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livro contendo artigos de discentes e docentes do programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCar
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TECENDO A
INTERDISCIPLINARIDADE
NO CAMPO CTS
Wilson José Alves Pedro Wanda Aparecida Machado Hoffmann
Valdemir Miotello
[Organizadores]
TECENDO A
INTERDISCIPLINARIDADE
NO CAMPO CTS
Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores. Wilson José Alves Pedro; Wanda Aparecida Machado Hoffmann; Valdemir Miotello [Organizadores]
Tecendo a interdisciplinaridade no campo CTS. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. 270p. ISBN 978‐85‐7993‐???‐?
1. Estudos de CTS. 2. Pesquisas de Mestrado. 3. Interdisciplinaridade. I. Título.
CDD – 410
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito Conselho Científico da Pedro & João Editores:
Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Roberto Leiser Baronas (UFSCar/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Dominique Maingueneau (Universidade de Paris XII/França); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil).
Pedro & João Editores Rua Tadão Kamikado, 296
www.pedroejoaoeditores.com.br 13568‐878 ‐ São Carlos – SP
2012
SUMÁRIO
A Problemática Ambiental redefinindo o Estatuto de Verdade Científica
Allan Rogério VeltroneThales Haddad Novaes de Andrade
Ensaio sobre a responsabilidade ativa no campo da Ciência, da Tecnologia e da Sociedade
Allan Tadeu Pugliese Valdemir Miotello
Direito Autoral e tecnologia: apontamentos de novos caminhos para a circulação e acesso ao conhecimento
Alyssa Cecilia BaracatCamila Carneiro Dias Rigolin
Análise bibliométrica da atividade científica em citricultura: a laranja no Brasil
Cláudia Daniele de SouzaLeandro Innocentini Lopes de Faria
Indicadores de inovação: análise da metodologia adotada nas pesquisas
Denise Rodrigues VichiattoRoberto Ferrari Junior (Orientador)
Ciência, Tecnologia e Sociedade em preto em branco: Perspectivas da tecnologia nos mangás
Felipe MussarelliValdemir Miotello
Uma revisão histórico‐conceitual sobre a Tecnologia Social Gabriela G. Mezzacappa
Blogs como espaço discursivo: para além da perspectiva tecnológica
Gustavo Grandini BastosLucília Maria Sousa Romão
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O planejamento sustentável do turismo e sua interface com o campo CTS
Helton GonçalvesReflexões sobre a importância do conhecimento tradicional
para a ciência e o desenvolvimento da sociedade Lívia Coelho de Mello
Camila Carneiro Dias RigolinAlfabetização científica e a participação pública
nas políticas de saúde Luiz Henrique Chenchi
Maria Lúcia Teixeira MachadoO processo de indexação como técnica de controle social
Marco Donizete Paulino da SilvaA Ciência Cívica e as Mudanças Climáticas:
construindo um diálogo Maria Luísa Nozawa Ribeiro
Thales Haddad Novaes de AndradeLogística humanitária:
conhecimentos e técnicas a serviço da comunidade Martha Regina Bortolato Cardoso
Wanda Aparecida Machado HoffmannConsiderações sobre divulgação científica
para crianças e adolescentes Raquel Juliana Prado Leite de Sousa
Os tesauros multilíngues pelas perspectivas da ciência, tecnologia e sociedade: possibilidades de construção e uso
Ricardo BiscalchinVera Regina Casari Boccato
Um pouco sobre o fundo documental do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes
Vera Lucia Cóscia Luzia Sigoli Fernandes Costa
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APRESENTAÇÃO
Cada vez mais a interdisciplinaridade vem se consolidando e
ocupando os debates e discussões no campo acadêmico e político. Em 2007, a Universidade Federal de São Carlos criou o PPGCTS – Programa de Pós‐Graduação Ciência, Tecnologia e Sociedade visando a formação de recursos humanos para a pesquisa, docência e atuação profissional em diversas áreas do conhecimento. Uma proposta inovadora de um grupo de docentes da Universidade, de diversos departamentos e Centros, bem como de outras instituições parceira de ensino superior; com diferentes formações e que defendem a interdisciplinaridade “como uma rede que se tece coletivamente” a partir do diálogo entre as ciências humanas e sociais, as exatas e tecnológicas, as ciências biológicas e da saúde e a lingüística, letras e artes.
Organizado em três Linhas de Pesquisas, interdependentes e complementares – Dimensões Sociais da Ciência e Tecnologia, Gestão Tecnológica e Sociedade Sustentável; Linguagens, Comunicação e Ciência, a cada ano, no contexto da disciplina Ciência, Tecnologia e Sociedade, um grupo de docentes do Programa tem trabalhado no sentido de “contribuir com a formação básica do estudante de pós‐graduação através da apresentação e discussão de temas relacionados à perspectiva CTS”, tendo como ponto de partida as diferentes visões e
análises propiciadas pelas três Linhas de Pesquisa do Programa e consequentemente as interações e interfaces.
Essa nova visão e maturidade expressadas pela pesquisa multidisciplinar são importantes para consolidar e articular uma sabedoria nacional sobre as possibilidades futuras em Ciência e Tecnologia, para colocá‐las à disposição da sociedade.
Um exercício dialógico e reflexivo, que tem transcendido a sala de aula e propiciado aos docentes, discentes e comunidade acadêmica algumas produções de caráter introdutório ao complexo campo CTS.
Assim, mantém‐se aceso o debate sobre as políticas adequadas para sustentar o avanço da ciência e os desenvolvimentos tecnológicos e, continuar a estimular a apropriação do conhecimento gerado nesse processo pela sociedade brasileira. O fato de haver um lugar para esse debate na pauta acadêmica e principalmente esse debate vem se alastrando nos meios de comunicação demonstram sinais de que mais segmentos da sociedade estão ganhando consciência de que a produção e a difusão do conhecimento representam um acionador para o desenvolvimento social e sustentável. É possível encontrar exemplos como esse no exame da experiência internacional, mas a participação e a construção das conquistas nos estudos multidisciplinares por pesquisadores nacionais destacam o rastro da qualidade dessas pesquisas na produção de conhecimento e na formação de pessoas capazes de criá‐lo e usá‐lo se tornando essencial à movimentação da fronteira do conhecimento.
No ano de 2011, três docentes do PPGCTS, com visões, trajetórias e produções acadêmicas bastante distintas se lançaram mais uma vez ao desafio de oportunizar ao grupo de discentes ingressantes a inserção ao campo CTS.
Através de leituras, discussões, palestras e estratégias inovadoras de ensino e aprendizagem, os trabalhos foram
realizados, objetivando também instigar e mobilizar os discentes, com seus respectivos orientadores na produção de textos acadêmicos que retratassem este movimento coletivo. A disciplina tornou‐se um observatório importantíssimo das proposições deste grupo de ingressante no campo CTS que nos permitiu a presente sistematização e disponibilizamos neste momento à comunidade acadêmica para leitura e diálogo sobre os desafios e a importância da construção da interdisciplinaridade, em particular no âmbito dos estudos CTS.
A prospecção, a eleição de certos focos sem prejuízo da pesquisa motivada pela curiosidade do aluno, o futuro cientista, reconhecidamente tão importante, busca a análise constante das oportunidades e dos desafios a serem atacados na compreensão das complexidades impostas pelo futuro incerto e as responsabilidades de prover estudos para minimizar ou superar os desafios.
A diversidade de temas é grande: a problemática ambiental, a responsabilidade ativa, o direito autoral e a tecnologia, citricultura, indicadores de inovação, mangás, tecnologia social, blogs, turismo, conhecimento tradicional, alfabetização científica, políticas de saúde, controle social, mudanças climáticas, logística, divulgação científica, tesauros multilíngües, fundo documental, dentro outros temas que chamarão a atenção do leitor, pois retratam algumas das diversas possibilidades de estudos e pesquisas realizadas no PPGCTS.
A junção de atividades acadêmicas, tecnológicas, culturais e de mercado resulta de um processo de amadurecimento das conexões entre as áreas de conhecimento, destacando a atuação humana através da sua criatividade, surgindo como um recurso renovável na sociedade. Sendo multiplicada através dos processos de mudanças que a sociedade vem sofrendo, ao longo da sua história, na busca de conciliar seus desejos presentes e futuros.
Este livro é para nós “obra aberta” em um campo em construção, donde se justifica o tema escolhido pelos organizadores para o presente trabalho: TECENDO A INTERDISCIPLINARIEDADE NO CAMPO CTS Recomendamos a todos boa leitura e convidamos uma vez mais ao diálogo interdisciplinar.
Wilson José Alves Pedro Wanda Aparecida Machado Hoffmann
Valdemir Miotello
Professores da UFSCar, também no Programa CTS Maio de 2012
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A Problemática Ambiental redefinindo o Estatuto de Verdade Científica
Allan Rogério Veltrone
Thales Haddad Novaes de Andrade
Introdução
Nas ultimas décadas as questões ambientais superaram a etapa de reivindicações de determinados grupos, e passaram a se configurar como um projeto de sociedade, entremeando‐se em diversos setores e abordagens. Isso devido a mudanças paradigmáticas ocorridas nos debates em torno da questão, a partir da década de 1980, com o reconhecimento da necessidade de se incorporar as demandas sociais (INOUE, 2006). Mesmo antes desse período, na verdade, pois desde a Conferência de Estocolmo (1972), estabeleceu‐se um quase consenso de que a variável ambiental não poderia ser pensada em separado da variável social, e mesmo o desenvolvimento econômico não poderia ser pensado de maneira independente da preservação ambiental. (KECK e SIKKINK, 1998: p. 125, apud INOUE, 2006).
O discurso contestador vem então cedendo espaço para um discurso de colaboração multidisciplinar e esforços múltiplos, com o envolvimento de setores sociais heterogêneos, dado o reconhecimento da universalidade da questão ambiental (FERREIRA, 1999).
O presente artigo pretende analisar as variáveis culturais dos atores em jogo, argumentando que a ciência é um instrumento de construção de conhecimento da natureza. Sendo assim, está inserida em uma determinada cultura, que é socialmente construída. A aplicação dos conceitos abstratos científicos (LATOUR, 2000; 2001), resulta na técnica, a qual, por sua vez, vem
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sendo questionada quanto os seus limites e a sua capacidade de promover bem estar social (VELHO, 2009), por parte do que denominaremos neste artigo de pensamento ambientalista.
Existem diversas correntes e movimentos sociais que podem ser designadas por ambientalistas. O tipo ideal (WEBER, 1985) do pensamento ambientalista com o qual trabalharemos aqui se constrói pelo conceito de cultura critica a modernidade, na qual o pensamento científico se insere (FERREIRA, 1999).
Procuraremos relativizar o conceito de verdade cientifica demonstrando suas origens históricas em relação à concepção de natureza, e faremos uma desconstrução critica de seus métodos, de modo a ilustrar como a ciência é uma construção.
Argumentaremos também que decisões embasadas em pareceres técnicos freqüentemente atendem a interesses de grupos específicos, e, mesmo em situações onde se busca um acordo, como na proteção do patrimônio intelectual de comunidades tradicionais, os acordos operam dentro da gramática de uma determinada cultura.
Ciência como visão de mundo
Faremos agora, uma desconstrução critica da ciência
moderna. Para este fim, faremos um breve esboço da historia do pensamento ocidental em relação à natureza, e uma crítica antropológica da sociedade moderna.
Keith Thomas (1996) trata das atitudes dos homens para com os animais e a natureza durante os séculos XVI, XVII e XVIII. O autor expõe os pressupostos que fundamentaram as percepções dos ingleses no início da época moderna frente à natureza.
Os animais eram classificados pelos zoólogos, no início desse período, conforme sua estrutura anatômica e seus hábitos. No entanto, eram também classificados de acordo com sua utilidade para o homem. A existência de uma linha divisória nítida entre
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homens e animais serviria de justificativa para que os homens os utilizassem conforme lhes convinha. Essa divisão teve conseqüências importantes, e legitimava os maus‐tratos àqueles homens que viviam em uma condição tida como animal (“selvagens”, negros, pobres, mulheres, etc.). Os intelectuais, poetas e pensadores contribuíram para que os animais fossem incluídos dentro da doutrina da piedade cristã, e, no final do século XVIII, essas preocupações eram evidentes entre as classes médias inglesas (THOMAS, 1996).
No inicio do período moderno, os cientistas naturais propuseram classificações taxonômicas menos antropocêntricas, o que contribuiu para uma mudança de atitude em relação aos animais. O saber científico, entretanto, fora separado do saber popular (THOMAS, 1996).
Turner (1990) defende a idéia de que a expansão européia é antes de tudo uma “aventura do espírito”. Mas um espírito que possui um corpo, que necessita interagir com a natureza. Necessidades psíquicas moldando a natureza, tanto econômica quanto simbolicamente.
Em todas as culturas, os mitos teriam a função pedagógica de conectar o individuo com o mundo onde vive (CAMPBELL, 1992). Acolhida por Roma em um período de crise e pessimismo, a seita do cristianismo teria sido apropriada e moldada pelo Estado. (TURNER, 1990). O cristianismo passa então a assumir um caráter histórico em oposição ao tempo cíclico do mito. Tornou‐se, no contexto, uma religião de negação da natureza, uma vez que propunha a repressão dos instintos, o desprezo pelo corpo em detrimento da alma e uma concepção de vida terrena irremediavelmente imperfeita e insatisfatória. A Igreja também havia delegado a construção do conhecimento somente ao clero (especialistas), demonizando a possibilidade de revelação mística aos fiéis, característica de diversas outras cosmologias, inclusive do cristianismo nos tempos iniciais de pequena seita (TURNER, 1990).
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Tal mitologia geraria uma sociedade constantemente insatisfeita (FREUD, 1996), sendo lançados os alicerces para a construção de uma Historia que se baseia na noção de progresso tecnológico cumulativo, pela via de transformação da natureza. (TURNER, 1990). Embora todos os mitos sejam uma tentativa de conforto diante do desconhecido, e, portanto controle da natureza (material e simbólico), no ocidente teria ocorrido uma hipertrofia desse impulso (MUNFORD, 1963 apud TURNER, 1990).
A partir daí o ocidente se lança então para a América, Ásia e África. E o mesmo impulso de sujeição da natureza encontraria aqui um novo vigor, uma vez que os nativos eram vistos como selvagens1, portanto, mais próximos da natureza.
Weber, ao longo de suas obras, nos fala da noção de desencantamento do mundo, um movimento de secularização da ontologia ocidental promovido pela ciência e pelo cristianismo, na sua faceta protestante (WEBER, 1985). No entanto, será a ontologia ocidental de fato objetiva em relação à natureza?
Poder‐se‐ia objetar que o expansionismo europeu foi motivado por causas puramente econômicas, e não culturais. No entanto, não se pode dizer que ouro e prata sejam necessidades puramente econômicas. (TURNER, 1990)
Sahlins (2003) discorre sobre o totemismo2 na sociedade capitalista. O autor procura mostrar como a valorização de determinadas carnes e cortes não segue somente critérios de
1 A percepção de indígenas como mais próximos da natureza ainda permanece, embora essa característica tenha adotado uma conotação positiva (GORDON, 2000). No entanto, ainda é uma representação simplificadora, pois, como demonstra a etnologia, as concepções ameríndias de natureza podem ser bastante complexas, não operando em uma interface direta entre necessidades orgânicas e meio ambiente. (BRIGHTMAN, 1993; CADOGAN, 1959; DESCOLA, 1987; VIVEIROS DE CASTRO, 2002)
2 Trata‐se de organizar a vida social fazendo‐se analogias com a natureza. Sahlins procura demonstrar que o totemismo também está presente em sociedades complexas, como a capitalista.
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ordem econômica. Haveria uma escala de humanização dos animais, onde os mais próximos, com os quais se desenvolve relações afetivas (como cães e gatos), não poderiam ser comidos. O mesmo valeria para os selvagens, que são os mais distantes do homem. O consumo destes animais também não seria valorizado. Restam os animais intermediários, como os bois, estes sim podendo ser consumidos. Entretanto, ocorreria uma desvalorização de certas partes mesmo nesses animais: partes que lembram órgãos humanos, como rins e fígado. Tomando de uma análise da linguagem para a compreensão do problema, Leach (1983) afirma que a nomeação e a classificação da natureza obedecem a uma necessidade do pensamento de organização do caos. Os tabus seriam as substâncias inomináveis, inclassificáveis, ou, em suas próprias palavras, seriam “não coisas”.
Leach (1983) também observa, como posteriormente faz Descola (1998), que se confere um trato mais “humano” com animais que são considerados nossos próximos.
Mas o pensamento científico, também é uma cultura, uma linguagem. A exemplo dos mitos, a ciência também visa ordenar o mundo. Seu mecanismo de inteligibilidade e operacionalização consiste em desconstruir os objetos (a natureza) e transformá‐los em conceitos abstratos, se tornando operacionalizáveis a partir daí (LEVI‐STRAUSS, 2009).
Através de uma série de rupturas e etapas de mediação, o objeto vai sendo transformado em uma inscrição literária (LATOUR, 2000; 2001).
Latour (2000; 2001) cita como exemplo um caso onde um grupo de cientistas se reúne para decidir se em um determinado local com características hibridas dos biomas cerrado e Amazônia, o cerrado estaria invadindo a floresta ou o contrario.
Inicialmente, tiram fotos aéreas, e confeccionam um mapa. Dividem então a floresta em quadrantes segundo coordenadas
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cartesianas (conceito abstrato), quadrantes estes que serão referidos no mapa.
Em cada um dos quadrantes, são retiradas amostras do solo. Os torrões do solo, por sua vez, são peneirados, de modo a ficarem livres de insetos, pedras, folhas etc., situação esta que não pode ser encontrada no objeto empírico. Uma vez limpos, os torrões de solo são classificados e nomeados de acordo com uma escala cromática.
Enfim, chega‐se a um veredicto: a floresta está invadindo o cerrado. Tal conclusão, é claro, não possui legitimidade se não for transformada em um relatório de pesquisa. Enfim, o objeto, reduzido a sua essência ‐conforme a visão cientifica‐ pode ser transformado em uma inscrição literária –abstração‐ (LATOUR, 2000; 2001; LORENZI, 2010). E a partir daí, decisões políticas possivelmente serão tomadas.
Processos como este, sendo repetidos, dão origem a teorias. E assim se elabora a linguagem cientifica. Por construção, mas também por convenção. Qualquer um que deseje conhecer este objeto chegará a mesma conclusão. Mas desde que refaça os passos dos cientistas. Mesmo longe dos seus laboratórios, os cientistas transformam o objeto em laboratório (LATOUR, 2000; 2001). Só assim podem interagir com a natureza empírica, através da linguagem e da cultura. Não se trata, portanto de um conhecimento direto e objetivo do objeto.
Questões ambientais e as Dimensões políticas da ciência
Os pareceres técnicos em relação a questões sócio‐políticas
emitidos por especialistas assumem legitimidade devido ao pressuposto de que foram realizados de acordo com os procedimentos de neutralidade científica. Pareceres competentes isentos de interesses, que pretendem solucionar conflitos (LATOUR, 2004; VELHO, 2010)
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Leite (2007) e Santos (2007), ao discorrer sobre a normatização do uso e das pesquisas em torno dos organismos geneticamente modificados ilustram um desacordo entre cientistas e ambientalistas quando falam de defesa de posições. Os atores que adotam uma postura anti‐transgênicos são representados por membros do Greenpeace, procuradores da república e representantes do Ministério do Meio Ambiente. O êxito em barrar a liberação dos plantios de transgênicos é atingido através da manipulação da opinião pública, com previsões apocalípticas e mal fundamentadas e expondo os intestinos da CTNBio. (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança)
A CTNBio adota uma postura de pesquisa descontextualizada, que assume que a técnica independe de questões históricas, sociais e ambientais. A título de exemplo de como essa posição pode ser problemática, Leite afirma que em um manual da CTNBio destinado a agricultores que iriam realizar um plantio de soja transgênica, era recomendado que as máquinas utilizadas na colheita deveriam passar por um procedimento de descontaminação antes de serem utilizadas no manuseio de soja não‐transgênica. Um procedimento tecnicamente eficaz. No entanto, não existe nenhum mecanismo para que a instituição se certifique de que o agricultor de fato fará isso. (LEITE, 2007)
Aqueles atores que defendem a liberação dos transgênicos ignorariam esse tipo de questão. Lutam para que o processo decisório seja encabeçado unicamente por técnicos e especialistas, que não levarão em conta as variáveis sócio‐ambientais. (LEITE, 2007). Santos (2007) afirma ainda que não só aos tecnólogos interessa que as coisas se dêem desta maneira, mas também as transnacionais. E, além disso, os tecnólogos estariam recebendo financiamento de setores ligados ao
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agronegócio, que não tem interesse em adiar a implantação destas novas tecnologias para que novas pesquisas sejam feitas.
O que as duas posições fundamentalistas têm em comum, é que utilizam métodos que não incentivam a pesquisa. Os setores ambientalistas, também não admitem um diálogo e uma discussão acerca dos instrumentos regulatórios. No entanto, a opinião pública espera que comunidade científica seja a reguladora desse tipo de questão. (LEITE, 2007).
Vandana Shiva (2001), discorrendo sobre os mecanismos de proteção do patrimônio intelectual de comunidades tradicionais, afirma que tratados como o Acordo Geral sobre Tarifas e Comercio (que legisla sobre os referidos direitos de propriedade intelectual) substituem as antigas bulas papais que davam aos europeus o direito de gerir as terras e os nativos conquistados. O critério de validação do conhecimento pela comunidade cientifica é a impessoalidade, o que não ocorre com as comunidades tradicionais. Sendo assim, o conhecimento tradicional só teria validade quando fosse despersonalizado. (ALMEIDA, 2008). No entanto, a autora afirma que os cientistas não tiram suas premissas de simples observação, mas direcionam suas pesquisas de modo a atender os interesses de determinadas comunidades epistêmicas. Sendo assim, o conhecimento tradicional teria a mesma validade, segundo a autora. E, além disso, as patentes cessariam os mecanismos criativos das populações, e substituiria o valor intrínseco do conhecimento por seu valor instrumental. (SHIVA, 2001)
O mesmo afirma Boaventura Santos, que concorda com a idéia de colonização do real (SHIVA, 2001) onde existiriam diferentes realidades provenientes de diversas comunidades epistêmicas, mas com uma se impondo sobre as demais (INOUE, 2006; SANTOS, 2007).
Os movimentos ambientalistas pretendem estender direitos políticos a natureza, que está fora da política, o que a principio
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seria uma contradição, uma vez que a política é definida como sendo compostas por arranjos sociais, ao contrário da natureza, que seria concebida como sendo regulada por leis isentas de subjetividade (LATOUR, 2004).
Os ambientalistas e os cientistas naturais pretendem “falar pela natureza”. Em outras palavras, seriam os porta‐vozes das “coisas que falam por si”. No entanto, este processo não é assim tão objetivo, uma vez que as conclusões científicas passam antes por uma discussão, mesmo jogos de poder “no interior dos laboratórios”, como visto no exemplo das pesquisas envolvendo organismos geneticamente modificados. Mas Latour afirma que o ambientalismo (que ele denomina ecologia política), estaria em uma posição mais confortável do que a dos cientistas, uma vez que não chega a acreditar totalmente nos métodos impessoais da ciência, mesmo na separação entre sociedade e natureza, podendo se beneficiar com uma reestruturação radical. Reestruturação esta que já estaria sendo feita, uma vez que em acordos como o Protocolo de Kyoto, participam na mesma câmara, tanto tecnólogos como policy makers. (LATOUR, 2004)
Conclusão
A problemática ambiental aparece como uma oportunidade
de reestruturação de saberes, um dos rumos que podem tomar os estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade.
A correlação entre técnica e demandas sociais vem sendo contemplada por esse campo. No sentido de aprofundar a discussão, o artigo pretendeu mostrar que a ciência opera dentro de uma linguagem e uma cultura, que por sua vez interage com outras culturas.
Nosso foco foi a construção de conhecimento sobre a natureza. Embora com pretensões de conhecimento real sobre este objeto (em oposição a representação cultural), a ciência o faz
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dentro de uma dada linguagem. O projeto de construção da ciência se insere dentro do projeto da modernidade. Este projeto, no entanto, esbarra com os limites naturais do planeta.
Sendo assim, a crítica ambientalista pode conduzir a uma nova racionalidade de produção de conhecimento e aplicação da técnica. Mas para que isso ocorra, é necessário uma ciência auto‐consciente. Consciente de seu estatuto de linguagem de construção de conhecimento, mas uma linguagem entre outras.
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22
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WEBER, M. 1985. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira. 4a ed.
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Ensaio sobre a responsabilidade ativa no campo da Ciência, da Tecnologia e da Sociedade
Allan Tadeu Pugliese
Valdemir Miotello
Introdução Qual seria o papel dos cientistas, das indústrias, do governo e
da sociedade no desenvolvimento de um país e do mundo? E no desenvolvimento das pequenas comunidades? Com essas questões que já estão dentro do senso comum, começamos a pensar e repensar a responsabilidade ativa de alguns desses papeis e como o campo do CTS pode e deve posicionar‐se para ajudar a construir ciência voltada para a sociedade e preparar a sociedade para a ciência. Vamos começar esse estudo com uma rápida introdução aos campos do CTS, relacionando com o pensamento Bakhtiniano, que também permeia toda a discussão sobre a responsabilidade ativa. Trazendo algumas discussões ainda sobre tecnologia, gestão, políticas públicas entre outros pensamentos desse campo tão abrangente.
Por último levantaremos novas questões e hipóteses que ficaram durante esse estudo, que permeiam a responsabilidade ativa e os campos da Ciência, Tecnologia e Sociedade, principalmente suas teorias.
Um pouco sobre os estudos do CTS Para começar nossa discussão sobre o Campo CTS, vale
pensar na concepção positivista da ciência, um pensamento muito frequente em diversos espaços acadêmicos e nos meio de divulgação (BAZZO, 2003:120) e que ainda permeia o pensamento escolar em diversos níveis .
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A concepção clássica das relações entre a ciência e a tecnologia com a sociedade é uma concepção essencialista e triunfalista, que pode resumir‐se em uma simples equação “modelo linear de desenvolvimento”: + ciência = + tecnologia = + riqueza = + bem‐estar. (BAZZO, 2003:120)
Nesse modo linear de pensar, parece muito fácil atingir o bem
estar social, de forma individualista. Em momento algum vemos nessa “equação” uma preocupação com outros países ou com outras sociedades. É como se apenas os países ou sociedades que tem dinheiro para investir em ciência, vão conseguir ter mais tecnologia, mais riquezas e mais bem estar; aumentando assim a discrepância e a desigualdade entre as pessoas no mundo.
Nesta visão clássica a ciência só pode contribuir para o mais bem‐estar social esquecendo‐se da sociedade, para dedicar‐se a buscar exclusivamente a verdade. A ciência, então, só pode avançar perseguindo o fim que lhe é próprio, a descoberta de verdades e interesses sobre a natureza, se se mantiver livre da interferência de valores sociais mesmo que estes sejam benéficos. Analogamente, só é possível que a tecnologia possa atuar como cadeia transmissora na melhoria social se a sua autonomia for inteiramente respeitada, se a sociedade for preterida para o atendimento de um critério interno de eficácia técnica. Ciência e tecnologia são apresentadas como formas autônomas da cultura, como atividades valorativamente neutras, como uma aliança heróica de conquista cognitiva e material da natureza. (BAZZO, 2003:120)
Os interesses da ciência cada vez mais se distanciam dos
interesses sociais e culturais, com a premissa de que a ciência deve ser neutra e buscar a verdade. Mas que verdade? Vamos pensar um pouco sobre as palavras russas para os dois tipos de verdade.
Na Tradução do livro Para a filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010) temos a marcação de duas palavras em russo‐ PRAVDA e INSTINA‐ que, em nosso idioma são representadas pela mesma palavra: Verdade
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Aproveitando o texto do Grupo de estudos dos gêneros do discurso, presente no livro Palavras e contra palavras II: conversando sobre os trabalhos de Bakhtin (NAGAI, MIOTELLO, 2010) o qual exemplifica essa relação entre as palavras.
A Instina, uma verdade dura, imutável, universal e feita de momentos gerais, herança do racionalismo que considera o ato superficialmente, sem contar os fatores emotivo‐volitivos ativo. Já a Pravda enuncia todos os movimentos do ato em questão, transformando‐o em único, uma verdade possível para aquele momento, para aquela situação, para aquele outrem a partir do meu lugar único. (NAGAI, MIOTELLO, 2010:57)
Na ciência positivista, vemos uma busca pela verdade única e
universal (Instina), como se apenas uma verdade existisse e que aquele ponto de vista “correto” deveria servir para tudo e para todos. Já na construção de uma ciência e tecnologia voltada para a sociedade, procuramos cada vez mais verdades adequadas para cada valoração cultural, para cada pedaço de mundo (Pravda). Com essa verdade que leva em conta a sociedade poderíamos melhor trabalhar em busca do bem‐estar.
Mas qual é esse bem estar que procuramos? Ele pode ficar delimitado apenas para nosso círculo social? Em sua fala de posse como presidente da AAAS (The American Association for the Advancement of Science) John P. Holdren (HOLDREN, 2009) elenca diversas atividades e problemas para conseguirmos atingir um bem‐estar social, para todos no planeta. Uma visão que almeja um mundo onde todos tenham o mesmo nível conforto e bem estar, de maneira sustentável, consumindo os recursos do planeta de forma consciente. Apesar de parecer muito difícil atingir esse ideal, ele parece ser um bom caminho para pensarmos qual bem estar queremos para o mundo.
Para Holdren, desenvolver consiste em melhorar a condição do ser humano em todos os aspectos, não só econômica, mas também sócio‐político e ambientalmente, e esse desenvolvimento
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sustentável significa fazê‐lo em pontos consistentes com a manutenção e melhoria indefinidamente e um bem estar sustentável é alcançar o desenvolvimento onde ele ainda não existe ou transformar nos lugares que ele existe, mas é insustentável. Para isso ele propõe cinco desafios a serem quebrados: pensar nas necessidades básicas dos pobres; uma gestão de concorrência para a terra, água e biotas (biomas +ecossistemas) do planeta, a manutenção e integridade dos Oceanos; dominar o dilema Energia – Economia ‐ Meio ambiente; e mover‐se em direção de um mundo sem armas nucleares. (HOLDREN, 2009).
Ele ainda marca as deficiências na Busca por um desenvolvimento sustentável: A pobreza, a prevenção de doenças, a degradação do ambiente, a disseminação da violência, a opressão dos direitos Humanos, o desperdício de potencial humano, o não uso, uso ineficaz, desvio do uso ou uso indevido intencional da ciência e tecnologia (como no desenvolvimento e implantação de armas de destruição de massa) ou acidental (como se manifesta nos efeitos colaterais do uso de herbicidas e antibióticos); a má distribuição de recursos e investimentos; a incompetência, má gestão e corrupção; o crescimento contínuo da população e a ignorância, apatia e negação, por falta de exposição à informação ou exposição sem convicção ou compreensão. (HOLDREN, 2009).
Ele ainda propõe que a ciência e a tecnologia podem ajudar, melhorando a compreensão sobre os perigos e possibilidades sobre os avanços na tecnologia; pensando nos avanços na tecnologia ajudando as necessidades humanas básicas e o crescimento econômico e a ciência e a tecnologia oferecendo base para ajudar os decisores públicos em suas avaliações. (HOLDREN, 2009).
As idéias de Holdren nos levam a pensar em nossa real função como estudiosos, que além de buscar as “verdades” é
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ajudar o nosso mundo a ser um lugar melhor. Talvez um dos principais problemas da ciência é que, durante muito tempo (e ainda hoje), ela tem um caminho comum sobre seu desenvolvimento, é primeiramente financiada para pesquisas para a guerra.
No rastro da história é preciso mencionar que o exemplo dos Estados Unidos será seguido pelo resto dos países industrializados ocidentais durante a guerra fria, que se envolveram ativamente no financiamento da ciência para a produção de armamentos para as guerras da Coréia e do Vietnã... Enfatizando a necessidade de financiamento público da pesquisa básica, poderíamos dizer, seguindo a Steve Fuller (1999, p.177 e SS.), que se matavam dois pássaros com um só tiro: por um lado promovia a autonomia da instituição científica frente ao controle político ou ao escrutínio público, deixando nas mãos dos próprios cientistas a localização dos recursos próprios do sistema de incentivo do conhecimento e, por outro, favorecia‐se uma projeção de longo prazo de pesquisa que, segundo a experiência de guerra, havia demonstrado ser necessária para satisfazer as demandas militares no âmbito da inovação tecnológica. Somente deste modo podia‐se avançar até esta fronteira sem fim, até a verdade como meta inalcançável, tomando a título do escrito de Bush. (BAZZO, 2003:122)
Assim, contrapondo a idéia de Holdren, que caminha para
um mundo sem armas nucleares, vemos que a tendência seria cada vez mais termos armas (nucleares ou não). Apesar de que muitas pesquisas que a princípio eram para guerra, e depois se voltaram para a sociedade como produtos de bens de consumo, vemos que é muito mais fácil os governos financiarem a guerra do que o bem estar humano.
Seguindo a idéia de Holdren, temos um exemplo citado no trabalho de DAGNINO, BRANDÃO e NOVAES, sobre Mohandas Karamchand Gandhi (1869 — 1948) e seu trabalho na Índia, aproveitando‐se de uma tecnologia que já estava obsoleta (a forma de Tear através do Charkha) para mudar a sociedade de castas da índia, onde a desigualdade social só aumentava.
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Entre 1924 e 1927, Gandhi dedicou‐se a construir programas, visando à popularização da fiação manual realizada em uma roca de fiar reconhecida como o primeiro equipamento tecnologicamente apropriado, a Charkha, como forma de lutar contra a injustiça social e o sistema de castas que a perpetuava na Índia. Isso despertou a consciência política de milhões de habitantes das vilas daquele país sobre a necessidade da autodeterminação do povo e da renovação da indústria nativa hindu, o que pode ser avaliado pela significativa frase por ele cunhada: “Produção pelas massas, não produção em massa”. (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004:5)
Assim, podemos pensar que, além de trabalhar em grandes
avanços para a tecnologia, também cabe aos cientistas pensar como pequenas mudanças podem e devem melhorar a vida em comunidades pobres, por exemplo.
Essa perspectiva de trabalho já existe, mas ainda parece, principalmente aqui no Brasil, algo muito distante da realidade.
Durante as décadas de 1970 e 1980, houve grande proliferação de grupos de pesquisadores partidários da idéia da TA nos países avançados e significativa produção de artefatos tecnológicos baseados nessa perspectiva. Embora o objetivo central da maioria desses grupos fosse minimizar a pobreza nos países do Terceiro Mundo, a preocupação com as questões ambientais e com as fontes alternativas de energia, de forma genérica e, também, referida aos países avançados, era relativamente freqüente. (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004:7)
Cabendo assim a cada um de nós, tanto atores da academia
quanto da sociedade, pensar em nossa responsabilidade na singularidade de cada ato. Levando a discussão para nossa responsabilidade junto com a tecnologia e as mudanças sociais.
A responsabilidade ativa dos atores da Ciência, da Tecnologia e da Sociedade Quando proposto um estudo geral sobre a ciência, tecnologia
e a sociedade, sempre entramos no embate que a sociedade
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precisa participar das decisões dos gestores público, juntamente com os cientistas, para construir uma tecnologia que realmente saia da academia e atinja todos os níveis sociais, pensando tecnologias mais viáveis para resolver problemas (sociais e ambientais) mais urgentes, tanto em macro sistemas (como países inteiros) quando em micro sistemas (como uma comunidade pobre). Porém quando vemos mais de perto essa interação, acontece que pessoas despreparadas e que desconhecem a ciência podem levar a decisões errôneas.
A percepção pública da ciência e da tecnologia é, além de tudo, um pouco ambígua. A proliferação de mensagens do tipo otimista ou catastrófica em torno do papel desses saberes, nas sociedades contemporâneas, tem levado a que muitas pessoas não tenham uma idéia muito clara do que é a ciência e qual seu papel na sociedade. A isto se soma um estilo de política pública sobre a ciência incapaz de motivar uma participação que contribua para o debate aberto acerca desses assuntos e, em geral, para favorecer sua apropriação por parte das comunidades (BAZZO, 2003:13)
Mas também temos exemplos de como essa relação
transforma a tecnologia. Mesmo que indiretamente, a sociedade impõe mudanças – que no nosso sistema capitalista atual poderíamos chamar de mudanças mercadológicas ‐ para novos usos da tecnologia. Dentro do estudo do CTS existe uma corrente, a do construtivismo tecnológico, que propõe essa mudança impulsionada pela sociedade. Um bom exemplo seriam as mudanças que ocorreram com a bicicleta ao longo dos anos.
Os fundadores do construtivismo – Bijker e Pinch – ilustram esse argumento com a história de um conhecido artefato tecnológico: a bicicleta. Trata‐se de um objeto que, como tantos outros, seria hoje visualizado como uma “caixa‐preta”. De fato, começou sua existência com formas.
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Sobre o marco analítico‐conceitual da tecnologia social muito distintas, que iam desde um equipamento esportivo até um veículo de carga. Sua roda dianteira mais alta, necessária naquele tempo para alcançar maior velocidade (a força de tração era exercida diretamente na roda dianteira) numa bicicleta usada como equipamento esportivo, causava instabilidade, numa bicicleta empregada como veículo de transporte, ou desconforto para as mulheres com longos vestidos (Pinch e Bijker, 1990). Em sua forma final, observa‐se que rodas de igual tamanho foram sendo paulatinamente adotadas visando à segurança em detrimento da velocidade. Não obstante, durante certo período, os dois projetos que atendiam a necessidades diferentes conviveram lado a lado. Essa temporária ambigüidade do artefato tecnológico bicicleta foi chamada de “flexibilidade interpretativa”. Tal conceito aponta para o fato de que significados radicalmente distintos de um artefato podem ser identificados pelos diferentes grupos sociais relevantes, que outorgam sentidos diversos ao objeto de cuja construção participam. Isso não significa que eles não compartilhem um significado especial do artefato: aquele que é utilizado para referenciar as trajetórias particulares do desenvolvimento que ele percorre. (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004:25)
Sempre que pensamos nisso, entramos em um efeito “bola‐de‐
neve” onde a sociedade precisaria participar mais ativamente, porém precisaria estar mais bem informada e querer participar desse encontro ciência, tecnologia e sociedade.
Mas o que é participar ativamente? Vamos usar agora alguns exemplos do trabalho de Mikhail Bakhtin, em um de seus primeiros escritos (1924) publicado no Brasil em 2010 com o nome de Para uma filosofia do ato responsável. Logo no começo dessa edição, Augusto Ponzio, no texto de abertura já demonstra que, responder ativamente em seu singular, sabendo sim que vivemos em uma comunidade (plural), mas sem buscar álibis para nossas decisões (ou até mesmo a falta delas) é buscar melhor qualidade de vida.
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Trata‐se também de uma questão que toca diretamente a vida de cada um e que produz um profundo impacto sobre ela, de uma questão em que entra em jogo a qualidade de vida, o reconhecimento da diferença singular de cada um, pelo fato de que a organização social mesma, a modelagem cultural mesma da vida, funciona sobre a base de classificações, de fechamentos, de atribuições de pertencimento, recorre ao gênero, ao universal como condição da identificação, da diferenciação, da individuação. (PONZIO in BAKHTIN, 2010:17)
Bakhtin, durante seu texto, luta contra o que ele chama de “a
crise do século XX” que seria a falta de comprometimento sobre os atos. Algo que parece muito comum aos dias de hoje, onde em todos os atos, procuramos álibis para nos ausentarmos da responsabilidade. A mídia é muito boa em construir esses álibis. Pegue qualquer fato catastrófico que tenha ocorrido. Em poucas horas já vemos diversos profissionais especulando que determinado ato ocorreu por um problema social, genético ou até mesmo divino. Nunca escutamos alguém ativamente assumir a culpa e dizer, mesmo pelos fatores sociais, culturais e genéticos, eu cometi um erro, eu decidi e decidi equivocadamente.
Não é o contexto da cultura que uma afirmação emotivo‐volitiva adquire seu tom; tida a cultura na sua totalidade vem integrada a um contexto unitário e singular da vida do qual participo. Vem sendo integrados, seja cultura no seu conjunto, seja cada pensamento singular, cada produto individual do ato vivo no contexto unitário e singular do pensamento como evento real. O tom emotivo‐volitivo interrompe o isolamento e a autossuficiência do conteúdo possível do pensamento, incorpora‐o existir‐evento unitário e singular. Cada valor que apresente validade geral se torna realmente válido somente em um contexto singular. (BAKHTIN, 2010:90)
Bakhtin ainda diz que sempre que nos abstraímos da
responsabilidade, não estamos isentos da parcela da culpa. Quando me abstraio eu decido que decidam por mim, logo eu também devo assinar aquela decisão do outro como minha.
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Somente do interior de minha participação pode ser compreendida a função de cada participante. No lugar do outro, como se estivesse em meu próprio lugar, encontro‐me na mesma condição de falta de sentido. Compreender um objeto significa compreender meu dever em relação a ele (a orientação que preciso assumir em relação a ele), compreendê‐lo em relação a mim na singularidade do existir evento: o que pressupõe a minha participação responsável, e não minha abstração. (BAKHTIN, 2010:66)
É percebido, cada vez mais, tanto na sociedade quanto na
academia um comodismo a “não decisão”, como se a posição escolhida fosse muito pequena e não tivesse efeito. Isso seria a não decisão, e depois a procura de álibis para dizer, tal coisa aconteceu, mas eu não tenho nada a ver com isso. A responsabilidade como agentes sociais dentro e fora da academia e de fiscalizar e exigir ativamente do governo e da academia novas políticas e tecnologias que resolvam grandes e pequenos problemas, globais e únicos daquele pequeno grupo social.
Apesar do otimismo proclamado pelo promissor modelo linear, o mundo foi testemunha de uma sucessão de desastres relacionados com a ciência e com tecnologia, especialmente desde os finais da década de 1950. Vestígios de resíduos contaminantes, acidentes nucleares em reatores civis de transportes militares, envenenamentos farmacêuticos, derramamentos de petróleo, etc. Tudo isso nos ajuda a confirmar a necessidade de revisar a política científico‐tecnológica di laissez‐faire e do cheque‐em‐branco e, com ela, a concepção mesma da ciência‐tecnologia em relação a sociedade. (BAZZO, 2003:123)
Bakhtin ainda “apela” para a posição de cada um no seu
singular, e que esse singular construa o comunitário. Que cada um coloque um ponto de vista e assine responsivamente sobre ele. Cada um tem seu próprio momento e seu próprio ato, que não pode ser feito por outra pessoa. Se assim fosse, seria outro ato e outra relação, não aquela que você tinha em determinado momento.
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Quanto mais a singularidade individual se mantém longe da unidade teórica, tanto mais se torna concreta e plena: a unicidade do existir evento que se executa realmente em toda a sua variedade individual, de cujo limite extremo se aproxima o ato na sua responsabilidade. A inclusão responsável na singularidade única reconhecida do ser‐evento é o que constitui a verdade[pravda] da situação. O momento do que é absolutamente novo, que nunca existiu antes e que não pode ser repetido, está aqui em primeiro plano, e constituí uma continuação responsável no espírito da totalidade, que foi uma vez reconhecida. (BAKHTIN, 2010:95)
Engelmeier é citado por Bazzo, como um autor que já pensou
a função dos tecnólogos e engenheiros como atores de atitudes mais responsáveis dentro da sociedade. Desenvolvendo projetos sociais e filosóficos que realmente pensasse o caminho que a tecnologia em relação com a sociedade e os seres humanos, não apenas sendo úteis, mas sendo elaborados de uma forma mais complexa.
Segundo Engelmeier, os tecnólogos e os engenheiros pensam que sua meta é elaborar produtos tecnológicos úteis. No entanto, esta é somente uma parte da tarefa profissional, visto que tecnólogos e engenheiros formam parte dos postos mais altos da dentro do status social, transformando‐se inclusive em homens de poder. Esta extensão das funções e da influência dos engenheiros e técnicos da vida social, conforme Engelmeier, não só pode considerar‐se positiva, mas também uma consciência do enorme crescimento econômico da sociedade moderna e é um bom sinal para o futuro das sociedades... Em suma Engelmeier se propôs como objetivo defender a necessidade de desenvolver um programa filosófico que abordasse a tarefa de definir o conceito de tecnologia, os princípios da tecnologia contemporânea, no qual se analisasse a tecnologia como um fenômeno biológico e antropológico. Esse programa filosófico estava também preocupado em analisar o papel da tecnologia na história da cultura, as relações entre a tecnologia e a cultura, a tecnologia e a ética, e a tecnologia frente a outros fatores sociais. (BAZZO, 2003:51‐52)
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Outros autores como Lenk, Moser, Rapp e Ropohl já pensaram em aproximar a sociedade e a política do trabalho dos engenheiros. Criando a filosofia da tecnologia. Inclusive, sem talvez ter uma relação com Bakhtin, eles já tendiam a um pensamento ativo/responsivo de todos os atores da sociedade, rompendo as barreiras da academia e trazendo avanços para o bem estar em todos os níveis da sociedade.
Graças ao debate estimulado pela VDI, Lenk, Moser, Rapp, Ropohl, dentre outros, desenvolveram um novo enfoque dentro da filosofia da tecnologia. Para estes autores, a tarefa da filosofia da tecnologia era desenvolver uma analise sistemática das atividades tecnológicas, que tornasse possível a aproximação dos políticos e do público ao trabalho dos engenheiros através da explicação desses tipos de atividade. A filosofia da Tecnologia devia propor também medidas éticas para a evolução da própria tecnologia. Finalmente, como assinala I. Hronzsky, a filosofia da tecnologia devia conduzir a uma alfabetização tecnológica do público, e a um impulso da dimensão ética da tecnologia para promover certa consciência ética acerca do desenvolvimento tecnológico (Hronzsky, 1998, p101). Em sua obra Para uma filosofia da tecnologia interdisciplinar e pragmática: a Tecnologia como centro de uma reflexão interdisciplinar e uma investigação sistemática, Hans Lenk e Gunter Ropohl (1979) sustentavam que os problemas do mundo tecnológico dado seu caráter multidimensional, só podem ser abordados com alma possibilidade de êxito partindo do pressuposto de uma participação ativa dos generalistas das ciências sociais e dos universalistas da filosofia; e resolvidos de forma adequada, contando com a contribuição dos especialistas em engenharia. Para esses autores se faz necessária uma cooperação efetiva entre engenheiros e filósofos que se estenda pelos obsoletos departamentos e rompa com as fronteiras acadêmicas. (BAZZO, 2003:62)
Retomando o problema citado acima, sobre como a sociedade
pode e deve atuar, e o fator da falta de informação criar opiniões errôneas sobre os caminhos que devemos tomar, podemos pensar que uma das funções do estudo em CTS seria como educadora em todos os níveis de ensino (escolar, técnico e
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acadêmico) para criar um olhar Ativo/responsivo de CTS em todas as pessoas, organizações e empresas. Levantando assim nossa responsabilidade como pessoas, independente do nível que estamos, de buscar um mundo melhor.
Somente sendo eu mesmo, único, em todo o existir; todos os outros eus (teóricos) não são eu para mim; por sua vez, este meu único eu (não teórico) participa do existir singularidade: eu sou nele. (BAKHTIN, 2010:98) O ato responsável é precisamente, o ato baseado no reconhecimento desta obrigatória singularidade. É essa afirmação do meu não‐álibi no existir que constitui a base da existência sendo tanto dada como sendo também real e forçosamente projetada como algo ainda por ser alcançado. (BAKHTIN, 2010:99)
O conhecimento e o avanço da tecnologia também são citados
como um fator libertador da sociedade, expandindo nossos horizontes. Sendo extremamente necessários para a construção de um mundo como o almejado por HOLDREN, (2009), onde todos teriam o mesmo nível de conforto e bem estar em todos os cantos do mundo, consumindo os recursos do planeta de forma consciente.
Mitcham descreve a sociedade que caracteriza como acometida pelo que chama <<desassossego romântico>>, manifestando uma atitude ambígua para com a tecnologia. Nela a vontade de tecnologia é uma forma da criatividade, que por manifestar‐se como tecnologia, tende a ocupar‐se menos de outros aspectos. Esta ambigüidade de repete desde o ponto de vista da ação pessoal, posto que esta sociedade acredita que a tecnologia engendra liberdade, mas separa da força necessária para exercitá‐la; pensa‐se que socialmente enfraquece os laços de afeto pessoais. Com respeito ao conhecimento, são mais importantes a imaginação e a visão que o conhecimento técnico. Finalmente, julga‐se que os artefatos expandem os processos da vida e revelam o sublime. (BAZZO, 2003:100‐101)
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Porém vale ressaltar que, quando pensamos em novas tecnologias, também estamos criando o desemprego tecnológico, no qual pessoas que trabalhavam fazendo determinada função (muitas vezes desumanas) são substituídas por máquinas que apresentam um custo mais baixo e uma economia a longo prazo.
Neles não tendia a ocorrer o mecanismo virtuoso observado nos países centrais, onde a introdução de tecnologias de maior produtividade criava, dada a então relativamente baixa taxa de substituição tecnológica, oportunidades de emprego, de remuneração freqüentemente superior, em novos ramos industriais. Não seria no “setor moderno” que o combate ao desemprego poderia ser travado. O “vazamento” das atividades mais intensivas em tecnologia, de maior valor adicionado e remuneração para o exterior – característica da situação de dependência –, e a escassa probabilidade de que os “desempregados tecnológicos” de inadequada qualificação pudessem ser retreinados e reincorporados à produção eram visualizados como um sério obstáculo. O desemprego demandava um tratamento global que ia, na realidade, no sentido contrário ao que propunha o “neoiudismo” imputado por seus críticos ao movimento da TA. Tratava‐se de proporcionar tecnologias aos que não tinham acesso aos fluxos usuais pelos quais elas se difundem. (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004:10)
Sendo assim, uma discussão que também deve permear o
trabalho dos profissionais em CTS, a responsabilidade de realocar essas pessoas no mercado de trabalho, em novas funções, com melhor remuneração e qualidade de vida. Considerações finais Nesse artigo, existe uma abertura para discussão de vários
pontos. O primeiro que gostaríamos de ressaltar é como o estudo em CTS é pensado por um lado mais objetivista, como o determinismo tecnológico e outro, no construtivismo social tecnológico, um lado mais psicossocial.
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No determinismo tecnológico é como se pensássemos que a responsabilidade das mudanças sociais é causada pela tecnologia (objetivismo), como se não tivéssemos responsabilidade nenhuma sobre essas mudanças sociais. É quase como se a tecnologia, depois de criada pelo homem se impusesse no tipo de vida que levamos, como se ela tivesse uma consciência própria, uma força e uma vontade maior do que realmente tem.
Já no que tange ao construtivismo social tecnológico, são as formas que a sociedade utiliza as tecnologias que encaminham para as mudanças da tecnologia, como no exemplo da bicicleta (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004:25) e suas mudanças. De fato ainda é preciso avançar mais nas leituras em vários autores, para poder conceituar de forma clara esse pensamento, assim pretendemos apenas demarcar essa hipótese que será mais aprofundada em outros estudos.
Outros dois pensamentos que merecem destaque são o pluralismo e a teoria da participação direta, essas duas frentes tentando juntar a sociedade nas escolhas políticas científicas, cada uma a sua visão.
Existem duas grandes teorias da democracia com relação ao tema da participação pública na gestão da política científico‐tecnológica: o pluralismo e a teoria da participação direta, que são fundamentais para definir quem participará. O pluralismo é uma teoria da democracia baseada nas ações dos grupos de interesse organizados voluntariamente. Os cidadãos assumem unir‐se para apoiar estes grupos a fim de fomentar seus interesses, de modo que o governo democrático é visto como funcionamento livre e bem sucedido destes grupos através da interação de uns com os outros e com o governo. A participação direta, em troca, fundamenta‐se na noção de que governabilidade democrática implica a intervenção dos indivíduos como tais no estabelecimento das diversas políticas. (BAZZO, 2003:136)
A ideia de juntar essas duas visões existe, pois, elas têm muito
em comum, as duas fazem com que os cidadãos assumam de
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forma responsável o ato dessa participação, ou como diria Bakhtin (2010) não apenas ajudar a formular os caminhos que a ciência deve tomar, mas assinar que aquela decisão faz parte dos pensamentos de todos.
A comparação das diferenças e das semelhanças nos proporciona uma visão maior e mais ampliado que significa defender que alguma forma de participação é democrática. Ambas teorias compartilham uma série de pressupostos comuns. Por exemplo, exigem que os cidadãos intervenham na formação das políticas de maneira que vão mais além do mero ato de depositar um voto em uma urna e deixar o resto para elite de políticos e o estado administrativo, para que se dê um adequado funcionamento a democracia. Ainda que a forma da participação difira, ambas teorias rechaçam aquela definição da democracia segundo a qual esta não é nada mais que um processo para eleger um governo no qual as elites competem para consegui o apoio das massas. As duas teorias requerem que a participação seja significativa em dois sentidos: que capacite melhor os cidadãos para compreender seus interesses e como estes podem afetar as decisões que tenham impacto sobre seus interesses, por um lado, e que prepare os cidadãos para que tenham alguma classe de influência substantiva sobre o resultado da política atual, por outro. (BAZZO, 2003:136)
Assim criando cidadãos ativos responsivamente que
interagem de forma construtiva para elaboração e pensamentos sobre os caminhos que a ciência deve tomar, mesmo que a participação de todos da sociedade seja uma ideia um tanto quanto utópica, uma solução poderia ser como citado por Dagnino; Brandão e Novaes, 2004 sobre o trabalho de dois autores, Callon e Latour, a criação de um o ator‐rede, que representa o papel da ciência, da tecnologia e da sociedade como um todo nos caminhos que devem tomar.
A abordagem do ator‐rede, extrapolando o conceito convencional de ator, cunha tal expressão para abarcar um conjunto heterogêneo de elementos – animados e inanimados, naturais ou sociais – que se relacionam de modo diverso, durante um período de tempo
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suficientemente longo, e que são responsáveis pela transformação – incorporação de novos elementos, exclusão ou redefinição de outros, reorientação das relações – ou consolidação da rede por eles conformada (CALLON, 1987). Esse conjunto de elementos estaria, então, formado não apenas pelos inventores, pesquisadores e engenheiros, mas também pelos gerentes, trabalhadores, agências de governo, consumidores, usuários envolvidos com a tecnologia e, mesmo, os objetos materiais (LATOUR, 1992). (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004:23)
Talvez, podemos também usar o nosso modo econômico,
capitalista, a nosso favor, vivemos agora a moda do sustentável, em que todas as empresas buscam ser mais responsivas. Que todas as modas e todos os meios da publicidade fossem assim – porém tomando os devidos cuidados para saber se esses discursos são verdadeiros ou não.
A discussão pública, o intercâmbio dialógico e a confrontação de dados, informações, argumentos e prospectivas que cada equipe de estudantes poderia reparar na situação escolhida serviriam para encenar uma possível avaliação construtiva de um desenvolvimento tecnológico. (BAZZO, 2003:71)
Que a moda para ciência agora fosse pesquisar e financiar
pesquisas que não foquem apenas em grandes coisas (como o genoma e as células troncos), mas também as pequenas mudanças sociais, como uma tecnologia ou técnica que melhora a vida e o conforto de uma pequena aldeia na áfrica, etc.. e que a ciência sempre pensasse no custo–benefício, mas colocando nos custos os elementos dos riscos para a natureza e para a sociedade.
Fechamos esse artigo com o pensamento muito trabalhado no campo CTS e que também terá nossa atenção nos próximos estudos: o caminho adequado para conseguirmos construir uma sociedade que saiba se relacionar bem com os avanços tecnológicos com as necessidades Macro e Micro sociais será
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através da educação em CTS, em todos os níveis de estudo (infantil, escolar, técnico, graduação e pós‐graduação) formando não apenas para o conteúdo, mas que eles saibam como construir o conhecimento juntos, de forma responsável e ativa, não como meros espectadores, mas como pessoas atuantes para o caminho do bem estar social.
As unidades curriculares CTS – ora integradas em programas já estabelecidos em ciência, tecnologia e engenharia, ciências sociais, ora em cursos de artes e línguas, ora estruturadas como curso independentes ‐ contemplam, geralmente, cinco fases: 1) formação de atitudes de responsabilidade pessoal em relação com o ambiente natural e com a qualidade de vida; 2) tomada de consciência em pesquisas de temas CTS específicos, enfocados tanto no conteúdo científico‐tecnológico como nos efeitos das distintas opções tecnológicas sobre o bem‐estar dos indivíduos e do bem comum; 3) tomada de decisões com relações a estas opções, levando em consideração fatores científicos, técnicos, éticos, econômicos e políticos; 4) ação individual e social responsável, orientada a levar para a prática o processo de estudos e tomadas de decisão, geralmente em colaboração com grupos comunitários (por exemplo, “oficinas de ciência” grupos ecologistas, etc.); 5) generalização a consideração mais amplas de teorias e princípio, incluindo a natureza “sistêmica” da tecnologia e seus impactos ambientais, a formulação de políticas nas democracias tecnológicas modernas, e os princípios éticos que possam guiar o estilo de vida e as decisões políticas dobre o desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, podemos chamar essas fases progressivas de “ciclo de responsabilidade” (WAKS, 1990, in BAZZO, 2003:145)
Referências BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João editores, 2010.
BAZZO, W. et AL [Eds.] Introdução aos estudos CTS (ciência, tecnologia e sociedade), Madrid: OEI, 2003
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DAGNINO, R.; BRANDÃO, F.C. e NOVAES, H.T. Sobre o marco analítico conceitual da tecnologia social. In: LASSANCE Jr, A. et al. Tecnologia Social – uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro, Fundação Banco do Brasil, 2004, p.15 a 64.
HOLDREN J. P. Science and Technology for Sustainable Well‐Being in SCIENCE VOL 319 25 JANUARY 2008 ‐ Downloaded from www.sciencemag.org on March 4, 2009
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Direito Autoral e tecnologia: apontamentos de novos caminhos para a circulação e acesso ao conhecimento
Alyssa Cecilia Baracat
Camila Carneiro Dias Rigolin Introdução
Direito Autoral é um tema central em debates acerca da produção, difusão e apropriação do conhecimento e da cultura, sendo a forma jurídica um instrumento de proteção para criadores de obras artísticas e literárias. Desde o princípio do desenvolvimento das regras e normas que regulam a proteção da propriedade artística e literária, existiam dois discursos que “constituíram uma tensão entre o ponto de vista das idéias como propriedade e a noção de cultura e conhecimento como naturalmente comunitários” (GANDELMAN, 2004, p. 72).
Embora o argumento da exclusividade da propriedade tenha sido adotado e estabelecido como a base para o direito da propriedade intelectual, o debate relativo à forma ideal de proteção e acesso dos bens imateriais ainda se encontra longe de estabilização e é mais intensificado pelas novas possibilidades de circulação trazidas pelas tecnologias da informação e comunicação (TICs).
Entende‐se que a circulação de tais bens é facilitada pelas TICs (entre elas a internet e as mídias digitais) e que a produção artística e literária não está limitada às fronteiras de um único Estado. Isto leva a discussões multilaterais em organizações internacionais como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), a UNESCO e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
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Portanto, no plano internacional as normas referentes ao sistema de regulação do Direito Autoral refletem o discurso de valorização da propriedade artística e literária, uma vez que o bem mais valorizado na dinâmica econômica da Sociedade do Conhecimento é o bem imaterial produzido pelo esforço intelectual. Por “Sociedade do Conhecimento” entende‐se a troca de informação potencializada pelas TICs que conferem novas possibilidades de produção, circulação e acesso ao conhecimento em nível global. Segundo CASTELLS (2005, p.69) existe:
[...] uma ralação muito próxima entre os processos sociais de criação e manipulação de símbolos (a cultura da sociedade) e a capacidade de produzir e distribuir bens e serviços (as forças produtivas). Pela primeira vez na história, a mente humana é a força direta de produção, não apenas um elemento decisivo no sistema produtivo.
Isto posto, este trabalho tem a finalidade de, primeiramente,
apresentar o histórico de construção do sistema de proteção dos direitos autorais abordando os aspectos de valorização da proteção de conhecimento que culminou no monopólio de emprego da propriedade intelectual para fins de competição na economia global dita liberal.
Posteriormente, é realizada uma análise que relaciona as normas que regulam os sistemas nacionais de proteção do Direito Autoral com as novas tecnologias de informação e comunicação, na tentativa de providenciar respostas para as seguintes questões: Será que estas normas ainda atendem, de forma satisfatória, às demandas das práticas sociais? Quais são as mudanças provocadas pelas TICs que incorrem na inadequação de tais normas e princípios à Sociedade do Conhecimento? Por fim, quais são as conseqüências destas mudanças no processo de produção e difusão do conhecimento?
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Para responder estas questões, será considerado o contexto internacional de proteção da propriedade artística e literária, além de documentos normativos que são a base para as legislações nacionais sobre a matéria. São estes documentos: a) Convenção de Berna para a Propriedade Artística e Literária, de 1886, documento que sofreu várias alterações e revisões no decorrer dos anos, a última em 1979, e é administrado pela OMPI e; b) o Tratado TRIPs (Acordo Relativo aos Aspectos da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio) criado em 1994 e administrado pela OMC.
Breve histórico do desenvolvimento do sistema internacional de proteção do Direito Autoral
O sistema internacional de proteção da propriedade
intelectual consolida‐se a partir do final do século XIX e é formado com base em princípios e normas já estabelecidos nos sistemas domésticos que foram amplamente aceitos por todos os Estados que participaram da realização dos tratados e convenções internacionais neste tema (GANDELMAN, 2004).
Estes princípios e regras foram permeados pelos valores atribuídos à teoria da propriedade privada, com o a fundamentação no Direito Natural e no pensamento liberal do século XVIII. O direito à propriedade era considerado natural do homem a partir dos esforços de seu trabalho e os esforços intelectuais também eram considerados os mais legítimos: “não há propriedade mais particular, mais legítima do homem que a produzida pelo trabalho de seu cérebro” 1.
Antes da criação do direito autoral existia um regime de concessões no qual as autoridades públicas concediam privilégios de impressão aos editores. Foi a noção emergente de 1 Preâmbulo do Copyright Law do Estado de Massachussets de 17 de março de 1783
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justiça natural, nos séculos XVIII e XIX, que inspirou a idéia de que eram os criadores merecedores da proteção e, desta forma, os privilégios de impressão foram substituídos pelo direito exclusivo atribuído ao criador do trabalho intelectual (HUGENHOLTZ, 2000). O autor, portanto, é o último elemento a ser socialmente reconhecido no sistema de produção de cultura e conhecimento, como coloca Martins (1957, p. 442‐443):
Socialmente o autor é o último elemento que aparece na história do livro. Quando isso ocorre já as grandes bibliotecas tinham inscrito sua existência no enorme tombo da humanidade; os manuscritos se haviam transformado em impressos; os tipógrafos célebres tinham conduzido a sua arte a um ponto extraordinário de perfeição. É estranho que apenas um personagem esteja faltando nessa verdadeira “commedia dell’arte” – o personagem sem o qual ela não poderia ter existido. Com efeito, pode‐se dizer que até o século XVIII a sociedade não reconhece o autor como uma identidade definida: individualmente considerado e celebrizado, conforme o grau de seu sucesso, o autor não tem existência social, não é uma das rodinhas da engrenagem.
Dessa forma, foram reproduzidas no cenário internacional as
normas de proteção da propriedade artística e literária centradas na pessoa do autor uma vez que os particulares se deram conta da “repercussão internacional dos seus direitos e da continuidade da sua personalidade jurídica, e começaram a apresentar propostas com conferência internacional sobre a matéria” (BASSO, 2000, p.87). Depois de alguns anos de negociação a Convenção da União de Berna foi estabelecida, em 1886, como uma convenção‐modelo que substituiria pouco a pouco os tratados existentes (BASSO,op. cit.), além de estabelecer os padrões mínimos para a proteção doméstica das obras
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artísticas e literárias, com o objetivo de harmonizar os sistemas legislativos de todos os Estados contratantes.
Após a Segunda Guerra Mundial a ordem internacional sofreu intensas transformações e o sistema tradicional de proteção da propriedade intelectual cedeu lugar para o sistema regulado a partir de organizações internacionais.
Em 1967, através da Convenção de Estocolmo, foi criada a OMPI com a finalidade de responder às novas necessidades geradas a partir do pós‐guerra, tais como o surgimento de novos Estados nacionais a partir dos processos de independência dos países da África e da Ásia, o crescimento da interdependência econômica entre os Estados e a intensificação do processo de globalização.
No entanto, a OMPI não dispunha de mecanismos de sanção aos infratores das regras de proteção e nem um sistema efetivo de aplicação das normas estabelecidas pelos acordos de propriedade intelectual. A partir deste momento, passou ao centro da discussão a necessidade de criar um novo regime de proteção para os bens imateriais.
A era da proteção comercial da propriedade intelectual
O reconhecimento da vinculação entre proteção da
propriedade intelectual – que abarca tanto a propriedade industrial quanto a propriedade artística e literária protegida pelo Direito Autoral – e aumento do comércio mundial consolidou‐se a partir das décadas de 70 e 80, quando “ficam evidentes os benefícios da proteção à propriedade intelectual como fator fundamental de desenvolvimento tecnológico e aumento dos investimentos diretos do exterior” (BASSO, 2000, p.160).
No início da década de 90, foi criada a OMC, agência internacional do sistema ONU que substituiria o antigo GATT
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(Acordo Geral de Tarifas e Comércio) estabelecido em 1947. A OMC passaria a administrar o TRIPS (1994) que realocou o sistema de proteção da propriedade internacional no âmbito do comércio. Nesta época estima‐se que 77% das exportações dos Estados Unidos continham produtos protegidos pela propriedade intelectual em contraposição a 10% estimados no final da década de 40 (COTTIER, 2007), sendo este país o maior interessado na proteção comercial dos bens imateriais.
Este rápido crescimento na importância da propriedade intelectual para o comércio internacional é refletido na mudança de regime, com forte influência norte‐americana, que passava da OMPI para o âmbito da OMC, organização que detinha mecanismos de sanção caso houvesse o descumprimento de normas dos acordos por parte dos Estados‐membros. A propriedade intelectual, portanto, tornou‐se uma espécie de monopólio, mesmo em meio à economia liberal.
As discussões acerca do desequilíbrio entre proteção e acesso aos bens imateriais não foram sanadas durante a mudança de regime. Também ficaram mais evidentes neste processo os conflitos de interesses entre os países industrializados e os países em desenvolvimento devido às assimetrias socioeconômicas. Restringindo a proteção da propriedade intelectual em termos de competição no comércio internacional, o debate sobre o desenvolvimento econômico e social possibilitado pelos bens imateriais não era tão evidente no âmbito da OMC.
Enquanto isso, as práticas sociais tratavam de estabelecer outras normas mediadas pelas novas tecnologias que se tornvam cada vez mais acessíveis.
O quadro descrito culminou numa contradição amplificada das questões de Direito Autoral que ultrapassava demandas meramente jurídicas:
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[...] para além das relações jurídicas entre os autores, editores, produtores, sociedade e Estado, existem inúmeras relações sociais que transcendem, em muito, o ʹpuroʹ discurso jurídico estatal e no plano internacional essas relações tornam‐se mais complexas e geram outras normatividades envolvendo esses mesmos personagens (STAUT, 2006, p. 28‐29)
A necessidade de acomodar e articular os atores e as normas
aplicadas nos diferentes níveis levou a uma necessidade de rever os princípios do Direito Autoral.
Revendo as normas de proteção a partir das TICs: um novo caminho para a produção e circulação do conhecimento
Para compreender a influência exercida pelas TICs na revisão
das normas de proteção da propriedade artística e literária é necessário considerar alguns princípios e valores que fundamentam o atual regime de proteção de Direito Autoral: o princípio da propriedade e o objetivo comercial da proteção.
O conceito jurídico de propriedade já sofreu alterações ocasionadas por inovações tecnológicas. Esta relação entre desenvolvimento tecnológico e propriedade é importante foco de vários autores do Direito da Propriedade Intelectual. LESSIG (2001) descreve que o conceito de propriedade nos Estados Unidos até a década de 40 abrangia não apenas a superfície da terra, mas tudo abaixo dela até o infinito do céu. No entanto, com a invenção do avião, o espaço aéreo passou a ser utilizado sem a “permissão” dos proprietários de terras. Diante de um processo, a Suprema Corte Norte‐Americana declarou públicas as vias aéreas e, dessa forma, alterou o conceito de propriedade. E no ambiente digital esta questão ganha nova perspectiva:
Throughout the time Iʹve been groping around cyberspace, an immense, unsolved conundrum has remained at the root of
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nearly every legal, ethical, governmental, and social vexation to be found in the Virtual World. I refer to the problem of digitized property. The enigma is this: If our property can be infinitely reproduced and instantaneously distributed all over the planet without cost, without our knowledge, without its even leaving our possession, how can we protect it? (BARLOW, 1993)2
Em relação ao objetivo comercial de proteção dos bens
imateriais, verifica‐se que existem outras funções essenciais para eles:
Depois da revolução industrial – que patrimonializou as relações jurídicas até pelo menos a primeira metade do século XX – vivemos hoje uma revolução tecnológica que tem de conviver com determinados fatos e acomodá‐los numa difícil equação: ao mesmo tempo em que a riqueza se desmaterializou, ou seja, os bens não materiais, intangíveis, são mais valiosos do que os bens físicos, o direito exige a funcionalização dos institutos, o que significa que a propriedade de tais bens não pode ser exercida arbitrariamente, devendo atender sua função social. (BRANCO, 2007)
Isto significa que a propriedade intelectual deve cumprir sua
função social, uma vez que o acesso ao conhecimento é fundamental para o desenvolvimento de um indivíduo. Esta função está prevista no direito e precisa ser colocada em prática.
2 Ao longo do tempo em que eu fui tateando o ciberespaço, um grande dilema, sem solução se manteve na raiz de quase todos os abusos jurídicos, éticos, governamentais e sociais encontrados no mundo virtual. Refiro‐me ao problema dos bens digitalizados. O enigma é este: Se a nossa propriedade pode ser infinitamente reproduzida e instantaneamente distribuída em todo o planeta, sem custo, sem nosso conhecimento, sem que mesmo deixando a nossa posse, como podemos protegê‐lo? (tradução livre)
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As TICs, e mais especificamente a internet, representam instrumentos facilitadores que atendem esta necessidade.
A OMPI, ao realizar as revisões da Convenção de Berna, incluía as tecnologias como objeto de proteção. Ou seja, quando uma nova tecnologia era criada como, por exemplo, a fotografia, esta seria incluída no escopo de conteúdo protegido pelos direitos autorais. O mesmo aconteceu com o cinema e com os softwares, estes últimos de grande importância para os Estados Unidos a partir da década de 80.
No entanto, os próprios objetos protegidos pelos direitos autorais, como os banco de dados e os softwares, estão imprimindo um novo significado nos processos sociais de produção, circulação e proteção dos bens imateriais. Os processos coletivos de construção de conhecimento, como as bases de dados abertas, os softwares livres e o creative commons, são exemplos que desafiam a noção de monopólio atribuída à propriedade intelectual e que permitem a sociedade formar normas alternativas às vigentes no atual regime de proteção da propriedade intelectual.
Para os campos de produção de conhecimento científico e artístico, a prática que Bourdieu denomina “interesse pelo desinteresse” adapta‐se às novas possibilidades de circulação dos bens imateriais. Ao contrário do que se observa na economia capitalista, os campos de produção científicos e artísticos representam uma economia antieconômica onde impera o interesse no desinteresse como forma de competir na concorrência regulada (BOURDIEU, 2004).
Estes campos encontram certa autonomia através das novas possibilidades de divulgação do conhecimento e da produção científica facilitadas, principalmente, através da internet. Desta forma, a prática da economia antieconômica intensifica‐se nestes espaços, onde a circulação dos bens simbólicos é o lucro desejado por seus produtores. Por essa razão “certamente a internet
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rapidamente se tornou o meio dominante de comunicação entre os cientistas” (HUGENHOLTZ, 2000). Considerações finais
Os últimos 50 anos testemunharam mudanças dramáticas no
desenvolvimento do direito internacional em vários aspectos tais como nos direitos humanos e na cooperação internacional. No entanto, o maior destaque é atribuído a uma variável das relações internacionais considerada a mais influente: ciência e tecnologia (COTTIER, 2007).
As relações entre o conhecimento produzido e o poder são percebidas de forma clara quando se observa as normas de regulação da propriedade artística e literária que tendem para a proteção em forma de monopólio.
As TICs auxiliam na desconstrução de alguns valores subjacentes aos princípios de proteção dos bens imateriais, no entanto, não serão as tecnologias que determinarão o processo de reconstrução destes valores. Cabe às relações sociais o papel da reconstrução destes princípios e normas.
O conhecimento em forma de propriedade e destinado para a competição na economia global perde força quando existem alternativas que permitem a produção, circulação e acesso aos bens intelectuais para fins de socialização. Existem outros caminhos para a proteção da propriedade artística e literária, que estão sendo desenhados, os quais não deixarão de proteger efetivamente seus autores.
Estas novas alternativas que visam o desenvolvimento socioeconômico estão sendo discutidas nos fóruns internacionais, como é o caso da Agenda para o Desenvolvimento criada em 2004, na OMPI, por iniciativas do Brasil e da Argentina, uma vez que as tentativas de discuti‐las no
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âmbito da OMC encontraram barreiras em decorrência das assimetrias entre países industrializados e em desenvolvimento.
As questões de pesquisa que norteiam o campo de investigação da regulação internacional sobre os direitos autorais seguem a tendência de relacionar Direito Autoral, acesso ao conhecimento e desenvolvimento socioeconômico local, tendência esta vinculada às discussões sobre as políticas públicas de acesso às TICs.
Os diversos cenários e perspectivas sociais, culturais, políticas e econômicas, sobrepõe‐se, apontando para a necessidade de enfoques interdisciplinares para as questões que permeiam as discussões acerca do Direito Autoral. O enfoque apresentado nos estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade permite esta articulação e colabora para a formulação de respostas às questões de proteção e acesso ao conhecimento, principalmente aquele produzido no campo científico. Referências BRANCO, Sergio. A lei autoral brasileira como elemento de restrição à eficácia do direito humano à educação. Sur, Rev. int. direitos human., São Paulo, v. 4, n. 6, 2007 . Disponível: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid= S1806‐64452007000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso: 30 Jun. 2011. doi: 10.1590/S1806‐64452007000100007
BARLOW, John Perry. The economy of ideas: A framework for rethinking patents and copyrights in the Digital Age ‐ everything you know about intellectual property is wrong. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/ index.php/buscalegis/article/viewFile/3384/295>. Acesso: 5 maio 2009
BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Ed. Advogado, 2000.
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: para uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP, 2004.
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CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura; vol. 1: A Sociedade em rede. 8ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
COTTIER, Thomas. Impacto das novas tecnologias na regulamentação e governança do comércio multilateral. In: POLIDO, Fabrício; RODRIGUES JÚNIOR, Edson Beas (Org.). Propriedade Intelectual: novos paradigmas internacionais, conflitos e desafios. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2007.
GANDELMAN, Marisa. Poder e conhecimento na economia global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
HUGENHOLTZ, P. Bernt. O grande roubo de direitos autorais: a alocação de direitos no ambiente digital. In: POLIDO, Fabrício; RODRIGUES JÚNIOR, Edson Beas (Org.). Propriedade Intelectual: novos paradigmas internacionais, conflitos e desafios. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2007.
LESSIG, Lawrence. The future of ideas: the fate of the Commons in a connect world. Nova Iorque: Random House, 2001. Disponível em: <http://thefuture ofideas.s3.amazonaws.com/lessig_FOI.pdf > Acesso: 28 set. 2008.
MARTINS, Wilson. A palavra escrita. São Paulo: Anhembi, 1957.
STAUT JR JUNIOR, Sérgio Said. Direitos autorais: entre as relações sociais e as relações jurídicas. Curitiba: Moinho do Verbo, 2006.
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Análise bibliométrica da atividade científica em citricultura: a laranja no Brasil
Cláudia Daniele de Souza Leandro Innocentini Lopes de Faria
Introdução
A Citricultura se refere ao cultivo ou plantação de frutas cítricas. Os citros compreendem um grande grupo de plantas do gênero Citrus representado, na maioria, por laranjas, tangerinas, limões, limas ácidas como o Tahiti e o Galego, e doces como a lima da Pérsia, pomelo, cidra, laranja‐azeda e toranjas (MATTOS JR., 2005).
No Brasil, a Citricultura apresenta números expressivos que traduzem a grande importância econômica e social que a atividade tem para a economia do País. O Brasil detém 50% da produção mundial de suco de laranja, exporta 98% do que produz e consegue 85% de participação no mercado mundial (NEVES, 2010). O cultivo de citros está presente em vários Estados do país, sendo que o Estado de São Paulo se constitui como pólo dinamizador do setor (Figura 1) representando por volta de 80% da produção e o cultivo da fruta (NEVES, 2010).
O setor citrícola nacional, mesmo fazendo parte de um setor primário onde teoricamente a pesquisa de ponta não seria primordial, é uma das áreas mais atuantes em pesquisas e tecnologia. Abrange estudos de clima, solo, genética, botânica, sanidade das plantas, propagação de material, portas‐enxerto, manejos de fitotecnia (água, espaçamentos), nutrição, fisiologia, economia e administração (CASER, 2004). Investe também na geração de tecnologia de logística de transporte, conservação e
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movimentação de produto congelado e transporte a granel em navios especialmente desenvolvidos ‐ o único país do mundo a dispor de navios‐tanque, controle de qualidade e rastreamento. (GARCIA, 2011).
Figura 1: Regiões produtoras de citros no Brasil. (Fonte: Sentelhas, 2011) O presente estudo pretende, através da elaboração de
indicadores bibliométricos, ter uma visão de como se constitui a atividade científica no que se refere especificamente à laranja no Brasil. Pretende‐se verificar como se dá a evolução desta atividade ano a ano no país, detectar quais são as instituições brasileiras que pesquisam e publicam sobre a laranja, quais os títulos dos periódicos em que esse tema é mais fequente e, por fim, verificar quais são os principais assuntos tecnológicos relacionados às publicações sobre a laranja no Brasil.
Será uma grande contribuição para o campo em consolidação denominado CTS – Ciência, Tecnologia e Sociedade (VON
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LINSINGEN, 2007), visto que os resultados desta pesquisa demonstrarão um conjunto de informações que poderão subsidiar avaliações institucionais, auxiliar estudos sobre a atividade científica e tecnológica na Citricultura brasileira e também desenvolver políticas públicas específicas para as Ciências Agrárias.
A realização deste estudo é motivada pela restrita existência de informações na literatura relativas à todos esses tópicos e pela percepção dos autores do grande interesse da sociedade em geral.
Esta pesquisa pode ser enquadrada na área de estudos exploratórios sobre a atividade científica. Constitui‐se de grande valia, visto que os indicadores de atividades científicas encontram‐se no centro de diversos debates, tanto sob a perspectiva das relações entre o avanço da ciência e da tecnologia quanto sobre o progresso econômico e social (MACIAS‐CHAPULA, 1998).
Importância econômica da laranja no Brasil
De origem asiática, as plantas cítricas foram introduzidas no
Brasil por uma das primeiras expedições colonizadoras, provavelmente na Bahia. Com melhores condições para vegetar e produzir do que nas próprias regiões de origem, os citros se expandiram para todo o país rapidamente. A partir dos anos 30 do século passado, a Citricultura começou a ser implantada comercialmente nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, tendo apresentado maiores índices de crescimento nos Estados do Sudeste e Sul (EMBRAPA, 2011).
Em meados da década de 60, a indústria de suco de laranja foi implantada no Brasil em consequência de uma grande geada na Flórida, nos Estados Unidos, e alcançou rapidamente um nível tecnológico equivalente ou até superior ao dos países mais
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adiantados do setor. Na década de 80, a união de uma Citricultura extremamente desenvolvida e de uma indústria competitiva, fez com que o Brasil se tornasse o maior produtor mundial de laranjas, ultrapassando a região da Flórida, não só em produção como também em tecnologia de citros (CITRUSBR, 2011).
Atualmente, os pomares mais produtivos, resultantes de uma Citricultura estruturada, estão distribuídos no mundo, nas regiões de clima tropical e sub‐tropical, destacando‐se o Brasil, Estados Unidos, Espanha, países do Mediterrâneo, México, China e África do Sul. A Citricultura brasileira, que detém a liderança mundial, têm se destacado amplamente pela promoção do crescimento sócio‐econômico, contribuindo com a balança comercial nacional e principalmente, como geradora direta e indireta de aproximadamente 500 mil empregos. O país produz a metade do suco de laranja do planeta, cujas exportações trazem de US$ 1,5 bilhões a US$ 2,5 bilhões por ano ao país. Em praticamente 50 anos, a cadeia produtiva de citros trouxe, diretamente do consumidor mundial de suco de laranja, quase US$ 60 bilhões ao Brasil a preços de hoje (NEVES, 2010). Portanto, fica claro que a Citricultura brasileira apresenta números expressivos que traduzem a grande importância econômica e social que a atividade tem tanto no território paulista, no Brasil e também no mundo.
A cultura dos citros é também, uma das áreas mais atuantes em pesquisa e tecnologia no Brasil. Conforme descreve Zambolin (2006) apesar da liderança brasileira nesta atividade, vários fatores interferem no crescimento da Citricultura, passando por problemas climáticos, de mercado e fitossanitários. Assim, a pesquisa neste setor é importante no sentido de desenvolver novas tecnologias capazes de aumentar a produtividade dos pomares e também na descoberta e no controle das inúmeras pragas e doenças que ameaçam a atividade, sendo esta uma
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questão prioritária para a garantia da competitividade do negócio (FIGUEIREDO, 2008).
Figueiredo ainda cita que a maior parte dos recursos e investimentos no setor está direcionada à aspectos fitossanitários, uma vez que, apesar da liderança brasileira nesta atividade, existem diversos problemas climáticos, de mercado e principalmente fitossanitários – cerca de 300 pragas e doenças que afetam os pomares – que interferem no seu crescimento. Em estudo desenvolvido por Neves e Lopes (2005), estimativas com gastos e prejuízos provocados pelas doenças são alarmantes, tendo o setor gasto em 2003, US$ 141 milhões com defensivos agrícolas, aos quais seria necessário agregar prejuízos avaliados em cerca de US$ 150 milhões por ano, provocados pela queda de produção e por perdas de plantas.
Conforme Amaro (2005) a transferência dos resultados de pesquisa na Citricultura representa um elo fundamental na cadeia de geração de conhecimentos. É nessa transferência que a pesquisa expressa seu retorno socioeconômico. Assim, a quantificação da atividade científica nesse setor se faz necessário e é extremamente relevante no contexto atual. Dominando a fruticultura internacional, a Citricultura movimenta grandes valores financeiros no Brasil e é uma das maiores áreas responsáveis pela pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica no setor agronômico paulista.
Bibliometria e indicadores
Na sociedade do conhecimento, a quantidade de informação
mais do que duplica anualmente, e essa ‘superoferta de informação’ obriga indivíduos e organizações a utilizarem técnicas específicas para extrair dessa enorme massa de conhecimentos disponíveis, a informação necessária (FARIA; QUONIAM, 2002).
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A bibliometria estuda a organização dos setores científicos e tecnológicos a partir de fontes bibliográficas e patentes para identificar autores, suas relações e tendências. Trata das várias formas de medir a literatura dos documentos e outros meios de comunicação e é importante, pois permite identificar tendências e crescimento, usuários e autores, verificar a cobertura das revistas, medir a disseminação da informação, formular políticas, etc. (SPINAK, 1998).
Os indicadores de produção científica são construídos a partir da bibliometria, ou seja, pela contagem do número de publicações por tipo de documento (livros, artigos, publicações científicas, relatórios, etc.), por instituição, área do conhecimento, país, etc. O indicador básico é o número de publicações, que procura refletir características da produção ou do esforço empreendido, mas não mede a qualidade das publicações (SANTOS et al., 2007).
Existem vários tipos de indicadores e os principais de acordo com Faria (2001) são:
• Indicadores de atividades: também chamados de indicadores de produção, analisam os dados bibliográficos das publicações científicas, como o ano, autor, instituição e país, indicados em tabelas de frequência;
• Indicadores de impacto: são os indicadores que medem os dados de citações de uma publicação, calculando sua frequência por ano, país, instituição, etc. O Fator de Impacto (FI) é uma medida de avaliação que surge da divisão do número de citações pelo número de artigos contidos em uma revista;
• Indicadores de ligação: ocorre quando dois dados bibliográficos das publicações são relacionados. Os principais indicadores desta natureza são os de co‐ocorrências de autoria, citações (co‐citações) e palavras (co‐word). São muito utilizados para medir as colaborações
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científicas e as redes de relacionamento entre países, instituições e pesquisadores.
Cada tipo de indicador bibliométrico apresenta vantagens e limitações. A definição prévia do foco e o recorte geográfico do estudo são importantes para a escolha apropriada do instrumental bibliométrico. Assim, faz‐se necessário planejar sua construção e aplicação de forma criteriosa e contextualizada a fim de não considerá‐los como índices absolutos, pois são complementares e devem ser usados de forma articulada, em função dos objetivos de investigação e/ou de avaliação pretendidos. Concordamos com Oliveira (1984, p. 59), quando o autor afirma que ʺesse método não deve ser o único indicador para a tomada de decisãoʺ.
Metodologia
Quanto à característica desta pesquisa, considera‐se como
quantitativa, pois ela enumera e mede e também qualitativa, pois compreende e explica um determinado fenômeno (KLEINUBING, 2010).
Para fins de melhor desdobramento, foram estabelecidas algumas etapas, a saber:
• Revisão bibliográfica – Revisão de literatura sobre Citricultura e a laranja no Brasil e também Análise bibliométrica, com o objetivo de fundamentar teoricamente a pesquisa;
• Identificação da Base de Dados – Análise das possibilidades de cobertura que a Web of Science ‐ WoS oferece em termos de área e período;
Para Santos et al. (2007, p. 03) “a produção de indicadores da ciência, por métodos bibliométricos, requer um conjunto de dados padronizados, sistematizados e consistentes, em princípio encontráveis nas bases de dados bibliográficos.” Optamos por recuperar esses dados na base WoS que foi produzida pelo ISI –
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Institute for Scientific Information e atualmente é do grupo empresarial ThomsonReuters. Ela está disponível desde 1997, têm abrangência internacional e contém informações bibliográficas e citações de aproximadamente 40 milhões de artigos científicos, publicados a partir de 1945 em mais de 230 disciplinas. Além disso, a WoS oferece registros bibliográficos padronizados, dando a possibilidade de trabalhar com o software VantagePoint1.
• Elaboração da expressão de busca – Observou‐se na literatura o nome científico da laranja, suas sinonímias e também nomes comuns em português, inglês e espanhol. Com o intuito de delimitar a pesquisa, elaborou‐se a seguinte expressão de busca:
Topic2=(ʺcitrus sinensisʺ OR ʺCitrus sinensis (L.) Osbeckʺ OR ʺsweet orangeʺ OR naranja OR laranja) Refined by: Countries/Territories=( BRAZIL )
• Coleta de dados – Busca e recuperação dos registros bibliográficos da WoS em formato .txt que é reconhecido pelo software de tratamento bibliométrico utilizado; mais comumente, os estudos bibliométricos tendem a analisar apenas os artigos científicos contidos nos periódicos indexados, assumindo que estes têm maior qualidade e são mais representativos da atividade científica do que os artigos de revisão, cartas e outros. Entretanto, da mesma forma que Lima e Velho (2008), decidiu‐se aqui incluir todos os tipos de publicação, uma vez que, o objetivo é analisar a atividade de pesquisa (e não somente a produção científica) e essa está refletida não apenas na publicação
1 Software que auxilia na contagem, padronização e organização de texto e palavras.
2 Pesquisa nos campos título, resumo e palavras‐chave.
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dos resultados em artigos, mas também nas demais formas de comunicação científica.
• Organização e tratamento bibliométrico – Importação dos registros bibliográficos para o VantagePoint e padronização de termos relativos à nomes de instituições e títulos de periódicos. Criação de listas para visualização dos dados.
• Representações gráficas – Exportações das listas para o Excel e elaboração de gráficos para apresentação e análise dos resultados.
Resultados e análises
Inicialmente, com o objetivo de mensurar o número de
publicações científicas geradas sobre a laranja a cada ano, verificou‐se que na WoS surgem publicações sobre esse tema a partir de 1980 (Gráfico 1). Entretanto, a quantidade começa a crescer e ser relevante somente no final da década de 1990.
Gráfico 1: Evolução da produção científica, de 1981 a 2010 em períodos de cinco em cinco anos.
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Este fato pode ser justificado, visto que nesta época surgiram diversas doenças importantes nos pomares citrícolas, fazendo com que as pesquisas neste setor se aprimorassem cada vez mais, a fim de que fossem encontradas soluções para a cura das plantas cítricas. Vale citar como exemplo, a pesquisa realizada por 192 cientistas brasileiros, considerada um dos maiores marcos da história da ciência nacional: o seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa publicado na revista Nature no ano 2000.
De acordo com Neves (2010) estima‐se que mais de 60% dos custos de produção da laranja no Brasil estejam relacionados ao controle fitossanitário3. O Gráfico 2 confirma este dado, já que o assunto plantas e animais está presente em quase metade (44%) das publicações científicas brasileiras relativas à laranja.
Gráfico 2: Principais assuntos tecnológicos relacionados a laranja
3 Aplicação prática de medidas de combate às pragas e controle das doenças em plantas.
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Outro assunto de destaque é a biologia molecular e genética (3� lugar). Nos últimos anos, diversas agências de fomento brasileiras e internacionais têm percebido a importância e financiado trabalhos de melhoramento genético, vendo‐os como estratégia abrangente e duradoura de controle das diversas doenças existentes na laranja.
As principais instituições que pesquisam e publicam sobre a laranja no Brasil estão representadas no Gráfico 3. Nota‐se que todas estão localizadas nas regiões Sul e Sudeste do país. Pode ser uma estratégia de localização, pois, conforme Neves (2010) é do cinturão citrícola ‐ São Paulo e Triângulo Mineiro – que saem mais de 80% das laranjas produzidas no país.
Gráfico 3: Principais instituições brasileiras que publicam sobre a laranja
A Universidade de São Paulo (USP) possui aproximadamente 30% de toda a publicação sobre o tema na base WoS. A USP é a maior universidade pública brasileira e tem papel de destaque na criação de infra‐estrutura científica e tecnológica e na formação da elite intelectual do país. Assim, percebe‐se que no setor citrícola, não faz diferente, sendo bastante representativa.
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Dentre os 10 periódicos que se destacam em publicações sobre a laranja e que estão indexados na WoS, (Gráfico 4) o que possui a maior quantidade (60) é o Pesquisa Agropecuária Brasileira, editado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa.
Gráfico 4: Principais periódicos científicos
É importante ressaltar que Plant Disease e Phytopathology são
dois periódicos muito bem prestigiados e reconhecidos internacionalmente na área e estão no ranking em 5º e 9º lugar, respectivamente. Tal fato demonstra o alto nível de competência dos pesquisadores brasileiros, em pesquisar e divulgar o conhecimento gerado no país para o mundo.
Considerações finais
O desenvolvimento do conhecimento e o progresso científico
são características marcantes na última década no setor citrícola.
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No entanto, a grande quantidade de informação gerada necessita de um controle, que permita aos usuários a sua obtenção, disseminação e uso. Para sanar essa demanda, o uso da análise bibliométrica e dos indicadores da atividade científica passam a ser cada vez mais frequentes (ARAÚJO, 2006).
O presente capítulo tratou sobre análise bibliométrica da atividade científica indexada na base de dados WoS especificamente sobre o tema a laranja no Brasil. Foram elaborados quatro indicadores relevantes: evolução da atividade científica desse tema ao longo da história, principais assuntos tecnológicos relacionados às publicações de laranja, as 10 instituições brasileiras que mais pesquisam e publicam nesse tema e por fim, os periódicos científicos que se destacam.
Em suma, o estudo permitiu tecer uma abordagem sobre a atividade científica no setor citrícola. Embora se restrinja apenas às publicações indexados na WoS pôde‐se te uma visão geral dessa atividade, o que não esgota outras reflexões e pesquisas bibliométricas. Por fim, demonstra a importância econômica que o setor tem tanto no território paulista, no Brasil e também no mundo.
As considerações levantadas durante todo o estudo reforçam que a análise bibliométrica tem muito a contribuir para o campo CTS, podendo subsidiar avaliações institucionais, auxiliar estudos sobre a atividade científica e tecnológica e também contribuir desenvolver políticas públicas específicas.
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Indicadores de inovação: análise da metodologia adotada nas pesquisas
Denise Rodrigues Vichiatto1
Roberto Ferrari Junior (Orientador)2
1. Introdução.
A Inovação Tecnológica promove o desenvolvimento econômico e é vista como estratégica para empresas, para o desenvolvimento de regiões e de países. Os Indicadores de inovação tecnológica podem ser utilizados para justificar a formulação de políticas de incentivo a inovação e orientar os empreendedores sobre estratégias, área de atuação e investimentos. Algumas das métricas de inovação mais utilizadas nas pesquisas são as atividades em Pesquisa e Desenvolvimento – P&D, lançamento de novos produtos, criação de novos processos, e patentes.
Estes indicadores são elaborados para verificar o esforço inovador e a taxa de inovação nas indústrias de produtos e serviços de países, estados ou regiões. As pesquisas são conduzidas de diferentes formas, incluindo análise de bases de dados e pesquisas conduzidas por entrevistas com aplicação de questionários.
Os Indicadores de Inovação tecnológica existentes são abrangentes, considerando inovação de forma ampla, não se restringindo a apenas produtos e processos, mas envolvendo novas formas de gestão, novos mercados, novos insumos de produção, entre outros. A amplitude destes estudos é em sua maioria direcionada para grandes regiões, como o Estado de São Paulo, ou para países, como o Brasil.
Este artigo tem o objetivo de analisar a metodologia utilizada nas pesquisas envolvendo indicadores de inovação no Brasil e no
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exterior ‐ métricas de inovação utilizadas, fontes de dados, forma de coleta dos dados, tipos de empresas observadas, local e abrangência das pesquisas.
2. Metodologia de Seleção de Literatura
A busca da literatura aconteceu nas bases Scielo, Google
acadêmico, banco de teses e dissertações da USP e ISI Web of Science.
A expressão de busca por palavra‐chave (subject index) utilizada na base de dados Scielo (Scientific Electronic Library Online) foi: inovação ou inovação tecnológica ou indicadores de inovação. Foram recuperados os registros contendo esta expressão de busca no título, abstract ou nas palavras ‐ chave.
A fim de recuperar documentos referentes a pesquisas realizadas no Brasil também foram utilizados o banco de teses e dissertações da USP e o Google Acadêmico. Nestes, o termo de busca utilizado foi indicadores de inovação* recuperando documentos que continham estas palavras no título, no abstract e nas palavras‐chave.
Para recuperar documentos referentes à pesquisas publicadas em inglês a expressão de busca utilizada na ISI Web of Science foi: innovation* ou technological innovation* ou innovation indicators*. O uso das referências bibliográficas dos documentos recuperados nas bases de dados também foi utilizado como recurso de busca.
3. Resultados e Discussão: Metodologias Adotadas nas pesquisas sobre Indicadores de Inovação.
3.1 Indicadores de Inovação Adotados
Indicadores são ferramentas que medem o processo de
inovação de uma organização ou de um grupo de organizações.
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Estes fornecem dados objetivos sobre os tipos de inovação praticados pelas empresas. Por exemplo, o quanto investem em P&D, se compram conhecimento e tecnologia, se depositam pedidos de patentes, ou se lançam novos produtos.
Os dados observados nas pesquisas para elaboração dos indicadores no Brasil podem ser vistos na Tabela 1. Os dados observados nas pesquisas estrangeiras podem ser vistos na Tabela 2.
As pesquisas sobre indicadores de inovação envolvem estudos que avaliam qual têm sido o esforço inovador das empresas por meio dos índices de investimentos em P&D, aquisição de novas tecnologias, recursos humanos, escolaridade de pessoal alocado em atividades inovadoras e novas formas de gestão. Estas pesquisas também verificam a propensão por inovar das empresas segundo sua localização geográfica, produção científica, captação de recursos governamentais, interação e cooperação com outros agentes como, por exemplo, universidades e centros de pesquisa e desenvolvimento.
Os indicadores de inovação avaliam os índices de novos produtos e novos processos lançados e implementados pela empresa em um determinado período de tempo assim como o número de patentes depositadas. Alguns estudos buscaram avaliar a relação entre inovar e obter resultado empresarial nas indústrias nacionais, sendo os indicadores de resultados o faturamento, lucro, participação de mercado, aumento nas exportações entre outros.
Tabela 1: Metodologia utilizada nos estudos desenvolvidos no Brasil
Autor
Métrica de Inovação Fonte de Dados
Local abrangência
Tipo de empresas
Figueiredo, Paulo N.
Capacidades em Engenharia de Software
Questionário, observação direta e análise de
Institutos de P&D das regiões
Empresas de Tecnologia da Informação
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2001 Capacidade em Gestão de projetos
Capacidade em Produtos e Soluções
Capacidade em Ferramentas e Processos
documentação Sul, Sudeste, Norte e Nordeste do Brasil
Rocha, Dufloth 2003
Valor despendido em P& D em relação à receita líquida de vendas
Implementação de inovação de produto ou processo
Patentes Suporte
Governamental
Pesquisa Industrial Inovação Tecnológica (PINTEC)
Regiões Brasileiras C. Oeste, Sul, Sudeste, Nordeste e Norte
Empresas industriais
Rocha e Ferreira 1998
Percentual do faturamento aplicado em inovação
Número de pessoal qualificado envolvido com atividades inovativas
Número de Patentes concedidas/ depositadas
Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das empresas Industriais (ANPEI)
Brasil Grupo de Empresas Privatizadas e um grupo geral de empresas
Filho e Moutinho 2002
P&D interno Aquisição
tecnologia Lançamento de
novos produtos e processos
Questionário Brasil ‐ Paraíba
Pequenas e Microempresas
Cabral Número de Questionário Brasil Indústria
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2004 inovações de produto e processo
Brasileira de Alimentos
Gomes e Kruglianskas 2006
Número de inovações de produto e processo
Questionário Brasil Empresas industriais e de transformação ligadas a ANPEI e do PGT da USP e da Fundação Instituto de Administração
Suzigan, Wilson et al 2002
Pessoal qualificado em atividade de P&D
Marcas e patentes
Produção Científica
Pesquisa de Inovação tecnológica PINTEC – INPI , USPTO – Base de dados RAIS
Estado de São Paulo
Empresas do estado de São Paulo ligadas as bases de dados analisadas
Brito et al. 2000
Número de Inovações de produto e processo
PINTEC Brasil Indústria Química
Rieg & Alves Filho 2000‐2002
Montante de recursos investidos em P&D e em capacitação tecnológica
Inovações de produto e processo
Parcela do faturamento proveniente das inovações introduzidas no mercado
Questionário São Carlos Setor Médico Hospitalar de São Carlos
Queiroz e Carvalho 2000
Atividades de P&D
PINTEC e PAEP Brasil Indústrias Multinacionais
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Hayahi et al 2006
Patentes Instituto Nacional de Propriedade Intelectual INPI
São Carlos Empresas, Universidades de São Carlos
Arbix e De Negri (2005)
Inovação de produto e processo
IPEA ‐ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Brasil Indústrias diversas
Tabela 2: Metodologia utilizada nos estudos desenvolvidos no Exterior
Autor Métrica Fonte (Coleta de
Dados) País Tipo de
empresas Motohashi 1998
Gastos com P&D
Patentes Empregados
devotados à inovação
Instalações de P&D
Receita com licenciamento
S&T ‐ Pesquisa da National Bureau de Estatística (NBS) da China Questionários
China Indústria manufatura
Tidd 2001
Gastos com P&D
Patentes Inovações de
produto Empregados
devotados à inovação
Indicadores de domínio público
USA Indústria manufatura
Li, Atuahene‐Gima e Luca 2001
Gastos com P&D
Empregados devotados à inovação
Introdução Novos produtos
Questionários Shenzen ‐ China
Indústria manufatura
Klomp L, Roelandt, 2004
Gastos com P&D
Atividades de P&D
Resultados P&D
European Innovation Scoreboard 2003
Holanda Indústria manufatura
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Koschatzky K, Bross U, Stanovnik P 1994‐1996
Gastos com inovação ou atividades inovadoras
Percentual da receita obtida com novos produtos
Cooperações e networking externo
Questionários Eslovênia Indústria manufatura
Damampour; Avellaneda 2005
Performance do serviço
Satisfação do cliente
Audit Commission (2002) e Questionários
Inglaterra Indústria de serviços
Evangelista e Archibugi 1997
Investimentos em novas máquinas
Investimento em P&D
Questionários Itália Indústria manufatura
Patel, P Pavitt K 1997
Patentes USPTO
USA Indústria manufatura
3.2 Local e Amplitude das Pesquisas
Nos estudos realizados no Brasil (Tabela 1) é possível verificar que apenas dois estudos foram feitos com amplitude local realizados (HAYASHI et al 2006, e RIEG e ALVES 2002). As demais pesquisas estão concentradas nas macrorregiões do país (ROCHA e DUFLOTH 2003) e no estado de São Paulo (SUZIGAN et al 2002). Estudos estrangeiros sobre inovação (reportados na Tabela 2) ocorreram nos Estados Unidos, Inglaterra, China, Eslovênia e Holanda.
Os estudos realizados na Inglaterra (DAMANPOUR; WALKER, AVELLANEDA 2002) e Estados Unidos (PATEL, P PAVITT K 1997), China (Li, ATUAHENE‐GIMA e LUCA 2001) Holanda (KLOMP; ROELANDT, 2004), Eslovênia
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(KOSCHATZKY, BROSS, STANOVNIK 1996), e Itália (EVANGELISTA, PERANI, RAPITI, ARCHIBUGI 1997) compreenderam o país por completo. Foi identificado um estudo com amplitude local na província de Shenzen, China por (Li, ATUAHENE‐GIMA e LUCA 2001).
3.3 Tipos de Empresas Estudadas
Os estudos sobre Inovação no Brasil são diversos e estudaram
empresas locais, regionais e nacionais de produtos e serviços, de forma abrangente (independente do porte). Outros pesquisadores focaram em segmentos e locais específicos como os de tecnologia de informação (FIGUEIREDO 2001), médico hospitalar de empresas localizadas em São Carlos (RIEG; ALVES FILHO 2002), da indústria química (BRITO et al 2000), e de alimentos no Brasil (CABRAL 2004).
As indústrias multinacionais foram alvo do estudo sobre indicadores de inovação por QUEIROZ E CARVALHO (2000), as empresas privatizadas por ROCHA e FERREIRA (1998), e as pequenas e microempresas por FILHO E MOUTINHO (2002).
Como mostrado na Tabela 2, as pesquisas realizadas em outros países abrangeram o setor industrial (independente do porte). Foi encontrada uma pesquisa com foco nas grandes empresas (PATEL e P. PAVITT 1997), e uma pesquisa focada em empresa de serviço (DAMANPOUR; WALKER, AVELLANEDA 2002). Pesquisa realizada na Itália comparou a inovatividade das empresas nas indústrias aeroespacial, rádio, TV e comunicação, e maquinário de escritório (EVANGELISTA et al. 1997).
3.4 Fontes de dados para as pesquisas sobre Indicadores de Inovação
As fontes de dados mais utilizadas pelas pesquisas realizadas
no Brasil para coleta de informações foram os da Pesquisa
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Industrial Inovação Tecnológica (PINTEC) realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das empresas Industriais (ANPEI), Pesquisa de atividade econômica Paulista (PAEP), Relação Anual de informações Sociais, (RAIS), Indicadores de Ciência Tecnologia & Inovação (CT&I) do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Fundo de Apoio a Pesquisa de São Paulo (FAPESP), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Como pode ser observado na Tabela 2, as pesquisas realizadas em outros países utilizaram informações do European Innovation Scoreboard 2003, US Patent Office (USPTO), S&T Pesquisa pela Nacional Bureau de Estatística (NBS) da República Popular da China (PRC), Istituto Nazionale di Statistica ISTAT 1995, Community Innovation Survey (CIS), Fraunhofer Institute for Systems and Innovation Research (ISI), Slovenian Office for Statistics (SURS), OCDE (Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento) e Audit Commission (2002). Indicadores também foram elaborados através de questionários tanto no Brasil como nos outros países.
4. Conclusão
As pesquisas adotaram como indicadores de inovação a
propriedade intelectual (patentes, marcas), os novos produtos ou processos introduzidos no mercado, os investimentos realizados (em P&D, em capacitação, em equipamentos), as atividades de P&D realizadas internamente ou externamente, o pessoal alocado em P&D e suas capacitações, e resultantes da inovação tais como a
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parcela do faturamento proveniente da introdução de novos produtos/inovações no mercado.
Para coletar dados referentes à inovação das empresas, as pesquisas utilizaram, principalmente, duas estratégias: (a) questionários respondidos diretamente pelas empresas, e (b) busca de informações em bases de dados ou em macro‐pesquisas realizadas por órgãos governamentais ou associações. No Brasil, as pesquisas utilizaram como fonte de dados a PINTEC, PAEP, IPEA, ANPEI, RAIS, INPI e USPTO.
As pesquisas observaram a inovação realizada nas empresas. A inovação desenvolvida na academia não foi observada de modo direto. Resultados e conclusões foram divulgados no contexto de todo um conjunto de empresas, e não no contexto de uma única empresa.
As principais contribuições das pesquisas são identificar o patamar inovador das empresas em determinadas regiões, identificar sistemas locais de inovação, conferir o desempenho empresarial inovador, e prover subsídios para a elaboração de políticas públicas.
NOTAS: 1. Bacharel em Engenharia de Produção pelas Faculdades Integradas de São Carlos – FADISC – Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos. Contato: [email protected]
2. Bacharel e Mestre em Ciência da Computação (UFSCar 1988, 1992), doutor em Física Computacional (USP, 1996). Professor e chefe do Departamento de Computação na UFSCar. Linha de pesquisa: Empreendedorismo Tecnológico
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Ciência, Tecnologia e Sociedade em preto em branco: Perspectivas da tecnologia nos mangás
Felipe Mussarelli
Valdemir Miotello
“[...] quadrinhos são a poesia escrita de nosso tempo. Eles recuperam fragmentações, sugestões e silêncios que dificilmente teriam vida na prosa.” – trecho do texto contido na orelha da edição nacional do mangá Gourmet.
Os quadrinhos têm ganhado cada vez mais espaço nas
produções e discussões acadêmicas. Antes relacionados a obras de baixa qualidade literária destinadas ao público infantil, hoje caminham entre os grandes clássicos e são considerados obras cult. Autores como Will Eisner, Allan Moore, Frank Miller, Joe Sacco, Milo Manara, Osamu Tesuka e Hayao Miyazaki figuram entre os grandes quadrinistas cujas obras são cultuadas mundo afora.
São várias as estéticas e temáticas apresentadas nos quadrinhos, cada uma com suas peculiaridades, sejam elas traços pitorescos ou temáticas jornalístico‐biográficas.
Uma vertente dos quadrinhos que vem chamando atenção, devido a sua grande aceitação pelos públicos de todas as idades, é o mangá. Mangá é o nome dado aos quadrinhos de origem japonesa, mas isso não significa dizer apenas que são reproduções das histórias em quadrinhos tradicionais feitas no Japão. Os mangás possuem características próprias, sendo considerados por muitos um estilo único de se fazer quadrinhos, um subgênero das HQs.
Para entendermos a idéia de gêneros discursivos, Bakhtin, em Estética da Criação Verbal (1997), reporta o funcionamento da
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língua em práticas comunicativas reais e consolidadas, estabelecidas por sujeitos que interagem no campo das relações humanas e na comunicação. É no interior das relações humanas que se organizam os gêneros discursivos, que suprem as necessidades sócio‐intelocutivas dos sujeitos que se inter‐relacionam.
Cada gênero possui normas e regras específicas de acordo com a esfera social em que se encontra. A fala comporta‐se de maneira descompromissada em uma reunião de amigos, ao passo que em uma apresentação acadêmica há regras e padrões que devem ser seguidos.
Há toda uma gama dos gêneros mais difundidos na vida cotidiana que apresenta formas tão padronizadas que o querer‐dizer individual do locutor quase que só pode manifestar‐se na escolha do gênero, cuja expressividade de entonação não deixa de influir na escolha. É o caso, por exemplo, dos diversos gêneros fáticos, das felicitações, dos votos, das trocas de novidades — sobre a saúde, os negócios, etc. A diversidade desses gêneros deve‐se ao fato de eles variarem conforme as circunstâncias, a posição social e o relacionamento pessoal dos parceiros: há o estilo elevado, estritamente oficial, deferente, como há o estilo familiar que comporta vários graus de familiaridade e de intimidade. (BAKHTIN, 1997, p. 302).
Os gêneros discursivos, para Bakhtin, distinguem em dois
agrupamentos, primários e secundários, sendo os primeiros aqueles construídos em situações discursivas em esferas privadas, ligadas a experiências cotidianas e íntimas, e os secundários, por sua vez, construídos em situações públicas, relativamente mais formais.
Cada gênero pertence a um domínio discursivo; assim, no domínio de textos religiosos, por exemplo, temos vários
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gêneros: oração, sermão homilia, cartas, etc.; nos textos literários, podem ser citados os seguintes gêneros: romance, conto, novela, poema etc.; nos textos midiáticos jornalísticos, notícia, editorial, artigo opinativo, histórias em quadrinho etc. (MESSIAS, 2006, p. 39).
Todavia, as propriedades dos gêneros discursivos não são
estáticas e, assim como o signo, evoluem junto à língua e ao sujeito falante.
Dentre as diversas temáticas retratadas nos mangás, tem‐se uma em especial que, pode‐se assim dizer, dialoga com as discussões propostas pelos estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). Os enredos baseados em temas de cunho escatológico, que relatam o futuro, a vida após a morte, “[...] promovem debates cuja ideologia é fortemente impregnada com a perspectiva CTS”. (LINSINGEN, 2007, p. 03).
Os estudos em CTS estão fortemente ligados aos debates com relação ao homem e o avanço tecnológico e seus efeitos a longo prazo na natureza e na sociedade.
O movimento CTS teve suas origens nos acontecimentos de 1960 e 1970, os quais causaram profundas mudanças no cenário dos países europeus e da América do Norte, vindo mais tarde a refletir‐se no mundo de forma geral. Esses movimentos pautaram‐se em questionamentos em torno da ciência e da tecnologia, com relação às armas nucleares e químicas, agravamento dos problemas ambientais e seus impactos na vida das pessoas. A partir desses questionamentos, organizações começaram a tomar corpo em prol de uma educação científica e tecnológica. (PINHEIRO; MATOS; BAZZO, 2007, p. 05).
Este trabalho tem como base o artigo Mangás e sua utilização
pedagógica no ensino de ciências sob a perspectiva cts (2007) escrito
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por Luana Von Linsingen, e tem por objetivo dar continuidade às discussões acerca dos quadrinhos, em especial os mangás, no que tange os estudos relacionados à CTS.
Cabe aqui uma rápida contextualização do mangá no que diz respeito a sua origem e chegada ao Brasil. Origem do mangá e sua expansão para o mercado exterior. O mangá surgiu em meados da década de 50, no pós‐guerra.
Os recursos injetados pelos EUA no território japonês permitiram ao Japão criar um fabuloso mercado interno e com isso, uma identidade mercadológica própria.
As histórias em quadrinhos japonesas são “[...] facilmente reconhecíveis por seu traço peculiar, utilização da cor, forma de cabelo, temas e públicos distintos” (PATATI & BRAGA, 2006, p. 25) e pode‐se dizer que a primeira aparição de um estilo semelhante a esse foi entre os anos de 1814 e 1849, quando o artista japonês Katsushita Hokusai, conhecido por suas xilogravuras (um processo de gravação em relevo que utiliza a madeira como matriz), retratou cenas do cotidiano com pessoas em situações e traços pitorescos. Esta coleção de caricaturas recebeu na época o nome de Hokusai Manga.
Contudo, foi em 1946 que este estilo de desenho e narrativa se consagrou. A publicação do mangá A Nova Ilha Do Tesouro, produzido pelo artista Osamu Tezuka (1928‐1989), acentuou de uma vez por todas a estética que ficaria conhecida como mangá.
Com o sucesso da exibição dos animês (desenhos animados de origem japonesa), algumas editoras iniciaram a publicação de mangás no Brasil
[...] a partir de 2000 [...] quando a Conrad Editora trouxe ao Brasil os títulos Dragon Ball e Cavaleiros do Zodiáco, os fãs ficaram exultantes: a leitura era feita no sentido oriental e as
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onomatopéias eram mantidas em japonês, pois faziam parte do desenho, dando início a uma nova era no mercado nacional de quadrinhos. (GUSMAN apud FARIA, 2007, p. 20).
Com a crescente popularização dos mangás, algumas editoras, segundo Vergueiro (2003), praticamente se especializaram em sua publicação, o que possibilitou explorar o mercado de forma mais ampla, lançando títulos inéditos no país em seu formato original (impressão japonesa), ou seja, de trás para frente e da direita para a esquerda.
Hoje as vendas de quadrinhos japoneses no Brasil superam as vendas das tradicionais histórias em quadrinhos norte americanas e o quadrinho nacional de maior sucesso no país é o gibi Turma da Monica Jovem (ou Turma da Monica Mangá, devido ao fato de sua arte e narrativa basearem‐se nos quadrinhos japoneses), criado por Maurício de Souza.
Nas próximas páginas faremos um apanhado de imagens encontradas no mangás que fazem referencia a tecnologia, ora retratadas de forma fantástica (com base em tecnologias reais), ora representando tecnologias, de fato reais, desenvolvidas e aplicadas pelo homem.
Tecnologia fantástica nos mangás
As narrativas escatológicas, para LINSINGEN (2007), fazem grande referência ao uso da ciência e tecnologia, em como esta influencia o desenvolvimento do futuro da humanidade e, desse modo, o futuro da natureza. O destino de ambos é amplamente trabalhado em diversos mangás e animês e tem, na maioria das vezes, o Homem e sua ganância como a causa de sua própria destruição.
É nesse tipo de narrativa que encontramos a maior parte das referências a tecnologia. No mangá X‐1999, do grupo CLAMP,
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publicado no Brasil pela editora JBC, narra‐se uma batalha entre pessoas destinadas a decidir o futuro da humanidade, de um lado àqueles que querem salvar o planeta apagando a existência humana, e do outro àqueles que ainda acreditam que a humanidade tomara novos rumos visando a correção de erros passados.
A temática relacionada a CTS no mangá citado foi amplamente discutida no artigo de LINSINGEN (2007), portanto, nos limitaremos aqui a exemplificar um pouco da tecnologia fantástica que permeia as páginas dos quadrinhos japoneses.
As imagens (figuras 01 e 02) abaixo mostram uma personagem capaz de se conectar fisicamente a um computador de potência inimaginável, que funciona como uma entidade pensante. Essa conexão permite a personagem ter acesso e controle ilimitado a inúmeras tecnologias computadorizadas e usá‐las a sua vontade.
Figura 01 ‐ X‐1999, CLAMP, Vol. 02, pág. 77
Figura 02 ‐ X‐1999, CLAMP, Vol. 02, pág. 79
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Em 1999 talvez não houvesse um computador com tamanho poder de conexão, mas hoje, 12 anos depois, sabemos que um aparelho desse porte não só é possível como também é comum. Devido aos avanços da informática, sistemas monitoram e controlam praticamente sozinhos inúmeras outras redes de computadores e, conectar‐se fisicamente ao computador também já é algo possível.
Também discutido por LINSINGEN (2007), o mangá Metrópolis de 1949, criado por Osamu Tesuka, publicado no Brasil pela editora Conrad, trata de temas relacionados ao futuro (o futuro imaginado pelo autor em 1949), onde autômatos (no caso do mangá, robôs humanóides), construídos para facilitar o trabalho dos seres humanos, acabam substituindo os trabalhadores em fábricas, realizando funções em ambientes nocivos a saúde humana (figura03), aumentando drasticamente os níveis de desemprego na sociedade, causando revoltas populares1.
Figura 03 ‐ Metrópolis, Osamu Tesuka, p. 74
1 O desemprego e revoltas motivados pela automação das fábricas na obra podem ser vistos também como uma alusão ao Ludismo, movimento contrário à mecanização do trabalho trazido pela Revolução Industrial.
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Posteriormente a isso, os próprios robôs, dotados de sentimentos, acabam se revoltando contra seus criadores devido aos maus tratos no ambiente de trabalho (figura 04). Panorama semelhante é mostrado no mangá Astro Boy, de 1952 (figura 05), do mesmo autor. Nele, um cientista cria um protótipo de robô capaz de ter sentimentos.
Figura 04 ‐ Metrópolis, Osamu Tesuka, p. 138
Figura 05 ‐ Astro Boy, Osamu Tesuka
O desemprego causado pelo avanço tecnológico, pode não ter
sido causado por autômatos humanóides como imaginou o autor, mas de fato ocorreu uma substituição da mão de obra humana pela automatizada em fábricas, que também passou a ser utilizada em rotinas de trabalhos desgastantes aos seres humanos e em ambientes nocivos a saúde dos mesmos. Embora ainda não se tenha criado robôs capazes de possuir sentimentos humanos, suas especializações e formas estão cada vez mais próximas da humana, realizando atividades cada vez mais complexas.
Vimos acima alguns exemplos de como a tecnologia fantástica, mas com base na realidade, é mostrada nos quadrinhos japoneses. Diversos outros mangás que tratam de
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temas fantásticos, ligados a tecnologia, apresentam semelhanças no que diz respeito a apresentação de tecnologias.
Em seguida veremos alguns aspectos de tecnologias reais, ou seja, fabricadas e aplicadas pelo homem, mostradas no cotidiano dos cidadãos ou exemplificadas em situações fictícias. Aspectos de tecnologias reais nos quadrinhos japoneses Na obra Gourmet, de Jiro Taniguchi e Masayuki Qusumi,
publicada recentemente no Brasil pela editora Conrad, chama a atenção por seu roteiro peculiar. O que seria colocado em segundo plano em outro mangá, aqui recebe destaque de primeiro plano narrativo... a culinária! Gourmet é uma viagem gastronômica pelo Japão. A cada capítulo uma refeição diferente, e ao fim, um banquete de conhecimento culinário.
Na figura abaixo (figura 06) podemos ver o protagonista comprando um item conhecido como Jetbox. Alguns mangás mantêm seus termos de língua materna não traduzidos, apenas romanizados (Romaji)2, aumentando a imersão do leitor. Devido a esse fato, é oferecido ao final de cada volume de mangá, em sua maioria, um glossário com traduções e definições dos termos não traduzidos.
Além de pequenas tecnologias utilizadas no cotidiano social, o mangá também nos permite entender a funcionalidade de alguns aparatos de tecnologia avançada.
O mangá High School Of The Dead, de Daisuke Sato e Shouji Sato, publicado no Brasil pela editora Panini, conta o drama de um grupo de estudantes que se vê em meio a uma invasão de mortos‐vivos. Em um determinado momento da trama, os países com grande arsenal bélico disparam, em um ato de desespero,
2 O romaji é empregado na transcrição fonética da língua japonesa para o alfabeto latino (ou romano). É a transliteração da língua japonesa.
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mísseis (figura 07) contendo ogivas nucleares nos países de conflito.
Figura 06 ‐ Gourmet, de Jiro Taniguchi e Masayuki Qusumi, pág. 63
* N. T.: JETEBOX é um recipiente com dispositivo aquecedor usado para esquentar marmitas. Sob o fundo do recipiente há cal virgem e uma bolsa d’água. Quando se puxa o barbante que fica do lado de fora, a bolsa d’água estoura, colocando a cal em contato com a água e desencadeando uma reação que libera calor (trecho retirado do glossário apresentado no próprio mangá. Trata‐se, portanto, de um curioso artefato tecnológico de uso culinário, neste caso, utilizado para esquentar a comida).
A frota de defesa naval japonesa consegue destruir os mísseis
antes de atingirem a atmosfera, com exceção de um, que acaba sendo interceptado tardiamente na atmosfera (figura 08) causando um efeito eletromagnético conhecido como P.E.M. (Pulso Eletromagético) ou EMP, do inglês, electromagnetic pulse.
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Figura 07 – High School Of The Dead, de Daisuke e Shouji Sato, Vol. 04, p. 66
Figura 08 – High School Of The Dead, de Daisuke e Shouji Sato, Vol. 04, p. 69
Algumas personagens, conhecedoras de termos técnicos
militares explicam aos companheiros, e consequentemente ao leitor, o significado de tais termos (figura 09).
Figura 09 – High School Of The Dead, de Daisuke e Shouji Sato, Vol. 04, p. 85 Na sequência de imagens surgem os termos H.A.N.E, Raios
Gama, Efeito Compton, Estratosfera e P.E.M. Com a presença do
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glossário ao fim do volume do mangá, encontramos as seguintes definições para cada termo.
H.A.N.E. – sigla de “High‐Altitude Nuclear Explosion”, do ingles, “Explosão Nuclear em Grande Altitude”, relativo a explosões nucleares ocorridas em grande altitude e que geram efeito P.E.M. (ver termo nesse glossário) em larga escala. A maior altitude foi de 400 km na detonação da ogiva nuclear norte‐americana “Starfish‐Prime”, em 9 de julho de 1962. O P.E.M. gerado foi tão intenso, que muitos satélites foram danificados, além de causar danos elétricos em todos os tipos de componentes eletrônicos na região do Havaí. Nos testes soviéticos da “Operação K”, de 1962 detonações a 300 km acima do nível do mar geraram um P.E.M. que conseguiu fritar 570 km de cabeamento telefônico e 1000 km de cabos de alta voltagem que estavam enterrados. Raios Gama – refere‐se à radiação ionizante por radiação eletromagnética. Efeito Compton – diminuição de energia (aumento de comprimento de onda) de um fóton de raios‐X ou de raio gama, quando ele interage com a matéria, ou seja, fótons carregados de energia eletromagnética podem golpear elétrons e expulsá‐los de átomos com números atômicos baixos. No caso de uma bomba nuclear, os fótons de intensa radiação gama produzida pela explosão podem arrancar uma grande quantidade de elétrons dos átomos de oxigênio e nitrogênio existentes na atmosfera. Esse fluxo de elétrons interage com o campo magnético da Terra, criando uma corrente elétrica alternada, que por sua vez induz um potente campo magnético. Finalmente, o pulso eletromagnético resultante induz intensas correntes elétricas em materiais condutores espalhados por uma extensa área, queimando circuitos e causando um blackout generalizado. Estratosfera – camada da atmosfera entre 21 e 50 km de altitude. P.E.M. – sigla de “Pulso Eletromagnético” (ou “EMP”, em inglês, “electromagnetic pulse”). Um campo eletromagnético pode danificar componentes eletrônicos presentes na área. Os P.E.M. podem ter três causas: fatores naturais (explosões estelares); explosões nucleares e bombas de P.E.M. (de alcance bem menor.
Mesmo não sendo essa a intenção primordial da obra, ela
acaba nos oferecendo uma gama de informações acerca de
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ciência e tecnologia, bem como alertas aos danos causados por essas mesmas tecnologias, como no caso exemplificado acima.
Muitos outros títulos possuem essas mesmas características, mas escolhemos apenas dois títulos que mostrassem dois níveis distintos de tecnologia, uma cotidiana e uma de cunho mais avançado.
Concluindo São inúmeras as aparições nas páginas dos quadrinhos
japoneses de termos utilizados nas ciências e que fazem referência aos atuais debates no campo da ciência, tecnologia e sociedade.
Nos mangás mais antigos é possível notar um panorama de futuro, o futuro imaginado pelo autor na época em que criava a obra; memórias de futuro, que, para Bakhtin, constitui o inacabamento em que estamos inseridos, com foco no tempo que esta por vir, ajudando‐nos nas escolhas e tomadas de decisão. Alguns desses panoramas imaginados pelos autores podem se tornar, em parte, realidade, como foi o caso das “tecnologias fantásticas” ao longo do texto.
Também foi possível notar uma preocupação dos editores na significação dos termos escolhidos, apresentando glossários ao final de cada edição lançada3, aumentando o grau das informações contidas no mangá, como foi o caso das “tecnologias reais” durante a construção do artigo.
Essa preocupação em significar da melhor forma possível termos mais específicos nas narrativas das histórias em quadrinhos japonesas possibilita que as mesmas sejam usadas como complementação dos estudos em CTS, ajudando no que
3 Nem todas as editoras fazem uso de glossários, contudo, é unânime o uso de notas de rodapé explicativas, tanto para traduzirem termos como para contextualização e significação dos mesmos.
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diz respeito ao entendimento de discursos e discussões motivadas pelos debates em campos científicos, bem como, em muitos casos, os efeitos colaterais de certas tecnologias criadas e aplicadas pelo homem.
Acompanhando os estudos pedagógicos em CTS fazendo uso de mangás realizados por LINSINGEN (2007), contudo, numa abordagem mais demonstrativa, acentuamos nesse texto alguns aspectos relacionados a ciência, tecnologia e sociedade apresentados, através de discursos quadrinísticos, nos quadrinhos japoneses, cuja aceitação entre a população mundial é cada vez maior.
Utilizar outros suportes de informação que não os tradicionais é uma realidade e a memória coletiva é preservada de acordo com os acontecimentos na qual esta é contextualizada, fazendo‐se assim parte de uma ciência chamada história. Jacques Le Goff em sua obra História e memória (1990), estrutura ideologicamente no último capítulo, nuances entre ambas as disposições de observar a história, seja pelos monumentos ou pelos documentos. Hoje os quadrinhos são apenas quadrinhos, entretanto, futuramente, poderão nos contar acerca do pensamento dominante, dos debates e discussões, das preocupações sociais da época de sua criação... Assim como fazem hoje.
Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
BAZZO, W. A. ; LINSINGEN, I. V. ; PEREIRA, L. T. D. V. Introdução aos Estudos CTS. 01. ed. Madrid: Organização dos Estados Iberoamericanos, 2003.
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FARIA, M. L. de. Comunicação pós‐moderna nas imagens dos mangás. Dissertação (Mestrado), Faculdade de meio de comunicação social. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2007.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP : Editora da UNICAMP, 1990.
LINSINGEN, L. V. Mangás e sua utilização pedagógica no Ensino de Ciências sob a perspectiva CTS. Ciência & Ensino, v. 1, p. 1‐9, 2007.
MESSIAS, A. da S. Marcas enunciativo‐discursivas nas Histórias em Quadrinhos (HQs): Uma proposta de leitura de texto com discurso. Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. 2006.
PATATI, C; BRAGA, F. Almanaque dos quadrinhos: 100 anos de uma mídia popular. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
PINHEIRO, N. A. M. ; MATOS, E. A. A. ; BAZZO, W. A. Refletindo acerca da ciência, tecnologia e sociedade: enfocando o ensino médio. Revista Iberoamericana de Educación, v. 44, p. 147‐166, 2007.
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Uma revisão histórico‐conceitual sobre a Tecnologia Social
Gabriela G. Mezzacappa Introdução
Tecnologia Social (TS) é um termo que vem recentemente
ganhando crescente repercussão social e acadêmica no Brasil. Embora haja ainda poucos trabalhos desenvolvidos a esse respeito, sendo a maior parte proveniente dos mesmos autores ou núcleos de pesquisa, sua abrangência vem crescendo tanto em quantidade de trabalhos (boa parte foi publicada de meados de 2005 para cá), quanto em diversidade de olhares a respeito do conceito, de tecnologias desenvolvidas e de populações relacionadas.
Este trabalho tem como objetivo realizar uma breve retomada histórico‐conceitual do termo, de forma a suscitar novas reflexões que possam contribuir, direta ou indiretamente, com o desenvolvimento da definição e das aplicações da tecnologia social.
Primeiramente, será abordada a noção de tecnologia, conforme o olhar de Feenberg (2008). Num segundo momento, serão apresentadas as definições de Tecnologia Social segundo a Rede de Tecnologia Social (RTS, 2005) e o Instituto de Tecnologia Social (ITS, 2009), além de explorar as diretrizes que definem e orientam a TS, com contribuições de diversos autores. Em seguida, será realizada uma retomada histórica do conceito, indicando suas possíveis origens. Por fim, será indicada uma reflexão a respeito das relações entre TS e o campo da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS).
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A Noção de Tecnologia O correto entendimento do termo tecnologia social é
facilitado por um entendimento do significado do conceito tecnologia, bem como dos diversos olhares a respeito da natureza da ciência e da tecnologia. Segundo Feenberg (2008), a noção de tecnologia remonta à Grécia antiga, tempo e local em que se acreditava que as coisas possuíam em si uma essência que presumia sua finalidade para o uso humano, cabendo aos estudiosos descobri‐la. A techné, nesse contexto, seria o conjunto de conhecimentos a respeito dessa finalidade, que correspondia em seu contexto ao papel que a moderna tecnologia desempenha na sociedade contemporânea.
Para Feenberg, duas máximas exemplificam o pensamento predominante a respeito da ciência e da tecnologia, a de René Descartes, que defendia o domínio da natureza por meio da ciência, e a de Francis Bacon, que afirmava que ser detentor o conhecimento significa ser detentor do poder. A visão atual predominante sobre a Ciência e Tecnologia (C&T) não difere muito da visão moderna. Nos alicerces dessa construção está a noção de que as coisas não possuem um significado e uma função para uso humano em si, mas que os seres humanos atribuem sentidos e utilidades às coisas ao desenvolver nossos artefatos tecnológicos.
Desde a modernidade até atualmente, a tecnologia é o modelo do “ser”. O autor destaca os exemplos da descrição de Galileu a respeito do funcionamento do Universo comparando‐o ao funcionamento de um relógio e dos diversos manuais de “como fazer” que assumem o próprio ser humano como um artefato, cujas regras de funcionamento são por eles ditadas (“Como educar seu filho”, “Como perder peso”, entre tantos outros).
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Essas diferentes visões a respeito da C&T se encaixam em uma representação proposta pelo autor, composta por dois eixos, um simbolizando a neutralidade ou não neutralidade da C&T e outro simbolizando a autonomia ou controle sobre o progresso delas. A Figura 1 pode facilitar o entendimento dessa representação. Nos quadrantes formados por esses eixos se encontram: a) o determinismo (C&T neutras e autônomas em seu desenvolvimento); b) o substantivismo (C&T perspassadas por valores e autônomas em seu desenvolvimento); c) o instrumentalismo (C&T neutras e controladas em seu desenvolvimento); e d) a teoria crítica (C&T não neutras e controladas em seu desenvolvimento).
Figura 1 – Representação das correntes de pensamento a respeito do funcionamento da C&T. Figura produzida pela autora.
Todas essas visões encontram coro em algumas vozes na
sociedade contemporânea, porém Feenberg defende o ponto de vista da teoria crítica, uma vez que ao assumir que C&T não são
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neutras e que seu desenvolvimento deve ser controlado, o autor admite que é necessário pensar nas consequencias do desenvolvimento científico e tecnológico desde sua concepção. Esse ponto de vista também advoga que o desenvolvimento da C&T deveria ser pautado pelas necessidades sociais e desenvolvido democraticamente. Como será possível verificar na próxima seção, esse ponto de vista é bastante adequado às definições e diretrizes da tecnologia social.
Tecnologia Social: Definições e Diretrizes
Foram admitidas aqui as definições de dois dos principais
núcleos de pesquisa e registro de TS no Brasil: a Rede de Tecnologia Social (RTS) e o Instituto de Tecnologia Social (ITS). Ambas possuem uma grande similaridade, embora possa ser considerado que a definição do ITS inclui dois elementos a mais: a apropriação da TS pela população e a noção de melhoria das condições de vida. Também, a definição da RTS inclui “produtos” como parte do que pode ser considerado TS, além das técnicas e metodologias. Devido a essas pequenas diferenças, pode‐se considerar que as definições não são mutuamente excludentes, mas complementares.
Assim, a RTS considera que TS são “produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade que representem efetivas soluções de transformação social” (RTS, 2005). Já o ITS afirma que se trata do
conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida (ITS, 2009, p. 13).
É possível depreender daí as diretrizes que definem uma
certa tecnologia como TS. Cabe ressaltar que as definições não
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foram construídas de forma a criar essas diretrizes, antes foi a confluência de características dos diversos contextos em que a terminologia foi utilizada que permitiu a construção das definições (ITS, 2004).
Há uma concordância entre diversos autores a respeito de quais são essas diretrizes, que são apresentadas abaixo, seguidas das referências que as endossam.
a) TS implica na visão de mundo de que C&T não são neutras, mas condicionadas por valores e intenções específicos (FONSECA, SERAFIM, 2010; ITS, 2004);
b) Voltada à inclusão social, compreendida como inserção de populações historicamente excluídas (como idosos, pessoas com necessidades especiais, mulheres, doentes mentais, entre outros), especialmente em relação ao mercado de trabalho (FONSECA, SERAFIM, 2010);
c) Requer a participação de diversos atores: pesquisadores, poder público e movimentos sociais, sociedade civil organizada, de forma a garantir uma multiplicidade de olhares que possam contribuir para a resolução de uma demanda social (FONSECA, SERAFIM, 2010; ITS, 2004);
d) Possui uma relação com políticas públicas, à medida que podem indicar diretrizes para essas políticas com base na resolução de necessidades sociais específicas (FONSECA, SERAFIM, 2010; DAGNINO, R., 2004);
e) A ênfase está no processo de produção da tecnologia, mais do que no artefato, processo ou metodologia em si (RODRIGUES; BARBIERI, 2007);
f) A construção de conhecimento é coletiva, com participação dos diretamente atingidos (RODRIGUES; BARBIERI, 2007; ITS, 2004);
g) Objetiva o atendimento a demandas sociais concretas, especialmente as locais, uma vez que a C&T não é neutra, deve ser
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direcionada de forma a promover a inclusão e a resolução de problemas sociais (RODRIGUES; BARBIERI, 2007; ITS, 2004);
h) O planejamento e a aplicação são organizados, partindo de uma agenda pré‐definida, de forma que seja possível avaliar seus impactos para aquela população (RODRIGUES; BARBIERI, 2007; ITS, 2004);
i) O processo de construção do conhecimento é ensejo para a aprendizagem de todos os envolvidos, possibilitando concomitantemente uma certa forma de alfabetização científico‐tecnológica para os assim chamados “leigos” e o contato com objetos de pesquisa interessantes para os pesquisadores, entre outras possíveis aprendizagens (RODRIGUES; BARBIERI, 2007; ITS, 2004);
j) A tecnologia desenvolvida deve garantir a sustentabilidade econômica, social e ambiental (RODRIGUES; BARBIERI, 2007);
k) A construção de conhecimento deve ser realizada a partir da prática, levando em consideração o conhecimento tradicional e empírico da população diretamente afetada (ITS, 2004);
l) Deve haver a possibilidade de aplicação e aperfeiçoamento em situações similares (ITS, 2004);
m) Deve ser interdisciplinar em seu desenvolvimento, de forma a possibilitar um olhar mais abrangente acerca da complexidade do problema e solução abordados (DAGNINO, 2004);
n) O conceito deve permanecer em constante construção conjunta, por meio de reuniões, encontros e estudos específicos para esse fim, de forma que a evolução do conceito acompanhe a evolução da sociedade conforme as mudanças forem acontecendo (ITS, 2004).
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Histórico Segundo França (2010), existem duas vertentes a respeito do
surgimento da TS, quais sejam na Índia, com base no desenvolvimento da Tecnologia Apropriada (TA) ou em contraposição à Tecnologia Convencional (TC). É possível, porém, considerar que ambas as vertentes se entrecruzam, podendo ter influenciado concomitantemente o surgimento do conceito.
Dagnino, Brandão e Novaes (2010) contextualizam o surgimento da TS a partir da crise da Tecnologia Apropriada (TA), cuja origem remontaria à Índia do século XIX. No contexto da dominação inglesa, Ghandi teria incentivado a apropriação de uma tecnologia já utilizada por pequenos grupos de artesãos por parte de uma gama maior da população indiana, como forma de combater a importação de produtos estrangeiros e de valorizar a produção nacional, fortalecendo a economia indiana. Trata‐se de uma espécie de roca de fiar, chamada Charkha, cuja importância prática e simbólica foi tão forte no contexto em que o país se encontrava que até hoje é representada em sua bandeira. A apropriação da tecnologia do Charkha para um uso diferente, em mais larga escala, possibilitou estabilidade econômica e social no contexto de crise. Uma frase de Ghandi se tornou célebre ao valorizar o saber tradicional e o uso da tecnologia apropriada: “produção pelas massas e não produção em massa”, contrapondo essa forma de apropriação tecnológica à tecnologia industrializada.
Segundo Rodrigues e Barbieri (2007), mais tarde, já nas décadas de 1960 e 1970, a TA foi difundida como alternativa ao uso das tecnologias desenvolvidas pelos países de ponta, uma vez que essas Tecnologias Convencionais (TC) eram caras e inacessíveis aos países subdesenvolvidos. A TA recebeu diversas denominações entre as décadas de 70 e 90, porém todas elas se
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referiam a um mesmo modelo: admitir uma certa tecnologia pré‐existente e adapta‐la para um uso ou propósito específicos, de acordo com as condições sócio‐culturais dos usuários dessa tecnologia.
Para esses autores, os princípios da TA seriam a baixa necessidade de investimento, a geração de empregos, a simplicidade organizacional, a adaptação sociocultural, a auto‐suficiência local, a economia de recursos, o uso de recursos renováveis e o controle social.
Na década de 70, aconteceu a reunião do Clube de Roma, em que os países desenvolvidos debatiam questões ambientais. Nesse contexto, admitiu‐se que a TA desenvolvida pelos países pobres era interessante, uma vez que permitiria que esses países permanecessem poluindo a uma baixa taxa, de forma que o montante de poluição gerado pelos países mais desenvolvidos pudesse permanecer o mesmo, minimizando a questão ambiental a nível global. Dessa forma, o apoio à TA por parte do Clube de Roma envolveu o interesse de que servisse como um paliativo, mitigou consequencias da situação de dominação por parte dos países desenvolvidos, de forma a manter esse sistema de dominação (RODRIGUES; BARBIERI, 2007).
Assim, uma das críticas citadas pelos autores à TA é o fato de tender a manter a exclusão social por meio de uma geração paliativa de melhores condições de vida. Outras críticas citadas são de que algumas correntes da TA mantinham um pensamento salvacionista, do tipo “a minha tecnologia é a tecnologia adequada, é melhor do que a sua”, e determinista, segundo o que o desenvolvimento científico‐tecnológico é linear e invariavelmente ruma ao progresso, além da visão da ciência como neutra. Assim, a TA gera desenvolvimento social, mas não critica o funcionamento da sociedade (RODRIGUES; BARBIERI, 2007).
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Ainda segundo esses autores, no contexto da globalização e do neoliberalismo, a TA entra em crise, ao se instituir o modelo da TC como a tecnologia ideal, a mais desenvolvida e a que gera vantagens no mercado competitivo, de forma que a TA não mais aparenta ser suficiente para a geração de qualidade de vida, uma vez que aqueles que a adotam não são capazes de competir com os que fazem uso da TC. A crise da TA abriria, assim, em conjunto com os processos de adequação sociotécnica, portas para o desenvolvimento de uma forma mais socialmente adequada de desenvolvimento tecnológico, mantendo os princípios da TA, mas assumindo a não‐neutralidade da C&T e a necessidade da construção coletiva da tecnologia, envolvendo aqueles diretamente atingidos por ela, de forma a possibilitar o empoderamento da população em relação ao conhecimento. Assim, a TS se contrapõe à TA basicamente em relação ao processo de construção do conhecimento.
Para Oliveira, Costa, Dagnino e Faria (2009), a TC serve à lógica capitalista e mercadológica, sendo guiada pelos interesses de quem detém o poder nesse contexto. Porém, essa finalidade da TC permaneceria protegida pela noção de neutralidade científica e tecnológica (a visão de que a TC é a tecnologia de ponta, a mais avançada, isenta de interesses, mas como desenvolvimento natural da C&T). Além disso, por meio de processos de patenteamento, a TC traria lucro aos seus inventores, e não diretamente aos seus usuários, e a geração de bem‐estar e qualidade de vida para a sociedade como um todo aconteceria mais a longo prazo. Dagnino (2004) considera ainda que a TC é inadequada à inclusão social, uma vez que é pautada na lógica da competição e da hierarquização do trabalho, cujo ritmo de trabalho é ditado pelas máquinas num modelo coercitivo de controle da produtividade. Devido ao fato de objetivar o lucro e a competitividade, a TC não permite a participação pública em sua formulação.
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Contrapondo essas características, a TS seria capaz de gerar desenvolvimento social e qualidade de vida a curto prazo diretamente para os inventores e usuários da tecnologia desenvolvida – os próprios atingidos pela problemática solucionada pela TS (OLIVEIRA, COSTA, DAGNINO e FARIA, 2009). Ela seria adequada à inclusão social, aos pequenos produtores e aos empreendimentos autogestionários, sendo que o ritmo do trabalho é ditado pelas necessidades e características daquela população. A TS seria intrinsecamente participativa, não apenas possibilitando a opinião pública a seu respeito, mas a construção coletiva e participativa do conhecimento por todos os interessados (DAGNINO, 2004).
Retomando essa perspectiva histórica, parece bastante palpável imaginar a TS enquanto procedimentos ou artefatos, uma máquina inventada por um conjunto de pessoas, com determinada forma de utilização. Porém alguns autores, como Dal Ri (2007), consideram que o termo TS poderia ser aplicado a formas organizacionais do trabalho e da produção, especificamente as formas associativas e autogestionárias de trabalho, que teriam surgido para sanar uma demanda social específica. Assim, não se pode perder de vista que a definição de TS é mais ampla, e tem sempre em vista uma inovação social, uma tecnologia nova para ser aplicada com um propósito específico a uma situação específica.
Com o desenvolvimento da TS e a criação da RTS e do ITS, foram também desenvolvidos centros de difusão de tecnologia social e incentivos ao desenvolvimento de TS, de forma a possibilitar a replicação da TS por outros grupos sociais, de forma adaptada ao novo contexto sócio‐cultural. Algumas das instituições relacionadas a isso são: RTS, ITS, Fundação Banco do Brasil, Banco de Tecnologias Sociais, Centro Brasileiro de Referência em Tecnologia Social, Centro Avançado de
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Tecnologia Social Ayrton Senna (RODRIGUES; BARBIERI, 2007; OLIVEIRA, COSTA, DAGNINO E FARIA, 2009).
Tecnologia Social e o Campo CTS
Bourdieu (1997) afirma que a agenda da C&T é definida por
quem detém poder na comunidade acadêmica. Essa afirmação suscita a reflexão a respeito de quem detém o controle da ciência. O mercado? Os gestores públicos? A comunidade científica? A sociedade em geral? Nesse sentido, Dagnino (2004) aponta que a agenda de pesquisa da Universidade é definida pelos grande nomes, que são os que são reconhecidos, especialmente no exterior. Dessa forma, a pesquisa seria orientada para os interesses externos, e não para a realidade nacional.
Merthon (1968) postulou o chamado Efeito Matheus na ciência. Segundo esse modelo, a comunidade científica é estratificada de forma que apenas aqueles que já possuem renome obtêm vantagens, sendo que pesquisadores que não têm vínculos com esses “grandes nomes” dificilmente se tornarão reconhecidos. Assim, analisando esse fato em conjunto com as postulações de Dagnino (2004) e Bourdieu (1997), é possível inferir que se trata de um círculo vicioso, em que o reconhecimento recai sobre os pesquisadores que estão no topo da pirâmide, que definem a agenda de pesquisa nacional, e os temas que esses pesquisadores tratam está relacionado à agenda de pesquisa internacional, que prioriza a tecnologia convencional. Dessa forma, pesquisas relacionadas a temáticas de interesse direto da sociedade brasileira seriam desvalorizadas, e esse pode ser um dos motivos do descrédito sofrido pela universidade na sociedade brasileira (DAGNINO, 2004), uma vez que ela não atende interesses “nem para a classe dominante nem para a classe dominada” (DAGNINO, 2004, p. 21).
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Nesse contexto, a tecnologia social poderia se apresentar como possível alternativa para o concomitante atendimento de necessidades e problemáticas sociais específicas e para o desenvolvimento de pesquisas mais focadas à realidade local, regional e nacional (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2010). Segundo o FINEP (2008), a TS foi inserida recentemente no campo da ciência, tecnologia e sociedade, por se tratar de um conceito relativamente recente. Ele se relaciona intimamente com a metodologia de pesquisa‐ação, uma vez enfocando a resolução de uma condição social adversa e específica, de forma que o debate pode ser expandido na direção das metodologias de pesquisa atuais, numa interface que pode ser rica tanto ao desenvolvimento do conceito de TS quanto aos estudos metodológicos.
Ainda no sentido de uma possível interface entre o conceito de TS e os estudos em Ciência, Tecnologia e Sociedade, Oliveira (2005) critica o modelo de ciência como alavanca do progresso, ou seja, a visão determinista, se aproximando da visão da teoria crítica a respeito da ciência e da tecnologia. Retomando as diretrizes e o histórico apresentados acima, é possível relacionar mais intimamente a TS ao modelo da teoria crítica da C&T que Feenberg (2008) aborda, uma vez que ambas se pautam numa noção de C&T não neutra e cujo progresso deve ser controlado, no sentido de que os pesquisadores, ao desenvolver um conhecimento ou uma tecnologia, são também responsáveis por pensar sua aplicação e, com isso, seus possíveis efeitos positivos ou negativos sobre a sociedade e o meio‐ambiente. França (2010) coloca ainda a necessidade de repensar o modelo de desenvolvimento, pautado pelo aumento da produtividade e do consumo acima das condições do meio‐ambiente e do ser humano. Nesse sentido, o autor considera que a TS pode ser disseminadora de novos valores, por ter como um de seus critérios a sustentabilidade sócio‐ambiental.
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Para o ITS (2004), existe a necessidade de participação pública para o avanço da ciência, em consonância com os interesses e necessidade da sociedade. A TS é colocada por ele como facilitadora desse processo, uma vez que não apenas permite a opinião pública a respeito do desenvolvimento científico‐tecnológico, mas também coloca ao alcance dos próprios interessados diretos (acometidos pelas situações‐problema) participarem da construção do conhecimento e da tecnologia que lhe serão mais adequados, tendo valorizado o seu saber empírico e tradicional.
Segundo Velho (2010), as políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) no Brasil estão gradativa e lentamente mudando a visão predominante de ciência, ao menos em alguns círculos sociais, de uma visão determinista para uma visão de que ela deve ser socialmente contextualizada, local e voltada a interesses nacionais. Essas características estão presentes nas diretrizes nacionais para CTI, embora na prática provavelmente não se verifique uma mudança palpável na visão predominante sobre C&T, especialmente dentro da academia. Nesse contexto, e considerando todas as possíveis articulações já apresentadas entre TS e o campo CTS, a TS encontra campo fértil para se desenvolver e contribuir com a expansão e consolidação do campo CTS, como ferramenta potencialmente transformadora do fazer científico atual.
Conclusão
Este trabalho coloca‐se enquanto um esforço de reflexão
sobre a tecnologia social, suas diretrizes, história e inserção no campo CTS. Porém ainda são necessários estudos complementares, de forma a clarear essas questões. Uma discussão que poderia ser aprofundada, por exemplo, seria sua relação com a metodologia de pesquisa‐ação participativa, cujos
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pressupostos metodológicos em muito se assemelham aos da TS: construção de conhecimento para a solução de uma demanda social específica, participação do grupo diretamente afetado na construção desse conhecimento, adequação a coletivos pequenos e médios, entre outros (THIOLLENT, 2003).
A TS é criticada por diversos pensadores, como paternalista, assistencialista e postuladora de necessidades sociais irreais (FINEP, 2008). Todas essas críticas poderiam ser respondidas com as seguintes informações:
a) não se trata de paternalismo ou assistencialismo, uma vez que promove a aprendizagem do processo de construção de conhecimento por parte dos “leigos” envolvidos, de forma que se a Universidade ou outra instituição envolvida no processo se retirar, a própria população será capaz de desenvolver suas soluções.
b) com relação à crítica que afirma que a TS postula necessidades sociais irreais, ela é produzida a partir de uma problemática trazida explicitamente pela população diretamente atingida por ela, sendo que essa mesma população participa na produção de conhecimento e formulação da tecnologia. A problemática não é identificada por um pesquisador externo àquela população e apresentada a ela, a postura assumida pelo pesquisador é de escuta das demandas em relação direta com as pessoas atingidas. Assim, dificilmente a problemática tratada pela TS é erroneamente postulada (FINEP, 2008).
Essas críticas poderiam ser consideradas ingênuas, uma vez analisadas as diretrizes da TS. Outras questões, talvez mais relevantes do que se a TS é ou não assistencialista ou paternalista, poderiam ser levantadas, tais como: Como se relaciona o envolvimento da TS com a formulação de políticas públicas com a liberdade da ciência em seu livre‐pensar? Como se dá a questão da propriedade intelectual da TS, de forma a garantir que o grupo que a desenvolveu não seja lesado devido à
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apropriação de sua tecnologia por outrem para fins comerciais, garantindo ao mesmo tempo sua reaplicabilidade? Que outras propostas de participação social na C&T e de transformação social por meio da C&T já foram, estão sendo, ou poderiam ser propostas?
Relacionada a segunda questão, uma crítica talvez mais relevante seja o fato das iniciativas de TS se inserirem em um contexto sócio‐político mais amplo que valoriza a competição e a TC, será que ela pode ser considerada uma efetiva solução social, enquanto esses pequenos empreendimentos são mantidos pequenos? Não estaria a TS contribuindo, com a participação social e a visão de não‐neutralidade da ciência, para a manutenção dos oprimidos no lugar de oprimidos, tal como o fazia a TA?
Da mesma forma que a autogestão está imersa em contradições, tal como o fato de que os empreendimentos autogestionários precisam competir com empreendimentos capitalistas no contexto social em que vivemos, a TS sofre com contradições parecidas. Tais contradições não devem ser consideradas empecilhos ao desenvolvimento de possíveis estratégias de desenvolvimento dessa proposta, mas oportunidades de aperfeiçoar um conceito e uma prática que continuam em constante construção e que possuem potencial transformador, tanto dentro quanto fora da academia. Dessa forma, espera‐se que esta breve retomada histórico‐conceitual, ainda muito resumida, possa servir de provocação para que novos estudos sejam feitos no sentido de criticar, aperfeiçoar e promover a tecnologia social enquanto parte do campo da ciência, tecnologia e sociedade.
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Blogs como espaço discursivo: para além da perspectiva tecnológica
Gustavo Grandini Bastos
Lucília Maria Sousa Romão Introdução
Durante a história humana, tanto a ciência, como a tecnologia, têm sido observada como relevantes estruturas para o desenvolvimento de nossa sociedade em diversos setores, permitindo a alteração dos rumos da economia, educação, política, saúde e do campo social. Nos dias atuais, essa constatação é observada com grande força por diversos teóricos (SANTOS; MORTIMER, 2002). Uma infinidade de produções científicas e tecnológicas afetam as formas de entender questões de nossa sociedade, inclusive desestabilizando sentidos considerados imutáveis e tidos como estabelecidos. Acreditamos que o computador, a internet e os blogs são três exemplos dessas produções que afetaram de forma única e profunda a sociedade contemporânea, produzindo efeitos que configuram outras relações com o espaço, tempo e com as formas de subjetivação.
Acreditamos que os estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (doravante CTS) podem colaborar efetivamente para pensarmos tais questões, já que suas investidas teóricas avançam em um desejo de refletir a sociedade afetada pela ciência e tecnologia (doravante C&T). Contribuindo para essa discussão, mobilizamos a Análise do Discurso de tradição francesa para pensar os blogs como um espaço discursivo fecundo para pensar a noção de sujeito, fugindo de postulações ingênuas que os espaços digitais são neutros e não seriam afetados nem afetariam a constituição de sujeitos. Consideramos que o sujeito discursivo
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inscreve‐se em regiões de dizer afetadas pela ciência e pela tecnologia, novas condições de produção dos discursos hoje.
O campo CTS: alguns conceitos em curso
O campo CTS é observado por Bazzo (2003) como um espaço
de estudo e pesquisa acadêmica que trabalha com a reflexão dos aspectos sociais da ciência e da tecnologia Isso no âmbito relativo as necessidades sociais que acabam criadas com as pesquisas em busca de respostas realizadas por ambas, assim como no que afeta as consequências resultantes de seus produtos e serviços. Destacamos que a apresentação de C&T como detentora do desenvolvimento humano como a chave de pleno progresso, riqueza e bem estar social permearam o discurso técnico‐científico por muito tempo, como se ambas fossem neutras e não afetadas por questões outras, como os fatores políticos e ideológicos que afetam o sujeito cientista (BAZZO, 2003). Como se a ciência e a tecnologia por si só assegurassem o desenvolvimento humano ou mesmo detivessem a única verdade existente: tal concepção é ingênua no nosso entender (AULER; DELIZOICOV, 2001).
De acordo com Auler e Bazzo (2001), no século XX, ocorreu a observação de que o desenvolvimento científico, econômico e tecnológico não acompanhava mais a ilusória equação que postulava que apenas a evolução da ciência e da tecnologia eram suficientes para alcançar o desenvolvimento social e econômico de todos. Corroborou para isso a observação de pontos relevantes como a identificação de problemas ambientais e desenvolvimento armamentista, que ocorreram em decorrência do pretenso avanço da Ciência e Tecnologia. Iniciamos, então, um período que permitiu uma melhor avaliação e questionamento acerca dos efeitos sociais da C&T e produziu efeitos no sentido se refletir que as ações geradas não são sempre
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positivas, que é importante a participação democrática e é necessário pensar todas as consequências envolvidas nos processos de C&T (AULER; BAZZO, 2001). Relações simplistas que equacionam o desenvolvimento científico e o tecnológico levando ao desenvolvimento econômico e finalmente ao bem estar de todos os membros da sociedade (GONZÁLEZ GARCÍA et al., 1996) passaram a ser colocadas em xeque, furando o modelo de precisão matemática que passou a ser questionado, indagado. Vale registrar que tal movimento permitiu novos questionamentos que passaram a inserir a C&T dentro de outro enquadre e outras perspectivas.
Tal movimento de abrir‐se a novos contextos eivado de contradições é agigantado com o surgimento da internet, criada por Vannevar Bush no âmbito da valorização da ciência e de seus avanços para as conquistas militares durante a Segunda Grande Guerra Mundial. No seu relatório Science: the Endless Frontie, redigido a pedido do presidente estadunidense Franklin Roosevelt, o criador da rede fundamenta que ela forneceria pontos de possibilidade para a consolidação da paz no mundo. Uma falsa noção de que todos os problemas poderiam ser resolvidos com a criação de produtos de C&T passa a ser muito difundida, embasada por uma pretensa neutralidade e suposta busca de progresso identificado como sempre positivo, ancorado em decisões cientificas observadas como verdades cientificas inquestionáveis (AULER; BAZZO, 2001), como se essa completude fosse possível e certa. A partir de então, observamos duas tendências de estudos de CTS no mundo, nos Estados Unidos e na Europa. A perspectiva de estudos americanos observa as influências que a C&T acabam por resultar na vida dos sujeitos, considerando muito mais as consequências ambientais e éticas resultantes das transformações acarretadas pelos produtos gerados pela ciência e tecnologia (LINSINGEN, 2007; CACHAPUZ, et al., 2008). Já os estudos europeus têm o
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interesse de observar como o contexto social afeta as mudanças cientificas e tecnológicas (BAZZO, 2003). Após essas colocações, discutiremos traços da denominada Sociedade da Informação para, posteriormente, adentrarmos o campo de discussão da internet e seu histórico evolutivo.
A Sociedade da Informação vem sendo nomeada de diversas formas, dentre as quais destacamos Sociedade do Conhecimento, Sociedade da Educação, Sociedade de Informações (TAKAHASHI, 2000; MIRANDA, 2003) e vem sendo objeto de estudo de uma série de pesquisadores nas mais variadas áreas do conhecimento científico. Essas denominações colocam em movimento conseqüências e impactos causados pelas tecnologias de comunicação e informação (TIC) nas sociedades contemporâneas, afetadas por espaços sociais e territoriais contrastantes entre si, com necessidades sociais e práticas culturais igualmente distintas entre si (SORJ, 2003). Desse modo, A Sociedade da Informação
[...] não é um modismo. Representa uma profunda mudança na organização da sociedade e da economia, havendo quem a considere um novo paradigma técnico‐econômico. É um fenômeno global, com elevado potencial transformador das atividades sociais e econômicas, uma vez que a estrutura e a dinâmica dessas atividades inevitavelmente serão, em alguma medida, afetadas pela infra‐estrutura de informações disponível. É também acentuada sua dimensão político‐econômica, decorrente da contribuição da infra‐estrutura de informações para que as regiões sejam mais ou menos atraentes em relação aos negócios e empreendimentos. Sua importância assemelha‐se à de uma boa estrada de rodagem para o sucesso econômico das localidades. Tem ainda marcante dimensão social, em virtude do seu elevado potencial de promover a integração, ao reduzir as distâncias entre pessoas e aumentar o seu nível de informação (TAKAHASHI, 2000, p. 5).
O termo “Sociedade da Informação” já foi muito estudado,
inclusive com a busca por essa origem epistemológica, sendo
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incerta a sua origem, embora existam indícios de que seu aparecimento surgiu em documentos científicos de trabalhos provenientes dos Estados Unidos e Japão da década de 1960. O desenvolvimento do termo ganha força na década seguinte, graças ao entendimento das transformações que passam a ocorrer no mundo, discutindo seu papel e importância numa sociedade que passava por grandes mudanças e avanços no campo das comunicações e tecnologia. Nesses termos, a American Society for Information Science (ASIS) foi a primeira que atuou na difusão e trabalho do termo na década de 1970 através da Annual Review of Information Science and Technology (ARIST) (FREITAS, 2002), de tal maneira que esse conceito se formaliza logo após a Segunda Guerra Mundial com o advento das inovações tecnológicas (MATTELART, 2002).
Cresce nos anos da década de 1980 a consciência acerca da importância social da informação, sua consistência e necessidade na nova constituição mundial, destaca‐se ainda a complexidade da discussão sobre o modo de as TICs adquirirem espaço e lugar, visto que
essas tecnologias permitem a coordenação de tarefas e a administração da complexidade. Isso resulta numa combinação sem precedentes de flexibilidade e desempenho de tarefa, de tomada de decisão coordenada e execução descentralizada, de expressão individualizada e comunicação global, horizontal, que fornece uma forma organizacional superior para a ação humana (CASTELLS, 2003a, p. 8).
Com a consolidação do termo Sociedade da Informação, as
TICs permitiram o desenvolvimento de uma série de tecnologias e a melhoria de da circulação de dados, sendo a rede eletrônica o ponto alto desse processo. Com o desenvolvimento da rede e com a ampliação de sua velocidade e capacidade de compactar dados, inicia‐se um novo momento, no qual a internet está ao lado da evolução da engenharia eletrônica, desenvolvimento da fibra óptica, avanço do homem no espaço, aprimoramento do
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conhecimento acerca do mapeamento genético e de uma infinidade de conquistas possíveis e auxiliadas graças as TICs (GUERREIRO, 2006).
O vertiginoso desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicações tem sido um poderoso instrumento para a rotinização reorganização e automatização do trabalho intelectual. O fenômeno tecnológico tem operado como liberador de energia cognitiva, que será necessariamente aplicada na área de conhecimento de cada ser humano, não importa seu nível de educação (MIRANDA, 2003, p. 62).
As inovações possibilitadas pela ciência e tecnologia
facilitaram o acesso e transmissão de informações na contemporaneidade num nível nunca antes pensado, e a Internet permitiu uma infra‐estrutura de circulação de grande quantidade e variedade de informações (BRANSKY, 2004), por isso, ela apresenta características únicas e seu desenvolvimento consistiu em uma “aventura humana extraordinária” (CASTELLS, 2003a, p. 13). A rede é apresentada por Sawaya (1999) de uma forma muito interessante, já que marca sua existência em uma atuação de forma descentralizada, oferecendo uma série de serviços e recursos, sendo considerado um fundamental e poderoso instrumento de comunicação e tecnologia no mundo contemporâneo, sendo que é possível existir através das conexões via telefone (LÉON, 2004). Tal dispositivo funciona interligando mais de uma rede local, para tanto, é necessário um roteador nesse processo de trocas e intercâmbios, permitindo assim um fluxo comunicacional e informacional eficiente, permitindo o acesso a recursos locais ou remotos por parte dos sujeitos‐navegadores.
O histórico de desenvolvimento da Internet teve um incentivo muito grande vindo do medo proveniente dos anos de tensão da Guerra Fria, foi devido ao constante receio dos Estados Unidos de perder a corrida armamentista para a União Soviética,
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que motivou a liberação de uma grande quantia em investimentos por parte do Departamento de Defesa Norte‐Americano e executado pela ARPA, que visava o desenvolvimento de um sistema de comunicação eletrônica entre os Centros de Conhecimento e Pesquisa daquele país de forma que pudesse ocorrer o alerta caso ocorresse algum ataque por parte dos soviéticos oferecesse perigo para os americanos. A denominada Guerra Fria permitiu a existência de
um contexto em que havia forte apoio popular e governamental para o investimento em ciência e tecnologia de ponta, particularmente depois que o desafio do programa espacial soviético tornou‐se uma ameaça à segurança nacional dos EUA (CASTELLS, 2003a, p. 22).
Ainda marcando algumas passagens importantes para a
construção da rede eletrônica, no ano de 1961, foi publicado o primeiro artigo sobre comutação de pacotes de autoria de Leonard Kleinrock. A Arpanet era um pequeno projeto desenvolvido em um dos departamentos da ARPA, o Information Processing Techniques Office (IPTO), fundado em 1962, tendo como objetivo o incentivo a pesquisa na área de computação interativa. Na década seguinte, no ano de 1971 o primeiro programa de e‐mail foi desenvolvido por Ray Tomlinson; exatamente em 1972 houve uma Conferência em Washington que realizou‐se a primeira demonstração pública e muito bem sucedida da Arpanet, além da prática de uma intensa pesquisa que foi realizada concebendo como um dos resultados o TCP/IP, um conjunto de protocolos, na década seguinte uma série de outras instituições de ensino superior passaram a integrá‐la. Em 1973, Robert Kahn e Vint Cerf lançaram um artigo com delineações acerca da Internet, ambos eram membros de institutos respeitáveis, o primeiro da ARPA e o segundo vinculado da Universidade de Standford (CASTELLS, 2003b; NOVAES; GREGORES, 2007). Em 1980, é inscrito pela primeira
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vez o termo Internet e, em 1985, que tivemos por iniciativa da National Science Foundation (NSF) a interligação dos computadores de seus centros de pesquisa e que em 1986 foi conectada a Arpanet, essa rede local da NSF recebeu o nome de National Science Foundation Network (NSFnet) e pode ser considerada a espinha dorsal da internet que conhecemos atualmente, quando criada fazia a conexão entre cinco grandes supercomputadores, a conexão desses computadores a essas duas espinhas dorsais, backbones, passou a ser conhecido como Internet (CASTELLS, 2003a), quatro anos depois, no caso 1990, a Internet já era utilizada por mais de cinquenta milhões de pessoas, oitenta milhões em 1996 e em 1999 por cento e cinquenta milhões de pessoas (BARBOSA, 2005; NOVAES; GREGORES, 2007) a maioria esmagadora vivia em países desenvolvidos.
A World Wide Web (WWW) foi criada por Tim Berners‐Lee, um consultor de informática e físico que quando desenvolveu essa ferramenta atuava profissionalmente no laboratório de física da área de Altas Energias do European Organization for Nuclear Research (CERN), situado em Genebra, Suíça. O projeto da World Wide Web surgiu devido a necessidade de existir uma ferramenta que permitisse a realização de pesquisas colaborativas entre os físicos do mundo todo, já que o CERN é um importante pólo de estudos do mundo e o caráter colaborativo da área de física exigia tal função auxiliar visando o desenvolvimento da ciência no mundo. O projeto apresentado pelo pesquisador tinha o seguinte título World Wide Web: Proposal for a Hyper Text Project (NOVAES; GREGORES, 2007). A importância da World Wide Web para o desenvolvimento e aprimoramento da Internet é gigantesco visto que “tornava‐se possível gerar um conjunto de informação cujo conteúdo envolvia não só palavras mas também imagens, sons e movimentos” (NOVAES; GREGORES, 2007, p. 24), Berners‐Lee criou ainda uma série de outras ferramentas,
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tais como o Hyper Text Transfer Protocol (HTTP) e o Hyper Text Markup Language (HTML). Essa gigantesca rede é ligada por uma infinidade de apetrechos tecnológicos indo de cabos telefônicos, fibra óptica, rádio e satélite, a velocidade das operações depende muito de que sistema é usado para essa ligação, por isso variando bastante. Devido à existência de uma infinidade de computadores e sistemas de velocidade distinta fazendo uso da Internet ocorre por isso um processo que visa transmitir os dados todos na mesma velocidade, o protocolo tem o nome de Transport Control Protocol/Internet Protocol (TCP/IP).
A rede eletrônica comporta uma discursividade que muito nos interessa, o blog, definido por Santaella (2004) como o lugar que é aberto quando o navegador conecta‐se à rede eletrônica através da Internet, um espaço que permite efetivas explorações por parte de quem puder inscrever‐se em suas redes. É do inglês a origem da palavra ciberespaço, tendo sido usada pela primeira vez pelo escritor estadunidense‐canadense William Gibson, nos romances Neuromancer (1984) e Count Zero (1987), no qual postulava esse espaço como um local de encontros, desencontros, trocas e disputas (BENEDIKT, 2002; BELL et al., 2004; FERNANDES, 2000). Ele escapava de definições meramente técnicas para tratar da rede como um lugar em que a sociedade e o sujeito eram realmente relevantes, Lévy (2007, p. 104):
Existe no mundo, hoje, um fervilhar de correntes literárias, musicais, artísticas, quando não políticas, que falam em nome da ʺciberculturaʺ. O ciberespaço designa menos os novos suportes de informação do que os modos originais de criação, de navegação no conhecimento e de relação social por eles propiciado.
O ciberespaço é compreendido assim como ʺcamaleônico,
elástico, ubíquo e irreversívelʺ (LEÃO, 2004, p. 9), englobando pessoas, redes de computadores e sistemas, em uma ʺinter‐
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relação homens‐documentos‐máquinasʺ. Existe uma observação do ciberespaço como um universo que existe em ‘paralelo’ ao mundo ‘físico’, com uma nova noção de velocidade e movimento, que vem ganhando força em nível global, sem que haja uma ideia de centralização (SANTAELLA, 2004), abrigando opostos na mesma teia, numa rede polissêmica de discursos e sujeitos. O sujeito não possui uma rede segura em seu caminhar pelas trilhas ofertadas pelo ciberespaço, inexiste bússola que assegure o caminho a ser tomado entre conexões de links e palavras, os furos que margeiam a rede existem e não permitem tal desejo de estabelecimento cartográfico. Essa ideia de fluidez e caminhos movediços que caracterizam a rede nos remete ao escrito “O livro de areia” do argentino Jorge Luis Borges, visto que o livro e a rede apresentam efeitos de mudança, de deslocamento em uma trama aparentemente infinita, marcada pela possibilidade de inexistir o que antes estava ali, presente, aos olhos do leitor, o que comparece como condição para que os arquivos eletrônicos possam esvair‐se como fumaça e não possam mais ser encontrados. No livro de areia ou nas páginas de silício que constituem a rede a instabilidade e a não rigidez marcam o que é enunciado (ROMÃO, 2005).
Com a rede eletrônica, hábitos se alteraram e novas maneiras de comunicação e de produção/ circulação de sentidos tornaram‐se possíveis, incluindo novas possibilidades de escrita e leitura, em espaços discursivos como os blogs e outras páginas eletrônicas diversas, tais como as de museus eletrônicos, sites de compras, registros pessoais, listas de discussão etc. Temos, nesses espaços, um ambiente interativo, permeado pelos sentidos que lhe atribuem a condição de um lugar de livre enunciação, em que se tem a ilusão de tudo poder dizer e contestar, sem interrupções ou mesmo silenciamentos. (DIAS, 2005).
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O blog situa‐se nesse âmbito, trata‐se de uma abreviatura de Weblog, junção das palavras web (página da Internet) e log (diário de bordo) (SCHITTINE, 2004; KOMESU, 2005; SOUZA, 2009), que se popularizou muito no ciberespaço, sendo compreendido como um dos gêneros que emergiram com as novas tecnologias de informação e comunicação (MARCHUSCHI, 2004). O blog enquadra‐se como um produto da chamada Web 2.0, que buscou ampliar as maneiras possíveis de disponibilizar e produzir informações (PRIMO, 2006). É compreendido como uma ferramenta que permite a publicação de pequenos blocos de texto que se apresentam, geralmente, organizados em arquivos cronológicos, sendo de fácil utilização, devido a pouca exigência de conhecimentos técnicos de informática para sua estruturação e permanente ‘alimentação’, atualização de postagens. Nele é possível disponibilizar, além de textos, uma série de recursos como imagens, sons, vídeos, etc. Destacamos que, atualmente, vários autores trabalham com uma série de tipologias de blogs, como, por exemplo, os empresariais, jornalísticos, políticos, educacionais, científicos, etc. Em nosso texto, dedicamo‐nos a analisar, inicialmente, os blogs pessoais.
De acordo com Amaral, Recuero e Montardo (2009), o termo weblog foi usado pela primeira vez em 1997 por John Barger para tratar de sites que realizavam a difusão de links que consideravam interessantes para um determinado grupo, por conta dessa semelhança, muitos autores “como David Winer considerem como o primeiro weblog o primeiro site da web, mantido por Tim Berners‐Lee, no CERN. O site tinha como função apontar todos os novos sites que eram colocados no ar” (AMARAL, RECUERO, MONTARDO, 2009, p. 28). Altamente popular no mundo, o não reclama grandes conhecimentos acerca da linguagem especializada da informática para a sua montagem, construção e postagem, além da rápida atualização publicação do material que é postado (AMARAL, RECUERO,
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MONTARDO, 2009), abrindo espaço para a relação interativa com outros navegadores.
O Technorati é compreendido como um sistema que realiza a busca e indexação de blogs e outros conteúdos criados e administrados por sujeitos navegadores do ciberespaço, assim são rastreados e monitorados links, comentários e promovendo a apresentação das temáticas mais populares e dos principais blogs da internet (SILVA, 2007). De acordo com o último relatório, publicado em 2010, nomeado State of the Blogosphere grande parte dos blogueiros demonstraram que tem conseguido estabelecer novas amizades e relações com pessoas que nunca conheceram pessoalmente (63%). Esse caráter de buscar outros sujeitos, que tenham proximidades ou concordâncias com suas idéias, marcam a internet. Foram entrevistados 7200 blogueiros, desses entrevistados 51% utilizam os blogs como espaços de exposição de suas ideias, ou seja, como diários eletrônicos (TECHNORATI, 2010). De acordo com Tapscott e Williams (2008, p. 19), milhões de pessoas partilham informações e realizam postagens que são atualizadas a cada segundo e interessam a uma infinidade de sujeitos inseridos nesse espaço. O que permite concluir que muitos blogs recebem um número de leitores e navegadores equivalente a grandes espaços tradicionais de circulação de notícias e informações.
Observamos a exposição de um mosaico de várias vozes emendadas de modo contínuo a fazer (des)enrolar um imenso pergaminho eletrônico onde estão marcadas a voz do sujeito‐blogger e as outras tantas vozes de sujeitos‐navegadores. As marcas do privado passam a funcionar discursivamente como algo tecido no âmbito da coletividade, ou seja, do público que acessa o blog (SCHITTINE, 2004). Temos, assim, pegadas diversas dos passos de sujeitos implicados e afetados pelo tema ou autor do blog, pegadas estas que nos remetem ao conceito de um discurso permanentemente em construção sem outro fecho a
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não ser a postagem de cada sujeito. O efeito de fim é escamoteado e colocado em pausa, suspendendo o instante de acabamento e criando a ilusão de um gerúndio contínuo, que é sustentada pelo movimento de sujeitos em trânsito (ROMÃO, 2005).
Compreendemos o blog como um diário às avessas, no qual o sujeito não escreve para si em um caderno guardado em lugar secreto, mas para um outro, que lhe é, no entanto, desconhecido. Marcamos que, de acordo com Komesu (2005), os três maiores sites de construção de blogs brasileiros atribuem ao blog a definição de diário eletrônico, o que marca a ressonância de que ainda é comum o uso desse espaço discursivo como diário eletrônico, como discursividade marcada pela produção e circulação de discursos sobre si e sobre o mundo a partir do estabelecimento de relações nos mais variados níveis, do afetivo ao espaço de confissão.
Um olhar discursivo sobre blogs
A Análise do Discurso de matriz francesa (doravante AD)
surgiu em meados dos anos 60 e é marcada por fundamentar‐se em três áreas do conhecimento: a Linguística, o Marxismo e a Psicanálise; de acordo com Orlandi (2005), a teoria surge como fruto de um contexto marcado por rupturas, assim “com o progresso da linguística, era possível não mais considerar o sentido apenas como conteúdo. Isto permitia à AD não visar o que o texto quer dizer (posição tradicional da análise de conteúdo face a um texto), mas como um texto funciona”. O discurso pode ser entendido como um dos pilares de sustentação da Análise do Discurso de matriz francesa, que como colocado por Ferreira (1998, p. 203) pode ser entendido como
[...] um objeto teórico na AD. Isto significa que ele é entendido, em primeiro lugar, como um lugar de reflexão. Pêcheux define‐o como
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‘efeito de sentido entre interlocutores’. Mais do que um resultado, o discurso vai definir um processo de significação no qual estão presentes a língua e a história, em usa materialidade, e o sujeito, devidamente interpelados pela ideologia.
Para a AD a noção de discurso tem um distanciamento da
noção de fala e da estrutura clássica proposta pelo esquema de comunicação, que é constituída da seguinte maneira: emissor (que fala baseando‐se em algum código) e receptor (que capta a mensagem e acaba por decodificá‐la). Por essas razões o discurso se coloca como o “objeto teórico da AD (objeto histórico‐ideológico), que se produz socialmente através de sua materialidade específica (a língua); prática social cuja regularidade só pode ser apreendida a partir da análise dos processos de sua produção, não de seus produtos” (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, 2010). Assim, não existe um sentido pré‐existente e fixado (ORLANDI, 1997), de modo que a noção de evidência é ilusória, pois durante a leitura, os sentidos escapam e, não raro, caminham para outras direções, antes não pensadas pelo sujeito enunciador.
Ao inscrever‐se na linguagem, o sujeito assume‐se em uma posição, sempre provisória dada pelo que lhe é possível dizer na posição em que está; assim, o sujeito não é controlável, tampouco pode ser categorizado a partir de parâmetros sociológicos ou psicológicos, é posição no discurso. A Análise do Discurso considera que o sujeito assume uma posição dentre outras, podendo movimentar‐se, provocando um rompimento com os sentidos dominantes, conseguindo assim rompe‐los novamente, sustentando‐se para depois rompê‐los novamente, enfim, o sujeito movimenta‐se em processo de errâncias, visto que ele funciona pelo inconsciente e pela ideologia, não sendo assim, dessa forma, a fonte transparente de seu dizer. O sujeito é a posição social e ideológica que ocupa em um determinado momento da história e podendo vir a não ocupar a mesma
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posição em outro momento. O processo discursivo, que acaba por apresentar sentidos como claros para o sujeito, não tem uma escolha aleatória, mas é fruto da evidência ideológica daquilo que é aceito e imposto como natural pelo grupo dominante, que, por sua vez, está em constante tensão com o grupo dominado, que deseja aquela posição de poder. Isso tem relação fundamental com a ideologia, entendida não como um sistema que oculta um ponto de vista, mas como ponto de relação constitutiva entre sujeito e condições sócio‐históricas, de modo que um dizer faça sentido para o sujeito.
Assim, são as evidências que permitem que o sujeito consiga olhar a realidade através de sistemas de significação, permitindo que seu dizer tenha relação com o contexto sócio‐histórico no qual está inserido (ORLANDI, 1997). Sobre a ideologia, podemos considerar também que ela “se produz justamente no ponto de encontro da materialidade da língua com a materialidade da história” (ORLANDI, op.cit., p. 20). Entendemos, nos dizeres, a injunção ideológica, isto é, o mecanismo que “torna possível tanto à naturalização de alguns sentidos, pela força da repetição, quanto os seus deslocamentos, rupturas, através do jogo tenso das relações ideológicas de poder entre os sujeitos e, também, da história” (FERRAREZI, 2007, p. 18). A evidência de um sentido dado como indiscutível e claro pela ideologia é o que permite ao sujeito enunciar, produzindo retornos e deslocamentos, deslocando‐se pela língua a partir de repetições e regularidades em enunciados produzidos hoje renegociam sentidos já‐postos em funcionamento em outros contextos.
A memória para a AD não é aquela referente às lembranças que possuimos, mas uma memória que os sujeitos se encontram inscritos, assim é condição da linguagem já que o sujeito sempre se move em dizeres alheios, re‐significando‐os e inscrevendo‐se em lugares já ditos, promovendo manutenções ou deslocamentos nas formações discursivas. Entendemos, assim, o efeito de ‘fio do
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discurso’ do sujeito que se aninha em uma formulação discursiva mobilizando “o eco de antigas palavras” como canta o trovador. Os movimentos observados no ciberespaço possibilitam grandes incursões da AD que pode trabalhar com a reflexão de como o sujeito é afetado pelos dizeres ali existentes e nos quais se filia ou rompe sentidos em movimento, assim como rompe o que se encontra posto como permanente. Como dito anteriormente, a rede eletrônica visa a transmissão de uma concepção de lugar sem furos e que todos podem acessar, mas a realidade é outra, já que nem todos tem acesso a ela e o furo discursivo é inevitável.
Para investigar como se dá a constituição de sujeitos e sentidos nos blogs e na Internet, apresentamos uma análise discursiva de um recorte do texto “Tornados da Minha Vida” e um comentário obtido do blog “Confissões de um Urso” e postado no dia 3 de janeiro de 2011. No heterogêneo espaço discursivo do blog, o constante uso da primeira pessoa do discurso nesses diários contemporâneos é algo recorrente, sendo costumeira a escrita de caráter coloquial e confessional, marcada pela oralidade e pelo questionamento de si e do(s) outro(s). O sujeito é capturado pela ilusão de ser o dono do seu dizer e poder enunciar o que desejar (PÊCHEUX, 1997), instalando‐se como livre nas páginas de seu diário eletrônico. O sujeito blogueiro possui condições de interditar, apagar, censurar comentários postados pelos leitores do blog e que eventualmente não concorde o que instala uma região de disputa nesse espaço. No primeiro recorte:
Fonte: CONFISSÕES DE UM JOVEM URSO, 3 jan. 2011. Disponível em: <http://jovemurso.wordpress.com/tag/tornados‐2/>. Acesso em: 20 jun. 2011.
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Flagramos sentidos que rompem com o dominante, ao observarmos o espanto do sujeito blogger com o questionamento feito por uma outra voz sobre o processo de exposição na internet, anotando a desfronteirização do privado através da exposição em um espaço público. O Outro é mais que apenas o leitor, ele inter‐fere no texto do dono do blog, instalando ali um espaço polêmico de disputa por regiões de dizer, algo da ordem da confrontação tensa de reconhecer a exposição pública de detalhes íntimos em contraponto com o que está naturalizado como evidente, como prática comum atualmente. O blogueiro promove uma ruptura no sentido de que a circulação de dados na rede é livre, questionando a difusão do que se escreve no on‐line, fazendo des‐crer o poder de alcance que sua escrita realmente teria, visto que ele não sabe exatamente quantos sujeitos vão acessar aquele arquivo discursivo, opinar ou apenas ler. Emerge o sentido de que se pode dizer ali posto que é lugar seguro e secreto, disponibilizar o que se desejar ali, retomando a memória discursiva dos antigos diários que guardavam segredos e que era acessado somente por seu dono. Temos a circulação de sentidos que postulam o espaço eletrônico como guardador de segredos e intimidades, que não serão acessados, vasculhados e remexidos por outros sujeitos. No segundo recorte, temos um comentário postado por um leitor do mesmo blog, no qual se reforça a paráfrase discursiva.
Fonte: CONFISSÕES DE UM JOVEM URSO, 3 jan. 2011. Disponível em: <http://jovemurso.wordpress.com/tag/tornados‐2/>. Acesso em: 20 jun. 2011.
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A intimidade e o efeito afetivo em relação ao diário na rede são flagrados na marca querido, na qual retomamos os sentidos de proximidade e confidência. No comentário, o sujeito‐leitor Foxx retoma sentidos que atestam que quem não possui um blog se espanta com o processo de desvelamento de segredos no espaço ali. Os opostos unem‐se no blog, visto que a exposição e o segredo caminham lado a lado, já que o sujeito blogueiro mantem sua identidade em segredo, ocupando outra posição discursiva na rede, no qual tece uma infinidade de relatos que são de sua intimidade, mas ao mesmo tempo matem‐se resguardado, pois ocupa na rede outra identidade, possibilitada por essa tecnologia que afeta sua vida e possibilita uma nova forma de intimidade. Os segredos são abertos a todos, na maioria das vezes estranhos, que acabam por acessar e filiar‐se às palavras expostas em dado diário e blog, estabelecendo relações e permitindo uma intimidade entre sujeitos que muitas vezes nunca se encontraram na dita vida real, fora do espaço virtual. Considerações finais
Com os avanços científicos e tecnológicos, impactos
profundos puderam ser observados em nossa sociedade contemporânea, também nomeada de sociedade da informação. As relações alteraram‐se, novos padrões e possibilidades acabaram possíveis com tais desenvolvimentos, entre eles tivemos a Internet e as ferramentas interacionais possibilitadas por ela, como os blogs que permitiram uma inscrição de vozes outras na rede eletrônica e com isso a chance de observação de sentidos outros
O diário encontra no ciberespaço um espaço de inscrição, mas que é outra ordem, pois sai de cena do campo do segredo reservado e guardado permanente, entrando na esfera de exposição da intimidade no céu aberto da rede. A importância de
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revelar para o mundo os detalhes mais íntimos, de observar o que os outros acham de tudo isso e de não ter certeza da aceitação ou mesmo da durabilidade do blog são muitos fatores que afetam sua existência e a injunção ideológica de dizer nesse lugar. Permanece a busca por expressar, pela escrita, sentimentos e questões tomadas como interessantes e fundamentais não apenas para o sujeito, mas também para um público ávido de leitores que busca ali um espaço de filiação e de uma pretensa certeza, mesmo que o leitor não saiba quem realmente escreve as linhas ali postadas, já que muitas vezes, como no caso do blog aqui estudado, não se sabe a real identidade do sujeito‐autor. Aliás isso parece o menos importante, o que favorece a (suposta) liberdade que afeta o blogger em suas exposições ao olhar do outro.
Vimos que o sujeito‐ navegador da Internet enreda‐se em palavras que não são suas, entremeando‐se a voláteis redes de sentidos e de sujeitos que produzem um efeito de heterogeneidade e incompletude. Historicamente, os homossexuais enfrentam uma série de preconceitos (SOARES, 2006), observamos que buscar um espaço de filiação e de inscrição da subjetividade dos gays na rede mantém relação com a inscrição de outros discursos e sentidos não estabilizados, abrindo espaços de ruptura e deslizamento nos pergaminhos digitais existentes. São novas formas de dizer e simbolizar o mundo que afetam o sujeito contemporâneo profundamente. Referências AMARAL, Adriana; MONTARDO, Sandra; RECUERO, Raquel. Blogs: mapeando um objeto. In: ______ (Org.). Blogs.com: estudos sobre blogs e comunicação. São Paulo: Momento Editorial, 2009. p. 27‐54.
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O planejamento sustentável do turismo e sua interface com o campo CTS
Helton Gonçalves
Introdução
O turismo se constitui em um importante fenômeno social, de grande atratividade econômica, passível de proporcionar uma série de benefícios às localidades onde se desenvolve, como: interação social, geração de divisas e empregos, desenvolvimento socioeconômico, entre outros.
No início do século XXI, o turismo surge como uma força social, cultural e econômica capaz de movimentar centenas de milhões de pessoas pelo mundo todo. É uma atividade relativamente nova, compreendida como fenômeno de massa há apenas meio século (ANSARAH, 2000).
O turismo está difundido no mundo inteiro, pois a partir do processo de globalização das economias e da cultura, assim como, a melhora nos meios de comunicação e transporte, são poucos os lugares que não são acessíveis aos turistas (BARRETO, 2004).
No Brasil, observam‐se esforços no sentido de implantar um conjunto de políticas públicas com o objetivo de fomentar a atividade turística no país, tanto por parte do governo federal, quanto nas esferas estaduais e municipais, com o argumento de que o turismo pode ajudar a alavancar o desenvolvimento econômico em diversas regiões brasileiras (SILVEIRA, 2002).
Contudo, não é viável fomentar o desenvolvimento do turismo sem planejamento. Os impactos socioculturais e ambientais provenientes da atividade turística muitas vezes não são levados em conta pelos articuladores do turismo.
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Assim, quando surgiu o turismo de massa, caracterizado pelo deslocamento e pela permanência nos núcleos receptores de um grande número de turistas, acreditava‐se que os recursos naturais eram inesgotáveis e por isso, estabelecia‐se poucas restrições ao seu uso. Porém, o tempo e o número excessivo de turistas em locais
específicos demonstraram que o turismo agride as características e a originalidade das atrações. A constatação de que os recursos turísticos são finitos e de que seu uso deve ser monitorado levaram especialistas e os responsáveis pelo desenvolvimento da atividade, considerar a necessidade de planejamento para regiões com potencialidade turística (RUSHMANN, 1997).
O planejamento do turismo pressupõe o cuidado não somente com o meio ambiente natural, mas também com sustentabilidade social, política e econômica, fatores estes que não possuem fácil conciliação (BARRETO, 2005).
O turismo, por sua vez, trata‐se de um campo científico multi e interdisciplinar que abrange diversas áreas do conhecimento como a biologia, antropologia, engenharia, arquitetura, sociologia, direito, comunicação, história, entre outros. Assim, esses campos do saber podem ajudar na elaboração do planejamento sustentável do turismo.
A intersecção disciplinar que origina o campo científico do turismo e que também dialoga tanto com as ciências exatas quanto as ciências humanas se refere a uma das temáticas dos estudos sociais da ciência e tecnologia (BLOOR, 2010).
A proposta deste trabalho é analisar como a ciência pode auxiliar no planejamento sustentável do turismo por meio das mais diferentes áreas do conhecimento. O saber científico ajuda o desenvolvimento da atividade turística, tornando‐a sustentável, minimizando seus impactos negativos e maximizando os seus benefícios.
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O turismo feito sem planejamento pode acarretar impactos sociais, culturais e ambientais para as comunidades receptoras. O planejamento turístico vai ao encontro dos preceitos do campo da Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), ao promover um turismo sustentável, com responsabilidade socioambiental, visando o bem‐estar da sociedade. Ciência, tecnologia e o planejamento sustentável do turismo
A ciência, uma criação do ser humano, faz parte da sua cultura e tem como um dos seus compromissos auxiliar na solução dos problemas enfrentados pela sociedade no seu cotidiano. De acordo com Salles e Kovaliczn (2007), a ciência não deve caminhar sozinha, isto é, tem que evoluir ao lado da sociedade por meio de uma postura holística, contemplando aspectos históricos, éticos, ambientais, políticos e sociais.
No século XX, o desenvolvimento tecnológico e científico trouxe inúmeros progressos, porém, havia a necessidade de se fazer uma reflexão crítica sobre a C&T, visando uma aproximação desses dois conceitos com as questões sociais. A partir de então, os estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) estabelecem que a C&T precisam contribuir de maneira efetiva para bem‐estar social e ir ao encontro das demandas da sociedade,
A Ciência e a Tecnologia evoluíram eficazmente a partir da segunda metade do século XX, fruto, entre outras coisas, da Guerra Fria ocorrida entre os Estados Unidos e a União Soviética, o que contribuiu para o surgimento de um novo campo de investigação científica associado ao domínio da Sociologia denominado Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), amplo movimento de repercussão mundial que vem influenciando a metodologia do ensino de ciências há mais de três décadas. A sua finalidade maior é instruir o cidadão,
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visando a sua participação efetiva em assuntos correlacionados à ciência e à tecnologia que contribuam efetivamente para a promoção do bem‐estar social (CRUZ et al., 2005, p.17).
Bazzo, Linsingen e Pereira (2000, p.04), destacam que as
pesquisas em CTS visam entender os aspectos sociais do fenômeno científico‐tecnológico, tanto nos assuntos que ressaltem os condicionantes sociais da tecnologia, quanto nas temáticas relacionadas ao meio‐ambiente,
Esse campo de estudo trata também de favorecer o desenvolvimento e a consolidação de atitudes e práticas igualitárias com relação às questões de importância social relacionadas com a inovação tecnológica ou a intervenção ambiental. Propicia o compromisso a respeito da integração das mulheres e minorias, assim como o estímulo para um desenvolvimento socioeconômico respeitoso com o meio ambiente e equitativo com relação às futuras gerações.
As preocupações do campo CTS em proporcionar o desenvolvimento econômico da sociedade de forma que se respeite às questões socioambientais também se referem aos propósitos do planejamento sustentável do turismo.
A Organização Mundial de Turismo (2001, p.36) define turismo como “as atividades que as pessoas realizam durante suas viagens e estadas em lugares diferentes ao seu entorno habitual, por um período consecutivo inferior a um ano, com finalidade de lazer, negócios ou outros”.
Para Trigo (2009, p.11), o turismo integra um universo maior, denominado lazer. Compreendem‐se por lazer todas as atividades desenvolvidas fora do sistema produtivo (trabalho), das obrigações sociais, religiosas e familiares. “O lazer é uma necessidade e um direito tão legítimo do ser humano quanto a educação, a saúde, o transporte ou segurança”.
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O ser humano é um animal extremamente especial e complexo, que não se contenta com o mínimo indispensável a sua sobrevivência. Sua vida envolve aspectos mais amplos, como os lúdicos, imaginativos e criativos, elementos esses, encontrados na atividade turística (TRIGO, 2009).
Além de dialogar com elementos eminentemente humanos, vê‐se que turismo surge atualmente como um importante fenômeno social, de grande atratividade econômica, ele é capaz de proporcionar desenvolvimento sócio‐econômico, com a geração de renda e emprego, interação entre as pessoas, ocasiona a difusão cultural, cria uma imagem favorável a destinação turística, entre outros.
Entretanto, apesar dos inúmeros benefícios, o desenvolvimento do turismo pode trazer algumas desvantagens, como: desenvolver demanda em excesso; gerar perdas tão grandes, que os benefícios econômicos não cobrem o custo; criar problemas sociais decorrentes de diferenças sociais e de renda e da introdução de prostituição, do jogo e do crime; pode degradar o ambiente físico e cultural, entre outros (GOELDNER, et.al, 2002).
Rushmann (1997, p.10) avalia que em quase todas as destinações turísticas é possível perceber a falta de cultura turística das pessoas que viajam, pois elas se comportam de forma alienada em relação ao meio que visitam, “acreditando não terem nenhuma responsabilidade na preservação da natureza e na originalidade das destinações”.
Ainda segundo a autora, os turistas entendem que seu tempo livre é “sagrado”, que têm direito ao uso daquilo pelo que pagaram e, por permanecerem pouco tempo na destinação turística, não podem ser responsabilizados pelas agressões ao meio ambiente (RUSHMANN, 1997).
Os impactos do turismo no meio ambiente podem ser desastrosos, caso não sejam dimensionados. Os recursos naturais
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são limitados e atividade turística se localiza preferencialmente em regiões onde esses recursos apresentam maior disponibilidade. Dado o risco que o uso massivo e desordenado pode acarretar, recomenda‐se que o turismo seja realizado de forma que se compatibilize o seu uso com a proteção do meio ambiente (RABANY, 2003).
Para que o turismo não traga impactos negativos é preciso planejar. O planejamento faz parte de uma ação anterior, em que muitos fatores precisam ser coordenados para que o seu objetivo possa ser alcançado (BARRETO, 2005).
A finalidade do planejamento turístico consiste em ordenar as ações do homem sobre o território, também direciona o uso de tecnologias de forma adequada, evitando assim, os efeitos negativos que podem destruir ou reduzir a atratividade do turismo (RUSHMANN, 1997).
O planejamento sustentável da atividade turística induz o desenvolvimento do turismo sustentável, isto é, o equilíbrio harmônico entre três dimensões: a econômica, a sociocultural e a ambiental (DIAS, 2003).
De acordo com Barreto (2005), o planejamento turístico tem sido objeto de muitas definições ao longo do tempo. Isso não é uma peculiaridade, mas algo normal dentro das ciências humanas e sociais, nas quais as definições não obedecem aos mesmos critérios de elaboração seguidos pelas ciências exatas,
Quando elaboramos conceitos que se referem a leis da física, da química, da matemática ou da biologia, não há muita possibilidade de variações sob pena de perder‐se o sentido da definição. Mas quando os conceitos se referem às leis sociais, há uma maior flexibilidade e cada pessoa pode elaborar a sua própria definição de fenômenos, desde que entenda os princípios básicos que os produzem (BARRETO, p.29, 2005).
Em meio a essa flexibilidade conceitual, pode‐se perceber que
o bom planejamento do turismo vai muito além de metas que
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maximizem os lucros, muito embora o desenvolvimento lucrativo traga benefícios econômicos e sociais para a comunidade, a atividade turística também pode trazer danos.
Os empreendedores turismo ao estimular essa atividade devem se preocupar em manter a qualidade arquitetônica das edificações que são visitadas, assim como os recursos naturais; escolher meios de transportes adequados, promover a educação turística, entre outros (GOELDNER, et.al, 2002).
Dessa forma, o planejamento turístico se refere a um conceito holístico, apropriando‐se do conhecimento de diversos campos científicos, pois eles auxiliam na sustentabilidade da atividade.
A diversidade dos tipos de estudos referentes ao turismo denota sua interdisciplinaridade. Na maioria dos trabalhos, o turismo é analisado “sob os cânones da especialização de cada disciplina que o constitui ‐ economia, antropologia, geografia, planejamento, administração, marketing, sociologia e comunicação”, pois não existe uma teoria turística consolidada (MOESH, 2000, p.07).
Primeiramente, pode‐se destacar que as ciências sociais dão suporte ao campo científico do turismo pelo fato do turista ser considerado um agente social. A ciência do turismo ainda está em formação, mas alguns estudiosos já arriscam a mencionar, principalmente na Europa, como a “ciência social de viagens” (ANSARAH, 2000). Barreto (2004) acredita que o turismo é um fenômeno
socioantropológico, em que a antropologia ajuda a averiguar o comportamento das populações receptoras e emissoras, buscando assim, planejar o turismo de forma que não gere grandes impactos sociais.
A sociologia do lazer, temática que começou a ser difundida a partir da década de 1970, tem no turismo a sua referência. Esse campo abrange “todas às ocupações às quais o indivíduo pode se dedicar, após se desobrigar das tarefas familiares, profissionais e
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sociais. A condição de liberdade de optar pelo que fazer seria inerente ao lazer” (PAIVA, 2005, p.35).
Em contrapartida, por meio da biologia é possível conhecer os biomas existentes e que podem ser apropriados pelo turismo, visando sempre à implantação de projetos de educação ambiental para que o turista além de apreciar os recursos naturais possam também conservá‐los. Quando as ações são controladas e planejadas, o turismo se torna uma das formas viáveis de se explorar economicamente os recursos da natureza, em que o objetivo maior é a sua preservação, pois são os elementos naturais que justamente dão atratividade ao turismo (RABANY, 2003).
A engenharia de tráfego juntamente com a arquitetura pode ajudar na elaboração do roteiro que deverá ser percorrido pelos ônibus de turismo de modo a não piorar o trânsito urbano e também não afetar edificações históricas, pois os ônibus causam certa trepidação nesse tipo de construção, que com o passar do tempo, causam trincas e rachaduras. Além disso, a fumaça que exala dos escapamentos danificam a pintura desses prédios históricos (DAMAS, 2007).
Aliás, o campo científico da história possui grande importância na atividade turística, pois por meio dela é possível ressaltar os aspectos culturais e artísticos de uma sociedade e que podem despertar o interesse do turista em viajar, fazendo com que ele possa valorizar o passado e o simbolismo histórico das localidades turísticas (CHOAY, 2001).
Já as ciências jurídicas estudam o conjunto de relações e fenômenos que se originam do ato ou fato jurídico que o indivíduo leva a efeito de compreender ou realizar uma viagem; permite ainda conhecer os direitos e deveres dos viajantes, bem como o código de ética do bacharel de turismo. “O turismo é considerado exercício do direito à liberdade individual de trânsito” (ANSARAH, 2000, p. 16).
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No planejamento do turismo, as informações são externadas por meio de ações de marketing, considerada uma área da comunicação.
Dessa forma, para que o turista tenha conhecimento sobre determinada localidade, o marketing turístico possui um papel mais do que decisivo, pois de acordo com RUSCHMANN (1990), um plano de marketing se constrói basicamente com uma profunda análise do mercado turístico, tendo como metas principais: aumentar o fluxo turístico, persuadindo os turistas potenciais a se deslocarem para a destinação com ações promocionais e publicitárias.
Entretanto, a promoção de uma localidade tem que ser feita com responsabilidade, procurando evidenciar as suas reais características, com a preocupação de que determinada informação pode causar algum tipo de reação nas pessoas, buscando primar pelo real, evitando a veiculação de informações imprecisas que possam confundir o turista, sendo que tais informações devem retratar com exatidão os aspectos culturais, sociais e ambientais do local a ser visitado (DAMAS, 2007).
E por fim, o campo científico do turismo tem a missão de fazer a convergência entre diferentes áreas do saber e buscar soluções criativas e inovadoras que venham suprir as necessidades do mercado, preocupando‐se não só com o lado econômico, dando a devida importância aos aspectos sociais e culturais dessa atividade, além de avançar nos conhecimentos científicos do próprio turismo, para que se possa aumentar a eficácia do planejamento da atividade turística (GUZELA, 2004)
Segundo Barreto (2005, p.32), “O planejamento implica a aplicação de políticas preexistentes ou a elaboração de novas, assim como de planos, programas, projetos (...)”. Dessa forma, o planejamento do turismo necessita de uma articulação das mais diferentes entidades públicas.
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E os objetivos governamentais são de fundamental importância. As metas do governo não devem ter como foco o desenvolvimento turístico somente sob o ponto de vista econômico. É necessário levar em conta os aspectos sociais, culturais e ambientais da atividade, pois eles não devem ser negligenciados e exigem envolvimento e estudo por parte das entidades governamentais. “Historicamente, o êxito do turismo em uma destinação depende da ação do Estado” (RUSHMANN, p.155, 1997).
Conforme com Barreto (2005), uma das propostas mais recentes para propiciar o desenvolvimento do turismo realmente sustentável é a do planejamento cooperativo, que vai além da proposta das parcerias entre os setores público e privado, incluindo a união entre os diferentes níveis de governo, entre as diversas agências governamentais e entre estas e os diferentes interessados do setor privado. Considerações finais Os estudos em CTS ajudam a averiguar como os mais
diferentes campos científicos congregam o planejamento sustentável do turismo, possibilita constatar que a ciência e a tecnologia podem auxiliar no desenvolvimento do turismo de forma que ele não traga prejuízos à sociedade. As políticas públicas de turismo, por sua vez, necessitam
fomentar o turismo com planejamento, observando sempre os impactos socioambientais que essa atividade pode causar.
O turismo e a busca por um tempo livre que possa ser dedicado às viagens despontam como um anseio do homem pós‐moderno, que lida com diversas pressões referentes ao cotidiano vivido nos grandes centros urbanos.
Assim, pode‐se perceber que a expansão da atividade turística se refere a um processo natural da sociedade do lazer e a ciência
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e tecnologia pode prover os sustentáculos desse fenômeno social, fazendo com que o turismo traga mais impactos positivos do que negativos.
As discussões levantadas nesse trabalho se referem apenas a uma apreciação inicial sobre a relação existente entre o conhecimento científico e o planejamento do turismo, sendo pertinente a realização de pesquisas que complementem as explanações desse estudo.
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Reflexões sobre a importância do conhecimento tradicional para a ciência e o desenvolvimento da sociedade
Lívia Coelho de Mello
Camila Carneiro Dias Rigolin
A humanidade desde sempre esteve em busca do desenvolvimento e atualmente uma forma de alcançá‐lo é por meio da informação e do conhecimento. A informação segundo Scotti (2007) tem se constituído num instrumento imprescindível ao desenvolvimento social, político e econômico dos países, devido principalmente ao processo de globalização e aumento do uso das ferramentas tecnológicas.
A informação e o conhecimento, objetos de estudo para a Ciência da Informação, são termos distintos, porém, complementares. Setzer (1999) os diferencia da seguinte maneira:
‐ Informação: abstração informal, que representa algo significativo para alguém através de textos, imagens, sons ou animação [...] A representação da informação pode eventualmente ser feita por meio de dados.
‐ Conhecimento: é uma abstração interior, pessoal, de alguma coisa que foi experimentada por alguém. [...] o conhecimento não pode ser descrito inteiramente, não depende apenas de uma interpretação pessoal, como a informação, pois requer uma vivência do objeto do conhecimento. [...] Associamos informação à semântica. Conhecimento está associado com pragmática.
Uma informação, quando transmitida para um receptor por meio de um processo de comunicação, pode se transformar em conhecimento, e este pode gerar desenvolvimento, constituindo desta forma o ciclo citado por Barreto (1998):
informação => conhecimento => desenvolvimento => informação
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Davenport e Prusak (1998 apud VALENTIM, 2002) dão ao conhecimento as seguintes características:
• Informação valiosa da mente humana • Inclui reflexão, síntese, contexto • De difícil estruturação • De difícil captura em máquinas • Freqüentemente tácito • De difícil transferência Foi após a Revolução Industrial que o papel do conhecimento
passou por mudanças, pois os homens passaram a pensar mais sobre o controle de suas relações com a natureza, sobre as transformações econômico‐sociais que estavam ocorrendo e sobre a veracidade do conhecimento. (BERTELLI; PALMEIRA; VELHO, 1967)
Antes do surgimento das técnicas de impressão, para Wersig (1993) o conhecimento era pessoal e organizado na forma oral tradicional, tanto é que, “por um longo período de tempo provérbios e conhecimentos dos camponeses formaram um respeitável corpo de conhecimento baseado na experiência pessoal a na tradição”. Com a produção escrita à mão o conhecimento era divulgado e armazenado, porém era transmitido a uma parcela mínina da população, pois eram necessárias pessoas capazes de ler e depois transmitir oralmente para outras.
Com a invenção de Gutemberg, houve uma grande evolução na transmissão do conhecimento, possibilitando um número maior de pessoas registrarem seus conhecimentos e mais pessoas terem acesso a eles. No século XIX, com os desenvolvimentos tecnológicos, as impressões passaram a serem feitas em grandes escalas, aumentando desta forma o valor do conhecimento registrado.
O registro do conhecimento feito por meio da publicação de documentos impressos, como em livros, jornais e revistas, se
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tornou a principal forma de divulgar informações científicas e não científicas para a população. Mas, para Wersig (1993) este meio de documentação fez o conhecimento ficar despersonalizado, sem a dependência de um indivíduo para transmiti‐lo, diferentemente do que ocorria quando as informações eram divulgadas oralmente.
Esta forma de impessoalidade existente na leitura de documentos impressos faz aumentar a utilização das “tecnologias de comunicação mais personalizadas” (WERSIG, 1993), como por exemplo, a televisão. Há também o aumento de eventos que promovem a interação entre as pessoas, como congressos, seminários e workshops; mantendo desta forma os canais informais de comunicação, nos quais os conhecimentos são transmitidos pessoalmente.
O conhecimento, independente dos diversos meios que o representam, de acordo com Morin (2000, p.20) “sob forma de palavra, de idéia, de teoria, é o fruto de uma tradução/reconstrução por meio da linguagem e do pensamento e, por conseguinte, está sujeito ao erro”. Sendo o desenvolvimento do conhecimento científico um poderoso meio de detecção dos erros.
O Conhecimento Científico
O conhecimento científico é a fonte para o desenvolvimento
da ciência e da tecnologia em um país. Tem início com as atividades de pesquisa científica, caracterizadas pela utilização do método científico. Este conhecimento é sistemático, organizado, objetivo, está sempre procurando respostas para o “como” e o “porque” dos fatos, propõe teorias e hipóteses, e é encontrado, sobretudo, dentro das instituições de ensino e pesquisa e as conclusões científicas geradas por esses
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conhecimentos são consideradas verdadeiras até que se prove o contrário.
A criação do conhecimento por um pesquisador “parte daquilo que foi construído anteriormente por outros pesquisadores”, utilizando “os canais de comunicação em todo o ciclo do conhecimento – desde a sua criação até a sua divulgação” (LEITE; COSTA, 2007).
A comunicação científica é o processo mais importante na construção do conhecimento científico, pois é por meio desta que o conhecimento de um indivíduo é transmitido para outro. Para isto ser possível, existem dois canais de comunicação: o formal, que é representado geralmente pela escrita, é de fácil armazenamento e recuperação, sendo os principais exemplos o livro e o periódico; e o informal, difundido pela fala, presente na interação direta entre as pessoas, ocorrida durante encontros, como por exemplo os que acontecem em congressos.
Os canais informais são mais utilizados do que os formais na divulgação do conhecimento científico, mas a forma mais abrangente é a da publicação por meio dos canais formais de comunicação, devido sua capacidade de atingir um número mais elevado de pessoas. Atualmente o acesso às informações escritas está mais fácil, por causa das bases de dados que disponibilizam artigos pela internet.
Não basta adquirirmos o conhecimento pelo método científico e adotarmos uma abordagem científica a esse conhecimento. Defendo que para ser considerado conhecimento científico deve também ser aceito por parcela significativa da comunidade científica [...] conhecimentos científicos não adequadamente divulgados não serão conhecimento útil enquanto permanecerem fora do discurso científico corrente. (VOLPATO, 2004)
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Quanto maior for a divulgação do conhecimento científico, maior será o desenvolvimento da ciência e o progresso tecnológico, essenciais para o bem estar da sociedade, quando utilizados de maneira correta. Devido a importância deste tipo de conhecimento, fica claro que os governos deveriam investir mais nos sistemas de pesquisa e desenvolvimento, aumentando e incentivando as comunidades científicas e os fluxos da informação científica.
Atualmente o valor que se dá ao conhecimento científico é muito maior ao dado a outros tipos de conhecimento, como o conhecimento tradicional e o tácito, porém eles são também de extrema importância para a humanidade.
O Conhecimento Tradicional
O conhecimento tradicional ao contrário do conhecimento
científico não é registrado e nem organizado, porém “é a forma mais antiga de produção de teorias, experiências, regras e conceitos, isto é, a mais ancestral forma de produzir ciência.” (MOREIRA, 2007).
Caracterizado como sendo um conhecimento transmitido de geração por geração, é encontrado principalmente nas comunidades locais, que englobam os povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores artesanais, camponeses, entre outros. É um conhecimento que abrange as mais diversas áreas do saber, porém a que mais se destaca é a relacionada com a biodiversidade, devido ao fato das comunidades tradicionais possuírem uma ligação muito grande com a natureza.
Este conhecimento relacionado com a biodiversidade envolve desde técnicas de manejo de recursos naturais, métodos de caça e pesca, o conhecimento sobre os diversos ecossistemas, propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas e até mesmo as categorizações de espécies de flora e fauna. (SANTILLI, 2004).
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O desenvolvimento e o compartilhamento do conhecimento pelas comunidades tradicionais ocorrem segundo Santilli (2004) “a partir de pesquisas e observações minuciosas, especulações, experimentações e ampla troca de informações” e são “produzidos a partir de atividades e práticas coletivamente desenvolvidas na floresta”.
A preservação deste tipo de conhecimento é de fundamental importância para a sustentabilidade global e consequentemente para a sobrevivência da humanidade, sendo objeto de estudo de muitos pesquisadores e temas de diversos fóruns e convenções, os quais discutem sobre a proteção do conhecimento tradicional.
Frequentemente as comunidades tradicionais são procuradas por cientistas, que se deslocam até elas interessados por informações sobre a biodiversidade local. A fim de diminuir o tempo e os recursos gastos com pesquisas os cientistas utilizam essas informações em experimentos e produtos, como por exemplo, na fabricação de medicamentos ou cosméticos, gerando lucros com a comercialização e com as patentes que possam ser criadas, tornando‐se contemporaneamente um ativo para o comercio internacional.
A simples transformação dos conhecimentos tradicionais em mercadorias ou commodities, a serem negociados no mercado, representa a subversão da lógica que preside a própria produção desses conhecimentos. (SANTILLI, 2004, p.14)
O problema é que os benefícios gerados com estas atividades
comerciais na maior parte das vezes não são repassados para as comunidades que deram origem ao conhecimento. Esse assunto foi um dos destaques na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que aconteceu no Rio de Janeiro em 1992, sendo publicada a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), com os seguintes objetivos: conservação da diversidade biológica; uso sustentável de suas
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partes constitutivas e repartição justa e eqüitativa dos benefícios que advêm do uso dos recursos genéticos (CUNHA, 1999).
A Convenção sobre Diversidade Biológica reconhece que: é desejável repartir eqüitativamente os benefícios derivados da utilização do conhecimento tradicional, de inovações e de práticas relevantes à conservação da diversidade biológica e à utilização sustentável de seus componentes. [...] Reconhecendo a estreita e tradicional dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais e populações indígenas com estilos de vida tradicionais. (CDB, 1992)
A CDB reconhece a importância das comunidades
tradicionais na conservação e uso sustentável da biodiversidade, sendo consciente também da necessidade do desenvolvimento da capacitação científica, técnica e institucional que proporcione o conhecimento fundamental necessário ao planejamento e implementação de medidas adequadas para prever, prevenir e combater na origem as causas da sensível redução ou perda da diversidade biológica.
Propondo no Artigo 12 (Pesquisa e Treinamento): a) O estabelecimento, a manutenção e o apoio a programas
de educação e treinamento científico e técnico; b) O estimulo às pesquisas que contribuam para a
conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica, especialmente nos países em desenvolvimento,
c) A cooperação na utilização de avanços científicos da pesquisa sobre diversidade biológica para elaborar métodos de conservação e utilização sustentável de recursos biológicos.
Também na Conferência de 1992 foi publicado o documento intitulado “Agenda 21” que propôs, no capítulo 26, o “reconhecimento e o fortalecimento do papel das populações indígenas e suas comunidades”, traçando diversos objetivos a serem cumpridos pelos governos, sendo que o terceiro, objetiva:
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“o reconhecimento de seus valores, seus conhecimentos tradicionais e suas práticas de manejo de recursos, tendo em vista promover um desenvolvimento ambientalmente saudável e sustentável”; é descrita também algumas atividades que podem ser atribuídas aos governos, como a de “adotar ou reforçar políticas e/ou instrumentos jurídicos apropriados que protejam a propriedade intelectual e cultural indígena e o direito de preservar sistemas e práticas consuetudinários e administrativos”. Há ainda neste documento no capítulo 40, a proposta de fortalecimento da capacidade de difusão da informação tradicional.
Até este momento no Brasil o que regulamenta o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para a conservação e a utilização da diversidade biológica, é a medida provisória 2.186‐16 de 23 de agosto de 2001, porém muitas discussões estão acontecendo para que seja criado um sistema de proteção mais eficiente.
Lentamente, muitas propostas estão surgindo, mas a efetivação delas não é fácil, devido às controvérsias sócio‐jurídicas existentes sobre a proteção do conhecimento tradicional. A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) defende a utilização do sistema de patentes, mas segundo Santilli (2004) esse é um sistema que protege as inovações individuais, com aplicações industriais e o conhecimento tradicional possui a titularidade coletiva, sendo impossível protegê‐lo com a lógica da patente.
A mesma autora sugere a construção de um regime sui generis, de proteção aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, que possui como elemento fundamental o “reconhecimento e fortalecimento das normas internas e do direito costumeiro, não‐oficial, dos povos indígenas, quilombolas
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e populações tradicionais”, reconhecendo a identidade cultural coletiva, os costumes e tradições coletivamente desenvolvidos, reproduzidos e compartilhados. (SANTILLI, 2004).
Relações entre conhecimento tradicional e conhecimento científico
O conhecimento científico costuma ser mais valorizado pela
sociedade do que o tradicional, entretanto os dois são apontados como fundamentais para o desenvolvimento, principalmente se um estiver ligado ao outro. O conhecimento tradicional não pode ser esquecido, nem excluído, pois se isso ocorresse haveria muitas conseqüências negativas. Segundo Dhewa (2011), a ciência, sozinha, não conseguirá combater a pobreza, as doenças e os desequilíbrios ecológicos, ela precisará de outras vias de investigação.
Os conhecimentos adquiridos por meio da ciência convencional, que normalmente é fechado e formal, podem ser ampliados através de sistemas de conhecimentos tradicionais ou indígenas, que são abertos e informais (DHEWA, 2011).
Rahman diferencia os dois sistemas de conhecimentos de acordo com a tabela 1.
Conhecimento científico Conhecimento tradicional
Conhecimento explícito (objetivo) Conhecimento tácito (subjetivo)
Conhecimento da racionalidade (mente)
Conhecimento da experiência (corpo)
Conhecimento seqüencial (lá e então) Conhecimento simultâneo (aqui e agora)
Conhecimento Digital (teoria) Conhecimento analógico (prática)
Tabela 1 – RAHMAN, 2000, p.4
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Enquanto a ciência convencional formula princípios e teorias para descrever a natureza, as comunidades tradicionais, com base na compreensão do universo, atribuem à natureza valores, crenças, costumes e cerimônias (DHEWA, 2011).
As novas tecnologias de informação e comunicação estão desempenhando um papel importante no processo de valorização do conhecimento tradicional, sendo utilizadas em pesquisas científicas ou pelas próprias comunidades como ferramentas para o registro, proteção e revitalização do conhecimento.
Estes processos de transformação de um saber em outro, mesmo sendo um caminho com diversos desafios, cumprindo‐se as normas, as legislações e formas de proteção intelectual, podem trazer muitos benefícios para a sociedade como um todo. Mas, para isso ser possível, o cientista precisaria pensar mais na situação do planeta e deixar um pouco de lado a ambição pelo lucro, acabando de vez com a exploração e apropriação dos conhecimentos tradicionais de forma desregrada e ilegal. A legislação deveria ser revista e atualizada e os governos deveriam assumir e por em prática o que foi declarado na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento de 1992. Referências CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO (1992, Rio de Janeiro, Brasil) Agenda 21. São Paulo: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, 1997. 383 p. ‐‐ (Documentos Ambientais)
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Alfabetização científica e a participação pública nas políticas de saúde
Luiz Henrique Chenchi
Maria Lúcia Teixeira Machado Introdução
Este artigo tem por objetivo articular as consultas públicas
como meio de participação da sociedade em assuntos de CTS que afetam a saúde das pessoas, haja vista a pouca literatura existente sobre o tema. Para tanto, será abordada a alfabetização científica como importante característica para um indivíduo consciente e atuante nas ações de CTS, seja no entendimento de questões práticas do seu dia‐a‐dia, na tomada de decisões na sociedade e até na formulação de políticas públicas. Em seguida, uma abordagem das consultas públicas, definição e características, e seu uso administrativo para formulação de políticas públicas, principalmente no campo da saúde.
Existem duas tradições fundamentais dentro do enfoque Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS): a tradição européia, que centra seu estudo na análise dos antecedentes ou os condicionantes da ciência e, a tradição norte‐ americana, que centra seus estudos nas conseqüências sociais e ambientais do conhecimento científico. Um aspecto interessante a ser considerado é que ambas consideram prioritária a necessidade de controle público da ciência e da tecnologia e promovem diversos mecanismos democráticos que facilitam a abertura dos processos de tomada de decisão à participação dos cidadãos (SANTOS & ICHIKAWA, 2004).
Furnival (2008) ressalta que, no Brasil, tem havido uma crescente propagação do valor da participação da sociedade nos
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processos políticos, como forma de superar o “déficit democrático”. Há uma preocupação em torno da não receptividade do público em torno dos avanços C&T que se dá acerca da percepção e compreensão sobre C&T que estão presentes na sociedade. A educação por meio da divulgação científica é entendida como necessária para maiores chances de aceitar avanços científicos e tecnológicos, visto que aversões a algum avanço surgem apenas por falta de acesso e compreensão dos fatos científicos.
De acordo com os pressupostos do movimento CTS, o aumento da participação da sociedade em assuntos de ciência e tecnologia seria desenvolvido a partir de mudanças no currículo de ciências, apresentando uma visão diferente de ciência e de tecnologia, que passasse a explorar suas relações com a sociedade (FARES et al., 2007).
Pfuetzenreiter (2001) destaca que o desenvolvimento científico e tecnológico tem sido considerado um marco para a sociedade moderna. O aumento do conhecimento em ritmo acelerado, com um curto intervalo desde as novas descobertas até a sua aplicação em grande escala, tem afetado a vida das pessoas. Entretanto, não há muita informação a respeito de como esses avanços estão sendo assimilados.
No Brasil, canais adequados de debate e expressão devem ser criados e multiplicados de modo a garantir a participação popular nas grandes decisões que orientam o progresso científico, e que a sociedade deve opinar antes da realização da pesquisa, e não apenas depois de sua realização (SANTOS & ICHIKAWA, 2004).
Alfabetização científica em CTS
Os estudos CTS têm por objetivo, por um lado, a contextualização histórico‐social do conhecimento científico‐
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tecnológico, e por outro lado, a promoção da participação pública. Ambos os objetivos exigem, como um dos processos, a alfabetização dos cidadãos em ciência e tecnologia, para que possam tomar decisões com base em informações (SANTOS & ICHIKAWA, 2004).
Um dos problemas enfrentados pela sociedade moderna é o montante de informações qualificadas como científicas nos diversos meios de comunicação, principalmente pela propaganda de produtos, que promete prodígios utilizando a autoridade da ciência. Alerta deve‐se ter para o problema de as pessoas acreditarem cegamente em informações que são veiculadas pela mídia e que são classificadas como científicas. Essa dimensão poderia ser ampliada, complementando‐se que a alfabetização científica e tecnológica seria necessária não apenas para participar de debates e tomada de decisões em nível coletivo, mas também para facilitar a compreensão de fatos da vida cotidiana e a tomada de decisões acertadas individualmente. Dentre eles está o emprego dos conhecimentos científicos com fins utilitários, exemplificado pela aplicação correta da teoria microbiana na prevenção da contaminação de alimentos por ocasião de sua preparação (PFUETZENREITER, 2001).
A globalização e a sociedade do conhecimento exigem que todo cidadão tenha competências básicas (combinação de conhecimentos, capacidades e atitudes), que permita sua realização pessoal, inclusão social, cidadania ativa e emprego (ARRIBA, 2007).
Uma pessoa alfabetizada científica e tecnologicamente deve ser capaz de saber utilizar os conhecimentos adequados para tomar uma decisão. Por exemplo, em relação à prevenção da AIDS, ele precisa decidir que medida de proteção adotará, além de sua participação no debate em sociedade sobre as medidas a serem tomadas coletivamente em relação à profilaxia da
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enfermidade. Ainda, deve ser capaz de desenvolver algumas habilidades, como a utilização de conceitos científicos para a adoção de decisões responsáveis para a sua vida (PFUETZENREITER, 2001).
Segunda Arriba (2007), a alfabetização científica e tecnológica é imprescindível para o cidadão do século XXI, visto o contexto atual da ciência e tecnologia para a sociedade, onde novas tecnologias são implementadas (e, com elas, surge a inovação) e a participação pública na construção das políticas é cada vez mais necessária (Figura 1).
Sociedade do século XXI
Sociedade industrial e do conhecimento
Rápida incorporação da inovação
Aprendizagem permanente
necessitacaracterizada
Alfabetização científica
Divulgação científica
Aprendizagem informal
Desenvolvimento pessoal e capacidade crítica
Cidadãos adaptados e com escassa divisão social
Figura 1: Caracterização da sociedade do século XXI frente aos novos contextos de ciência e tecnologia (ARRIBA, 2007).
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Santos (2007, p. 480) afirma que: o letramento científico1 dos cidadãos vai desde o letramento no sentido do entendimento de princípios básicos de fenômenos do cotidiano até a capacidade de tomada de decisão em questões relativas à ciência e tecnologia em que estejam diretamente envolvidos, sejam decisões pessoais ou de interesse público. Assim, uma pessoa funcionalmente letrada em ciência e tecnologia saberia, por exemplo, preparar adequadamente diluições de produtos domissanitários; compreender satisfatoriamente as especificações de uma bula de um medicamento; adotar profilaxia para evitar doenças básicas que afetam a saúde pública; exigir que as mercadorias atendam às exigências legais de comercialização, como especificação de sua data de validade, cuidados técnicos de manuseio, indicação dos componentes ativos; operar produtos eletroeletrônicos etc. Além disso, essa pessoa saberia posicionar‐se, por exemplo, em uma assembléia comunitária para encaminhar providências junto aos órgãos públicos sobre problemas que afetam a sua comunidade em termos de ciência e tecnologia.
Esse letramento, como prática social, implica na participação
ativa do indivíduo na sociedade, o que requer também o desenvolvimento de valores vinculados aos interesses coletivos relacionados às necessidades humanas e deveriam ser vistos como não subordinados aos valores econômicos. Por exemplo, ao lidarem diariamente com vários produtos químicos as pessoas têm que decidir qual devem consumir e como fazê‐lo. Essa decisão poderia ser tomada levando em conta não só a eficiência dos produtos para os fins que se desejam, mas também seus
1 Santos (2007) adota a diferenciação entre alfabetização e letramento, justificando que na tradição escolar a alfabetização científica tem sido considerada na acepção do domínio da linguagem científica, enquanto o letramento científico, no sentido do uso da prática social, parece ser um mito distante da prática de sala de aula. Ao empregar o termo letramento, ele busca enfatizar a função social da educação científica contrapondo‐se ao restrito significado de alfabetização escolar. Observa‐se que, enquanto a alfabetização pode ser considerada o processo mais simples do domínio da linguagem científica, o letramento, além desse domínio, exige o da prática social.
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efeitos sobre a saúde, seus efeitos ambientais, seu valor econômico, as questões éticas relacionadas à sua produção e comercialização (SANTOS, 2007).
A educação escolar nem sempre prepara o indivíduo para exercer o pensamento crítico.
Uma opção seria poder direcionar essas questões para a saúde fazendo algumas indagações: para que serve a alfabetização científica e tecnológica em saúde? Quem teria essas prerrogativas? Como as pessoas que não tiveram acesso à educação formal, ou o fizeram há muito tempo, poderão estar alfabetizadas científico‐tecnologicamente em saúde? Essas pessoas não poderão ter autonomia, capacidade de se comunicar com os demais e responsabilidades em relação à sua própria saúde e qualidade de vida? Como poderão participar dos debates e das decisões? No caso dos alimentos transgênicos, por exemplo, como essas pessoas poderão opinar e discutir sobre o tema se a linguagem utilizada pelos meios de comunicação está tão distante da linguagem do dia‐a‐dia da população em geral? (PFUETZENREITER, 2001, p.4).
Diversos são os argumentos para justificar a alfabetização
científica. Millar (1996)2 apud Santos (2007) agrupa esses argumentos em cinco categorias: a) argumento econômico, que conecta o nível de conhecimento público da ciência com o desenvolvimento econômico do país; b) utilitário, que justifica o letramento por razões práticas e úteis; c) democrático, que ajuda os cidadãos a participar das discussões, do debate e da tomada de decisão sobre questões científicas; d) social, que vincula a ciência à cultura, fazendo com que as pessoas fiquem mais adeptas à ciência e à tecnologia; e e) cultural, que tem como meta fornecer aos alunos o conhecimento científico como produto cultural.
2 MILLAR, Robin. Towards a science curriculum for public understanding. School Science Review, v. 77, n. 280, p. 7‐18, 1996.
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Participação pública e consultas públicas Fares et al. (2007) destaca o modelo de participação pública na
comunicação da ciência, como baseado no compromisso de democratização da ciência e da tecnologia, onde a participação do público em assuntos de CT e na formulação de políticas científicas e tecnológicas se dá nas mesmas condições que para os cientistas e em espaços propícios para isso como foros, debates e conferencias de consenso. Pressupõe como condição necessária para o desenvolvimento dessas atividades, a valorização do diálogo entre os cientistas e os não‐cientistas, ressaltando o envolvimento do público nos processos de tomada de decisão sobre CT e nos processos de formulação de políticas científico‐tecnológicas, seja por meio da valorização de saberes locais ou por meio da ativa participação.
Para que haja envolvimento do público nesses processos decisórios, é preciso que ocorra o acesso à informação adequada visando à formação da opinião, com pouca influência de mitos, suposições e discursos persuasivos emitidos por grupos de pressão. A apatia dos cidadãos, o grau de especialização do conhecimento científico e tecnológico, a pouca cobertura da mídia, falta de oportunidade e a crença de que o conhecimento necessário para participar é limitado aos cientistas são vistos como barreiras para o sucesso da participação pública (RESENDE & ROTHBERG, 2011).
No Brasil, as consultas públicas (ou consultas online) têm se mostrado o meio mais adotado de participação pública, especialmente no âmbito da saúde. Destacam‐se como meios de construção compartilhada de diretrizes de políticas públicas e legislações. Um dado setor governamental submete uma versão inicial do texto sob consulta pela internet, e indivíduos e setores podem se manifestar sobre cada aspecto proposto, indicar a necessidade de mudanças, justificar o porquê das sugestões,
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conhecer as contribuições de outros participantes, revisar seus conceitos após descobrir as posições alheias, combinar‐se com outros para conjuntamente propor alterações, enfim participar ativamente da política. Para se legitimarem, as contribuições devem ser processadas com transparência, de modo que o participante perceba que sua colaboração foi efetivamente levada em conta no processo de formulação política. A exclusão digital e a falta de domínio do público em geral com as novas tecnologias são enormes, em países como o Brasil e outros da América Latina, e têm se tornado objeções para a efetiva participação (RESENDE & ROTHBERG, 2011; ROTHBERG, 2010; ROTHBERG & BERBEL, 2010).
A participação em consultas públicas requer conhecimentos e informações que sustentem a formulação de perspectivas e sugestões consistentes. Indivíduos e setores interessados em participar devem buscar diversas fontes de informação e interpretação (ROTHBERG & BERBEL, 2010, p. 456).
Consulta pública na saúde
A participação é um dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) que, além de incorporar aspectos de ordem organizacional, implica assumir um posicionamento ético‐político de caráter democrático para sua concretização (ACIOLI, 2005, p. 293).
A participação pública nas políticas organizacionais da saúde,
especificamente no SUS, é uma expressão viva da participação da sociedade nas tomadas de decisões pelo Estado no interesse geral, caracterizando‐se como efetivo exercício do poder político popular (CARVALHO & SANTOS, 2006).
O SUS utiliza o mecanismo de consultas públicas para colher contribuições, tanto de setores especializados quanto da sociedade em geral, sobre as políticas e os instrumentos legais que irão orientar as diversas ações no campo da saúde no país. Esta
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ferramenta abre a possibilidade de uma ampla discussão sobre diversos temas na área da saúde, permitindo a participação e contribuição pública na construção do SUS. Por meio dela, o processo de elaboração do documento é democrático e transparente para a sociedade (BRASIL, 2011a).
No site do Ministério da Saúde (BRASIL, 2011a) foi possível verificar que já foram encerradas 43 consultas no âmbito do SUS desde 2003, com destaque para o Programa de Avaliação para a Qualificação do SUS (com contribuições encerradas em 08 de junho de 2011) que tem por meta avaliar o desempenho do SUS considerando as suas várias esferas de gestão. Ainda no mesmo site, encontra‐se disponível o histórico das consultas públicas referentes à revisão e elaboração dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Ministério Saúde para as doenças tratadas no Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, sendo que no ano de 2010 foram disponibilizadas 45 consultas a esses protocolos de alta complexidade e apenas uma disponibilizada no ano de 2003, notando‐se um avanço no uso desta ferramenta de participação popular, por parte dos gestores públicos, na área da saúde.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) também utiliza desta ferramenta de forma crescente, verificado em consulta à página da agência na internet, onde no ano de 2009 foram realizadas 101 consultas públicas, 120 em 2010 e até meados de abril de 2011, foram 25 (BRASIL, 2011b). Na própria página, é disponibilizado o formulário para contribuições, onde é interessante destacar o item segmento do participante (Consumidor (pessoa física); Associação ou entidade de defesa e proteção do consumidor; Profissional de saúde (pessoa física); Entidade de classe ou categoria profissional de saúde; Empresário ou proprietário de estabelecimento empresarial; Associação ou entidade representativa do setor regulado; Academia ou instituição de ensino e pesquisa; Órgão ou entidade do Governo
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(Federal, Estadual ou Municipal); Outro. Especifique), onde qualquer cidadão pode contribuir, destacando‐se o letramento científico como formador para que esta contribuição seja efetiva.
Considerações finais
Os apontamentos apresentados visualizam a importância da
participação pública nos domínios das políticas de saúde e destacam como ferramenta metodológica as consultas online e a alfabetização científica como propulsor para que esta participação seja apropriada e efetiva.
O campo saúde se destaca por afetar diretamente a população e esta sentir os efeitos imediatos, diferentemente de quando surgi uma inovação tecnológica e esta pode levar anos para que a sociedade perceba suas implicações.
Notam‐se avanços na realização de consultas públicas relacionadas à saúde, mas a participação ainda é deficiente. Resende & Rothberg (2011) argumentam que o tipo e a insuficiência de informação disponível na internet para fundamentar a participação geram dificuldades, o que seria contornado através do interesse pessoal, capacidade de cada um em selecionar os dados disponíveis, do incentivo ao engajamento e da qualidade da informação. Referências ACIOLI, S. Participação social na saúde: revisitando sentidos, reafirmando propostas. In: Construção Social da Demanda: direito à saúde, trabalho em equipe, participação e espaços públicos. Rio de Janeiro: CEPESC/UERJ: ABRASCO, 2005, p. 293 – 303.
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O processo de indexação como técnica de controle social
Marco Donizete Paulino da Silva Introdução
Este trabalho versa sobre a situação da Ciência
contemporânea em sua relação com a produção de tecnologias diversas que colaboram na construção de sentidos discursivos relacionados a produtos culturais – mais especificamente o filme documentário – através de redes eletrônicas de interação social. Seu pressuposto é o de que a possibilidade de trocas livres de informação ‐ na ordem de canais informais ou grupos e tradições estéticas diversas ‐ podem gerar maior distinção entre conceituações sobre o que são os objetos documentais audiovisuais e suas diretrizes, considerando os mecanismos da classificação e indexação como elementos técnicos que produzem e cristalizam definições, proprietários de grande poder de caracterização pela simples ato de nomear e posicionar conceitos, idéias e objetos.
Sua base teórica reside em autores das áreas da Biblioteconomia, Ciência da Informação, Cinema, e psicologia, objetivando produzir um diálogo caloroso e instrutivo entre esses campos. A sigla CTS, ainda que seja utilizada poucas vezes durante esse percurso narrativo, encontra‐se embutida em cada elemento considerado relevante nessa discussão. Dessa forma, expõe‐se a seguir a seguinte correspondência de termos‐referência para a condução do debate:
Ciência = conhecimento; Tecnologia = classificação e indexação; e Sociedade = objeto controlado.
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Seguindo essa mesma ordem na argumentação apresentamos nos próximos tópicos algumas explanações sobre cada uma dessas premissas.
I. Ciência & Conhecimento
Ao tratar da questão evolutiva da ciência até o paradigma
moderno París (2004) contrapõe as visões helênicas, operadas na Antiguidade ‐ que viam o conhecimento científico derivado da observação da natureza ‐ definindo a concepção grega de ciência como “[...] contemplação de uma realidade exterior – seja esta o cosmos, o ser, o fluir, as idéias [...]” (p. 199), objetivando conclusões baseadas na percepção, e racionalização, dos fenômenos físicos, promovendo conhecimento a partir desse entendimento. Essa atitude de observador é o principal contraponto pelo ideal da ciência moderna que passou a operar intervenções no mundo real, encarando essas intervenções como forma de conhecer o mundo físico. Ou seja, uma concepção pró‐ativa do pensador‐investigador, como apontado por París (2004), que tem como princípio a idéia de que só conhecemos realmente alguma coisa se nós mesmos a produzirmos. Desse modo, os instrumentos produzidos como extensões do corpo humano exemplificam o esforço de superação dos limites físicos impostos ao homem pela natureza.
Essa idéia de “produção” como equipamento potencial de conhecimento científico do mundo encontrou ressonância nas variações posteriores de París (2004) sobre o mesmo tema, tornando‐se prática plenamente estabelecida a partir da visão mecanicista do universo, manifesta de maneira inquestionável na representação, por Galileu Galilei, do funcionamento desse universo num modelo tridimensional, produzido em laboratório.
Essa atitude do cientista prenuncia uma ação diferenciada em relação aos fenômenos observados, transportando a ação
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para o nível da produção, replicando‐o na intenção de atingir a meta: conhecer cientificamente o mundo concreto. A adoção dessa postura de imitação do macro numa versão objetiva, ao mesmo tempo em que condiciona o mundo palpável à situação de objeto manipulável, outorga ao ego humano – num sentido lato – a idéia de controle da índole natural, posicionando‐se como gerente de suas funções e fenômenos.
O nascimento da CTS em fins da década de 1960 teve como motor a capacidade deste em funcionar autonomamente, repensando essa perspectiva egocrática, tendo em meta evitar os embaraços e riscos observados na manipulação de técnicas e tecnologias então vigentes. A Ciência da Informação também ganha impulso sob essa demanda, uma vez que suas prerrogativas tinham por fundamento a preocupação ecológica e a formação de uma mentalidade mais consciente dos efeitos das escolhas feitas no domínio do desenvolvimento.
Voltando à questão de um modelo de Ciência como fundamento para a ação produtiva, a expansão desse corolário – agora noutro momento, mais próximo de nossa realidade social ‐, aponta alterações que dilataram o pressuposto ao cristalizar a concepção da Ciência em duas distinções: Ciência Básica e Ciência Aplicada. A base dessas distinções/contraposições encontra‐se, segundo Stokes (2005), na formulação de duas máximas creditadas à Vannevar Bush, pelas quais a pesquisa básica era, em primeiro lugar, realizada sem objetivar interesses práticos e, em segundo lugar, que a mesma age como precursora do progresso tecnológico. A ciência aplicada, por sua vez, seria definida pela utilização dos conhecimentos gerados pela ciência básica na produção de atividades, métodos e produtos voltados para fins utilitários.
O elemento mais contundente nesse pequeno preâmbulo, ao nosso ver, é a transferência da atenção da construção do homem através do conhecimento para uma condição de construção do
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homem através dos produtos gerados na aplicação dos conhecimentos científicos em novas tecnologias. Ou seja, a partir da criação da imprensa, por exemplo, as tecnologias adentraram de maneira mais incisiva na dinâmica de construção do saber, sendo que com a revolução industrial esse movimento foi se tornando mais acelerado e novas inclusões ofereceram maiores condições de desenvolvimento. Hoje, com a revolução tecnológica, a informação flui de maneira ostensiva, propiciando elucidações, resoluções e diferenciações que, potencialmente, gerariam aprendizagens e melhorias do ser. No entanto, o foco de atenção desviou‐se da formação do homem como ser instruído para a produção/sofisticação de ferramentas tecnológicas, criadas na intenção de gerar maior dependência do seu operador que autonomia. Um ambiente que conduz, a nosso ver, a uma produção vazia de sentido. Essa forma de condução da episteme configura o que París veio a nomear como “Tecnosfera”, conceito utilizado no próximo tópico.
II. Tecnologia = classificação e indexação
A “Tecnosfera” é definida por París como “[...] o conjunto ou o universo dos artefatos, não só dos instrumentos, mas das múltiplas formas deles, criadas pelos humanos.” (2004, p. 206). Por essa definição toda a série de técnicas e tecnologias em uso ou desuso no cenário social‐humano, compõe a listagem de elementos presentes como objetos contribuintes da manutenção desse ambiente.
Pressupõe‐se que a dinâmica de emergência de novo ferramental inclua sempre, nessas condições, adaptações ou encerramentos de outros ferramentais em uso, estabelecendo assim as regras de câmbio entre os processos e objetos produzidos. Adiciona‐se a isso que a forma de vida capitalista determina, por essa ordem de raciocínio, a idéia do consumo como uma função renovadora e, num molde mais sedutor, capaz
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de promover a sensação de renascimento do indivíduo através do ato de atualização de si por meio do equipamento tecnológico que faz uso no seu cotidiano.
Voltando à fala de París (2004), a diferenciação entre “Técnica” e “Tecnologia” acontece pela aquiescência de que: a primeira supõe seu aperfeiçoamento numa linha estabelecida de energia e materiais, tendo a segunda se originado dos saltos qualitativos promovidos pela incursão de recursos energéticos e novos materiais descobertos no avanço da ciência posterior à revolução industrial. Uma vez que a introdução de novas tecnologias depende, no modelo atual, dos pactos surgidos da percepção de necessidades políticas, econômicas e sociais, não é de se estranhar que a derive um nível de controle cada vez maior dessa produção, controle objetivado nas ferramentas que estabelecem definições quanto ao que são e a que correspondem tais inclusões.
A Ciência, seja ela aplicada ou básica – pela concepção de retorno social produtivo ‐ concilia sua forma de atuação com as agendas políticas vigentes – sejam estas em nível global, nacional ou regional ‐, exigindo a aplicação de estratégias que possibilitem a negociação entre Estado e Sociedade na implementação de novas tecnologias.
A técnica, na perspectiva de París, apresenta uma história em que o desejo de poder “[...] adquire múltiplas formas, não só na violência, mas também [...] na produção de um novo mundo, no cuidado protetor e na ocupação.” (2004, p. 176). Esse poder, no tocante à divulgação e comunicação científica, reside no uso dos processos de “Classificação” e “Indexação” sobre discursos que possam vir a afetar a imagem e episteme científicas junto à grande massa de sujeitos contemporâneos, leigos ou especialistas.
O documento, elemento essencial na dinâmica da classificação, é caracterizado por Molina, García Marco e Agustín
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Lacruz (2002) como uma tecnologia “[...] que permite superar las limitaciones de la comunicación presencial [...]” (p. 36), prenhe de valor mnemônico, capaz de preservar – e cristalizar por meio dessa preservação – leituras do mundo através de idéias e conceitos nele registrados.
A Classificação é entendida como um dos processos pelos quais um documento pode ser categorizado e classificado em determinada ordem, conforme determinada orientação. Por essa via todo elemento classificado acaba por ocupar um lugar e uma posição, que, por meio de outro processo, o da Indexação de um conceito a ele relacionado, pode ser localizado e recuperado para pronta utilização. Langridge (1977) argumenta que a classificação, sob a perspectiva social, pode ser entendida como uma ferramenta de gerenciamento, ou seja, sua aplicação promove ação mais produtiva e econômica.
Para que isso se dê necessita‐se, no entanto, de um aparelho lingüístico que capacite essa operação de transferência: uma linguagem. Essa linguagem, por sua vez, pode ser construída, em duas modalidades: natural ou controlada. Fujita (2010) distingue ambas as modalidades pela ausência do controle de um vocabulário na primeira em detrimento desse controle na segunda. Ou seja, grosso modo, as linguagens naturais acontecem espontaneamente, sem que haja intervenções normativas, institucionais sobre seus conteúdos, já as controladas são regidas pela exigência de precisão, procurando eliminar de seu conteúdo elementos inviáveis ao princípio de funcionalidade.
Um dos canais mais promulgados como fórum de debates democráticos e libertários tem sido a Web, que se compõe de um grande emaranhado de redes sociais capaz de refletir um pouco da efervescência cultural contemporânea. Nesse ambiente, as linguagens – tanto naturais quanto controladas – acontecem, produzindo posicionamentos e movimentos a partir das
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interações humanas que obedecem a critérios próprios de classificação e controle.
No próximo tópico será dada maior elucidação sobre a questão de uso da Web como canal de transformação de uma realidade tecnocrata.
III. Sociedade = objeto controlado e “Indexação Social”
As bases da Ciência objetiva, no final do século XIX, sofreram um grande deslocamento ao se promoverem os pressupostos da psicologia de Sigmund Freud e Carl Gustav Jung. Em seu prefácio do livro O Homem e seus Símbolos, de Jung, John Froeman afirmava que a psicologia de Jung concebia o inconsciente como “[...] um mundo que é parte tão vital e real da vida de um indivíduo quanto o é o mundo consciente e ‘meditativo’ do ego.“ (JUNG; von FRANZ, 1996, p. 12).
A perspectiva da psicologia analítica é de que, ao passar pelo consciente, as ações derivariam escolhas baseadas em valores construtivos de indivíduo e sociedade, potencializados pela análise dos estímulos inconscientes, com o fim de, ao decifrarmos suas origens, os tornássemos positivos em nossa interação com o mundo. O valor social das ações individuais residiria nisso: a somatória de escolhas pessoais conscientes e individualizadas (maduras) que constituiriam os cenários sociais cabíveis àquelas realidades individuais.
Nesse tocante, a compreensão da “consciência” – no âmbito psicológico – é citada por París (2004) como vivenciada de forma tribal pelas culturas primitivas e de forma individual nas culturas ditas “avançadas”. Nessa segunda situação, viver e pensar aspectos da realidade humana (natureza e sociedade que a circunda) é mais diverso na forma, consubstanciando‐se na heterogeneidade de expressões individuais. A técnica, agora em uso pelo sujeito, surgiria nesse contexto como possibilidades variantes do indivíduo em expressar opiniões, sentimentos,
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visões do mundo, mesmo que essas formulações “individualizadas” carreguem características tradicionalmente defendidas por um grupo do qual seu emissor faz parte.
Dos elementos utilizados pelo poder dominante como reguladores desse cenário, o autor cita o “princípio da ação” – tal como definido por Habermas ‐ em dois níveis: instrumental e intrumentalizante. Situa a primeira ação como relacionada ao uso de “instrumentos” e a segunda como, não só derivada desses usos, mas, condicionante do objeto ao qual se dirige – no caso, o indivíduo – como instrumento que agirá em favor da fonte emissora. Essa prerrogativa abre espaço para especificação dessa ação em duas vertentes: de ação comunicante, e de ação dramatúrgica. Ambas constituídas de elementos informativos e representacionais dirigidos por técnicas organizacionais que “[...] criando imagens interessantes, manipulam os sujeitos a quem ambas se dirigem.” (PARÍS, 2004, p. 188).
Então, o fundamento para nossa proposição reside na percepção de que, contrapondo‐se a essa ação comunicante manipuladora existe uma ação comunicante de conscientização crítica, tanto na ordem dos produtos classificados como midiáticos, quanto na ordem das atribuições de gênero e espécies pelos canais de comunicação. Tais ações possibilitam definições quanto aos conteúdos desses produtos ou seu valor enquanto conceito, conferindo‐lhe sentido discursivo. O pressuposto é de que ações de caráter controlador ocorrem em ambientes corporativos – sejam eles uma biblioteca ou uma agência de publicidade, já, as ações de caráter mais conscientizador, tem maior chance de ocorrerem em ambientes informais, nos quais a informação circula de maneira livre, integrando sentidos interativos, na configuração do que veio a se nomear de “Indexação Social”, expressão que justifica o uso da Web como conceito promotor dessa incursão.
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Voltando à questão da classificação, Langridge (1977) cria um personagem e, por meio da descrição de seu cotidiano, demonstra o uso constante e, quase inconsciente, do raciocínio classificatório na vida do homem. Esta premissa estabelece o valor do processo classificatório na forma como o ser humano concebe o mundo e, por essa concepção, potencializa as atividades cotidianas, sejam elas no terreno de ações mundanas ou prioritárias da vida. Essa afirmação resgata a observação feita por J. D. Foskett (1980) de que o processo mental de construção do conhecimento, fundamentado em Vygotsky, constrói os conceitos através da interação da consciência humana com os estímulos externos que repercutem no cérebro e, sendo por este reconhecidos, são encaixados em categorias hierarquizadas conforme os valores e conhecimentos pré‐existentes no próprio indivíduo, receptor do estímulo.
Um processo similar é descrito por París (2004) na construção da linguagem pelo pensamento: “O mais exato seria dizer que a linguagem ‘brota’ do pensamento, que não só trata de comunicá‐lo, mas de dar‐lhe forma.” (p. 319). À mercê desse postulado, o homem, como animal comunicante, lançaria mão da linguagem para expressar e receber idéias/conceitos de outrem, utilizando‐se do processo de troca de mensagens para constituir‐se na interação com o outro ou dele diferenciar‐se, constituindo‐se outro indivíduo, numa relação transacional, dialógica, pela qual seu mundo subjetivo procura integração com o mundo objetivo.
A questão advinda dessa “construção” em duas vias, reside no fato de defender‐se certa autonomia do indivíduo – e consequente consciência/responsabilidade – dentro de um ambiente em que seu senso crítico, assim como a noção de elemento reprodutor de um discurso representativo de determinada classe ou tradição social‐profissional (uma vez que não se pode alienar o ser de toda série de influências que construíram sua personalidade durante todo período de
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interação social), encontra encorajamento ou refutação, conforme a convergência ou divergência de suas leituras do mundo e o contexto favorável ou desfavorável às mesmas.
Nesse sentido, as técnicas de ação comunicativa e dramatúrgica utilizadas pelos mecanismos de propaganda e produtos midiáticos de massa operariam suas estratégias de persuasão, baseando suas atividades na confecção de discursos aparentemente integrados aos quesitos: realidade e necessidade vital, tentando conseguir a adesão dos coletivos aos interesses que defendem. Essas técnicas a nosso ver potencializam ou esvaziam discursos, dependendo da conformidade dos mesmos ao que se institui chamar como “produtivo”. Surge então outro questionamento: o pensamento crítico sofre algum prejuízo irreparável nesse ambiente? Acreditamos que não, ainda que não seja fácil expressá‐lo e exercê‐lo nessas circunstâncias.
Algumas definições de documentário e de ficção no campo do audiovisual levam em conta a vinculação maior ou menor do discurso cinematográfico com o real. Nichols (2005), ponderando sobre os pressupostos dessa divisão, diz que: “A sensação de que um filme é um documentário está tanto na mente do espectador quanto no contexto ou na estrutura do filme.” (p. 64). Indo por essa via, existe a idéia de que o indivíduo, especialista ou não em alguma dessas tradições, mesmo sem a informação antecipada – a nomeação do gênero – seria capaz de reconhecer na experiência do objeto sua filiação numa ou noutra categoria. A experiência direta com o filme, a percepção de suas tendências ou acentos estilísticos pelo indivíduo o categorizariam dentro de uma ou de outra concepção, conscientizando‐lhe dos pressupostos anunciados e, forçando‐lhe uma tomada de decisão sobre os fundamentos da proposição fílmica.
A importância desse mecanismo e sua relação com o trabalho a que nos propomos residem na defesa de que os produtos culturais de teor mais aprofundado enfraquecem o domínio
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massificador, possibilitando uma visão mais abrangente e efetiva do mundo.
Essa percepção é vivenciada nas considerações com que o âmbito institucional‐científico trata o produto cultural e a informação estética que os mesmos contêm. A mesma defesa foi assumida por Silva e Gracioso (2010) no tocante ao “Fenômeno Teatral” e sua representação pela Classificação Decimal de Dewey (CDD). No caso do objeto “Filme Documentário”, essa discussão avança ao se considerar que, nele, a imagem que registra o fato é vivenciada de maneira mais intensa, por possibilitar uma maior identificação dela com o objeto real, como afirma Nichols (2005), ao reconhecer que a “[...] dimensão indexadora da imagem refere‐se à maneira pela qual a aparência dela é moldada ou determinada por aquilo que ela registra [...]” (p. 65), ou seja, ela permite maior possibilidade de representação do objeto físico pelo objeto registrado na película.
Não se quer dizer com isso que o registro documentário apresente o fato (ou determinada realidade) com isenção ‐ uma vez que se reconhece a precedência de um pensamento idealizador (o realizador do filme) na sua representação do mundo – o que se quer dizer é que nossa expectativa de encontrarmos melhor representação do mundo real, como observado por Nichols (2005), é reforçada por essa qualidade da imagem em estabelecer relações entre as leituras subjetivas do mundo – feitas pelo documentarista ‐ com os objetos e situações do mundo real.
O autor reconhece ainda a distinção do valor “científico” do filme documentário quando observa a exigência que faz a ciência no processo de investigação científica: neutralidade do pesquisador. Exigência que o “documentarista” não engajado num discurso institucional jamais poderá cumprir, porque essa isenção, esse silêncio, pressupõe o sufocamento de uma
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subjetividade necessária, seja ela de caráter introspectivo ou extrovertido.
A indexação social como processo de veiculação do produto “filme documentário” é mencionada por Ramos (2008) como resultante da interação entre várias forças sociais, regidas tanto pelos produtores do documentário, quanto pelos seus realizadores, alienando o espectador desse mecanismo, como se percebe na seguinte afirmação: “Em geral, a narrativa Documentária chega já classificada ao espectador, seguindo a intenção do autor.” (p. 27). No entanto, fica a pergunta se essa questão não mereceria um melhor aprofundamento frente às possibilidades de intercâmbio promovidas pelas redes sociais, tal qual se apregoa pelas teorias levantadas em torno do conceito de “indexação social” no âmbito da Ciência da Informação (CI), conhecido também como “Folksonomia” que prevê um desengessamento dos processos de classificação e indexação utilizados pelo poder institucional.
Hassan‐Montero define “indexação social” como
[…] un nuevo modelo de indización, en el que son los propios usuarios o consumidores de los recursos los que llevan a cabo su descripción […] La descripción de cada recurso se obtendría por agregación, es decir, un mismo recurso sería indizado por numerosos usuarios, dando como resultado una descripción intersubjetiva y por tanto más fiable que la realizada por el autor del recurso, e incluso por un profesional.
Guedes e Dias (2009), por sua vez, justificam o uso da
expressão ”indexação social” no contexto da Web [...] não apenas pelo fato da ação ser concretizada por indivíduos, mas também por ser um ato colaborativo e democrático, onde o papel de todos os indivíduos tem o mesmo valor e peso dentro do sistema.
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Conclusão Partindo das duas citações anteriores nos encaminhamos
para a finalização desse trabalho, propondo que: ‐ A indexação social, tanto no âmbito de uma defesa de
parâmetros de classes, grupos ou movimentos – configurados aqui na ordem de tradições documentárias e suas vozes, ou objetos culturais de outras ordens diversas – quanto na proposição de ações comunicantes libertárias de grupos que se manifestam no ambiente das redes sociais, atua de maneira a criar condições positivas para o desenvolvimento do indivíduo.
‐ Que tais condições possibilitam aos objetos culturais desenvolve, ainda que prenhes de valor subjetivo, a possibilidade de construção de sentidos para seus grupos de interesse.
‐ Que o caráter subjetivo atribuído ao filme documentário não o destitui do valor de “documento”, registro de um evento, fenômeno ou ponto de vista sobre determinado assunto, fato. Afirmando‐se que, pelo contrário, essa característica particular lhe outorga um valor extra: a análise humana de determinada ocorrência, sua forma plena de relacionar‐se criticamente com os eventos histórico‐sociais.
‐ Que a exigência de neutralidade científica, reconhecidamente necessária em alguns campos científicos, não deve obstruir o interesse da ciência pelos registros fílmico‐documentais na ordem de instrumentos capazes de apontar visões do mundo histórico, pertinentes de cientificidade.
O que se espera é que se valorem as ações de leituras do mundo social e histórico pelas óticas criativas e subjetivas, plenas de compromisso de representação de uma realidade pessoal ou impessoal, mas passível de ocorrência.
Dessa perspectiva é que se propõe ‐ contrapondo‐se à visão institucional propalada pelos espaços oficiais ‐ os discursos
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disseminados em paralelo pelos espaços democráticos, sejam eles coletivos ou individuais, como promocionais de uma construção mais equilibrada dos sensos críticos em formação e, quem sabe, reabilitador dos em processo de deformação. Referências
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A Ciência Cívica e as Mudanças Climáticas: construindo um diálogo.
Maria Luísa Nozawa Ribeiro
Thales Haddad Novaes de Andrade
Introdução
Este trabalho busca relacionar o campo de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (CTS) com a área de Mudanças Climáticas, inserida nas Ciências Sociais. O texto “Civic Science for Sustainability: Reframing the Role of Experts, Policy‐Makers and Citizens in Environmental Governance” de Karin Bäckstrand será utilizado como fio condutor desta análise, incorporando também outro autor importante para a o campo CTS, Walter Antônio Bazzo.
O texto principal deste trabalho discute a noção de Ciência Cívica, o que nos remete imediatamente à questão ambiental, considerando que seus debates dentro da Sociologia e da Ciência Política se caracterizam por uma análise da contribuição de cada um individualmente ou em grupo para as Mudanças Climáticas. Essas análises se fundamentam no princípio de responsabilização de parte dos impactos ambientais ocorrido nos últimos anos, devido a industrialização e seu processo de desenvolvimento humano acelerado. O desenvolvimento apresenta‐se desprovido de consciência e tentativa de previsão das possíveis consequências de seu processo. O nosso modelo de desenvolvimento extrai da natureza, mais recursos do que esta teria a capacidade de repor, segundo pesquisas atuais, a liberação de poluição no ar, na terra e nas águas do planeta estão destruindo sua capacidade de suprir nossas necessidades vitais.
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Neste contexto, um sociólogo surge com a noção de Sociedade de Risco, Ulrich Beck. Parte deste termo se refere a nossa sociedade moderna, que inicialmente é caracterizada por uma grande especialização profissional, o que ocasiona uma confiança necessária nos técnicos. Contudo, esta confiança se torna muito frágil quando, na segunda metade do século XX, se percebe que esses conhecimentos antes confiados a uma elite científica não geram necessariamente resultados positivos para a sociedade.
Anteriormente, acreditava‐se em uma produção científico‐tecnológica como positiva, como uma vantagem em si, que estava isenta de influências ideológicas, políticas, sociais, econômicas, entre outras. Segundo Bazzo (2003), a partir das décadas de 60 e 70, a produção científica‐tecnológica passou a ser reconhecida como provida de influências morais, religiosas, econômicas e etc. dos pesquisadores, assim como passou‐se a notar a existência de possíveis resultados negativos da aplicação da mesma, como as armas atômicas, posteriormente os conhecimentos sobre produção alimentar, controle de doenças, etc.
Com a consideração destas influências na produção científica‐tecnológica, podemos então legitimar o questionamento de elaboração de políticas públicas, já que estas são fundamentadas pelo princípio de que o Estado deve participar do processo de escolha e aplicação da produção científica (no caso através de políticas públicas), assim como a comunidade leiga, através da participação pública. O nosso contexto aponta para consequências desastrosas para o meio ambiente advindas desta visão da “ciência autônoma”, de uma total entrega aos cientistas as tomadas de decisões relacionadas as produções científicas e tecnológicas. Portanto, aponto que há uma necessidade de avaliação deste novo contexto de produção científica‐tecnológica dentro de ações de governos, compromissada com o âmbito social e ambiental destas produções, sendo a sua efetividade passando por esse compromisso com as suas conseqüências.
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“No campo da política pública, os estudos CTS têm defendido a regulação social da ciência e da tecnologia, promovendo a criação de diversos mecanismos democráticos que facilitem a abertura de processos de tomada de decisão em questões concernentes a políticas científico‐tecnológicas” (BAZZO, 2003:127).
Citando Garrafa e Berlinguer, Bazzo expõe que
“(...) o empreendimento de formas de controle social da C&T constitui‐se, além de uma meta democrática, numa questão fundamentalmente ética. Somente a construção de mecanismos que permitam aos cidadãos apropriar‐se de informações sobre C&T e inserir‐se em contextos de tomada de decisões políticas poderá impedir novas formas de exclusão social e, até mesmo, de escravidão. Contudo, esse compromisso, em favor principalmente das futuras gerações, deve ser confiado, mais do que às leis, à necessidade de evolução moral de nossa sociedade” (BAZZO, 2006:3).
A questão da Ciência Cívica dentro do campo CTS e Mudanças Climáticas
Para iniciarmos a discussão, precisamos passar por uma definição do que seria o campo de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia (CTS). Este abrange estudos sobre os fatores sociais influenciando a ciência e a tecnologia, assim como as consequências sociais e ambientais. Na visão clássica, a ciência e a tecnologia eram consideradas modos neutros e autônomos de produção de conhecimento, de conquista da natureza sempre voltado para o bem estar da sociedade, restritos a um pequeno grupo de especialistas. A melhor avaliação deste conhecimento seria a feita pelos seus pares, ou seja, pelos próprios especialistas. Durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, acreditava‐se cegamente na legitimidade dos cientistas, e nas vantagens incontestáveis do desenvolvimento de tecnologias e incentivo à ciência, tirando o papel da política neste processo. Isso
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principalmente por causa de demanda militar, de embate de poder.
Ainda segundo Bazzo, podemos citar que os movimentos contra‐culturais, anti‐sistema surgidos no período da Guerra do Vietnã incitaram uma visão crítica com relação a tecnologia e a tecnocracia, dando enfoque às suas conseqüências negativas para a relação entre estados e voltadas para a degradação ambiental. Então, na década de 60 e 70, surgiram correntes críticas ao modelo linear, buscando uma política científico‐tecnológica.
Esse campo surge com a proposição de uma forma mais democrática deste processo, em todos os seus âmbitos, enfatizando a interdependência dessa complexa tríade. O contexto social interfere na elaboração, produção e aplicação de tecnologias, as quais não seriam possíveis sem a produção científica, que por sua vez não existiria e se desenvolveria sem tecnologias específicas, e por ai em diante. Considerando essa relação e a interferência de questões políticas, ideológicas, econômicas e sociais na produção e aplicação da CT, passou‐se a dar mais atenção ao âmbito social, propondo uma política de ciência e tecnologia mais intervencionista, lançando mão de técnicas para avaliar os impactos sociais e ambientais.
“Ao colocar o processo tecnocientífico no contexto social e defender a necessidade da participação democrática na orientação de seu desenvolvimento, os estudos CTS adquirem uma relevância pública de primeira magnitude” (BAZZO, 2003:9).
Neste mesmo período que surgem os movimentos
ambientalistas, dando enfoque à dimensão das ações humanas sobre o planeta Terra, assim como os estudos sobre Mudanças Climáticas. Apenas para contextualizar, segundo o Intergovernmental Panel of Climate Change (IPCC), Mudança Climática abrange qualquer mudança no clima da Terra, causado pela variabilidade natural ou ação humana. Contudo, na Quarta
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Convenção das Partes – COP (1997), quando se elaborou o Protocolo de Kyoto, se delimitou essa mudança como causada exclusivamente por ações humanas, e que geraria impactos na atmosfera em escala global. Dentro da discussão ambiental, podemos apontar que as responsabilidades pelas mudanças climáticas são provocadas pela sociedade que, a partir de seu sistema econômico, utiliza os recursos naturais e gera resíduos poluentes, sem considerar os limites da natureza. A nossa forma de relacionamento com a natureza não tinha sido posta em questão até então, devido a nossa incapacidade de percepção do nível devastador de nossas ações sobre ela.
As discussões sobre mudanças climáticas vêm ocorrendo nas últimas 4 décadas, e se alarmaram devido aos sérios desastres causados pelo aquecimento da temperatura da Terra. Jornais, centros de pesquisa ambiental e programas interdisciplinares foram criados em diversos países da América Latina, todos preocupados com o âmbito local, regional e nacional da questão climática (GIDDENS, 2009). O problema em questão apresenta características incomuns, devido ao seu alcance em escala planetária e às suas conseqüências se apresentarem, em geral, a longo prazo e necessitarem políticas também a longo prazo. Esses perigos são abstratos, irreais e difíceis de compreender e definir, apesar da consciência de seu potencial devastador.
Podemos, então, apontar o sociólogo Ulrich Beck como importante na elaboração da noção de sociedade de risco. Dentro das discussões ambientais, podemos apontar a noção de risco como norteadora. Os riscos podem se associar à utilização da terra, aos modos de produção e utilização dos recursos ambientais e suas conseqüências podem afetar o planeta como um todo. O risco se refere a uma possibilidade de ocorrência de um fenômeno, e as políticas sempre se voltam para esse termo, na intenção de desenvolver projetos e voltar seus investimentos para gerir o futuro, que é incerto. Nas ultimas décadas do século
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XX, as discussões se voltaram para os perigos de desastres ambientais, a população passou a depositar a sua confiança de solução dos problemas na ciência, o que gerou, portanto, a necessidade de um planejamento.
Citando Cerezo e Luján,
“A caracterização da sociedade de risco conta também, por parte de seu fundador, com um importante questionamento dos princípios da ciência e da tecnologia moderna. Dessa ótica, vivemos numa sociedade de risco por conta de nossa cultura industrializada e da contínua inserção de inovações científico/tecnológicas em nosso meio social. Essas inovações têm criado, constantemente, novas formas de risco e impõe uma periculosidade qualitativamente distinta da que vivemos no passado. Esses riscos seriam danos (potenciais ou reais) aos quais estamos nos submetendo por conta de nossa relação com C&T, e que estão sendo democraticamente distribuídos já que não respeitam fronteiras de países ou de classes” (BAZZO, 2006:4).
Partindo então para a análise do texto de Karin Bäckstrand
(2003), sobre Ciência Cívica, podemos apontar que este se insere na área da participação pública na ciência, dentro dos Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia. Resumidamente, a autora defende uma maior participação na busca pela sustentabilidade por parte das comunidades científica e tecnológica somada a outros atores não estatais. Expõe a necessidade de uma busca por mudanças no sistema de expertise científica para maior transparência, maior democracia e mais responsabilidade, combatendo a cientifização dos políticos, propondo uma deliberação democrática contrariamente ao conhecimento técnico, para resolver problemas sociais e políticos.
A noção de Ciência Cívica passa pela defesa do papel da participação pública no uso e produção do conhecimento científico, considerando que os cidadãos teriam interesse em política científica, área que não deveria ser definida como exclusiva dos especialistas e policy‐makers. As indagações por
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parte dos leigos passam pelas questões da biotecnologia, tecnologia reprodutiva, o armazenamento de substâncias tóxicas e dos resíduos nucleares, mudanças climáticas e o projeto genoma.
No âmbito das Mudanças Climáticas, biosegurança e recursos naturais, o conhecimento especializado participativo também é demandado. O crescimento de regimes ambientais globais apresentou a necessidade de uma extensão dos pareceres científicos locais para uma avaliação científica multilateral. Surgiu então, a dúvida de como conciliar o conhecimento especializado e a participação pública na ciência. A autora vai desenvolvendo uma análise ao longo do texto na busca por sanar esse questionamento. Partindo do modelo clássico, a Bäckstrand elabora um modelo baseado na tríade entre cientistas experts, policy‐makers e cidadãos. O cidadão não seria um mero receptor de política, mas sim um ator dentro da relação política‐ciência, o conhecimento científico pode ser concebido, portanto, como um bem público global no qual os cidadãos devem ter participação.
A Ciência Cívica adveio dos estudos das Relações Internacionais, e de início abordava os aspectos institucionais da consultoria científica na política ambiental global, e atualmente são os órgãos consultivos científicos e técnicos internacionais que dão a entrada para negociações ambientais internacionais. A Ascensão da “ciência negociada” é uma característica proeminente nos esforços diplomáticos em curso associados às mudanças climáticas, a poluição atmosférica, a biodiversidade e desertificação. A assessoria científica exerce grande importância sobre os projetos internacionais acerca da questão ambiental. Os estudos das Relações Internacionais excluiam a teoria social assim como a noção de política excluia o público, construindo um contexto no qual a democracia não estaria sendo aplicada no processo de governança no que diz respeito às políticas ambientais, dando apenas enfoque para o conhecimento específico.
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Construindo uma relação, Giddens (2009) põe em discussão a necessidade de decisões e estabelecimento de mudanças no nível da coletividade, de que temos sempre que levar em consideração a dimensão global das causas e conseqüências das mudanças climáticas, contudo, não desconsiderando as iniciativas individuais. Podemos apontar a relação com os debates sobre participação pública, já que ambas linhas defendem uma participação coletiva, com sua bagagem sócio‐histórica, na busca por soluções mais democráticas. O domínio da produção e decisão de conhecimento científico por parte de uma elite se transforma e se torna perceptível uma relação de poder, expresso na frase de Bäckstrand: “The top‐down model of environmental problem‐solving grants power to networks of scientific experts, specialists, and bureaucrats in environmental science” (BÄCKSTRAND; 2003:6).
Fazendo um paralelo com a discussão sobre concentração de poder, Ladislau Dowbor (2007) analisou que no contexto atual, a mídia se utiliza e explora o assunto do aquecimento global de forma mercadológica e não no intuito de conscientização popular. O autor aponta uma necessidade de mudança nas estruturas de poder, sendo este concentrado sob o comando dos países desenvolvidos. Apresenta‐se então, uma necessidade de abertura para discussões que apresentem pontos de vista diversos no cenário mundial (diferentes contextos em diálogo).
Em complemento, no texto de Valério e Bazzo (2006), citam Dorea e Segurado, que definem os meios de comunicação de massa de “quarto poder” na sociedade, sobretudo por sua capacidade de produzir modos de vida e dinâmicas sociais.
“Segundo essas autoras, a mídia destaca‐se como um potente disparador de processos de subjetivação, porque investe como ninguém no cotidiano de cada indivíduo, podendo adequar comportamentos e maneiras de pensar de acordo com seus interesses. Assim, faz‐se necessário e premente que a divulgação científica passe
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rapidamente a contemplar tais capacidades” (VALÉRIO, BAZZO; 2006:6).
A divulgação científica seria um campo de exposição pública
de conhecimentos, pressupostos, valores, atitudes, e o que nos interessa, funcionamento da CT. Essa circulação de idéias juntamente com os resultados das pesquisas, servem para avaliar o impacto do assunto na sociedade, através de livre debate e confronto de opiniões.
A Ciência Cívica foi definida como esforços por parte dos cientistas em se comunicar com o público, divulgando os resultados científicos no intuito de contribuir para a literatura científica. Existem controvérsias a respeito da capacidade dos cidadãos leigos de deliberar em assuntos científicos, específicos. Dentro desta ciência, os autores se indagam se os leigos deveriam deliberar sobre a aplicação da CT ou se engajar na formulação de problemas científicos, se o conhecimento leigo deveria se limitar ao agenciamento dos riscos ou participar ativamente do processo de assessoria.
Na década de 1990, a crença indiscriminada na legitimidade da produção de ciência por parte dos especialistas caiu por terra, havendo, portanto, uma busca pela produção científica como fornecedora de bases firmes para justificar e construir decisões políticas críveis. Mas se percebeu que em muitas áreas, esses conhecimentos podem ser incertos, incompletos ou apenas previsões. “When the public experiences that science can be both contested and uncertain, the policy‐process, which relies on purportedly objective knowledge, loses credibility” (BÄCKSTRAND; 2003:7).
Dando continuidade, a Ciência Cívica se caracteriza através de três premissas, a de que a disseminação da compreensão da ciência ao público pode diminuir o encantamento com relação à expertise científica; a de que a complexidade dos problemas
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ambientais globais necessita uma reflexão que some a expertise científica e o conhecimento tradicional, leigo e por fim, busca estender os princípios da democracia para a produção do conhecimento científico.
A complexidade acelerada dos problemas ambientais globais gera uma indeterminação, que move a necessidade de uma nova ciência, o controle da natureza pelo cientista aumenta, contudo, as incertezas e os riscos permanecem. As discussões sobre o ambiente global sempre se caracterizaram como incertas, a política surge, portanto, como substituta da certeza, sendo o processo político aberto, transparente e promotor de uma auto‐reflexão na busca por solucionar incertezas científicas e superar a vulnerabilidade ecológica. “However, due to the uncertainty of future environmental outcomes, possible surprises and ecological catastrophes, a multiplicity of perspectives can prevent the narrowing of alternatives” (BÄCKSTRAND; 2003:9).
Ao fim de sua análise, a autora propõe discutir sobre a Ciência da Sustentabilidade, a qual articula uma ciência proativa, transparente e interdisciplinar, demanda vinda da sociedade, sendo a chave de compreensão da interação dinâmica e interdependência entre natureza e sociedade. Rompe com as lacunas do conhecimento presentes na relação entre os países do Norte e do Sul, e promove aos países em desenvolvimento, estrutura para participar do debate científico com maiores condições de igualdade. A relação entre o global e o local é relevante no âmbito da ciência da sustentabilidade, o conhecimento global sobre degradação ambiental deve dialogar com o conhecimento local para a produção de soluções sustentáveis. O conhecimento universal, juntamente com o conhecimento local formariam uma parceria equitativa e gerariam aprendizado mútuo. Contudo, o foco maior seria na participação e não nas mudanças do sistema e de regras do
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sistema de produção, utilização e comunicação do conhecimento científico. Considerações finais
A partir da relação estabelecida no desenvolver do texto, entre o campo CTS, mais especificamente com relação à noção de Ciência Cívica, entrando na discussão acerca da participação pública, e as discussões ambientais podemos fazer alguns apontamentos.
A alta modernidade, como diria Giddens, nos apresenta como um contexto de alto desenvolvimento da ciência e da tecnologia, juntamente com uma condição de incerteza. Por um lado buscamos maior investimento em CT para melhorar ao nosso bem‐estar, por outro percebemos que os próprios podem trazer consequências negativas para a nossa condição de ser humano, e num âmbito coletivo como sociedade, principalmente em relação com a natureza. A nossa busca por desenvolvimento trouxe desmedidas consequências ambientais, as quais temos que aprender a lidar. E a política como promotora de formas de enfrentamento tem se apresentado como necessária cada vez mais. Contudo, a política estabelecida, principalmente em países em desenvolvimentos e/ou subdesenvolvidos não se apresentam totalmente democráticas.
Surge então, a necessidade de um debate coletivo, interdisciplinar, inserindo além dos “experts”, os leigos e os portadores do conhecimento tradicional. Isso, principalmente pelo fato de que os leigos estão inseridos na mesma sociedade dos especialistas, são afetados igualmente ou mais do que estes, pelas tomadas de decisão, pelas políticas públicas, pelas assessorias, entre outras ações. Apesar de desprovidos do discurso legitimado, do domínio do conhecimento específico, essa parcela majoritária, tem condições de participar dos debates
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sobre os rumos de sua sociedade, de seu meio ambiente, de sua cultura, de sua política e principalmente políticas ambientais e de CT. O conhecimento tradicional pode também, contribuir para este debate, levando em consideração o princípio de igualdade de relevância de conhecimentos.
“Public questioning of science constitutes a healthy feature of democracy, and calls for transparency in science do not automatically represent an anti‐scientific position. A democratic model of civic science will enhance active citizenry, public engagement and scrutiny” (BÄCKSTRAND; 2003:12‐13).
Complementando,
“Vivemos mais e melhor por conseqüência de inovações científicas/tecnológicas, cujos aparatos significam, muitas vezes, facilidades e benefícios para o sucesso de nossa existência. Porém, por conta dessas mesmas inovações, vivemos também num contexto de incertezas e dúvidas: os benefícios da C&T dificilmente se fazem democratizados e, assim, ensejam possibilidades de dominação econômica e cultural; seus riscos, pelo contrário, atingem a todos e associam‐se a mazelas sociais insustentáveis” (VALÉRIO e BAZZO; 2006:7).
A citação “Os desafios principais do planeta não consistem
em inventar um chip mais veloz ou uma arma eficiente: consistem em nos dotarmos de formas de organização social que permitam ao cidadão ter impacto sobre o que realmente importa, em gerar processos de decisões mais racionais” (DOWBOR, 2007:107), pode ser aplicada no contexto CT&S, relacionado À necessidade de uma organização coletiva, dos especialistas cientistas, dos tecnocratas, do Estado e dos leigos na busca por soluções objetivas e que tenham impacto sobre questões realmente relevantes. Sendo os afetados, participantes ativos nas decisões sobre suas próprias vidas diretamente.
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Bäckstrand busca uma democratização da ciência, abrindo o debate antes concentrado em uma “elite científica”. Busca uma ciência mais efetiva, não considerando necessariamente que exista alguma forma de conhecimento mais correta, tanto a científica, como a leiga. Referências BÄCKSTRAND, K. Civic science for sustainability: reframing the role of experts, policy‐makers, and citizens in environmental governance global environmental politics, v. 3, n. 4, p.24‐41, nov 2003.
BAZZO, W. A. et al. Introdução aos estudos CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Cuadernos de Iberoamérica. Madrid: OEI, 2003.
DOWBOR, L. Inovar em Organização Social. In: Alternativas ao aquecimento global. São Paulo: Le Monde Diplomatique Brasil. 1ª Ed. p. 91 – 108, 2007.
GIDDENS, A. Introduction; A return to planning? In: The politics of climate change. Cambridge: Polity, 2009.
VALÉRIO, M.; BAZZO, W. A. O papel da divulgação científica em nossa sociedade de risco: em prol de uma nova ordem de relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade. Revista de Ensino de Engenharia, v. 25, n. 1, p. 31‐39, 2006.
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Logística humanitária: conhecimentos e técnicas a serviço da comunidade
Martha Regina Bortolato Cardoso
Wanda Aparecida Machado Hoffmann
Introdução O ambiente atual em que vivemos, segundo Valencio et al
(2004), é resultado de uma produção de cunho modernizante quanto à expressão material de crescimento e conservador em suas práticas políticas. O corpo técnico e político, que são os planejadores das cidades, desconsiderou os processos ambientais, subjugando e destruindo os sistemas bióticos e abióticos em que a população se assenta. Se concentrando nas expressões materiais do fazer, relegou a necessidade de refletir sobre como tais projetos de ocupação humana se tornariam ameaças a sua vulnerabilidade.
A emergência da modernidade deveria nos levar a uma ordem mais segura, no entanto “O mundo em que vivemos hoje é um mundo carregado e perigoso” (GIDDENS, 1991, p. 19). Viver no universo da alta modernidade proporcionada pelos avanços da ciência e da tecnologia é, segundo Giddens (2002, p. 104), “viver num ambiente de oportunidades e riscos”. O autor atenta para o controle humano dos mundos natural e social, onde o universo dos eventos que ocorrerão no futuro está aberto no presente a ser moldado pelo homem, dentro de limites regulados pela aferição de riscos.
Dentro desse contexto, Ciência, Tecnologia e Sociedade precisam caminhar juntas a fim de proporcionar a tal regulação adequada. Segundo Dagnino (2002), a razão de ser da política de Ciência e Tecnologia (C&T) é estimular a capacidade de um
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sistema para transformar conhecimento em produção que atenda as demandas socioeconômicas.
O modus operandi da sociedade, baseado nas expressões materiais do fazer, revela contradições à medida que um importante conjunto de fenômenos naturais vem ganhando o status de ameaça. As severas precipitações pluviométricas obrigam os citadinos a repensar rapidamente seus fixos e fluxos diante das perspectivas de danos humanos, materiais e ambientais passíveis de sofrer e assistir. (VALENCIO et al, 2004)
De acordo com Kobiyama (2010) fenômenos naturais passam a ser vistos como desastres naturais quando geram danos a sociedade. A magnitude desses eventos não se eleva devido às mudanças no clima, mas sim, por fatores antropogênicos como os inerentes à própria urbanização inadequada. Segundo o autor, se os desastres ocorressem apenas por fatores climáticos, não haveria mais solução. Felizmente a maioria desses eventos advém de causas humanas e assim é passível de solução, corrigindo‐se as ações inadequadas do homem.
É possível que a atual rota de colisão entre eventos adversos no clima e nosso modelo de urbanização, continue gerando desastres. Dentro dessa perspectiva, a logística vem através de seus conhecimentos e técnicas oferecer propostas que visem atender a sociedade de forma a mitigar os efeitos potencialmente danosos que um desastre ocasiona.
Condicionantes da Logística Humanitária
A Logística Humanitária se faz necessária quando a sociedade se encontra às voltas com a ocorrência de um desastre, envolve toda a comunidade, tanto a população afetada pelos efeitos dos desastres como os indivíduos, entidades e instituições (governamentais ou não) que se colocam a serviço, prestando
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assistência às vítimas, visando à redução dos danos, perdas e prejuízos ocasionados. a) Desastres
Conforme Castro (2002) desastre é compreendido como o:
Resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema (vulnerável), causando danos humanos, materiais e/ou ambientais e conseqüentes prejuízos econômicos e sociais.
É proposta pela International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies a seguinte equação:
Vulnerabilidade + Perigo = Catástrofes
Capacidade
Ou seja, toda vez que tivermos um ambiente onde se encontre uma população exposta a vulnerabilidades e nesse ambiente ocorrerem eventos ambientais extremados, se a capacidade de suportar a esses eventos não for adequada, ocorrerão catástrofes.
De acordo com Castro (2002) catástrofes são:
Grande desgraça, acontecimento funesto e lastimoso. Desastre de grandes proporções, envolvendo alto número de vítimas e/ou danos severos.
A Defesa Civil do Brasil codifica os desastres em três tipos: naturais aqueles que dependem exclusivamente da dinâmica do planeta como terremotos, vulcões entre outros; humanos aqueles de natureza tecnológica, social ou mesmo biológica como acidentes, guerras e as epidemias; e ainda os mistos aqueles em
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que a ação humana potencializa as causas naturais como chuvas ácidas e desertificação.
b) Comunidade Afetada
Compilando dados da Secretaria Nacional de Defesa Civil para o ano de 2010 encontramos 893 municípios que notificaram a ocorrência de eventos. Com destaque para os estados de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Piauí, contando respectivamente com 155, 136, 132 e 113 municípios afetados. Apenas Acre, Amapá, Roraima e Tocantins não apresentaram nenhum registro de ocorrências.
O Quadro 1 apresenta a freqüência de mortos, afetados e o número de municípios em cada estado onde ocorreu registro.
Quadro 1. Número de mortos, de afetados e de municípios por estado em 2010 Fonte: adaptado da Secretaria Nacional de Defesa Civil
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Observa‐se pelo Quadro 1 total de 158 mortos e 12.082.794 pessoas afetadas de alguma forma por algum tipo de desastre. A maior parte das ocorrências está relacionada a eventos climáticos como chuvas intensas, tempestades, vendavais, enchentes, inundações, deslizamentos, erosões, estiagens e seca entre outros. Houve raros registros de abalos sísmicos, incêndios florestais, ocorrências biológicas como a Salmonelose, ou desastre propriamente humano como incêndios em plantas industriais, por exemplo.
Segundo Guha‐Sapir; Vos; Below (2011) a ocorrência de catástrofes a nível mundial encontra‐se dividida da seguinte forma: 34,8% das ocorrências na Ásia; 25,2% na América; 18,2 % na Europa; 17,9% na África; e 3,9% na Oceania. De acordo com o relatório, em toda América foram observados mais eventos, vítimas e danos em relação à média anual da ultima década. O número de ocorrências para 2010 foi de 97 enquanto a média anual de 2000‐2009 era de 92, o número de vítimas passou de aproximadamente 7,09 milhões por ano para 12,10 milhões em 2010, os danos estimados em 43,69 bilhões de dólares (2009) anuais chegaram a 56,84 bilhões de dólares (2010).
c) Comunidade Envolvida Em geral quando ocorre um desastre a entidade responsável
na maioria dos países é a Defesa Civil e no Brasil ela está presente em todos os estados. A Defesa Civil é que coordena os esforços de todos os órgãos governamentais e as demais organizações públicas ou privadas, e a própria comunidade, para o planejamento e a execução de medidas desde a prevenção, o socorro às populações afetadas até o restabelecimento da ordem e bem estar social.
Quando a intensidade da ocorrência extrapola a capacidade de um país de responder adequadamente às necessidades
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geradas, diversos órgãos e instituições internacionais governamentais ou não, podem oferecer auxilio objetivando a mitigação dos danos gerados pelo evento.
A Organización Panamericana de La Salud através do Manual para el Manejo Logístico de Suministros Humanitários apresenta os principais organismos internacionais que atuam em ocorrências de desastres, que são: ‐ Órgãos vinculados a ONU: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Departamento de Assuntos Humanitários (OCHA), Programa Mundial de Alimentos (PMA), Alto Comissionado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Organização Mundial da Saúde/Organização Pan‐Americana da Saúde (OMS/OPS). ‐ Outras agências multilaterais: Organização dos Estados Americanos (OEA), Agência do Caribe para Assistência a Desastres (CDERA), Centro para Prevenção de Desastres Naturais na América Central (CEPREDENAC), Oficina de Assistência Humanitária da Comunidade Européia (ECHO). ‐ Agências governamentais ou bilaterais: Oficina do Governo dos EUA Para Desastres no Exterior (OFDA‐AID), Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA), Agência Alemã de Cooperação (GTZ), Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional (SIDA). ‐ Principais organizações não‐governamentais: Movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (presente em diversos países), Comitê Internacional da Cruz Vermelha (federação internacional), CARE (organização estadunidense), CARITAS (braço social da igreja católica), Médicos Sem Fronteiras – MSF, OXFAM (organização britânica), Ação Contra a Fome – ACH (organização européia), Exército de Salvação (organização religiosa), Conselho Mundial das Igrejas (envolve igrejas cristãs e ortodoxas).
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Logística
“A logística empresarial associa estudo e administração dos fluxos de bens e serviços e da informação associada que os põe em movimento” (BALLOU, 1993, p. 23). Para o autor a missão da logística é disponibilizar o produto ou serviço certo, no lugar e instante corretos, na condição desejada ao menor custo possível.
Nogueira, Gonçalves e Novaes (2007) entendem o objetivo da logística humanitária como o de vencer tempo e distância na movimentação de materiais e serviços de forma eficiente e eficaz a serviço da comunidade afetada. a) Logística Empresarial versus Logística Humanitária Para Ballou (1993) as atividades primárias da logística são:
transporte, manutenção de estoque e processamento de pedidos. Bowesox e Closs (2004) complementam considerando como recursos logísticos: informação, previsões, estratégia de estoque, gerenciamento de estoques, infra‐estrutura de transporte, gerenciamento de transporte, gerenciamento de depósitos, movimentação de materiais e embalagem.
Os recursos logísticos apresentados pelos autores para a Logística Empresarial (LE) podem ser aplicados à Logística Humanitária (LH) respeitando algumas especificidades inerentes a situações emergenciais. Informação: LE – pedidos de clientes e ressuprimento,
necessidades de estoque, programação de atividades dos depósitos, documentação de transporte e fatura. LH – deve seguir os mesmos padrões, porém pode haver dificuldades tecnológicas. Previsões: LE – projeção de valores ou quantidades que
provavelmente serão produzidas, vendidas ou expedidas,
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elaboradas por itens, clientes ou grupos de itens e clientes. LH – dificuldades de previsão ou mesmo diagnóstico de demanda. Estratégia de estoque: LE – nível de estoque acarreta várias
atividades logísticas. Estoque baixo pode prejudicar o marketing ou a produção, estoque alto acarreta aumento de custos. LH – suprimentos solicitados ou adquiridos, ou ainda doados, quando em excesso prejudicam a logística e quando escassos não atendem adequadamente as vítimas. Gerenciamento de estoque: LE – considerações de natureza
estratégica requer o desenvolvimento de um processo envolvendo vários produtos em mais de um local. LH – sistemas de controle e monitoramento dos suprimentos na cadeia de assistência. Infra‐estrutura de transporte: LE – variedade de alternativas
desde a contratação de um serviço eventual, ter seu próprio transporte ou fechar vários contratos com diferentes transportadores especializados. LH – envolve duas características importantes: as características do que será transportado e as possibilidades do tipo de transporte disponível, custos e ainda condições de acesso. Gerenciamento de transporte: LE – custo e valor do serviço,
fretes e taxas especiais, responsabilidades, atividades pertinentes, avaliação das transportadoras e documentações de transporte. LH – pode haver contratação de transporte comercial ou disponibilização de transporte por organismos governamentais ou não‐governamentais. As responsabilidades e documentação é tal qual a LE. Gerenciamento de depósitos: LE – engloba sistemas de
processamento, centros de distribuição, terminais de consolidação e instalações break bulk e cross‐dock. LH – processamentos ocorrem conforme a disponibilidade da infra‐estrutura local do centro de distribuição até aos postos de atendimento às vítimas.
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Movimentação de materiais: LE – o manuseio de produtos é a chave da produtividade de um depósito, envolve grande quantidade de mão‐de‐obra, e ainda é pouco informatizado. LH – necessita ser administrado por apenas uma pessoa e é realizado basicamente com mão‐de‐obra voluntária. Embalagem: LE – diz respeito à proteção contra avarias,
manuseio de materiais e transmissão de informação, além de sua utilização como dispositivo de unitização de cargas. LH – os mesmos padrões requeridos pela LE são observados, destacando maior atenção as informações contidas na embalagem.
Algumas outras características da logística empresarial confrontadas com a logística humanitária se encontram no Quadro 2.
Temas Logística Empresarial Logística Humanitária Demanda Estável, locais e
quantidades pré‐fixadas. Só estimada após a ocorrência.
Lead time Determinado pelas necessidades do fornecedor ao consumidor.
Praticamente zero entre a ocorrência da demanda e a necessidade da mesma.
Centros de distribuição
Definidas em termos de número e localização.
Desafiadora pela necessidade desconhecida da demanda.
Controle de estoques
Métodos definidos por lead time, demanda e níveis de serviço.
Desafiador pela grande variação da demanda e localização da mesma.
Sistemas de informação
Bem definidos e de alta tecnologia.
Pouco confiáveis, incompletas ou inexistentes.
Objetivos Qualidade ao menor custo para satisfazer o cliente.
Minimizar perdas de vidas e aliviar sofrimento.
Foco Produtos e serviços. Pessoas e suprimentos. Quadro 2. Características da Logística Empresarial versus Logística Humanitária Fonte: Adaptado de Nogueira, Gonçalves e Novaes (2007)
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Alvarenga e Novaes (2000) atentam para a importância da formação de uma rede logística, ou seja, uma representação físico‐espacial, dos pontos de origem e destino, um conjunto de nós dos aspectos mais relevantes e suas ligações, possibilitando a visualização dos fluxos necessários. A logística trabalha de forma sistêmica buscando soluções alternativas que cubram as diversas possibilidades inerentes as discussões da origem ao destino.
Quando ocorre um desastre não há tempo hábil para se montar toda a rede logística, assim é preciso dispor de um trabalho prévio de análise das áreas de risco, população ali instalada e toda a infra‐estrutura ao redor que possa atender aos atributos exigidos para a esquematização da rede. Uma rede logística previamente delineada auxilia e agiliza a tomada de decisão por parte dos responsáveis, minimizando o tempo de resposta ao evento. Considerações Finais A Logística põe a serviço da sociedade conhecimentos e
técnicas que podem agilizar os processos de socorro e atendimento as vítimas de desastres. Procedimentos como gerenciamento de depósitos, transporte e informação, são aplicáveis as situações emergenciais adaptando‐os é claro as especificidades da cadeia de assistência e a urgência que ela exige.
De posse de instrumentos como mapas de áreas de risco, estimativas de população local, de disponibilidade de infra‐estrutura regional e fontes prováveis de recursos é possível proceder à planificação de uma rede logística que minimize o tempo de resposta ao evento, garantindo melhor atendimento as possíveis vítimas de forma eficiente e eficaz.
Assumindo o atual sistema urbano como fruto dos processos de modernização impostos pelos avanços científicos e
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tecnológicos, que desconsidera e expôs a própria sociedade a vulnerabilidade, não restando outro caminho a não ser “correr atrás do prejuízo”, ou seja, oferecer a sociedade o suporte necessário para sua segurança e bem estar, através do equacionamento de problemas infra‐estruturais com planejamento para emergências que garanta uma boa capacidade de resposta e os menores danos possíveis.
Referências ALVARENGA, A. C.; NOVAES, A. G. Logística Aplicada. Suprimento e Distribuição Física. 3ª Edição. São Paulo: Editora Edgar Blücher LTDA, 2000.
BALLOU, R. H. Logística Empresarial. Transportes, administração de materiais e distribuição física. Tradução de Hugo T. Y, Yoshizaki. São Paulo: Atlas, 1993
BOWERSOX, D. J.; CLOSS, D. J. Logística Empresarial. O processo de integração da cadeia de suprimento. Tradução de Adalberto Ferreira das Neves. São Paulo: Atlas, 2004.
CASTRO, A. L. C. de. Glossário de Defesa Civil. Estudos de risco e medicina de desastres 3ª Edição. Ministério da Integração Nacional, Secretaria Nacional de Defesa Civil, 2002. Disponível em < http://www.cepe d.ufsc.br/biblioteca/ outros‐titulos/glossario‐de‐defesa‐civil‐estudos‐de‐riscos‐e‐medicina‐de‐desastres>, acessado em 10 de junho de 2011.
DAGNINO, R. A Relação Pesquisa‐Produção: Em Busca de Um Enfoque Alternativo. In: Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnología, Sociedad e Innovación. Número 3, 2002. Disponível em <http://www.oei.es/revistactsi/ numero3/art01.htm>, acessado em 23 de junho de 2011.
GIDDENS, A. As Conseqüências da Modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
GIDDENS, A. Modernidade e Identidade.Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
GUHA‐SAPIR, D.; VOS, F.; BELOW, R. Annual Disaster Statistical Review 2010. The numbers and trens. Brussels: CRED, 2011.
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Considerações sobre divulgação científica para crianças e adolescentes
Raquel Juliana Prado Leite de Sousa
Coisa de criança: assunto sério Durante todo o dia, temas de Ciência e Tecnologia (C&T)
rodeiam as crianças e os adolescentes em programas de tevê, livros, cartazes, jornais, embalagens de produtos, brinquedos, propagandas, aparelhos eletrônicos. Assim, não é apenas nas atividades das apostilas de ciências que os jovens se deparam com questões de C&T; a educação científica desse público acontece também fora da escola, em uma esfera informal que, de acordo com Massarani (2008), não tem sido suficientemente explorada, de modo a contribuir com a formação de uma verdadeira cultura científica.
A divulgação da ciência feita através da mídia chega ao público infanto‐juvenil não somente através de conteúdos produzidos para adultos, mas também por intermédio de programas e publicações destinadas exclusivamente a essa faixa etária, o que influencia diretamente na educação científica de um público que já é cidadão no presente.
De acordo com Auler e Delizoicov (2001), a Alfabetização Científica e Tecnológica (ACT) tem se valido tanto para ampliar a participação social democrática nas discussões sobre C&T – em uma perspectiva ampliada – como para legitimar o fazer científico perante a sociedade, a favor da tecnocracia – em uma perspectiva reducionista.
Segundo Massarini (2005), o conteúdo científico divulgado para crianças e adolescentes é de baixa qualidade, não apresenta clareza e não contextualiza os entornos da ciência; assim, a visão
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de uma ciência neutra, postuladora de verdades e não ideológica pode estar sendo transmitida aos nossos jovens, em detrimento da problematização da ciência e da construção de um conhecimento socialmente relevante para esse público.
Através de uma análise exploratória inicial, o presente artigo traça considerações a respeito de estudos publicados no Brasil sobre a temática divulgação científica para crianças e adolescentes, a fim de discutir a forma como tem sido levada a ciência para o público infanto‐juvenil através da mídia e verificar se os temas científicos são tratados sob a perspectiva ampliada ou reducionista, à luz do estudo de Auler e Delizoicov (2001).
Ciência na mídia: em busca de apoio? A perspectiva reducionista de educação científica se
assemelha ao modelo do ‘déficit cognitivo’, em que o educando é tido como não conhecedor da ciência, sendo necessário transmitir a ele conceitos técnicos que ignoram o mito de neutralidade da ciência (mito original), não favorecem uma postura crítica e ampliam o apoio ao universo da ciência (AULER; DELIZOICOV, 2001).
Já a perspectiva ampliada parte de um modelo progressista de educação, baseado em um dialogismo que se aproxima do método freireano, devido à problematização e à criticidade que buscam aproximar a C&T das questões socialmente relevantes (AULER; DELIZOICOV, 2001).
Entretanto, aproximar a educação científica de questões sociais não deve se restringir a discutir as implicações sociais da ciência. É necessária uma abordagem mais radical que seja capaz de promover “[...] uma educação política que busca a transformação do modelo racional de ciência e tecnologia excludente para um modelo voltado para a justiça e igualdade social.” (SANTOS, 2008, p. 111), em que os mitos científicos,
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como o de neutralidade e superioridade, por exemplo, poderão ser ultrapassados para dar lugar ao pensamento crítico que seja capaz de questionar as interações entre ciência, tecnologia e sociedade.
Partindo do pressuposto que a educação científica não ocorre apenas no ensino formal, podemos pensar a mídia como educadora informal e estender as perspectivas de ACT reduzida e ampliada para as publicações midiáticas, tanto as que visam intencionalmente a divulgar ciência para o público infanto‐juvenil, como as o fazem de forma não propositada.
Em investigação promovida pela Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa e Agência de Notícias dos Direitos da Infância (2009), foi analisada a cobertura despendida por 50 jornais diários brasileiros de circulação nacional durante os anos de 2007 e 2008, sendo estudada uma amostragem de 2.599 textos, selecionados pela metodologia de ‘mês composto’, a fim de averiguar o agendamento da mídia em relação a assuntos ligados à Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Verificou‐se que a inclusão de temas científicos se deu, em sua maioria, através da repercussão de pesquisas científicas (31,0% em 2007 e 32,0% em 2008), e da repercussão de eventos científicos (10,8% em 2007 e 12,8% em 2008), o que corrobora com a ideia de que a ciência é divulgada para ampliar o apoio social à comunidade científica, tal qual na perspectiva reduzida de ACT.
Do total de textos analisados, 40% mencionaram a faixa‐etária do público‐alvo, sendo que, destes, 16% se voltaram para crianças e adolescentes (FUNDAÇÃO...; AGÊNCIA..., 2009). O referido estudo não analisou publicações destinadas ao público infanto‐juvenil, entretanto, deve‐se atentar para o fato que os jovens leem tais publicações, bem como seus professores e familiares. Além disso, a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) parte do pressuposto que a agenda da mídia define a agenda da população e dos tomadores de decisão, ou
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seja, estabelece quais assuntos são mais importantes, influenciando as tomadas de decisão, que afetam todas as faixas etárias.
De acordo com Candotti (2002, p. 17) [...] a divulgação não é apenas página de literatura, na qual as imagens encontram as palavras (quando as encontram), mas exercício de reflexão sobre os impactos sociais e culturais de nossas descobertas.
Portanto, estudar o quê e como se divulga a ciência em nossa
sociedade, mais do que verificar qual importância tem se dado à comunidade científica, é refletir sobre os caminhos e modelos que são traçados todos: cientistas e não cientistas.
Animações: homens cientistas e magia Na televisão, algumas animações infantis (desenhos
animados) brincam com o universo da ciência e com a imagem do cientista. Em O Laboratório de Dexter (Dexterʹs Laboratory – Cartoon Network), o personagem que dá nome à animação é um “[...] menino cientista, convencido, mal‐humorado e constantemente incomodado por Dee Dee, sua irmã maior, ‘ignorante’ do saber científico.” (SIQUEIRA, 2008, p. 46). Em seu laboratório secreto, Dexter utiliza de alta tecnologia em benefício próprio, já na escola o garoto é visto como qualquer outra criança, merecendo o descrédito de algumas pessoas (SIQUEIRA, 2005, 2008).
Em As Aventuras de Jimmi Nêutron, (The Adventures of Jimmy Neutron: Boy Genius – Nickelodeon), o pequeno e simpático cientista Jimmi se destaca de seus colegas e familiares por sua genialidade; para ele, a escola e os professores são antiquados e suas invenções altamente tecnológicas são usadas em benefício próprio. (SIQUEIRA, 2005, 2008).
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A ciência, aqui, como em Dexter, se parece muito com a magia em outros programas e outras narrativas. É um escape que privilegia os fins e a aplicação imediata, por isso, as soluções não se dão em processo: são imediatas, como um toque de mágica. (SIQUEIRA, 2008, p. 46‐47).
Em ambos os desenhos, o cientista é colocado como uma
pessoa diferente das demais, superior, capaz de coisas impossíveis para os demais personagens, dominadores de uma alta tecnologia quase mágica e parecem estar acima do bem e do mal: reforçam o mito da superioridade da ciência.
Em As Meninas Superpoderosas (The Powerpuff Girls – Cartoon Network), Docinho, Lindinha e Florzinha são criações do Professor Utonium, cientista que é um misto de chefe e pai (SIQUEIRA, 2005). As meninas foram criadas em laboratório para possuírem superpoderes e combater o mal, personificado no Macaco Loco (também é criação do Professor), a fim de ajudar o prefeito e a população da cidade de Townsville. O desenho, apesar de ter protagonistas do gênero feminino, reforça a idéia da ciência masculina: Professor é o inventor que tudo consegue e as meninas, meras criações dele. As aventuras de Henry (Henry´s Would – Discovery Kids) é uma
animação de bonecos cujo personagem principal (Henry) é sobrinho de um cientista, Netuno, que, com o auxílio de um robô, explica o funcionamento de coisas do cotidiano (SIQUEIRA, 2005). Aqui, pode‐se perceber uma concepção reduzida de ACT, uma vez que o cientista, detentor do saber, transmite unidirecionalmente conhecimentos técnicos a seu sobrinho e, por conseguinte, ao telespectador.
Em O Divertido Mundo de Peep (Peep and the Big Wide World – Discovery Kids), não há a figura de um cientista: Peep, ave recém‐nascida, e mais dois amigos questionam o mundo à volta deles. O universo da escola não é retratado, aparecem situações do cotidiano, em que os processos são desvelados – como semear
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uma semente de girassol, regá‐la e esperar que brote e cresça, por exemplo (SIQUEIRA, 2005, 2008).
Em Timothy vai à escola (Timothy Goes to School – Nelvana), cujos personagens são animais, também não aparece a figura do cientista, o ambiente escolar é visto como espaço de socialização do conhecimento e a ciência não tem destaque de outras formas de saber (SIQUEIRA, 2008).
Nas duas últimas animações, a figura do cientista não é citada, a ciência é mais vista como um processo e o saber parece estar mais distribuído entre os personagens.
De acordo com Siqueira (2005), as animações veiculadas no Brasil, tendo a intenção de educar ou não, reforçam uma imagem estereotipada de cientista.
O modelo de cientista apresentado é aquele dos laboratórios, das experiências, tubos de ensaio, pipetas e equipamentos eletrônicos. Nunca aparece um sociólogo, antropólogo, psicólogo ou cientista político. No universo do desenho e das animações, esses não parecem ser reconhecidos como profissionais da ciência. (SIQUEIRA, 2005, p. 31).
Nas animações analisadas por Siqueira (2005, 2008), o
cientista é representado como estudioso da área de exatas, de gênero masculino, e aparece apoiado por aparatos tecnológicos mágicos, com exceção de O Divertido Mundo de Peep e Timothy Vai à Escola (em que não aparecem cientistas. Os resultados e aplicações imediatas são sempre o objetivo da ciência, não revelando os processos e limitações do trabalho científico.
No papel... A revista Ciência Hoje das Crianças (CHC), publicação da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), é publicada desde 1986. Versão infantil da revista Ciência Hoje
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(CH), é adotada pelo MEC e distribuída para 107 mil escolas como material de apoio paradidático (INSTITUTO CIÊNCIA HOJE, [200?]), além de permitir assinaturas particulares. Seus textos são escritos, a convite ou espontaneamente, por especialistas, e passam por uma edição, para adequação da linguagem ao público infantil (MASSARANI, 2005).
Zamboni (2001) realizou um estudo na área de Análise do Discurso em que comparou dois textos do cientista Cléber J. R. Alho, um divulgado na revista CHC e outro na revista CH, ambos sobre o mesmo assunto: a tartaruga da espécie Podocnemis expansa. A autora observou a organização textual, a sintaxe e o vocabulário, verificando que na CHC, a argumentação cede espaço à narração, as frases são mais curtas e o uso constante de linguagem conotativa, por intermédio de comparações e analogias.
A matéria analisada (O Mistério das Tartarugas Roubadas, CHC, n. 4, 1992), longe de descrever características do animal estudado, mostra parte do processo do cientista no estudo e revela um problema social que interfere diretamente na pesquisa e no ecossistema: o roubo dos ovos para venda, indicando que o autor mostra uma visão mais ampliada da pesquisa.
Massarani (2005) realizou entrevistas com 21 crianças assinantes da revista CHC, a fim de verificar suas práticas de leitura. As entrevistas indicaram que as crianças costumam folhear a revista, mantendo uma relação corporal com ela através dos cinco sentidos “[...] acariciar; abraçar; percorrer as imagens com os olhos, com os dedos; indicar traços preferidos; levar para a escola; mostrar para um amigo, ler para outro. (MASSARANI, 2005, p. 52). Só depois é feita a leitura, escolhendo o que vão ler: ou pela seção preferida ou pelo assunto.
A autora constatou que as assinantes da revista pertencem a um ambiente social que estimula a leitura e o conhecimento, e também têm acesso a materiais culturais orais (rádio, tevê,
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cinema). Assim, em um primeiro nível de leitura (parafrásica), a criança procura o que deve ser o sentido expresso no texto pelo autor; e em um segundo nível de leitura (polissêmica), o leitor atribui outro sentido, conforme outras leituras feitas (MASSARANI, 2005). Isso atenta para o fato que a construção do conhecimento científico não se dá apenas por intermédio de um único conteúdo, um único texto, mas através de uma construção constante que nasce de todas as leituras da criança: sua leitura de mundo. “Na proposta de educação libertadora de Paulo Freire, a conscientização do indivíduo ocorre por meio do diálogo mediado pelas suas condições de existência.” (SANTOS, p.119), diólogo esse fundamental para a formação de uma plena Alfabetização Científica e Tecnológica.
Em análise das matérias de capa de 31 edições da Folhinha, suplemento infantil do jornal Folha de São Paulo, Jonh (2005) verificou que o consumo é o elemento central do discurso: “este consumo incentivado na Folhinha, nas 31 edições analisadas, está associado a outros discursos tais como o tecnológico, o científico ou o do sucesso.” (JOHN, 2005, online). Em uma matéria sobre coelhos, categorizada como pertencente à temática de Ciência e Meio Ambiente, o animal foi tratado em seu valor de mercado: serve como alimento, fornece pele para adorno e é utilizado em laboratórios de teste para cosméticos (JOHN, 2005). O estudo traz indicativos de que a ciência pode estar sendo representada nesse suplemento como um meio destinado a um fim: o consumo. Considerações finais As idéias levantadas neste estudo não são conclusivas, tratam‐
se de considerações iniciais sobre o tema, baseadas em outras considerações traçadas por estudiosos da área. A presença de uma perspectiva reducionista da ciência ainda é marcante na
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mídia, mas não é a única, e essa visão tem sido superada por iniciativas na tevê e no jornalismo.
Divulgar ciência para crianças e adolescentes, mais do que mostrar a elas resultados de laboratório e transferir informações, à imagem de uma educação bancária, é fazê‐las resignificar o mundo que estão descobrindo em uma fase tão intensa de aprendizado. Portanto, chamar a atenção de um jovem telespectador e leitor, mais do que convencê‐lo a consumir determinado produto, seguir assistindo a programação de determinada rede de tevê ou a continuar comprando as edições posteriores de um jornal ou revista é instigá‐lo pessoalmente ao conhecimento.
Ruiz (2004) atenta para a necessidade desafiar os jovens, evitando que a divulgação se resuma a trazer definições e descrições já prontas, mas que centrem a informação científica no processo:
[...] apelar à curiosidade de nossos leitores, começando por questionar se certas idéias surpreendentes ou insólitas poderiam ser levadas à prática [...]. Outra possibilidade é tomar um corpo de conhecimento bem estabelecido e responder à pergunta sobre como os cientistas obtiveram seus resultados [...]. Melhor ainda, podemos escolher um problema científico e convidar os leitores a pensar sobre algumas maneiras de solucioná‐lo [...]. (RUIZ, 2004, p. 15).
Transpor a ideia de resultado para processo, da aplicação
imediata para a investigação; fazendo que o jovem perceba que o resultado e a aplicação são sim importantes para a ciência, mas são apenas parte de uma prática que implica também em ambiguidades, limitações e erros. O objetivo não é fazer de crianças e adolescentes cientistas, mas ajudá‐los a percebe que a ciência é uma das formas de investigação do mundo.
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Divulgar ciência não é fazer propaganda nem de cientistas ou de produtos, nem instrumentar os jovens para que possam utilizar determinadas tecnologias, mas para que possam participar como cidadãos através de um aprendizado que lhes seja realmente significativo e que os permita ver que o futuro não está preestabelecido, determinado pela ciência, mas que será uma construção baseada na posição de cada ser humano.
Superar esse modelo não será fácil, principalmente porque mostrar os mitos por detrás da ciência é questioná‐la, o que implica em duvidar de saberes e métodos já há muito preestabelecidos como verdadeiros, o que poderá mudar o apoio e a admiração despendidas pela sociedade à comunidade científica. Referências ALBAGLI, Sarita. Divulgação científica: informação científica para a cidadania? Ci. Inf., Brasília, v. 25, n. 3, p. 396‐404, set./dez. 1996.
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Os tesauros multilíngues pelas perspectivas da ciência, tecnologia e sociedade: possibilidades de construção e uso
Ricardo Biscalchin
Vera Regina Casari Boccato Introdução
A explosão da Ciência e da Tecnologia (C&T) ocorrida durante a revolução industrial e a revolução científica, e amplificada pelas duas grandes guerras mundiais, conduziram à um grande desenvolvimento de “bens” científico‐tecnológicos que resultaram em mudanças significativas na sociedade. Cotidianamente nos vemos dependentes e até obrigados a fazer uso dessas tecnologias científicas que se incorporaram na sociedade, de modo a modificarem nosso modo de vida e de comunicação, nos levando hoje a questionarmos como era possível a sobrevivência quando tais tecnologias ainda não existiam, e como seria essa sobrevivência nos dias atuais.
Uma dessas tecnologias que se introduziram fortemente na sociedade, modificando o modo de interação e comunicação entre os indivíduos, foi a internet. A internet revolucionou os meios de comunicação se tornando um veículo de informação de uso cotidiano de grande parte da população mundial. A internet (World Wide Web) é uma rede mundial de dados onde milhares de computadores se encontram conectados em rede e distribuídos nos mais distintos pontos do globo, permitindo a comunicação instantânea entre eles, ultrapassando fronteiras físicas e temporais, possibilitando, desse modo, a comunicação entre indivíduos de diferentes países, em diferentes culturas e idiomas de uso.
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Há pouco tempo atrás não imaginaríamos que teríamos a dimensão “Ciência e Tecnologia” tão desenvolvidas, permitindo a interação e a comunicação por meio de dispositivos móveis que não se encontram limitados a um espaço físico. Hoje, além da internet, temos os aparelhos celulares, os pagers, os dispositivos de GPS (Global Positioning System) e vários outros dispositivos de comunicação, que nos permitem a interação instantânea com indivíduos de diferentes pontos do planeta e, particularmente, no caso do GPS, a comunicação e a interação instantânea com o satélite.
Mediante essa contribuição que a Ciência e a Tecnologia trouxeram para a Sociedade, torna‐se de suma importância avaliar o impacto que a tecnologia científica causou à sociedade, isto é, quais são os seus benefícios e as suas ameaças. É necessário pensar e refletir sobre a C&T produzidas e disseminadas à população, e qual o real benefício ou malefício gerado à sociedade. Diante desses questionamentos surge o movimento de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que de acordo com Leite e Ferraz (2011, p.40)
Nos anos 1960 e 1970, o questionamento dos reais benefícios e malefícios da C&T embasou o surgimento do Movimento CTS, o qual, com pesquisas sobre a dimensão social da C&T, inclui uma diversidade de campos de estudos que compartilham a crítica à neutralidade da C&T e a promoção da participação pública na tomada de decisões como meios de instrumentalização da cidadania.
Notamos que, a partir da década de 60, houve um
crescimento da preocupação sobre os benefícios e malefícios da C&T na sociedade. A C&T deixam de ser vistas como salvadoras e detentoras apenas de benefícios, e passam a ser questionadas, quanto a sua real potencialidade em ser benéfica e maléfica à sociedade como um todo. A sociedade e um grupo de cientistas passam, então, a se preocupar com os impactos que essas
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tecnologias estão trazendo à sociedade e de que modo aprimoram ou dificultam a vida dos indivíduos. O impacto dessas transformações sociais impostas pela Ciência e Tecnologia afeta não só o campo social, mas também o político e o econômico. Reforçando a necessidade de um olhar crítico sobre o desenvolvimento científico‐tecnológico recorremos aos postulados teóricos de Pinheiro, Silveira e Bazzo (2007, p. 72) expondo que
[...] pode ser perigoso confiar excessivamente na ciência e na tecnologia, pois isso supõe um distanciamento de ambas em relação às questões com as quais se envolvem. As finalidades e interesses sociais, políticos, militares e econômicos que resultam no impulso dos usos de novas tecnologias implicam enormes riscos, porquanto o desenvolvimento científico‐tecnológico e seus produtos não são independentes de seus interesses.
Muitos segmentos como os alimentos transgênicos e o uso de
energia nuclear são constantemente debatidos por estudiosos como Pinheiro, Silveira e Bazzo (2007) e também pela mídia televisiva, entre outras, que se ocupam, também, de discutir os aspectos políticos e os interesses de grupos dominantes que impõem as tecnologias. Segundo os mesmos autores (PINHEIRO, SILVEIRA e BAZZO, 2007, p.72) as ações e as tecnologias que envolvem tais segmentos acabam “persuadindo as classes menos favorecidas, impõem seus interesses, fazendo com que as necessidades da grande maioria carente de benefícios não sejam amplamente satisfeitas.”
Assim, faz‐se necessário que o cidadão conheça e compreenda as tecnologias desenvolvidas que virão a ser implantadas na sociedade, devendo ele possuir os subsídios teóricos e os conhecimentos práticos suficientes sobre determinada tecnologia para que, diante disso, possa fazer uma “leitura”, uma análise dessa tecnologia e determinar sobre a sua adoção ou não em sua vida. Dessa maneira, devemos atuar não
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apenas como receptores dessas mudanças tecnológicas, ou seja, como seres pacíficos, mas também como atores sociais, participantes direta e indiretamente dessas inovações tecnológicas.
Sobre isso, também Pinheiro, Silveira e Bazzo (2007, p.72‐73) relatam que
Precisamos constantemente considerar que somos atores sociais. Uns diretamente afetados pelas possíveis conseqüências da implantação de determinada tecnologia e que não podem evitar seu impacto; outros, os próprios consumidores de produtos tecnológicos, coletivo que pode protestar pela regulação e pelo uso das tecnologias; outros mais, público interessado, pessoas conscientes que vêem nas tecnologias um ataque a seus princípios ideológicos, como os ecologistas e várias ONGs; e, também, estudiosos de vários segmentos com condições de avaliar os riscos da área de conhecimento que dominam.
Nessa perspectiva, não devemos ser passivos diante dessa
avalanche tecnológica, antes, devemos medir, avaliar as vantagens e desvantagens das inovações tecnológicas que nos são apresentadas diariamente e escolher quais devem ou não integrar o nosso cotidiano.
Todavia, para que isso ocorra, precisamos que os cidadãos tenham acesso à informação sobre essas tecnologias e ciências, para que lhes seja possível avaliar a tecnologia não apenas da maneira como ela será utilizada, mas também do impacto que ela traz e pode provocar. Para isso, é necessário que as unidades de informação ofertem, aos cidadãos, informações precisas para que eles possam realizar tal avaliação.
As unidades de informação são organizações que coletam, tratam e disseminam o conhecimento científico a partir de teorias e metodologias que permitem aos cidadãos entenderem as tecnologias que o cercam, podendo elas em alguns casos, contribuírem tanto para o entendimento, quanto para a produção da ciência e da tecnologia.
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Diante do exposto e no contexto deste estudo, dar‐se‐á enfoque específico para a biblioteca universitária, identificada como unidades de informação científica especializada. Sobre isso, Biscalchin e Boccato (2010, p. 4) relatam que ela
[...] disponibiliza o conhecimento já construído por meio de serviços e produtos oferecidos aos docentes, discentes de graduação, pós‐graduação e demais categorias de usuários, possibilitando o desenvolvimento de novos conhecimentos e sua divulgação para a sociedade.
A biblioteca universitária vista também como uma agência
do saber, propicia a disseminação do conhecimento a esse grupo da sociedade no desenvolvimento, a partir da recuperação precisa da informação colaborativa na construção de inovações científico‐tecnológicas. Ela, portanto não só armazena o conhecimento produzido em C&T, mas também dissemina tal conhecimento para o entendimento desta C&T já produzida e, consequentemente, no desenvolvimento de novas C&Ts. Essa preocupação com a disseminação da Ciência e da Tecnologia para a sociedade é foco de estudo da área de CTS, produzindo pesquisas de perspectivas críticas sobre a C&T, e avaliando qual o seu impacto na sociedade.
O campo CTS é um campo de caráter interdisciplinar e no Brasil abrange diversas temáticas, a saber: “educação científica; estudos CTS; comunicação científica; mudança tecnológica e desenvolvimento sustentável; política cientifica e tecnológica; e gestão da inovação” (LEITE; FERRAZ, 2011, p. 40).
Notamos assim, uma preocupação em realizar uma interação entre a ciência, a tecnologia e a sociedade de modo a fazerem com que os cidadãos, caracterizados pelos cientistas, pesquisadores, docentes, discentes, leigos, enfim a sociedade como um todo, possam produzir, de modo integrado, o conhecimento em CTS.
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Para que o usuário desse sistema de informação consiga recuperar/localizar a informação que almeja, torna‐se necessário a realização de estratégias de busca, que para Lopes (2002, p. 61) “[...] pode[m] ser definida[s] como uma técnica ou conjunto de regras para tornar possível o encontro entre uma pergunta formulada e a informação armazenada em uma base de dados”.
Entretanto, uma boa estratégia de busca por si só não significa eficiência nos resultados obtidos, pois para que a informação seja acessível de maneira satisfatória ao usuário/cidadão é necessário uma linguagem documentária que contemple os termos dos assuntos dos documentos a serem representados e que seja disponível em sistemas automatizados de informação utilizáveis em diversas localidades geográficas e em diferentes idiomas.
Diante do exposto, este estudo tem por objetivo investigar sobre a construção de tesauros multilíngues, com destaque para o processo de tradução de termos, frente a dimensão cultural que as áreas científicas especializadas devem possuir diante de um repertório terminológico consolidado, organizado e disseminado entre diferentes comunidades científica e civil, transpondo barreiras geográficas, culturais e linguísticas e pelas perspectivas da Ciência, Tecnologia e Sociedade.
Os tesauros como instrumentos colaborativos na representação para a recuperação da informação científica, tecnológica e social
Os sistemas de recuperação da informação de bibliotecas
universitárias, exemplificados pelas bases de dados, catálogos on‐line, repositórios, entre outras fontes de informação, requerem diferentes e complexos processos, procedimentos de instrumentos de tratamento da informação para que esta possa ser acessível e útil ao usuário especialista.
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O tratamento da informação envolve dois níveis de organização e representação do conhecimento: 1) a representação descritiva, pautada no suporte documental (tratamento físico da informação); 2) representação temática, centrada no conteúdo documentário, a partir da condensação e representação do assunto intrínseco ou extrínseco tratado em um determinado documento (GUIMARÃES, 2003).
No que se refere ao tratamento temático da informação, com vistas a busca por assunto e recuperação da informação pertinente aos anseios de pesquisa dos usuários em CTS, a linguagem documentária atua como instrumento de representação temática e veículo de comunicação, promovendo a conexão entre a informação, o sistema de recuperação da informação e o usuário dessa informação.
Sua função, portanto, é disponibilizar a informação viabilizando a sua recuperação pelo usuário ‐ cidadão que irá buscar informações para a construção de novas tecnologias para a sociedade, ou ainda o cidadão que pretende buscar informações científicas (ou não) para entender as tecnologias as quais ele já possui um contato, ou aquelas que ele terá um possível contato. Boccato e Fujita (2006, p. 18) definem a linguagem documentária como
[...] sendo o instrumento de comunicação entre a informação, o sistema de informação e o usuário [...]. [Ela] deve assegurar o acesso a essa informação, possibilitando sua adequada recuperação e, conseqüentemente, a criação desse conhecimento científico, para promover o bem‐estar da sociedade.
A linguagem documentária possibilita a disseminação do
conhecimento, auxiliando no ensino CTS para a sociedade, visto que ela atua como um instrumento que faz a mediação entre o usuário e a informação científico‐tecnológica.
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No contexto de uma biblioteca universitária, a linguagem documentária é utilizada no catálogo on‐line para recuperar os registros bibliográficos por assunto que compõem o acervo. O catálogo pode ser caracterizado como “o “espelho” do acervo, devendo refletir ao usuário tudo o que a biblioteca possui sobre determinado assunto, a partir da busca, seleção, recuperação e uso da informação” (BISCALCHIN e BOCCATO, 2010, p.4). Nesse sentido, o catálogo oferta ao usuário/pesquisador/cidadão o conteúdo informacional dos documentos dessa unidade de informação, possibilitando a socialização da ciência por meio da disseminação e acesso ao conhecimento.
As linguagens documentárias são constituídas de termos provenientes da linguagem de especialidade e da linguagem natural (do discurso comum, linguagem de busca do usuário) relacionados entre si.
Nesse contexto, Guinchat e Menou (1994, p. 136) apontam, também, que os termos da linguagem natural “[...] são relacionados ao descritor correspondente por meio de uma remissiva”. Essas remissivas “[...] não podem ser utilizadas para descrever as informações [e] são chamadas de não‐descritores.” Tais relações são identificadas como hierárquicas, de equivalência ou associativas. “Elas permitem reagrupar as noções sobre um único termo, aumentar ou, ao contrário, precisar uma pesquisa.” São exemplos de linguagens documentárias as listas de cabeçalhos de assunto, os tesauros, as ontologias, entre outras.
Especificamente sobre os tesauros, eles são compostos por termos descritores de áreas científicas especializadas a partir das relações sintático‐semânticas que mantêm entre os conceitos de ordens hierárquicas, partitivas, associativas e de equivalência, permitindo a representação para a recuperação precisa da informação documentária.
Para Boccato, Ramalho e Fujita (2008, p. 201) os tesauros são
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linguagens de estruturas combinatórias e pós‐coordenadas, constituídas de termos ‐ unidades linguísticas provenientes da linguagem de especialidade e da linguagem natural ‐, denominados de descritores, providos de relações sintático‐semânticas, referentes a domínios científicos especializados, possibilitando a representação temática do conteúdo de um documento, bem como a recuperação da informação.
Segundo Currás (2005) os tesauros podem ser gerais e
especializados, multidisciplinares e monodisciplinares. Quanto a tipologia são caracterizados como macrotesauros e microtesauros e, sob a classificação idiomática, eles podem ser monolíngues, bilíngues, trilíngues ou multilíngues (mais de três línguas).
Em vista disso, notamos o papel social que os tesauros possuem e sua importância na disseminação e interação entre CTS, visto que eles atuam diretamente no tratamento e na transferência e uso da informação e do conhecimento.
Além disso, na contemporaneidade em que vivemos numa sociedade globalizada e interligada pela Rede Mundial de Dados (Internet), o acesso e a busca da informação faz‐se em diversas localidades geográficas, por usuários locais e remotos provenientes de vários países, falantes de diferentes línguas e possuidores de distintas culturas. Nessa perspectiva, os tesauros multilíngues têm importância significativa por ampliar as possibilidades de recuperação dos conteúdos dos documentos indexados nos mais variados sistemas de recuperação da informação em todo mundo, a partir do uso de uma linguagem documentária descrita em mais de uma língua, resultando numa visibilidade maior da produção científica e, consequentemente, na geração de novos conhecimentos em CTS.
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A construção de tesauros multilíngues no contexto da dimensão cultural e pela perspectiva da ciência, tecnologia e sociedade
As linguagens documentárias “pode[m] ser produzida[s] em
uma única língua natural; em uma língua natural com equivalentes em uma ou em várias línguas com dicionário de acesso para outras línguas; em duas ou em várias línguas naturais, como no caso das linguagens multilíngues.” (GUINCHAT ; MENOU, 1994, p. 139‐140)
Nessa perspectiva, as linguagens documentárias multilíngues podem ser elaboradas a partir da adaptação de uma linguagem fonte, elaborada em uma língua, para outras línguas ou simultaneamente em outras línguas, sendo esta segunda opção a mais indicada por Guinchat e Menou (1994, p. 147).
Recorrendo‐se as diretrizes estabelecidas pela IFLA (2009, p. 1), os tesauros multilíngues podem ser desenvolvidos por meio de três abordagens: 1) construção de um novo dicionário de sinônimos de baixo para cima, podendo, começar com uma língua e adicionar outro idioma ou línguas, ou ainda, começar com mais de um idioma simultaneamente; 2) realizando‐se a combinação de tesauros existentes, por meio da fusão de dois ou mais tesauros existentes, resultando em um novo tesauro (multilingue) a ser utilizado na indexação e recuperação, ou, ligando tesauros existentes e listas de cabeçalhos de assunto, utilizando‐os tanto na indexação como na recuperação; 3) traduzindo‐se um dicionário de sinônimos em uma ou mais outras línguas. (Tradução nossa).
Independentemente da abordagem adotada, a construção de tesauros multilíngues requer muitos estudos, descobertas e inovações metodológicas e conhecimento de diferentes línguas e culturas na compatibilidade terminológica necessária para o alcance de tal proposta.
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Pinho (2006. p. 99) relata que um tesauro multilíngue
[...] deve proporcionar respeito às línguas envolvidas, mesmo porque seu desenvolvimento reside em uma dimensão cultural e política. O tratamento ético no desenvolvimento de um tesauro multilíngüe envolve a resolução de problemas de natureza semântica, lingüística e administrativa, e não apenas na localização de um termo adequado em outra língua.
Cabe, portanto, nesse momento, o resgate do conceito de
CTS, em que prioriza o respeito à sociedade e sua cultura, necessitando, desta forma, o bibliotecário participante desse processo de construção, ter a consciência sobre esses quesitos e possuir, também uma educação em CTS para ser um cidadão apto a avaliar os benefícios e danos que ele poderá, involuntariamente, causar a uma sociedade privilegiando, por exemplo, uma cultura em detrimento da outra.
De acordo com a norma técnica ANSI/NISO Z39.19:2005, as questões de contexto e especificidade culturais desempenham um papel importante na seleção dos termos e na criação de vários tipos de relacionamentos multilingues em vocabulários controlados.
No que se refere a garantia cultural, Begthol (2002, p. 511) relata que ela “significa que qualquer tipo de representação de conhecimento e/ou sistema de organização pode ser maximamente adequado e útil para os indivíduos em alguma cultura só se for baseado nas suposições, valores e preposições dessa mesma cultura”.
Observamos ser importante que todas as línguas representadas por termos formadores de um tesauro multilíngue recebam o mesmo nível de tratamento e especificidade, de modo a possibilitarem a busca por assunto e retornarem resultados informacionais igualmente satisfatórios, correspondentes as características sócio‐histórico‐culturais desses distintos usuários.
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Torna‐se, assim, fundamental e desafiador a compatibilização entre termos de diferentes línguas no momento da construção de um tesauro multilíngue de maneira que todos eles recebam um tratamento e uma valoração equivalentes, independentemente da complexidade que cada vocabulário das línguas em estudo possuem. O tesauro multilíngue deve promover a revocação e a precisão do sistema com o uso de tal linguagem e no idioma a escolha do usuário, de modo a estabelecer um padrão de especialidade e especificidade da linguagem, além da equidade entre os termos advindos das distintas línguas.
Sob os olhares da Terminologia, a tradução terminológica é pautada em estudos significativos. Diante disso, Krieger e Finatto (2004) expõem que “Os tradutores se preocupam em estruturar os textos da língua de trabalho [alvo] com os da língua original [fonte], se preocupando com o alcance da precisão semântico‐conceitual para um trabalho eficiente”.
No processo de tradução de um tesauro, seus termos necessitam alcançar uma precisão semântico‐conceitual para que atendam as especificidades da língua alvo em relação a língua fonte. Essa tradução de linguagens documentárias possui um importante papel social visto que de acordo com Krieger e Finatto (2004, p. 68)
A referência elaborados em mais de um idioma consiste em um trabalho que cumpre um papel social maior, pois aproxima mundos, facilitando a comunicação e a recuperação da informação no campo do conhecimento especializado.
Revisitando os trabalhos de Hudon (1997), a autora relata
que os tesauros multilingues aparecem como instrumentos potencialmente poderosos para transferência de informação em distintas línguas, sendo amplamente utilizadas em sistemas de informação mantidos pela Comunidade da União Européia, e em países oficialmente bilíngues, como o Canadá. Estas diferentes
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linguagens não precisam, necessariamente, serem componentes de um mesmo sistema; elas podem integrar sistemas diversos que permitem uma interação entre si, sendo esta interação entre diferentes linguagens em diferentes sistemas nomeada de interoperabilidade.
Para Boteram, Gödert e Hubrich (2010) a interoperabilidade requer a compatibilidade entre os níveis técnico, estrutural, linguístico e conceitual característicos das funcionalidades das linguagens documentárias. Todavia, a equivalência linguística ‐ terminológica entre os termos na formação de um tesauro multilíngue conduz, não apenas a realização da tradução de um termo da língua fonte para a língua alvo, mas sim deve‐se verificar o conceito que cada termo expressa e a compatibilidade existente entre eles. As fichas terminológicas são utilizadas na organização de repertórios terminológicos visando a construção de produtos terminográficos (dicionários, glossários, etc.). São, também, instrumentos colaborativos na coleta, síntese e organização de termos, na definição de conceitos e auxiliares no estabelecimento de relações semânticas que constituirão o repertório terminológico de linguagens documentárias, tais como os tesauros.
A língua fonte é caracterizada como a língua “mãe”, isto é, a que servirá como ponto de partida para a tradução e estruturação dos termos/conceitos, podendo ser considerada como a base para as demais línguas na constituição de um tesauro traduzido/multilíngue. As línguas alvo, ou seja, as línguas “filhas” têm como referência os termos da língua fonte/língua “mãe”, sendo que esse processo pode ser realizado a partir de estruturas semânticas idênticas e estruturas semânticas simétricas não‐idênticas e assimétricas.
Recorrendo‐se aos estudos de Hudon (1997), vimos que as estruturas semânticas idênticas e simétricas são aquelas onde cada descritor deve ter um e apenas um equivalente na língua alvo, o que acaba por eliminar equivalências verdadeiras e também em
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criar equivalências não existentes devido a essa necessária simetria, além da produção de hierarquias incorretas ou ilógicas devido as diferenças conceituais existentes entre as línguas.
As estruturas semânticas não‐idênticas e assimétricas são entendidas como aquelas onde os conceitos que existem em uma cultura são representados em sua linguagem, mas se esses conceitos não existem em outra língua, é improvável que as representações equivalentes verbais estarão disponíveis. Quando dois termos principais ou termos gerais são inexatos ou parcialmente equivalentes linguísticos, eles podem ter uma visão diferente de extensão e, consequentemente, diferentes termos subordinados. Assim ao contrário da estrutura simétrica, nas estruturas assimétricas não existe a necessidade de estabelecer um termo equivalente para cada descritor, respeitando as diferenças linguisticas e criando relações não idênticas.
Pautado por Hudon (1997), elegemos alguns termos que compõem o repertório terminológico da área de CTS, focalizando as estruturas semânticas idênticas e simétricas de correspondências linguísticas entre termos multilíngues, exemplificadas da seguinte forma:
Língua Fonte (Português)
Língua Alvo 1 (Inglês)
Língua Alvo 2 (Espanhol)
Língua Alvo 3 (Francês)
Ciência, Tecnologia e Sociedade
Science, Technology and Society
Ciencia, Tecnología y Sociedad
Science, Technologie et Société
Gestão tecnológica
Technology Management
Gestión de la Tecnología
Gestion de la technologie
Sustentabilidade Sustainability Sostenibilidad La durabilité Prospecção tecnológica
Technological forecasting
Previsión tecnológica
Prévision technologique
Organização do conhecimento
Knowledge Organization
Organización del Conocimiento
Organisation des connaissances
Fonte: Elaboração nossa. QUADRO 1: Tesauro de estruturas semânticas idênticas e simétricas.
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Da mesma maneira e sob os pressupostos teóricos de Hudon (1997) e Boccato e Fujita (2006) as Ciências da Saúde nos permitem demonstrar estruturas semânticas não‐idênticas e assimétricas em repertórios terminológicos multilíngues na área de Fonoaudiologia, a saber:
Língua Fonte (Português)
Língua Alvo 1 (Inglês)
Língua Alvo 2 (Espanhol)
Língua Alvo 3 (Francês)
Fonoaudiologia Não há termo correspondente
Logopedia
Não há termo correspondente
Linguagem Language Lenguaje Language
Voz Voice Voz Voix
Motricidade Oral Não há termo correspondente
Motricidad Oral
Não há termo correspondente
Audiologia Audiology Audiología Audiologie Fonte: Elaboração nossa. QUADRO 2: Tesauro de estruturas semânticas não‐idênticas e assimétricas.
A partir dos Quadros 1 e 2 podemos observar que na relação simétrica os termos sempre possuem um equivalente nas línguas alvo, formando uma relação idêntica entre elas, conforme ilustrado no quadro 1. No quadro 2, vimos a estrutura assimétrica, em que os termos, não necessariamente, possuem descritores equivalentes em todas as línguas alvo, em que se cita o caso da Fonoaudiologia que possui um descritor em espanhol e nenhum equivalente em inglês e em francês, o que resulta em relações não‐idênticas e assimétricas entre os termos.
Considerações finais
A Ciência, a Tecnologia e a Sociedade se encontram
relacionadas intimamente, e desse modo, constantemente a evolução científica e tecnológica impactam e refletem
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diretamente na sociedade, o que não significa que as inovações científicas por evoluírem levam, naturalmente à evolução da sociedade. Muitas vezes, elas levam a sociedade a um retrocesso e não a melhorias, aumentando ainda mais as desigualdades, os impactos ambientais e outros problemas científico – tecnológico‐sociais.
No contexto da sociedade da informação ao qual estamos inseridos e diante da produção científico‐tecnológica e, consequentemente, da grande quantidade de informação a ser tratada e representada para acesso e uso na geração de novos conhecimentos, este artigo propôs discutir possibilidades de construção de tesauros multilíngues, no contexto da dimensão cultural de áreas científicas especializadas e pela perspectiva da CTS, objetivando a disseminação de informação para a sociedade, a partir do uso de sistemas automatizados em bibliotecas universitárias.
Para tanto, foi possível conhecer, também as interações existentes entre a C&T e as interações/impactos que ocorrem na sociedade, ofertando ao cidadão um conjunto de informações que lhe dêem subsídios para realizar uma análise sobre as tecnologias impostas à sua vida, podendo, por meio do conhecimento adquirido, aceitar ou não as mudanças ocasionadas pela C&T.
Todavia, não pretendemos resolver problemas e propor soluções, mas instigar para a realização de outros estudos de construção de tesauros multilíngues pela vertente da CTS, valorizando e consolidando essa importante área interdisciplinar a partir da formação de um repertório terminológico consistente e consolidado pela comunidade científica e civil aplicável em sistemas automatizados de informação em vários países por usuários locais e remotos.
A tradução do vocabulário de uma língua fonte para diferentes línguas alvo deve considerar o meio sócio‐histórico‐
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cultural que o tesauro, em formação, está inserido, bem como o contexto semântico‐conceitual de cada termo em análise, tendo em vista a representação para recuperação relevante da informação, de acordo e respeitando as variações linguísticas que cada língua possui.
O tesauro multilíngue promove a interlocução entre diferentes sistemas de informação e usuários – cidadãos, eliminando barreiras linguísticas, possibilitando a elaboração de estratégias de busca para a recuperação por assunto em CTS na produção de conhecimentos contribuintes na melhoria do bem‐estar da sociedade.
A estrutura assimétrica e não‐idêntica utilizada na construção de tesauros multilíngües demonstrou ser a mais adequada, visto que ela considera as diferenças linguísticas‐culturais e conceituais existentes, respectivamente, entre os povos e os termos. Essa dimensão teórico‐metodológica vai ao encontro dos preceitos teóricos da CTS em preservar a identidade cultural da sociedade e dos cidadãos, estes vistos como atores sociais possuidores de plenas condições em avaliar, com seu conhecimento de mundo e com os subsídios teóricos recuperados e utilizados, os impactos que a Ciência e a Tecnologia vem acarretando na Sociedade. Referências
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Um pouco sobre o fundo documental do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes
Vera Lucia Cóscia
Luzia Sigoli Fernandes Costa
Introdução
Diz o ditado popular “Promessa é dívida!”. Assim sendo, vimos cumprir a promessa de escrever um pouco sobre o histórico e a estrutura do Fundo documental Florestan Fernandes, um dos mais importantes intelectuais brasileiros. Em 2009, quando escrevemos, sobre tema semelhante, um primeiro artigo intitulado “Um pouco das Coleções Especiais da Biblioteca Comunitária da UFSCar”1. Desde então tomamos o caminho da pesquisa2 tendo como base a experiência vivida e aprendida em mais de treze anos de dedicação junto a esse fundo. Este artigo resulta de relato de parte integrante da Dissertação de Mestrado que nos propomos a desenvolver uma vez que o corpus de imagens a ser analisado pertence a esse fundo. Para facilitar uma melhor compreensão desse fundo documental apresentamos um breve histórico da trajetória desse fundo. Histórico
Incorporado em 1996 pela Biblioteca Comunitária da UFSCar e instalado junto às Coleções Especiais, no quinto piso, a Biblioteca particular do Prof. Dr. Florestan Fernandes representa um dos acervos mais completos nas áreas de Sociologia,
1 Publicado na Versão Beta, v.8, nº 53 – especial 2009 – I, p. 77-88. 2 Tornando-me aluna de Mestrado do mesmo Programa, na linha de Pesquisa 2 – Gestão Tecnológica e Sociedade Sustentável, sob a orientação da Profa. Dra. Luzia Sigoli Costa Fernandes.
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Educação e Política. Esse acervo chegou extremamente organizado. Florestan anotou, citou, indexou e enumerou todas as suas leituras, formando um conjunto documental compacto, conservado, integro e todo referenciado, nas áreas citadas.
Composta por mais de 12.000 itens, a Biblioteca de Florestan é complementada pelo seu arquivo pessoal, tecnicamente denominado de “Fundo Florestan Fernandes” e um pequeno Museu, que também foi incorporado pela Biblioteca Comunitária da UFSCar, em 1996. Metodologia
Para que pudesse ser definido um Plano de Classificação segundo a Arquivologia Moderna, houve a necessidade da universidade investir em capacitação técnica em cursos junto à USP ‐ Universidade de São Paulo, em seu Instituto de Estudos Brasileiros – IEB, especialmente no Curso “Organização de Arquivos” em 2000, entre outros. Esses cursos forneceram a base teórica e metodológica para uma estrutura do Fundo Florestan Fernandes.
A partir de então, passamos a buscar o conhecimento necessário sobre a vida do sujeito ou detentor do Fundo, ou seja, sobre o próprio Florestan Fernandes. Isso se deu por intermédio de estudos das matérias publicadas sobre ele, tais como dossiês, entrevistas, números especiais de revistas, sites, etc. Baseados na literatura existente, definimos a trajetória de Florestan, dos momentos marcantes de sua vida e a sua respectiva produção intelectual. A partir desses estudos foi possível delinear uma estrutura capaz de acolher a diversidade documental do Fundo Florestan Fernandes.
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A estrutura do Fundo Florestan Fernandes
Para descrever a vida de Florestan em todas as suas facetas e dimensões desenvolvemos estudos aprofundados sobre a vida do detentor, visando a inserção de todos os documentos pessoais, dos testemunhos de sua vida, desde seu nascimento até sua morte, como também os documentos do período pós‐morte.
Nesse caso, serviu de referência a estrutura montada para outros fundos documentais, cujos detentores possuíam funções semelhantes as de Florestan Fernandes, como nos casos do fundo que pertenceram a Carlos Lacerda (UnB) e a Sérgio Buarque de Hollanda (UNICAMP).
Nessa perspectiva, foram definidas seis séries e sub‐séries, apresentadas no Quadro 1, a seguir, com suas respectivas notações e denominações convencionadas: Quadro 1 ‐ Séries e sub‐séries, com suas respectivas notações e denominações convencionadas. Série Notação Denominação 01 VP Vida Pessoal 02 VA Vida Acadêmica 03 PO Vida Política 04 PI Produção Intelectual 05 PIT Produção Intelectual de Terceiros 06 HP Homenagens Póstumas
a) Os códigos utilizados:
Para facilitar a organização e localização física dos documentos, que compõem todas as unidades documentais as mesmas contam com dois códigos. Esses códigos foram definidos
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como numérico composto pela Série, Sub‐série e Número sequencial para a classificação dentro do Plano de Classificação e como Código alfa‐numérico composto pelo número da sala, equipamento onde se encontra arquivado, lado de armazenagem desse equipamento e caixa ou pasta onde se encontra fisicamente, conforme apresentado na figura 1, a seguir.
Figura 1 ‐ Exemplo do Código de Classificação
01.01.011 011 Unidade documental 01 Sub‐série Identificação 01 Série Vida Pessoal
Figura 2 ‐ Exemplo de Código de Localização
09.AD.01.001 Caixa 001 Lado 01 AD Arquivo Deslizante 09 Sala
b) Normalização:
A Arquivologia, em si, exige o uso de padrões e normas para
se fazer a descrição documental, a fim de possibilitar ou facilitar o intercâmbio informacional entre as instituições e seus fundos documentais. Para tal, aplicamos a norma internacional ISAAR‐CPF que é específica para arquivos privados.
A Arquivologia Nacional, representada pelo Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) institui a Norma Brasileira de Descrição (NOBRADE) como instrumento para a descrição
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arquivística, no Brasil. No caso do fundo Florestan Fernandes foi adotada a NOBRADE como um complemento nacional da ISAAR‐CPF. Dentre os campos descritivos, cito alguns, apresentados no Quadro 2, para se ter uma melhor visualização, desses campos.
Quadro 2 – Campos descritivos Ordem Campo Explicação do campo 01 Gênero Iconográfico, Textual, etc. 02 Suporte Papel, 03 Variante de autor Quando o autor tem mais de uma
denominação ou usa abreviações, apelidos, etc.
04 Remetente 05 Instituição do remetente Quando o documento é timbrado ou há
citação da instituição de onde se escreveu.
06 Condição de acesso Definida na inserção do documento, podendo ser “livre, sob consulta, restrito, inacessível, etc.”
07 Conjunto documental, etc.
Dossiê; fichas manuscritas; fotografias, etc.
Fonte: NOBRADE e ISAAR‐CPF Modelo de planilha para inserção de dados
A planilha completa, de entrada de dados, estabelece campos muito diversos, desde a identificação do documento, até as condições de conservação e preservação. Trata‐se de uma base muito detalhada, preocupada com os mais variados aspectos documentais. A seguir, apresento o Modelo de planilha para inclusão usada na UFSCar – Biblioteca Comunitária – Fundo Florestan Fernandes (para uso e acesso interno), conforme demonstra a Figura 3 a seguir:
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Figura 3 ‐ Modelo de planilha para inclusão usada na UFSCar
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Tratamento técnico
Todos os documentos receberam um tratamento físico antes da sua inserção no Fundo. Esse tratamento foi baseado nas orientações do Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos do Arquivo Nacional (CPBA).
Foram adotadas práticas para preservar os originais, prolongando a vida útil dos mesmos. Para esse fim, os documentos passaram unitariamente pelos procedimentos sintetizados no Quadro 3 a seguir:
Quadro 3 – Campos descritivos Procedimento Explicação do procedimento Higienização Limpeza a seco, mecânica, com trincha/flanela/pó
de borracha; remoção de grampos metálicos, fitas adesivas, etc.
Planificação Alisamento e desvincagem com espátula de osso, espátula térmica, ferro elétrico, etc.
Reparos Com adesivo a quente, papel japonês, adesivo CMC e outros.
Técnico Classificação e Tombo (gerando lista impressa) Digitalização Usando Scanners Kodak Inserção na base PHL adaptado Acondicionamento Com o jaquetas de poliéster, especialmente
desenvolvidas para fichas e documentos em formato A4 e pastas poliondas para formatos fora de padrão.
Condições de acesso
As informações sobre as condições de acesso são,
basicamente, expressas pelas palavras “Livre”, “Sob consulta”, “Restrito”, “Inacessível”.
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Estabelecidas, segundo esses critérios, no momento da inserção do documento na base, visando a preservação do nome do detentor e de sua família.
Acesso ao documento físico e regras internas
O acesso físico aos documentos pelo ao público externo pode
se dar por diferentes maneiras, conforme explicitadas no Quadro 4 a seguir:
Quadro 4 – Tipo e condições de acesso aos documentos Tipo de acesso Explicação do acesso Acesso à consulta virtual
Somente acesso virtual, já que não é permitido o manuseio do documento.
Solicitação de cópias Permitida a solicitação até 10 (dez) documentos. Anuência das normas Assinatura de Termo de Responsabilidade pelo
uso do material Forma de entrega Fornecimento de CD com as imagens solicitadas Segurança
a) Marca d’água
A Marca d’água com perfil do Prof. Dr. Florestan Fernandes é uma das medidas de segurança, pois possibilita a identificação de que o documento pertence ao Fundo, conforme pode ser visualizado na Figura 4.
Figura 4 – Marca d’água com perfil do Prof. Dr. Florestan Fernandes
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b) Citação obrigatória Por medida de créditos e reconhecimento da coleção são
fornecidas instruções quanto à forma de citação que deve ser feita quando do uso de itens documentais pertencentes ao Fundo Florestan Fernandes assim determinado: UFSCar – Biblioteca Comunitária – Fundo Florestan Fernandes c) Têrmo de Compromisso Com o intuito de registrar a responsabilidade para uso dos documentos, o pesquisador assina um Têrmo de Compromisso onde consta o número do documento solicitado junto ao Fundo, local, data e sua utilização para fins de pesquisa ou acadêmicos. Premiações e Reconhecimentos
O Fundo Florestan Fernandes tem sido objeto de premiações,
recomendações e de muitas publicações, conforme listados a seguir:
• Nominação do FFF no Programa Memória do Mundo
(MOW) pela UNESCO/ Arquivo Nacional – Seção em 17.12.2009 no Museu Naval – RJ;
• Edição do fascículo intitulado Cientistas Brasileiros pela Editora Casa Amarela na segunda quinzena de outubro – Revista Caros Amigos;
• Disponibilização do site do Fundo Florestan Fernandes na Internet em 12.03.2009;
• Edição do livro intitulado “Florestan Fernandes leituras & legados” pela Global Editora com lançamento em 12.03.2009.
• Doação pelo Prof. Dr. Antonio Candido de Mello e Souza
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da correspondência ativa de Florestan Fernandes (11 cartas) em 08 de outubro de 2009.
• Capa e tema do periódico internacional LatinAmerican Perspectives, com o subtítulo Intellectual social theory and political practice in Brazil, maio de 2011.
Considerações finais
Contando com a inserção de mais de doze mil fichas de pesquisa, manuscritas, entre outros, o Fundo Florestan Fernandes conta hoje com aproximadamente 7.000 registros, multiplicando pelos seus desdobramentos e compondo dezenas de milhares de folhas inseridas. Dentre os materiais inseridos, podemos destacar os mais variados suportes e suas funções podem ser citadas as fitas cassete transcritas e reproduzidas em áudio digital; fotografias analisadas e descritas; cadernos e cadernetas de pesquisa; trabalhos de aproveitamento de alunos de Florestan, como Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, entre outros; objetos tridimensionais que compõem o Museu Florestan Fernandes e outros que se encontram no Arquivo Deslizante; fichas manuscritas de pesquisa citadas acima; correspondência, cartões postais e belíssimos cartões de Natal; documentos pessoais e honrarias recebidas por Florestan; planos de aula;dossiês (conjunto de documentos sobre um mesmo tema) entre outros.
Para nós, relatarmos as práticas adotadas para tratamento e disponibilização desse fundo documental constituía um capítulo a ser concluído no nosso dia‐a‐dia. Deixar registrado e publicado dados tão simples, mas ao mesmo tempo tão importantes para pesquisadores, estudantes e interessados em geral na vida e obra de Florestan deixam‐nos a impressão de uma tarefa cumprida. Todo o processo, desde o conhecimento da vida de Florestan até o estabelecimento das séries e sub‐séries, da codificação até o
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acondicionamento dos documentos nos fortaleceu, fazendo com que nos sentíssemos seguros em relação às práticas adotadas. O que nos torna mais orgulhosos é concluir que o Plano de Classificação estabelecido funciona e que os originais estão, com certeza, assegurados, conservados, preservados e acessíveis. Referências ARQUIVO NACIONAL. Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. p.97. (Publicações técnicas, 51). ARQUIVO NACIONAL. NOBRADE: Norma Brasileira de Descrição Arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. 124p. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENCADERNAÇÃO E RESTAURO. Conservação preventiva em bibliotecas e arquivos. São Paulo: ABER, s.d. Apostila. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENCADERNAÇÃO E RESTAURO. Curso de higienização de acervos. São Paulo: ABER, 2007. Apostila. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ENCADERNAÇÃO E RESTAURO. Curso de higienização de livros com ênfase em acervo molhado. São Carlos: SIBI‐USP, 2008. Anotações. BECK, I. (coord.) Caderno técnico: armazenagem e manuseio. Rio de Janeiro: Projeto Conservação Preventiva em Bibliotecas e Arquivos: Arquivo Nacional, 1997. 48 p.il. BRITISH LIBRARY Preservação de documentos: métodos e práticas de salvaguarda. Trad. De Zeny Duarte de M. M. Santos. Salvador: EDUFBA, 2000. CAMARGO, Ana Maria de Almeida, coord.; Bellotto, H.L. Dicionário de terminologia arquivística. São Paulo: ARQ/Secretaria de Estado da Cultura, 1996. p. 18. Conselho Internacional de Arquivos. ISAAR (CPF): norma internacional de registro de autoridade arquivística para entidades coletivas, pessoas e famílias. Vitor Manoel Marques da Fonseca (Trad.). 2 ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2004. 99 p. ‐‐ (Publicações Técnicas; n.50) ISBN 85‐7009‐071‐4. CÓSCIA, V.L. Um pouco das Coleções Especiais da Biblioteca Comunitária Comunitária da UFSCar. Versão Beta, São Carlos, v.8, nº 53, p. 77‐88, 2009. CUNHA, Murilo Bastos da; CAVALCANTI, Cordélia Robalinho de Oliveira. Dicionário de Biblioteconomia e Arquivologia. Brasília: Briquet de Lemos, 2008. p.177.
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SOBRE OS AUTORES Allan Tadeu Pugliese é mestrando pelo programa de pós graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade Pela UFSCar ‐ PPGCTS/UFSCar e Membro do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar – [email protected] Valdemir Miotello é Professor Doutor do programa de pós graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade Pela UFSCar ‐ PPGCTS/UFSCar e Líder do Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGe/UFSCar‐ [email protected] Cláudia Daniele de Souza é Graduada em Biblioteconomia e Ciência da Informação (BCI) na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2010. Mestranda no Programa de Pós Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS). Bolsista da Fundação de Amparo á Pesquisa (FAPESP). Processo n. 2010/13128‐7. [email protected] Leandro Innocentini Lopes de Faria é Engenheiro de Materiais pela UFSCar (1994), Mestre em Engenharia de Materiais pela UFSCar (1997), Doutor em Ciência e Engenharia de Materiais pela UFSCar/PPCEM (2001) e doutor em Sciences de Lʹinformation Et Communication pela UNIVERSITE DʹAIX‐MARSEILLE III, França (2001) [email protected] Denise Rodrigues Vichiatto Bacharel em Engenharia de Produção pelas Faculdades Integradas de São Carlos – FADISC – Mestranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos. Contato: [email protected] Roberto Ferrari Junior Bacharel e mestre em ciência da computação (UFSCar 1988, 1992), doutor em física computacional (USP, 1996). Professor e chefe do
Departamento de Computação na UFSCar. Linha de pesquisa: empreendedorismo tecnológico Gabriela G. Mezzacappa; Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade – UFSCar. [email protected]. Formada em psicologia pela Universidade Federal de São Carlos, possui quatro anos de experiência com o coletivo de consumidores ConsumoSol. Atuou também como coordenadora executiva de projeto da Incubadora Regional de Cooperativas Populares da UFSCar (INCOOP/UFSCar). Desenvolve projeto de mestrado na área de tecnologia social e educação para o consumo ético, solidário e responsável, com ênfase no público infantil. Maria Zanin Professora doutora do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade – UFSCar; coordenadora da INCOOP/UFSCar. Gustavo Grandini Bastos Mestrando do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos. Bacharel em Biblioteconomia, Ciências da Informação e da Documentação. Integra o Laboratório Discursivo E‐l@dis – FAPESP 2010‐510290. E‐mail: [email protected] Lucília Maria Sousa Romão Livre‐docente em Ciência da Informação, Professora da Graduação em Ciências da Informação da Documentação e do Programa da Pós‐Graduação em Psicologia, ambos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Professora colaboradora do Programa de Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos. Bolsista 2 do CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Discurso e memória: movimentos do sujeito (CNPQ) e do E‐L@DIS, Laboratório Discursivo ‐ sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos (FAPESP). E‐mail: [email protected]
Helton Luiz Gonçalves Damas. Mestrando em Ciência, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos. Bacharel em Turismo pela Universidade Estadual Paulista – Campus de Rosana. Maria Teresa Miceli Kerbauy Professora Doutora em Ciências Sociais. Pesquisadora do CNPq. Colaboradora do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade Federal de São Carlos. Lívia Coelho de Mello Possui graduação em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos (2010). Atualmente é aluna do programa de pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS), do Departamento de Ciência da Informação (DCI) da Universidade Federal de São Carlos. E‐mail: [email protected] Camila Carneiro Dias Rigolin Professor Adjunto do Departamento de Ciência da Informação e do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Doutora em Política Científica e Tecnológica (UNICAMP, 2009), com estágio de doutorado‐sanduíche no Departamento de Antropologia, Indiana University, EUA (2007‐2008). Mestre em Administração (UFBA, 2000), Bacharel em Administração (UFBA, 1997). E‐mail: [email protected] Luiz Henrique Chenchi mestrando pelo Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PPGCTS) da Universidade Federal de São Carlos ‐ UFSCar (2011); especialista em Farmácia Clínica e Atenção Farmacêutica pelo Centro Universitário de Rio Preto – UNIRP (2009); graduado em Farmácia‐bioquímica (2006) pela mesma instituição; também possui graduação em Ciências biológicas (bacharelado ‐ 2005 e licenciatura ‐ 2003) pela Universidade Estadual Paulista (UNESP – São José do Rio
Preto/SP). É farmacêutico da Divisão de Assistência Farmacêutica (DAF) do município de São Carlos/SP, prestando assistência farmacêutica na regional de saúde Santa Felícia. E‐mail: [email protected] Maria Lúcia Teixeira Machado graduada em Nutrição pelo INJC‐UFRJ e especialista o em Saúde Pública, em nível de Residência pela ENSP‐FIOCRUZ e em Educação na Área da Saúde pelo NUTES‐UFRJ. Possui Mestrado em Fundamentos da Educação pelo PPGE‐UFSCar e Doutorado em Saúde Coletiva pela FCM‐UNICAMP. É professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de São Carlos, atuando em administração, ensino, pesquisa e extensão principalmente na área de Saúde Coletiva. Integra o corpo docente dos Programas de Pós‐Graduação ‐ Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade e do Mestrado Profissional em Gestão da Clínica. E‐mail: [email protected] Marco Donizete Paulino da Silva Nascido em 13 de abril de 1965, na cidade de Araraquara, sétimo filho de uma família simples. Devotou sua juventude e parte de sua maturidade à representação cênica, atuando em teatro, cinema e vídeo. As funções exercidas no meio teatral foram de ator, diretor e dramaturgo. Formou‐se Bacharel em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos, em 2011. Cursa, atualmente, mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade na mesma universidade. Martha Regina Bortolato Cardoso Tecnóloga em Logística e Transportes pela Faculdade de Tecnologia de Jahu – FATEC‐JAHU, Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade – PPGCTS, Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Contato: <[email protected]>
Wanda Aparecida Machado Hoffmann Diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas, professora da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, professora do programa de Pós‐Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade – PPGCTS/UFSCar, Pós‐Doutorado em Prospecção e Monitoramento de Informação Tecnológica pela UFSCar/FAPESP, Pós‐Doutorado em Trabalhabilidade a Quente pela UFSCar/CNPq, Doutora em Ciência e Engenharia dos Materiais pela UFSCar/PPGCEM, Mestre em Engenharia dos Materiais pela UFSCar/PPGCEM, Engenheira Metalúrgica pela UFOP/Escola de Minas. Contato: <[email protected]> Raquel Juliana Prado Leite de Sousa Possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo pela UNESP, Biblioteconomia e Ciência da Informação pela UFSCar e Licenciatura em Língua Portuguesa pela FIMI, tendo atuado nas áreas de redação, reportagem, ensino de Língua Portugesa e normalização documentária. Aluna do Programa de Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCar. Bolsista CAPES/Reuni. [email protected] Ricardo Biscalchin Mestrando em Ciência Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, campus de São Carlos. Bolsista CAPES/REUNI. Bacharel em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, campus de São Carlos. E‐mail: [email protected] Vera Regina Casari Boccato Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Marília. Docente do Departamento de Ciência da Informação no curso de Biblioteconomia e Ciência da Informação e na Pós‐graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Centro de Educação e Ciências Humanas, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Tutora do Grupo PET Biblioteconomia e Ciência da Informação da UFSCar. Líder
do Grupo de Pesquisa “Organização do Conhecimento para Disseminação da Informação” e Membro dos Grupos de Pesquisa “Informação, Conhecimento e Tecnologia” e Análise Documentária, cadastrados junto ao Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil do CNPq. Atualmente desenvolve pesquisa financiada pelo CNPq intitulada “Bases científicas e metodologias inovadoras para a interoperabilidade entre linguagens documentárias: uma proposta de investigação para aplicação”. E‐mail: [email protected] Vera Lucia Cóscia Bibliotecária‐documentalista das Coleções Especiais da Biblioteca Comunitária da UFSCar. Especialista em Organização de Arquivos pelo IEB‐USP. Coordenadora para tratamento e disponibilização do Fundo Florestan Fernandes. Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em Ciência Tecnologia e Sociedade da UFSCar – Linha 2, sob orientação da Profª. Drª. Luzia Sigoli Fernandes Costa. Luzia Sigoli Fernandes Costa professora do Programa de Pós‐ Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFSCar. Possui graduação em Biblioteconomia pela Escola de Biblioteconomia e Documentação de São Carlos (1979), mestrado em Programa de Pós‐Graduação Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São Carlos (2001) e doutorado em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008). Tem experiência na área de Ciência da Informação, com ênfase em Teoria da Informação. Principais áreas de interesse:‐ Patrimônio, sociedade e sustentabilidade.