoas de idade acima de 70 anos que dizem estar presentes a cada ano nas romarias que

    acontecem. Muitas vezes saem doentes de suas casas, mas segundo elas, ao chegar aos

    Santurios melhoram.

    Pelas especificidades prprias dos santurios, incluindo aqui tambm as formas de

    gerenciamento e as razes que explicam suas origens, estabelece-se uma sequncia de

    acontecimentos especficos a cada um deles. Combinam-se as iniciativas diocesanas com o

    ritmo prprio do romeiro, cuja presena no local obedece s suas vontades. Essa presena

    pode ser espordica e diversificada, mas no h superposio de calendrios. Se a visita dos

    romeiros se concentra em uma poca do ano, particularmente julho e mais forte a partir de

    setembro, a Diocese tambm se insere nessa demanda e at certo ponto, no impe um

    calendrio; tende a se adequar a esse ritmo.

    Nos Santurios, principalmente nos momentos de realizao dos grandes eventos,

    renem-se romeiros de vrias localidades e com variados fins. H pessoas que podem

    participar apenas do turismo religioso, j outros por aspectos atrativos do local se detm no

    necessariamente ao turismo; por ocasio do evento encontram no local a possibilidades de

    usufruir do clima festivo, s vezes apenas para sentar nos locais de lazer, ou apenas para

    caminhar por entre as ruelas portadoras de objetos venda. Porm, o pblico romeiro que

    devoto participa, portanto, por fins de sua f; um pblico que, do comeo ao fim da

    romaria, se dedica aos acontecimentos religiosos e segue todos os traados das visitas

    especficas presena nas celebraes cumprindo cada passo do ritual em clima de total

    concentrao. Vale salientar que considerando os objetivos desta pesquisa, nos espaos dos

    23

    Essa questo refere-se aos estudos desenvolvidos por Debert (1999) quando analisa as reaes em relao

    idade cronolgica. Essa autora cita Thompson (1991) em uma argumentao sobre histria de vida de idosos de

    diferentes classes sociais, na Inglaterra, e considera que a imagem que os idosos fazem de sua experincia

    pessoal radicalmente contrria do senso comum. Os idosos que no esto doentes ou emocionalmente deprimidos no se consideram velhos. No o avano da idade que marca as etapas mais significativas da vida; a velhice antes, um processo contnuo de reconstruo (DEBERT 1999: 95). De certa forma esses romeiros tambm atribuem sua suposta fora s suas devoes.

  • 38

    santurios focalizamos esse ltimo tipo de romeiro dando especial ateno queles que de

    alguma forma demonstravam estar cumprindo um ritual por graas alcanadas.

    Dessa forma, seguir o caminho dos romeiros nos santurios nos levou ao encontro com

    pessoas diversas e originrias de diferentes municpios. Pudemos observar que os momentos

    de celebrao nos Santurios contam tambm com romeiros que residem fora da regio, seja

    em outros estados do Nordeste ou da regio Sudeste do pas. Em geral so pessoas que

    migraram e fixaram residncias fora. Essa constatao nos leva a pensar at onde caminha a

    devoo e, nesses termos, entender que a devoo vai alm daquilo que se representa e cultua

    perante os altares. Os romeiros viajantes carregam consigo no apenas os ensinamentos

    adquiridos, provavelmente no seio da suas famlias, mas aparentemente em suas vidas dirias

    se alimentam dos valores religiosos que fazem da religio uma fora atuante nos desafios que

    por ventura possam enfrentar nas grandes cidades. Portanto, para o migrante de f, a volta

    regio se constitui tambm num reencontro ou um reforo com os pilares sustentadores de sua

    religio. Esses retornos muitas vezes vo alm de uma visita usual, constituem-se

    momentos de se pagar uma promessa.

    Vale salientar que no mbito dos Santurios a escolha das pessoas para entrevistar

    ocorreu de forma aleatria. Em geral, dirigimo-nos s pessoas que aparentemente pagavam

    uma promessa e estabelecemos um dilogo com elas. Muitas vezes, esse dilogo foi rpido

    por conta das circunstncias do momento.

    Num dia de evento nos Santurios, por exemplo a comemorao da morte do Padre

    Ibiapina, os romeiros esto a correr de uma atividade para outra. Nesses eventos eles podem

    recorrer confisso individual com o padre e at com o Bispo, visitar os lugares sagrados,

    fazer as penitncias e ainda estarem prontos para a grande celebrao. As atividades de um

    dia destes so muito importantes para acompanhar o delineamento de um fiel. Ele est atento

    a tudo aos momentos de encontrar religiosos/as conhecidos ou um amigo que h muito no

    v. Mesmo assim, surpreendeu-nos que muitos romeiros ao serem informados do que se

    tratava a pesquisa vieram a mim querendo falar e prestar seus depoimentos.

    Embora a escolha dos informantes nos santurios tenha sido aleatria, constatamos

    que a maioria dos entrevistados tratava-se de agricultores(as), conforme descrevo no perfil

    dos entrevistados. O fato de pertencerem, em maioria, ao meio rural contribuiu para o

    processo de anlise. Consideramos este aspecto bastante gratificante pesquisa, pois mesmo

    incluindo romeiros de locais diferenciados, boa parte frequentadora tambm dos outros

    locais selecionados para esta pesquisa e assim pudemos observar o circuito de suas

    movimentaes e como cada romeiro concebe as especificidades dos distintos locais e como

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    caracterizam os prprios momentos de suas movimentaes. H em cada visita um aspecto de

    fidelidade muito forte, que se deposita em cada cone religioso daquele local. Por outro lado,

    essas pessoas romeiras estendem a rede de relaes aos prprios cones religiosos que, entre

    eles, acabam sendo inseridos e caracterizados por formarem uma espcie de red