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TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE E IDEOLOGIA GEOGRÁFICA NO IMPÉRIO DO BRASIL Leandro Macedo Janke 1 I – O Memorial Orgânico de F. A. de Varnhagen Antes de notabilizar-se com a publicação, em 1854, de sua História Geral do Brasil, Francisco Adolfo de Varnhagen exerceu inúmeras atividades a serviço do governo imperial, sobretudo no que se refere a pesquisas de documentos em arquivos de diversos países da Europa e no ofício diplomático enquanto representante do Estado imperial brasileiro. Entre março e novembro de 1846, Varnhagen é enviado pelo governo imperial à Espanha com a finalidade de coletar documentos relativos aos limites do Império que pudessem auxiliar na resolução dos impasses existentes entre o Brasil e as nações hispano- americanas com que possuía fronteiras. Percorreu inúmeras cidades europeias e ao retornar para Madri redige e publica, em 1849, o Memorial Orgânico que à consideração das Assembléias geral e provinciais do Império, apresenta um brasileiro. Dado à luz por um amante do Brasil 2 . Varnhagen inicia seu texto com um diagnóstico nada animador do Império do Brasil. Neste capítulo introdutório, denominado Alguns Enunciados, o autor do Memorial Orgânico descreve que “O Brasil é uma nação cujas raias com as vizinhas estão por assinar; um império cujo centro governativo não é o mais conveniente; um país cujo sistema de comunicações internas, se o há, não é filho de um plano combinado; um território enfim cuja subdivisão em províncias é desigual, monstruosa, não subordinada a miras algumas governativas [...]. E que é a nossa população? Para tão vasto país como uma gota de água no caudaloso Amazonas. Mas pior é a sua heterogeneidade que o seu pequeno número. Temos cidadãos brasileiros; temos escravos africanos e ladinos, que produzem trabalho, temos índios bravos completamente inúteis ou antes prejudiciais, e temos pouquíssimos (infelizmente) colonos europeus”. (VARNHAGEN, 1851: 357) Após diagnosticar o que ele próprio denomina como as chagas do país – limites indefinidos; subdivisão desigual das províncias; localização inapropriada da capital; população pequena e heterogênea – Varnhagen conclui observando que, “assim o Brasil 1 Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP); Pesquisador bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) com o projeto “Território e Territorialidade no Império do Brasil”. 2 Esta primeira publicação do Memorial Orgânico, em Madri, não é assinada por Varnhagen. Apenas em 1851, quando é reeditado no Brasil pela Revista Guanabara, é que o texto identifica o responsável por sua autoria.

TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE E IDEOLOGIA GEOGRÁFICA NO … · 2014-08-06 · Niemeyer, constituída a partir de cartas estrangeiras, mapas, roteiros, memórias e corografias (Peixoto,

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TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADE E IDEOLOGIA GEOGRÁFICA NO IMPÉRIO DO BRASIL

Leandro Macedo Janke 1

I – O Memorial Orgânico de F. A. de Varnhagen

Antes de notabilizar-se com a publicação, em 1854, de sua História Geral do Brasil,

Francisco Adolfo de Varnhagen exerceu inúmeras atividades a serviço do governo imperial,

sobretudo no que se refere a pesquisas de documentos em arquivos de diversos países da

Europa e no ofício diplomático enquanto representante do Estado imperial brasileiro.

Entre março e novembro de 1846, Varnhagen é enviado pelo governo imperial à

Espanha com a finalidade de coletar documentos relativos aos limites do Império que

pudessem auxiliar na resolução dos impasses existentes entre o Brasil e as nações hispano-

americanas com que possuía fronteiras. Percorreu inúmeras cidades europeias e ao retornar

para Madri redige e publica, em 1849, o Memorial Orgânico que à consideração das

Assembléias geral e provinciais do Império, apresenta um brasileiro. Dado à luz por um

amante do Brasil2. Varnhagen inicia seu texto com um diagnóstico nada animador do Império

do Brasil. Neste capítulo introdutório, denominado Alguns Enunciados, o autor do Memorial

Orgânico descreve que

“O Brasil é uma nação cujas raias com as vizinhas estão por assinar; um império cujo centro governativo não é o mais conveniente; um país cujo sistema de comunicações internas, se o há, não é filho de um plano combinado; um território enfim cuja subdivisão em províncias é desigual, monstruosa, não subordinada a miras algumas governativas [...]. E que é a nossa população? Para tão vasto país como uma gota de água no caudaloso Amazonas. Mas pior é a sua heterogeneidade que o seu pequeno número. Temos cidadãos brasileiros; temos escravos africanos e ladinos, que produzem trabalho, temos índios bravos completamente inúteis ou antes prejudiciais, e temos pouquíssimos (infelizmente) colonos europeus”. (VARNHAGEN, 1851: 357)

Após diagnosticar o que ele próprio denomina como as chagas do país – limites

indefinidos; subdivisão desigual das províncias; localização inapropriada da capital;

população pequena e heterogênea – Varnhagen conclui observando que, “assim o Brasil

1 Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP); Pesquisador bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) com o projeto “Território e Territorialidade no Império do Brasil”. 2 Esta primeira publicação do Memorial Orgânico, em Madri, não é assinada por Varnhagen. Apenas em 1851, quando é reeditado no Brasil pela Revista Guanabara, é que o texto identifica o responsável por sua autoria.

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declarou-se independente; e depois de um quarto de século acha-se quase na mesma: com

mais ar de colônia, ou de muitas colônias juntas que de nação compacta”. (VARNHAGEN,

1851: 358)

Os motivos para que o Brasil se encontrasse com mais ar de colônia, que de nação

compacta, passados cerca de 25 anos da emancipação política, residiriam na falta de

estabilidade política e na ausência de uma organização administrativa mais centralizada e

eficaz. Elementos estes característicos do contexto sócio-político do Estado imperial brasileiro

desde sua emergência enquanto corpo político autônomo até o início da década de 1850. De

acordo com Varnhagen,

“[...] a falta de coragem política para levar avante as medidas que poderiam prejudicar as eleições da seguinte legislatura, embora vitais ao país [...] tem feito que os ministérios e as legislaturas se sucedam, uns a outros, mandando [grifos do autor] mais ou menos todos, poucos governando [grifos do autor]. As oposições contentam-se em gritar na resposta ao discurso da Coroa, a ver se é chegada a ocasião de irem ao poder; [...] e raras vezes se fala em melhoramentos materiais do país, a não ser com relação a interesses provinciais”. (VARNHAGEN, 1851: 359)

Portanto, e este é um elemento essencial para a compreensão das motivações e

intenções de Varnhagen, o Memorial Orgânico foi produzido e insere-se em um contexto

sócio-político característico do Império que vai da década de 1840 ao início dos anos 1850.

Período este marcado por intensas disputas que opunham liberais e conservadores pela

direção política do Estado imperial. Episódios como a antecipação da maioridade de D. Pedro

II e as medidas de centralização político-administrativa daí decorrentes; as revoltas liberais de

1842 ocorridas em Minas e São Paulo; a continuidade de movimentos iniciados ainda no

período regencial, como a Farroupilha; e a eclosão, em 1848, da Praieira evidenciam a

instabilidade que marcou o Império do Brasil nos anos 1840.

Tais disputas e enfrentamentos se processavam no espaço público, no interior das

instituições estatais, como a Câmara dos Deputados e o Senado, mas também por meio de

periódicos, panfletos, opúsculos, manifestos e textos em que liberais e conservadores, ou

adeptos de um desses grupos, debatiam e enfrentavam-se mutuamente defendendo seus ideais

e projetos políticos para o Império (Mattos, 2005). Publicações como “Libelo do Povo”

(1849), do então liberal Francisco Sales Torres Homem, e “Ação, Reação e Transação”

(1850), do conservador Justiniano José da Rocha, contemporâneos do Memorial Orgânico,

demonstram que a disputa não era restrita aos círculos e instituições políticas, englobando

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também intelectuais e letrados de diferentes segmentos. Aqueles que estavam inseridos neste

seleto grupo tinham por ocupação principal produzir, transmitir e debater – a partir de seus

conhecimentos especializados e por meio de revistas, sociedades e panfletos – mensagens que

eram dirigidas tanto aos seus pares quanto também à arena política (Altamirano, 2008).

É participando ativamente destes debates e enfrentamentos entre liberais e

conservadores que Varnhagen elaborou o Memorial Orgânico. A própria publicação de seu

texto, em 1851, pela Revista Guanabara é bastante significativa neste sentido, na medida em

que os editores deste periódico compartilhavam, em sua grande maioria, com o projeto

político defendido pelos conservadores, revelando desta forma a aproximação entre as

reflexões de Varnhagen e este grupamento político (Sodré, 1966).

Além disso, o próprio título também não deixa de indicar que o texto tinha uma função

específica e estava direcionado para um público também bastante específico. De acordo com

o dicionarista Moraes e Silva o termo ‘memorial’ remete a um ‘livro de apontamentos para

lembrança’, ou a uma ‘petição para se lembrar o que se pede’ (Silva, 1813). Neste sentido, o

Memorial Orgânico que à consideração das Assembléias geral e provinciais do Império,

apresenta um brasileiro, tinha por intenção lembrar aos dirigentes imperiais que se

realizassem as medidas necessárias para que o Império abandonasse o ar de colônia e se

constituísse como uma nação compacta.

A Carta do Brasil e Países Limítrofes que acompanha o Memorial Orgânico articula-

se e dialoga diretamente com o diagnóstico realizado por Varnhagen no primeiro capítulo,

com o contexto sócio-político em que está inserido e com seus objetivos e intenções. O mapa

caracteriza-se, essencialmente, pela ausência de informações e dados. Não há inscrições de

topônimos identificando vilas, cidades, povoações, rede hidrográfica, acidentes geográficos,

linhas férreas e estradas.

Com relação aos limites internos e externos do Império, a Carta do Brasil também

caracteriza-se pela imprecisão. Não consta a inscrição das Províncias que constituem o

território do Império, assim como os limites administrativos que as separam entre si. Com

relação à organização interna do território há apenas, de maneira muito discreta, a indicação

de uma nova divisão territorial do país em 19 departamentos, proposta no Memorial

Orgânico. Tal indicação é realizada por pequenos números inscritos em diversos pontos do

mapa onde deveriam se situar os centros governativos de cada um desses 19 departamentos.

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Ao longo do Memorial Orgânico esses departamentos são descritos detalhadamente, com suas

características e funções específicas.

Apesar de o mapa conter uma anotação na parte inferior, feita pelo próprio Varnhagen,

em que ressalta que “esta Carta tem por fim dar uma idéia aproximada das fronteiras” 3 entre

o Império e os Estados confinantes, observa-se, contudo, a inexistência do topônimo

‘Fronteira’, indicando a respectiva linha divisória. O topônimo ‘Império do Brasil’, inscrito

no centro do mapa e de maneira bastante espaçada, é o único recurso utilizado para

identificar, de maneira bastante precária, a fronteira entre o Brasil e os demais países que o

cercam. Estes por sua vez, também se encontram precariamente representados no mapa, sendo

3 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB). Vol. 223, p.153.

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difícil identificar a fronteira destes países com o Império. Todas essas ausências de

informações toponímicas, aliado às imprecisões relativas aos limites territoriais dos países ali

representados, expressam a noção de um imenso vazio em que o território do Império se

confunde com o dos países vizinhos e vice-versa. Tal noção coloca em evidência a clara

indefinição do Estado imperial brasileiro em relação à sua política de limites e de sua

incapacidade em defini-los com os países confinantes em fins da década de 1840.

A representação do território do Império como um grande vazio dialoga também com

uma percepção em torno da concepção de tempo que tinha a noção de progresso, conceito-

chave do mundo moderno, como principal categoria temporal. Os principais aspectos que

definem esta concepção de tempo estruturante do mundo moderno são: a aceleração; a busca

do progresso; e a imprevisibilidade com relação ao futuro. Quanto mais rápido se atingisse

este futuro desconhecido, controlando-o, mais rápido os homens e a sociedade atingiriam o

progresso tanto material, quanto social e político (Koselleck, 2006).

Neste sentido, a representação de um território desconhecido, quase selvagem, sem

marcos da soberania estatal sobre o mesmo, articula-se ao propósito de expor a percepção de

que o Brasil encontrava-se estagnado, com mais ar de colônia, ou de muitas colônias juntas

que de nação compacta. Mesmo independente há cerca de 25 anos, o Império ainda se

encontrava organizado sob bases coloniais e não nos moldes de uma nação moderna (limites

definidos, população homogênea e organização interna eficiente), o que representaria um

atraso na marcha do Império rumo ao progresso, impossibilitando-o de inserir-se no conjunto

das Nações Civilizadas.

É importante salientar que esse vazio marcante, representado no mapa, não é resultado

de um completo desconhecimento que o autor do Memorial Orgânico e os demais dirigentes

imperiais possuíam do território nacional. Se não havia um conhecimento minucioso e

detalhado do território do Império, já se tinha, contudo, uma noção considerável do mesmo,

como bem atesta a Carta Corográfica do Império do Brasil, do coronel Conrado Jacob

Niemeyer, constituída a partir de cartas estrangeiras, mapas, roteiros, memórias e corografias

(Peixoto, 2004) e elaborada entre 1842 e 1846, ou seja, anterior ao próprio Memorial

Orgânico.

Portanto, o ocultamento de informações e dados no mapa incorporado ao Memorial

Orgânico é intencional. De acordo com Harley (2005: 36), o silêncio contido nos mapas é o

veículo de significado mais original e provocativo de todos que uma representação

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cartográfica pode conter. No caso específico, este ocultamento intencional tem por finalidade

principal demonstrar aos dirigentes imperiais o estado de completo abandono com relação aos

limites externos e organização interna do território nacional. Abandono este resultado das

disputas políticas que colocavam os interesses locais acima dos nacionais, o que por sua vez

fragilizava interna e externamente o Império. Alertar para os riscos que tais disputas políticas

representavam à soberania nacional do Estado imperial é, sem dúvida, o principal esforço

retórico contido neste mapa, na medida em que a inexistência de topônimos identificando

vilas, povoações, rios e fortalezas expressam a noção de uma completa ausência do Estado

sobre o território, colocando em dúvida sua autoridade e legitimidade jurídica (soberania)

sobre o mesmo. Tendo em vista todos estes elementos, torna-se possível compreender que o

mapa contido no Memorial Orgânico é a representação iconográfica de uma manifestação

política: persuadir os dirigentes imperiais da necessidade de incorporar mudanças na

administração estatal.

De acordo com Varnhagen, o Império somente conseguiria superar o atual estado de

atraso se direcionasse suas atenções para o território. Ao longo dos três capítulos que

compõem o Memorial Orgânico, é apresentado um minucioso plano de reorganização

administrativa do Império que possibilitariam que o mesmo se estruturasse nos moldes de

uma nação moderna (Guerra, 2003). Dentre as medidas defendidas, algumas são consideradas

como prioritárias, tais como: a transferência da capital para o interior; a redivisão interna do

território; a definição de suas fronteiras com os países confinantes; o fim do tráfico de

escravos e a constituição de uma população homogênea. Tratarei aqui das propostas

relacionadas à organização do território nacional, pois estas acabam por influenciar e

direcionar aquelas referentes à população. A importância direcionada ao território fica

bastante evidente no seguinte comentário de Varnhagen: “Estudemos bem o nosso território;

e à vista dele tratemos de organizar uma administração mais fácil, mais econômica, e um

sistema de colonização próprio a civilizar a nação e a formá-la”. (VARNHAGEN, 1851:

425)

Partindo de uma herança da antiga metrópole – o território – Varnhagen idealiza uma

construção – que o Império do Brasil se constitua como Nação Civilizada. E para que essa

construção se realize é necessário o estabelecimento de uma ‘administração mais fácil, mais

econômica’ e que se desenvolva a partir de um conhecimento detalhado do território nacional.

Varnhagen defenderá uma nova organização administrativa do território nacional pautada em

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dois objetivos centrais: 1) estabelecer a harmonia e articulação entre as partes (províncias) que

compõe o todo (Império do Brasil) por meio de uma nova divisão territorial; 2) transferir a

capital do Império do litoral para o interior.

Das anomalias e desigualdades provenientes da divisão territorial do Império em

meados do XIX apresentadas no Memorial Orgânico, destaca-se a pouca preocupação ou o

quase abandono com o interior. Segundo Varnhagen, as rivalidades e desarmonias existentes

entre as províncias têm suas raízes no processo de ocupação e colonização do território ao

longo da experiência colonial. Desde então, privilegiou-se as regiões litorâneas, articuladas ao

comércio externo, em detrimento da região central, gerando assim extensos fundos territoriais

(Moraes, 2008): os sertões. É a partir desta assimetria entre litoral e sertão, resultado da

administração metropolitana, que Varnhagen defende também como objetivo da nova divisão

territorial a ocupação e o desenvolvimento das forças produtivas do interior. Neste ponto faz a

seguinte observação:

“[...] Como colônia, [o Império] vende seus produtos à porta de casa; e como colônia se sustenta, e vive quase exclusivamente do comércio exterior. Com tanto território fertilíssimo de sertão continua a descuidar deste, e a esquecer-se de que só daí lhe podem vir sólidos recursos, e legítima segurança e energia. Convençamo-nos que é da maior urgência proteger por todos os modos o tráfico interno, e nivelá-lo ao menos ao comércio marítimo, a fim de que a riqueza pública e o bem estar dos súditos brasileiros dependa o menos possível do comércio externo, e possa n’uma crise nutrir-se a si mesmo.” (VARNHAGEN, 1851: 371)

Para que o Império consiga superar o ar de colônia, faz-se necessário abandonar

determinadas estruturas herdadas da experiência colonial. E dentre estas heranças, a

dependência com relação ao comércio externo é identificada como a principal a ser combatida

para que seja possível solucionar as chagas enunciadas na abertura do primeiro capítulo do

Memorial Orgânico. Tendo em vista estes elementos, Varnhagen propõe que o território do

Império seja dividido em 19 departamentos, e que cada um, considerando sua localização,

população e riqueza, tenha uma função específica (defesa, administração, colonização

agrícola). Contudo, o sucesso da nova divisão do território em departamentos encontra-se

condicionada a uma outra medida: a transferência da capital do Império. Varnhagen critica a

permanência da capital no Rio de Janeiro argumentando que,

“Fez-se a independência, e desde então não se tem quase pensado nisso, dando por negócio decidido que a capital do Império tem de ser o Rio para sempre; e o que se lembra de tocar neste ponto é tido por utopista ou visionário. [...] Ora pois hoje que já não somos colônia; que não necessitamos de estar em dependência de Lisboa, e que as vantagens de ter a capital sobre o mar, não compensam a fraqueza e comprometimentos que daí podem resultar para a nação [...];

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assentamos por princípio que a capital do Império não deve ser em um porto de mar”. (VARNHAGEN, 1851: 426)

Além de reforçar a autoridade do poder central sobre todo o território, incentivar a

ocupação dos inúmeros sertões, garantir a segurança da Corte frente a possíveis ataques

externos e incentivar o desenvolvimento das comunicações internas, a transferência da capital

para o interior também era de extrema importância para combater as rivalidades existentes

entre as províncias, que de acordo com Varnhagen representavam um dos maiores cancros do

império. Rivalidades essas que também não deixavam de representar mais uma herança

deixada pela experiência colonial e que se acentuaram principalmente quando, em 1808, o Rio

de Janeiro tornou-se a cabeça do Império Português, com a transmigração da Corte para esta

cidade. Transferir a capital para o interior e desenvolver um sistema de comunicações

internas, por meio de estradas e caminhos de ferro, que colocasse a Corte em contato

permanente com todas as províncias era essencial para pôr fim às rivalidades regionais. Isso

porque, possibilitaria que as tradições da corte e da nação se vão associando passo a passo

pelas inúmeras partes que, somadas organicamente, deveriam constituir um todo harmônico e

integrado: o Império do Brasil.

Anos mais tarde, em um de seus últimos trabalhos, Varnhagen voltaria a defender a

transferência da capital para o interior e apresentaria como um de seus argumentos a ausência

de uma pretensão do Império em expandir-se territorialmente.

“O Rio seria boa capital se o Brasil tivesse em vista absorver a África, assim como o seria a cidade de Cuiabá ou de Mato Grosso se nos quiséssemos estender para o Ocidente; ou Bagé se quiséssemos ameaçar os Estados do Sul. Mas se a nossa missão for só conservarmos integro o território que era de nossos pais; e melhorá-lo quanto possível, a capital n’um lugar forte e central é melhor”. (VARNHAGEN, 1877: 15)

Ao apontar que a missão daqueles que se encontravam na direção do Estado imperial

em meados do século XIX deveria ser ‘conservar integro o território que era de nossos pais,

e melhorá-lo quanto possível’, os argumentos de Varnhagen evidenciam o afastamento dos

dirigentes imperiais de uma territorialidade (Sack, 1986) estatal característica de uma

concepção clássica de império pautada, entre outros elementos, no anseio em expandir-se

territorialmente por domínios ilimitados e não necessariamente contíguos no espaço.

II – A Carta Geral de 1873 de Duarte da Ponte Ribeiro

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Mesmo não possuindo o destaque de homens como o Visconde do Uruguai e, mais

tarde, do Barão do Rio Branco, Duarte da Ponte Ribeiro contribuiu decisivamente para a

formulação e execução da política de fronteiras do Império. Além de participar ativamente da

negociação de tratados e elaborar centenas de memórias e pareceres sobre as fronteiras do

Brasil com as repúblicas vizinhas, Ponte Ribeiro teria também participação ativa e destacada

no desenvolvimento da cartografia nacional a partir dos anos 1850. Até 1878, ano de seu

falecimento, dedicou-se exaustivamente na pesquisa, aquisição e confecção de mapas do

Império e de regiões específicas, sobretudo onde existiam disputas na demarcação fronteiriça.

Destacar-se-á neste trabalho a elaboração da Carta do Império do Brasil, de 1873.

Durante o 1º Reinado e Regências, a produção cartográfica no Império caracterizou-se

pela elaboração de cartas e mapas das províncias ou de áreas específicas das mesmas, sendo

que a grande maioria eram recuperações de cartas do período colonial, de caminhos, trajetos

de rios, povoações, etc. Alguns elementos explicam a ausência na produção de cartas gerais

do Império ao longo das duas primeiras décadas após a emancipação política, dentre os quais

destacam-se: a) o conturbado processo político do período (Confederação do Equador – 1824;

Guerra da Cisplatina – 1828; Abdicação de D. Pedro I – 1831; Revoltas Regenciais;

Maioridade de D. Pedro II); b) falta de recursos financeiros; c) falta de recursos técnicos

(profissionais especializados).

Além dos motivos de ordem política, técnica e financeira, um outro fator, não menos

importante e ainda pouco estudado pela historiografia, também contribuiu para esta ausência

de mapas e Cartas Gerais que representassem todo o território nacional, pelo menos até

meados do século XIX. Trata-se das conflitantes concepções de império existentes entre

aqueles que se situavam na direção política do Estado. Diferentes ideologias geográficas

(Moraes, 2005) se confrontavam no interior do governo do Estado, seja nas tribunas do

Senado e da Câmara dos Deputados, seja em debates travados nos inúmeros periódicos que

circulavam neste período.

Desde 1808, com a transferência da sede do Império português para o Rio de Janeiro e

a conseqüente reordenação dos pesos políticos das diversas partes que compunham este

conjunto imperial (Gouveia, 2005), aqueles que viviam na América experimentaram o projeto

imperial português pautado, entre outros elementos, por estratégias expansionistas, como bem

evidenciam as campanhas militares sobre Caiena e a Banda Oriental.

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O rompimento dos laços políticos entre o Brasil e sua antiga metrópole não

representou, de imediato, o afastamento com uma territorialidade na qual o Brasil se

constituiu ao longo de três séculos de colonização, e que foi revitalizada com o deslocamento

da sede do Império português para o Rio de Janeiro. Inúmeros portugueses americanos, que

desde 1808 foram incorporados à burocracia estatal portuguesa ao longo do período joanino e

que se tornaram brasileiros por terem aderido à causa da independência, de acordo com a

Carta de 1824, continuaram defendendo para o recém independente Império do Brasil uma

territorialidade ainda bastante associada àquela do Império Português.

Eventos ocorridos ao longo do Reinado de D. Pedro I, como o incidente com a

província boliviana de Chiquitos (Santos, 2002) e a missão do marquês de Santo Amaro

(Bandeira, 2012), representam, ainda que não tenham logrado êxito, o esforço do Estado

imperial, ao menos durante o Primeiro Reinado, em incorporar uma territorialidade associada

a uma concepção clássica de império.

A partir dos anos 1850, com a consolidação de um projeto político vencedor sob a

liderança dos saquaremas (Mattos, 2004) e de uma territorialidade estatal vinculada a este

projeto, pautada na definição das fronteiras, há um interesse maior por parte dos dirigentes

imperiais em delimitar e mapear o território nacional. Desde então, a cartografia deixa de ser

resultado de iniciativas individuais e/ou locais e torna-se, de fato, uma ação política estatal.

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Se no mapa apresentado por Varnhagen no Memorial Orgânico as linhas de fronteiras

eram bastante tímidas, quase imperceptíveis, na Carta no Império do Brasil, de 1873, estes

tracejados encontram-se bem definidos e destacados. A questão fronteiriça é, sem dúvida, o

discurso central apresentado na Carta de 1873 produzida por Duarte da Ponte Ribeiro. Como

bem destacou Biaggi (2011: 12), tanto o título (Figura IV) - Carta do Imperio do Brazil,

reduzida no Archivo militar em conformidade da publicada pelo Coronel Conrado Jacob de

Niemeyer em 1846. E das especiaes das fronteiras com os Estados limitrophes – quanto a

legenda (Figura V), apresentam referências diretas aos termos ‘fronteira’ e ‘limite’. Como

pode ser observado, a expressão ‘Estados limítrofes’ adquire, juntamente com os termos

‘Carta’ e ‘Império do Brasil’, destaque no título.

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Vale notar que o uso de diferentes tonalidades, tamanho da fonte e o fato de não

compartilhar a linha com nenhuma outra palavra ou expressão, acaba por estabelecer uma

hierarquia entre as palavras e expressões que compõem o texto do título. No topo desta

hierarquia figura a expressão ‘Império do Brasil’, que se sobrepõe, de forma destacada, ao

restante do título. Em uma dimensão inferior, destacam-se a palavra ‘Carta’ e em seguida a

expressão ‘Estados limítrofes’.

Esta diferenciação entre as palavras e expressões apresentadas no título da Carta de

1873 não são simples características estéticas do mapa. Ao contrário, o conjunto de emblemas

decorativos – letras, tarjas, dedicatória, rosa dos ventos e margens – contribuem para reforçar

os signos políticos presentes no mapa, sendo errôneo concebê-los como um dado estético

marginal (Harley, 2005). Neste sentido, o destaque dado à expressão ‘Império do Brasil’,

sobretudo pelo tamanho da fonte, colocando-a em um nível superior, possui um duplo

sentido: 1) ressaltar, ao associar-se com a representação cartográfica, a extensa dimensão

territorial do império, um dos principais símbolos da única monarquia do continente

americano; 2) destacar a posição hegemônica do Império do Brasil no cone-sul, sobretudo

após o desfecho vitorioso no conflito bélico (1864-1870) que uniu Brasil, Argentina e

Uruguai – a Tríplice Aliança – contra o Paraguai e consolidou os interesses geopolíticos do

Estado imperial brasileiro na bacia do Prata. A diferença entre o tamanho das expressões

‘Império do Brasil’ e ‘Estados limítrofes’ tem por finalidade ressaltar uma pretensa

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superioridade do Estado imperial brasileiro, a única monarquia do continente americano, com

relação aos seus vizinhos, concebidos como política e territorialmente inferiores.

Não apenas no título, mas também na legenda e nas inscrições realizadas no mapa,

pode-se observar o destaque dado pela Carta de 1873 à temática das fronteiras e limites do

Império. Não é por acaso que as referências ‘Limites de Fronteira’ e ‘Limites Projetados’,

estão situadas no topo da legenda, ocupando uma posição de destaque. Na mesma perspectiva,

também chama a atenção o fato da referência ‘Limites de Província’ estar situada ao fim da

lista de convenções que constituem a escala da Carta de 1873, evidenciando que a divisão

interna, administrativa do território não é o tema central, mas sim, a totalidade, daí o destaque

na legenda com as linhas de limites e fronteiras externas.

Destaque que também se expressa no próprio mapa por meio do uso constante de

topônimos em que o termo fronteira é utilizado. Biaggi (2011: 13) observa que,

acompanhando a linha fronteiriça a partir do traçado do rio Javary, é inserido no mapa em

letras maiúsculas o topônimo “FRONTEIRA COM O PERU”, reafirmando o tratado de

limites negociado pelo próprio Ponte Ribeiro com aquele país em outubro de 1851. Fica claro,

portanto, que as regiões fronteiriças acabam por merecer um destaque maior no mapa, por

meio de um conjunto de signos, símbolos e técnicas, em relação às demais.

A toponímia tornou-se importante instrumento no processo de definição das fronteiras

do Império do Brasil, sobretudo a partir de meados do século XIX quando o princípio do uti

possidetis foi adotado como base para a negociação dos tratados de limites entre o Brasil e os

países vizinhos. Neste processo, o uso geopolítico da toponímia foi constante, principalmente

em fronteiras litigiosas, como bem atesta o contencioso entre o Brasil e a Guiana Francesa em

torno do rio Oiapoque4. A fixação de topônimos em regiões estratégicas, indicando a

existência de povoações, cidades, vilas, fortalezas e marcos de conquista, tinha por objetivo

demonstrar a ocupação efetiva do Estado imperial sobre aquele espaço.

É importante salientar também que a Carta de 1873 foi elaborada não apenas para o

público interno – os dirigentes imperiais – mas também para o conjunto de países e nações

que participavam da Exposição Universal de Viena (1873). Verdadeiras ‘vitrines do

progresso’, tais exposições universais eram o símbolo da associação entre as inovações

4 Iris Kantor observa que a hidrotoponímia foi fundamental para a resolução deste contencioso entre Brasil e França e para a definição dos limites territoriais. Cf. Iris Kantor. Cartografia e diplomacia: usos geopolíticos da informação toponímica (1750-1850). In: Anais do Museu Paulista. Vol. 17, nº2, Jul-Dez/2009.

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técnico-científicas implementadas pelo acelerado desenvolvimento do modo de produção

capitalista e os conceitos de progresso e civilização. Neste contexto, as exposições universais

se constituíram como um poderoso instrumento do capitalismo para demonstrar sua

exemplaridade (Pesavento, 1997). Assim, além do uso político interno, a Carta de 1873

possuía também uma função pedagógica com o objetivo de difundir externamente uma

determinada representação do espaço nacional (Peixoto, 2005). Tratava-se, portanto, de

comemorar o Império do Brasil (Garcia, 2005).

E não haveria lugar melhor para comemorar a conquista da civilização do que a

Exposição Universal de Viena (1873). Para o Império do Brasil, a participação nestas

exposições era fundamental para expor às demais nações que o país havia superado a

condição colonial, possuindo um amplo conhecimento de seu território e das técnicas

cartográficas de representação do mesmo. A Carta de 1873 expressava que o Império do

Brasil completara a sua tarefa: expandir até seus confins a ordem imperial estabelecida pelo

Rio de Janeiro, e difundir, por todos aqueles que habitavam o vasto território imperial, um

ideal de civilização. Por mais que existisse uma considerável distância entre aquilo que era

representado cartograficamente e a realidade stricto sensu, era esta a mensagem a ser

transmitida nos salões de Viena.

III – Considerações Finais

A análise da Carta do Brasil e Países Limítrofes, contida no texto Memorial Orgânico

de Varnhagen, e a Carta do Império do Brasil, de Duarte da Ponte Ribeiro, revelam questões

importantes com relação à história da cartografia e ao processo de constituição do Estado

imperial brasileiro.

Como bem destacou Harley (2005) nenhum mapa é neutro, sendo necessário, ao

analisá-los, desconstruir a associação entre realidade e representação, identificando o mapa

como uma construção social, política e cultural. Tal como as narrativas históricas e literárias,

os mapas são constituídos de lembranças/comemorações e esquecimentos/silêncios e são

produtos tanto das mentes individuais, como dos valores culturais – mentalidades – mais

amplos. Associar os mapas aos textos implica ressaltar o caráter discursivo e retórico dos

mesmos, bem como sua capacidade de persuasão.

Interpretar os mapas como possíveis textos e discursos históricos possibilita-nos

compreendê-los, concomitantemente, como fator e indicador (Koselleck, 1992) de uma

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determinada experiência histórica. Conceber o mapa como um tipo de texto requer,

necessariamente, associá-lo à história social de um determinado país, grupo ou região e extrair

daí todo um conjunto de sentidos e significados. Tal como os conceitos, os mapas estão

diretamente articulados a um determinado contexto, sobre o qual também pode atuar,

tornando-o compreensível.

As discussões e divergências entre os dirigentes imperiais acerca da definição dos

limites territoriais do Império foram marcantes e sempre presentes ao longo de todo o

processo de construção do Estado. Elas refletem, entre outros elementos, a dificuldade que

aqueles dirigentes tinham em operar, simultaneamente, com determinadas heranças – um

território e uma concepção clássica de império – e construções – o estabelecimento de uma

nova territorialidade estatal que possibilitasse a organização do Império do Brasil nos moldes

de um Estado-nação.

Ao longo deste processo, longo e tortuoso, observa-se a incorporação de uma nova

territorialidade pautada na definição das fronteiras e colonização dos imensos fundos

territoriais e, por conseqüência, de uma nova concepção de império que tornou possível a

associação entre Império do Brasil e Nação Brasileira (Mattos, 2005).

Ao se afastarem da pretensão de que o Império do Brasil deveria possuir domínios

territoriais ilimitados e não contíguos no espaço, os dirigentes imperiais exerceram um outro

tipo de expansão: uma expansão para dentro, de um território delimitado e, ao mesmo tempo,

uma expansão para dentro dos corações e mentes daqueles que deveriam se conceber,

primeiramente, como brasileiros. Desta expansão para dentro do território nacional e daqueles

que o habitavam, resultaria a constituição da Nação brasileira e possibilitaria a inserção do

Império do Brasil no conjunto das Nações Civilizadas. Neste processo, a cartografia

apresenta-se como uma importante ferramenta para analisarmos a construção e,

principalmente, a consolidação do Estado imperial brasileiro. Seu desenvolvimento, sobretudo

a partir de meados do XIX, possibilita-nos identificar elementos específicos de uma

determinada direção – a saquarema – se considerarmos que as formas de ocupação de um

determinado espaço terrestre obedece a um dado ordenamento sócio-político do grupo que as

constrói (Moraes, 2005).

A cartografia torna-se um recurso fundamental na afirmação de uma determinada

territorialidade estatal, pois, como ressalta Harley (2005: 82), os mapas são instrumentos

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importantes para legitimar a autoridade do Estado sobre o espaço, assim como na difusão de

ideologias espaciais.

IV – Bibliografia

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