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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 18, pp. 35 - 51, 2005 TERRITORIALIDADE E INSTITUCIONALIDADE DAS DESIGUALDADES SOCIAIS NO BRASIL. POTENCIAIS DE RUPTURA E DE CONSERVAÇÃO DA ESCALA POLÍTICA LOCAL Iná Elias de Castro* *Professora Doutora da UFRJ, Pesquisadora do CNPQ E-mail: [email protected] Introdução Se é possível identificar nas sociedades nacionais um traço peculiar que as distingue, no Brasil este traço reside na contradição entre a persistente desigualdade social e sua convivência “com uma representação homogênea que os brasileiros possuem de si mesmos” (Chaui, 2000:7). Sendo aceito que, no processo histórico de formação de uma representação de si mesma, cada sociedade define um ethos que se institucionaliza e delineia traços duradouros, no Brasil podemos afirmar que este ethos é o da desigualdade. Esta é sutilmente dissimulada no imaginário social pelo RESUMO: Tendo como questão central o problema da contradição entre a persistente desigualdade social e sua convivência “com uma representação homogênea que os brasileiros possuem de si mesmos” , este trabalho enfoca a dimensão política do território e das suas instituições, recuperando o município como sujeito político e objeto de análise. O contexto atual do universo municipal brasileiro, afetado pelas condições institucionais da descentralização e da democracia participativa, estabelecidas na Constituição de 1988, define marcos importantes para uma reflexão sobre as lógicas espaciais da ação individual e coletiva. A análise é feita em dois planos: conceitual, a partir de alguns supostos da teoria da estruturação de Giddens e das discussões recentes do “novo institucionalismo”; empírico, explorando informações selecionadas sobre os Conselhos e os Consórcios municipais e outros recursos institucionais capazes de constituir indicadores das condições de diferenciação do universo municipal brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Municípios, desigualdade sócio-espacial, instituições, teoria da estruturação, conselhos e consórcios municipais. ABSTRACT: Taking as a central question the problem of the contradiction between the persistence of the social inequality and its simultaneity with “the homogeneous image that Brazilian people have of themselves” , this paper is focused on the political dimension of the territory and its institutions, recovering the municipalities as a political actor and object of analysis. The current context of the ensemble of all Brazilian municipalities, established by the constitution of 1988, was affected by institutional constraints of decentralization and also by the growth of popular participation in the democratic process, and defines an important landmark for reflections about the spatial logic of individual and collective action. The analysis is done in two levels: the conceptu alone, using someconcepts from Giddens’ s theory of structuration and also from recent debates on the “new institutionalism”; the empirical one, using selected data about municipal councils and consortia and other institutional resources which can serve as indicators of the conditions of differentiation within the Brazilian municipal emsemble. KEY WORDS: Municipality, social and space inequality, institution, theory of structuration, municipal councils and consortia.

TERRITORIALIDADE E INSTITUCIONALIDADE DAS … · processo histórico de formação de uma representação de si mesma, cada sociedade ... enfoca a dimensão política do território

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GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 18, pp. 35 - 51, 2005

TERRITORIALIDADE E INSTITUCIONALIDADE DASDESIGUALDADES SOCIAIS NO BRASIL.

POTENCIAIS DE RUPTURA E DE CONSERVAÇÃO DA ESCALAPOLÍTICA LOCAL

Iná Elias de Castro*

*Professora Doutora da UFRJ, Pesquisadora do CNPQ E-mail: [email protected]

Introdução

Se é possível identificar nas sociedadesnacionais um traço peculiar que as distingue,no Brasil este traço reside na contradição entrea persistente desigualdade social e suaconvivência “com uma representaçãohomogênea que os brasileiros possuem de si

mesmos” (Chaui, 2000:7). Sendo aceito que, noprocesso histórico de formação de umarepresentação de si mesma, cada sociedadedefine um ethos que se institucionaliza e delineiatraços duradouros, no Brasil podemos afirmarque este ethos é o da desigualdade. Esta ésutilmente dissimulada no imaginário social pelo

RESUMO:Tendo como questão central o problema da contradição entre a persistente desigualdade social e suaconvivência “com uma representação homogênea que os brasileiros possuem de si mesmos”, este trabalhoenfoca a dimensão política do território e das suas instituições, recuperando o município como sujeito políticoe objeto de análise. O contexto atual do universo municipal brasileiro, afetado pelas condições institucionaisda descentralização e da democracia participativa, estabelecidas na Constituição de 1988, define marcosimportantes para uma reflexão sobre as lógicas espaciais da ação individual e coletiva. A análise é feita emdois planos: conceitual, a partir de alguns supostos da teoria da estruturação de Giddens e das discussõesrecentes do “novo institucionalismo”; empírico, explorando informações selecionadas sobre os Conselhos eos Consórcios municipais e outros recursos institucionais capazes de constituir indicadores das condições dediferenciação do universo municipal brasileiro.PALAVRAS-CHAVE:Municípios, desigualdade sócio-espacial, instituições, teoria da estruturação, conselhos e consórcios municipais.

ABSTRACT:Taking as a central question the problem of the contradiction between the persistence of the social inequalityand its simultaneity with “the homogeneous image that Brazilian people have of themselves”, this paper isfocused on the political dimension of the territory and its institutions, recovering the municipalities as apolitical actor and object of analysis. The current context of the ensemble of all Brazilian municipalities,established by the constitution of 1988, was affected by institutional constraints of decentralization and alsoby the growth of popular participation in the democratic process, and defines an important landmark forreflections about the spatial logic of individual and collective action. The analysis is done in two levels: theconceptu alone, using someconcepts from Giddens’s theory of structuration and also from recent debateson the “new institutionalism”; the empirical one, using selected data about municipal councils and consortiaand  other institutional resources which can serve as indicators of the conditions of differentiation within theBrazilian municipal emsemble.KEY WORDS:Municipality, social and space inequality, institution, theory of structuration, municipal councilsand consortia.

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mito fundador da mistura de raças, dagenerosidade da natureza e da cordialidade doseu povo (Castro, 1997), apesar de este serum dos países de mais elevada concentraçãode renda do mundo e de fortes disparidadesregionais.

A territorialidade dessa desigualdadedesafia a geografia a enfrentar a tarefa nadasimples de contribuir para a compreensão dagênese dos processos que a produz e cristaliza.Diversos são os caminhos e as possibilidades.A escolha deste trabalho recai na dimensãopolítica do território e nas suas instituições. Estaescolha recupera o município como um recortecarregado de valor, um objeto de investigaçãode conteúdo material e imaterial, pleno designificado. Neste sentido, o objetivo aquiproposto é demonstrar a pertinência domunicípio como sujeito político e objeto deanálise. O que permitirá identificar o seupotencial para desencadear processos deruptura ou para reforçar os processosestruturadores das desigualdades.

Os municípios brasileiros são recortesterritoriais que definem unidades políticas degestão local. Eles possuem atribuiçõesespecíficas de governo, de legislação, deregulação do uso do solo urbano, cobrança deimpostos e de prestação de diferentes tipos deserviços à população residente como saúde,educação fundamental e assistência social etc.Neles se materializa a institucionalidade dapolítica mais próxima do cidadão, onde podemse desenvolver os fundamentos para ofortalecimento da democracia representativa eparticipativa ou, ao contrário, podem sergestados os elementos de rupturas no processode construção de uma ordem democrática. Mas,eles são também continentes dos interesses edas relações das sociedades locais. Nestadimensão, eles podem ser o espaço quefavorece o fortalecimento dos vínculoshorizontais, a solidariedade social e odesenvolvimento do capital social (Putnam,1996). Mas, podem ser também o espaço decontrole e de domínio político de oligarquiasconservadoras, com suas estratégias de

resistência às transformações necessárias parauma maior justiça distributiva no país.

O contexto atual do universo municipalbrasileiro foi afetado pelas condiçõesinstitucionais da descentralização e dademocracia participativa, estabelecidas naConstituição de 1988. Essas condições definemmarcos importantes para uma reflexão sobre aslógicas espaciais da ação individual e coletiva.A descentralização promoveu a reorganizaçãodos poderes territoriais no país mediante areformulação da estrutura federativa. Istopossibilitou a soberania dos níveis federaisinferiores ao estado central e criou as condiçõespara a reconfiguração de espaços políticosinstitucionais, como os municípios, espaços dedisputa de interesses que são territorializados.

A questão da dimensão espacial daresistência das desigualdades sociais no paíssugere um encaminhamento que focaliza asescalas institucionais locais e as diferenças queelas exprimem, mesmo num quadro de isonomialegal. Neste sentido, a análise é feita em doisplanos. O primeiro, conceitual, parte de algunssupostos da teoria da estruturação de Giddens(1984) e das discussões recentes do “novoinstitucionalismo” (Amin e Thrift, 1994; Théret,2000). Com Giddens é possível preliminarmenteapontar o papel dos locais de assegurar boaparte da “fixidez” subjacente às instituições,além das propriedades dos sistemas sociaiscomo simultaneamente facilitadores ecoercitivos em contextos de espaço e tempo.As instituições, por sua vez, moldam as relaçõessociais pelas normas e procedimentosorganizacionais, os quais estruturam oscomportamentos porque, paralelamente,moldam a identidade, o poder e a estratégiados atores (Putnam, 1996; Clingermayer eFeiock, 2001). As instituições são tambémmoldadas pela história, ou seja, são constituídaspelas organizações mas também pelosinteresses e objetivos dos atores sociais queconduzem estas organizações em direção a finsespecíficos. Com base nesses supostos,elaboramos os marcos explicativos para apertinência do recorte federativo municipal

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brasileiro como espaço político institucional ecomo objeto de investigação útil na tentativade compreender as complexas dimensões daresistência das desigualdades no país.

O segundo plano da análise propõe umaabordagem do universo municipal brasileiroatravés de informações estatísticas disponíveissobre os recursos intitucionais à disposição dasadministrações locais. A expectativa é que essasinformações, reinterpretadas a partir da matrizconceitual proposta, possam acrescentarelementos novos que auxiliem na compreensãodos mecanismos de reprodução dasdesigualdades, indicadas acima.

As considerações que se seguem estãoorganizadas em três partes. Na primeiraapresento, de modo sucinto, alguns pontos departida conceptuais que considero úteis àanálise do problema da desigualdade social esua dimensão espacial. Ainda nessa parte, omunicípio é apresentado como uma escalapolítica institucional e como recorte federativo,condições que acredito lhe conferemconsistência como objeto de investigação paraa geografia. Na segunda, exploro algumasinformações selecionadas aos Conselhosmunicipais - organizações criadas paraassessoria e controle da administração pública- e aos Consórcios municipais - associaçãocooperativa entre municípios - assim comooutros recursos institucionais capazes deconstituir indicadores das condições dediferenciação do universo municipal brasileiro.A terceira parte contém uma interpretaçãopossível dos resultados obtidos, tendo em vistaa perspectiva conceptual escolhida e aspossibilidades de ir um pouco mais adiante,respondendo à questão implícita, de carátermais geral, sobre as possibilidades empíricas deuma abordagem geográfica das relações entresociedade, território e desigualdade.

Estruturação, instituições e municípios

Pensar a organização da sociedade emseu espaço de vida impõe uma reflexão sobre a

dinâmica complexa na qual as mudanças eresistências se confrontam em permanência edevem ser consideradas axiologicamente. Éneste sentido que qualquer perspectivaconceitual, utilizada para compreender oselementos que se entrecruzam na teia derelações que conduzem tanto à materialidadevisível do território como aos valores simbólicosa ele atribuídos, deve considerar esta dualidadeentre os agentes da transformação e daresistência no tempo / espaço das sociedades.

No caso do município brasileiro é aindafundamental acrescentar uma outrapossibilidade de análise: aquela que incorporaa noção de escala como referência danecessária articulação entre os três níveis dafederação brasileira. Na menor escala dofederalismo brasileiro, o recorte municipal defineuma realidade territorial, social e histórica ecompõe um conjunto fortemente diferenciadoque reflete as muitas desigualdades do país.Estas diferenças desafiam visões unívocas eabordagens que não consideram o fato de asociedade viver no município e também neleorganizar as esferas de ação para realizar seusinteresses, tornando-o um espaço político porexcelência, onde resistência e mudançaencontram-se em permanente interação.

Essa abordagem supõe incorporar adimensão complexa do mundo social e adialógica da organização que, segundo Morin(1996:180), é ao mesmo tempo menos e maisque a soma das suas partes. Menos porque asorganizações estabelecem coações que inibemalgumas das potencialidades das suas partes.Nas organizações sociais, coações jurídicas,políticas, militares etc. fazem com que muitasdas potencialidades individuais sejam inibidas.Porém, Morin acrescenta, o todo organizado éao mesmo tempo alguma coisa a mais do que asoma das partes porque faz surgir qualidadesque retroagem às partes. Como ocorre com aexistência de uma cultura, de uma linguagem,de uma educação, propriedades que só podemexistir no nível do todo social, mas recaem sobreas partes para permitir o desenvolvimento damente e da inteligência dos indivíduos.

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Esta dialógica, mesmo que formulada deoutro modo, está também presente na teoriada estruturação de Giddens (1984), o que atorna um recurso adequado para umaproblemática focada no território municipal namedida em que ela se propõe incorporar, semdissociar, as duas dimensões fundadoras dasociedade: a ação e a estrutura. Estaduplicidade permite trazer para o campo deanálise os conteúdos materiais e institucionaisdo território, bem como a dimensão social daação, organizadora e ao mesmo temposubmetida às suas instituições.

A proposta de Giddens para a teoria daestruturação é importante por indicar os limitesexplicativos ou, como ele mesmo declara, asdeficiências do consenso ortodoxo. Nestesentido, o autor é sensível às escolas depensamento que enfatizam o caráter ativo ereflexivo da conduta humana e rejeitam aperspectiva que vê o comportamento individualcomo resultado de forças que os atores nãocontrolam nem compreendem.

Sua tarefa, no entanto, não é negar nemuma ou outra dessas tendências, mas, aocontrário, propor uma formulação do alcance dateoria social em geral, ou seja, compreender aagência humana e as instituições sociais. Paraele, a questão do dualismo entre indivíduo esociedade, ou entre ator e sistema social, nãoera suficiente para compreender o fluxo dinâmicoda vida social. Esta não deve ser vista apenascomo a sociedade de um lado e o produtoindivíduo do outro, mas como uma série deatividades e práticas que exercemos e que aomesmo tempo reproduzem instituições maisamplas. Neste sentido, mais do que centrar asreflexões para uma teorização sobre osconceitos de indivíduo ou sociedade, Giddenstomou como objeto central das ciências sociaisa idéia de práticas sociais recorrentes. Eleconcebe a estrutura como um fluxo de açõesindividuais que pode ser relacionado com osatributos de autoconsciência e a sociedadecomo um complexo de práticas recorrentes quecriam instituições. “Ou seja, a sociedadesomente tem forma e essa forma somente afeta

seus membros enquanto estrutura que seproduz e reproduz no que eles fazem” (Giddense Pierson, 2000). Para o autor, apesar da poucaprecisão da expressão “teoria social”, que elese propõe, esta tem a tarefa de fornecerconcepções da natureza da atividade socialhumana e do agente humano que possam sercolocadas a serviço do trabalho empírico. “Ateoria da estruturação não será de muito valorse não ajudar a esclarecer problemas depesquisa empírica”, acrescenta.

A importância dos fundamentos da teoriada estruturação para a geografia são evidentespor duas razões. Uma remete à possibilidadede superar a prisão conceitual do paradigmamarxista que, mesmo tendo enriquecidointelectualmente a disciplina e ampliado seucampo de abstração, submeteu-a à naturezamesma do materialismo histórico, centrada nasquestões de classe (Gregory, 1996), tornandoo próprio espaço muitas vezes secundário. Alémdisso, nesse paradigma, as relações sociais emsituações de co-presença das escalas locais sãosempre vistas como determinadas por fatoresmais amplos, estruturais, o que reduziuqualquer possibilidade explicativa de umaperspectiva propriamente geográfica da açãonessas escalas (Castro, 2002). A outra refere-se à própria sensibilidade de Giddens para oproblema das relações de tempo e espaço. Paraele “as propriedades estruturais dos sistemassociais só existem na medida em que formas deconduta social são cronicamente reproduzidasatravés de tempo e espaço”. Esta sensibilidadepara a espacialidade favoreceu a sua reflexãosobre as possibilidades explicativas das escalasdiferenciadas e das localizações, ultrapassandoos limites dos marcos estruturalistas ouindividualistas das ciências sociais.

Em sua teoria da estruturação, eleprocura ligar o contingente e o curto prazo àsinstituições, que perduram em longos períodosde tempo, incorporando às condições de ambosas mediações do que ele mesmo denomina omeio. Nesta noção são incluídas a base físicacomo cenário da interação social e como recursoalocativo do poder humano sobre a natureza e

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também as regionalizações que resultam dadiferenciação espaço temporal entre os locais.Para o autor,

“em conjunto com a transformação dotempo, a co-modificação do espaço estabeleceum “meio ambiente criado”, de caráter distinto,expressando novas formas de articulaçãoinstitucionais. Essas novas formas de ordeminstitucional alteram as condições da integraçãosocial e sistêmica e mudam, portanto, anatureza das conexões entre o próximo e oremoto no tempo e no espaço” (Giddens, 1984)

Esta referência muito sumária de algunssupostos conceituais da teoria da estruturaçãode Giddens possibilita encaminhar o problemadas instituições como recurso conceitual eempírico, com possbilidade de ampliar acompreensão das diferenças sociais noterritório.

O ponto de partida aqui é a existênciade uma evidente territorialidade nasinstituições. Antes de avançar um pouco maisnesta apresentação, é preciso explicitar ossignificados atribuídos ao termo instituição. Emsentido amplo, designa as regras do jogo numasociedade. Esta definição, porém, não esgota opapel das instituições na vida social, uma vezque essas regras se exercem por meio dasinstituições que moldam as relações sociaispelas normas e procedimentos organizacionais,os quais estruturam os comportamentosporque, paralelamente, moldam a identidade,o poder e a estratégia dos atores (Putnam,1996; Clingermayer e Feiock, 2001). Asinstituições são também moldadas pela históriano espaço, ou seja, são constituídas pelasorganizações mas também pelos interesses eobjetivos sociais territorializados que conduzemestas organizações em direção a fins específicos(Putnam, 1996). Com relação ao própriovocábulo instituição, é importante indicar a duplapossibilidade que existe na sua raiz. Esta trazem si tanto o movimento do instituinte, que lutapara ser, como aquele do instituído, que lutapara permanecer, o que está de acordo com aperspectiva da estruturação de Giddens.

O interesse renovado pelas instituiçõesnas ciências sociais, embora o tema tenha sidoimportante na economia e na ciência política,decorre do fato de as instituições políticas,econômicas e sociais terem crescido e setornado mais complexas e com maiordisponibilidade de recursos, afetando maisprofundamente a vida coletiva e o espaço. Nãoé possível ignorar, ou minimizar, o fato de que,nas sociedades contemporâneas, muitos dosatores principais são instituições formais,assentadas sobre o aparato legal, dispondo deuma burocracia, o que lhes confere um lugarpreponderante na sociedade (North,1990;March e Olsen, 1997). Para Clingermayer eFeiock (2001) o papel das instituições deriva detrês circunstâncias: na primeira, os arranjosinstitucionais moldam as ações individuais; nasegunda, reduzindo as incertezas, asinstituições estabelecem premissas para adecisão; na terceira, as instituições propiciamestabilidade nas escolhas coletivas. É precisoressaltar que estas circunstâncias, assimdefinidas, não colocam as instituições no mesmoplano ontológico das estruturas. Ao contrário,elas constituem aparatos que moldam e sãomoldados pelo universo cognoscitivo dos atoressociais.

Com relação ao nosso interesse maisvoltado para o espaço, suas diferenças e suadinâmica, as instituições que definem padrõessignificativos dos fenômenos sociais não podemser abstraídas das dimensões territoriais dessesfenômenos. É justamente sua ação que resultana caracterização do “meio ambiente criado”.Nesta perspectiva, as contribuições da geografiapara a análise institucional tem buscadoidentificar os complexos institucionais noterritório, responsáveis por condutas e práticassociais particulares. Seguindo a argumentaçãode Allen (1999), os complexos institucionaispermitem diferentes arranjos espaciais erefletem os modos de ação possíveis inscritosem cada modalidade e permitem regular, bemcomo capacitar, a mobilidade através dessesarranjos. Para ele, o mais importante é que aspráticas que estão incrustadas nos espaçosinstitucionais são compreendidas como

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constitutivas da ação social. Em outras palavras,diferentes complexos institucionais configuramespaços sociais diferenciados.

Esta interpretação da ação dasinstituições é bem recente na geografia. Narealidade, a incorporação do conceito comoponto de partida operacional para pesquisa nadisciplina se fez muito mais pela vertenteestruturalista da teoria da regulação, elaboradanas décadas de 70 e 80, como reação críticaaos fundamentos da teoria econômica neo-clássica. Naquela vertente, os pressupostos dainterdisciplinaridade, da necessidade deconsiderar os recortes temporais e espaciais ea historicidade alimentaram importantescorrentes da geografia econômica. Porém, opeso da lógica produtiva e acumulativa atribuídoàs instituições econômicas obscureceu, emmuitos trabalhos desta vertente, apotencialidade reguladora do sistema e dasinstituições sociais, que se expressavam naescolhas dos atores, especialmente aquelesatuantes no sistema político.

Na perspectiva regulacionista daeconomia, as instituições desempenham umpapel fundamental para a abordagem doespaço geográfico, que é organizadoprioritariamente pelas normas impostas pelalógica da produção. No entanto, paracompreender a dinâmica da regulação doterritório era preciso ir além dessa lógica etambém interrogar-se sobre as rotinas quedefinem as especificidades de um lugar emrelação a outros lugares e ao sistema produtivonacional que o engloba (Gilly e Pecqueur, 1995).Ampliando essa perspectiva, Amin e Thrift(1993) introduziram a noção de densidadeinstitucional através de uma apreciaçãoqualitativa sobre a combinação institucional.Foram considerados, ao mesmo tempo, onúmero e a diversidade das instituições, aintensidade de suas interações, as relações depoder que as estruturam e o sentimento depertencimento do conjunto dos atores a umempreendimento comum. Mesmo se no casodesses dois autores a identificação dessadensidade teve como finalidade compreender o

sistema produtivo local, ela pode também serútil para compreender outras dimensões daorganização social nesta escala.

A questão das desigualdades sociais noBrasil e a proposta de contribuir para a suacompreensão tomando o município como objetode análise, explicitado no início, requerconsiderar a perspectiva do espaço da política.Este é balizado pelo conceito de território, noqual encontram-se intrinsecamenteincorporadas as noções de poder e de controle.Neste sentido, o território se define e seconstitui a partir de relações fundamentalmentepolíticas, sendo possível perceber, no conjuntode fatores que resultam diretamente da política,a centralidade das dinâmicas territoriais queafetam a organização da base material dasociedade. O território deve ser, portanto vistocomo continente de um sistema de interesses,na maioria das vezes conflitantes, que são osfundamentos da necessidade da política e dassuas instituições para o controle dos conflitos.

No Brasil, pelas suas característicasconstitucionais, o município é um espaço políticopor excelência. Nascido dos Concelhos no períodocolonial, ele foi, desde o início da história dopaís, o recorte territorial definido para o controleda Metrópole sobre os próceres locais epermanece como um recorte de poder local e onível da administração pública mais próximo docotidiano social (Bandechi, 1987). Mesmo se onome município só se tenha afirmado naConstituição Republicana de 1891, o municípioé, sem dúvida, a unidade de gestão mais antigado país, apesar da polêmica sobre os limitesconcretos da sua autonomia (Faoro, 1975;Duarte, 1942). Acredito que os termos dessapolêmica já estejam ultrapassados pelascondições contemporâneas de exigênciacrescente de participação social nas escolhasda gestão da coisa pública. Esta participaçãoconfere visibilidade aos recortes político-administrativos locais, tornando-os cada vezmais objeto de disputa de grupos políticos eobjetos de conhecimento.

Sendo, na prática, um distrito eleitoral

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informal (Carvalho, 2003), o território municipalestá submetido às condições impostas pelas regrasda lógica da conservação e do reforço do sistemapolítico eleitoral para os três níveis da federação,nem sempre compatível com uma gestão cuja lógicadeveria ser servir à população. Em um regime políticorepresentativo, o único meio de acesso às posiçõesde direção do governo local são as eleiçõesconcorrenciais, cujo direito de votar e de ser votadodeve ser garantido para todos. No entanto, acompetitividade que deve garantir o exercício eficazda dinâmica democrática depende tanto dascondições de participação para o exercício dosdireitos da cidadania como das características docontexto social (Castro, 2003). Para Santos Júnior(2001),

“é o entrelaçamento entre o sistema legal – comoexpressão institucional do sistema democráticodo governo – e o município que pode elucidar ascaracterísticas particulares da democracia local (noBrasil). Isto por que a relação do cidadão com osistema legal é mediatizada, em muitos aspectos,pelo município como entidade política eadministrativa independente”.

Ainda nesta escala, a co-presença permitemaior visibilidade dos interesses e da organizaçãosocial para alcançá-los. As ações dos atores sociais,do poder público ou da sociedade, são maisexplícitas, tanto em relação à demanda e àdisponibilidade do aparato institucional para a ofertade políticas públicas direcionadas para a populaçãoresidente. No país, esta visibilidade ampliou-se apartir da Constituição de 1988, quando se iniciouum processo de descentralização federativa dascompetências de políticas econômicas e sociais.Como resultado, os encargos das Prefeituras foramampliados, assim como sua autonomia na estruturafederativa, o que lhes permite legislar e ter receitaprópria, mediante atribuições específicas de algunsimpostos. São estas condições que orientaram aseleção de dois conjuntos de informações para aanálise proposta da territorialidade einstitucionalidade das desigualdades sociais noBrasil.

Novos recursos institucionais para a sociedadelocal

Tendo em vista o problema da persistênciadas desigualdades sociais no país, foramprivilegiadas informações que consideramos capazesde fornecer elementos sobre as potencialidades daação dos atores locais e o modo como estes podemafetar as características estruturais do sistema sociale expressar-se no território. Os dados estatísticosutilizados privilegiam, então, algumas informaçõessobre os Conselhos e os Consórcios, novos recursosinstitucionais colocados à disposição das sociedadese dos governos locais, a partir do processo dedescentralização iniciado com a Constituição de1988. Outras informações sobre alguns serviços epolíticas sociais foram também escolhidos. Estes,mesmo se inspirados nos princípios de isonomia,quando em funcionamento, permitem a expressãode realidades sociais muito diferentes.

Os Conselhos são temáticos, ou seja, i)vinculam-se a políticas sociais específicas comoeducação, saúde, emprego, criança etc.; ii) prevêema participação voluntária de representantes deorganizações sociais da sociedade civil; iii) sãodeliberativos, abrangentes e permanentes, nastemáticas às quais estão vinculados e iv) incidemsobre todo o circuito de gestão de uma políticapública, desde a formulação até a suaimplementação (Gohn, 1998). Os Consórcios, porsua vez, propiciam a associação para otimizarrecursos escassos, seja para prestar serviços àpopulação, seja para melhorar condições de infra-estrutura ou para as atividades econômicas. Nestesentido, enquanto os Conselhos são importantespor possibilitar a expressão das potencialidades demobilização da sociedade civil, os Consórciospropiciam a organização e a cooperação horizontaise fortalecem os vínculos interinstitucionais nasociedade local, melhorando as condições decooperação e de redução das descontinuidades.

Os Conselhos têm responsabilidade de co-gestão e de controle face ao poder executivo.Juntamente com o prefeito, ele elabora osplanos e ações da gestão local. A Lei OrgânicaMunicipal define quais são suas competênciase seu papel nas decisões e na elaboração do

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Orçamento Municipal. Estes podem ser de dois tipos:a) os Conselhos Populares, encarregados de discutire organizar a consulta nos momentos de elaboraçãodas políticas municipais e compostos por associaçõescivis, que são organizações autônomas, nãosubordinadas à administração municipal; b) osConselhos Setoriais, ligados ao poder executivomunicipal e compostos por representantes dospoderes legislativo, executivo e de associações civise permitem acompanhar o andamento da políticamunicipal em cada setor. Estes são órgãos deconsulta e inspeção.

Os Consórcios Intermunicipais são recursosinstitucionais de outro tipo. Constituem estratégiasassociativas destinadas a somar esforços para asolução de problemas comuns. Apesar deregulamentados desde a Constituição de 1937,foram as condições de descentralização e maiorautonomia dos municípios como entes federativos,definidas na Constituição de 1988, que vêmpossibilitanto a ampliação desta prática cooperativa(Fontes 2001). As maiores atribuições da gestãomunicipal têm colocado desafios para as prefeituras,

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que percebem, em algumas formas de associaçãocom outras, mecanismos institucionalizados decooperação e troca, capazes de potencializarrecursos escassos e alcançar uma gestão maiseficiente.

Os Consórcios têm, portanto, como objetivosuperar dificuldades comuns de municípios vizinhosnos campos da administração, assistência técnica,difusão de informações, treinamento de pessoal,prestação de serviços de saúde e de educação. Elesconstituem instrumentos destinados a preencher aslacunas nas dificuldades da gestão na escala local,superando-as e ampliando o leque de possibilidadespara uma ação governamental mais eficiente.

A disponibilidade desses novos recursospodem estimular ou mesmo fortificar a cooperaçãointerinstitucional horizontal, isto é, entre os

municípios. A descentralização federativa para ascompetências políticas, econômicas e sociaisaumentaram e deram grande visisibilidade social aosencargos municipais. Isto tornou o território domunicípio uma arena concreta na qual a sociedadelocal adquire cada vez mais visibilidade como atorcom interesses e instrumentos para atingi-los. Sãoestas condições que guiaram a escolha de doisconjuntos de informações1 para a analise proposta.

Antes de passar às informações indicadasacima, quero indicar, de modo muito sucinto, a partirdos mapas de distribuição dos indicadores dedesenvolvimento humano e de anos de estudosde pessoas de mais de 25 anos de idade,abaixo, o padrão mais geral da distribuiçãoterritorial de algumas características dasdiferenças sociais no território brasileiro.

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As duas distribuições mostram uma claradivisão Norte-Sul. Mesmo se a grande extensãodos municípios da Amazônia distorcem arepresentação cartográfica que utiliza métodoscoropléticos, é possível afirmar que após muitasdécadas de políticas públicas para odesenvolvimento regional, os “dois Brasis” deJacques Lambert (1959) ainda resistem. Estemodo de diferenciação social e espacial forma oquadro de ação para as inovações institucionaisda Constituição de 1988. Tomei então comoponto de partida para a análise da suposiçãode que a isonomia da norma legal deveconfrontar-se com instituições que se

territorializam e que, nesta condição, agem deforma diferente em territórios diferenciados.Analisando o universo municipal brasileiro e,consequentemente, todo o território do país sobesta ótica, é possivel inferir que a possibilidadeformal de as municipalidades criarem Conselhosou de se associarem em Consórcios não seráaproveitada da mesma maneira em todo oterritório nacional.

Para avaliar a resposta aos novosdispositivos institucionais e as possibilidades dediferenciação pelos efeitos da localização e dotamanho da população do município, foramseparadas as informações para os anos 1999 e

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2000 sobre os Conselhos de Política Social eos Consórcios de Saúde, de acordo com cadauma dessas condições. Foram vistos inicialmenteos Conselhos municipais para políticas sociais,indicadores importantes da capacidade demobilização da sociedade local e das prefeituraspara a implementação dessas políticas. Comojá foi indicado mais acima, os Conselhos sãoórgãos colegiados, cujos integrantes podemfazer parte tanto da sociedade civil quanto dosetor governamental, tendo como funções oestabelecimento de diretrizes para a formulaçãode políticas públicas setoriais. Foram aquiselecionados os Conselhos de educação,

assistência social, da criança e do adolescentee de emprego e trabalho, utilizando osseguintes aspectos que a pesquisa Perfil dosMunicípios Brasileiros do IBGE, de 2001,disponibiliza: se o município tem Conselho; seestá instalado e regulamentado; se édeliberativo; se é paritário; se administra fundomunicipal e com que freqência o conselho sereune2 .

O mapas a seguir permitem explorar umpouco mais as diferenças encontradas nadistribuição dos Conselhos nos municípios até50.000 habitantes, os quais englobam 92% dosmunicípios e 40% da população do país.

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Os mapas se referem a 2001, umavez que, apesar do crescimento do númerode Consórcios e da melhoria dos Conselhos,não houve variação significativa do modelode distribuição territorial, o que evidencia aforte resistência da divisão Norte-Sul dascondições de v ida no pa ís . A part i r dadistribuição no mapa, é possível indicar quea localização é uma condição mais importanteque o tamanho da população para que osConselhos se enquadrem na categoria Ruimde funcionamento e para a existência dosConsórc ios. A local ização, na real idade,aparece como um fator de diferenciaçãoimportante. Neste sentido, para entender ascondições desses conselhos, é importanteconhecer também onde eles estão e, a partirdaí, tentar compreender que característicasdessa localização podem ter maior poderexplicativo.

Como existe obrigatoriedade legal deinstalação dos Conselhos em todos os níveisda federação, as diferenças encontradaspodem ser consideradas como indicadoresdas condições de mobilização e participaçãoda soci edade local. Neste sentido, o mapaexplicita que os municípios das Regiões Nortee Nordeste possuem condições piores para amobilização social do que aqueles da RegiãoSul.

A distribuição dos Consórcios municipaispermite ampliar e completar a discussão sobreestes recursos institucionais e o território dopaís. Para os limites desta apresentação foramselecionados os Consórcios intermunicipais desaúde, que, no ano da pesquisa do IBGE, eramos mais numerosos, englobando quase 40%dos municípios. Essa distribuição apresentaalgumas peculiaridades. Em primeiro lugar,para o conjunto do Brasil, são os municípioscom menos habitantes os que mais utilizameste recurso institucional. No entanto, adistribuição regional da frequência analisadanão permite uma conclusão simples e diretade que os municípios com menos habitantes,sendo são os que têm menor disponibilidadeorçamentária, teriam a cooperação como umaestratégia natural, e portanto esperada

(Castro, Waniez e Brustlein, 2002) 3 . Adistribuição regional mostra que os municípiospequenos4 das Regiões Sudeste e Sul recorremmuito mais aos consórcios do que aqueles dasRegiões Norte e Nordeste. Outra exceção é aRegião Centro-Oeste, que possui umadistribuição mais equilibrada entre todas asclasses de tamanho dos municípios, o queprejudica uma outra análise apressada sobre aindiferança dos municípios mais povoados emrelação a esta forma de cooperação.

A primeira observação que o mapasuscita, além da forte presença nos estados doSul do país e em Mato Grosso, é a concentraçãode municípios pequenos com Consórcios desaúde em Minas Gerais e a existência de algunspontos dispersos na Região Nordeste. Aqui nãohá como deixar de registrar a forma como oestado de Minas Gerais se destaca do conjuntoda federação. Tentaremos discutir melhor estesresultados mais adiante.

Buscando avançar um pouco mais, foramselecionados cinco tipos de aparatosinstitucionais para o exercício da cidadania:Programa de geração de trabalho e renda,Capacitação profissional, Delegacia de mulheres,Juizado de pequenas causas, Conselho tutelare Guarda municipal, como já indicados maisacima. Os aparatos foram pontuados erepresentados no Mapa 5 – Municípios com até50.000 habitantes segundo a existência deaparatos institucionais para o exercício da cidadania.Novamente a Região Sul se destaca das demais,embora haja diferenciações internas. O oesteda Região e o Estado de Santa Catarinapossuem maior concentração desses aparatosdo que o conjunto do território regional.Algumas questões emergem destadistribuição. Que condições diferenciam osmunicípios pequenos de algumas áreas daRegião Sul dos de algumas áreas isoladas nasRegiões Norte e Nordeste? Esta diferenciaçãoé relevante para a análise das condiçõesgeográficas da desigualdade social? Acreditoque a resposta para estas questões estejamais nos espaços políticos que foram moldadospelas instituições locais ao longo de suahistória.

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Algumas considerações sobre recursosinstitucionais, as sociedades locais e asdesigualdades

As diferenças regionais, encontradas nasdistribuições apresentadas, obrigam a refletirsobre a recorrência do problema das condiçõeshistóricas de ocupação do território brasileiro edas descontinuidades produzidas. A diferençaentre o Sul e o Norte e Nordeste é bastantesugestiva das diferenças do processo históricode ocupação em cada uma destas regiões.Acreditamos que a maior participação social nosmunicípios localizados na primeira, em contrastecom a fraqueza nas duas outras, reflete asmarcas daquelas condições de ocupação queproduziram mais vínculos sociais horizontais noSul e mais vínculos verticias no Norte e noNordeste (Putnam, 1993).

Para o significado de vínculos sociaisverticais e horizontais recorro a Putnam (1996).Os primeiros são vínculos de dependência eexploração, resultantes das estratégias desobrevivência das camadas mais pobres emcondições históricas de sociedades civis poucoorganizadas, comandadas por atores sociaisinvestidos de autoridade e que ocupam espaçosde poder abertos pela fragilidade administrativae judicial do Estado. A imagem de verticalidadedecorre da imposição de cima para baixo dasregras e normas de reprodução social. No casoparticular de muitos municípios da RegiãoNordeste, sugiro que a institucionalidadedesses vínculos tem conseqüências sobre ascondições precárias da participação social naRegião.

Os vínculos horizontais, ao contrário, sãoaqueles capazes de criar e fortalecer instituiçõesque favorecem a organização de interesses nabase da sociedade. Esses vínculos criam ascondições favoráveis à cooperação e àcompetição e possibilitam as açõesestruturantes nas quais a igualdade política, asolidariedade, a confiança e a tolerância sãoessenciais. As condições originais de ocupaçãoda Região Sul, marcadas pelo isolamento físico,pela organização fundiária em pequenas

propriedades, pelo trabalho familiar e pelanecessidade de solidariedade para a soluçãode problemas comuns frente à ausência deserviços que deveriam ser prestados peloEstado, produziu as condições sociaisfavoráveis à participação social, sobretudos nosterritórios destinados aos imigrantesestrangeiros, atraídos pelas possibilidades deacesso à terra e ao trabalho livre.

Há vasta bibliografia histórica, geográficae sociológica sobre esta dimensão da diferençaregional no país e não é necessário recuperarestas informações, bastante conhecidas. Osentido de apresentá-las de forma tão sintéticaé apontar uma direção possível para ainterpretação da localização como uma dascondições das diferenças encontradas entre osmunicípios. Esta direção permite encaminhar oque considero a resposta mais apropriada paraa dupla questão da localização explicitada acima.Nesta perspectiva, a existência de um númerobem maior de pequenos municípios com condiçõesboas de funcionamento dos Conselhos de políticassociais na Região Sul, em contraste com a pequenaproporção destes nas Regiões Norte e Nordeste,deriva muito mais das marcas do processohistórico nos vínculos sociais em cada umas destasRegiões do que de uma aleatoriedade nadistribuição dos municípios com esses Conselhos.Ou seja, os conteúdos materiais e simbólicos doespaço são recursos à disposição dos atoressociais (Castro, 1997, 2001).

Assim, retomo a suposição explicitada noinício sobre a necessidade de a isonomia da normalegal confrontar-se com instituições que seterritorializam e, nesta condição, atuam de mododesigual em territórios socialmente diferenciados.Mesmo que os recursos institucionais departicipação e de controle da gestão do poderpúblico colocados à disposição da sociedadesejam os mesmos, as formas de apropriaçãodestes recursos pelas sociedades locais sãodiferenciadas e, consequentemente, osresultados alcançados são muito diferentes.

No entanto, é preciso destacar a exceçãono estado de Minas Gerais, onde há grande

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concentração de pequenos municípios queparticipam de Consórcio de saúde. Nesta unidadeda federação, a história da ocupação doterritório se fez a partir do ciclo escravocratade mineração do ouro e do diamante, e daexpansão da pecuária e da cana de açúcar naZona da Mata. Afinal, este processo históricofoi bem diferente daquele ocorrido nas áreasde ocupação reservadas aos imigrantesestrangeiros do Sul do país, tendo muito maissemelhanças com aquele do Nordeste brasileiro.Neste sentido, não é possível atribuir à forçados vínculos sociais horizontais em Minas Geraisuma maior predisposição para a associação ebusca de parcerias entre as prefeituras doestado. Na realidade, o mapa revela o resultadode uma ação deliberada de governo, deimplementar uma política pública de saúde,escolhendo como estratégia o estímulo e o apoioaos Consórcios municipais de saúde5 .

A concentração deste tipo de recursoinstitucional em Minas Gerais é, neste sentido,um bom exemplo das possibilidades dodesiderato político e suas repercussões sobreo território. Esta condição aponta os limitesexplicativos do processo histórico como umacausalidade exclusiva para o desenvolvimentoinstitucional6 e reforça a complexidade do lequede ações possíveis para a construção deespaços sociais.

Se retornamos a Giddens e sua afirmaçãode que “as propriedades estruturais dossistemas sociais só existem na medida em queformas de conduta social são cronicamentereproduzidas através do tempo e do espaço”. etambém à sua noção de “meio ambiente criado”,que expressam novas formas de articulaçãoinstitucional será possível reinterpretar aresistência desse padrão mais geral dedesigualdade no espaço brasileiro. Também, aperpectiva dos vínculos socias verticais ouhorizontais, já indicados, pode ajudar, uma vezque as formas de interação social que resultamde cada um decorrem das decisões dos atores,também, no tempo e no espaço.

Neste sentido, a resistente desigualdade

mostrou-se como um fator interveniente depeso. As informações sobre os recursosinstitucionais colocados à disposição dasociedade local possuem um conteúdosignificativo. Seus modos de funcionamento ede organização encontram-se demarcadostanto pelos limites municipais – base legal daestrutura federativa do país – como peloambiente criado ao longo da história. Mas, omunicípio é também uma escala políticaimportante como distrito eleitoral formal paravereadores e prefeitos e informal paradeputados federais e para os governadores.Essas condições certamente afetam tanto aexistência como a eficácia daqueles recursosinstitucionais, mesmo se muitos dos Conselhosmunicipais podem ser cooptados e colocados aserviço de grupos políticos dominantes locais(Costa, 2002). No entanto, se admitimos quenão há evidência de que esta é uma facetaparticular da realidade de toda política local nopaís, a perspectiva do conjunto do territórionacional pode ser útil. Esta torna possívelperceber a articulação entre as escalas local,regional e nacional e acrecentar novoselementos para a análise das desigualdades,que ultrapassam os limites dos particularismosou de um determinismo estrutural. Nessesentido, as diferenças no universo dosmunicípios e o padrão regional de distribuiçãodas informações, quando se considera osvínculos sociais produzidos pelos contextos detempo e de espaço diferentes, sugerem que háno país localizações que engendram atores maisfavoráveis à equidade do que outras.

A finalidade mais importante destetrabalho foi explorar as possibilidades analíticasda relação entre o território e as instituições departicipação política locais e os modos atravésdos quais esta relação ajuda a compreender oproblema da resistente desigualdade social eterritorial no Brasil. Paralelamente, osmunicípios foram recuperados como escalasterritoriais coerentes para a pesquisa tantoteórica como empírica na geografia. Os recursosinstitucionais escolhidos tiveram uma duplamotivação: no caso dos Conselhos, pelo

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significado de mobilização social para aparticipação e controle da gestão do governolocal; no caso dos Consórcios, pela capacidadede cooperação institucional. Nos dois casos sãoevidentes as combinações das ações dos atoresoperantes no espaço, porém afetados pelo tempo.

Finalmente, as informações municipaisselecionadas desempenharam um papel heurísticoe deram visibilidade ao complexo encaixamento dasescalas nacional, regional e local no país. Essasescalas fundam a territorialidade das ações dosatores sociais e políticos. A articulação entre aisonomia prevista na Constituição federal e asdescontinuidades resultantes das ações dos atores

Notas

1 Fonte: Pesquisa de Informações Básicas Municipais,2001e Recenceamento Demográfico, 2000 daFundação IBGE.

2 Para cada um destes aspectos dos Conselhosselecionados foram atribuídos pontos. Somadosos pontos, obteve-se um intervalo em que apontuação mínima foi zero e a máxima 67. Emseguida, elaborou-se uma classificação nominalda seguinte forma: os municípios que obtivessempontos entre zero e 25 seriam classificados emsituação ruim dos Conselhos para políticas sociais;os que obtivessem uma pontuação entre 26 e45, situação regular; e os que obtivessempontuação entre 46 e 67 foram consideradoscomo tendo Conselhos para políticas sociais emuma situação boa. Estas informações sobre osConselhos de política social já foramapresentadas em outro artigo, Castro, I.E., 2003.

Porém, a análise aqui tem outro objetivo e exploraoutros ângulos e possibilidades dos dados.

3 A questão da localização é importante também paraas finanças municipais, ver Castro. I.E. et al....texto PAL ...

4 Para não sobrcarregar a redação, estamoschamando de municípios pequenos aqueles depopulação até 50.000 habitantes, sem qualqueroutra referência à área ou à renda.

5 Esta política pública foi elaborada na gestão doGovernador Renato Azeredo do PSDB, durante operíodo 1994-1998, com apoio do Ministério daSaúde e da Organiização Mundial de Saúde –OMS.

6 Esta possibilidade foi reconhecida por Putnam,op. Cit., embora sem muito entusiasmo.

nas escalas dos estados e dos municípios sãoevidências que devem ser consideradas. Em síntese,é possível destacar três assertivas que poderão sertomadas como pontos de partida para novasdiscussões: a primeira aponta a localização comobem mais que um mero cruzamento de coordenadas;a segunda permite inferir que a resistentedesigualdade regional pode ser vista como resultadodo ambiente criado ao longo da história, e a terceira,que deriva do caso de Minas Gerais e de algunsmunicípios na Região Nordeste, revela aspossibilidades abertas para a sociedade, desde quecertos recursos institucionais sejam colocados à suadisposição pela ação dos atores políticos e sociais.

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Trabalho enviado em maio de 2005

Trabalho aceito em setembro de 2005

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