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BAZZANELLA, Sandro Luiz; FÁVERI, José Ernesto de; BOELL, Adilson. Técnica e desenvolvimento: perspectivas analíticas a partir de Álvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Científica Ciência em Curso – R. cient. ci. em curso, Palhoça, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014. Página39 TÉCNICA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS A PARTIR DE ÁLVARO VIEIRA PINTO E MARTIN HEIDEGGER 1 Sandro Luiz Bazzanella 2 José Ernesto de Fáveri 3 Adilson Boell 4 Resumo: O presente artigo pretende colocar em jogo a relação entre técnica e desenvolvimento, entrecruzando duas matrizes filosóficas e seus respectivos posicionamentos “prometeicos” e “faústicos” diante desta relação na contemporaneidade. Nesta leitura, o posicionamento do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, pautado na tradição do materialismo histórico-dialético vincula-se a uma visão “prometeica” da técnica. A técnica é um dos elementos que compõem a dinâmica antropogenética que desembocou no processo de hominização que nos trouxe a atualidade da condição humana. O humano produz o humano e o mundo. Para Álvaro Vieira Pinto, o homem em sua animalidade primeva foi colocado à prova pela natureza a produzir e a produzir-se. Por seu turno, o filósofo alemão Martin Heidegger, vinculado à tradição fenomenológico- existencialista, assume uma postura “faústica” diante da técnica. A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. A essência da técnica não é, de modo algum, coisa que se reduza ao âmbito técnico. Partir do técnico como condição de sua essência não possibilita alcançar a essência, o que limita a liberdade de pensar as implicações sobre a vida, sobre as possibilidades de ser e estar (apresentar-se) no mundo. Deste debate o que pode ser apontado como perspectiva argumentativa comum a ambos os pensadores é o risco que se apresenta quando da essencialização da técnica. Desta forma, refletir as relações e implicações entre técnica e desenvolvimento, significa manter vivo o desafio humano de constituir-se em sua humanidade e mundanidade. De ter presente que a técnica é resultante das necessidades humanas de sobrevivência e, concomitantemente, de sua capacidade criativa, inventiva e lúdica, de posicionamento diante da natureza, de si mesmo e dos outros seres humanos que condividem o espaço e o tempo da vida em curso, no esforço de conformar um mundo que possa acolher os desejos e as necessidades humanas demasiadamente humanas. Palavras-chave: Técnica. Desenvolvimento. Hominização. Meios. Fins. 1 Artigo desenvolvido para a composição das discussões em torno do projeto: “O Alto Vale do Itajaí e a produção da ideologia do desenvolvimento”, financiado pela FAPESC no ano de 2011. Coordenado pelo professor pós-doutorando José Ernesto de Fáveri da UNIDAVI – Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí com sede em Rio do Sul – SC. Publicado, originalmente, em: BAZZANELLA, S. L.; FAVERI, J. E.; BOELL, Adilson. Técnica e Desenvolvimento: perspectivas analíticas a partir de Álvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. In: FLORES, Giovanna Benedetto; NECKEL, Nádia Régia Maffi; GALLO, Solange Leda. (Org.). Discurso, ciência e cultura: conhecimento em rede. 1ed. Palhoça: Ed. da Unisul, 2012, v. 306.45, p. 121-165. 2 Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professor de Filosofia na Universidade do Contestado – UnC/SC e professor de Sociologia da Universidade para o desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI/SC. Email: [email protected]. 3 Doutor em Fundamentos da Educação pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCAR. Professor de Filosofia e Filosofia da Educação na Universidade para o desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí – UNIDAVI/SC. Email: [email protected]. 4 Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado UnC. Email: [email protected]

TÉCNICA E DESENVOLVIMENTO: PERSPECTIVAS ANALÍTICAS A PARTIR DE ÁLVARO VIEIRA PINTO E MARTIN HEIDEGGER

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O presente artigo pretende colocar em jogo a relação entre técnica e desenvolvimento, entrecruzando duas matrizes filosóficas e seus respectivos posicionamentos “prometeicos” e “faústicos” diante desta relação na contemporaneidade. Nesta leitura, o posicionamento do filósofo brasileiro Álvaro Vieira Pinto, pautado na tradição do materialismo histórico-dialético vincula-se a uma visão “prometeica” da técnica. A técnica é um dos elementos que compõem a dinâmica antropogenética que desembocou no processo de hominização que nos trouxe a atualidade da condição humana.

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  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    TCNICA E DESENVOLVIMENTO:

    PERSPECTIVAS ANALTICAS A PARTIR DE

    LVARO VIEIRA PINTO E MARTIN HEIDEGGER1

    Sandro Luiz Bazzanella2

    Jos Ernesto de Fveri3

    Adilson Boell4

    Resumo: O presente artigo pretende colocar em jogo a relao entre tcnica e

    desenvolvimento, entrecruzando duas matrizes filosficas e seus respectivos

    posicionamentos prometeicos e fasticos diante desta relao na contemporaneidade. Nesta leitura, o posicionamento do filsofo brasileiro lvaro Vieira Pinto, pautado na

    tradio do materialismo histrico-dialtico vincula-se a uma viso prometeica da tcnica. A tcnica um dos elementos que compem a dinmica antropogentica que

    desembocou no processo de hominizao que nos trouxe a atualidade da condio

    humana. O humano produz o humano e o mundo. Para lvaro Vieira Pinto, o homem em

    sua animalidade primeva foi colocado prova pela natureza a produzir e a produzir-se.

    Por seu turno, o filsofo alemo Martin Heidegger, vinculado tradio fenomenolgico-

    existencialista, assume uma postura fastica diante da tcnica. A tcnica no a mesma coisa que a essncia da tcnica. A essncia da tcnica no , de modo algum, coisa que se

    reduza ao mbito tcnico. Partir do tcnico como condio de sua essncia no possibilita

    alcanar a essncia, o que limita a liberdade de pensar as implicaes sobre a vida, sobre

    as possibilidades de ser e estar (apresentar-se) no mundo. Deste debate o que pode ser

    apontado como perspectiva argumentativa comum a ambos os pensadores o risco que se

    apresenta quando da essencializao da tcnica. Desta forma, refletir as relaes e

    implicaes entre tcnica e desenvolvimento, significa manter vivo o desafio humano de

    constituir-se em sua humanidade e mundanidade. De ter presente que a tcnica resultante

    das necessidades humanas de sobrevivncia e, concomitantemente, de sua capacidade

    criativa, inventiva e ldica, de posicionamento diante da natureza, de si mesmo e dos

    outros seres humanos que condividem o espao e o tempo da vida em curso, no esforo de

    conformar um mundo que possa acolher os desejos e as necessidades humanas

    demasiadamente humanas.

    Palavras-chave: Tcnica. Desenvolvimento. Hominizao. Meios. Fins.

    1 Artigo desenvolvido para a composio das discusses em torno do projeto: O Alto Vale do Itaja e a

    produo da ideologia do desenvolvimento, financiado pela FAPESC no ano de 2011. Coordenado pelo professor ps-doutorando Jos Ernesto de Fveri da UNIDAVI Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itaja com sede em Rio do Sul SC. Publicado, originalmente, em: BAZZANELLA, S. L.; FAVERI, J. E.; BOELL, Adilson. Tcnica e Desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de

    lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. In: FLORES, Giovanna Benedetto; NECKEL, Ndia Rgia

    Maffi; GALLO, Solange Leda. (Org.). Discurso, cincia e cultura: conhecimento em rede. 1ed.

    Palhoa: Ed. da Unisul, 2012, v. 306.45, p. 121-165. 2 Doutor em Cincias Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Professor de

    Filosofia na Universidade do Contestado UnC/SC e professor de Sociologia da Universidade para o desenvolvimento do Alto Vale do Itaja UNIDAVI/SC. Email: [email protected]. 3 Doutor em Fundamentos da Educao pela Universidade Federal de So Carlos - UFSCAR. Professor

    de Filosofia e Filosofia da Educao na Universidade para o desenvolvimento do Alto Vale do Itaja UNIDAVI/SC. Email: [email protected]. 4Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade do Contestado UnC. Email:

    [email protected]

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    SOBRE TCNICA E DESENVOLVIMENTO: QUESTES PRELIMINARES

    Adentrar as questes relacionais que envolvem a questo da tcnica e do

    desenvolvimento5 apresenta-se como tarefa rdua, seno num esforo de embrenhar-se

    em terreno escorregadio e labirntico. E esta condio desafiadora apresenta-se no bojo

    do esprito de nosso tempo que ainda se mostra herdeiro e propagador dos ideais

    iluministas, ancorados em sua aposta na razo cientfica e tcnica e, consequentemente,

    nas crenas disseminadas pelas filosofias do progresso em suas pretenses de alcance de

    um mundo previsvel, controlado e projetado, material e, humanamente, rumo ao bem-

    estar, seno a felicidade humana, caractersticas do sculo XVIII e XIX, adentrando o

    sculo XX e chegando ao primeiro decnio do sculo XXI.

    Este otimismo iluminista tcnico-cientfico, tomado em sua forma propositiva

    dificulta a reflexo em torno da incidncia da tcnica em nossa forma de ser e estar no

    mundo. Esta viso caracterizada pelo filsofo e socilogo Hermnio Martins como

    Prometeica6. [...] a tradio Prometeica liga o domnio tcnico da natureza a fins

    humanos e, sobretudo, ao bem humano, emancipao da espcie inteira e, em

    particular, das classes mais numerosas e pobres (na formulao Saint-Simoniana).7

    Se o otimismo em relao tcnica limita a capacidade analtica e interpretativa na

    compreenso de seus efeitos sobre as relaes que estabelecemos com o mundo, com a

    sociedade e conosco mesmos, uma viso pessimista em relao tcnica apresenta-se

    5 O conceito de desenvolvimento que articulamos ao longo desta discusso vincula-se como condio

    primeira questo antropolgica. Mesmo reconhecendo que, em lvaro Vieira Pinto, o conceito de

    desenvolvimento possa indicar um projeto de afirmao nacional, o filsofo deixa claro, na obra aqui

    analisada para os fins deste artigo: O Conceito de Tecnologia vol. 1 (2005), que o desenvolvimento primariamente desenvolvimento humano. Para o pensador do Iseb, preciso compreender o processo de

    hominizao, a forma como os seres humanos produzem a si mesmos e ao mundo, na dinmica das

    contradies materiais em que esto inseridos. Portanto, desenvolvimento primariamente e

    prioritariamente desenvolvimento humano. Talvez, possamos afirmar o mesmo para Heidegger. Suas

    reflexes sobre a tcnica, colocadas em jogo na segunda parte deste artigo, apontam para as questes das

    relaes essenciais e vitais que o homem estabelece consigo, com a natureza, com os outros seres

    humanos, configurando aquilo que nomeamos de mundo. A filosofia da tcnica de Heidegger pode ser

    considerada um diagnstico e um questionamento das premissas que implicam o desenvolvimento do

    humano em sua humanidade, ou o desenvolvimento do humano capitaneado pela extensividade totalitria

    que a tcnica assume na modernidade e na contemporaneidade. Portanto, o conceito de desenvolvimento

    humano subjaz s anlises e reflexes dos dois pensadores, o que nos permite coloc-los em jogo. 6 Termo derivado de Prometeu. Divindade da mitologia grega. Filho de Japeto e da Ocenida Climene

    (...). Prometeu, cujo nome grego quer dizer previdente, no foi s um deus industrioso mas tambm criador. Ele notou que entre as criaturas vivas nenhuma havia sido capaz de descobrir, de estudar, de

    utilizar as foras da natureza, de comandar os outros seres, de estabelecer entre eles a ordem e a

    harmonia, de se comunicar com os deuses pelo pensamento, de compreender pela sua inteligncia no

    somente o mundo visvel, mas ainda os princpios e a essncia de todas as coisas: e do limo da terra

    formou o homem. Minerva, admirando a beleza da sua obra, ofereceu a Prometeu tudo quanto pudesse

    contribuir para a sua perfeio. Com conhecimento, Prometeu aceitou a oferta da deusa, mas acrescentou

    que, para escolher o que criara, era preciso que ele prprio visse as regies celestes. Minerva arrebatou-o

    ao cu, donde ele s desceu depois de haver roubado aos deuses, o fogo, elemento indispensvel

    indstria humana. Diz-se que esse fogo divino que Prometeu trouxe para a terra era o carro do Sol, e que

    ele o escondeu na haste de uma frula, que era um basto oco. COMMELIN, P. Mitologia Grega e

    Romana. Trad. de Thomaz Lopes. So Paulo: Editora Tecnoprint, s/d, p. 94. 7 MARTINS, Hermnio. Tecnologia, modernidade e poltica. In: Transies da modernidade. Revista

    Lua Nova. n. 40/41. v. 97, pp 289322, p. 290.

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    to perniciosa quanto o seu oposto. Sob tais pressupostos, e evitando cair no

    extremismo analtico e conceitual, segundo o autor supracitado, apresenta-se tambm a

    viso fustica8 da tcnica que se caracteriza por apresentar-se desprovida de otimismo

    em relao tcnica. Talvez se apresente demasiado adjetiv-la como pessimista, na

    medida em que tal posicionamento pode nos lanar numa viso apocalptica, impedindo

    que alcancemos a essncia da tcnica, sua relao com o desenvolvimento, bem como

    seus imperativos e determinismos sobre o mundo e a condio humana. Assim, a

    tradio fustica diferente da tradio prometeica, segundo Martins, caracteriza-se por

    uma atitude crtica diante das questes da tcnica. A tradio fustica esfora-se por

    desmascarar os argumentos prometeicos, quer subscrevendo, quer procurando

    ultrapassar (sem soluo clara e inequvoca) o niilismo tecnolgico, condio pela qual

    a tcnica no serve a qualquer objetivo humano para alm de sua prpria expresso.9

    Nesta perspectiva de discusso da relao entre tcnica e desenvolvimento,

    tambm o conceito de desenvolvimento em sua apreensibilidade e compreenso no

    contexto de mundo e sociedade em que estamos inseridos, exige acuidade no trato

    intelectual e interpretativo. O conceito de desenvolvimento um destes conceitos que se

    apresenta de forma polissmica, o que significa dizer que se revela multifacetado,

    articulando-se de diversas formas e em diferentes discursos. Assim, pode-se falar de

    desenvolvimento econmico, humano, sustentvel, territorial e, at mesmo, de

    desenvolvimento global. Ainda nesta condio, o conceito de desenvolvimento pode ser

    utilizado para advogar pela necessidade de transformao das estruturas polticas,

    econmicas, culturais, locais, regionais, nacionais, estatais, sob a gide e as

    determinaes da dinmica econmica global em curso, o que conduz a certa

    homogeneizao das estruturas polticas, econmicas, culturais regionais e locais.

    Tambm se identificam discursos que tomam o conceito de desenvolvimento como

    forma de interpretar e comparar avanos e atrasos nos ndices de produtividade e de

    desenvolvimento econmico e humano entre territrios e, regies de um mesmo estado,

    ou entre territrios e regies de distintos estados e pases.

    Outra questo a ser observada em torno do conceito de desenvolvimento sua

    recente emergncia nos discursos oficiais, nos planos de governos, na forma de polticas

    pblicas. Este fenmeno apresenta-se tambm no meio acadmico em que, pensadores

    das mais diversas reas, sejam elas, entre outras, economia, sociologia, geografia,

    histria, antropologia, tomam o conceito e passam a estud-lo em sua variedade e

    diversidade de interfaces objetivas, procurando interpretar as diversas possibilidades

    contidas na dinmica do desenvolvimento local, regional, territorial. Este interesse no

    8 O termo Viso fustica da tcnica uma aluso ao poema dramtico do filsofo e poeta alemo

    Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), cujo poema relata a pretenso do Dr. Fausto, um homem de

    cincias que descrente e desiludido com os parcos avanos cientficos de sua poca, faz um acordo com

    Mefistfeles para alcanar o domnio tcnico e o progresso humano, o que lhe permitiria alcanar um

    mundo planejado, controlado, racionalizado. Porm, Dr. Fausto constata a duras penas que a consecuo

    dos ideais do progresso cientfico e tcnico da humanidade se estabelece sobre a burocratizao, a

    hierarquizao, a dor e o sofrimento humano, e uma vez desencadeado este processo no h como

    retroceder. O marcha do progresso avana desenfreadamente deixando atrs de si um rastro de destruio

    material e humano. 9 Ibidem, p. 290.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    se d ao acaso. O despertar das discusses em torno do conceito de desenvolvimento

    est inserido na dinmica cclica de mudanas e transformaes promovidas

    endogenamente pelo capitalismo10

    , como forma de responder aos constantes desafios

    que se lhe apresentam.

    Desta forma, entre outras interpretaes possveis dos movimentos e mudanas

    promovidas pela dinmica do capitalismo, pode-se interpret-lo a partir da constituio

    e da afirmao de trs classes de direitos. A primeira classe de direitos apresenta-se com

    a constituio e a afirmao do Estado moderno. Apresenta-se a necessidade do

    reconhecimento dos direitos individuais como forma de justificar o contrato social,

    derivado da vontade geral dos indivduos em abrir mo de suas liberdades em estado de

    natureza, delegando ao Estado o poder decisrio sobre a totalidade das relaes vitais e

    sociais em que se inserem os indivduos. Instala-se e legitima-se o poder soberano que

    oferece, em contrapartida, a garantia de manuteno da vida e da propriedade privada. O

    Estado11

    constitui-se como razo poltica e administrativa que doravante passa a

    controlar e a dinamizar os recursos naturais do territrio e potencializar o corpo

    biolgico da populao.

    No se pode falar do Estado-coisa como se fosse um ser que se desenvolve a partir de si

    mesmo e que se impe por uma mecnica espontnea, como que automtica, aos

    indivduos. O Estado uma prtica. O Estado no pode ser dissociado do conjunto das

    prticas que fizeram efetivamente que ele se tornasse uma maneira de governar, uma

    maneira de agir, uma maneira tambm de se relacionar com o governo. (FOUCAULT,

    2008, p. 369).12

    A segunda classe de direitos que se constituem na modernidade e que respondem

    s demandas de rearticulao e adequao da dinmica capitalista aos novos desafios

    que se apresentam, so os direitos de participao poltica. Reconhecidos os direitos dos

    indivduos, passam a se reconhecer seus direitos de participar politicamente nas

    definies que incidem sobre os rumos do Estado. O reconhecimento dos direitos

    10

    Queremos deixar claro neste ponto do texto, que no compreendemos o capitalismo como uma entidade

    transcendente que determina e controla a vida de bilhes de seres humanos. Tambm no o tomamos

    aqui como conformao de estruturas polticas e sociais derivadas da conspirao de corporaes e

    grupos econmicos que detm o poder econmico e poltico para tal fim e, deliberadamente, se

    articulam contra povos, pases e classes sociais. Compreendemos o capitalismo como um sistema

    derivado da produo da vida em sua multiplicidade de relaes sociais, articulando-se em torno das

    necessidades e dos desejos humanos. Nesta perspectiva, o capitalismo, como modo de produo da

    vida, se apresenta de forma imanente e se constitui na cotidianidade e na facticidade dos eventos vitais

    em que se inserem bilhes de seres humanos. 11

    Neste ponto, estamos diante de duas leituras possveis do surgimento do Estado moderno. Uma destas

    leituras a clssica interpretao dos autores contratualistas: Hobbes, Locke e Rousseau. Tais

    pensadores partem do princpio, salvaguardadas as diferenas conceituais e analticas que os

    diferenciam, de que os seres humanos abrem mo de suas prerrogativas de liberdade que gozam em

    estado de natureza, para transferi-la ao Estado, manifestao da vontade geral e, que justifica o

    exerccio do poder soberano. Porm, Foucault parte do pressuposto do desenvolvimento histrico,

    social, poltico e econmico das sociedades ocidentais, sobretudo, de especificidades da viso de

    poder e de poltica presentes na matriz judaico-crist que influncia decisivamente na estruturao da

    racionalidade poltico-administrativa do modo de produo da vida moderna. 12

    FOUCAULT, Michel. Segurana, Territrio e Populao: curso dado no Collge de France

    (1977/1978). Trad. Eduardo Brando. So Paulo:Martins Fontes, 2008, p. 369.

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    polticos na modernidade foi a forma encontrada para, num primeiro momento, limitar

    os excessos do poder soberano conferido ao Estado, bem como legitimar suas aes

    atravs das instituies estatais, garantindo-lhe a soberania na tomada de decises

    estratgicas, bem como no direito exclusivo ao uso da violncia, seja em mbito interno

    contra a prpria populao, ou parte dela, que pudesse vir a ameaar a ordem estatal

    constituda, bem como no plano das relaes internacionais entre estados.

    Mas, alm da pessoa pblica, temos de considerar as pessoas particulares que a compem, e

    cuja vida e liberdade naturalmente independem dela. Trata-se, pois, de distinguir os direitos

    respectivos dos cidados e do soberano, e os deveres que os primeiros devem desempenhar

    na qualidade de sditos, do direito natural de que devem gozar na qualidade de homens.

    (ROSSEAU, 1973, p. 54).13

    Temporalmente, as duas primeiras classes de direitos articulados pelas demandas

    do sistema de produo, gesto e consumo da vida, aqui denominado de capitalismo, se

    estabelecem entre os sculos XVII e XIX. Resultaram da dinmica das principais

    revolues modernas, salvaguardadas as diferenas singulares resultantes de cada um

    destes eventos: A Revoluo Inglesa (1640), a Revoluo Americana (1776) e a

    Revoluo Francesa (1789) com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

    Alis, da revoluo francesa que surge a primeira classe de direitos do homem e do

    cidado com pretenses de universalidade.

    Porm, a terceira classe de direitos se apresenta a partir dos eventos que marcaram

    as primeiras dcadas do sculo XX. Remonta do fim da Segunda Guerra Mundial, em

    que economistas alemes, posteriormente ingleses, franceses e norte-americanos,

    passam a reler o liberalismo, rearticulando-o no que se convencionou chamar de

    neoliberalismo. Foucault em seu curso no Collge de France, no vero de 1978-1979,

    intitulado: O Nascimento da Biopoltica (2008), demonstra de forma magistral esta

    capacidade de renovao conceitual e estrutural que constitui a dinmica sistmica do

    capitalismo:

    Ser liberal no , portanto, em absoluto, ser conservador, no sentido da manuteno dos

    privilgios de fato resultantes da legislao passada. , ao contrrio, ser essencialmente

    progressiva no sentido de uma perptua adaptao ordem legal, s descobertas cientficas,

    aos progressos da organizao e da tcnica econmicas, s mudanas de estrutura da

    sociedade, s exigncias da conscincia contempornea. (FOUCAULT, 2008, p. 224).14

    A perspectiva capitalista, em seu reposicionamento neoliberal ps-guerra, parte do

    pressuposto da necessidade de limitar o poder de interveno dos Estados-naes na

    economia, mais especificamente, na dinmica de mercado que rege a produo, o

    consumo e a circulao de capitais, conferindo, portanto, maior liberdade economia de

    mercado. Porm, diferente do laisse fair, laisse passer, caracterstico do liberalismo

    13

    ROSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Trad. de Lourdes dos Santos Machado. In: CIVITA,

    Victor. Os pensadores. v. 24. So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 54. 14

    FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopoltica: curso no Collge de France (1978-1979). Trad.

    Eduardo Brando: So Paulo: Editora Martins Fontes, 2008, p. 224.

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    econmico e poltico clssico, o neoliberalismo quer posicionar a ao do Estado de tal

    forma que evite a ascenso de Estados totalitrios, mas, fazendo isto de tal forma que o

    Estado se justifique na medida em que se coloque poltica e administrativamente a

    servio da dinmica econmica de mercado em curso.

    Desta forma, o papel dos Estados no plano interno se desdobra em vrias

    perspectivas: 1) Fortalecer suas instituies democrticas, sinalizando ao mercado com

    garantias de estabilidade poltica; 2) Articular um arcabouo jurdico que garanta aos

    indivduos direito ao bem-estar, o que implica em amplo acesso das massas

    populacionais educao, sade e segurana; 3) Efetivar as polticas pblicas de

    diminuio das desigualdades sociais, como forma de composio de amplo mercado

    produtor e consumidor interno. No plano externo, a partir das demandas da gide de

    uma economia de mercado em processo de globalizao, compete aos Estados: 1)

    Submeter-se aos imperativos da economia financeira globalizada e suas exigncias,

    entre elas: a) a desregulamentao e a flexibilizao de estruturas jurdicas

    excessivamente intervencionistas no que se refere s relaes entre capital e trabalho. b)

    No domnio do Estado em certas reas consideradas economicamente atrativas e

    rentveis. 2) Criar nova estrutura jurdica e administrativa que garanta os interesses do

    mercado de capitais em sua trajetria especulativa a vagar pelas bolsas de valores

    situadas nos grandes centros produtores e consumidores mundiais. 3) Observar regras

    internacionais de fomento democracia de mercado, bem como acordos de comrcio e

    interesses regionais e/ou globais dos Estados. Novamente, Foucault nos auxilia na

    compreenso desta nova dinmica do capitalismo:

    Hoje compreendemos melhor do que os grandes clssicos em que consiste uma economia

    verdadeiramente liberal. uma economia submetida a uma dupla arbitragem: arbitragem

    espontnea dos consumidores que partilham os bens e os servios que lhes so oferecidos

    no mercado ao sabor de suas convenincias, pelo plebiscito dos preos, e [por outro lado]

    arbitragem concertada do Estado, que assegura a liberdade, a lealdade e a eficincia do

    mercado. [...], vocs vem que o jurdico no da ordem da superestrutura. Ou seja, o

    jurdico no concebido, por eles, como estando numa relao pura e simples expresso ou

    instrumentalidade com respeito economia. No a economia que, pura e simplesmente,

    determina uma ordem jurdica que estaria numa relao ao mesmo tempo de servio e de

    servido com respeito economia. O jurdico enforma o econmico, econmico esse que

    no seria o que sem jurdico. (FOUCAULT, 2008, p. 224-225).15

    Portanto, procuramos demonstrar hipoteticamente que os discursos polticos,

    econmicos e acadmicos sobre o desenvolvimento surgem e se apresentam no bojo da

    dinmica neoliberal que se estabelece no ps-segunda guerra mundial e que tem, na

    distribuio de direitos de bem-estar dos indivduos produtores e consumidores, um de

    seus motes e, por outro, as garantias de livre acessibilidade dos capitais num mundo

    globalizado financeiramente, avesso s fronteiras nacionais, s alfndegas ou a toda

    forma de obstculo que se lhe apresente. Ainda nesta direo, pode-se constatar que, na

    ordem das duas categorias de direitos concedidos aos indivduos na modernidade, o que

    estava em jogo no era uma filosofia do desenvolvimento, mas eram sim as chamadas

    filosofias do progresso. No perodo das filosofias do progresso o capitalismo

    15

    Ibidem, pp. 224-225.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    caracterizava-se por sua vertente industrial no sculo XVIII e imperialista no sculo

    XIX at as primeiras dcadas do sculo XX.

    O que estava em jogo era ampliar territrios, colonizar populaes, extrair o

    mximo de riquezas possveis de outras regies e povos. Porm, com as amargas

    experincias totalitrias da primeira metade do sculo XX, bem como com o

    desenvolvimento da revoluo tecnolgica do ps-guerra, a dinmica capitalista no

    necessita mais de territrios e massas populacionais a serem conquistadas, mas sim,

    criar e estabelecer estruturas polticas e jurdicas que garantam o livre curso da lgica de

    mercado num mundo agora globalizado. Torna-se fundamental disseminar a democracia

    fundamentalista de mercado como condio de manter e ampliar a dinmica de

    acumulao inerente lgica de sobrevivncia e rearticulao do capitalismo.

    Sob nosso entendimento, neste contexto que se localiza o filsofo brasileiro

    lvaro Vieira Pinto (1909 - 1987). O pensamento dele insere-se neste contexto de

    transformaes profundas, na lgica de funcionamento do capitalismo em seu regime de

    produo da vida e de acumulao do capital, ancorado no intenso desenvolvimento e

    no uso de novas tecnologias. Em contrapartida, o Brasil dos anos 50 e 60 do sculo XX

    ainda um pas rural, perifrico no mbito das relaes econmicas de poder

    internacionais. Talvez, at mesmo se possa dizer que existe no Brasil uma atmosfera

    marcada pela ansiedade, pela necessidade de se estabelecerem as bases de um projeto

    nacional, visvel em significativos extratos da crescente burguesia nacional que se choca

    com os interesses das velhas oligarquias rurais, ainda detentoras de parte das estruturas

    de poder poltico. Acrescentem-se, neste cenrio, setores da intelectualidade brasileira e

    diversos segmentos das classes trabalhadoras, vinculadas s ideias e concepes

    marxistas ortodoxas e heterodoxas na constituio de uma perspectiva socialista para a

    nao. H ainda intelectuais das mais diversas reas que desenvolvem seus estudos,

    suas pesquisas e anlises utilizando como mtodo preferencial o materialismo histrico-

    dialtico para pensar um projeto de desenvolvimento nacional, mas sem se vincular as

    propostas polticas de cunho socialista. E neste contexto mais especfico que

    encontramos lvaro Vieira Pinto.

    Esta efervescncia poltico-social em torno de um projeto nacional perceptvel

    tambm na poltica com Juscelino Kubitschek e seu programa desenvolvimentista

    intitulado: cinquenta anos em cinco, e os esforos pela construo da capital poltica

    do pas em Braslia. No campo social, crescem as organizaes de trabalhadores, de

    intelectuais e de movimentos estudantis. O Brasil necessita e quer se desenvolver.

    Desenvolvimento nestas circunstncias significa ter um projeto de nao que passe pela

    modernizao das estruturas sociais, educacionais, econmicas e polticas do pas. Esta

    efervescncia nacional alcana seu pico de ebulio nos anos 60 do sculo XX,

    culminando com o golpe militar de 31 de maro de 1964 assumindo outros contornos.

    Mas, seria operarmos por reducionismo considerar lvaro Vieira Pinto apenas sob

    o ponto de vista de um hbil intrprete filosfico dos aspectos conjunturais de seu

    tempo. Sua condio de filsofo implica numa postura marcada pela autonomia de

    reflexo e pensamento diante das questes nas quais se encontra inserido, na exigncia

    de originalidade e extemporaneidade em relao ao seu tempo de vida. Numa

    perspectiva hegeliana, talvez se possa dizer que o empenho filosfico de lvaro Vieira

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    Pinto foi o de colocar o prprio tempo em pensamento, de elevar a realidade emprica e

    contraditria em que se encontrava inserido ao plano conceitual, na tentativa de

    interpret-la e compreend-la luz de um projeto nacional.

    Na perspectiva de Nietzsche, que se vincula aristocraticamente ao pensamento

    hegeliano, no que concerne filosofia da histria, na medida em que procura lanar um

    olhar genealgico sobre a mesma, talvez se possa dizer que lvaro Vieira Pinto foi um

    filsofo extemporneo. Extemporneo, dir Nietzsche, todo pensador que vive a

    intensidade de seu tempo presente e, por esta condio, adquire a possibilidade de

    elevar-se sobre seu prprio tempo, analisando-o e interpretando-o com tal profundidade

    que ser necessrio o trnsito de algumas geraes para que o pensador seja

    adequadamente compreendido na intensidade e extensividade de suas reflexes e

    posicionamentos. Quanto a esta ltima proposio, a prudncia filosfica recomenda

    pacincia e muito trabalho analtico e interpretativo sobre o pensamento do referido

    filsofo na medida em que, para tornar-se uma referncia reflexiva, sua obra ter que

    resistir aos inmeros ataques e s crticas que se podem dirigir mesma e... este rduo

    caminho apenas comeou.

    Tambm preciso reconhecer na tradio filosfica marxiano-hegeliana a matriz

    do pensamento ao qual se vincula o filsofo brasileiro. A vinculao a esta matriz de

    pensamento faz com que a reflexes de lvaro Vieira Pinto apresentem algumas

    variantes caractersticas das quais nos propomos apresentar trs. A primeira a opo

    pelo mtodo do materialismo-histrico dialtico como chave de compreenso da

    realidade. Em sentido ltimo, toda realidade contm em si a contradio que a coloca

    em movimento no plano da materialidade e que permite ser interpretada em sua

    historicidade. Ao filsofo cabe a responsabilidade de compreender a contradio

    material fundamental em jogo em cada contexto histrico, como condio da

    compreenso da conformao das estruturas de poder, das relaes sociais, polticas e

    culturais que a partir destas perspectivas configuram uma determinada sociedade. A

    segunda caracterstica derivada desta primeira apresenta-se sob a condio de um

    otimismo gnosiolgico, ou seja, alcanada a adequada interpretao da contradio

    material e histrica da realidade, o passo seguinte propor a transformao das

    estruturas econmicas e sociais vigentes em determinado contexto societrio.

    Deste otimismo gnoseolgico desdobra-se a terceira caracterstica. Esta chave de

    leitura fundada sobre o materialismo histrico-dialtico pretende se apresentar como a

    verdade ltima da interpretao dos fatos e acontecimentos humanos. recorrente no

    texto de lvaro Vieira Pinto, lido e refletido para este artigo: O Conceito de

    Tecnologia (2005), afirmaes peremptrias e crticas mordazes a perspectivas

    filosficas consideradas como ideolgicas, metafsicas, ontolgicas ou mesmo ingnuas

    em relao aos pressupostos metodolgicos de que o filsofo lana mo para o

    desenvolvimento de suas reflexes. Ou seja, uma filosofia que se arroga o direito de se

    apresentar como a interpretao verdadeira, situando o mundo humano no intercurso do

    jogo de foras de fundo maniquesta entre opressores e oprimidos, em que os opressores

    colocam em jogo estratgias polticas, econmicas, culturais, sociais para conspirar

    contra os oprimidos. A passagem a seguir ilustrativa nesta perspectiva, apesar de

    reconhecer a pertinncia e a argcia argumentativa em torno da reflexo sobre a

    substantivao da tcnica.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    A substantivao da tcnica destina-se a realizar, de m-f, a adjetivao do homem. Para

    os efeitos intentados pelos pensadores atrelados aos interesses dos grupos sociais

    poderosos, convm, mediante a antropomorfizao da tcnica, fazer passar para segundo

    plano o papel real desempenhado pelos homens, na verdade as massas trabalhadoras, na

    construo da histria. Numa manobra de autoinocentamento histrico, que julgamos dever

    moral da conscincia crtica denunciar, os detentores do poder social transferem para uma

    abstrao, um conceito ideal, as responsabilidades objetivas que de fato cabem a indivduos

    perfeitamente concretos e identificados. (PINTO, 2005, p. 180).16

    Ora, este posicionamento desconsidera o fato de que todo discurso filosfico e sua

    base metodolgica responde a problemas de seu tempo e, no poucas vezes, torna-se

    refm da cosmoviso de seu tempo. Sob tais pressupostos, talvez se possa dizer que o

    marxismo se apresenta como a radicalizao do projeto iluminista do sculo XVIII e

    XIX, com sua aposta na exclusividade da razo cientfica como forma de interpretao

    das contradies materiais em torno das quais se articula o humano e suas formas de

    organizao social, historicamente dividas em classes a partir da lgica da explorao e

    da expropriao do homem sobre o homem, vindo a desdobrar-se naquilo que a escola

    de Frankfurt mais tarde diagnosticaria como razo instrumental.

    Portanto, ao atribuir-se a condio de um discurso filosfico verdadeiro sobre a

    realidade alcanada pelo mtodo dialtico que descortina a contradio inerente

    materialidade do mundo humano, o marxismo e suas teorias congneres acabam se

    apresentando como um platonismo imanente que, necessariamente, conduz a uma

    Nova repblica, a um mundo que deve ser reformado, rearticulado pela argcia de

    uma razo dialtica que determina a verdade sobre a realidade em sua totalidade. A

    concretizao desta forma de interpretao terica e prtica encontramo-la nas

    experincias socialistas vivenciadas no sculo XX.

    TCNICA E DESENVOLVIMENTO

    Colocados em questionamento argumentos preliminares e perspectivas filosficas,

    urge colocar em discusso a relao entre tcnica e desenvolvimento. Para a efetivao

    de tal intento requer-se estabelecer um fundamento a partir do qual se possa situar um

    conceito de tcnica, um conceito de desenvolvimento e suas implicncias polticas,

    econmicas, sociais e culturais no modo de produo de bens materiais e imateriais que

    se estabelecem sob condies relacionais do ser humano com a natureza, do ser humano

    consigo e em suas relaes sociais, denominadas de sistema capitalista desde a

    modernidade aos nossos dias.

    Neste contexto, o filsofo brasileiro parte do pressuposto de que a compreenso

    da essncia da tcnica implica no fundamento uma definio antropolgica. A tcnica

    um dos elementos que compem a dinmica antropogentica que desembocou no

    processo de hominizao que nos trouxe a atualidade da condio humana. O

    aparecimento do homem como espcie parte assinala-se pelo surgimento da tcnica,

    pois tal a modalidade pela qual a natureza [...], ao lhe negar o instinto produtivo, dota-

    o da faculdade de agir racionalmente.17

    16

    PINTO, lvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 180. 17

    Ibidem, p. 195.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    O humano produz o humano e o mundo. Para lvaro Vieira Pinto, o homem em

    sua animalidade primeva foi colocado prova pela natureza a produzir e a produzir-se.

    Diferentemente de outros animais e do conjunto da vida natural que se apresentam

    inseridos numa dinmica cclica e instintiva de sobrevivncia, de manuteno e

    reproduo da espcie, os seres humanos e sua continuidade biolgica individual e

    como espcie, exigiu-lhes que produzissem as condies materiais de sua sobrevivncia

    e, ao produzi-las, apresentavam-se-lhes coetaneamente as condies sociais e culturais

    que lhe permitiriam cada vez mais o domnio da natureza em seu entorno.

    A dignidade biolgica do homem, pela qual se distingue das espcies inferiores, reside na

    possibilidade de produzir. Porque mediante tal ato transforma o mundo imagem do que

    pretende venha a ser a realidade fsica e social, e com esse procedimento modifica-se a si

    prprio, cria a sua existncia. Torna-se o ser obrigado a conhecer para subsistir. Esse

    processo chama-se cultura, mas a fundamentao biolgica onde se assenta no ocorre

    seno mediatizada pelo exerccio das relaes sociais. (PINTO, 2005, p. 195)18

    H vrias questes implicadas nesta perspectiva dialtica de analisar e interpretar

    a questo da tcnica. A primeira delas consiste em dar-se conta de que o humano a

    resultante de mltiplas variveis em jogo coetaneamente no processo de hominizao.

    Sobre tal argumentao torna-se equivocado estabelecer um evento que o antecede ou

    desencadeia os demais. Para lvaro Vieira Pinto, no h uma hierarquia de eventos que

    constituem o humano. O ato produtivo das condies biolgicas de existncia vem

    acompanhado do ato produtivo do humano, do aumento de sua capacidade de conhecer

    os objetos, os materiais que o cercam e, ato contnuo, tais domnios vm acompanhados

    pelo desenvolvimento e complexificao da linguagem humana. Relembramos aqui a

    clssica definio antropolgica estabelecida por Aristteles: zon echon politikn, o

    homem um animal que fala e, por ser falante, poltico. Ou seja, articula, negocia com

    o mundo e com os demais seres humanos possibilidades de realizao e alcance da

    felicidade.

    A segunda questo, derivada da primeira, apresenta-se na perspectiva de que uma

    leitura do processo de hominizao, ancorado no materialismo histrico-dialtico,

    pressupe o reconhecimento da contradio fundamental que se estabelece entre o

    homem e a natureza. Ou seja, a emergncia do humano pressupe a necessria

    superao da natureza. E a superao da natureza sob determinadas condies impe ao

    homem novos desafios e obstculos a exigirem-lhe esforo humano e intelectual. Ao

    transformar a natureza o homem produz a si mesmo. o ininterrupto esforo de superar

    os obstculos da natureza que faz com que o homem se humanize cada vez mais. Assim,

    o domnio da natureza pelo homem revela um princpio teleolgico que lhe inerente e

    que se constata no processo de evoluo da vida em sua totalidade, e acima de tudo no

    ser humano que atinge o auge deste dinamismo teleolgico natural ao desenvolver, alm

    da vida em sua base biolgica, a vida racional, a poltica e a espiritual.

    18

    Ibid., p. 165.

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    Ao constituir o ser humano, a natureza, se nos lcito usar esta linguagem antropomrfica,

    transfere para ele a responsabilidade de procurar tecnicamente a soluo das contradies

    experimentadas com o mundo material, para tanto d-lhe liberdade de inventar os meios de

    produzir sua prpria existncia. A natureza inicialmente, no segmento da evoluo

    puramente animal, programava a espcie e o desenvolvimento desta. Com o surgimento do

    ser consciente entregou-lhe a capacidade de se autoprogramar, no apenas na condio de

    animal que se constitui a si mesmo, mas ainda na de agente que, obedecendo a um projeto

    originado do pensamento, modifica a natureza. S ento torna-se possvel a conscincia

    desta tcnica. Sem este trao especificamente humano a tcnica a rigor no existe. (PINTO,

    2005, p. 148)19

    Desta forma, a terceira questo derivada de um posicionamento dialtico diante do

    processo de hominizao, refere-se dimenso da historicidade que envolve o ser e

    estar do homem no mundo. Sob esta condio, o grau evolutivo e de progresso

    cientfico e tecnolgico alcanado pelo ser humano no so fruto de uma evoluo

    natural, mas sim da forma como em cada contexto histrico o homem respondeu

    produtivamente, tecnologicamente aos desafios da contradio fundamental estabelecida

    em relao natureza. lvaro Vieira Pinto chama a ateno para o equvoco das

    anlises e interpretaes que pretendem argumentar que os tempos atuais so melhores,

    mais evoludos tecnicamente que outros. Argumenta o filsofo que os homens em cada

    contexto histrico respondem de modo especfico e caracterstico no que se refere

    tcnica e aos desafios da contradio com a natureza e que as mais diversas respostas

    conferidas nos mais diversos contextos humanos temporais contriburam para o grau

    tecnolgico alcanado na atualidade. O que significa afirmar que no tem amparo na

    dinmica histrico-dialtica o fato de anunciarmos nossa poca com o rtulo de era

    tecnolgica. Cada poca histrica pode ser concebida como era tecnolgica, pois

    articulou tcnicas que responderam aos desafios de superao dos obstculos naturais

    impostos ao homem naquele contexto de mundo. A tcnica por isso contempornea

    de todo curso do processo de formao do homem na condio de espcie zoolgica

    autnoma. A tcnica inicia-se com o homem pela mesma razo que faz o homem

    iniciar-se com a tcnica.20

    Portanto, resulta do mtodo dialtico de anlise a interpretao das contradies

    que produziram e produzem o homem, que a categoria primeira determinante no

    processo de hominizao o trabalho. O trabalho permitiu ao homem21

    produzir os bens

    materiais de que necessitava para a sobrevivncia e, ao produzi-los, produzia os bens

    19

    Ibid., p. 148. 20

    Ibidem, p. 215. 21

    Ao eleger o trabalho como a categoria por excelncia na definio do homem, lvaro Vieira Pinto opta

    por uma concepo do ser humano pautado na ideia de condio humana. Ou seja, no reside no humano

    um princpio natural que o determine em todos os contextos temporais e histricos, o que permitiria

    afirmar que o ser humano um ser naturalmente estabelecido, preso ao reino da necessidade, que faz com

    que ele se apresente sob determinadas caractersticas imutveis. Portanto, tomar o humano como condio

    humana, implica afirm-lo como um ser contingente, que se constitui de forma diferencial a partir dos

    desafios e, obstculos que tem que superar em cada contexto histrico, poltico, social, econmico e

    cultural, em que se encontra inserido. Acrescente-se ainda que a opo pela categoria trabalho como

    fundamento de sua concepo antropolgica (Homo Faber), o vincula diretamente a tradio moderna

    que pressupe que o trabalho, a produo e o consumo so determinantes na configurao do humano e

    do seu mundo. Evidencia-se este argumento desde os fisiocratas, passando por Adam Smith, David

    Ricardo, Hegel, Marx e tantos intrpretes da economia poltica do mundo moderno.

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    imateriais, as ideias que permitiam o avano, a superao dos obstculos na conquista

    de uma vida melhor, com graus menores de dor e sofrimento. Desta forma, ao produzir

    bens materiais para sua sobrevivncia, o homem produz bens imateriais, ideias,

    conceitos, teorias que ampliam sua condio humana, bem como seu mundo. Neste

    ponto preciso ter presente que todo trabalho sempre trabalho socialmente produzido,

    configurando a rede de relaes sociais e suas implicaes na estruturao poltica,

    econmica e cultural das sociedades humanas. Trabalhar significa uma dignidade

    exclusiva do homem.22

    A verdadeira finalidade da produo humana consiste na produo das relaes sociais, a

    construo das formas de convivncia. Realmente s o homem interessa ao homem, pois

    cada ser desta espcie s pode esperar benefcios de outro congnere, e tambm s a este

    pode temer. Mas, a criao das formas de convivncia significa a produo de bens para

    mediatizar a ligao entre os homens. Surge, pois, a necessidade da produo organizada,

    planejada e conjuntamente obtida no ato do trabalho. (PINTO, 2005, p. 86).23

    Ao definir o homem a partir da categoria trabalho, o filsofo do ISEB Instituto

    Superior de Estudos Brasileiros - chama a ateno para a importncia da tcnica. O ato

    de trabalhar implica num conjunto de esforos que os seres humanos necessitam

    disponibilizar para a superao de suas dificuldades e consecuo de seus objetivos.

    Entre estes esforos est a capacidade de projetar. O que diferencia o trabalho humano

    das atividades desenvolvidas necessariamente na luta instintiva de sobrevivncia pelos

    animais e insetos que o homem elabora um projeto mental que antecede o

    desencadeamento de sua atividade produtiva. Projetar significa abstrair, calcular,

    antever os resultados de sua ao. A ao humana do trabalho uma ao planejada

    com vistas a fins determinados, pressupe uma finalidade que transcende o mero fato da

    sobrevivncia. O projeto significa o relacionamento da ao a uma finalidade em vista

    da qual so preparados e dispostos os meios necessrios e convenientes. [...] o carter

    necessariamente tcnico de toda ao humana, pois agir significa um modo de ser ligado

    a alguma finalidade que o indivduo se prope cumprir.24

    Desta forma, a tcnica apresenta-se no homem como mediadora entre a habilidade

    projetiva e sua capacidade operativa, ou seja, entre a concepo de determinada obra e

    sua execuo que se materializa pelo trabalho humano. A tcnica apresenta-se como o

    conjunto de habilidades e instrumentos desenvolvidos pelo homem para o alcance de

    suas finalidades atravs do trabalho. Assim, a tcnica exprime a forma da ao humana

    que se contrape aos obstculos interpostos pela da natureza. A tcnica, representando

    a soluo da contradio objetiva de uma dificuldade com que o homem se depara, na

    consecuo de uma finalidade, significa em princpio o enriquecimento e melhora da

    espcie ao dot-la de maior poder produtivo.25

    22

    Ibid., p. 98. 23

    Ibid., p. 86. 24

    Ibid., p. 59. 25

    Ibid., p. 169.

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    E entre os atos, aquele que direta e mais originariamente recebe esta qualificao o de

    produzir. Sendo um ato definidor da existncia humana, porque exprime a condio

    primordial da conservao dela, permitindo ao ser vivo conservado raciocinar sobre si, a

    ele que compete natural e originariamente a qualificao de tcnico. Ao conceitu-lo como a caracterstica de uma ao, e a isso se resume todo o contedo do termo tecne, o homem quer exprimir que o ato realiza, quando mediao, o fim intencional do agente.

    Revela-se-nos, com isso, a essncia da tcnica. a mediao na obteno de uma finalidade

    humana consciente. (PINTO, 2005, p. 175).26

    Para lvaro Vieira Pinto, a tcnica apresenta-se como o conjunto de habilidades

    desenvolvidas pelo homem por meio do trabalho, da produo de si, das relaes sociais

    e do mundo, para enfrentar a natureza em sua dinmica cclica e necessria. Para

    produzir-se como humano em cada contexto temporal, exige-se dos homens que

    conheam os corpos em suas estruturas materiais em seu entorno, as foras da natureza

    que agem sobre os corpos em sua totalidade, como forma de articular as aes humanas

    de forma eficiente e eficaz para o alcance de suas finalidades vitais. Esta forma de

    compreender a tcnica aproxima-se, em aspectos significativos, da concepo

    apresentada pelo filsofo espanhol Jos Ortega y Gasset na obra: Meditao da Tcnica (1963), em que o referido filsofo, assim se posiciona: , pois, a tcnica, a reao enrgica contra a natureza ou circunstncia que leva a criar entre esta e o homem

    uma nova natureza posta sobre aquela, uma sobrenatureza. A tcnica a reforma da natureza que nos faz necessitados e indigentes, reforma em sentido tal que as

    necessidades ficam e, se possvel, anuladas por deixar de ser problema sua satisfao.27

    Mas, determinante para o filsofo brasileiro o fato de que a tcnica no um fim

    em si mesmo, no uma entidade, uma categoria que se sobrepe materialidade na

    qual o homem, no conjunto de suas aes, est inserido. A tcnica habita o universo dos

    meios que os homens colocam em jogo em determinado tempo e espao na constituio

    de suas relaes de produo e, consequentemente, de mundo resultante de tais relaes

    e condies. Portanto, a tcnica reveladora da qualidade da ao material do homem

    sobre a natureza. Mais do que isto, a tcnica reveladora das relaes sociais de

    produo num determinado contexto histrico-civilizacional. A adequada compreenso

    da tcnica implica no reconhecimento dos enfrentamentos diante da contradio

    fundamental do processo de hominizao em relao natureza, mas, tambm, da

    qualidade das relaes que se estabelecem com os demais seres humanos e consigo

    mesmo.

    A tcnica tem de ser entendida em funo do homem, e nunca em funo dos

    procedimentos e mtodos que emprega ou das mquinas e aparelhos que consubstanciam

    operaes. o homem que inventa a tcnica, com isso carregando-se da responsabilidade

    dos atos executados com esse carter. A tcnica ingressa, como fator, na constituio de sua

    essncia, porquanto ao se incorporar cultura existente no momento torna-se um legado

    que outras geraes recolhero e ir contribuir para possibilitar diferentes tipos de relaes

    de trabalho entre os homens, na tarefa comum de agir sobre a natureza e de organizar a

    sociedade. (PINTO, 2005, p. 191).28

    26

    Ibid., p. 175. 27

    GASSET, Jos Ortega y. Meditao da Tcnica: vicissitudes das cincias cacofonia da fsica. Rio de

    Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963, p. 14. 28

    PINTO, lvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. Op-cit., p. 191.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    A partir de tais pressupostos, vinculados reflexo de lvaro Vieira Pinto, pensar

    a relao entre tcnica e desenvolvimento implica considerar determinadas situaes

    que impactam diretamente sobre a relao que se estabelece entre a produo e o

    domnio das tcnicas que qualificam o trabalho humano, as relaes sociais de produo

    e, consequentemente, a cosmoviso em jogo em determinado contexto do mundo

    humano. Se tomarmos o conceito de desenvolvimento na amplitude que o mesmo exige,

    para alm de sua redutibilidade econmica, articulando-se em sua totalidade com a

    condio poltica, cultural e social humana em condies temporal e espacialmente

    determinadas, ento, pode-se argumentar: quanto mais os seres humanos de uma

    determinada localidade, regio, territrio, ou mesmo pas, participam na concepo e

    materializao da tcnica de que necessitam para o desenvolvimento de suas atividades

    produtivas, de seu trabalho, maior o grau de humanizao, de articulao social

    produtiva que tais grupos humanos alcanam o que significa dizer em sentido ltimo,

    maior desenvolvimento humano, poltico, social, econmico e cultural, alcanado

    naquele contexto. O domnio tcnico por parte dos homens societariamente articulados

    em torno das demandas produtivas, qualifica o trabalho e, por extenso, a totalidade das

    relaes em que se inserem tais seres humanos.

    Porm, o inverso tambm tem validade: quanto menor a participao e o

    envolvimento dos seres humanos na projeo, na elaborao dos recursos tcnicos

    necessrios s demandas societrias em que esto inseridos, menores sero as

    possibilidades de qualificao e realizao humanas no trabalho, categoria constitutiva

    dos seres humanos a partir das relaes de produo da vida material, poltica, social e

    cultural. Em tal contexto, as condies objetivas para o desenvolvimento tendem a

    apresentar-se em seu carter exgeno, pois o consumo de tcnicas elaboradas em outros

    contextos ou pensadas e projetadas por uma mirade de especialistas e impostas a partir

    de uma diviso regional, nacional ou internacional da tcnica, da produo e do

    trabalho, impedem que iniciativas endgenas possam surgir como decorrncia da

    capacidade humana local de responder aos desafios do desenvolvimento que se lhes

    apresentam. Ou seja, o simples consumo de tcnicas advindas da dinmica global da

    produo, associado perda dos referenciais tcnicos e produtivos locais, regionais e

    territoriais gestados pelos seres humanos, diante das contradies que conformam seu

    mundo, inibe, quando no impede, seu desenvolvimento humano e material. Tornam o

    gnero humano refm da tcnica na medida em que tais pressupostos tcnicos no lhe

    pertencem, aprofundando-se cada vez mais o grau de dependncia e de subservincia a

    outros centros de poder tcnico-produtivos revelia das necessidades locais de

    desenvolvimento.

    Outra situao que se apresenta na relao entre tcnica e desenvolvimento situa-

    se no fato de que determinadas localidades, regies ou territrios, ficam presos a

    determinadas matrizes produtivas que outrora, em sua gnese, representaram um salto

    tcnico produtivo, mas que diante das atuais demandas econmicas, sociais e culturais

    apresentam-se esgotadas. Ou seja, tais matrizes produtivas no fomentam a criatividade,

    a inventividade necessrias ao avano na matriz tecnolgica em curso, bem como no

    assimilam tcnicas inovadoras de interveno produtiva, mantendo a capacidade de

    trabalho e, como decorrncia, a forma como os seres humanos se compreendem em suas

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    relaes sociais em estado de letargia, seno de paralisia, materializando-se no atraso,

    na perda de competitividade, de oportunidades de desenvolvimento e, talvez, no efeito

    mais perverso de tal postura que se apresenta na crescente dificuldade de abertura

    anlise e interpretao dos horizontes polticos do mundo em curso, se comparada com

    regies e territrios que abrem espao para a inovao, para a criatividade e a

    assimilao de novas tecnologias.

    O mtodo dialtico caracterstico da tradio marxista-hegeliana, a partir do qual

    lvaro Vieira Pinto desenvolve suas reflexes, seu posicionamento terico em torno da

    questo da tcnica, nos permite colocar em jogo as questes relativas tcnica e ao

    desenvolvimento em dois momentos significativos. O primeiro momento se apresenta

    sob o argumento de que a tcnica no um fim em si mesmo, mas um meio que

    possibilita a hominizao, a superao por parte do homem do reino da necessidade

    cclica natural, bem como possibilita ao homem sua constante humanizao, na medida

    em que desafiado a superar constantemente as contradies em que se encontra

    inserido em mbito natural e social.

    Num segundo momento, na medida em que, por meio da tcnica, do

    desenvolvimento de instrumentos e mquinas, o homem adquire maior profundidade de

    conhecimento sobre o meio natural em seu entorno, novas exigncias vitais se lhe

    apresentam. Talvez seja possvel tomar como pressuposto que no h limite para o

    desenvolvimento humano, o que implica em dizer que a tcnica estar sempre

    evoluindo, progredindo, procurando formas de superao dos desafios impostos pela

    dinmica contraditria em que o homem est inserido em determinado contexto.

    Portanto, tcnica, criatividade, inventividade so condies que envolvem o ser

    humano, um fim em si mesmo e tais condies humanas so determinantes no contnuo

    processo de hominizao, como nas relaes sociais que se constituem em sua

    totalidade.

    Num terceiro momento, o filsofo aponta para o fato de que a estagnao, ou

    mesmo, controle da capacidade ou das demandas tcnicas de uma determinada

    localidade, regio, territrio, ou mesmo, pas, implica no retardo do desenvolvimento

    humano em sua totalidade. O controle da tcnica, ou mesmo, o baixo nvel de exigncia

    tcnica na dinmica produtiva, significa que a produo do humano como fim em si

    mesmo, em suas relaes sociais, permanecero estagnados. Ou seja, se as contradies

    fundamentais que exigem dos seres humanos a superao de obstculos, sejam eles de

    ordem natural ou societria, dinamizadores em sua totalidade das relaes de produo,

    sociais, polticas, econmicas e culturais permanecerem estagnadas, resultam em baixo

    desenvolvimento humano e social em sua totalidade.

    O quarto momento reflexivo que se apresenta no bojo das reflexes e dos

    posicionamentos do filsofo brasileiro aponta para o argumento de que a tcnica no

    um fim em si mesmo, no uma entidade transcendente ou que tenha vida prpria. A

    tcnica uma forma de arte que se expressa na dinmica da hominizao, resultante da

    superao dos obstculos externos que se lhe apresentam e que, dialeticamente, lhe

    permitem a constituio do mundo e de sua humanidade. A virulncia deste argumento

    aponta para a condio de que, ao perder a capacidade reflexiva em torno da tcnica em

    curso em determinado contexto social, poltico e econmico, o que se evidencia a

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    perda do humano no protagonismo da dinmica produtiva do mundo, da existncia. O

    humano transformado em extenso da tcnica que o absorve em sua totalidade e

    cotidianidade. Sua capacidade reflexiva e questionadora sobre o mundo em sua

    multiplicidade de possibilidades e relaes se esvai e o homem torna-se instrumento da

    tcnica. Sua racionalidade vincula-se instrumentalidade de aes repetitivas,

    predeterminadas que lhe dificultam a compreenso da finalidade de suas aes e

    posicionamentos na esfera individual e social no mundo em que se encontra inserido.

    A partir da exposio de tais prerrogativas e argumentos, amparados nas reflexes

    de lvaro Vieira Pinto, pode-se considerar que tcnica e desenvolvimento esto

    intrinsecamente vinculados como condio de possibilidade de o homem tornar-se

    humano, criativo, inventivo, crtico, o que lhe permite a constante reelaborao de suas

    estruturas sociais, polticas, econmicas e culturais que acolhem seus desejos, vontades

    e necessidades individuais e coletivas. Para o filsofo brasileiro, homem, tcnica e

    desenvolvimento no se apresentam como categorias analticas distintas ou

    desvinculadas da totalidade do mundo, mas necessitam ser histrica e politicamente

    interpretados, na medida em que so coetneos no esforo de os seres humanos

    questionarem e conferirem respostas aos desafios de sentido e finalidade ao sempiterno

    devir que constitui o mundo.

    MARXISMO, TEMPO E HEGEMONIA DA TCNICA

    Aqui se faz necessrio colocar em jogo outra ordem de argumentos que se, por um

    lado podem vir de encontro ao pensamento de lvaro Vieira Pinto, no que concerne

    questo da tcnica, por outro lado permitem questionar algumas de suas crticas s

    demais filosofias da tcnica, rotuladas de metafsicas, ficcionistas, impressionistas. Se,

    sob determinada perspectiva, a crtica do filsofo pertinente, em certos momentos de

    sua argumentao transparece a vontade de verdade, caracterstica de sua leitura

    dialtica de mundo, contrapondo-se leitura de Oswald Spengler (1880-1936) e, de

    Heidegger (1889-1976), como fica evidente nesta passagem:

    No tem cabimento admitir em pensadores do vulto dos que mencionamos teorias

    totalmente errneas. Devemos apenas apontar quanto nelas existe de noes ingnuas,

    comprovando serem fruto de uma conscincia ainda no possuidora das verdadeiras leis do

    processo da realidade objetiva. Podemos admitir haver nelas certos pontos de contato com o

    que para ns constitui a verdade, ou pelo menos deparamo-nos com aspectos que no seria

    justo rejeitar. Mas o que julgamos primordial e no encontramos nas concepes [...], o

    ponto de partida correto, que nos oferece a possibilidade de ingressar por um caminho certo

    no mago do problema. (PINTO, 2005, p. 154).29

    Em nossa compreenso o equvoco de lvaro Vieira Pinto, reside no dogmatismo

    que confere sua anlise em torno da questo da tcnica. Sob certo sentido, pode-se

    consider-la at mesmo ideolgica, na medida em que no concebe a existncia e a

    pertinncia de outros pressupostos a partir dos quais podem se desenvolver outras

    29

    Ibidem, p. 154.

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    interpretaes da tcnica. Mesmo tomando o cuidado de afirmar que determinados

    aspectos de tais leituras podem ser considerados, o fato determinante que o filsofo as

    invalida a partir dos fundamentos em que se assentam tais concepes sobre a tcnica.

    Com esta argumentao no queremos afirmar o relativismo como postura filosfica em

    torno da tcnica, mas ao mesmo tempo afirmar que inerente ao exerccio de filosofar a

    contraposio a toda forma de manifestao ideolgica e dogmtica do pensamento em

    sua totalidade. A exigncia primeira do exerccio do filosofar manter-se em abertura

    crtica diante das inmeras possibilidades e potencialidades do pensamento humano.

    O filsofo italiano Giorgio Agamben (1942), em sua obra: Infncia e Histria:

    destruio da experincia e origem da histria (2005, p. 120), argumenta que uma

    reviso do marxismo em nossos dias pressupe a elaborao de um conceito de tempo

    que alcance a compreenso de histria sobre a qual Marx operava. O modo de Marx

    pensar a histria situa-se numa regio complexa e diversa. A histria no para ele algo

    em que o homem cai, ou seja, ela no exprime, mas a dimenso geral do homem

    enquanto [...] ser capaz de um gnero, isto de produzir-se originalmente no como

    mero indivduo nem como generalidade abstrata, mas como indivduo universal.30

    A concepo de histria de Marx difere da concepo de histria em Hegel que se

    apresenta na forma determinada de um historicismo ascendente de negao da negao

    rumo ao sempre crescente desenvolvimento da razo. Ou seja, em Hegel a histria se

    apresenta como o continuum dialtico que justifica as contradies da marcha da razo

    em sua afirmao no tempo presente. Em Marx, tendo em conta seu hegelianismo

    esquerda, a histria se apresenta como condio temporal na qual o homem realiza a

    experincia de constituir-se a si prprio a partir da contradio de sua base material e,

    esta condio existencial se d atravs da prxis, [...] na qual o homem se coloca como

    origem e natureza do homem, so tambm imediatamente no primeiro ato histrico, o

    ato de origem da histria, compreendida como tornar-se natureza, para o homem, da

    essncia humana e o tornar-se homem da natureza31

    Para Agamben, o fato determinante que Marx e, mesmo o marxismo, no

    elaborou um conceito de tempo altura das exigncias de sua concepo de histria.

    Marx e os marxistas continuaram articulando suas anlises e interpretaes das

    contradies da base material sobre o conceito cronolgico, linear, de fundo judaico-

    cristo, de onde advm a base temporal na qual se move a modernidade e seu modo de

    produo da vida. Marx no elaborou uma teoria do tempo adequada sua ideia de

    histria, mas esta certamente inconcilivel com a concepo aristotlica e hegeliana

    do tempo como sucesso continua e infinita de instantes pontuais.32

    A ausncia de uma concepo de tempo que justificasse a concepo de histria e

    suas implicaes sobre a constituio do humano no seio das contradies em que est

    inserido, fez com que as anlises marxistas ficassem presas ao fundamento material da

    existncia humana, desconsiderando aspectos como a vontade, o desejo, as

    30

    AGAMBEN, Giorgio. Infncia e Histria: destruio da experincia e origem da histria. Traduo de

    Henrique Burigo. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2005, p. 120. 31

    Ibidem, p. 121. 32

    Ibid., p. 121.

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    representaes de vida, de existncia e de mundo que da derivam. Ou seja, uma viso

    objetiva da realidade deixa escapar aspectos subjetivos da realidade existencial dos

    indivduos que se manifestam em suas relaes sociais. Entre estes aspectos subjetivos

    est a noo de tempo, a partir do qual os indivduos representam sua vida, seus desejos,

    suas vontades e necessidades. a partir da concepo de temporalidade que indivduos

    e sociedades se movem, se articulam em torno das contradies fundamentais que se

    expressam temporalmente e espacialmente.

    Este fato determinante para a compreenso do carter de substancialidade que a

    tcnica adquiriu em nossos dias. inegvel que nossos tempos se caracterizam pela

    acelerao e compresso das categorias existncias de tempo e espao. As novas

    tecnologias de comunicao e transporte alteraram a percepo do tempo e do espao e,

    como decorrncia necessria, modificaram, se no obliteraram nossa capacidade de

    fazer experincias temporalmente vitais com a realidade objetiva e, por conseqncia,

    subjetiva com o mundo, com outros seres humanos que coabitam conosco o corrente

    contexto existencial. nesta perspectiva que, mais uma vez, Agamben se posiciona:

    [...] a contradio fundamental do homem contemporneo precisamente a de no haver

    ainda uma experincia do tempo adequada a sua idia de histria, sendo por isso

    angustiosamente dividido entre o seu ser-no-tempo, como fuga inaferrvel dos instantes, e o

    prprio ser-na-histria, entendido como dimenso original do homem. (AGAMBEN , 2005,

    p. 121).33

    O avassalador desenvolvimento tcnico-cientfico que vivenciamos nos ltimos

    dois sculos se no nos permite, como adverte lvaro Vieira Pinto, considerar-nos uma

    civilizao tecnolgica na medida em que, em cada contexto civilizatrio, constituiu a

    tcnica de que necessita para resolver a contradio fundamental que permita ao

    humano tornar-se humano, nos coloca diante de uma realidade que nos impede de

    realizar experincias de constituio de ns mesmos no ato de produzir os objetos e as

    relaes sociais que compem o mundo humano. David Harvey assim se posiciona:

    [...] a vida moderna est de fato to permeada pelo sentido do fugidio, do efmero, do

    fragmentrio e do contingente [...], a modernidade no pode respeitar sequer o seu

    prprio passado, para no falar de qualquer ordem social pr-moderna. A

    transitoriedade das coisas dificulta a preservao de todo sentido de continuidade

    histrica.34

    Seguramente o projeto moderno em seu eixo antropocntrico assaz impetuoso,

    desafiador condio mortal dos seres humanos que anseiam por transcendncias como

    garantia de sentido e finalidade existencial. Diz, mais ou menos, nestes termos,

    Nietzsche, na sua obra Gaia Cincia (2001): matamos deus, mas no conseguimos

    nos livrar de seu cadver, ou, dito de outra forma, a modernidade elege suas prprias

    transcendncias e a transcendncia digna de habitar o mais alto posto no monte

    Olimpo35

    [...] na modernidade e na contemporaneidade a tcnica.

    33

    Ibid., p. 121. 34

    HARVEY, David. Condio ps-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudana cultural. Trad.

    Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonalves. So Paulo: Edies Loyola, 1992, p. 22. 35

    O Monte Olimpo figura na mitologia grega como a morada dos doze deuses e cujo mais alto posto era

    ocupado por Zeus. No entanto, se na dinmica poltica sobre a qual se constitua a mitologia grega,

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    O crescimento indefinido da potncia da tcnica pressupe, de fato, na tcnica, a

    conscincia de que no h e no pode haver limites absolutos para seu agir, e, sobretudo, de

    que no pode haver a forma da potncia que, na tradio do Ocidente, foi considerada a

    potncia suprema e divina com que o homem se aliou, garantindo assim o seu habitar na

    terra. (SEVERINO, 2008, p. 03).

    36

    O filsofo italiano Emanuele Severino chama a ateno para o fato de que,

    contemporaneamente, no h mais sentido em se fazer distino entre cincia e tcnica,

    uma vez que no existiria mais uma cincia que dirigisse a tcnica como uma entidade

    transcendente em relao tcnica. Com base na superao desta distino, no existe

    mais uma cincia que dirige a tcnica, que continuaria [...] subordinada cincia.

    Quando falamos de tcnica, falamos de uma perfeita fuso entre a atitude contemplativa

    e a atitude prtica [...]. 37

    HEIDEGGER E A QUESTO DA TCNICA

    neste contexto de profundas e rpidas transformaes tecnolgicas, cientficas,

    espao-temporais que estamos vivenciando e, na contramo das crticas de lvaro

    Vieira Pinto ao pensamento do filsofo da Floresta Negra, que trazemos Heidegger ao

    centro de debate, por entender que suas reflexes podem nos ajudar a compreender a

    questo da tcnica sobre a urgncia de uma concepo temporal que nos permita

    retomar a experincia tcnico-produtiva fundante da condio humana, demasiadamente

    humana. Neste sentido, sintomtico o fato de que a principal obra do filsofo alemo

    intitula-se: Ser e Tempo.38

    Porm, no texto: A Questo da Tcnica, conferncia proferida por Heidegger na

    Escola Tcnica Superior de Munique em 18/11/1953, o filsofo alemo, coloca em jogo

    o questionamento da essncia da tcnica como condio para se pensar a vida nas

    formas como ela se apresenta (Dasein) na contemporaneidade. Para Heidegger a tcnica

    no a mesma coisa que a essncia da tcnica. A essncia da tcnica no de modo

    algum coisa que se reduza ao mbito tcnico. Partir do tcnico como condio de sua

    Zeus negociava constantemente a condio do exerccio do poder com os demais deuses, o mbito

    tcnico-cientfico exclui esta possibilidade, conduzindo os seres humanos potencializao de uma

    racionalidade instrumental que se justifica pelo seu fazer. Ou seja, se algo tecnicamente factvel, que

    se faa no necessitando de justificativas ticas para sua execuo e/ou implementao. 36

    SEVERINO, Emanuele. Horizonte tico para o nosso tempo (tcnica e tica). Trad. Selvino J.

    Assmann. In: http://www.filosofia.it/pagine/pdf/Severino%20Orizzonte%20etico.pdf. Acessado em: 24/04/2008, pginas 1-16, p. 03.

    37 SEVERINO, Emanuele. Horizonte tico para o nosso tempo (tcnica e tica), 2008. Op.-Cit., p. 12.

    38 Nesta obra inacabada que trata apenas do Dasein (realidade humana), o Ser visto atravs do homem.

    Ademais o tempo no a anttese do Ser. O Ser j devir. A questo do Ser uma questo

    tradicional. Conhecer interpretar o que est alm das aparncias. Todavia, ainda que a existncia d

    acesso ao Ser, o problema heideggeriano do Ser, na verdade, o problema da essncia da verdade.

    Assim, desde o incio, anuncia-se a questo sobre o sentido do Ser. O ser em questo suscita outra

    questo: a do esquecimento do sentido do Ser. a aporia essencial. Mas, na matria, no se pode

    declarar a contingncia subjetiva nem a transcendncia objetiva do Ser. A existncia define-se na

    relao com o Ser. HUSMAN, Denis. Dicionrio de obras filosficas. Traduo Ivone Castilho

    Benedetti. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 497.

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    essncia no possibilita alcanar a essncia, o que limita a liberdade de pensar as

    implicaes sobre a vida, sobre as possibilidades de ser e estar (apresentar-se) no

    mundo. Heidegger insiste que permanecer no mbito do tcnico como o essencial , em

    ltima instncia, negar a liberdade pelo fato de considerar a tcnica como algo neutro.

    Heidegger, [...], considera nuestro tiempo como la poca del predominio

    incondicionado de la esencia de la tcnica moderna, esencia que llama das Ge-stell: lo

    dispuesto, el dis-positivo, la im-posicin, la posicin-total. Esta esencia es un modo de

    destinarse el ser al hombre, y a ella corresponde este [...].39

    Questiona-se a tcnica ao questionar o que ela , o seu ser. Aquilo que lhe d

    identidade, que possibilita a aproximao de seu entendimento diante das possibilidades

    e dos matizes do que pode ser o real. A concepo moderna de tcnica parte do

    pressuposto de que ela um meio e um fazer humano, o que a caracteriza por sua

    determinao instrumental e antropolgica. Porm, para Heidegger, ao definir a tcnica

    como meio para fins, ou, a permanncia deste carter instrumental, faz com que todo

    esforo de conduzir o homem a uma adequada relao com a mesma, seja determinado

    pela concepo instrumental da tcnica, levando a uma viso precarizada,

    comprometendo um adequado posicionamento diante das prerrogativas tcnicas que se

    apresentam na modernidade medida que a transformam num fim em si mesma,

    reduzem as condies de possibilidade do pensamento e da ao humana e remetem-na

    condio de conformidade, a atuar na operacionalizao de formas otimizadas da

    tcnica enquanto meio.

    A partir desta viso instrumental da tcnica, Heidegger adverte de que a correta

    determinao da tcnica no permite alcanar sua essncia. O que meramente correto,

    talvez, no seja imediatamente verdadeiro e somente o que verdadeiro nos leva a uma

    relao livre com o que nos toca, a partir de sua essncia. Uma das possibilidades de

    desocultar o que a tcnica ou pode ser, remeter sua causalidade

    instrumental, ou seja, reconhecer na tcnica, na sua redutibilidade fechada em si mesma

    e desprovida de finalidade para alm de sua prpria expresso, a dimenso meramente

    instrumental, operacional. Para os modernos, causa significa aquilo que efetua, que faz

    com que algo surja dessa ou daquela maneira como resultado, diferentemente do modo

    de os gregos pensarem, para quem causa significa aquilo que compromete uma outra

    coisa.

    H sculos a filosofia ensina que h quatro causas: 1. a causa materialis, o material, a

    matria [...]. 2. a causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material; 3. a causa

    finalis, o fim [...] requerida e determinada segundo matria e forma; 4. a causa efficiens, o

    forjador da prata que efetua o efeito, a taa real acabada. (HEIDEGGER, 1997, p. 47).40

    39

    GUERRA, Jorge Acevedo. Meditacin acerca de nuestra poca: una era tcnica. In: SABROVSKY,

    Eduardo. La Tcnica en Heidegger. Antologia de textos. Santiago del Chile: Ediciones de la

    Universidad Diego Portales, 2006/2007, p. 12. 40

    HEIDEGGER, Martin. A questo da Tcnica. Trad. Marco Aurlio Werle. Cadernos de Traduo, n 2.

    DF/USP, pp. 40-93, 1997, p. 47.

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    Estas quatro causas apresentam-se como modos de comprometimento que

    permitem algo aparecer, apresentar-se existncia. Deixam algo surgir na pr-sena,

    liberam algo e, com isso, situam-se num completo surgir. O comprometimento o trao

    fundamental desse deixar situar no surgir. O comprometimento est situado na essncia

    da causalidade pensada pelos gregos. O que est em jogo para os gregos pensar o

    produzir em toda sua amplitude, na relao com a physis, na relao com a totalidade

    daquilo que e que se apresenta para a existncia. De acuerdo con la concepcin

    griega, la physis es la piesis en el sentido ms pleno y elevado. La piesis humana es

    analgica a la de la naturaleza. Se trata de una produccin de lo artificial; es decir, de lo

    que no surge por naturaleza.41

    O produzir no se reduz ao que feito manualmente, ao objeto que levado a

    aparecer mecanicamente no mundo. tambm o que, a partir de si, emerge seu sentido

    e, os sentidos que propem a existncia em seu entorno so um produzir. Sendo assim,

    o que se apresenta, tem em si a irrupo do produzir no comprometimento consigo e

    com o mundo, com a physys. O produzir leva do ocultamento para o descobrimento,

    o trazer ao mundo, ao plano da existncia, da reversibilidade, na medida em que algo

    oculto chega ao desocultamento, verdade, como a exatido da representao.

    A tcnica apresenta-se para os gregos como um modo de desabrigar, de desocultar

    o ser, de trazer existncia, de alcanar a verdade. Ela desabriga o que no se produz

    sozinho e ainda no est frente e que, por isso, pode aparecer e ser notado. O decisivo

    na concepo tcnica do mundo antigo a sua possibilidade de desabrigar, de trazer

    existncia, essencializando-se no mbito onde acontece o desabrigar, o desocultamento.

    No contraponto com as prerrogativas da tcnica no mundo antigo, para Heidegger,

    a questo decisiva apresenta-se da seguinte forma: de que essncia a tcnica

    moderna? Ora, tambm ela um desabrigar, um desocultar. Ela o faz desafiando e

    exigindo, na relao com a natureza, que se reduza condio de fornecedora de

    energia e matria prima a ser armazenada, consumida freneticamente, na marcha do

    ideal de progresso do mundo moderno. Apresenta-se como o desafio de extrair, destacar

    da natureza, tirar o mximo de proveito a partir do mnimo de despesas. A natureza

    objetivada, desabrigada e reduzida condio funcional e pragmtica. Explorar,

    transformar, armazenar e distribuir so modos de desabrigar. O mundo transforma-se

    num grande depsito de mercadorias e quinquilharias, expresso mxima de uma

    racionalidade que se estabeleceu na crena do progresso material, a condio do

    desenvolvimento existencial.

    Como de-psito aparecem as coisas somente na sua funcionalidade e dis-posio. [...]. A

    palavra de-psito ganha agora a posio de um ttulo. Ela caracteriza nada menos do que a

    maneira como tudo que foi atingido pelo desocultamento exigente desafiante se apresenta.

    [...]. No processo da apropriao das propriedades das coisas, a tcnica desapropria-as do

    prprio. [...] atinge o homem a quem a tcnica demanda igualmente como depsito.

    (BRSEKE, 2001, pp. 79-80-81).42

    41

    LINARES, Jorge. La concepcin heideggeriana de la tcnica: destino y peligro para el ser del hombre.

    In: Revista Signos filosficos. n.10, Julio-diciembre, 2003. Universidad Autnoma Metropolitana Iztapalapa. Mxico, pginas 15-44, p. 29.

    42 BRSEKE, Franz Josef. A tcnica e os riscos da modernidade. Florianpolis: Ed. da UFSC, 2001,

    pp. 79-80-81.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    0

    A busca moderna pelo viver bem, pelas pequenas felicidades proporcionadas

    pelos instantes efmeros de consumo, pela segurana individual, apresenta-se como um

    dos traos fundamentais do desabrigar do mundo, da vida pela tcnica. O modo pelo

    qual tudo o que tocado pelo desabrigar se essencializa pela tcnica moderna, est

    submetido lgica da subsistncia e, necessariamente, da subservincia do mundo, da

    natureza e da existncia. Ao transformar a natureza em objeto de pesquisa, ao

    represent-la a partir de um olhar objetivo e metdico, o homem elimina o apresentar-se

    da natureza em si mesma e faz com que desaparea e se ausente na perspectiva da

    redutibilidade a objeto de subsistncia. A tcnica moderna, enquanto desabrigar que

    requer, no um mero fazer humano, mas potencializa no ser humano o desejo e a

    vontade para requerer o real, enquanto mera condio de subsistncia. O valor

    calculado dissolve as propriedades especficas das coisas, desfaz a sua identidade e

    demonstra o desconhecimento do seu peso especfico.43

    Na essncia da tcnica, encontra-se aquilo que Heidegger designa como

    armao, sobre o qual se apoia o trabalho tcnico de categorizao em estruturas,

    camadas, suportes e conjuntos de peas que compem a totalidade. A armao

    apresenta-se, desta forma, como dissecao da totalidade na fria estruturao das partes

    funcionais. Na armao, acontece o descobrimento onde o trabalho da tcnica moderna

    desabriga o real enquanto subsistncia. Nesta condio, o homem da era da tcnica

    moderna desafiado a incorporar-se na centralidade do desabrigar, assumindo uma

    postura instrumental de requerente frente natureza e em relao a si mesmo. Seu modo

    de representar a natureza faz com que a disponibilize como um complexo de foras

    possveis de serem calculveis, mensurveis e, consequentemente, manipulveis sob

    estas perspectivas. Definir a tcnica como uma maneira de desocultamento significa

    entender a essncia da tcnica como a verdade do relacionamento do homem com o

    mundo. A tcnica no mais algo exterior e exclusivamente instrumental, mas a

    maneira pela qual o homem se apropria e se aproxima da natureza.44.

    Um ser humano sente-se como se fosse o centro do Universo porque, para ele, sua prpria

    percepo consciente o ponto de onde v o panorama csmico espiritual e material.

    Tambm egocntrico, no sentido de que seu impulso natural tentar fazer o resto do

    Universo servir a seus propsitos. Ao mesmo tempo, tem conscincia de que, longe de ser o

    verdadeiro centro do Universo, ele prprio efmero e dispensvel. (TOYNBEE, 1987, p.

    20).45

    A tcnica moderna somente se afirmou quando pde apoiar-se sobre a cincia

    exata na interpretao da natureza. A moderna teoria da fsica representa a preparao

    daquilo que Heidegger entende como essncia da tcnica moderna, na medida em que

    tal teoria expe a natureza como conjunto de puras teorias universalizveis expostas

    43

    Ibidem, p. 67. 44

    BRSEKE, Franz Josef. A Modernidade Tcnica. In: Revista Brasileira de Cincias Sociais. v. 17, n.

    49, Junho de 2002. pp. 135-173. Disponvel em: http://www.scielo.br. Acessado em 26/03/2008, p.

    140. 45

    TOYNBEE, Arnold. A humanidade e a me-terra: uma histria narrativa do mundo. Trad. Helena

    Maria Camacho Pereira e Alzira Soares da Rocha. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 20.

  • BAZZANELLA, Sandro Luiz; FVERI, Jos Ernesto de; BOELL, Adilson. Tcnica e desenvolvimento: perspectivas analticas a partir de lvaro Vieira Pinto e Martin Heidegger. Revista Cientfica Cincia em Curso R. cient. ci. em curso, Palhoa, SC, v. 3, n. 1, p. 39-67, jan./jun. 2014.

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    como contexto de foras previamente possveis de serem calculadas em padres de

    regularidades determinveis pelo ser humano. Mesmo com o recuo da fsica, em sua

    viso mecanicista e objetiva da natureza, no se renuncia ao fato de que a natureza se

    anuncie em algum modo asseverado, calculado,