Tese Adriana Vojvodic

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    1/269

    ADRIANA DE MORAES VOJVODIC

    Precedentes e argumentao no Supremo Tribunal Federal:entre a vinculao ao passado e a sinalizao para o futuro

    TESE DE DOUTORADO

    Prof. Titular Dr. Virglio Afonso da SilvaOrientador

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    So Paulo2012

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    2/269

    ADRIANA DE MORAES VOJVODIC

    Precedentes e argumentao no Supremo Tribunal Federal:entre a vinculao ao passado e a sinalizao para o futuro

    Tese de Doutorado

    Tese apresentada como requisito parcial paraobteno do grau de Doutor em Direito peloPrograma de Ps-Graduao da Faculdade deDireito da Universidade de So Paulo.

    rea de Concentrao: Direito do Estado

    Orientador: Prof. Titular Dr. Virglio Afonso da Silva

    Faculdade de Direito da Universidade de So PauloSo Paulo2012

    2

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    3/269

    ADRIANA DE MORAES VOJVODIC

    Precedentes e argumentao no Supremo Tribunal Federal:

    entre a vinculao ao passado e a sinalizao para o futuro

    Tese apresentada como requisito parcial paraobteno do grau de Doutor em Direito do Estado

    pelo Programa de Ps-Graduao da Faculdade deDireito da Universidade de So Paulo. Aprovada

    pela Comisso Examinadora baixo assinada.

    ______________________________________Prof. Titular Dr. Virglio Afonso da SilvaOrientador

    ______________________________________

    ______________________________________

    ______________________________________

    ______________________________________

    3

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    4/269

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo todas as pessoas que participaram de meu desenvolvimento nos anos em que me

    dediquei a esta tese. Meu amadurecimento acadmico deve-se especialmente

    contribuio de inmeras pessoas que estiveram presentes nas vrias fases que este

    trabalho envolveu.

    Em primeiro lugar agradeo ao meu orientador Virglio Afonso da Silva, no s pelo

    trabalho de orientao, mas pela dedicao em construir um ambiente de constante debate

    acadmico, pautado na ampla liberdade intelectual e na troca substancial de ideias.

    Agradeo ao professor Jeffrey Jowell, da University College London, meu orientador

    durante o perodo de estgio no exterior.Aos professores Diogo Rosenthal Coutinho, Jean Paul Veiga da Rocha e Marcos Paulo

    Verissimo, membros da banca examinadora de qualificao, pelos comentrios, crticas e

    sugestes que fizeram ao trabalho, alm do incentivo e do apoio.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo pelo financiamento concedido

    para a realizao do doutorado.

    Agradeo a Roberta Sundfeld e Carlos Ari Sundfeld, por todas as oportunidades e pelos

    incentivos nos projetos que realizei na Sociedade Brasileira de Direito Pblico. A todos oscolaboradores da sbdp, pesquisadores e alunos da EF, que formam um ambiente de

    desenvolvimento acadmico to rico e instigante.

    A Rafael Scavone Bellem de Lima, a Evorah Lusci Cardoso, Joana Zylberstein, Ana Mara

    Machado, Flvio Beicker e a todos os colegas de orientao que tanto me ajudaram em

    discusses, seminrios, reunies, conversas e cafs.

    A Priscila Pivatto e Daniel Strauss, amigos para todas as horas, por toda a ajuda e pela

    deliciosa recepo.

    Aos grandes amigos franciscanos, Carol Cagnoni, Ana Paula Leoni, Bianca Cruz, Bruna

    Marrara, Helena F. Fonseca, Denis Don, Diogo Naves, Eduardo Silvestre, Erik Arnesen,

    Flvio Andrade, Gabriel Barretti e Francisco Bueno.

    s queridas amigas Dbora Maclean, Rebecca Gendler, Sabrina Duran e Silvia Anderson,

    pessoas que tanto admiro, companheiras de todos os altos e baixos.

    A Bruno Ramos Pereira.

    E agradeo aos meus pais e aos meus irmos, por estarem sempre ao meu lado e me

    apoiarem incondicionalmente.

    4

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    5/269

    RESUMO

    VOJVODIC, Adriana M.. Precedentes e argumentao no Supremo Tribunal Federal:entre a vinculao ao passado e a sinalizao para o futuro. 2012. 269 f. Tese (Doutorado)

    - Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    Precedentes so decises anteriores utilizadas como guia para novas decises. No mbitojurdico, precedentes funcionam no s como elementos conferidores de segurana eprevisibilidade, limitando o grau de discricionaridade dos juzes, mas seu uso tambm estrelacionado garantida de igualdade. Apesar de serem tradicionalmente colocados emsegundo plano quando estudados em sistemas de civil law, os precedentes aparecem comgrande frequncia na fundamentao de decises judiciais em muitos destes sistemas

    jurdicos, dentre eles o brasileiro. A fim de determinar qual o papel desempenhado pelosprecedentes na fundamentao das decises do Supremo Tribunal Federal, a pesquisavoltou-se anlise do papel desempenhado pelos precedentes nas decises do tribunalenvolvendo o conflito, ou a restrio, de direitos fundamentais. A partir da diferenciao deduas funes exercidas hoje pelo Supremo Tribunal Federal, j que nele esto concentradasas funes de ltima instncia do Poder Judicirio e de Corte Constitucional, foramestabelecidos comportamentos esperados do tribunal com relao ao uso de precedentesem cada uma dessas funes. A anlise da jurisprudncia do tribunal foi realizada em duasetapas. Num primeiro momento, a seleo de um conjunto de decises do STF relativas aotema de direitos fundamentais foi seguida pela reconstruo das redes de precedentes nasquais elas se apiam, mtodo de pesquisa que permite a visualizao da jurisprudncia daCorte em termos de conexo entre decises e padres de citao de precedentes. Emseguida, foi analisado o papel que as citaes aos precedentes representavam naargumentao dos ministros, indicando assim qual o peso atribudo s decises passadas. Oconjunto das anlises realizadas levou percepo de que o tribunal atribui uma funoespecfica aos precedentes, fruto de uma viso positivista dessa ferramenta. Assim, autilizao dos precedentes caracteriza-se pela formao de uma jurisprudncia dereiterao de solues, mais do que pela construo argumentativa de standardsorientadores da atuao judicial em casos difceis. A consolidao dessa viso positivisa de

    precedentes baseia-se especialmente na necessidade de eficincia da atuao judicial, quese encontra em constante crescimento, sendo solucionada por meio de mecanismos de

    uniformizao da jurisprudncia. Se de um lado esse papel atribudo aos precedentesaparece como uma importante soluo para a atuao do Supremo Tribunal Federal comoltima instncia do Poder Judicirio, ele deixa lacunas no que se refere atuao dotribunal como Corte Constitucional responsvel pelo desenvolvimento do direito.

    Palavras-Chave: Supremo Tribunal Federal (STF). Precedentes. Jurisprudncia. DireitosFundamentais. Corte Constitucional.

    5

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    6/269

    ABSTRACT

    VOJVODIC, Adriana M.. Precedents and reasoning in the Brazilian Supreme Court:binding decistions from the past and guides for the future. 2012. 269 f. Tese (Doutorado) -

    Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    Precedents are past decisions, which are used as a guide for new decisions. Within thejuridical scope, the use of precedents not only assures security and predictability, bylimiting the amount of judges leeway, but also helps grant equality. Despite having beentraditionally given relative importance when studied in civil law systems, precedentsfrequently appear in the opinions of court decisions, as in the Brazilian legal system,among many others. In order to determine what the role played by the precedents is in thestatements of arguments which introduce the decisions made by the Brazilian SupremeCourt (Supremo Tribunal Federal - STF), this research focused on the analysis of the use of

    precedents in the decisions which involve the conflict or the restriction of fundamentalrights. Considering the distinction between the two present functions of the STF, since itacts both as Supreme Court and as Constitutional Court, expected behaviours concerningthe use of precedents have been identified for each of such functions. The analysis of theformer court decisions was conducted in two stages. First, a set of decisions made by theSTF, all related to the subject matter of fundamental rights, was selected and the networkof precedents on which they were based was reconstructed. Such research method allowsfor a clear visualisation of the precedents, the connections between decisions and the

    patterns of citation of precedents. In sequence, the role played by the reference toprecedents in the judges reasoning was analysed, so that the relevance given to the formerdecisions could be evaluated. The series of analyses accomplished led to the perceptionthat the Court credits a specific function to the precedents, as a result of a positivist view ofsuch tool. Thus, the use of precedents is characterised by a jurisprudence which reiteratessolutions, rather than setting argumentative standards to guide judicial action in difficultcases. The consolidation of such positivist view of the precedents is deeply related to thecontinuously growing necessity to achieve efficiency in the judicial action, which is solved

    by the use of mechanisms that allow for the standardisation of jurisprudence. So, on theone hand, the role assigned to the precedents provides an important solution for the STFaction. On the other hand, though, it leaves blanks in the action of the STF as a

    Constitutional Court, which should be responsible for the development of Law.

    Keywords: Brazilian Supreme Court (Supremo Tribunal Federal - STF). Precedents.Case-law. Fundamental Rights. Constitutional Court.

    6

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    7/269

    RIASSUNTO

    VOJVODIC, Adriana M.. Precedenti e argomentazione nel Supremo Tribunal Federal. Frai vincoli dal passato e i segnali per il futuro . 2012. 269 f. Tese (Doutorado) - Faculdade de

    Direito, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012.

    I precedenti sono le decisioni anteriori utilizzate per guidare le nuove decisioni giuridiche.Nel diritto, i precedenti hanno la funzione di elementi di sicurezza e prevedibilit giuridica,perch limitano la discrezionalit dei giudici, ma la sua utilizzazione riguarda anche allagaranzia di eguaglianza tra le decisioni. Ciononostante i precedenti non sonotradizionalmente oggetti principali di ricerca nei sistemi di civil law, loro sonofrequentemente citati nelle giustificazioni delle decisioni giuridiche in diversi sistemi,come il sistema brasiliano. Con lo scopo di determinare il ruolo dei precedenti nella

    giustificazione delle decisioni del Supremo Tribunale Federale brasiliano (STF), la ricerca stata guidata dalla analisi dell'utilizzazione dei precedenti nelle decisioni del tribunale suiconflitti o restrizioni dei diritti fondamentali. Partendo dalla differenziazione delle duefunzioni del STF, che concentra le funzioni di istanza ultima del Potere Giudiziario e diCorte Costituzionale, sono state stabiliti i comportamenti previsti del tribunale in relazioneall'utilizzazione dei precedenti in ogni di queste funzioni. L'analisi della giurisprudenza deltribunale stata divisa in due fasi. Prima la selezione delle decisioni del STF cheriguardavano i diritti fondamentali stata fatta attraverso la ricostruzione delle rete di

    precedenti sulla quale esse si appoggiano, metodo questo che permette di vedere laconnessione e lo standard di citazioni esistente tra i precedenti della giurisprudenza del

    tribunale. Dopo stato analizzato il ruolo che le citazioni nei precedenti avevano nellagiustificazione dei giudici, in modo da valutare il peso dei precedenti in una decisionenuova. Della totalit delle analisi realizzate se pu dedurre che il tribunale assegna unafunzione specifica ai precedenti, come conseguenza della visione positivista di questostrumento. Di conseguenza l'utilizzazione dei precedenti stata caratterizzata dallaformazione de una giurisprudenza ripetitiva di soluzione, invece della sua utilizzazione inmodo argomentativo nella costruzione di standards con capacit di guidare l'attuazionegiudiziale in casi pi difficile. Il consolidamento della visione positivista dei precedenti stata basata specialmente sulla necessit di efficienza dell'attuazione giudiziale, che alla cuicrescita constante si risponde con questi meccanismi di standardizzazione della

    giurisprudenza. Se questo ruolo assegnato ai precedenti se presenta come una importantesoluzione per l'attuazione del STF nella funzione di ultimo grado del Potere Giudiziario,esso rende insoddisfacente l'attuazione del tribunale come Corte Costituzionaleresponsabile dello sviluppo del diritto.

    Parole chiavi: Supremo Tribunale Federale (Supremo Tribunal Federal - STF), Precedenti.Giurisprudenza. Diritti Fondamentali. Corte Costituzionale.

    7

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    8/269

    SUMRIO

    1. Introduo 10

    1.1. O Supremo Tribunal Federal e os seus precedentes 11

    1.2. Juzes e tribunais: coerncia, accountability e atuao estratgica 19

    1.3. Objetivos e hipteses da tese 32

    2. Precedentes: conceitos e aplicaes 43

    2.1. O que so precedentes e como eles so usados? 44

    2.1.1. Doutrinas tradicionais e o positivismo jurdico 48

    2.1.2. Definies de ratio decidendi e concepes argumentativas de precedentes 54

    2.2. Afastamento de algumas dicotomias na compreenso do precedente 64

    2.2.1. A problemtica das fontes e as diferenas de tratamento de precedente nocommon law e no civil law 67

    2.2.2. A vinculao aos precedentes e seu uso nos tribunais brasileiros 792.3. Precedentes: conceito adotado e definio dos prximos passos 91

    3. Transformaes do Supremo Tribunal Federal e as consequncias na compreensodo precedente 95

    3.1. OSupremo e suas personas 96

    3.2. As diversas funes do precedente no Supremo Tribunal Federal 103

    3.3. Concluso 1154. A identificao dos precedentes por meio das citaes 118

    4.1. Precedentes: linhas, correntes e redes 119

    4.2. Uma leitura dos mapas de precedentes 128

    4.3. As redes de citao de precedentes 134

    4.3.1. Disperso de citaes 136

    4.3.2. A conexo entre decises na superao de precedentes 147

    8

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    9/269

    4.3.3. Citao catica 155

    4.4. Apontamentos sobre citaes de precedentes na jurisprudncia do Supremo 160

    5. A aplicao de precedentes na argumentao do Supremo Tribunal Federal 164

    5.1. A argumentao com precedentes 165

    5.2. Precedentes na argumentao do STF 171

    5.3. A objetivao da regra dos precedentes: a elaborao das smulas 184

    5.3.1. Smulas e precedentes: uma mesma aplicao? 186

    5.3.2. A organizao do STF em virtude da elaborao das smulas vinculantes

    189

    5.3.3. A identificao dos precedentes e a construo da regra geral na elaboraodas smulas vinculantes 193

    5.4. Precedentes na argumentao: validade ou flexibilidade 198

    6. O uso de precedentes na consolidao de um tribunal constitucional 202

    6.1. O uso de precedentes para a consolidao dos direitos 205

    6.2. STF, uso de precedentes e participao na construo do direito 217

    7. Concluso 224

    Apndice metodolgico 232

    1. A seleo das decises que formam os mapas 232

    2. A elaborao dos grficos de rede 238

    Referncias Bibliogrficas 243

    Casos usados nas redes 256

    9

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    10/269

    1.Introduo

    Nesta tese de doutoramento tratarei do uso de precedentes na argumentao dasdecises do Supremo Tribunal Federal (STF). Procuro, com base em uma amostra

    determinada de decises, identificar o modo como o STF usa seus precedentes e investigar

    sobre as possveis razes para faz-lo dessa maneira. Mesmo tratando-se de um grupo

    pequeno de decises, quando comparado com o volume de processos decididos pelo STF,

    foi possvel elaborar parmetros de avaliao da jurisprudncia do STF a respeito do uso

    de precedentes, bem como apontar para as consequncias que as prticas observadas geram

    para a consolidao do Supremo Tribunal Federal como corte constitucional.

    primeira vista, o uso de precedentes pelo Supremo Tribunal Federal pode no

    parecer objeto de grandes controvrsias. Por tratar-se de um sistema inserido na tradio de

    civil law, o precedente judicial acaba recebendo uma conotao de elemento auxiliar na

    construo do direito, apresentando um papel unicamente persuasivo na fundamentao

    das decises judiciais, sem qualquer capacidade de vincular o comportamento das cortes e

    dos juzes em decises semelhantes. Por possuir esse carter no essencial na conformao

    do direito brasileiro, pouco poderia ser dito e exigido sobre a aplicao de precedentes

    nas decises judiciais deste tribunal.

    No esse o posicionamento adotado pelo presente trabalho. Mesmo tratando-se de

    um sistema de civil law, o precedente aqui ser abordado de maneira menos normativa, no

    sentido de averiguao sobre a existncia ou no de uma obrigao de se seguir a

    orientao decorrente das decises passadas provenientes de cortes superiores, e mais

    emprica, buscando, antes de mais nada, mapear o modo como os precedentes so

    utilizados na jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal. Ser a partir do modo como

    esse tratamento se d na prtica que estabelecerei possveis leituras desse uso e analisarei

    criticamente o modo como essa ferramenta argumentativa usada pela corte constitucional

    brasileira.

    Inicio o presente captulo com trs exemplos recentes de casos decididos pelo

    Supremo Tribunal Federal, nos quais certamente a preocupao com os precedentes dacorte no se enquadra em uma concepo meramente auxiliar do papel das decises

    10

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    11/269

    passadas nas novas tomadas de deciso. A pretenso neste momento que os exemplos

    aqui apresentados possibilitaro ilustrar o contexto no qual a tese se debrua. Em seguida,

    apresento trs justificativas para o estudo do precedente no sistema jurdico brasileiro e,

    por fim, os objetivos e hipteses da presente tese.

    1.1. O Supremo Tribunal Federal e os seus precedentes

    Da grande e crescente lista de casos difceis1 e polmicos decididos pelo Supremo

    Tribunal Federal nas ltimas duas dcadas, um chama especial ateno. Iniciado emmeados de 2004 e ainda hoje sem deciso final, o julgamento da ADPF 54 que questiona

    o entendimento de que a interrupo da gravidez de fetos anencfalos vedada pelo

    Cdigo Penal voltou em 2008 pauta do tribunal2. Neste mesmo ano foram realizadas

    quatro audincias pblicas no STF3, ouvidos grupos e entidades representantes de diversos

    interesses e um nmero expressivo de amici curiaefoi recebido pelo relator. Todos querem

    tomar parte nas deliberaes de um caso to sensvel.

    A razo de seu retorno pauta do STF uma das mais relevantes para as

    investigaes propostas por esta tese. Em 5 de marode 2008, aps audincias pblicas no

    tribunal, iniciou-se o julgamento da ADI 3510, que avaliou a constitucionalidade das

    pesquisas cientficas realizadas em clulas-tronco embrionrias. Aps alguns meses, depois

    de pedidos de vista e muitos debates, o tribunal decidiu, por maioria, indeferir o pedido

    presente na ao, confirmando a constitucionalidade do artigo de lei questionado,

    mantendo a possibilidade do desenvolvimento de pesquisas a serem realizadas com esse

    11

    1 Os casos difceis, ou hard cases, podem ser entendidos nos temos como colocados por Ronald Dworkin:casos para os quais no h uma regra de direito clara, estabelecida de antemo por alguma instituio, e que

    por conta disso conferem ao juiz maiores possibilidades interpretativas. So, assim, casos limtrofes, que nocontam com uma resposta simples. Sobre a teoria dos casos difceis de Dworkin, cf.Levando os Direitos aSrio, So Paulo: Martins Fontes, 2002, especialmente p.127-203. Para diferentes posicionamentos sobre osdeveres do juiz diante de um caso difcil ver capitulo 2, a seguir.

    2 A Argio de Descumprimento de Preceito Fundamental n.54 teve seu julgamento liminar terminado em

    2004. Monocraticamente, o Ministro Marco Aurlio, relator do caso, permitiu a interrupo da gravidez nessetipo de circunstncia. Sua deciso, no entanto, foi cassada pelo pleno do tribunal ainda no mesmo ano. Desdeento a ADPF 54 no voltou a julgamento, no havendo at o momento deciso definitiva. Mesmo assim a

    ao constantemente citada nas listas de casos importantes e sua deciso sempre tratada como umapendncia na pauta da corte.

    3 As audincias pblicas ocorreram nos dias 26 e 28 de agosto de 2008 e 04 e 16 de setembro de 2008.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    12/269

    tipo de material.4 Em 31 de maio de 2008, apenas dois dias aps o trmino do julgamento

    do caso das clulas-tronco, o Ministro Marco Aurlio fez a seguinte afirmao: Agora,

    (...) creio que o Supremo j est maduro para tratar da matria. J temos clima para julgar

    e, creio, autorizar a interrupo da gravidez de anencfalos5, deixando evidente no s a

    conexo que existe entre o conflito de direitos presente nas duas aes mas tambm a

    necessidade de tomar uma deciso consciente do comportamento da corte em um passado

    recente.

    Assim, ao deixar claro que o julgamento do processo das clulas-tronco

    embrionrias aplainou o terreno6 para a retomada do caso dos anencfalos, o ministro

    deixa explcita a relao entre os dois casos e pressiona o tribunal como um todo a tomar anova deciso levando em conta o que foi decidido no caso das pesquisas em clulas-tronco.

    A relao entre os casos grande e no vista somente pelo Ministro Marco Aurlio.

    O fato de o caso dos anencfalos (ADPF 54) j contar com uma deciso liminar fez com

    que essa deciso servisse, em alguns pontos, de precedente para a deciso do caso da

    liberao das pesquisas com clulas-tronco. Assim, v-se uma situao de retro-

    alimentaao entre os dois casos, nos quais um ponto j decidido no passado repercute em

    uma nova deciso. Como exemplo da referncia realizada pelos ministros, em diversos

    pontos da deciso da ADI 3510 o modo como a temtica do contedo do direito vida foi

    abordada no caso dos anencfalos usado como precedente para a nova deciso:

    Como afirmei, no julgamento da ADPF n 54-MC, no instante em que o

    transformssemos [o feto anencfalo] em objeto do poder de disposio alheia, essa

    vida se tornaria coisa (res) porque s coisa, em Direito, objeto de disponibilidade

    jurdica das pessoas. Ser humano sujeito de direito. Naquela hiptese, tratava-se de

    vida plena, posto que pr-natal; nesta, cuida-se de algo sobre o qual o ordenamentojurdico franqueia disponibilidade, de um lado, e, de outro, determina proteo.7

    12

    4 A ao questionava a constitucionalidade do art. 5 e seus pargrafos, da Lei n 11.105, de 24 de maro de2005 (Lei de Biossegurana). O artigo tornava possvel, para fins de pesquisa e terapia, a utilizao declulas-tronco embrionrias obtidas de embries humanos produzidos por fertilizao in vitro e noutilizados no respectivo procedimento.

    5 Em entrevista realizada pelo colunista do jornal Folha de So Paulo, Josias de Souza, em 31.05.2008,disponvel em:

    http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/arch2008-05-01_2008-05-31.html(ltimo acesso em 11/11/2011)6 Idem.

    7 Ministro Cezar Peluso, ADI 3510.

    http://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/arch2008-05-01_2008-05-31.htmlhttp://josiasdesouza.folha.blog.uol.com.br/arch2008-05-01_2008-05-31.html
  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    13/269

    Em outros momentos, a futura deciso definitiva, a ser tomada na ADPF 54, tratada

    como o passo seguinte no raciocnio dos ministros:

    Em futuro prximo, o Tribunal voltar a se deparar com o problema no julgamento

    da ADPF n 54, Rel. Min. Marco Aurlio, que discute a constitucionalidade da

    criminalizao dos abortos de fetos anencfalos.8

    A similaridade do tema central dos dois casos, os limites e as restries ao direito

    vida, aproxima a argumentao desenvolvida nas justificaes e desperta nos ministros um

    dilogo entre os casos.

    Diante desse comportamento da corte, no qual novas decises parecem ser tomadas

    respeitando-se os parmetros estabelecidos anteriormente em uma deciso precedente,algumas perguntas podem ser elaboradas a fim de se compreender o modo como o STF usa

    sua jurisprudncia. Seria essa uma atitude frequente no tribunal? Os ministros costumam

    aproximar casos semelhantes a fim de darem respostas coerentes a problemas jurdicos

    parecidos? Ou ainda, costumam os ministros aproximar casos diferentes a fim de darem

    respostas coerentes para problemas jurdicos diferentes? O tribunal v essa aproximao

    como uma obrigao na construo de sua jurisprudncia ou o uso de precedentes segue

    uma lgica menos normativa e mais estratgica? Em resumo, quando e como o tribunal

    respeita suas decises anteriores?

    A meno relao entre os casos ADPF 54 e ADI 3510 pode sugerir um cenrio

    animador para aqueles que exigem coerncia e transparncia na construo de parmetros

    decisrios claros do tribunal. No entanto, muitas vezes esse cenrio deixa de existir, indo

    para direes contrrias, como o caso da segunda situao que apresento.

    A ADI 3324, decidida em 2004, questionava a constitucionalidade do artigo 1 da Lein 9.536/97, que possibilitava a transferncia ex-officio de alunos entre instituies

    vinculadas a qualquer sistema de ensino, em qualquer poca do ano e independente da

    existncia de vagas, quando se tratasse de remoo ou transferncia de ofcio de servidor

    pblico federal civil ou militar estudante, ou seu dependente estudante, que levasse

    mudana de domiclio.

    13

    8 Ministro Gilmar Mendes, ADI 3510.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    14/269

    A questo discutida na ADI 3324 girava em torno da possibilidade de alunos

    egressos de universidades privadas poderem ser transferidos, sem passarem por nenhum

    tipo de processo seletivo, a universidades pblicas, nos casos em que o municpio para o

    qual fossem transferidos no dispusesse de entidades privadas de ensino superior.

    A deciso do relator, o Ministro Marco Aurlio, pauta a linha de argumentos

    desenvolvida pelos demais. Fundamentando seu voto na isonomia, que no permite que um

    tratamento desigual entre indivduos decorra de critrio injustificado, o ministro soluciona

    o caso adotando o princpio da congeneridade, ou seja, a transferncia de alunos deveria,

    na sua opinio, respeitar a natureza pblica ou privada das universidades das quais

    estes mesmos alunos so egressos. A transferncia ex-officiode alunos entre universidadesde diferentes naturezas configuraria tratamento no isonmico, no sustentado pela

    Constituio. A soluo fundamentada no princpio da igualdade apresentada pelo relator

    acatada pelos demais ministros e a deciso se d por unanimidade.

    O uso do princpio da igualdade em um caso em que se discute acesso ao ensino

    superior faz, no entanto, com que alguns ministros sintam a necessidade de discutir as

    implicaes da deciso que acabavam de tomar. significativa, nesse contexto, a

    afirmao do Ministro Nelson Jobim:

    ... acompanho o Relator, mas fao um pequeno registro no sentido de que, adotando

    o princpio da igualdade, no me seja utilizado este argumento quando,

    eventualmente, este Tribunal vier a discutir a questo de cotas de negros nas

    universidades9.

    E reitera essa posio em um segundo momento:

    Estou dizendo que acompanho a linha sobre o argumento do princpio da

    igualdade, mas fao o registro de que esse argumento no me seja cobrado quando,

    eventualmente, este Tribunal discutir o problema das cotas de negros ou de

    indgenas nas universidades. Isso para evitar problemas.10

    A discusso sobre a aplicao do princpio da igualdade em casos futuros envolvendo

    o acesso s universidades, na opinio de alguns ministros, deveria ser feita como se a ADI

    3324 no existisse. Ela no serviria, nesse sentido, para estabelecer marcos para a

    discusso, elementos assumidamente certos que funcionariam como ponto de partida para

    14

    9ADI 3324.

    10ADI 3324.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    15/269

    novas decises. Usando a analogia feita pelo Ministro Marco Aurlio na relao dos casos

    referentes ao direito vida, na circunstncia do STF ter de julgar futuramente um caso

    envolvendo cotas de acesso universidade, a ADI 3324 no contaria com qualquer poder

    de presso para os ministros, de acordo com o entendimento do Ministro Nelson Jobim.

    Aparentemente, o caso da transferncia entre universidades no aplainou o terreno

    ou sequer permitiu que o Supremo se tornasse mais maduro para futuros julgamentos

    relativos a essa temtica. Nesse sentido, a deciso tomada pelos ministros seria vlida

    somente para a soluo do caso presente, no tendo gerado qualquer nus para futuras

    tomadas de deciso. O interessante de se contatar que esse posicionamento foi oposto ao

    que ocorreu no caso das clulas-tronco, em que o STF decidia um caso com a conscinciade que ele serviria como base para o futuro.

    Esse tipo de ressalva no ocorre somente nesse caso, sendo observada em algumas

    ocasies na jurisprudncia da corte, mas ela mostra muito precisamente o tipo de relao

    que em alguns momentos o Supremo parece ter com suas decises: elas parecem ter data

    de validade, s se aplicando no momento em que so tomadas e no servindo de guia para

    casos futuros. As opinies dos ministros e suas manifestaes esto circunscritas no tempo

    e no devem extrapolar os limites do caso decidido. Aparentemente essa uma relao

    com precedentes bem distinta da declarada no caso do direito vida e coloca em dvida

    qualquer concluso que poderia ser obtida neste caso sobre aplicao de precedentes no

    STF.

    Uma terceira e ltima ilustrao sobre a referncia feita pelos ministros aos

    precedentes do tribunal pode ser vista em um conjunto de decises que tratam da

    constitucionalidade da priso do depositrio infiel. O esforo dos ministros nessas decisesem apresentar de uma maneira sistemtica os precedentes da corte a fim de alterarem um

    entendimento j consolidado corrobora uma percepo de que a alterao na

    jurisprudncia deveria ser feita de forma clara e muito bem justificada11.

    15

    11 Para uma anlise mais aprofundada dos casos referentes alterao da jurisprudncia sobre a priso dodepositrio infiel ver Adriana Vojvodic, Ana Mara Machado e Evorah Cardoso, Escrevendo um Romance,Primeiro Captulo: Precedentes e processo decisrio no STF, in Revista Direito GV, So Paulo 5(1), jan-jun2009, p. 21-44.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    16/269

    Essas justificativas permitiram que um conjunto de decises sobre o mesmo tema e

    tomadas em um nico dia12 revertesse um entendimento consolidado que h anos era

    adotado pelo STF. Logo de incio, a grande quantidade de precedentes que confirmavam a

    compatibilidade da priso do depositrio infiel com a Constituio de 1988 apresentada

    pelos ministros que pretendiam decidir em sentido contrrio. Segundo o ministro Gilmar

    Mendes, por exemplo, o HC 72131 um precedente de 1995 havia inaugurado, aps a

    Constituio de 1988, o entendimento de que diplomas normativos de carter internacional

    integram o ordenamento brasileiro com o carter de lei ordinria13. De acordo com a

    deciso deste habeas corpus, o Tratado de San Jose da Costa Rica, que probe a priso civil

    do depositrio infiel, no teria a capacidade de derrogar a legislao especial brasileira que

    previa essa possibilidade. A manuteno deste entendimento explicitada pelos ministros

    Cezar Peluso e Gilmar Mendes, que citam diversos precedentes que sustentavam esse

    posicionamento.

    Mesmo diante da clara posio adotada pelo Supremo ao longo dos anos, o ministro

    Gilmar Mendes questiona a validade de tal interpretao, sinalizando para a necessidade de

    se ponderar se essa jurisprudncia, diante de um novo contexto de abertura do Estado

    Brasileiro a ordens jurdicas supranacionais de proteo dos direitos humanos, no teria se

    tornado defasada14. Essa clareza na alterao do posicionamento da corte fica ainda mais

    evidente no voto do ministro Celso de Mello que, aps ouvir as opinies dos ministros

    Gilmar Mendes e Cezar Peluso, muda seu entendimento sobre a matria, concordando com

    a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, defendida pelo

    ministro Gilmar Mendes15.

    Assim, a alterao da jurisprudncia da corte vista com naturalidade pelosministros Celso de Mello e Gilmar Mendes: a evoluo jurisprudencial sempre foi uma

    16

    12Os RE 466.343, RE 349.703 e HC 87.585 foram decididos pelo pleno em 03/12/2008.

    13RE 466.343

    14 RE 466.343. A clareza com que o Ministro afirma a necessidade de superao do entendimento passado expressa em diversos pontos da deciso: Tudo indica, portanto, que a jurisprudncia do Supremo TribunalFederal, sem sombra de dvidas, temde ser revisitada criticamente, p. 47

    15Aps longa reflexo sobre o tema em causa, () julguei necessrio reavaliar certas formulas e premissastericas que me conduziram, ento, naquela oportunidade, a conferir, aos tratados internacionais em geral(qualquer que fosse a matria neles veiculada), posio juridicamente equivalente das leis ordinrias. RE466.343, p. 124.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    17/269

    marca de qualquer jurisdio de perfil constitucional.16Ela no implica o reconhecimento

    de erro ou equvoco interpretativo do texto constitucional em julgados pretritos, mas

    reconhece e reafirma a necessidade da contnua e paulatina adaptao dos sentidos

    possveis da letra da Constituio aos cmbios observados numa sociedade marcada pela

    complexidade e pelo pluralismo. A par dos detalhes especficos da matria em julgamento,

    o que fica claro a partir da anlise dos votos proferidos nessas decises a constante

    necessidade que os ministros sentem de citar exaustivamente os precedentes da corte para

    ento justificarem, tambm largamente, o fato de no seguirem esses precedentes to

    abundantes e consolidados.

    A impresso que fica, a partir da anlise desse caso, de uma corte que tem granderespeito por suas decises passadas e que, apesar disso, no se sente constrangida ao mudar

    de opinio se entende que as condies sob as quais as decises originais foram tomadas

    no mais se apresentam no contexto atual de avaliao. O caso da alterao da

    jurisprudncia sobre a priso civil do depositrio infiel apresenta um tribunal consciente de

    seu posicionamento relacionado matria e que sabe que o desvio com relao a esse

    posicionamento no pode ser feito de modo pouco claro. A alterao deve ser explcita e

    amplamente justificada.

    Diante do modo como os precedentes foram tratados nesse caso, possvel

    questionar se essa justificativa, que pode ser entendida como o respeito do tribunal aos

    seus precedentes, regra no cenrio jurdico brasileiro. O respeito aos precedentes

    entendido aqui como a atitude de considerar, nas novas decises, o que j foi decidido pela

    corte, ainda que para fins de superao do que foi decidido anteriormente, como o caso

    das decises sobre a priso do depositrio infiel. Mais especificamente, a questo que secoloca se esse posicionamento respeitoso poderia ser facilmente encontrado na

    jurisprudncia da corte.

    A comparao entre os trs casos aqui apresentados parece no confirmar essa

    tendncia. Ainda que a diferena entre os casos e as circunstncias nas quais suas decises

    foram tomadas sejam bem distintas, o que se pretendeu tornar evidente aqui so as

    diferentes referncias e abordagens aos precedentes, que demonstram uma forma no

    uniforme de tratamento que o tribunal d as suas prprias decises. Numa futura deciso

    17

    16 RE 466.343, p. 148.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    18/269

    sobre a possibilidade de aborto de anencfalos, os comentrios at agora feitos parecem

    indicar que haver referncias deciso do caso das clulas-tronco. Seja para se apoiar na

    deciso tomada, seja para afastar a sua aplicao ao caso novo, parece muito difcil que os

    ministros ignorem a existncia dos debates e concluses existentes na deciso precedente.

    No entanto, o exemplo presente na deciso sobre igualdade na seleo de alunos de

    ensino superior, na circunstncia de transferncia ex officio, sugere que o tratamento dos

    precedentes da corte no segue um padro nico17. Desse modo, faria sentido questionar

    em quais situaes as decises do STF formam ou no precedentes, que orientaro suas

    decises futuras? Uma possvel pergunta a ser feita seria sobre se correto dizer que no

    STF h decises que formam precedentes e outras que no formam. Em outras palavras, oSTF respeita seus precedentes independentemente de seu contedo, exclusivamente pelo

    fato de haver decises da corte sobre determinados temas, ou segue uma linha mais branda,

    exemplificada no caso da transferncia de alunos universitrios, em que se reconhece que

    alguns casos no devem figurar como precedentes para casos futuros18?

    A averiguao sobre a existncia de um padro nico de uso de precedentes na corte

    poderia apresentar respostas mais precisas sobre esses questionamentos. Alm disso, outro

    ponto possvel de ser desenvolvido nesses termos sobre quem temaresponsabilidade de

    escolher o tratamento a ser conferido a uma deciso passada: aplic-la ou no em casos

    futuros uma escolha que se encontra nas mos do juiz que toma a primeira deciso, ou

    18

    17 O nico voto proferido no julgamento da ADI 3330, que questiona a constitucionalidade do ProgramaUniversidade para Todos (PROUNI), o do relator, Ministro Carlos Britto. Nenhuma referencia decisotomada na ADI 3324 foi feita nesse voto, que decide pela improcedncia do pedido, declarando aconstitucionalidade da lei que institui o programa. Depois desse voto, o Ministro Joaquim Barbosa pediuvista dos autos e a ao segue sem deciso final. Nos dias 3 a 5 de maro de 2010 ocorreu no STF a

    Audincia Pblica sobre a Constitucionalidade de Polticas de Ao Afirmativa de Acesso ao EnsinoSuperior. Sobre a audincia pblica: h t tp : / /w ww.s t f . jus .br /por ta l /cms/verTexto .asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa(ltimo acesso em 11/11/2011)

    18 Pode-se entender, por um lado, que a manifestao feita pelo ministro expressa, inclusive, uma atitude de

    respeito aos precedentes do tribunal na medida em que ele se antecipa a uma eventual crtica de contradioquando, para ele, os casos de transferncia de alunos e reserva de quotas no so comparveis de modosimples. importante ressaltar, no entanto, que essa situao hipottica, em que h decises formariam

    precedentes enquanto outras no, diferente do afastamento de precedentes para a soluo de casosconcretos. Essa possibilidade, chamada de distinguishing, consiste no reconhecimento de que os precedentesexistentes na jurisprudncia no se aplicam ao caso novo em virtude de alguma diferena presente entre oscasos. Essa atitude, o afastamento da aplicabilidade de um precedente, perfeitamente coerente com umacultura de respeito a precedentes, pois permite apenas que o juiz, diante de um caso novo, indique oselementos juridicamente relevantes para a no utilizao de um precedente. A manifestao do ministro nocaso da transferncia de militares, entretanto, no se enquadra nessa situao de distinguishing, j que oministro realiza a priori e em tese, o afastamento do precedente. Ele no se encontra diante de um novo casoconcreto, mas apenas antecipa seu posicionamento em um eventual caso de quotas, afirmando que suadeciso no forma um precedente.

    http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativahttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativahttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativahttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativahttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativahttp://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=processoAudienciaPublicaAcaoAfirmativa
  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    19/269

    seja, nas mos do juiz que forma o precedente, ou est nas mos daqueles que futuramente

    se depararo com um problema de caractersticas semelhantes, o juiz que aplica o

    precedente? Todos esses questionamentos podem ser resumidos pela pergunta: qual a

    regra de aplicao de precedentes no Supremo Tribunal Federal? Ser essa pergunta que

    nortear o desenvolvimento da presente tese, aplicada a uma amostra de julgamentos do

    Supremo. Antes, porm, de apresentar os objetivos e hipteses da tese indico a seguir quais

    so as premissas adotadas aqui com relao a tipos de abordagens ao tema dos precedentes

    judiciais.

    1.2. Juzes e tribunais: coerncia, accountability e atuao estratgica

    O que justifica a preocupao com o modo de aplicao de precedentes pelo STF se

    no fazemos parte de um sistema jurdico em que a aplicao do direito se baseia no case

    law? De fato, se o que tradicionalmente vincula os atos dos cidados e do Estado so

    regras postas pelo legislador de forma pblica, organizada e sistematizada e em alguns

    casos at codificada no parece fazer muito sentido nos preocuparmos com o tipo detratamento que nossos tribunais, e nesse caso particular o STF, do a decises judiciais

    precedentes, com relao aos efeitos que elas geram na deciso de novos casos. A prtica

    corrente de um sistema de civil law nos permite uma menor referncia e deferncia s

    decises judiciais, j que elas no se incorporam ao sistema jurdico da mesma forma como

    as decises judiciais o fazem num sistema de common law. No so elas as primeiras

    responsveis por traduzir os princpios jurdicos e explicitar direitos e obrigaes dos

    indivduos e do Estado. Em nosso sistema essa tarefa est primordialmente nas mos do

    legislador.

    No entanto, isso no faz com que tribunais possam agir da forma como bem

    entenderem em cada caso que lhes apresentado. A aplicao da Constituio e das leis

    pelas cortes deve se dar de modo organizado e controlado. O uso organizado do precedente

    pode, dessa maneira, ser justificado de diversas formas, independentemente da tradio

    jurdica qual os tribunais estejam vinculados, como um meio de garantir no ssegurana jurdica, previsibilidade e isonomia, mas tambm como uma forma de controle

    19

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    20/269

    da atuao judicial. A seguir apresento trs razes pelas quais precedentes devem ser

    levados em considerao, razes que no se restringem a um s tipo de sistema jurdico:

    avaliao da coerncia por meio do controle argumentativo, accountability e atuao

    estratgica das cortes.

    O desenvolvimento do direito constitucional, no s no Brasil, aponta para a

    tendncia de se dar ao judicirio a tarefa de concretizar o trabalho iniciado pelo

    legislador19. Este, limitado por elementos espaciais e temporais20, cria normas gerais e

    abstratas - sejam elas regras ou princpios, passveis potencialmente de serem aplicadas em

    um sem nmero de situaes hipotticas, o que confere ao juiz a necessidade de

    individualizar a prescrio genrica a um caso concreto e nada hipottico, a uma situaode fato. Em outras palavras, a construo de regras jurdicas pelo legislador envolve um

    mecanismo de generalizao que permite que ela seja aplicada a diversas situaes. Essa

    generalizao, entretanto, gera como consequncia a incluso de situaes no ideais no

    campo de aplicao da regra e, ao mesmo tempo, exclui algumas outras nas quais sua

    aplicao seria ideal. A existncia dessas situaes no ideais no so falhas de algumas

    regras, mas uma caracterstica do seu modo de ser. A calibrao no caso a caso cabe ao

    judicirio, que deve alterar o trabalho do legislador somente em casos extremos21.

    Essa tarefa de individualizao da previso legal, no entanto, no se limita

    aplicao individual de uma regra s partes que eventualmente se encontram em conflito.

    Pelo contrrio, no momento em que fixa uma interpretao de determinada norma a um

    caso concreto, a ao do juiz revela-se mais abrangente. No caso de princpios

    20

    19 O constitucionalismo contemporneo, tambm chamado de neoconstitucionalismo, tem seus traoscaractersticos definidos nos ltimos cinqenta anos, como afirma Miguel Carbonell no prlogo de suacoletnea sobre o tema. Simplificadamente, pode-se dizer que o modelo est relacionado a duas questes

    primordiais: o desenvolvimento de fenmenos evolutivos que geraram evidentes impactos no que seconvencionou chamar o paradigma do Estado constitucional e (...) a uma determinada teoria do direito que,em um passado recente, preconizava por essas mudanas. (traduo livre) Miguel Carbonell (ed.),

    Neoconst ituc iona li smo(s) . Madrid: Trotta; 2003, p.10. No Brasil, Lus Roberto Barroso,Neoconstitucionalismo e constitucionalizao do direito (triunfo do direito constitucional no Brasil). Revistade Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v.240, 2005, p.1-42 e, para uma crtica ao modelo, DimitriDimoulis, Anotaes sobre o neoconstitucionalismo (e sua crtica), Artigos Direito GV, Working paper n.17, 2008.

    20 Tais restries so apontadas por Neil MacCormick, emRetrica e o Estado de Direito, Rio de Janeiro:Elsevier, 2008

    21 Essa concepo de elaborao de regras est presente em Frederick Schauer, Playing by the rules: APhilosophical Examination of Rule-based Decision-Making in Law and Life, Oxford UP, 1991.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    21/269

    constitucionais, o papel complementador22 do judicirio23 e em especial do tribunal

    constitucional se d na criao de sub-regras, verdadeiras restries, condicionamentos

    ou regulamentaes de princpios constitucionalmente garantidos, cujos efeitos extrapolam

    a resoluo de um caso individual j que restries feitas a direitos fundamentais devem

    ser aplicadas igualmente a todas as situaes semelhantes.

    Essa atuao incisiva dos tribunais sobre o contedo dos direitos aceita por uma

    grande quantidade de autores, pois encarada como parte das atribuies de um juiz, e no

    algo que s deve existir quando h lacunas deixadas pelo legislador24. O juiz, criador tpico

    dessas sub-regras ou normas adscritas conforme a terminologia utilizada por Alexy 25,

    visto como complementador da atividade normativa parlamentar agregando elementos combase em uma lgica argumentativa, em lugar da lgica majoritria, que rege a ao do

    legislador. Com base nessa diferena de atuao tambm se desenvolvem diferentes formas

    de controle do trabalho de cada uma das esferas de deciso estatal.

    A garantia dos direitos fundamentais e o controle de constitucionalidade, elementos

    essenciais de regimes democrticos, tm seu exerccio especfico resguardado por

    instituies j consolidadas no atual constitucionalismo. Parlamento e Corte Constitucional

    so instncias decisrias da sociedade e atuam sobre ela de modo diferenciado e

    complementar, sendo a jurisdio constitucional o espao em que os ideais democrtico e

    constitucionalista se acomodam26. Em certo sentido, o tribunal constitucional resguarda os

    21

    22 Expresso utilizada por Diego Eduardo Lpez Medina e Roberto Gordillo, Consideraciones ulterioressobre el anlisis esttico de jurisprudencia, inRevista de Derecho Pblico, n. 15, 2002, p. 3.

    23O autor por excelncia de regulamentaes dos princpios constitucionais o legislador. Longe de retirarseu papel essencial, o que se afirma aqui a recente adoo dessa tarefa tamb mpelo poder judicirio, que,diante da j mencionada incapacidade do legislador em prever todas as circunstncias de aplicao de uma

    norma, em especial um princpio, v a necessidade de concretizar ainda mais os preceitos normativosabstratos.

    24 A possibilidade de criao e utilizao de precedentes somente quando h lacunas no direito constantemente repetida na literatura brasileira que trata do tema. Assim, o precedente ou a jurisprudnciacomo um todo so vistos como meios de integrao do direito, aperfeioando e complementando a lei, comoafirma Rodolfo Mancuso, em seu Divergncia jurisprudencial e smula vinculante, 2. ed. So Paulo: RT,2001. Para o autor, a jurisprudncia, assim como a doutrina, aparece como meio suplementar de integraodo direito.

    25 Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, (Trad. Virglio Afonso da Silva) So Paulo: Malheiros,2008. Essa viso do juiz como criador de sub-regras tratado no caso especfico da aplicao de precedentes

    por Thomas da Rosa Bustamante, Uma teoria normativa do precedente judicial o peso da jurisprudnciana argumentao jurdica, tese de doutorado apresentado Pontifcia Universidade Catlica do Rio deJaneiro, 2008.

    26Conrado Hbner Mendes, Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p.10.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    22/269

    direitos de minorias e garante um mnimo de justia substantiva, potencialmente

    ameaados em um regime em que a nica responsvel pelas decises polticas fosse uma

    instituio que represente a maioria27.

    Assim, ao lado da legitimidade democrtica das instituies parlamentares estaria o

    poder contra-majoritrio dos tribunais, compostos por membros no escolhidos

    diretamente pelos cidados. Essa caracterstica de proteo aos direitos confere, segundo o

    modelo adotado pelas constituies vigentes, o poder da ltima palavra s cortes

    constitucionais. Cabendo a elas o papel de avaliar a constitucionalidade do trabalho

    desempenhado pelo legislador ordinrio, transfere-se a outro ator a responsabilidade pelo

    final das controvrsias jurdicas e polticas28

    .

    Ao tratar de forma clara a possibilidade de abuso desse poder que foi atribudo aos

    tribunais constitucionais, a teoria jurdica elaborou mtodos de interpretao, cuja

    finalidade seria o controle racional da deciso judicial, diminuindo as possibilidades do

    abuso de seu poder por meio de arbitrariedades. Aconstruo terica de formas de controle

    das cortes constitucionais baseia-se na ideia de que a deliberao e a sua consequente

    tomada de deciso limitada argumentativamente29.

    A despeito de no se tratar de um enfoque tradicionalmente utilizado em nossa

    cultura jurdica, o papel que a argumentao desempenha em uma deciso judicial no

    22

    27 Essa viso sobre a Corte Constitucional no aceita por todos. Para uma crtica ao aspecto anti-democrtico das cortes e ao desrespeito que elas representam ao direito de participao nas decises, cf.Jeremy Waldron,Law and disagreement, Oxford University Press, 1999.

    28 O poder da ltima palavra usado aqui de modo simplificado. Diversos autores refutam a existncia dessaltima palavra. Os temas, que so deliberados e decididos por uma instituio o parlamento, por exemplo ,

    tornam-se contedo de novas deliberaes e decises em outras instituies as judicirias, por exemplo. Odilogo, no entanto, no pra por a. Na viso de um constitucionalismo dinmico, esses contedos voltam aser deliberados em seus locais originais, que depois de decidirem transferem o locus de deciso para outrasinstncias da esfera pblica. A despeito de tratar-se de tema importante, que de certa forma se relaciona como objeto dessa tese, o assunto no ser aqui desenvolvido por no ser o objeto do estudo. Para um maioraprofundamento no tema, cf. Conrado Hbner Mendes, Controle de constitucionalidade e democracia. Riode Janeiro: Elsevier, 2008 e Conrado Hbner Mendes, Direitos Fundamentais, Separao de Poderes e

    Deliberao, Tese (Doutorado em Cincia Poltica), Universidade de So Paulo, 2008. Essa ideia pode sercontraposta ao entendimento de que na compatibilizao entre as atividades de interpretao feitas pelo juiz e

    pelo legislador ao regulamentar normas constitucionais, o que vale mais o que disse o legislador, pois foidemocraticamente escolhido pelo povo. Adefesa do direito de auto-governo do povo, verdadeira autoridade

    para a tomada decises, chama a ateno daqueles que foram acostumados a ver no controle deconstitucionalidade feito por um tribunal algo natural, um problema que poderia ser tranquilamente mitigadona cobrana de maior transparncia e coerncia na argumentao do tribunal. A crtica a esse modelo est emdiversos autores, entre eles Jeremy Waldron,Law and disagreement, Oxford University Press, 1999; ThomasPoole, Questioning commom law constitutionalism,Legal Studies25, 2005, p. 142-163.

    29 Conrado Hbner Mendes, Controle de constitucionalidade e democracia, op.cit., p.10

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    23/269

    deve ser desprezado. Pelo contrrio, quanto maior o peso que se confere qualidade da

    argumentao das cortes judiciais, menor o espao que se deixa discricionariedade do

    juiz. Quando forado, em funo das prticas e tcnicas da comunidade jurdica em que se

    insere, a sustentar razoavelmente suas decises, de modo por exemplo a explicitar seus

    pressupostos e pontos de partida, a dialogar com seus precedentes, ou a desenvolver uma

    linha de raciocnio clara e coerente, mais o juiz fica vinculado s razes nas quais o

    discurso jurdico se pauta, conferindo assim, no s maior transparncia, mas segurana

    jurdica e igualdade, exigncias de um ordenamento democrtico.

    Essa tarefa de sustentao argumentativa da regras criadas pelo legislador

    compreendida pelo prprio STF, no momento em que toma suas decises. Na deciso daADI 3510, mencionada anteriormente no caso das pesquisas em clulas-tronco

    embrionrias, o Ministro Gilmar Mendes refora a ideia de que o papel do STF no controle

    de constitucionalidade consiste na fundamentao argumentativa das decises polticas

    tomadas em outra esfera do poder estatal: Ressalto, neste ponto, que, tal como nos ensina

    Robert Alexy, o parlamento representa o cidado politicamente, o tribunal constitucional

    argumentativamente30.

    23

    30 ADI 3510, p.4 do voto do ministro Gilmar Mendes. Em seguida, o ministro cita trecho de trabalho doautor mencionado: O princpio fundamental: Todo poder estatal origina-se do povo exige compreenderno s o parlamento, mas tambm o tribunal constitucional como representao do povo. A representaoocorre, decerto, de modo diferente. O parlamento representa o cidado politicamente, o tribunalargumentativamente. Com isso, deve ser dito que a representao do povo pelo tribunal constitucional temum carter mais idealstico do que aquela pelo parlamento. A vida cotidiana do funcionamento parlamentaroculta o perigo de que maiorias se imponham desconsideradamente, emoes determinem o acontecimento,dinheiro e relaes de poder dominem e simplesmente sejam cometidas faltas graves. Um tribunal

    constitucional que se dirige contra tal no se dirige contra o povo seno, em nome do povo, contra seusrepresentantes polticos. Ele no s faz valer negativamente que o processo poltico, segundo critriosjurdico-humanos e jurdico fundamentais, fracassou, mas tambm exige positivamente que os cidadosaprovem os argumentos do tribunal se eles aceitarem um discurso jurdico-constitucional racional. Arepresentao argumentativa d certo quando o tribunal constitucional aceito como instncia de reflexo do

    processo poltico. Isso o caso, quando os argumentos do tribunal encontram eco na coletividade e nasinstituies polticas, conduzem a reflexes e discusses que resultam em convencimentos examinados. Seum processo de reflexo entre coletividade, legislador e tribunal constitucional se estabiliza duradouramente,

    pode ser falado de uma institucionalizao que deu certo dos direitos do homem no estado constitucionaldemocrtico. Direitos fundamentais e democracia esto reconciliados. Robert Alexy, Direitos fundamentaisno Estado constitucional democrtico. Para a relao entre direitos do homem, direitos fundamentais,democracia e jurisdio constitucional. Trad. Lus Afonso Heck. In:Revista de Direito Administrativo, Rio deJaneiro, 217: 55-66, jul./set 1999. A representao argumentativa dos tribunais, ponto bastante controverso eque demanda maiores aprofundamentos, tambm no ser aqui privilegiada. A qualidade argumentativa comoforma de garantir a legitimidade do tribunal exigncia suficiente para a compreenso do papel daargumentao na justificao. Para maior aprofundamento no tema, cf, entre outros, Robert Alexy, Losderechos fundamentales em el Estado cosntitucional democrtico, in Neoconstitucionalismo(s), Carbonel,Miguel (org), Madrid: Trotta, 2005, 2.ed., p.31-48

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    24/269

    Apesar dessas manifestaes, que poderiam indicar uma maior maturidade do

    tribunal em vista da responsabilidade de fundamentar argumentativamente escolhas

    tomadas no mbito de outros poderes do Estado, as atitudes dos ministros parecem muitas

    vezes ficar restritas enunciao das tarefas no tribunal, no refletindo necessariamente

    um produto mais bem estruturado de elementos que fundamentam as decises do tribunal.

    Assim, ainda tendo em vista a deciso do Ministro Gilmar Mendes na ADI 3510, a

    afirmao de que a abertura do STF a diversos argumentos, provindos de diferentes esferas

    e que se inserem no procedimento de tomada de deciso do tribunal, consiste na

    legitimidade democrtica mencionada pelos autores, citando especialmente Alexy, parece

    deixar explcita a confuso que se faz entre os argumentos trazidos por diversos atores deliberao e a absoro de tais argumentos ao contedo das decises do STF.

    A transcrio do seguinte texto deixa mais clara essa caracterstica:

    Em nossa realidade, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo questes

    importantes, como a recente afirmao do valor da fidelidade partidria (MS n

    26.602, 26.603 e 26.604), sem que se possa cogitar de que tais questes teriam sido

    melhor decididas por instituies majoritrias, e que assim teriam maior

    legitimidade democrtica. (...) O Supremo Tribunal Federal demonstra, com este

    julgamento, que pode, sim, ser uma Casa do povo, tal qual o parlamento. Um lugar

    onde os diversos anseios sociais e o pluralismo poltico, tico e religioso encontram

    guarida nos debates procedimental e argumentativamente organizados em normas

    previamente estabelecidas. As audincias pblicas, nas quais so ouvidos os

    expertos sobre a matria em debate, a interveno dos amici curiae, com suas

    contribuies jurdica e socialmente relevantes, assim como a interveno do

    Ministrio Pblico, como representante de toda a sociedade perante o Tribunal, e das

    advocacias pblica e privada, na defesa de seus interesses, fazem desta Corte

    tambm um espao democrtico. Um espao aberto reflexo e argumentao

    jurdica e moral, com ampla repercusso na coletividade e nas instituies

    democrticas.(...) No h como negar, portanto, a legitimidade democrtica da

    deciso que aqui tomamos hoje.

    Com tais afirmaes o ministro restringe a legitimidade democrtica e seu controle

    em funo da abertura do tribunal a esses diversos argumentos, mas no possibilidade de

    controle qualitativo da deciso tomada, por meio da anlise de sua prpria argumentao.

    O que se insinua, por meio desse discurso, a absoro automtica do pluralismo e do

    24

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    25/269

    dilogo expostos nos argumentos das partes interessadas pela justificao apresentada

    pelos ministros31.

    Assim, a anlise do uso do precedente pelo Supremo Tribunal Federal nas decises

    que envolvem restrio a direitos fundamentais, foco da tese, pode ter como premissa a

    possibilidade que essa ferramenta argumentativa oferece para estipular critrios teis

    avaliao do desempenho argumentativo de cortes constitucionais. Ao permitir a

    verificao da existncia, ou inexistncia, de coerncia decisria do tribunal no tempo, o

    precedente pode ser encarado como um dos elementos certificadores da qualidade

    argumentativa na tomada de deciso. O precedente uma das formas que o tribunal dispe

    para relacionar passado, presente e futuro, na construo de contedos slidos dos direitosfundamentais.

    O tribunal, nos dias de hoje, encontra-se cada vez mais aberto atuao de uma

    pluralidade de indivduos interessados em seu processo de tomada de deciso. Essa

    abertura, no entanto, no pode ser confundida com a automtica incorporao dos novos

    elementos trazidos ao debate. Essa incorporao depende da transferncia dos elementos

    argumentativos fundamentao das decises tomadas pelo STF, num real esforo de

    justificao dessas decises. A simples abertura do tribunal no sinnimo de uma maior

    carga argumentativa, ou de uma necessria melhora na qualidade dessa argumentao. A

    abertura pode ser encarada como instrumento potencial de agregao de qualidade

    justificao das decises, importante de ser inserida ao procedimento de tomada de deciso

    de uma corte constitucional que cada vez mais toma para si a responsabilidade de fixar

    entendimentos e contedos acerca do texto da Constituio. Mas pode tambm ser um

    instrumento meramente simblico, em que pouco ou nada impacta as decises individuaisdos ministros ou suas dinmicas antes e durante a sesso de julgamento.

    Ou seja, o que se deve ter em mente, que tal abertura no , por si s, indicativo de

    maior qualidade argumentativa, ou, em outras palavras, no confere maior carga de

    legitimidade democrtica s decises. Isso se d somente com a traduo desses novos

    argumentos no momento da justificao. Assim, o respeito aos precedentes pode ser

    encarado comouma das formas de accountabilitydo judicirio, em funo da possibilidade

    de controle do desenvolvimento do direito feito pelas cortes.

    25

    31 Conrado Hbner Mendes, Controle de constitucionalidade e democracia, op.cit., p.18

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    26/269

    Existe, no entanto, um certo tipo de resistncia aplicao do termo accountability

    ao trabalho desenvolvido judicirio e funo que ele desempenha na diviso dos

    poderes32. Isso porque tradicionalmente o conceito de accountability foi entendido como

    uma relao de comando-e-controle, no qual a autoridade chamada a prestar contas de sua

    ao ou omisso est em uma posio de subordinao e sujeita a sanes. Como

    definitivamente esse no o caso do judicirio, pode haver uma certa incompatibilidade

    em adaptar o conceito de accountabilityaplicando-o conduta de juzes e tribunais. Seria,

    segundo esse ponto de vista, impossvel garantir a independncia do juiz, dado que ele

    deva responder individualmente por suas decises. Isso minaria o princpio da

    independncia do juiz, colocando em xeque a funo judicial. Entretanto, o prprio

    conceito de constitucionalismo inclui a necessidade de controle da atividade de qualquer

    um dos poderes do Estado, entre eles o poder judicial33. Na viso de uma corrente que

    tenta conciliar esses conceitos independncia judicial e accountability mecanismos de

    accountability j fazem parte do trabalho das cortes e do entendimento que temos de suas

    funes. A exigncia de sesses pblicas, a obrigao de decises fundamentadas e

    publicadas em formato escrito seriam elementos que garantiriam o controle da atividade

    judicial e que j fazem parte de nosso entendimento sobre como cortes democrticasdevem funcionar. Deste modo, se usado de uma maneira mais ampla e flexvel, o conceito

    de accountability hoje inclui o controle da atuao judicial, sem apresentar

    incompatibilidade com o respeito ao princpio da independncia judicial34.

    Uma noo mais ampla de accountability, mais facilmente aplicvel atividade

    judicial bem trabalhada por Andrew Le Sueur35. Alm de estabelecer diferentes tipos de

    accountability judicial, distinguindo entre accountability individual dos juzes e

    26

    32 Para um mapeamento dos argumentos usados por aqueles que so favorveis e contrrios aplicao dotermo accountability ao poder judicirio ver: Andrew Le Sueur, Developing mechanisms for judicialaccountability in the UK, inLegal Studies, 24, 2004, 73-98;

    33Cf. Daniela Piana, Beyond Judicial Independence: Rule of Law and Judicial Accountabilities in AssessingDemocratic Quality, in Comparative Sociology9, 2010, 40-64. Vernon Bogdanor. Accountability and theMedia: Parliament and the Judiciary: The Problem of Accountability, February 9th 2006. Disponvel emhttp://www.ukpac.org/bogdanor_speech.htm

    34 Nesse sentido afirma Daniela Piana: O ponto que um melhor conhecimento dos mecanismos pelosquais juzes so responsabilizados pode prover uma avaliao perspicaz do modo como comportamentos

    judiciais e institucionais afetam a qualidade da democracia, (traduo livre), Daniela Piana, idem, p.43

    35 Andrew Le Sueur, Developing mechanisms for judicial accountability in the UK, op.cit.

    http://www.ukpac.org/bogdanor_speech.htmhttp://www.ukpac.org/bogdanor_speech.htm
  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    27/269

    accountability das cortes como instituies36, o autor diferencia mecanismos para

    assegurar accountability, que podem variar entre mecanismos formais e informais,

    incluindo nessa ltima categoria a avaliao das decises e dos juzes pela mdia e pela

    academia37. Ao lado dessas categorias, diferentes nveis de accountability podem ser

    identificados. Cada um desses nveis de controle se relaciona identificao dos elementos

    que podem ser atribudos responsabilidade dos juzes. Isso porque a atividade dos juzes

    na verdade a soma de uma multiplicidade de tarefas, sendo a mais bvia delas a atividade

    de decidir casos. Mas a variedade de formas de como esses casos so tratados, o tempo

    dedicado a cada um deles, o tipo de procedimento adotado em cada um deles e a solidez

    dos argumentos apresentados para a soluo de cada um sugere que para cada um desses -

    e de outros - tipos de atuao do juiz ou da corte deve haver um tipo de avaliao possvel

    de ser feita. Assim, ao avaliar a probidade de juzes e cortes no desempenho de suas

    atividades, o controle das finanas da corte e dos gastos individuais de cada juiz est em

    jogo. A exposio desses gastos, via publicao anual de gastos ou fiscalizao por rgo

    de outro poder, so modos de verificar a responsabilidade da corte em um nvel

    administrativo.

    Para alm desse nvel administrativo, o controle da atuao dos juzes pode ser mais

    intrusivo, tocando mais profundamente em reas sensveis ou reas fins da atuao

    judicial. Um exemplo disso seria um controle de desempenho, no qual a corte poderia ser

    exigida a prestar contas da quantidade de casos decididos anualmente e das justificativas

    pelas quais alguns tipos de casos so decididos mais rapidamente que outros. Nesse caso, o

    que estaria em avaliao o gerenciamento das decises.

    27

    36 O peso que se d a cada tipo de controle (individual ou da corte) depende da viso que se tem da corte queem avaliao. O STF, por exemplo, dificilmente pode ser tratado como uma corte que possui uma vozinstitucional forte. O seu modelo de funcionamento fomenta o a elaborao de mltiplas decises individuais

    para a soluo de cada caso. Diante desse tipo de corte, um controle sobre a atuao individual dos juzesestaria na disciplina da conduta pessoal de cada um, apresentao de decises individuais fundamentadas,explicaes sobre pontos de vista pessoais sobre o direito e a constituio apresentadas em palestras pblicase entrevistas com a imprensa ou academia.

    37 Alguns exemplos de accountability via processo formal seriam: publicao de razes escritas para asdecises da corte, direito de apelar para cortes superiores(tratando-se aqui do controle das cortes inferiores) ea publicao de relatrios anuais. J a accountability via aes informais da sociedade civil poderia se dar

    por meio de relatrios apresentados sobre os julgamentos da corte na mdia, comentrios acadmicos sobredeterminadas decises ou sobre a conduta da corte em geral, e a promoo, por organizaes profissionaislegais, de educao relacionada funo judicial e sua atuao, entre outras aes.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    28/269

    O processo de tomada de deciso tambm pode ser objeto de controle pblico, j que

    alteraes no modo de conduzir sesses, distribuir casos, apresentar decises pode alterar o

    resultado final de diversos casos. Uma justificativa acurada de cada procedimento, que

    leve em conta as possveis consequncias de sua adoo aumenta a capacidade de controle

    do rgo, ao mesmo tempo que diminui sua independncia na tomada de deciso sobre

    quais procedimentos adotar. Um grau mais elevado de controle estaria na avaliao do

    contedo das decises e nesse nvel de avaliao que o uso do precedente est inserido. O

    controle da atuao judicial incrementado se se torna possvel identificar quais decises

    constituem elementos paradigmticos na construo do direito pela corte. Nesse sentido,

    alm do resultado das decises tomadas pela corte, o controle de sua atuao estaria

    tambm na possibilidade de anlise e compreenso do modo como as decises so

    tomadas. O caminho argumentativo, consolidado na fundamentao das decises, se

    acompanhado por observadores especializados, serve de ferramenta para o controle da

    atividade judicial pois permite que as bases decisrias do tribunal fiquem explcitas

    tambm pelo olhar de outros (e no apelas nos julgadores).

    Por fim, alm dos argumentos de accountability, relacionando o respeito aos

    precedentes a exigncias de controle da atuao do tribunal, existem formas polticas e

    estratgicas de entender e avaliar o uso de precedentes por uma corte. Assim, o respeito aos

    precedentes pode ser entendido como um elemento que determina o modo como as

    decises atuais de uma corte sero recebidas no futuro pela comunidade jurdica e pelas

    cortes. Isso porque a importncia reconhecida pelo STF aos precedentes que ele cria hoje

    est intimamente ligada relevncia que a corte de hoje d s decises passadas38.

    Segundo esse ponto de vista, existe no uso de precedentes uma atuao estratgica da corte

    a fim de defender a autoridade e a legitimidade de suas decises. Nesse sentido, alm de

    agirem conforme suas preferncias, os juzes agiriam pautados por algumas regras, tanto

    formais quanto informais. Mesmo descontente com sua prpria jurisprudncia, por

    exemplo, a corte no poderia superar todas as decises anteriores com as quais no

    concorda. Agir dessa forma possivelmente enfraqueceria a legitimidade e autoridade da

    corte, reduzindo com isso o impacto de suas decises. nesse sentido que ao se colocar

    28

    38 Para uma anlise do uso estratgico dos precedentes da Suprema Corte Americana ver, por exemplo,James F. Spriggs, Thomas G. Hansford, Explaining the Overruling of U.S. Supreme Court Precedent, in TheJournal of Politics, Vol. 63, No. 4., Nov., 2001, pp. 1091-1111.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    29/269

    vinculada s decises passadas, a corte fomenta o respeito das suas prprias decises no

    futuro. Incrementando o direito e, de certo modo, prestando ateno aos precedentes, a

    corte maximiza a probabilidade de suas decises terem um maior impacto no futuro. Desta

    maneira, juzes reconheceriam que, para garantirem o impacto e a fora de suas decises,

    devem eles mesmos conferir fora e autoridade s decises passadas 39. Por trs dessa

    atuao estaria o entendimento de que no h como esperar que cortes futuras respeitem o

    trabalho de uma corte se ela mesma no respeita o trabalho desenvolvido anteriormente.

    Um exemplo dessa atuao estratgica pode ser encontrada quando juzes afirmam

    que adotam uma certa deciso para os casos mesmo quando discordam do resultado,

    deixando evidente que esto concordando com o direito feito pela corte, pela maioria dosdemais juzes, ainda que essa no seja sua preferncia individual. Nesses casos seria

    perfeitamente possvel que o juiz que discorda votar pela dissidncia, mas ao preferir

    seguir o que j foi decidido pela corte em algum momento passado ele permite que a

    deciso da qual ele participa estabelea um precedente mais forte para o futuro40.

    Assim como a superao de precedentes poderia ser encarada como um fator de

    enfraquecimento da autoridade da corte no estabelecimento de novos precedentes, a

    apresentao de decises claras e objetivas tambm se insere entre os fatores que conferem

    maior ou menor probabilidade de uma deciso ser usada futuramente para a soluo de

    casos semelhantes. Decises controvertidas, com muitas opinies contrastantes, tem uma

    menor probabilidade de estabelecer-se como precedente, dada a dificuldade de se

    compreender o ponto exato que ela defende ou ataca.

    Nesse sentido, o modelo de atuao estratgica proposto por Fowler e Lupu41, adota

    como premissa o fato de que durante o processo de elaborao dos votos, os juzes daSuprema Corte comportam-se como decisores estratgicos, escolhendo dentre suas opes

    29

    39 James Fowler e Yonatan Lupu, The strategic content model of Supreme Court Opinion writing, op.cit.,p.10 e ss

    40 Esse comportamento, no entanto no comum, e isso evidenciado por Frederick Schauer. Ele se colocaem uma posio ctica com relao ao funcionamento genuno do stare decisis, afirmando que na prticadecisria da Suprema Corte norte-americana tal grau de adeso ao stare decisis rara. Segundo o autor,Juzes da Suprema Corte cujas vises foram rejeitadas pela maioria dos seus colegas frequentementecontinuam a aderir quelas vises vencidas em casos subseqentes - o fenmeno de dissidncia persistente -com isso afastando a ideia de stare decisis e os constrangimentos dos precedentes (traduo livre). FrederickSchauer, Has Precedent Ever Really Mattered in the Supreme Court? (The Henry J. Miller Lecture), 24 Ga.State L. Rev., 381, 2008

    41 James Fowler e Yonatan Lupu, The strategic content model of Supreme Court Opinion writing, op.cit

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    30/269

    de voto aquelas que mais se acomodariam ao total de votos da maioria, a fim de evitar uma

    disperso de argumentos e consequentemente votos no completamente alinhados

    maioria, o que faria com que a deciso tomada se tornasse menos provvel de ser utilizada

    como precedentes em casos futuros dada a dificuldade de se compreender o que a maioria

    da corte decidiu42. O uso de precedentes pela corte, nesse sentido, cumpre duas funes

    simultaneamente. Ele permite que o juiz que responsvel pela redao da deciso

    pondere dois objetivos relacionados: escrever uma deciso majoritria que mais

    proximamente reflita seu prprio raciocnio e que se baseie nos precedentes de sua escolha,

    e escrever uma deciso que estabelea um forte e duradouro precedente, minimizando o

    numero de votos adicionais escrito por colegas e maximizando a maioria que forma a

    deciso da corte.

    30

    42 Algumas das diferenas entre o processo decisrio da Suprema Corte norte-americana e do Supremo

    Tribunal Federal devem ser apontadas. Apesar de ter sido criado nos moldes da Suprema Corte dos EstadosUnidos, o STF apresenta diferenas no seu processo decisrio que afetam no s o modo como o tribunalfunciona, mas principalmente a forma como suas decises se constroem. No STF, a distribuio dos

    processos entre os gabinetes se d automaticamente, sem passar pela escolha de qualquer ministro. Cadaprocesso enviado a um ministro, que fica responsvel pela relatoria do caso e pela elaborao do seu votoindividual. Na sesso de julgamento o relatrio lido, bem como o voto do ministro-relator. Segue-se ento avotao dos demais ministros, sempre seguindo a ordem do ministro mais recente na casa para o mais antigo.

    Note-se que no h espaos para discusso entre os ministros alm das sesses de julgamento e que, salvocircunstncias especiais, o relatrio do ministro relator o nico contato que os demais ministros tm com ocaso em julgamento. Esse modo de decidir afeta o resultado das decises, o que j foi apontado por autores e

    por pesquisas acadmicas. Para uma reflexo sobre o processo decisrio do Supremo cf., entre outros,Virglio Afonso da Silva, O STF e o controle de constitucionalidade: deliberao, dilogo e razo pblica

    Revista de Direito Administrativo 250, 2009, p.197-227. So caractersticas do processo decisrio doSupremo a (...) quase total ausncia de trocas de argumentos entre os ministros: nos casos importantes, (...)inexistncia de unidade institucional e decisria, (...) carncia de decises claras, objetivas e que veiculem aopinio do tribunal. Esse modelo coloca ainda grande nfase na posio do relator que, apesar de ter omesmo peso na votao, acaba orientando a deciso dos demais ministros. De acordo com a pesquisaAccountability e jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: estudo emprico de variveis institucionais ea estrutura das decises, 90% das aes examinadas foram decididas pelo STF com fundamentao nica,

    ou seja, a maioria do Tribunal adotou como fundamento apenas os argumentos apresentados pelo relator docaso. Pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Direito Pblico, disponvel em http://www.observatoriodostf.org.br/acoes. O procedimento adotado pela Suprema Corte americana, apesar de terinspirado o modelo brasileiro apresenta diferenas substantivas. Ela adota, assim como o STF, um modelo dedeliberao externa (na diferenciao feita por John Ferejohn & Pasquale Pasquino em 82 Tex. L. Rev. 1671(2003-2004), no qual h pouca interao entre os juzes, em que cada um responsvel pela apresentao desua deciso em conjunto com sua fundamentao. Mas diferente da forma como o procedimento se d noSTF, o juiz relator do caso - que escolhido pelo presidente da Corte - busca, ao longo do perodo em quefica responsvel pela elaborao da deciso, conciliar posicionamentos e agregar argumentos de modo aconseguir a adeso dos demais juzes, buscando com isso a construo de um voto com o qual a maior partedos juzes concordem. A tarefa do relator, assim, est muito centrada no s na elaborao da deciso daCorte, mas em argumentar de maneira a conseguir o maior nmero de adeses. Isso se d de modo no

    pblico, aps as sesses nas quais os juzes realizam a arguio das partes em disputa e formam sua primeiraimpresso a respeito do caso. Somente aps as sesses que os juzes firmam seus posicionamentos, quesero organizados e muitas vezes negociados entre o juiz relator e os demais juzes. Para detalhes sobre o

    procedimento decisrio da Suprema Corte dos Estados Unidos e a importncia dos precedentes na construdas decises, cf. James Fowler e Yonatan Lupu, The strategic content model of Supreme Court Opinionwriting, op.cit

    http://www.observatoriodostf.org.br/acoeshttp://www.observatoriodostf.org.br/acoeshttp://www.observatoriodostf.org.br/acoeshttp://www.observatoriodostf.org.br/acoeshttp://www.observatoriodostf.org.br/acoes
  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    31/269

    No fica claro, do ponto de vista de anlise do STF, at que ponto esse modelo seria

    aplicvel exatamente da mesma forma ao nosso sistema, em que, aparentemente, no h

    incentivos suficientes para a tentativa, por parte do relator, em conciliar possveis

    divergncias de fundamentao de uma deciso a fim de se apresentar uma deciso

    majoritria de fundamentao nica. No entanto, esse modelo pode ser entendido como

    algo que exigiria dos ministros um esforo - e especialmente por parte do relator - em

    organizar os argumentos trazidos por ele de modo a gerar uma maior aderncia dos demais

    ministros, que simplesmente o acompanhariam sem a necessidade de acrescentar novos

    votos. O esforo do relator, nesse cenrio, seria o de congregar esses argumentos a fim de

    criar uma deciso menos catica, com uma menor profuso de argumentos e

    internamente mais consistente. Isso porque muitos acadmicos j argumentaram que tanto

    a presena de votos separados quanto uma maioria relativamente pequena tem uma maior

    probabilidade de serem superadas por decises futuras43.

    Dessa forma, a deciso de utilizar ou no precedentes, e a escolha de quais utilizar

    pode ser entendida como o resultado de uma interao estratgica dos juzes, tanto com

    relao aos membros que compem a corte no momento da tomada de deciso, a fim de

    influenciar o voto dos demais - quanto com relao ao impacto que a deciso tomada pode

    gerar em outros juzes no momento em que tiverem que decidir casos semelhantes, j que

    decises baseadas em precedentes indicam a existncia de uma srie de decises tomadas

    em um mesmo sentido, o que gera um maior grau de presso para a orientao da nova

    deciso a ser tomada. O que essa relao entre decises deixa mais evidente que a

    deciso por utilizar um precedente na fundamentao de um caso est intimamente

    relacionado com o fato de as decises passadas terem, por sua vez, citado precedentes. Em

    outras palavras, o uso de precedentes mais intenso quanto mais frequente tiver sido o uso

    de precedentes no passado44.

    Os trs pontos levantados nesse tpico no pretendem esgotar os diversos

    desdobramentos que eles permitem e nem podem ser considerados como as nicas razes

    31

    43 James Fowler e Yonatan Lupu, The strategic content model of Supreme Court Opinion writing, op.cit, p.12

    44 Para uma anlise emprica sobre o uso de precedentes pela Suprema Corte norte-americana e suasconsequencias nos padres de citao de precedentes, ver Frank Cross et al., . Citations in the US SupremeCourt: an empirical study of their use ans significance, University of Illinois. L. Rev. 489, 2010.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    32/269

    pelas quais precedentes podem ser considerados elementos importantes de serem

    analisados em um sistema jurdico. Outras justificativas poderiam ser apontadas, tais como

    a necessidade de estabilidade e continuidade de instituies polticas, a necessidade

    daqueles encarregados de implementar o direito em aceitar premissas razoveis, se no

    ideais, como base para tomadas de deciso coordenadas, consistncia, eficincia e

    predicabilidade, entre outras.45 Ao contrrio, as trs justificativas apresentadas funcionam

    como uma pequena contextualizao do terreno no qual este trabalho se apia. Muito

    poderia ser desenvolvido sobre eles, mas o objetivo de coloc-los em um captulo

    introdutrio se d pela necessidade de apresentao das justificativas de um trabalho sobre

    precedentes em nosso sistema jurdico. Coerncia, accountability e atuaes estratgicas

    de corte so variveis que, mesmo se tomadas independentemente, justificam a exigncia

    de um uso consciente de precedentes e o fomento a uma cultura jurdica que respeita

    decises passadas e sero aqui utilizados como base para a avaliao crtica da atuao do

    tribunal na aplicao de precedentes. A premissa, portanto, que isso se d

    independentemente do sistema jurdico em questo pertencer a uma tradio de civil ou

    common law. O prximo tpico tratar mais precisamente das hipteses e objetivos do

    presente trabalho.

    1.3. Objetivos e hipteses da tese

    Dados os elementos envolvidos na aplicao do precedente judicial, a presente tese

    tem como objetivos analisar a forma como os precedentes so utilizados na jurisprudncia

    do Supremo Tribunal Federal, nas decises envolvendo a coliso entre direitos

    fundamentais. Busca compreender qual o papel atribudo aos precedentes na

    fundamentao das decises deste tribunal e os efeitos que as atuais decises tomadas pelo

    tribunal em casos difceis podem gerar na sua prpria jurisprudncia, nas decises das

    demais instncias do poder judicirio e inclusive em esferas extra-judiciais.

    32

    45Para outras justificativas sobre a adoo de doutrinas fortes de precedentes ver, por exemplo, na literaturaamericana David Shapiro, The Role of precedent in Constitutional Adjudication, in Texas Law Review, vol.86, 2008, p.929-957. No direito ingls ver, por exemplo, Wesley-Smith, Peter. Theories of Adjudication andthe status of stare decisis, in Goldstein, Laurence.Precedent in law, Oxford: Claredon Press, 1987, p.73-87.

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    33/269

    Em um momento em que o Supremo Tribunal Federal identificado como um

    tribunal ativista46, inovando o sistema jurdico de forma alegadamente no legtima, a

    anlise do contedo e da estrutura de suas decises toma um carter de controle de sua

    atuao. Por conta disso, o precedente foi aqui escolhido como uma das ferramentas

    argumentativas utilizadas pelo tribunal no momento em que decide casos nos quais h

    restrio aos direitos fundamentais. A anlise sistemtica do emprego dos precedentes pode

    permitir a avaliao da jurisprudncia em termos de coerncia e consistncia

    argumentativas por ser um outro dado com pretenses legitimadoras apresentado pelo

    julgador, um elemento passvel de ser minimamente controlado e classificado.

    Sob o aspecto do contedo dos direitos parte-se da ideia de que, sendo os direitosfundamentais classificados como princpios, este contedo no em geral previamente

    determinado constitucional ou legalmente, e que, por conseqncia, faz parte das

    atribuies de um tribunal constitucional contribuir para a fixao desse contedo ao longo

    do tempo.

    Adoto, portanto, a diferenciao estrutural de normas proposta por Robert Alexy

    entre regras e princpios. Distino-chave na teoria da fundamentao dos direitos

    fundamentais, ela permite, entre outros, a soluo de problemas como a repartio de

    competncias entre parlamento e tribunal constitucional. Na separao realizada pelo autor,

    regras e princpios so diferenciados qualitativamente, afastando-se das tradicionais

    separaes graduais feitas em consequncia da generalidade das normas. Em lugar da

    generalidade, o critrio de distino entre regras e princpios est na definitividade de seu

    comando. Regras, assim, so normas que so sempre ou satisfeitas ou no satisfeitas,

    enquanto que princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maiormedida possvel dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes47. So

    mandamentos de otimizao satisfeitos por poderem ser satisfeitos em graus variados e

    33

    46 O ativismo do Supremo Tribunal Federal analisado e comentado por diversos autores. Entre eles, cf.

    Marcos Paulo Verssimo, A constituio de 1988, vinte anos depois: Suprema Corte e ativismo judicial brasileira, inRevista Direito GV, So Paulo, vol 4(2), 2008, p.407-440; Marcus Faro de Castro, O SupremoTribunal Federal e a Judicializao da Poltica, inRevista Brasileira de Cincias Sociais, So Paulo, v. 12,n. 34, p. 147-156, 1997; Soraya Regina Gasparetto Lunardi e Dimitri Dimoulis, Efeito transcendente,mutao constitucional e reconfigurao do controle de constitucionalidade no Brasil, in Revista Brasileirade Estudos Constitucionais. Belo Horizonte, ano 2, n. 5, p. 217-238, 2008; Oscar Vilhena Vieira,Supremocracia, inRevista Direito GV, So Paulo, vol 4(2), 2008.

    47 Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, So Paulo: Malheiros, 2008, p.90

  • 7/25/2019 Tese Adriana Vojvodic

    34/269

    pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das possibilidades

    fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas48.

    Assim, se a partir da leitura dos textos normativos que prevem a garantia de direitos

    fundamentais no decorre um automtico reconhecimento daquilo que definitivamente

    garantido, pois essa garantia depender das possibilidades jurdicas e fticas existentes, a

    tarefa de preencher o contedo e fixar a orientao normativa destes mesmos textos

    transfere-se ao intrprete e aplicador do direito. Sobressai, nesse momento, o papel do juiz,