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0 Emiliana Maria Diniz Marques TEATRO DO OPRIMIDO E EDUCAÇÃO POPULAR DO CAMPO: articulações entre o pensamento e a obra de Paulo Freire e Augusto Boal, com uma experiência em Minas Gerais. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Sociedade, Educação e Formação Humana Orientador: Prof. Dr. José Pereira Peixoto Filho Belo Horizonte 2012

TEATRO DO OPRIMIDO E EDUCAÇÃO POPULAR DO CAMPO …fae.uemg.br/dissertacoes/TD0027.pdf · atualidade brasileira. Abarca a origem e o desenvolvimento do Teatro do Oprimido, considerando

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Emiliana Maria Diniz Marques

TEATRO DO OPRIMIDO E

EDUCAÇÃO POPULAR DO CAMPO:

articulações entre o pensamento e a obra

de Paulo Freire e Augusto Boal,

com uma experiência em Minas Gerais.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Educação da Faculdade de Educação da Universidade do

Estado de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção

do título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa:

Sociedade, Educação e Formação Humana

Orientador: Prof. Dr. José Pereira Peixoto Filho

Belo Horizonte

2012

1

Emiliana Maria Diniz Marques

TEATRO DO OPRIMIDO E EDUCAÇÃO POPULAR DO CAMPO:

articulações entre o pensamento e obra de Paulo Freire e Augusto Boal

com uma experiência em Minas Gerais.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Professor Doutor José P. Peixoto Filho – UEMG

Orientador

__________________________________________________________

Professora Doutora Silvia Balestreri Nunes – UFRS

Titular

__________________________________________________________

Professora Doutora Lourdes Helena da Silva – UFV

Titular

__________________________________________________________

Professora Doutora Vera Lúcia Britto – UEMG

Titular

__________________________________________________________

Professora Doutora Lana Mara de Castro Siman – UEMG

Suplente

_________________________________________________________

Professora Doutora Vânia Aparecida Costa – UEMG

Suplente

Belo Horizonte

2012

2

MARQUES, Emiliana Maria Diniz

Teatro do Oprimido e Educação Popular do Campo: articulações entre o pensamento

e a obra de Paulo Freire e Augusto Boal com uma experiência em Minas Gerais.

Belo Horizonte: UEMG/FAE, 2012

188 p.

Dissertação (mestrado) UEMG/FAE

1. Teatro do Oprimido – Educação Popular – Educação do Campo

3

Às oprimidas e oprimidos de todo o mundo.

4

AGRADECIMENTOS

AGRADEÇO:

À minha mãe, pela presença diária, incondicional e amor eterno.

À minha família pela compreensão das minhas ausências.

As minhas amigas e amigos, de perto e de longe, pela presença cotidiana ou pontual, sempre me

apoiando e realimentando a esperança necessária nessa caminhada; às vezes com inserções

práticas, orientando a escrita do Projeto inicial, realizando sua organização sob as normas da

ABNT, promovendo as conversões em arquivo de PDF, emprestando computadores, pen-drives,

impressora, oferecendo ajudas variadas, auxiliando na defesa desta dissertação e por aí vai...

À Silvia, que me conduziu nos primeiros passos com o Teatro do Oprimido.

Ao secretário José Júlio, pela ética profissional que me manteve no Mestrado.

À CAPES, pela concessão da Bolsa de Projeto, sem a qual esta mãe pesquisadora não teria

condições de concluir este trabalho.

Aos colegas do Mestrado pelo conforto proporcionado, simplesmente em estarmos num mesmo

barco.

Ao pessoal do Observatório de Educação do Campo, pelas partilhas.

Ao José Peixoto, meu orientador, por con-fiar.

À Boal, Paulo Freire e meu pai (in memorian), pelas suas obras.

As moradoras e moradores do município de Itatiaiuçu, participantes das oficinas e dirigentes,

sem os quais este trabalho não teria se realizado.

À Gizeli, por cuidar com tanto carinho da minha filha neste período.

À Laura, minha filha, simplesmente por existir em minha vida!

Muito obrigada!

5

Há que se aprender a tirar silêncio das coisas

Quando uma coisa produz silêncio ela está pronta.

Mariana Botelho

Na luta de classes todas as armas são boas:

pedras, noites e poemas.

Núcleo de Base da Pedagogia da Terra Augusto Boal

UFMG, 2005/2010

6

RESUMO

Este trabalho estabelece relações entre o Teatro do Oprimido e a Educação,

compreendendo algumas contribuições, limites e desafios prático-teóricos apresentados pelo

método teatral, sistematizado por Augusto Boal, tendo em vista a Educação do Campo na

atualidade brasileira. Abarca a origem e o desenvolvimento do Teatro do Oprimido,

considerando o amplo movimento de cultura e educação popular em efervescência no Brasil dos

anos de 1960 e suas aproximações com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Analisa o

atual contexto da educação no país, regulada por práticas de reforço a sociedade capitalista,

dando visibilidade, porém, a ações e movimentos que se estabelecem de modo contra-

hegemônico nesse sistema, destacando o Movimento de Educação do Campo e suas lutas

reivindicando o direito a uma educação pública, gratuita e de qualidade, pensada a partir do

contexto do campo, com a participação dos seus sujeitos, vinculada a sua forma de vida, sua

organização do trabalho, relação com o tempo, valores, saberes, memórias, enfim, considerando

sua cultura específica e suas necessidades humanas e sociais. E compreende um relato com

reflexões sobre duas experiências pedagógicas utilizando o método do Teatro do Oprimido, por

meio de oficinas de Teatro-Fórum: uma realizada no interior de uma escola de Educação de

Jovens e Adultos, da Rede Municipal de Educação de Itatiaiuçu, em Minas Gerais, e outra na

comunidade rural de Pedras, deste mesmo município, no ano de 2011.

Palavras-chave: Teatro do Oprimido; Educação do Campo; Educação Popular.

7

ABSTRACT

This work establishes relationships between the Theatre of the Oppressed and Education,

including some practical-theoretical contributions, limits and challenges presented by the

theatrical method systematized by Augusto Boal, with a view to Rural People Education in

Brazil nowadays. It covers the origin and development of Theatre of the Oppressed, considering

the broad of popular culture and education associations in Brazil, in turmoil of the 1960s and

their approaches to the Pedagogy of the Oppressed by Paulo Freire. Analyzes the current context

of education in the country, governed by practical reinforcement of capitalist society, giving

visibility, however, the actions and movements that are established so that counter-hegemonic

system, highlighting the Rural People Education Movement and their struggles claiming right to

public education, designed from the context of the field, with the participation of its people,

linked to their way of life, its organization of work, relationship with time, values, knowledge,

memories, finally considering their specific culture and its human and societal needs. It includes

a report with two reflections on learning experiences using the method of the Theatre of the

Oppressed, through Forum Theatre workshops: one held inside a school for Youth and Adults, in

Itatiaiuçu city, in Minas Gerais, and the other on in a rural community, called Pedras, in this

same city, in 2011.

Keywords: Theatre of the Oppressed; Rural People Education, Popular Education.

8

LISTA DE GRÁFICOS E ESQUEMAS

ESQUEMA 1: Árvore do Teatro do Oprimido ............................................................................ 39

ESQUEMA 2: Dramaturgia do Teatro Fórum ............................................................................. 70

GRÁFICO 1: Percentual de mulheres e homens no 1º Semestre ................................................ 89

GRÁFICO 2: Percentual de mulheres e homens no 2º Semestre ................................................ 89

GRÁFICO 3: Faixa etária dos participantes no 1º Semestre ....................................................... 89

GRÁFICO 4: Faixa etária dos participantes no 2º Semestre ....................................................... 89

GRÁFICO 5: Local de moradia dos participantes do 1º Semestre ............................................ 147

GRÁFICO 6: Local de moradia dos participantes do 2º Semestre ............................................ 147

9

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABCAR – Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural

ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros

ABL – Associação Brasileira de Lésbicas

ABRAGAY – Associação Brasileira de Gays

ACA – Associação de Crédito e Assistência Rural

ACMST – Associação Comunitária dos Moradores de Santa Terezinha

AIA – American International Association for Economic and Social Development

AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida

AI-5 – Ato Institucional no 5

ANTRA – Associação Nacional das Transgêneros

CBAR – Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais

CEAA – Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos

CIEPs – Centros Integrados de Educação Pública

CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil

CNEA – Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo

CNER – Campanha Nacional de Educação Rural

CNM – Confederação Nacional dos Municípios

CNT – Coletivo Nacional de Transexuais

CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais

CPC – Centro Popular de Cultura

CTO – Centro de Teatro do Oprimido

CTO-Rio – Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro

EDURURAL – Programa de Educação Rural

10

E.E. – Escola Estadual

EJA – Educação de Jovens e Adultos

E.M. – Escola Municipal

FMI – Fundo Monetário Internacional

FNEP – Fundo Nacional do Ensino Primário

GTO – Grupo de Teatro do Oprimido

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas

INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos

LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

LBL – Liga Brasileira de Lésbicas

LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros

MEB – Movimento de Educação de Base

MCP – Movimento de Cultura Popular

MOBRAL – Movimento Brasileiro de Educação

MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

OMC – Organização Mundial do Comércio

ONU – Organização das Nações Unidas

PRONASEC – Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas e Culturais para o Meio Rural

PSECD – Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto

PT – Partido dos Trabalhadores

SOMOS – Grupo de Afirmação Homosexual

SSR – Serviço Social Rural

TO – Teatro do Oprimido

UNE – União Nacional de Estudantes

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 13

I. A PROPOSTA DE ESTUDO ................................................................................................ 15

I.1. Trajetórias intercruzadas: a construção do objeto .......................................................... 15

I.2. Objetivos, referenciais teóricos, metodologia e desenvolvimento da pesquisa .............. 19

II. RAÍZES E ASAS DESSA HISTÓRIA ................................................................................ 25

II.1. Educação e cultura popular no Brasil de 1960 e o método Paulo Freire ...................... 25

II.2. O desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido ................................................. 29

II.3. Relações entre a Pedagogia do Oprimido e o Teatro do Oprimido ............................... 39

III. DESCORTINANDO UMA EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE ..................................... 47

III.1. Na contra-hegemonia do sistema .................................................................................... 47

III.2. A Educação do Campo e o Teatro do Oprimido ........................................................... 55

III.3. O Curinga, seu desenvolvimento e desdobramentos: reflexões sobre a

dramaturgia do Teatro Fórum e o Professor-curinga ............................................................ 66

IV. EM CAMPO, COM O CAMPO, PELO CAMPO ........................................................... 75

IV.1. O Município, a escola e a comunidade: caracterizando os locais ................................. 75

IV.2. As contradições do processo: um olhar sobre a oficina teatral na escola .................... 80

IV.2.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: conhecendo o grupo ................................ 80

IV.2.2 - O desenvolvimento das oficinas: entre altos e baixos .............................................. 84

IV.2.3 - A escolha do tema gerador da peça: com poucas palavras ........................................98

IV.2.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita no processo ....... 99

IV.2.5 - A cenografia, figurinos e adereços: mobilização para reconstrução ...................... 101

IV.2.6 - O Ensaio de Fórum: uma apresentação para os colegas da escola ......................... 102

IV.2.7 - A Sessão de Teatro-Fórum: atuação além dos muros da escola ............................. 107

12

IV.2.8 - O encerramento da oficina: avaliação e integração nas festividades de formatura..109

IV.3. Ampliando o olhar por meio da comunidade .............................................................. 110

IV.3.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: a espera pela definição do grupo .......... 110

IV.3.2 - O desenvolvimento das oficinas: processual .......................................................... 111

IV.3.3 - A escolha do tema gerador da peça: depoimentos íntimos .................................... 114

IV.3.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita posterior .......... 117

IV.3.5 – A cenografia, figurinos e adereços: um processo ampliado na comunidade ......... 119

IV.3.6 - O Ensaio de Fórum: o gosto de uma primeira apresentação .................................. 122

IV.3.7 - As sessões de Teatro-Fórum: diferentes experiências ............................................ 125

IV.3.8 - O encerramento da oficina: amigo-oculto e confraternização ................................ 135

IV.4. Contrapontos e correlações entre os processos escolar e comunitário ...................... 136

IV.4.1 - Rituais e normas das instituições .............................................................................136

IV.4.2 - O currículo escolar ................................................................................................. 138

IV.4.3 - Um fórum educativo com aprendizagem por modelo ............................................ 139

IV.4.4 - Delineando limites para o Teatro do Oprimido na escola ...................................... 141

IV.4.5 - A ação da comunidade ........................................................................................... 145

V. UMA ARMA VÁLIDA: A GUISA DE CONCLUSÃO ................................................... 148

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 154

SITES ........................................................................................................................................ 159

ANEXOS .................................................................................................................................. 160

Texto da peça Foi sem querer querendo ................................................................................. 160

Texto da peça Igual à família da gente ................................................................................... 174

Versão colorida do cartaz da peça Foi sem querer querendo, impresso em camisas.......... 186

Versão em preto e branco do cartaz da peça Foi sem querer querendo............................... 187

Cartaz de divulgação da peça Igual à família da gente ......................................................... 188

13

INTRODUÇÃO

Esta dissertação de Mestrado, organizada em cinco capítulos, apresenta um estudo

elaborado a partir de uma pesquisa desenvolvida, ao longo de 2010 e 2011, abarcando possíveis

contribuições, limites e desafios colocados pela prática do método do Teatro do Oprimido em

intervenções pedagógicas escolares e comunitárias, tendo em vista a Educação do Campo no

Brasil.

O primeiro capítulo delineia um rápido panorama das experiências pregressas da autora

com o aprendizado e a prática do Método do Teatro do Oprimido que permitiram formular as

questões para esse estudo. Expõe, ainda, seus objetivos, os principais referenciais teóricos

adotados, a metodologia utilizada para a pesquisa e o desenvolvimento desta, numa escola de

Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Rede Municipal de Itatiaiuçu - MG, e em um povoado

rural do mesmo município.

O segundo capítulo compreende uma análise histórica do amplo movimento de educação

e cultura popular manifesto no país na década de 1960, apresentando o período de surgimento da

Filosofia Educacional de Paulo Freire e o desenvolvimento do Teatro de Augusto Boal até os

dias atuais, com estabelecimento de relações entre as obras desses dois mestres, a Pedagogia do

Oprimido e o Teatro do Oprimido, no que tange a educação libertadora, a conscientização dos

oprimidos e a mobilização para transformação das estruturas sociais opressoras.

O capítulo terceiro apresenta uma contextualização do atual momento histórico e suas

interfaces com a educação, ratificando a prática do Teatro do Oprimido na contra-hegemonia das

ações neoliberais do mundo ocidental capitalista. Explicita o conceito de Educação do Campo e

sua proposta de escola e sociedade, ressaltando que os dados estatísticos são reveladores das

desigualdades educacionais do campo em comparação com o meio urbano; a partir dessas

concepções, ratifica a inserção do Teatro do Oprimido nas lutas da Educação do Campo no país.

Em seguida, promove reflexões sobre o desenvolvimento do Curinga no referido método teatral,

com desdobramentos sobre a dramaturgia do Teatro Fórum e o Professor-curinga.

Dedicado ao trabalho de campo, o quarto capítulo revela um pouco do município, da

escola e da comunidade onde foram realizadas as intervenções pedagógicas, no ano de 2011.

14

Explicita o processo de desenvolvimento das duas oficinas de Teatro do Oprimido, juntamente

com os sujeitos participantes e abarca uma análise de ambas as experiências, considerando os

dados coletados.

O último capítulo, escrito a título de conclusão, retoma questões apresentadas ao longo

texto, lançando luz aos aspectos que potencializam o Teatro do Oprimido enquanto um método

útil e atual nos processos educacionais do Campo.

Após a explicitação das referências bibliográficas utilizadas e sites consultados para a

efetivação deste estudo, apresenta-se, em anexo, os textos das peças de Teatro-Fórum montadas

nas oficinas da escola e da comunidade e, em seguida, os cartazes elaborados para divulgação

das encenações de ambas as peças.

15

I. A PROPOSTA DE ESTUDO

I.1. Trajetórias intercruzadas: a construção do objeto.

O contato, conhecimento e trabalho com o método do Teatro do Oprimido, há mais de

treze anos, em experiências variadas e sua multiplicação em processos sócio-educativos com

sujeitos de instituições prisionais, comunidade pesqueira e vizinhança de aterro sanitário, no

Estado do Rio de Janeiro, como também de escolas públicas da Rede Estadual de Ensino de

Minas Gerais e das Redes Municipais das cidades de Belo Horizonte e de Contagem suscitaram

muitos dos questionamentos e reflexões que culminaram neste estudo.

Ao longo dessas experiências, o Teatro do Oprimido sempre se apresentou como um

método artístico, político, lúdico, criativo, diversificado, passível de ser utilizado em diferentes

espaços e instituições, com variados grupos de sujeitos, reconhecidos como oprimidos nas suas

múltiplas relações sociais de poder. Sua prática possibilitava o conhecimento desses sujeitos e

seus universos em concomitância com o autoconhecimento da autora1; descortinava mundos,

lançando luz nas opressões sociais, ampliando a consciência sobre as injustiças históricas

presentes na sociedade.

Sua versatilidade estética ampliava os universos de pensamento, reflexão, produção

artística e conhecimento, garantindo o prazer em atividades que uniam trabalho, aprendizagem e

ação social de modo coletivo e indissociável. A adaptação do método aos diferentes contextos

apresentados com as circunstâncias específicas de cada oficina teatral estimulava a criatividade e

aguçava o interesse no seu aprofundamento teórico e desenvolvimento prático.

A formação propiciada pelo Teatro do Oprimido e as experiências de multiplicação desse

método em instituições como presídios, penitenciárias e comunidades variadas possibilitaram um

distanciamento necessário ao estranhamento de inúmeras práticas do cotidiano escolar, em

posterior atuação profissional como professora de escolas públicas na região metropolitana de

Belo Horizonte.

1 Ao longo do texto há referências à autora ora como mestranda, ora como oficineira das atividades teatrais.

16

Esse estranhamento, ainda presente nos dias atuais, perpassa diversas instâncias da

instituição escolar: seus espaços, arquitetura, móveis e ornamentação; seus modos de

funcionamento, atividades desenvolvidas e tempo de duração; a forma como as pessoas tratam

umas as outras, os assuntos das conversas, quando se falam, o que comem, vestem, enfim, como

se comportam em suas diversas relações. Envolve, também, essa forma convencional de dispor

uma média de trinta estudantes enfileirados, sentados atrás de suas carteiras, com um professor a

frente, numa sala de aula fechada, por quatro horas diárias, cinco dias por semana, contrapondo-

se com o recreio ou outras pouquíssimas atividades que fogem a esta rotina física.

Na alfabetização de adultos, como na post-alfabetização, o domínio da linguagem oral e escrita

constitui uma das dimensões do processo da expressividade. O aprendizado da leitura e da escrita,

por isso mesmo, não terá significado real se faz através da repetição puramente mecânica de sílabas.

Este aprendizado só é válido quando, simultaneamente com o domínio do mecanismo da formação

vocabular, o educando vai percebendo o profundo sentido da linguagem. Quando vai percebendo a

solidariedade que há entre a linguagem-pensamento e realidade, cuja transformação, ao exigir novas

formas de compreensão, coloca também a necessidade de novas formas de expressão. (FREIRE,

1982, p.24).

Essa trajetória pregressa a escolar possibilitou diferentes aprendizados condizentes com a

filosofia freiriana da educação, em oposição a inúmeras práticas dos estabelecimentos escolares

atuais e do modo como comunmente se estabelecem as relações entre professores e (a)lunos.

Três aprendizados, em especial, marcaram a forma de agir e conceber uma relação coletiva que

envolve troca de saberes, ensino e aprendizagem, sob a coordenação de uma liderança.

O primeiro, na comunidade vizinha ao aterro sanitário do Jardim Gramacho, em Duque

de Caxias - RJ, ainda como estudante do curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, quando o grupo de estagiários universitários retornou revoltado do primeiro encontro da

oficina teatral, que estivera vazia e os participantes aparentemente pouco atentos ou engajados na

proposta. O discurso dos estudantes girava em torno do desrespeito ou falta de consideração

daquelas pessoas que não reconheciam a importância da atividade que lhes era proporcionada. A

resposta da professora orientadora foi: “Se vocês acreditam que esta atividade é realmente

importante, então provem, convençam o grupo e garantam o direito de estarem lá”. Naquele

momento a professora não só relativizava a importância dada pelos estudantes a própria proposta

como apontava um modo dialogado e horizontal de pautar um relacionamento.

O segundo aprendizado ocorreu numa orientação dada ao grupo de oficineiros que se

preparava para ministrar as oficinas teatrais no interior do sistema penitenciário. A orientação

17

sugeria nunca dizer aos participantes que eles não haviam entendido a proposta de um jogo caso

este não se desenvolvesse conforme o esperado. Ao contrário, deveria se dizer: “Eu não consegui

explicar direito”. Aparentemente simples, aquelas palavras invertiam o polo da relação entre

oficineiro e participante, transformando o olhar sobre a própria prática do ministrante da oficina,

retirando-o de um local de conhecimento absoluto para um lugar de saber a partir de relações

compartilhadas.

O terceiro aprendizado, presente em todas as oficinas teatrais, advinha da riqueza das

expressões dos participantes, sua diversidade, criatividade, histórias que se transformavam em

cena, em arte. O oficineiro atuava muito mais como um coordenador de toda aquela experiência,

certamente criando junto, mas jamais poderia assumir uma autoria individual sobre o processo

que era fundamentalmente coletivo.

As marcas dessas experiências pregressas fizeram diferença na atuação como professora

escolar, buscando sempre dialogar sobre as propostas das aulas, conquistando a adesão pelo

convencimento quanto à validade de uma determinada atividade. Assumia-se a responsabilidade

sobre uma orientação não compreendida e buscava-se sempre estimular os estudantes nas suas

múltiplas expressões e potencialidades, motivando a criação, reflexão e pensamento em

processos coletivos de aprendizagem.

Em 2009, durante o Encontro Internacional de Curingas, realizado por ocasião de uma

Conferência Internacional do Teatro do Oprimido, em julho, no Rio de Janeiro, uma participante

de nacionalidade francesa expunha, junto aos integrantes do Grupo de Trabalho de Educação,

sua crença sobre a impossibilidade de praticar Teatro do Oprimido em escolas, pelos princípios

opostos que fundamentam estas duas instituições: para ela, o primeiro é voltado para a

transformação e libertação humana e a segunda para a reprodução social.

Percebia-se, em sua fala, a dificuldade de inserção do seu trabalho no ambiente escolar,

de negociação, ocupação e conquista de espaços de atuação, além da falta de liberdade com

constantes cerceamentos, por parte da direção, no desenvolvimento de suas propostas. Por outro

lado, sua fala levantava questões pertinentes que mereciam ser mais bem estudadas no que tange

a prática do TO em escolas, especialmente sobre os riscos de se transformá-lo em mero

entretenimento, ou mesmo em arma de opressão.

18

Para uma professora do Ensino Fundamental que diariamente se indignava com situações

de autoritarismo, arbitrariedade, humilhação, falta de diálogo, xingamentos, maus tratos,

imposição, medo, ameaça, infantilização de adolescentes e adultos, reprovação, entre outras,

presentes no ambiente escolar e, constantemente, buscava meios de transformar essas relações

pautando uma escuta efetiva com estímulo ao diálogo, a autonomia estudantil, o conhecimento

compartilhado como diferencial, em defesa da garantia e efetivação de uma escola pública com

educação de qualidade para todas as pessoas, algumas questões se fizeram marcantes e duas

perguntas principais se colocaram: É possível desenvolver Teatro do Oprimido no interior de

uma instituição de controle e reprodução social? Quais os limites que se apresentam à sua

prática?

Salientamos que diferentes experiências foram e são desenvolvidas com Teatro do

Oprimido no âmbito escolar no país, desde as primeiras práticas, na segunda metade da década

de 1980, quando Boal retornou do exílio e promoveu uma capacitação para a multiplicação do

método em Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs)2, no Rio de Janeiro, a convite do

professor Darcy Ribeiro. Vinte anos depois, nos dois anos anteriores ao seu falecimento, seu

último trabalho no âmbito de escolas públicas fora desenvolvido com a equipe do Centro de

Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio)3, em parceria com o Governo Federal, com o

projeto Teatro do Oprimido na Escola, em sete municípios do Rio de Janeiro, ao longo de 2007 e

2008.

No âmbito acadêmico, a produção de trabalhos com base no Teatro do Oprimido vem

aumentando nos últimos anos, abarcando diferentes aspectos e práticas deste método, associado à

educação popular, à educação comunitária, à educação estética, à educação ambiental,à educação

em direitos humanos, à educação de jovens adultos, à gestão educacional, à psicologia da

educação, à formação de professores, à ações sócio-educativas, entre outros de tantas áreas.

Para fins de utilização neste estudo destacamos, primeiramente, Nunes (2004) tecendo

críticas à prática do Teatro do Oprimido, baseada na filosofia de Deleuze e Guattari; Pedroso

(2006), revelando o TO como instrumento útil numa educação libertadora; Serpa (2006),

2 Programa Especial de Educação do Governo do Estado do Rio de janeiro, durante a gestão do governador Leonel

Brizola. 3 Instituição fundada por Augusto Boal no final da década de 1980 dedicada ao estudo, desenvolvimento e

multiplicação do Teatro do Oprimido.

19

discutindo a estreita relação entre teatro e educação popular; Teixeira (2007) associando o Teatro

do Oprimido à Pedagogia do Oprimido, tendo por base ações sócio-educativas; Paranhos (2009)

também estabelecendo relações entre as obras de Freire e Boal, com foco na formação de

educadores; Cassiano (2011) discutindo o Teatro do Oprimido como metodologia para resolução

não violenta de conflitos nas escolas; e Viana (2011), analisando as contribuições desse método

teatral na Educação de Jovens e Adultos.

A proposta inicial de pesquisa para este estudo previa a observação participante do

desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido, com estudantes do Ensino Fundamental, em

uma escola pública da Rede Municipal de Belo Horizonte. No entanto, um trabalho que seria

iniciado pela mestranda envolvendo a realização de uma oficina de Teatro do Oprimido, para

jovens e adultos, na comunidade rural de Pedras, em Itatiaiuçu – MG, mudou o ambiente da

pesquisa, inserindo os mais oprimidos entre os oprimidos da educação, na ação investigadora,

uma vez que estatísticas oficiais apontam, no campo, os mais baixos índices no que tange o

acesso, a permanência e a garantia dos direitos à educação em todas as regiões do Brasil.

Entretanto, o interesse em investigar os desafios colocados à prática do Teatro do

Oprimido no interior de uma instituição escolar impulsionou a proposta de uma segunda oficina

teatral, numa escola de Ensino Fundamental com EJA. Deste modo, as duas atividades

constituiriam objeto de investigação, propiciando tecer comparações e contrapontos a partir das

especificidades constituintes de ambas as instituições: escola e comunidade.

Assim, duas novas perguntas emergiam com destaque: Quais os desafios colocados para

a prática do Teatro do Oprimido no atual contexto da Educação do Campo no Brasil? Quais as

especificidades reveladas pela prática do Teatro do Oprimido numa intervenção educativa no

interior de uma instituição escolar e em uma comunidade do campo?

I.2. Objetivos, referenciais teóricos, metodologia e desenvolvimento da pesquisa.

O principal objetivo deste estudo consistiu-se em investigar as relações do Teatro do

Oprimido com a Educação Popular do Campo, buscando analisar as potencialidades, os limites e

os desafios prático-teoricos apresentados pelo método do Teatro do Oprimido no contexto

educacional escolar e comunitário do campo.

20

Como objetivos específicos buscou-se sistematizar as relações entre o Teatro do

Oprimido de Augusto Boal e a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire; investigar as

especificidades da pratica do Teatro do Oprimido na educação comunitária com pessoas jovens e

adultas do campo e no interior de uma escola de EJA; e analisar as contribuições pedagógicas do

Teatro do Oprimido e sua aplicabilidade em processos educativos escolares e comunitários.

Para a realização deste estudo adotou-se, como principais referenciais teóricos, as obras

de Augusto Boal e de Paulo Freire, considerando as estreitas relações existentes entre os

paradigmas do Teatro do Oprimido e da Pedagogia do Oprimido. Para Freire (1987), do “ponto

de vista crítico, é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o

caráter educativo do ato político” (FREIRE, 1987, p.26). Neste sentido, buscou-se desenvolver

um processo de intervenção educativa com o método do Teatro do Oprimido, concebendo a

educação como práxis de ação/reflexão/ação sobre o mundo, o conceito de opressão atrelado as

relações sociais de poder e a prática educativa como ato coletivo de apropriação do

conhecimento sistematizado e de transformação social.

Se antes a transformação social era entendida de forma simplista, fazendo-se com a mudança,

primeiro das consciências, como se fosse a consciência, de fato, a transformadora do real, agora a

transformação social é percebida como processo histórico em que subjetividade e objetividade se

prendem dialeticamente. [...] Se antes a alfabetização de adultos era tratada e realizada de forma

autoritária, centrada na compreensão mágica da palavra, palavra doada pelo educador aos

analfabetos; se antes os textos geralmente oferecidos como leitura aos alunos escondiam muito mais

do que desvelavam a realidade, agora, pelo contrário, a alfabetização como ato de conhecimento,

comol ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra. (FREIRE,

1987, p.35 - A).

O mesmo pode-se afirmar quanto à pós-alfabetização, como no caso dos sujeitos

participantes do processo desta pesquisa. Assim, compreendendo a realidade na relação dialética

entre objetividade e subjetividade, assumiu-se o dialogo como base de relações horizontais e

considerou-se tanto o pensamento simbólico quanto o pensamento sensível no processo de

conhecimento. Como afirma Boal (2009), “Arte não é adorno, palavra não é absoluta, som não

é ruído, e as palavras falam, convencem e dominam” (BOAL, 2009, p.22). Partiu-se do

pressuposto que ser humano é ser artista, portanto, todas as pessoas podem fazer teatro e, nesse

sentido, a arte contribui para a construção da cidadania, sendo cidadão aquele que transforma a

sua realidade.

21

Boal insere a arte no âmbito político, reconhece o artístico inerente ao humano. Seu teatro

é construído como instrumento de participação e transformação social. “Não basta produzir

idéias: necessário é transformá-las em atos sociais, concretos e continuados. [...] Arte e Estética

são instrumentos de libertação.” (BOAL, 2009, p. 19). O teatro de Boal é identificado, neste

trabalho, com as “Epistemologias do Sul”, com os saberes produzidos e invibilizados por se

oporem a colonialidade do poder, a relação de exploração e aos padrões universais do

capitalismo eurocentrado. Trata-se de um método à serviço da luta de libertação dos grupos

sociais oprimidos, indo contra a lógica do mercado, para a qual a dignidade e mesmo a

sobrevivência do ser humano deixam de ser valor central, afirmando uma posição contra-

hegemônica no sentido boaventuriano do termo (Santos e Meneses, 2010), em consonância com

a filosofia da educação de Paulo Freire.

Em congruência com os referencias teóricos adotados, a metodologia utilizada para

investigação foi a pesquisa participante, com integração da mestranda em todo o processo de

desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido. A escolha deste método científico

considerou, no bojo do desenvolvimento das ciências humanas, as mudanças de paradigmas

ocorridos em meados do século XX, com o enfraquecimento da perspectiva positivista de

pesquisa. A proposta positivista, aplicada às ciências humanas e sociais, considerava os fatos

humanos como os da natureza, passíveis, portanto, de serem observados e mensurados do mesmo

modo, submetidos a procedimentos experimentais para determinação de suas causas, com total

isenção ou objetividade do observador pesquisador.

Na realidade, o pesquisador não pode, frente aos fatos sociais, ter essa objetividade, apagar-se desse

modo. Frente aos fatos sociais, tem preferências, inclinações, interesses particulares; interessa-se por

eles e os considera a partir de seu sistema de valores. [...] E é com esse preconceito que aborda seu

objeto e sobre ele fará o estudo. Advinha-se, com facilidade que a informação que irá procurar e os

conhecimentos que daí tirará serão subjetivos. [...] Em ciências humanas, o pesquisador é mais que

um observador objetivo: é um ator aí envolvido. [...] O fato de o pesquisador em ciências humanas

ser um ator que influencia seu objeto de pesquisa, e do objeto, por sua vez, ser capaz de um

comportamento voluntário e consciente, conduz a uma construção do saber cuja medida do

verdadeiro difere da obtida em ciências naturais. (LAVILLE e DIONNE, 1999, p.34 e 35).

A pesquisa participante, a qual se refere este estudo, alinha-se a um conjunto de modelos

de investigação social, originados em alguns países da América Latina, entre os anos de 1960 e

1980, e rapidamente difundido por todo o continente, agrupados sob diversas nomenclaturas

22

como “pesquisa-ação”, “pesquisa participativa”, “investigação ação participativa”, entre outras.

Segundo Brandão e Borges (2007),

Em sua maioria, elas serão postas em prática dentro de movimentos sociais populares emergentes ou

se reconhecerão estando a serviço de tais movimentos. [...] Elas se originam e reelaboram diferentes

fundamentos teóricos e diversos estilos de construção de modelos de conhecimento social através da

pesquisa científica. Não existe na realidade um modelo único ou uma metodologia científica própria

a todas as abordagens da pesquisa participante. [...] Entre as suas diferentes alternativas, de modo

geral, as pesquisas participantes alinham-se em projetos de envolvimento e mútuo compromisso de

ações sociais de vocação popular. Assim, geralmente, elas colocam face-a-face pessoas e agências

sociais “eruditas” (como um sociólogo, um educador de carreira ou uma ONG de direitos humanos)

e “populares” (como um indígena tarasco, um operário sindicalizado argentino, um camponês semi-

alfabetizado do Centro-Oeste do Brasil ou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). De

um modo geral, elas partem de diferentes possibilidades de relacionamento entre os dois polos de

atores sociais envolvidos, interativos e participantes. (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.53).

O método do Teatro do Oprimido surgiu no mesmo período e espaço geográfico das

metodologias de pesquisa participante – 1970, na América Latina, - e tal como elas, se afirmou a

serviço das causas populares pela transformação social. Constituiu-se como um método político-

teatral, que articula a análise crítica da realidade, por meios simbólicos e sensíveis de apreensão

do mundo, em processos coletivos e dialogados de reflexão, conhecimento e ação social. O seu

potencial pedagógico também o aproxima das pesquisas participantes que “pretendem ser

instrumentos pedagógicos e dialógicos de aprendizado partilhado; possuem organicamente uma

vocação educativa e, como tal, politicamente formadora”. (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.57).

Ambos os métodos do Teatro do Oprimido como das pesquisas participantes abominam a

neutralidade política, pedagógica ou científica. “Deve-se reconhecer e aprender a lidar com o

caráter político e ideológico de toda e qualquer atividade científica e pedagógica. A pesquisa

participante deve ser praticada como um ato de compromisso de presença e de participação claro

e assumido”, afirmam Brandão e Borges. “Não existe neutralidade científica em pesquisa alguma

e, menos ainda, em investigações vinculadas a projetos de ação social.” (BRANDÃO e

BORGES, 2007, p.55).

Neste trabalho o método do Teatro do Oprimido foi desenvolvido pela mestranda

pesquisadora num processo que buscou não separar nem hierarquizar sujeito pesquisador e

sujeito pesquisado; ao contrário, considerou e integrou o saber popular na ação investigadora que

é também ação educativa e transformadora da realidade presente.

23

Quanto mais, em uma tal forma de conceber e praticar a pesquisa, os grupos populares vão

aprofundando, como sujeitos, o ato de conhecimento de si em suas relações com a realidade, tanto

mais vão superando o conhecimento anterior em seus aspectos mais ingênuos. Deste modo, fazendo

pesquisa, educo e estou me educando com os grupos populares [...] pesquisar e educar se identificam

em um permanente e dinâmico movimento (FREIRE, P. 1990, p.36).

Considerando os novos paradigmas propulsores do desenvolvimento das ciências sociais

no século passado, reconhecendo suas especificidades no que se refere à observação de pessoas

em ambientes naturais e nas relações que estabelecem com seus grupos, assume-se que esta

pesquisa, contrária à lógica positivista de isenção em prol da objetividade científica, não é

passível de reproduções, apenas de aproximações.

No fundo é a realidade que importa, mas não é ela que comanda o processo de sua própria

inteligibilidade. Já a sua existência independente não é senão uma questão. Ela é capaz de nos

sensibilizar, ela fornece elementos que os sentidos podem captar. Eles serão percebidos,

apreendidos, colocados como evidência a confirmar ou refutar formulações anteriores. O que não se

pode esquecer, sob pena de mascar o processo, é que estas formulações estão presentes em todos os

momentos. Elas guiam a apreensão e a interpretação. Elas fornecem os critérios, apenas em parte

conscientes segundo os quais alguns aspectos ganham relevância, enquanto outros são esquecidos.

(Cardoso, 1971, p.5).

Os dados aqui apresentados são, portanto, frutos de escolhas próprias, objetivas e

subjetivas, temporárias e em processo, relevantes em determinadas concepções, consciente de

que um processo participante tem nuances variadas, das quais muitas podem fugir à percepção

do observador. “Qualquer teoria científica é uma interpretação entre outras e vale pelo seu teor

de diálogo, não pelo seu acúmulo de certezas.” (BRANDÃO e BORGES, 2007, p.57).

O desenvolvimento deste trabalho envolveu a realização e observação participante de

duas oficinas de Teatro do Oprimido ministradas no Município de Itatiauiçu – MG, sendo uma

na E.M. João Marques Machado, para estudantes da EJA, e outra no Salão Comunitário Jovelina

Maria de Miranda, ministrada para moradores da comunidade rural de Pedras de Itatiaiuçu. Cada

oficina teve a duração de oito meses e ocorreu nos meses de maio a dezembro de 2011, com

periodicidade de um encontro semanal de 3 horas e aproximadamente 18 participantes.

Contemplou a montagem e apresentações de peças de Teatro-Fórum, envolvendo intervenções da

platéia em cena, analisadas em suas estratégias de mudança das relações de poder para as

opressões apresentadas.

O Teatro-Fórum contém características que o privilegia para um trabalho com pessoas

que possuem pouco ou nenhum contato com a atividade teatral, quando comparado a outras

24

modalidades do Teatro do Oprimido. Essas modalidades serão explicitadas em capítulo posterior,

porém adianta-se que seu processo de montagem abarca os conceitos e prática da Estética do

Oprimido, trabalhando com o som, a palavra e a imagem; perpassa os jogos e técnicas de Teatro

Imagem; implica na montagem de uma peça explícita, diferentemente do Teatro Invisível; parte

de histórias pessoais, contemplando a realidade imediata dos atores e não os fatos retratados na

mídia, como no Teatro Jornal; não implica técnicas tão introspectivas, como o Arco-Íris do

Desejo; pode se desenvolver para um Teatro-Legislativo e desdobrar-se em ações sociais

concretas e continuadas. Esses foram os principais motivos de focá-lo para efeito deste estudo.

Como justificativa para realização da pesquisa, apontou-se a atualidade e relevância para

o campo da educação, contando com sua possível contribuição, em termos acadêmicos, ao

enfocar o potencial educacional dessa metodologia político-teatral associada a pessoas jovens e

adultas do campo.

25

II. RAÍZES E ASAS DESTA HISTÓRIA

II.1. Educação e cultura popular no Brasil de 1960 e o método Paulo Freire

A educação brasileira da década de 1960 foi marcada por intensos movimentos em prol

da alfabetização das classes populares, de adultos trabalhadores de áreas urbanas e rurais, rumo à

sua universalização. Tratou-se de um período que trouxe fortemente a marca da cultura popular

para o âmbito da educação, sendo o seu conceito associado à consciência política e de classe,

levando o homem a assumir posição de sujeito no processo histórico e de transformação social.

Os anos 1960-1964 foram particularmente críticos e criativos em quase tudo. Questionaram-se todos

os modos de ser brasileiro, de viver um momento da história desse país, de participar de sua cultura.

Pretendeu-se um projeto que possibilitasse superar a dominação do capital sobre o trabalho e, em

decorrência, reformular tudo o que dessa dominação decorre. Tudo isso – e muito mais – foi

repassado e discutido em círculos cada vez mais amplos, das ligas camponesas às universidades.

Dentre as formas de luta popular que surgiram naqueles anos, ou que neles conseguiram fortalecer,

uma delas se chamou cultura popular; e ela subordinava outra: a educação popular. Nesse campo,

tudo se refez e tudo se imaginou criar ou recriar, a partir da conscientização e da politização – ou

seja, da organização das classes populares. O que se pretendia? Transformar a cultura brasileira e,

através dela, pelas mãos do povo, transformar a ordem das relações de poder e a própria vida do país.

Os instrumentos? Círculos de cultura, centros de cultura, praças de cultura, teatro popular, rádio,

cinema, música, literatura, televisão... sindicatos, ligas... com/para/sobre o povo. Instrumentos que se

convertiam em movimentos. Às vezes, os mesmos que vinham dos anos 50, como os clubes e as

escolas radiofônicas, mas redefinidos, reorientados, vistos em novos horizontes, projetados em outra

dimensão. (FÀVERO, 1983, P. 8 e 9).

Fávero (1983) organiza diferentes documentos da década de 1960 de autores e

organizações que discutem e se apropriam do conceito de cultura popular. Dentre esses

documentos, o da Ação Popular assume o desafio de “fazer com que a cultura passe de arma

ideológica à instrumento de promoção do homem”, “a espaço de realização do homem”. Em seu

texto, define cultura popular em termos de comunicabilidade com a população, “suas

significações, valores, idéias, obras, são destinadas efetivamente ao povo e respondem às suas

exigências de realização humana em determinada época”. O movimento de cultura popular se

converte num “movimento para a libertação do homem e só tem sentido na medida em que

promover o homem não só como receptor, mas principalmente como criador de expressões

culturais”. (AP/Cultura Popular, 1961).

A cultura popular foi definida em termos de situação histórica das massas, consciência e

ação política. “Ela é o conjunto prático teórico que co-determina, juntamente com a totalidade

26

das condições materiais objetivas, o movimento ascensional das massas em direção à conquista

do poder na sociedade de classes” (ESTEVAM, 1983, p.39). Para Gullar (1983) a expressão

“cultura popular”, na década de 1960, assume um sentido novo, demarcando uma posição de

denúncia aos conceitos de cultura que ocultavam o caráter de classe. “O que define a cultura

popular, no sentido que apreciamos aqui, é a consciência de que a cultura tanto pode ser

instrumento de conservação como de transformação social” (GULLAR, 1983, p.52). A cultura

popular se coloca em termos de problema e transformação social.

A cultura popular na década de 1960 fora assumida ora como movimento, ora como

instrumento de luta política em prol das classes populares, agregando diferentes setores e

entidades político-sociais e culturais no Brasil.

Não resta dúvida que, se nos mantivermos no plano do juízo estético puro e simples, jamais

abarcaremos a complexidade desse fenômeno cultural em curso hoje no Brasil. É preciso não

esquecer, como dissemos antes, que se trata da dramática tomada de consciência, por parte dos

intelectuais, do caráter histórico, contingente, de sua atividade e do rompimento da parede que

pretendia isolar os problemas culturais dos demais problemas do país. O escritor, o cineasta, o pintor,

o professor, o estudante, o profissional liberal redescobrem-se como cidadãos diretamente

responsáveis, como os demais trabalhadores, pela sociedade que ajudam a construir diariamente, e

sobre cujo destino têm o direito e a obrigação de atuar. (GULLAR, 1983, p.51).

No âmbito estudantil um consistente movimento em torno da arte com educação e

mobilização popular foi desenvolvida pela União Nacional dos Estudantes (UNE), nos Centros

Populares de Cultura (CPCs), inicialmente no Rio de Janeiro e, posteriormente, em outros

estados do país. O Manifesto do CPC assume para seus artistas e intelectuais o caminho da “arte

popular revolucionária”, com o artista se defrontando “com o fato nu da posse do poder pela

classe dirigente e a conseqüente privação de poder em que se encontra o povo enquanto massa

dos governados pelos outros e para os outros”. (CPC da UNE / MANIFESTO, 1961).

Contestando a legitimidade e superioridade de uma arte e cultura das classes dominantes,

expõe:

A arte do povo e a arte popular quando consideradas de um ponto de vista cultural rigoroso

dificilmente poderiam merecer a denominação de arte; por outro lado, quando consideradas do ponto

de vista do CPC, de modo algum podem merecer a denominação de popular ou do povo. (CPC da

UNE / MANIFESTO, 1961)

27

E afirma: “fora da arte política não há arte popular” e “não pode haver dois métodos distintos,

um para o povo tomar o poder, outro para se fazer arte popular”. (CPC da UNE / MANIFESTO,

1961).

Pela investigação, pela análise e o devassamento do mundo objetivo, nossa arte está em condições de

transformar a consciência de nosso público e de fazer nascer no espírito do povo uma evidência

radicalmente nova: a compreensão concreta do processo pelo qual a exterioridade descoisifica, a

naturalidade das coisas se dissolve e se transmuta. Podemos com nossa arte ir tão longe quanto

comunicar ao povo, por mil maneiras, a idéia de que as forças que o esmagam gozam apenas da

aparência do em si, nada têm de uma fatalidade cega e invencível, pois são, na verdade, produtos do

trabalho humano. A arte popular revolucionária aí encontra o seu eixo mestre: a transmissão do

conceito de inversão da práxis, o conceito do movimento dialético segundo o qual o homem aparece

como o próprio autor das condições históricas de sua existência.[...] (CPC da UNE / MANIFESTO,

1961).

A campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a ler”, desenvolvido no Rio Grande do

Norte, pela prefeitura de Natal, resultado da própria evolução da rede escolar municipal,

denominou de “padrões culturais alienígenas” àqueles vivenciados pela população brasileira,

produzidos a partir da história de dominação colonizadora e destinados a manter o povo

subserviente e passivo, admirando heróis estrangeiros, conhecendo mais a história do povo

dominador que a nossa, aprendendo a admirar e servir àqueles que aparecem como os “supremos

defensores dos princípios da democracia e da liberdade no mundo ocidental e cristão”.

Associa, portanto, cultura popular a dupla função de promover a nossa cultura de modo

que se sobreponha aos valores culturais estrangeiros e de integrar “o homem brasileiro no

processo de libertação econômico-social e político-cultural”. Assume um “entrelaçamento

dialético entre cultura popular e libertação nacional” (De Pé no Chão Também se Aprende a ler.

Cultura Popular: tentativa de conceituação, 1961).

O Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à Igreja Católica, caracterizou

cultura popular como um fenômeno histórico surgindo em sociedades com desníveis culturais

entre os grupos que a compõem; desníveis promotores de marginalização, impedindo a própria

comunicação entre os diversos grupos sociais. “Cultura popular no Brasil não é um fenômeno

neutro, indiferente; ao contrário, nasce do conflito e nele desemboca necessariamente”.

(MEB/Cultura popular: notas para estudo, 1961). Constitui-se como um movimento

estreitamente ligado à ação política, visando uma transformação estrutural da sociedade.

Na prática da educação popular desenvolvida pelo MEB, entre 1961 e 1966, os chamados agentes de

educação popular (técnicos, professores, monitores, animadores etc.) buscaram caracterizar os

28

componentes ideológicos das classes populares e organizar em suas elaborações, com graus variáveis

de manipulação, as ideologias dominadas em suas múltiplas formas de manipulação, empregando

técnicas, métodos e recursos, muitas vezes simples e artesanais, mas bastante criativos quanto à

comunicação com o povo.

Esses instrumentos e meios, na maioria das vezes, utilizaram a própria história e a experiência

comum das pessoas envolvidas. História e experiência tais como os recursos da tradição oral de

transmissão de conhecimentos, envolvidos e baseados nas relações afetivas e interpessoais que as

próprias comunidades possuem e criam para suas formas de sobrevivência no dia-a-dia, por meio do

trabalho, da religião, do lazer etc., permitindo maior divulgação das ideologias dominadas para

setores mais amplos da sociedade, ganhando amplitude e conquistando aliados. (PEIXOTO, 2004, p.

21 e 22).

Como percebemos, consolidaram-se no Brasil, no início da década de 1960, diferentes

movimentos, adquirindo, em conjunto, proporções nacionais, em torno da conscientização,

politização e mobilização da população, envolvendo diversas organizações e setores sociais, por

meio da cultura e educação popular, buscando a transformação da estrutura de classes e da

desigualdade de poder característica da sociedade brasileira.

O Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife consistiu na criação de escolas para a

população, aproveitando os espaços e salas de entidades esportivas, religiosas, associações de

bairros. Em seu Plano de Ação para 1963, baseava-se nos pressupostos de que somente o povo

poderia resolver os problemas populares, pela supressão de suas causas assentadas nas estruturas

sociais vigentes, por meio da luta política sobre a realidade objetiva. Paulo Freire participou do

MCP desde sua fundação. Segundo Gadotti (2006):

A sociedade brasileira e latino-americana da década de 1960 pode ser considerada como o grande

laboratório onde se forjou aquilo que ficou conhecido como o Método Paulo Freire. A situação de

intensa mobilização política desse período teve uma importância fundamental na consolidação do

pensamento de Paulo Freire, cujas origens remontam à década de 1950. (GADOTTI, 2006, p.49)

Os Círculos de Cultura, a forma como neles se processava um diálogo crítico sobre as

injustiças sociais, a consciência dos participantes populares sobre a realidade política do seu

entorno, a visão de Freire sobre a importância de associar tais discussões num processo de

alfabetização para torná-lo coletivo, criativo e transformador possibilitou-lhe a sistematização do

seu método.

A eficácia do método comprovada numa experiência em Angicos – RN, com a efetiva

alfabetização de 300 trabalhadores em apenas 45 dias, determinaram o convite à Freire para

consolidar uma proposta de alfabetização de adultos a nível nacional, no governo do Presidente

29

João Goulart. “Em 1964, estava prevista a instalação de 20 mil círculos de cultura para 2 milhões

de analfabetos” (GADOTTI, 1991, p.32). A ditadura militar interrompeu todo esse movimento e

Paulo Freire foi exilado, desenvolvendo seu método em outros países.

Um método incrivelmente simples que busca no universo vocabular e cultural dos

educandos as palavras carregadas de significados afetivos e sociais, para propiciam os temas

geradores da leitura do mundo, da conscientização, da desmistificação da realidade imutável.

Palavras que serão decodificadas e recodificadas no processo de alfabetização transformando-se

em inúmeras outras possibilidades, à semelhança da realidade social.

O grande diferencial do seu método, que traduz uma filosofia da educação, coincide

alfabetização com conscientização, humanização, libertação; coisas concretizáveis apenas em

comunhão, com diálogo e reconhecimento do outro como igual, na horizontalidade das relações

humanas; ação que é práxis, transformação.

II.2. O desenvolvimento do método do Teatro do Oprimido

No Brasil da década de 1960 assistimos a uma grande mobilização por parte dos

movimentos sociais e de contra-cultura, apesar dos anos ditatoriais, que tentaram emudecer e

aniquilar todas as formas de contestação, questionamento ou proposta de mudança, a partir de

1964. O Teatro do Oprimido surge no final dessa década, a partir das discussões e

experimentações que permeavam o Teatro de Arena, em São Paulo, opondo-se e apresentando

resistência a todo aquele contexto autoritário e de censura política. Boal, juntamente com o grupo

por ele dirigido naquele teatro, mesmo após a instalação da ditadura militar no país, continuaram

buscando formas de se contraporem e denunciarem aquele estado de coisas, comprometidos com

propostas de igualdade, justiça social e libertação humana.

O Teatro de Arena surgiu no início da década de 50, ganhando importância no cenário

artístico-teatral por coadunar com o movimento de cunho nacionalista, buscando valorizar a

cultura nacional e retratar a arte e realidade brasileiras, com o objetivo de consolidar uma

produção artístico-cultural com características nacionais, sem imitar as vanguardas artísticas ou

reproduzir padrões culturais dos países desenvolvidos. Como afirma Garcia (2007):

No processo de constituição do engajamento artístico nos anos1950 e 1960, o Teatro de Arena se

destacou na construção da arte nacional-popular, dialogou com grupos de teatro amador e estudantil,

30

investiu na produção dramatúrgica brasileira e na formação do elenco e equipe técnica, se preocupou

com a representação da realidade brasileira e realizou inúmeras atividades artístico-culturais.

(GARCIA, 2007, p. 8 e 9).

Importante salientar que essa mudança de padronização do repertório, firmando

espetáculos de dramaturgos brasileiros, com estética própria começou a se definir na segunda

metade de 1950, após adquirir sua própria sede. Data desta época a contratação de Augusto Boal,

a organização do primeiro Seminário de Dramaturgia e a parceria com o Teatro Paulista do

Estudante. Sua platéia, entretanto, permanecia seleta e “dentro do próprio grupo surgiu a crítica

de que o Teatro de Arena não conseguia superar os limites do público e, conseqüentemente,

atingir as massas”. (GARCIA, 2007, p. 9).

Em sua autobiografia Boal (2000) relembra este momento: “No Arena, nós nos

limitávamos a mostrar a vida pobre, como éramos capazes de entendê-la. Em cena nos vestíamos

de operários e camponeses: os figurinos eram autênticos, mas não o corpo que os habitava.”

(BOAL, 2000, p.177). Conta que, em todo o país, grupos de teatro abandonavam suas plateias

em busca de novo público, para dialogar e conscientizar o povo. A vontade de buscar “o famoso

público popular”, do qual tanto se falava, cresceu também no Arena.

Foi em 1960 que Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha), Chico de Assis e outros

integrantes se desligaram do Arena e constituiram, no Rio de Janeiro, o primeiro Centro Popular

de Cultura (CPC), fundado em dezembro de 1961, na sede da União Nacional dos Estudantes

(UNE) e extinto em março de 1964. Sua proposta baseava-se na experiência do Arena, porém

buscava concretizar a intenção de atingir e dialogar com o grande público, envolvendo

estudantes, intelectuais e as camadas populares. A experiência do CPC se espalhou por diversas

capitais brasileiras. Segundo Boal (2000):

A ideia do Arena se bifurcou. Os do Rio se enturmaram com intelectuais ligados ao PC (ou não!)

como Ferreira Gullar, Teresa Aragão, Carlos Estévão, Leon Hirzsman, Armando Costa, João das

Neves e mais gente boa. Encontraram, na União Nacional dos Estudantes, lar acolhedor. Fundaram o

Centro Popular de Cultura, de inspiração pernambucana. [...] A cisão do Arena foi fraterna, produto

de divergências em nossas ideias e não de conflitos em nossos afetos. [...] Mais tarde, quando o CPC

quis ter seu Seminário de Dramaturgia, foi a mim que recorreram como professor. (BOAL, 2000, p.

178 e 179).

Uma crítica à atuação do CPC foi tecida por Chauí (1980) no sentido de contestar a

“suposição de que o ‘povo fenomênico’ não é capaz de, sozinho, seguir a linha ‘correta’,

precisando de um front cultural, constituído por aqueles que ‘optaram por ser povo’, só que mais

31

povo que o povo.” (CHAUÍ, 1980, p. 29). A autora denunciou também a correlata postura dos

intelectuais que pressupunham a existência e, portanto, o alcance de uma inteligibilidade de

modo homogêneo na sociedade. Boal (2000) reconheceu essa forma de pensamento e atuação

nesta instituição. Afirmou:

Muitos, antes de nós, que praticavam o assim chamado teatro político mensageiro, na verdade praticavam uma

forma de teatro evangélico: evangelizavam, com doutrinas indiscutíveis, a palavra soberana de uma organização

ou de um Partido. A grande maioria dos CPCs, a par de suas imensas virtudes jamais assas louvadas, padecia

dessa doença.”(BOAL, 2000, p.177).

A superação do teatro político doutrinário por um teatro de diálogo, constituiu uma forte

preocupação e motivo de buscas e inquietação na vida de Boal, como será mostrado mais

adiante.

Boal considerou os anos de 1961 a 1964 como o período mais politizado da História do

Brasil, ressaltando o efeito miraculoso da renúncia de Jânio Quadros de dinamizar a participação

popular. Criado por Leonel Brizola, o movimento dos onze estendeu-se por grande parte do

território nacional. Jango, o primeiro presidente de esquerda, assumiu seu cargo com uma forte

pressão da população civil contra os militares avessos a sua posse, numa grande campanha pela

legalidade no país. No campo, as Ligas Camponesas combatiam a escravidão e, nesse período,

intensificou-se o movimento pela reforma agrária e pela educação, com o propósito de erradicar

o analfabetismo brasileiro, que atingia um grande contingente de pessoas, trabalhadores dos

meios urbano e rural.

1964 foi o ano do Golpe Militar, com as forças reacionárias brasileiras, apoiadas pelos

Estados Unidos, impondo-se na direção da nação. No entanto, passado o susto inicial, os

movimentos de resistência voltaram a se organizar. Boal (2000) relembra: “Membros do CPC da

UNE [...] discutiam no Rio, como nós em São Paulo, a melhor resposta à ditadura. Nosso ponto

de encontro foi o show-verdade: espetáculo no qual cantores, cantando, contariam suas

histórias.” (BOAL, 2000, p.224).

Do bar de Dona Zica e Cartola, no Rio de Janeiro, onde se reuniam estudantes,

intelectuais e a população em geral em torno de uma boa música popular, comida brasileira e

resistência política, surgiram os três nomes para o primeiro espetáculo: Nara Leão, Zé Ketti e

João do Vale. “Opinião foi o primeiro protesto teatral coerente, coletivo, contra a desumana

ditadura que tanta gente assassinou, torturou, tanto o povo empobreceu, tanto destruiu o que

32

antes chamávamos Pátria.” (BOAL, 2000, p. 228). Entretanto, para Boal, a estética e a forma

apresentada nos shows Opinião mantinha a hierarquia teatral que segrega classes, separando

palco e plateia, mantendo aquele como território sagrado, proibido para as pessoas do público.

O experimento seguinte determinou uma série de espetáculos intitulada “Arena conta”.

No palco foram retratadas as histórias de Zumbi, Tiradentes, Bolívar, entre outros. Arena conta

Zumbi iniciou a série e formalizou o sistema coringa, o qual será explicitado mais adiante. Esses

espetáculos assumiam uma narração coletiva do grupo contando a história. Os personagens eram

representados por vários atores e a peça podia, a qualquer momento, ser interrompida pelo

Coringa4. Este, sim, representado sempre pelo mesmo ator, exercia funções variadas no

espetáculo, inclusive de comentarista, esclarecendo significados escondidos para o público.

“Começo do diálogo com a platéia, que eu viria mais tarde a desenvolver plenamente com o

Teatro do Oprimido.” (BOAL, 2000, p.231).

Das experiências da década de 1960, Boal destacou três momentos, em especial, que o

fizeram rever a proposta de um teatro político mensageiro, doutrinário, que levava uma palavra

ao público sem, no entanto, os atores se implicarem, no sentido de correrem os mesmos riscos.

O primeiro ocorreu após uma apresentação para camponeses no nordeste brasileiro, na

qual os atores terminavam a peça cantando “A terra pertence a quem trabalha! Temos que dar

nosso sangue para retomá-la dos latifundiários!” (BOAL, 2000, p.185). Um camponês chamado

Virgílio convidou os atores para lutarem ao seu lado, contra os jagunços de um coronel invasor

de terras. Diante da recusa dos atores o senhor concluiu, desenganado, que o único sangue a ser

derramado era o deles, os camponeses.

O segundo momento aconteceu no mesmo dia desta apresentação, porém, após a missa

do anoitecer, quando Boal voltava a pé com o padre Batalha, para a casa paroquial onde estava

alojado. Na homilia o padre falara: “Dizem que sou padre vermelho. Não é verdade: sou branco

como minha batina. Mas há de chegar o dia em que minha batina e eu ficaremos vermelhos com

o sangue dos latifundiários nazistas!” (BOAL, 2000, p.186). No caminho de volta o padre relatou

a situação desumana dos camponeses no Brasil, muito vivendo em regime de escravidão, pois

trabalhavam nos latifúndios a troco de suprimentos, gerando dívidas com os coronéis que só

4 Em seu primeiro livro, intitulado Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, Boal utiliza o termo Coringa.

Posteriormente, vê-se Curinga em suas obras. Neste trabalho será utilizado Coringa para as experiências no Teatro de Arena e Curinga para o Teatro do Oprimido.

33

aumentavam. Padre Batalha afirmava que ser verdadeiramente cristão implicava em tomar

partido e ele estava disposto a correr os mesmos riscos, junto com os camponeses, na luta pela

reforma agrária.

O terceiro episódio desenvolveu-se na apresentação da peça A greve, escrita em um

Seminário de Dramaturgia, organizado por Boal, no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André

- SP. “No final do Seminário cada qual tinha uma peça: a de Jurandir foi a mais elogiada. A

greve contava greve acontecida na região do ABC, berço do PT. Fiquei eufórico com sua

capacidade em criar personagens autênticos, como se dizia. Multidimensionais, não estruturas

ocas.” (BOAL, 2000, p.193). A peça fora montada com recursos do Sindicato e encenada pelos

operários.

No dia da apresentação diferentes espectadores identificaram-se com os personagens

mostrados no palco. Um deles, conhecido por Magro, reconheceu-se no personagem do Gordo.

Porém, não admitia as palavras ditas pelo Gordo no palco e sentia a necessidade de corrigi-lo,

justificando-se para os amigos da plateia. Assim, Magro invadiu a cena e, para garantir a

continuidade do espetáculo, Boal propôs que ambos, o ator do personagem Gordo e o espectador

Magro, atuassem em cena: o primeiro com o texto da peça, o segundo trazendo sua versão dos

fatos. “Ainda não era Teatro-Fórum, mas foi um fórum dentro do teatro. [...] Em Santo André

comecei a pensar em explorar essa fronteira: a verdade da ficção e a ficção da verdade.” (BOAL,

2000, p.196).

Boal data o nascimento do Teatro do Oprimido no início dos anos 70, em plena a censura

da ditadura, com as atividades desenvolvidas, principalmente a partir de textos jornalísticos, no

Teatro de Arena. Em entrevista à revista Palavra comenta:

Estava impossível trabalhar, até que em 70 nós começamos uma turnê de ‘Arena Conta

Zumbi’ pelos Estados Unidos e México, estabelecendo elos pra ter apoio fora, para

denunciar a ditadura. Na volta me lembrei de uma ideia que tive com o Vianinha: ler os

jornais pela manhã, ensaiar as cenas à tarde e apresentar à noite. (BOAL, apud Araújo,

2000, p.100).

O denominado Teatro Jornal promovia a leitura e encenação crítica desses e de outros

textos a partir de diferentes técnicas que associavam o cruzamento de informações a recursos

artísticos, expressivos e estéticos para atingir suas entrelinhas, indo além das aparências e

ampliando seus significados, articulando-os a outros contextos e tempos históricos.

34

O Teatro Jornal é considerado a primeira modalidade teatral do conjunto de técnicas que

compõem o Teatro do Oprimido, contendo seus fundamentos, propondo-se à disseminação do

método, de modo que as pessoas oprimidas possam dele se apropriar para produzir suas próprias

leituras, seu próprio teatro, e desenvolverem sua consciência crítica do mundo. Aqui já

encontramos conceitos chaves deste teatro, de influências visivelmente marxistas: possibilitar

aos oprimidos a posse dos meios de produção artística e de modo crítico, dialógico, dialético, em

coletivo. “Nosso sonho era propagar as técnicas para que todos pudessem fazer teatro, usar essa

linguagem tão rica para pensar o que fazer.” (BOAL, 2000, p.271).

A censura, porém, especialmente após o AI-5 em 1968, tornava o teatro cada vez mais

impraticável no país. Boal foi preso, torturado e seguiu exilado para a Argentina, em 1972. Lá

desenvolve o Teatro Invisível, a partir de uma experiência inusitada: Iria apresentar, juntamente

com o grupo de atores de um curso, uma peça na rua. O momento político já não lhe era

favorável em função da situação política argentina e, percebendo que poderiam ter problemas,

considerando, ainda, se tratar de uma cena passível de ocorrer de modo cotidiano, um ator

sugeriu encená-la de forma “invisível”, sem explicitar o fato teatral.

Deste modo, retiraram os figurinos e atuaram em um local semelhante ao cenário da

cena: um restaurante. O garçom e o gerente foram substituídos pelos do próprio restaurante e,

sem saberem, assumiram falas muito semelhantes ao texto da peça. “Na minha mesa, pude ver

essa coisa extraordinária: a interpretação da ficção na realidade. Superposição de dois níveis do

real: a realidade cotidiana e a realidade da ficção ensaiada.” (BOAL, 2000, p.293). Os clientes

tomaram partido da situação e a experiência revelou-se útil para mobilização das pessoas sobre

diferentes questões sociais.

O Teatro do Oprimido não é um método de puro entretenimento; propõe-se a

transformação da realidade, o que pressupõe a ativação das pessoas, seu posicionamento crítico,

com enfrentamento das situações de opressão e injustiça social. Em sua obra, Boal considera “o

teatro como arte marcial”, como intitula um de seus livros, remetendo-o a um meio de luta,

sempre em prol das classes oprimidas.

O Teatro do Oprimido, em todas as suas formas, busca sempre a transformação da sociedade no

sentido de libertação dos oprimidos. É ação em si mesmo, e é preparação para ações futuras. “Não

basta interpretar a realidade: é necessário transformá-la!” – disse Marx, com admirável simplicidade.

(BOAL, 2005, p. 19).

35

No Peru, trabalhando com pessoas de diversas etnias e diferentes línguas maternas, Boal

alça mão do Teatro Imagem para promover a comunicação através dos corpos e analisar as

relações de poder e opressão na sociedade. Neste mesmo país, desenvolvendo teatro em uma

experiência de alfabetização realizada em Chaclacayo, em 1973, formula o Teatro-Fórum. Conta

Boal (1996) que trabalhava com um grupo de atores com a Dramaturgia Simultânea: a encenação

retratava problemas reais relatados pelas pessoas do local e as propostas de solução eram

sugeridas pelo público, porém encenadas pelos atores. Quando diferentes encenações da atriz não

satisfizeram uma mulher da plateia, Boal propôs que ela mesma entrasse em cena e atuasse.

Entendeu: “quando é o próprio espectador que entra em cena e realiza a ação que imagina, ele o

fará de uma maneira pessoal, única e intransferível, como só ele poderá fazê-lo e nenhum artista

em seu lugar”. (BOAL, 1996, p.22 - A).

O Teatro-Fórum é a modalidade mais praticada do Teatro do Oprimido. Constitui-se na

montagem de uma pequena peça retratando um problema da vida real dos participantes. Em

cena, pelo menos um personagem oprimido e um opressor entram em conflito em prol de seus

ideais. O personagem oprimido fracassa e o público é convidado a substituí-lo na peça para

propor, ativamente, alternativas de solução do problema.

“Nenhum teórico contemporâneo explorou as implicações políticas da relação espetáculo-platéia de

maneira tão penetrante e original quanto o diretor latino-americano Augusto Boal. [...] No “teatro do

oprimido”, já o espectador não delega poderes ao ator, “mas assume ele mesmo o papel do protagonista,

altera a ação dramática, sugere soluções, discute projetos de mudança”. [...] A chave é o “Curinga”, figura

situada entre a peça e a platéia que comenta, orienta, cria e quebra a ilusão. Age de modo oposto ao

protagonista, instando o público a ver a peça com olhos críticos, em vez de tentar mergulhar

emocionalmente nela”. (CARLSON, 1997 - p. 458 e 459)

Em seu primeiro livro, Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas, Boal introduz sua

proposta: “É necessário derrubar muros! Primeiro, o espectador volta a representar, a atuar:

teatro invisível, teatro foro, teatro-imagem, etc. Segundo, é necessário eliminar a propriedade

privada dos personagens pelos atores individuais: Sistema Coringa” (BOAL, 2005, p.177). E

relata a experiência do Arena com a rotatividade dos atores representando diferentes personagens

num mesmo espetáculo, bem como promovendo o comentário da peça. O termo faz uma alusão à

carta multifuncional do baralho que assume diferentes funções, conforme o jogo.

Aprofundaremos as questões sobre o curinga em capítulo posterior.

36

Exilado na Europa, Boal morou primeiramente em Portugal e, em 1978, mudou-se para

França, para lecionar na Sorbonne. Em Paris fundou o Centre du Théâtre de l’Opprimé. “O CTO

desenvolve o método de Teatro do Oprimido, que se baseia na convicção de que o Teatro é a

linguagem humana por excelência. [...] Alguns de nós “fazemos” teatro, mas todos nós “somos”

teatro.” (BOAL, 1996, p. 30 - B).

No Centro de Teatro do Oprimido de Paris Boal desenvolveu as técnicas do Arco-Íris do

Desejo, voltadas para os chamados “tiras na cabeça”: policiais introjetados e atuantes dentro de

nós. Tais técnicas podem ser utilizadas em processos terapêuticos, porém Teatro do Oprimido

não é terapia. Desse modo o Arco-Íris do Desejo se demonstra extremamente útil na análise das

opressões internalizadas dos atores e personagens, ajudando na revelação e compreensão de

valores sociais constitutivos de determinada sociedade e que influenciam ou mesmo direcionam

as ações de seus cidadãos de modo inconsciente. O conceito de cidadão para Boal é aquele que

transforma a sociedade na qual vive.

Após a anistia, Boal regressa ao Brasil, em 1986, atendendo ao convite de Darcy Ribeiro,

na época vice-governador do Estado do Rio de Janeiro, para trabalhar nos CIEPs. Estes Centros

Integrados de Educação Pública foram estruturados para abarcar cultura e educação de modo

associado, buscando desfazer um erro comum nas escolas que relegam aspectos culturais a um

plano secundário.

Uma das respostas está no trabalho de animação cultural, que contribui para transformar a escola

num espaço verdadeiramente democrático, integrando o processo educacional à vida comunitária e

reunindo alunos, pais, vizinhos, artistas e professores numa dinâmica que soma a igualdade de

oportunidades à consciência da desigualdade de condições. A animação cultural é desenvolvida nos

CIEPs como um processo conscientizador, que resgata o mais autêntico papel político e social da

escola. Tudo começa com a cultura local, suas manifestações, o fazer da comunidade, seus artistas e

seu cotidiano (antes tão ausentes dos currículos escolares), que são progressivamente incorporados

no dia-a-dia da escola. (RIBEIRO, 1986, p.133).

Ao todo foram reunidos 35 animadores culturais dos CIEPs, “gente que, em sua maioria,

nunca havia feito teatro – alguns jamais assistido a uma peça – e fizemos um intenso trabalho,

mostrando nossos exercícios, jogos e técnicas de Teatro-Imagem, Teatro-Fórum e Teatro-

Invisível.” (BOAL, 1996, p. 31 - B). Após um mês e meio, com um repertório de cinco peças

curtas abordando questões sobre moradia, desemprego, violência contra a mulher e sexual,

discriminação racial, drogas, entre outras, iniciou-se uma série de apresentações nesses centros

de educação.

37

Com a mudança do governo, após as eleições de 1986, o projeto de Teatro do Oprimido

nos CIEPs não foi adiante. Em 1989 “um grupo de teimosos sobreviventes da experiência dos

CIEPs” procurou Boal propondo a criação de um Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de

Janeiro. Assim constitui-se o CTO-Rio. “Informal, trabalhando de vez em quando: reuniões

internas para estudar o “Arsenal” (conjunto de técnicas, jogos, exercícios) e trabalho externo

quando se conseguisse algum contrato.” (BOAL, 1996, p. 35 - B).

Em 1992 Boal foi eleito vereador no município do Rio de Janeiro e desenvolveu o Teatro

Legislativo, juntando Teatro com Política, fazendo teatro como política.

Sendo eleito, eu poderia contratar todos os animadores culturais do CTO para realizar nossa

experiência: ir além do Teatro-Fórum e inventar o Teatro Legislativo! [...] Pela primeira vez, na

história do teatro e na história da política, abria-se a possibilidade de uma companhia teatral inteira

ser eleita para um parlamento. Esta proposta foi colocada com toda a honestidade para o eleitorado:

todos os meus eleitores sabiam que, votando em mim, estariam votando numa proposta muito clara:

unir o teatro e a política. (BOAL, 1996, p. 41 - B).

Nas apresentações das peças, retratando os problemas dos grupos comunitários com os

quais o CTO trabalhava, instituía-se a Sessão Solene do Teatro Legislativo. O público presente,

então, escrevia propostas de leis que eram submetidas à análise de assessores jurídicos e à

apreciação e votação da própria plateia. As propostas aprovadas eram reescritas em forma de

Projetos de Lei e encaminhados para a votação na Câmara Municipal. Ao todo foram

apresentados 33 Projetos de Lei dos quais 13 foram aprovados.

Ao longo desses anos a equipe do CTO-Rio passou por várias transformações e se

ampliou. Nos anos anteriores ao seu falecimento, em maio de 2009, Boal, juntamente com esta

equipe, se dedicou à pesquisa sobre a Estética do Oprimido. Um de seus objetivos é ampliar a

capacidade criadora dos oprimidos, possibilitando o trânsito em diferentes linguagens artísticas,

favorecendo a expressividade e apropriação dos meios de produção artística. “Uma Estética

Democrática, ao estimular os Oprimidos a produzirem suas obras, vai ajudá-lo a eliminar os

produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia da televisão e outros meios de

comunicação de propriedade dos opressores” (BOAL, 2009, p.19).

Hoje o Método do Teatro do Oprimido é praticado em dezenas de países, nos cinco

continentes do planeta. É representado por uma grande árvore, numa metáfora bastante bonita,

apesar de críticas referentes a esta imagem centralizadora, em oposição ao conceito de rizoma,

formulado por Deleuze e Guattari, no final da década de 1970. Gallo (2003) esclarece:

38

A metáfora tradicional da estrutura do conhecimento é a arbórea: ele é tomado como uma grande

árvore, cujas extensas raízes devem estar fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um

tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, estendendo-se assim pelos mais diversos

aspectos da realidade. [...] O paradigma arborescente implica uma hierarquização do saber, como

forma de mediatizar e regular o fluxo de informações pelos caminhos internos da árvore do

conhecimento. (GALLO, 2003, p.88 e 89).

O rizoma, ao contrário, remete à imagem de multiplicidade, sendo irredutível à unidade;

permite diferentes conexões, ao passo que o fluxo hierárquico da árvore implica uma ordem

específica e encadeada de conexões. Ao rizoma, portanto, associa-se a heterogeneidade, em

oposição à hierarquia das relações que implica uma forma de homogeneização. A cartografia do

rizoma apresenta entradas múltiplas, assim como inúmeras linhas de fuga, apontando para novas,

diferentes e insuspeitas direções.

A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea, tomando como imagem aquele tipo de

caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em

meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a relação intrínseca entre as várias

áreas do saber, representadas cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se

entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem

necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto. Diferente da árvore, a

imagem do rizoma não se presta nem a uma hierarquização nem a ser tomada como paradigma, pois

nunca há um rizoma, mas rizomas; na mesma medida em que o paradigma, fechado, paraliza o

penamento, o rizoma, sempre aberto, faz proliferar pensamentos. (GALLO, 2003, p.93).

Enraizada no solo da Ética e da Solidariedade, a árvore do Teatro do Oprimido é

alimentada pelas ciências humanas e sociais e pela filosofia. Suas raízes, o que sustenta a árvore,

são compostas pela palavra, o som e a imagem. Seu tronco abarca os jogos teatrais, o Teatro

Imagem e o Teatro-Fórum. Sua copa integra o Teatro Jornal, o Arco-Íris do Desejo, o Teatro

Invisível e o Teatro Legislativo, sendo representada, no topo, pelas Ações Sociais Concretas e

Continuadas. Um pássaro representa os praticantes multiplicadores do Método, conforme figura

abaixo:

39

ESQUEMA 1: Árvore do Teatro do Oprimido

Fonte: Apostila do Projeto Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto – CTO-Rio - 2007.

Sua prática tem se disseminado para diferentes espaços sociais, propiciando ações

educativas, políticas, críticas, dialógicas e transformadoras em instituições prisionais, de saúde

mental, escolares, grupos culturais, movimentos sociais e variadas organizações.

II.3. Relações entre a Pedagogia do Oprimido e o Teatro do Oprimido

Nascidos em uma mesma época, os paradigmas do teatro de Boal guardam estreitas

relações com a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Este escreveu uma extensa e profunda obra,

sendo o principal referencial da abordagem sócio-cultural na educação brasileira. Identificando educação

com prática de liberdade, propõem uma ação integrada onde educador e educando se aventuram juntos na

experiência de aprendizagem. O processo educativo se dá com relações democráticas e horizontais, com

diálogo, respeito mútuo, ação conjunta e reconhecimento do saber do outro. Pronunciou, assim, uma

educação libertadora em oposição à bancária, na qual o educando se converte em ser passivo no

processo de aprendizagem de conteúdos pré-estabelecidos e transmitidos de modo massificador.

40

Freire concebe a educação como uma prática humanizadora, comprometida com a

libertação, com ação e reflexão dos seres humanos sobre o mundo, com a finalidade de

transformá-lo, e autonomia para a atuação social, numa democratização fundamental com

participação de todas as pessoas em todos os níveis da sociedade. Como afirma Teixeira (2007):

“Freire assume o papel de educador-educando popular, de contribuinte ativo da construção de uma

sociedade menos desigual e menos injusta. Uma educação para formar cidadãos integrais e não uma

educação excludente (ou sem acesso efetivo) a escola como uma educação cidadã” (Teixeira, 2007 – p.

41).

Para Freire “aprender é uma descoberta criadora, com abertura ao risco e à aventura do ser, pois

ensinando se aprende e aprendendo se ensina” (Freire, 1996, p.30). A educação se faz com relações

horizontais, considerando o ser humano real, com diálogo que parte da interação com sua realidade. “...

educador já não é aquele que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o

educando, que ao ser educado, também educa...” (Freire, 1977, p.90).

Associa a educação à experiência vivida, ao trabalho, à política; entende que os problemas da

educação estão enraizados aos da sociedade. Propõe uma educação problematizadora, na qual pensamento

é ação reflexiva e transformadora sobre a realidade, em contraposição à educação bancária, com

conteúdos rígidos, pré-estabelecidos e impostos de forma hierárquica as/aos educandas/os.

Sua prática de pesquisa não separa nem hierarquiza sujeito pesquisador de sujeito pesquisado. Ao

contrário considera e integra o saber popular na ação investigadora que é também ação educadora e

transformadora da realidade presente. Ambos aprendem e se transformam juntos, com a interação

propiciada pela prática da pesquisa participante, de modo reflexivo sobre a realidade.

Augusto Boal, por sua vez, sistematizou um método teatral dialógico, crítico, voltado para a

transformação social. No Teatro do Oprimido, como já anunciamos anteriormente, o conceito de

cidadania não se liga às pessoas adaptadas à sociedade e sim àquelas que a transformam.

Introduz-se, deste modo, a ideia do cidadão crítico, capaz de intervir nos valores de seu tempo,

refletindo sobre as práticas históricas da humanidade, denunciando as mazelas sociais e

anunciando, por meio da ação transformadora, uma nova sociedade. Segundo os pressupostos do

Teatro do Oprimido, essa nova sociedade se baseia na ética solidária, dialógica, comunitária.

Solidariedade, diálogo, comunhão pressupõem, fundamentalmente, a existência do outro. O

trabalho com Teatro do Oprimido se faz, assim, reconhecendo o outro, de modo coletivo, em

meio às discussões e análises que permitem o desenvolvimento do grupo, debruçado sobre os

problemas da realidade em que vivem, em vias de transformá-la.

41

Ambos, o Teatro e a Pedagogia do Oprimido, são frutos de uma mesma época, trazendo

em si as concepções de educação e cultura popular geradas naquele período.

Enquanto Oliveira (2005) lança luz aos atuais problemas que afligem a profissão e o

profissional docente com as mudanças no campo educacional, Paranhos (2009) aposta que “a

utilização das ferramentas do Teatro do Oprimido atende ao objetivo de formação de um

professor autônomo, onde se torna premente um trabalho que se baseie na construção da auto-

imagem do professor, e que, também, possibilite a ressignificação do ato educativo”

(PARANHOS, 2009, p.18).

Não pretendemos neste trabalho identificar o Teatro do Oprimido com um método

mágico capaz de solucionar imediatamente os complexos processos em curso na educação

pública brasileira contemporânea, mas com um possível aliado, representante de uma

globalização contra-hegemônica, caminhando, portanto, na contra-mão de processos sócio-

políticos, mercantis e culturais massificadores e opressores que se pretendem hegemônicos, por

isso passível de promover novos olhares sobre a escola, seus sujeitos e finalidades de suas

práticas. Para Boal: “Pensar é organizar o conhecimento e transformá-lo em ação...” e

“Consciência é a reflexão do sujeito sobre si próprio e sobre o significado dos seus atos, não

apenas sobre suas conseqüências” (BOAL, 2009, p.29-30).

Uma prática extremamente arraigada no cotidiano da escola que corrobora com a

regulação social e favorece os domínios de uma mentalidade de hegemonia intransitiva, imposta

de cima para baixo ou do centro às periferias, é a hierarquia. A hierarquia escolar impõe uma

graduação de autoridade semelhante à pirâmide de classes, com a direção no alto e fino topo,

passando em sentido descendente pelos supervisores, professores, demais profissionais e

estudantes - estes ocupando a mais larga base, podendo ainda ser subdivididos e graduados de

acordo com sua correspondência às expectativas escolares, adquirindo maior ou menor

autoridade junto aos professores conforme esta adequação.

A hierarquia associa-se, também, à meritocracia escolar, com os padrões de méritos

definidos prévia e exteriormente aos sujeitos, reforçando uma sociedade desigual e sem

oportunidades para todos.

A noção de hierarquia (saber-ignorância) é muito cara à escola capitalista. Ao contrário, Paulo Freire

e Augusto Boal insistem na conectividade, na gestão coletiva do conhecimento social a ser

42

socializado de forma ascendente, na vivência da alteridade, como espaço não só de respeito do outro,

mas também de se colocar no lugar dele, de representá-lo, senti-lo, valorizá-lo (GADOTTI, 2007).

O Teatro do Oprimido é um dos métodos teatrais que rompe os muros hierárquicos que

na nossa sociedade separa atores e platéias, funciona com base numa estrutura democrática, de

diálogo e propõe um processo horizontal e coletivo para a construção dos personagens e da peça.

Acredita-se que o seu desenvolvimento em meio escolar possa colocar em cheque a estrutura

antidemocrática da escola, desvelando práticas opressoras cotidianas invisibilisadas e apontando

caminhos mais dialogados de construção do processo de conhecimento. Nesse sentido, Teatro-

Fórum, cuja metodologia foi desenvolvida e analisada para fins deste estudo, realiza:

O encontro entre espectadores que debatem suas idéias com os atores que lhes contrapõem as suas.

De certa forma, uma profanação: profana-se a cena, altar onde costumeiramente oficiam apenas os

artistas. Destrói-se a peça proposta pelos artistas para, juntos, construírem outra. Teatro não didático

no velho sentido da palavra e do estilo, mas pedagógico no sentido de aprendizado coletivo (Boal,

1996, p. 22 - A).

Para Gadotti (2007), “O potencial pedagógico do teatro é ainda maior quando ele se torna

intencionamente educador, como é o caso do Teatro do Oprimido” (GADOTTI, 2007, p.42).

Paranhos (2009) traça um quadro comparativo entre essas duas propostas destacando o

esfacelamento da barreira entre educador e educando, na proposta de Freire, e o esfacelamento

da barreira entre espetáculo e platéia, no teatro de Boal; o papel ativo do educando que “participa

tanto da pergunta quanto das possíveis respostas” na Pedagogia do Oprimido, em afinidade com

os espectadores que “participam da produção, roteiro, atuação da dramaturgia e propõem e

encenam soluções” no Teatro do Oprimido; a educação “como um processo que extravasa a

escola e segue pela vida, em sua transformação – vocação humana de ser mais” e o espetáculo

“como um processo que extravasa o teatro e segue pela vida, exigindo ações concretas em

transformação da realidade” (PARANHOS, 2009, p.99).

Boal parte do princípio que todo teatro é político, pois se trata de uma ação humana;

assim como é política a atitude que tenta separar o teatro da política, nos induzindo ao erro. O

título ‘Teatro do Oprimido’ traz essa dupla dimensão: artística (Teatro) e política (do Oprimido).

O teatro é também uma arma muito eficiente, por isso “as classes dominantes permanentemente

tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação” (Boal, 2005, p.11). O

mesmo acontece com a educação para Freire, isto é, ação essencialmente política a qual é

43

exercida nos estabelecimentos de ensino de modo opressiva, bancária, impositiva, pacificando o

indivíduo em favor das classes dominantes na sociedade.

Não se pode entender o pensamento pedagógico desses dois grandes mestres deslocado de um projeto

social e político. A liberdade é a categoria central da pedagogia e oprimido e do teatro do oprimido. A

libertação se constitui na finalidade da educação transformadora. O fim da educação será, então, libertar-

se da realidade opressiva e da injustiça. A educação visa à libertação, à transformação radical da

realidade, para melhorá-la, para permitir que homens e mulheres sejam reconhecidos como sujeitos da

história (GADOTTI, 2007, p. 43).

Tanto a Pedagogia do Oprimido como o Teatro do Oprimido são dialógicos: diálogo

fundamentado no reconhecimento do outro e de si, constrói-se coletivamente para denunciar as

estruturas desumanizantes e anunciar a humanização da humanidade. Esse anúncio se dá

conforme a práxis freiriana que é ação-reflexão sobre o mundo. Como afirma Teixeira (2007):

Tanto Boal quanto Freire defende o diálogo e a cooperação entre sujeitos na busca de problematizar,

compreender e transformar a realidade. Nesta direção, ambos dão a palavra ao povo, para falar sobre

sua vida, como passo fundamental para o desenvolvimento da autonomia e o engajamento na

transformação do mundo. Boal dá a palavra ao espectador, através do teatro viabiliza a possibilidade

de relatarem as próprias vivências, desenvolverem sua autonomia, seu juízo crítico e sua

responsabilidade. Freire fornece ao educando a autonomia da construção da palavra para que possa

interferir e transformar o mundo, pois, ao dizer a própria palavra a pessoa inicia a construir

conscientemente seus próprios caminhos (TEIXEIRA, 2007, p.123).

Pensar e conhecer o mundo não são atos solitários, requerem a relação com o outro,

precisam de expressão e comunicação, estabelecem-se numa dimensão dialógica, associados à

transformação da sociedade para superação da opressão. “Diante dos fundamentalismos cada vez

mais fortes, o diálogo já não é mais uma opção política. O diálogo é hoje um imperativo

histórico e existencial. A alternativa ao diálogo é o terrorismo, a especulação da violência, é a

globalização da crueldade, a guerra, o simulacro” (GADOTTI, 2007, p.43).

Para precisarmos o conceito de opressão recorremos a Julian Boal, pesquisador e curinga

do Teatro do Oprimido. Segundo ele, opressão não se define de maneira absoluta, precisa ser

analisada no contexto social. As relações entre um homem e uma mulher, por exemplo, se

estabelecem, em nossa sociedade, num contexto patriarcal; o mesmo podemos dizer sobre as

relações entre brancos e negros e o racismo; ou entre patrão e empregado e o capitalismo. Tão

pouco é definido apenas em termos de violência. Toda opressão é uma violência, mas nem todo

ato violento é uma opressão. “Opressão é uma relação concreta entre indivíduos que fazem parte

44

de diferentes grupos sociais, relação que beneficia um grupo em detrimento do outro” (BOAL, J.,

2010, p.124-125).

O conceito de oprimido se contrapõe ao de vítima e de excluído. Vítima remete à falta de

recurso, “como um objeto do qual devemos ter pena, sentir culpa ou remorso [...] O Tsunami fez

vítimas, não oprimidos; um terremoto, uma inundação, a erupção de um vulcão fazem vítimas”

(BOAL, Julián, 2010, p. 125). A palavra excluído, por sua vez, “esconde a relação causal que

existe entre os privilégios de um grupo e a opressão de outro” (Boal, Julián, 2010, P.126).

Outra característica desses dois termos é que eles insistem no caráter periférico, intermitente, da

injustiça. A palavra opressão, ao contrário, insiste no lugar central da injustiça enquanto fundamento

das nossas sociedades. Devemos reconhecer que não existe nenhum romantismo revolucionário no

uso da palavra opressão. Ser oprimido é uma posição social, não é uma estratégia política. Dentro de

um mesmo grupo oprimido coexistem várias estratégias. (Boal, Julián, 2010, P.126).

“Nosso teatro se dedica à investigação de situações de opressão, cujo sentido aqui está

intrinsecamente ligado ao de injustiça, ao de desequilíbrio de poder e de falta de equidade no

acesso a recursos e oportunidades” (SANTOS, Bárbara, 2010, p.69). “Vencer uma opressão não

é tarefa para um herói ou um messias; é a tarefa de coletivos, grupos, de organizações, de

massas” (BOAL, Julián, 2010, p.126). A análise das opressões reclama o diálogo, o coletivo

promovendo reflexões acerca do mundo em que vivemos, para analisar as relações e práticas

sociais às quais estamos imersos, mas não submetidos de modo determinista, fatalista e passivo.

Tanto em Boal como em Freire o contrário de opressão é a emancipação. Sua análise é práxis, é

ação-reflexão transformadora, é educação emancipadora, que não se propõe apenas a vencer o

opressor, mas a superar a situação de opressão.

Para Boal (2009) “existem duas formas humanas de pensamento – Sensível e Simbólico -

e não apenas esta que se traduz em discurso verbal. São formas complementares, poderosas, e

são, ambas, manipuladas e aviltadas por aqueles que impõem suas ideologias às sociedades que

dominam” (BOAL, 2009, p.16). Do mesmo modo que o analfabetismo das letras é usado pelas

classes dominantes “como arma de isolamento, repressão, opressão e exploração” existe o

analfabetismo estético que “vulnerabiliza a cidadania, obrigando-a a obedecer mensagens

imperativas da mídia, da cátedra e do palanque, do púlpito e de todos os sargentos, sem pensá-

las, refutá-las, sequer entendê-las” (BOAL, 2009, p.15).

45

Com a Estética do Oprimido Boal amplia o significado de ser humano. No início de sua

obra afirmava que ser humano é ser teatro, inclusive no sentido das representações cotidianas,

nos papéis que assumimos no nosso dia-a-dia; é teatro pela capacidade de se observar em ação,

de se desdobrar e pensar o próprio pensamento no momento da ação. Em seu último livro5 Boal

diz: “Ser humano é ser artista”. Em ambas as definições, entretanto, concebe o humano como ser

criador e transformador de sua realidade. Seu método artístico-teatral propicia que os

participantes se expressem em diversas linguagens, se reconheçam como produtores (e não

apenas consumidores passivos) de arte e cultura, ressignificando o conceito de belo imposto e

valorizado pela mídia.

Afirmo que não existe o mais-belo e o menos-belo, conceitos criados em sociedades competitivas – hoje,

neoliberais – nas quais é importante ser o primeiro, o mais rico, mais forte e melhor. Penso, ao contrário,

que cada coisa, material ou imaterial, é ou não bela em função da sua qualidade de, através dos nossos

sentidos, significar uma verdade, real ou imaginária, consciente ou não, dentro de condições temporais e

concretas, quer nos atraia ou assuste (BOAL, 2009, p.39-40).

Segundo o autor, “o ato de pensar com palavras tem início nas sensações e, sem elas, não

existiria, embora delas se desprenda e se automatize até à sua mais total abstração.” (BOAL,

2009, p.27). Boal apresenta em sua obra uma “bela justificativa” para inventarmos palavras. Diz

“todas as palavras que existem foram inventadas! Nenhuma existiu antes do ser humano. Somos

humanos: inventemos!” (BOAL, 2009, p.79). Acrescenta: “Como a palavra não nos dá nenhuma

certeza nem informação certa, temos que vê-la como se fosse imagem, ouvi-la como música,

tocá-la com as mãos: sentí-la” (BOAL, 2009, p.80).

Já em seu primeiro livro Boal explicita:

O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que a domina, uma nova forma de conhecer a

realidade, e de transmitir aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é absolutamente insubstituível.

Todas as linguagens se complementam no mais perfeito e amplo conhecimento do real. Isso é, a realidade

é mais perfeita e amplamente conhecida através da soma de todas as linguagens capazes de expressá-la.

(Boal, 2005, p.180).

Concordamos com Boal que: “Existem saberes que só o Pensamento Simbólico pode nos

dar; outros, só o Sensível é capaz de iluminar. Não podemos prescindir de nenhum dos dois”

(BOAL, 2009, p.22). A educação escolar prioriza o simbólico sobre o sensível. “Da mesma

5 A Estética do Oprimido, escrito em vida, mas publicado após o seu falecimento.

46

forma que devemos aprender a ler e escrever, devemos aprender a ver e ouvir. O abandono deste

ou daquele pensamento causa graves danos à expansão da personalidade” (BOAL, 2009, p.82).

47

III. DESCORTINANDO UMA EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE

III.1. Na contra-hegemonia do sistema

Refletir sobre Educação na atualidade implica considerar uma gama de aspectos que

abarcam desde ações no interior do Sistema de Ensino como nos diversos espaços sociais e

culturais, perpassando seu histórico em contextos nacionais e internacionais, as concepções e

mudanças de paradigmas na sociedade contemporânea, as políticas educacionais, os conceitos e

funções da educação, suas instituições e práticas pedagógicas, bem como os sujeitos envolvidos

nos diferentes processos educacionais.

Vivemos em época de intensas relações transnacionais, caracterizada econômica e

politicamente pela globalização dos sistemas de produção e de transferências financeiras; social e

culturalmente observamos uma disseminação mundial de imagens e informações potencializadas

pelas tecnologias de comunicações. A esses processos soma-se o grande fluxo de pessoas em

deslocamento pelo mundo quer como turistas ou em migrações de trabalhadores ou refugiados.

Esse período de intensificação dessas interações transnacionais iniciado no final do século

passado vem sendo denominado por globalização, mundialização, modernidade global, sistema

ou processo global, cultura de globalização, entre outros.

Segundo Santos (2001)

“Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um

fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e

jurídicas interligadas de modo complexo. Por esta razão, as explicações monocausais e as

interpretações monolíticas deste fenômeno parecem pouco adequadas. Acresce que a globalização

das últimas três décadas, em vez de se encaixar no padrão moderno ocidental de globalização –

globalização como homogeinização e uniformização – sustentado tanto por Leibniz como por Marx,

tanto pelas teorias da modernização como pelas teorias do desenvolvimento dependente, parece

combinar a universalização e a eliminação de fronteiras nacionais, por um lado, o particularismo, a

diversidade local, a identidade étnica e o regresso ao comunitarismo, por outro. Além disso, interage

de modo muito diversificado com outras transformações no sistema mundial que lhe são

concomitantes, tais como o aumento dramático das desigualdades entre países ricos e países pobres e,

no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos

étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a falência ou implosão

de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal

como condição política para a assistência internacional, etc.” (SANTOS, 2001, p. 32).

48

O autor desconstrói, portanto, a ideia da globalização como um processo linear e

consensual e denuncia essa construção conceitual como um artifício ideológico para torná-la

dominante e irreversível. O consenso hegemônico que confere à globalização características

ideológicas dominantes no âmbito político-econômico mundial assenta-se sobre o neoliberalismo

e as prescrições do chamado “Consenso de Washington”, ditado em meados dos anos de 1980,

pelos países centrais, prescrevendo fortes restrições à regulação estatal sobre a economia, novos

direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros e subordinação dos Estados

nacionais às agências internacionais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC.

No domínio social, o consenso neoliberal de globalização imposto pelos países centrais

aos periféricos por meio do controle sobre a dívida externa efetuado pelo Banco Mundial e FMI,

sustenta que a estabilidade e o crescimento econômico se efetivam com a redução dos custos

salariais, com o objetivo de impedir “o impacto inflacionário dos aumentos salariais”,

determinando a redução dos direitos trabalhistas e benefícios associados ao lucro e produtividade

empresariais. Subjaz a esta ideologia a adoção de medidas compensatórias contra a pobreza sem,

entretanto, eliminá-la como parte substancial do processo e, portanto, justificável. Por isso

Santos (2001) afirma: “A nova pobreza globalizada não resulta de falta de recursos humanos ou

materiais, mas tão só do desemprego, da destruição das economias de subsistência e da

minimização dos custos salariais à escala mundial” (SANTOS, 2001, p. 41).

As normas e requisitos institucionais para desenvolvimento de um modelo neoliberal têm

conseqüências além da regulação estatal sobre a economia, afetando a organização da sociedade

como um todo. Entretanto, dado que tais mudanças ocorrem após um período de forte

intervenção estatal sobre a economia e a vida social, tal retraimento não é obtido,

paradoxalmente, por meio de uma forte intervenção estatal. “O Estado tem de intervir para deixar

de intervir, ou seja, tem de regular a sua própria desregulação” (SANTOS, 2001, p.45).

Santos demonstra que a globalização aponta para processos variados em nível

econômico, político, geográfico, sócio-cultural. No âmbito cultural o termo globalização poderia

ser designado por “americanização” ou “ocidentalização”, denunciando o imperialismo cultural

que busca “universalizar artefatos simbólico-culturais como o individualismo, a democracia

política, a racionalidade econômica, o utilitarismo, o primado do direito, o cinema, a publicidade,

a televisão, a Internet, etc.” (SANTOS, 2001, p.51).

49

Por outro lado, o intenso fluxo entre fronteiras (de pessoas, idéias, informações, bens,

trabalho, capital) promove hibridismos culturais plurimórficos, impedindo a denotação de uma

cultura global. Aliás, cultura é justamente o campo das diferenças, “a luta contra a

uniformidade”, interseções “entre o universal e o particular” (SANTOS, 2001, p.54). Como

afirma Boal: “A globalização quer impor uma só maneira de ver, ouvir, sentir, gustar, pensar,

fazer e ser. Mas as raízes voltam a crescer” (BOAL, 2009, p.39). E nas palavras de Munanga:

ao mesmo tempo que a revolução tecnológica, a mutação do capital e o desaparecimento do estadismo, surge, no

último quarto do século XX, um outro fenômeno maciço: fortes manifestações de identidades coletivas vêm desafiando

a mundialização e o cosmopolitismo, em nome da singularidade cultural e do controle dos indivíduos sobre a vida e o

meio ambiente. Múltiplas, extremamente diversificadas, elas tomam as formas de cada cultura e se abastecem nas

fontes históricas constitutivas de cada identidade. (MUNANGA, 2002 ,p.84).

Observamos, a partir da década de 1960, a intensificação de uma movimentação de

caráter mais regionalista, fundamentada no reforço das sigularidades étnico-culturais em

contraposição ao proposto processo de globalização que se desenhava. O suposto fim das

barreiras econômicas vem acompanhado de uma dialética demarcação de espaços subjetivos que

pincelaram no mapa as diversas identidades que constituem a população mundial.

Os movimentos sociais da década de sessenta revelaram como os discursos

universalizantes não respondiam às demandas específicas dessas identidades tão fragmentadas.

Mostraram, por exemplo, que, mesmo superando a luta de classes proclamada pelos marxistas,

manteríamos as bases de uma sociedade heteronormativa, racista, machista e conservadora.

O feminismo trouxe para o debate político questões até então reconhecidas e tratadas

como especificamente da vida privada. Os direitos reprodutivos, a sexualidade, o trabalho

doméstico e a violência de gênero deixaram o espaço das quatro paredes e tornaram-se pauta

pública. Adotando essa postura, o feminismo constituiu-se como um movimento de identidade-

projeto na definição de Munanga (2002), tendo em vista que colocou em cheque toda estrutura

do patriarcado e propôs uma mudança radical na base de toda dinâmica social vigente até então.

Hall (2001) aponta o feminismo como um dos cinco “grandes avanços na teoria social e

nas ciências humanas” ocorridos na segunda metade do século XX, “cujo maior efeito,

argumenta-se, foi o descentramento final do sujeito cartesiano. O feminismo faz parte daquele

grupo de novos movimentos sociais”, que emergiram durante os anos sessenta e que apelava para

a identidade social de seus sustentadores. Assim, o feminismo apelava às mulheres; a política

50

sexual, aos gays e lésbicas; as lutas raciais, aos negros; o movimento antibelicista aos pacifistas;

e assim por diante. Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a

política de identidade – pautando as singularidades existentes entre cada indivíduo (HALL,

2001, p.43-46).

Os novos movimentos sociais trouxeram importantes reflexões para a educação em

contraposição a um único modelo hegemônico vigente no imaginário do ideal escolar. O

Movimento Negro apontou para os debates em torno do racismo e das políticas públicas de

caráter afirmativo. Pautou questões como as desigualdades sociais entre negros e brancos, a

saúde da população negra e o acesso da mesma à educação. Denunciou as discriminações

sofridas por estudantes afro-descendentes nas escolas. Diferentes pesquisas revelaram a

segregação desse grupo, percebida desde o modo de tratamento e expectativas de educadoras/es

para com eles/as até os conteúdos didáticos e curriculares que tornam invisível a história e

cultura negra do país.

Este Movimento teve papel fundamental para a promulgação da lei nº 10.639, em 2003,

que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, excluídas

das escolas sob a unicidade da história mundial européia, ou inserida apenas como fato

folclórico, de forma estereotipada, com status inferior. E continua atuando na denúncia do modo

como a história do negro no Brasil é retratada em termos de passividade e submissão ao branco

nos textos e imagens dos livros didáticos; da forma como a estética negra permanece associada

ao feio, ou no máximo ao exótico, estando ausente ou com raras aparições nas mídias televisivas

e impressas; da maneira como o racismo brasileiro se processa camuflado, sob o discurso da sua

inexistência, e revela-se nas estatísticas que colocam a população negra nos mais baixos

patamares de acesso aos bens e serviços sociais valorizados em nossa cultura.

O Movimento de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, por sua vez,

denunciou a heteronormatividade imperante que produziu e reproduz o silenciamento desses

grupos e promove a evasão de seus indivíduos da escola. No Brasil, sua origem foi a criação do

Grupo de Afirmação Homossexual (SOMOS), em 1978, que reunia em seu círculo demandas

variadas. Com o passar do tempo, o movimento foi referendando as singularidades dos diversos

grupos que comportava e chegou a nossa época sob a sigla LGBT, anunciando as especificidades

de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros que o compõem.

51

Apesar de se fortalecer enquanto movimento único, a organização política da comunidade GLBT é

bastante plural, há organizações mistas – como é o caso da ABGLT – e específicas, como a

Associação Brasileira de Gays (ABRAGAY), a Associação Brasileira de Lésbicas (ABL) e a Liga

Brasileira de Lésbicas (LBL). As travestis também dispõem de espaço de articulação autônomo, a

Associação Nacional das Transgêneros (ANTRA), o mesmo ocorre para homens e mulheres que

vivenciam a transexualidade, através da articulação do Coletivo Nacional de Transexuais (CNT).

Recentemente também se articularam pessoas afrodescendentes, através da Rede Afro GLBT e

jovens, através da Rede E-Jovem. (Texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas,

Bissexuais, Travestis e Transexuais, 2008, p.7).

A luta do movimento homossexual também alcançou novos parâmetros com

implementação do Programa Brasil sem Homofobia, pelo Governo Federal, em 2005.

Fundamentando-se em ações interministeriais, tem como principal objetivo desenvolver

atividades de prevenção e combate a práticas e comportamentos homofóbicos na perspectiva da

garantia dos direitos humanos.

Outra mobilização social de fundamental importância no contexto nacional e

internacional foi a das pessoas com deficiência. A princípio, essas pessoas – diagnosticadas pelo

discurso médico como sujeitos que têm um déficit, uma perda, tanto na esfera orgânica quanto na

psíquica - recebiam atenção das autoridades apenas de forma assistencialista. A partir da segunda

metade do século XIX, foram surgindo no Brasil centros de atendimento especializado para cada

tipo de deficiência que tinham um enfoque terapêutico, buscando a reabilitação do sujeito.

As instituições de atendimento, entretanto, eram segregadas, recebendo pouca atenção do

Estado e favorecendo o surgimento de muitas instituições particulares. As políticas e debates

sobre a questão ganharam fôlego a partir da segunda metade do século XX, na perspectiva do

direito e oportunidades para todos. Em 1981 a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) decretou

o ano internacional das pessoas com deficiência. A partir daí, a concepção de inclusão deixou de ser

baseada na homogeneização dos sujeitos segundo o modelo ocidental e apostou na convivência e no

respeito à diversidade. Esse discurso é ponto central na Declaração de Salamanca elaborada na

Conferência Mundial de Educação Especial, ocorrida na Espanha, 1994.

A segunda metade do século XX trouxe as singularidades e, conseqüentemente, a

diversidade, para a ordem do dia. As promessas de um futuro emancipatório começaram a ser

enunciadas a partir de discursos que conjugavam os aspectos universalistas e as especificidades

aclamadas pelos movimentos das minorias de caráter identitário. A partir desse contexto, a força

e luta dos movimentos sociais impôs ao campo das Políticas Públicas a pauta da diversidade.

52

Nessa perspectiva, o caráter universalista que toda Política Pública carrega em si teve que dividir

espaço com a preocupação das particularidades. É fato que não é possível implementar

programas ou projetos que atendam cada cidadão em sua individualidade, todavia é

indispensável que se considere as demandas apontadas por grupos identitários específicos.

Cury (2008), analisando as Constituições Brasileiras, traça um panorama da aquisição

dos direitos educacionais pela população, desde épocas imperiais, quando excluía negros,

indígenas e pessoas de áreas pouco povoadas, até a Constituição de 1988 que universalizou o

Ensino Fundamental, tornando-o dever do Estado e da Família, constituindo-o como direito

subjetivo. “O texto constitucional reconhece o direito à diferença de etnia, de idade, de sexo e

situações peculiares de deficiência” (CURY, 2008, p.216). O autor analisa o avanço em termos

de reconhecimento de direitos, entretanto alerta sobre a distância que separa a realidade dos

valores, princípios e normas constitucionais.

A retração do Estado, forçosa em alguns casos, funcional noutros, não pode se efetivar em omissão

diante de situações de desigualdade, disparidade, discriminação e privilégios. E nem pode exonerar-

se do seu papel de garantia do direito à educação como inalienável à pessoa e à sociedade. É dele,

sobretudo, que a sociedade continua esperando condições para a ultrapassagem de situações de

excludência, vindas do passado e aliadas a outras nascidas dos tempos presentes. (CURY, 2008, p.

219).

Sobre a regulação estatal das políticas educativas, Oliveira (2005) afirma se tratar de um

campo novo de estudos e busca analisar como as reformas dos sistemas educacionais que se

procederam em muitos países da América Latina a partir de 1990 trouxeram conseqüências para

as escolas e trabalhadores docentes no Brasil, reconhecendo a importância da escola pública

como agencia estatal, presente em diferentes regiões, desde os grandes centros às periferias, nos

meios urbanos e rurais e, em muitos contextos, constituindo-se como a única presença estatal

junto à população. Para a autora a escola continua facilitando o processo de coesão social,

contribuindo na regulação da sociedade “quer como agências formadoras de força de trabalho,

quer como disciplinadores da população” (OLIVEIRA, 2005, p.764).

A regulação da educação se insere entre as tensões de transformação do papel do Estado

num contexto de mundialização das tecnologias de comunicação, com um modelo mercantil

ascendente e disputas entre políticas educativas neoliberais e humanista-igualitárias. As políticas

reguladoras associam contrapontos como autonomia financeiro-administrativa e sistemas

53

nacionais de avaliação, autonomia pedagogia e prescrição curricular, descentralização executiva

e centralização no controle de resultados.

A flexibilidade, a descentralização, o respeito à diferença e o reconhecimento da alteridade,

elementos da retórica pós-modernista e tão presentes na nova regulação educativa que toma a escola

como lócus do sistema e lugar por excelência da articulação entre o global e o local, exigem do

trabalhador docente a capacidade de mobilizar-se nessas distintas dimensões. Constraditoriamente, os

professores vêem-se envolvidos em uma ideologia que cultiva e valoriza a diferença, a

transdiciplinaridade, o trabalho coletivo, o desenvolvimento de competências e habilidades, mas

continuam a ser contratados por meio de contratos individuais de trabalho, para lecionarem

disciplinas específicas e remunerados por hora-aula de 50 minutos (Oliveira, 2005, p.771).

Está em curso uma transformação no papel do educador diante das variadas funções

assumidas pela escola pública. As novas exigências profissionais vão além da formação para a

função, obrigando o desempenho de tarefas além das educativas, relacionadas ao ato de ensinar

os conteúdos disciplinares. O trabalho docente passa a se definir com atividades além da sala de

aula, englobando a gestão escolar, planejamento curricular, elaboração de projetos e avaliação

coletiva. “Tais exigências contribuem para um sentimento de desprofissionalização, de perda de

identidade profissional, de constatação de que ensinar às vezes não é o mais importante. [...] As

reformas em curso tendem a retirar desses profissionais a autonomia, entendida como condição

de participar da concepção e da organização de seu trabalho”. (OLIVEIRA, 2005, p.769). A

dissonância entre o discurso e as condições materiais na educação reduz o trabalho coletivo à

tarefas individuais, com custos significativos ao movimento em prol da emancipação social.

Afonso (2001) e Santos (2001) concebem o desenvolvimento da escola pública, laica e

obrigatória como uma ação fundamental corroborndo na consolidação do Estado, que busca

consolidar uma identidade nacional. Sobre a constituição dos Estados Nacionais Afonso (2001)

afirma a precedência da formação do Estado em relação à Nação, sendo aquele antigo conhecido

na história da humanidade e esta um advento da Modernidade, surgida no século XIX e expressa

que “a articulação entre o Estado e a nação tem sido freqüentemente designado pela expressão

Estado-nação, reforçando assim a idéia de uma organização tendencialmente isomórfica de

território, etnia, governo e identidade nacional” (AFONSO, 2001, p.18). Para Ortiz (1999) a

idéia de nação

pressupõe que no âmbito de um determinado território ocorra um movimento de integração

econômica (emergência de um mercado nacional), social (educação de todos os cidadãos), política

(advento do ideal democrático como elemento ordenador das relações dos partidos e das classes

sociais) e cultural (unificação lingüística e simbólica de seus habitantes). (ORTIZ, 1999, p.78).

54

Nesse sentido a instituição escolar assume a função de socialização. Discutir o Teatro do

Oprimido neste contexto implica, inicialmente, ratificar seu papel contrário à homogenização das

práticas escolares, tal qual é proposta para unificação das identidades em torno de uma nacional,

pois entendemos que tal processo se deu (e continua se perpetuando) com base no ocidentalismo

moderno, de hegemonia européia e estadunidense em torno de um ideário comum de nação.

Como afirma Peixoto Filho (2004):

A Educação é um processo que passa por uma prática que é também política, portanto integrante de

todo o processo histórico da sociedade. Historicamente, a escola é um dos instrumentos utilizados

pelas classes dominantes como forma de transmissão de seu saber e na formação de seus intelectuais

orgânicos. Ao mesmo tempo nela se desenvolve uma prática político-ideológica voltada para a

formação de uma consciência de dominação e de reprodução dos seus valores. (PEIXOTO FILHO,

2004, p. 19).

Falta à educação brasileira buscar e fortalecer o que Santos (2010) denomina de

Epistemologias do Sul: um vasto conjunto de conhecimentos que se assemelham por não

referendar os valores do Norte hegemônico. São saberes silenciados e invisibilizados pela ordem

eurocêntrica dominante por se oporem a colonialidade do poder, a relação de exploração e aos

padrões universais do capitalismo eurocentrado, contrários à lógica do mercado, para a qual a

dignidade e mesmo a sobrevivência do ser humano deixam de ser valor central. Silenciados

também pela ciência de fundo positivista, incapaz de referendá-los por falta de métodos

comprobatórios, de reconhecê-los por se autodenominar o único conhecimento verdadeiro e

digno de respeito.

As Epistemologias do Sul assim se denominam por tomarem por base o Sul simbólico:

Sul que se opõe ao Norte dominador, Sul que se reconhece como produtor de saber, Sul que

geograficamente não se situa apenas abaixo da linha do equador, mas que simboliza todos os

povos dominados, subjugados, diminuídos em sua humanidade por não serem euro-ocidentais.

Precisamos aprender que existe o Sul, aprender com o Sul, a partir do Sul.

O Teatro do Oprimido se insere neste contexto afirmando uma posição contra-

hegemônica no sentido Boaventuriano do termo. Identificamos o teatro de Boal com as

“Epistemologias do Sul”, com os saberes produzidos e invisibilizados por se oporem a

colonialidade do poder, à relação de exploração e aos padrões universais do capitalismo

eurocentrado. Trata-se de um método à serviço da luta de libertação dos grupos sociais

55

oprimidos, indo contra a lógica do mercado, para a qual a dignidade e mesmo a sobrevivência do

ser humano deixam de ser valor central.

Para Boaventura e Menezes (2010)

o mundo não pode se contentar com breves resumos de si próprio, mesmo sabendo que a “versão

completa e integral” é impossível. A energia deve concentrar-se na valorização da diversidade dos saberes

para que a intencionalidade e a inteligibilidade das práticas sociais sejam a mais ampla e democrática

(SANTOS e MENEZES, 2010, p. 26).

Boal valoriza a pluralidade cultural; seu método garante a fala daqueles que são

silenciados sensível e simbolicamente. Afirma: “Culturas são campos de batalha: temos que

combater tudo que nos leve à subserviência e à passiva aceitação da opressão, em todas as

culturas, inclusive nossas, naquilo que têm de ruim e perverso” (BOAL, 2009, p. 38). Nesse

sentido, investigamos em nossos estudos as relações do Teatro do Oprimido com a educação,

buscando compreender, em que medida, este método corrobora com uma prática democrática,

fundada na equidade de direitos e na diversidade; em que medida promove a conscientização

política dos participantes com engajamento em ações concretas pela transformação social.

III.2. A Educação do Campo e o Teatro do Oprimido

A educação rural é motivo de interesse e preocupação, desde o início do século passado

no país, pelos defensores da ordem pública. Segundo Paiva (1973), essa luta uniu, inclusive,

agraristas e industrialistas preocupados com a migração do meio rural e o inchaço das cidades.

Em 1929, a III Conferência Nacional de Educação tratou especificamente deste assunto e, após a

Revolução de 30 ela ganhou força com o apoio do governo. Para o novo governo era preciso

promover a educação, sanear o interior, garantir a volta aos campos e a permanência da

população no meio rural.

Neste período, no entanto, a preocupação maior não é com a alfabetização da população

do país, como em épocas posteriores, mas com a criação de escolas. “Quando em 1933 Vargas se

manifestava contra as campanhas alfabetizadoras, o fazia em nome da educação rural.” (PAIVA,

1973, p.128). Um discurso do presidente transcrito pela autora afirma:

Há profunda diferença entre ensinar a ler e educar. [...] A leitura é ponto inicial de instrução, e essa,

propriamente, só é completa quando se refere à inteligência e à atividade. (...) A par da instrução, a

educação: dar ao sertanejo, quase abandonado a si mesmo, a consciência de seus direitos e deveres;

fortalecer-lhe a alma (...), enrijar-lhe o físico pela higiene e pelo trabalho (...) (para isso) é preciso

56

criar escolas. Não as criar, porém, segundo um modelo rígido aplicável ao país inteiro. De acordo

com as tendências de seus habitantes devemos ministrar os tipos de ensino que lhes convém: nos

centros urbanos, populosos e industriais – o técnico-profissional – (...); no interior – o rural e

agrícola. (VARGAS, apud PAIVA, 1973, p.128).

Nesse período fundaram-se diferentes associações visando o desenvolvimento da

educação rural, entre elas a Sociedade Brasileira de Educação Rural, em 1937, preocupada

também em estudar e difundir o folclore e as artes rurais. Os profissionais da educação debatiam

os meios de difundir as escolas fixas e propiciar escolas itinerantes nos meios menos populosos,

“dentro dos padrões de qualidade reivindicados pela escola renovada” (PAIVA,1973, p. 129).

Cogitou-se a criação de escolas normais rurais e uma cadeira de ensino rural chegou a ser

incorporada ao currículo da escola normal de Goiás.

Muitas missões educacionais associavam humanitarismo, divulgação sanitária, difusão

cultural com um cunho assistencialista e de modo superficial. Em Minas Gerais, por exemplo, no

governo de Benedito Valadares, os vagões que transportavam equipes de profissionais para

prestar assistência aos moradores das margens de linhas férreas, ficaram conhecidos como o

Trem da Alegria, com ações rápidas e pontuais.

O Estado Novo manteve a direção de dar ao campo as escolas de ensino elementar e, às

cidades, a educação técnico-profissional.

Mas a estratégia educacional, além dos objetivos de capacitação de mão-de-obra e democratização

do ensino elementar, visava mais claramente a defesa da ordem social. Diminuído o prestígio dos

renovadores, volta a educação a ser pensada em conexão com os demais problemas da sociedade.

Antes, como instrumento para recomposição do poder político; agora, como fator capaz de contribuir

para a sedimentação desse poder recomposto, como instrumento de difusão ideológica. (PAIVA,

1973, p.131).

Como aparelho de difusão ideológica, a rede educacional duplicou-se entre 1932 e 1947.

Qualitativamente, porém, especialmente no meio rural, configurava-se a falta de profissionais

qualificados o que determinava, em muitos casos, a necessária interrupção dos estudos antes dos

quatro anos previstos para o ensino elementar, por falta de professor para prosseguir.

Em 1942 o VIII Congresso Brasileiro de Educação reforça a necessidade de

investimentos na escolarização rural. A redemocratização anunciada em 1943 possibilitou, nos

anos subsequentes, mobilizações em torno da educação de adultos. Em meados de 1947 foi

lançada, pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), uma Campanha de Educação

de Adolescentes e Adultos (CEAA), contando com recursos advindos da regulamentação do

57

Fundo Nacional do Ensino Primário (FNEP), visando preparar mão de obra alfabetizada nas

cidades, penetrar no campo e integrar imigrantes e seus descendentes no sul do país.

Data também de meados da década de 1940 a criação da Comissão Brasileiro-Americana

de Educação das Populações Rurais (CBAR), com objetivo de implantar projetos educacionais

no meio rural, mediante a criação de Centro de Treinamentos para professores, realização de

debates e seminários nas chamadas Semanas Ruralistas e implantação de Clubes Agrícolas e de

Conselhos Comunitários Rurais. (LEITE, 1996).

Neste período a educação foi considerada como fator de Segurança Nacional, como

exigência de desenvolvimento comunitário-social e corresponsável no processo de

desenvolvimento econômico do país. “Estipuladas essas bases, o Ministério da Agricultura do

Brasil e a Inter-American Education Fundation Inc, representando o governo norte-americano,

estabeleceram as proposições fundamentais do convênio, permitindo a criação e instalação das

Missões Rurais” (LEITE, 1996, p. 66).

Nesse sentido Paiva (1973) afirma sobre a CEAA:

Entretanto, no momento em que a Campanha pretende aprofundar sua atuação – e após ter recebido

as influências do Seminário Interamericano – ela parte para um programa de missões rurais no

interior. A nova programação, entretanto, transforma-se num programa independente no qual

predomina a metodologia do desenvolvimento comunitário, a ser desenvolvida no meio rural.

(PAIVA, 1973, p.177).

Em 1948, foi criada a Associação de Crédito e Assistência Rural (ACAR), patrocinada

pela American International Association for Economic and Social Development (AIA), “embrião

da Associação Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (ABCAR), que foi criada em

21 de junho de 1956 e estava ‘incumbida’ de coordenar programas de extensão e captar recursos

técnicos e financeiros.” (CALAZANS, 1993, p. 23).

O Programa de Extensão Rural assumia os objetivos de combater as doenças, a

desnutrição, a ignorância, o isolamento social e as carências em geral atribuídas aos cidadãos do

campo. Contendo características de “ensino informal (fora da escola), o trabalho extensionista se

propunha como diferenciado ou até mesmo incompatível com o caráter centralizado e curricular

do ensino escolar.” Sua ação centrava-se na família rural, buscando convencer seus integrantes a

“usarem recursos técnicos na produção para conseguirem uma maior produtividade e

consequentemente o bem-estar social.” (FONSECA, 1985, p. 91).

58

Segundo Leite (1996) o programa apresentava “um modelo de educação e de organização

sócio-produtiva, que permitia a proliferação de um tipo de escolaridade informal cujos princípios

perpetuavam a visão tradicional colonialista-exploratória [...] com uma rotulação liberal

moderna: desenvolvimento agrário.” (LEITE, 1996, p.68). Nesse sentido, este autor denuncia o

descaso governamental sobre a escolarização formal no meio rural, permitindo a ascensão de um

modelo educacional informal, com o patrocínio de empresas estrangeiras de bases capitalistas,

que não consideravam “a estrutura social campestre, sua organização e formas de

trabalho/produção e, também, as modalidades de participação/integração do rurícola com o

contexto urbano.” (LEITE, 1996, p.69).

A criação da Campanha Nacional de Educação Rural (CNER), em 1952, e do Serviço

Social Rural (SSR), em 1955, não trouxeram novas concepções sobre a proposta da educação

rural, limitando-se a repetição de fórmulas tradicionais de dominação, com uma pedagogia

extensionista, centrada na ideologia do desenvolvimento comunitário, desconsiderando as

especificidades dos grupos campesinos, com suas contradições e aspectos integradores.

Neste período, a Campanha Nacional de Educação Rural (CNER) e o Instituto Nacional

de Estudos Pedagógicos (INEP) ofereceram formação para professores leigos; no entanto, o

problema da qualificação profissional persistiu nas décadas posteriores. Segundo Paiva (1973), o

Censo Escolar de 1964 indicava 44,2% dos professores do ensino elementar sem qualificação

para a docência.

Leite (1996) considera a década de 1950 como época de crise na educação, considerando

a longa discussão em torno da LDBEN (Lei no 4.024, de 20 de dezembro de 1961), que se

prolongara desde 1948. No entanto, ressalta que um importante movimento de luta pelos direitos

dos trabalhadores rurais ganhou força sob a liderança de Francisco Julião, além de inúmeras

ações pastorais de bispos católicos engajados numa visão socialista da prática cristã. Os trabalhos

das Ligas Camponesas e dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais garantiram sustentação

ideológica aos movimentos de educação e cultura popular que eclodiram no início da década de

1960, entre eles o CPC e o MEB, já citados anteriormente.

Nesse sentido, Paiva (1973) afirma que no período posterior ao do reconhecimento

público da falência das campanhas de massa promovidas pelo Departamento Nacional de

Educação (DNE) apresenta a maior mobilização em torno da educação de adultos no país.

59

As condições políticas brasileiras após o suicídio de Vargas estimulavam o livre debate de ideias e a

participação política, e seus reflexos no campo educacional atingiram especialmente aquela área

educativa que mais imediatamente poderia concorrer para novas mudanças no panorama político,

através da formação de novos contingentes eleitorais. Durante o governo Kubitschek vive-se um

período de relativa liberdade de ideias e de euforia nacionalista; a ênfase recebida pelo processo de

industrialização na política econômica do governo estimula a participação dos intelectuais na

teorização do “nacionalismo desenvolvimentista”. Este nacionalismo de elite da segunda metade da

década dos 50, entretanto, irá se transformando à medida em que nos aproximamos dos anos 60. A

partir de princípios de 1959 cresce a oposição ao governo que, em meados desse mesmo ano, rompe

com o Fundo Monetário Internacional, preparando-se para enfrentar as eleições de 60 a partir de uma

postura nacionalista mais aparente. Radicaliza-se progressivamente o processo político; o

nacionalismo ultrapassa os limites da elite e acompanha o processo de despertamento das massas no

campo e nas cidades. Levanta-se o problema do voto do analfabeto e da representatividade do

sistema, em face dos elevados índices de analfabetismo que condicionava um eleitorado restrito.

(PAIVA, 1973, p.203).

A Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo (CNEA) foi criada, em 1958, a

partir de uma nova etapa na educação de adultos no país, reconhecendo a ineficácia das

campanhas anteriores e levantando uma grande preocupação com os métodos. Sua importância,

além da influência sobre muitos programas de educação surgidos posteriormente no país, está no

anúncio de uma nova fase na história educativa: “a da tecnificação do campo da educação, não

apenas no plano propriamente pedagógico, mas também no sentido mais geral, de estudo dos

problemas educativos em sua ligação com a sociedade e de planejamento educacional.” (PAIVA,

1973, p.221).

No início da década de 1960, como expresso no segundo capítulo deste trabalho,

eclodiram os movimentos ligados à promoção da cultura e da educação popular. Mesmo antes da

posse de Jânio Quadros, uma carta dirigida ao presidente eleito, datada de 11 de novembro de

1960, propunha a criação de um movimento de educação sob a responsabilidade da

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que se efetivou com o MEB.

No entanto, a educação de adultos ganhou força após a conturbada posse de João Goulart,

com a união da esquerda em torno das reformas de base, o fortalecimento das ideias nacionalistas

em meio à efervescência político ideológica e a oposição aos militares que o consideravam um

agitador dos meios operários. (Paiva, 1973). Porém, as promissoras propostas para a educação

pautadas no governo Jango foram severamente interrompidas pelo Golpe de 1964. Dentre os

movimentos de educação e cultura popular, o MEB (Movimento de Educação de Base) foi o

único que sobreviveu, sob a pena de uma grande revisão em sua metodologia e orientação, com o

60

fechamento de muitas de suas escolas radiofônicas, extinguindo-se em 1970, incorporado ao

programa nacional lançado pelo governo neste ano.

No contexto da ditadura militar

constatamos completo abandono do ensino formal do campo, por parte dos órgãos governamentais e

também a penetração incisiva da Extensão Rural e sua ideologia, substituindo a professora leiga,

despreparada, recrutada no local, pelo “técnico”e pela ëxtensionista”, cujos vencimentos eram

subsidiados por entidades como a Inter-American Foundation ou pela Fundação Rockfeller. (LEITE,

1996, p.82).

A lei no 5.379, de 15 de dezembro de 1967, criou o Movimento Brasileiro de Educação

(MOBRAL), que se desenvolveu sem sucesso na tarefa de erradicar o analfabetismo no país. As

leis no 5.540/68 e 5.692/71 refletiram a ideologia político-militar do correspondente período de

suas promulgações, ao tratarem da reforma do ensino superior e da estruturação do ensino

fundamental e secundarista, respectivamente.

Coroando um processo que há muito vem se concretizando, a LDB/71 não conseguiu suscitar entre

os educadores brasileiros e demais pessoas ligadas à educação, um questionamento ou um

levantamento de propostas para a educação rural e, nem mesmo, de cogitar possíveis

direcionamentos para uma política educacional destinada, exclusivamente, aos grupos campesinos.

(LEITE, 1996, p. 91).

O III Plano Setorial de Educação, Cultura e Desporto (PSECD) propôs a expansão do

ensino fundamental no campo e criou o Programa Nacional de Ações Sócio-Educativas e

Culturais para o meio rural (PRONASEC). Nos estados nordestinos instalou-se o EDURURAL,

com vigência entre 1980 a 1985. Barreto (1985) avaliou que:

no nordeste, e em particular na área rural em que se situam os programas de educação rural, tem

mais o objetivo de diminuir tensões sociais geradas pela pobreza no campo do que propriamente de

enfrentar e resolver de modo satisfatório a questão do analfabetismo e o baixo nível de escolarização

da região, ou de serem instrumentos de um modelo alternativo de desenvolvimento, tal como

propugnam as teses que fundamentam os textos básicos que delineiam a atual política de ensino no

país. (BARRETO, 1985, p.149).

A ditadura encerrou-se em 1985, consolidando a incorporação da educação rural ao

conjunto da educação brasileira, sob um planejamento geral que excluía a possibilidade de

políticas específicas para os grupos campesinos. O processo cultural rural foi subordinado à

cultura urbana e aos mecanismos de controle ideológico do Estado Militar. Sem alocação de

recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas rurais tornaram-se responsabilidade dos

61

seus respectivos municípios e as atividades de profissionalização atendiam as exigências do

mercado urbano-industrial.

A par de todo este contexto educacional no meio rural brasileiro, o Movimento de

Educação do Campo se insere de modo específico nas lutas pelo direito à educação pública,

gratuita e de qualidade em nosso país, pautando as demandas próprias dos povos do campo,

dando visibilidade e fortalecendo seus modos de produção de vida, em processos de resistência e

emancipação.

Associada às organizações e aos movimentos sociais do campo, a Educação do Campo

articula-se às lutas pela terra, reivindicando o direito a uma educação pensada a partir do

contexto do campo, com a participação dos seus sujeitos, vinculada a sua forma de vida, sua

organização do trabalho, relação com o tempo, valores, saberes, memórias, enfim, considerando

sua cultura específica e suas necessidades humanas e sociais.

O principal berço de origem é a luta dos trabalhadores rurais sem terra que, desde o início da década

de 1980 reivindicam escola pública em cada novo acampamento ou assentamento da Reforma

Agrária. A partir da segunda metade da década de 1990, notadamente o Movimento Sem Terra

(MST) e, pouco mais tarde, as organizações sindicais vinculadas à Confederação Nacional dos

Trabalhadores Rurais (CONTAG), bem como outras organizações e movimentos sociais, fazem da

educação escolar uma questão destacada em suas pautas. Com a entrada em cena de setores de

universidades públicas, dinamizam-se ainda mais os debates acadêmicos, pesquisas e publicações,

embates jurídicos e públicos, gerando-se, então, o “Movimento Nacional de Educação do Campo”.

(MUNARIM, 2011, p. 10).

O Movimento Nacional de Educação do Campo denuncia o descaso com a educação

pública no país que se vincula a um projeto dominante de sociedade, articulado com os atuais

modos de produção capitalista, que promovem a crescente e indiscriminada industrialização dos

processos de produção no campo, favorecendo os latifúndios e a acentuação das desigualdades

sociais, exacerba a violência e criminaliza os movimentos sociais populares. Ao denunciar esse

estado de coisas, o Movimento da Educação do Campo coaduna com um projeto educacional e

societário de sentido contra-hegemônico para o Brasil.

O termo Educação do Campo contrapõe-se semântica e ideologicamente a Educação

Rural, pautando a superação dos seus pressupostos teóricos e políticos. “Supostamente contrária

à essência da Educação Rural, a nova concepção reivindica o sentido de educação universal e, ao

mesmo tempo, voltada à construção de autonomia e respeito às identidades dos povos do

campo.” (MUNARIM, 2011, p. 11).

62

Por isso pauta-se uma Educação do Campo e não no Campo ou para o Campo.

As preposições para, no e do campo, aparentemente inocentes, na realidade expressam, na história

da educação dos homens e mulheres do campo, o vetor entre processos educativos alienadores e

mantenedores da ordem do capital, e processos educativos que pautam o horizonte da emancipação

humana e das formas sociais que cindem o gênero humano. [...]

Educação para o campo e no campo expressam as concepções e políticas do Estado, ao longo de

nossa história, que se alinham à perspectiva da educação como extensão ou na perspectiva do

ruralismo pedagógico. Assim, educação escolar para o campo consiste em estender modelos,

conteúdos e métodos pedagógicos planejados de forma centralizada e autoritária, ignorando a

especificidade e particularidade dos processos sociais produtivos, simbólicos e culturais da vida do

campo.

Por outro lado, educação no campo mantém o sentido extensionista e cresce-lhe a dimensão do

localismo e do particularismo. Trata-se da visão de que as crianças, jovens e adultos do campo estão

destinados a uma educação menor, destinada às operações simples do trabalho manual e também

com a perspectiva de que permaneceriam para sempre no campo. (FRIGOTTO, 2011, p. 35).

Embora o sentido da expressão no campo possa abarcar, também, o lugar de

concretização desta educação, garantido o direito das pessoas ao seu acesso preferencialmente no

local onde moram, sem necessidade de longos deslocamentos para onde se agrega um maior

número de pessoas, normalmente, os centros urbanos dos municípios, o termo do campo

compreende este significado, agregando o valor de pertencimento. “Na educação e pedagogia do

campo, parte-se da particularidade e singularidade dadas pela realidade de homens e mulheres

que produzem sua vida no campo.” (FRIGOTTO, 2011, p.36).

Nesta nova concepção de educação o binômio campo-cidade adquire sentido de

complementaridade, reconhecendo as diferenças entre esses dois meios de modo horizontal, com

interdependência, uma vez que o urbano não vive sem o campo e vice-versa. A Educação do

Campo contrapõe-se tanto ao ruralismo como ao urbanocentrismo, pautando o reconhecimento

da diversidade, não em termos de menor ou maior valor, mas promovendo a visibilidade e

fortalecendo a luta pelos direitos dos sujeitos do campo.

Caldart (2008) aponta as características de negatividade, positividade e superação

concernente à Educação do Campo. Negatividade no sentido dos valores associados aos seus

sujeitos, concebidos como atrasados, inferiores, de segunda categoria, com direito à educação

restrita ao acesso escolar, tendo seus conhecimentos desprezados como ignorância e cujo destino

pode ser a miséria. A esses valores sobrepõem-se denúncia e resistência; denúncia que combina

apontamentos e práticas concretas do que fazer; resistência que não é espera passiva, mas

63

positividade, com propostas para as políticas públicas, a educação, as organizações comunitárias,

as escolas, a produção. A Educação do Campo enquanto superação anuncia um novo projeto para

a sociedade, para a educação e para a escola, com uma nova concepção de campo e das relações

deste com a cidade, na perspectiva da emancipação humana.

As estatísticas oficiais confirmam a necessidade de se implementar e efetivar uma

educação escolar que atenda, de fato, aos moradores do campo, garantindo seus direitos à

educação. Em comparação com o meio urbano, as estatísticas do campo revelam os mais baixos

índices no que tange o acesso à escola, o nivelamento série-idade, o contingente de pessoas

alfabetizadas e que concluíram o ensino fundamental e médio, a qualificação dos seus

profissionais. O cenário da Educação do Campo revela ainda a dificuldade quanto ao

deslocamento para as escolas e um referencial urbano nos currículos e modo de funcionamento

da grande maioria dos seus estabelecimentos de ensino6.

As propostas metodológicas da Educação do Campo vão ao encontro da Filosofia de

Educação de Paulo Freire. Para Frigotto (2011), “nenhum método pedagógico será efetivo se não

atingir o mundo de preocupação, de necessidade e os saberes e experiências que as crianças,

jovens e adultos trazem do aprendizado na vida para o espaço escolar.” (FRIGOTTO, 2011,

p.38). E no processo de crítica à atual hegemonia cultural, o desafio “torna-se mais complexo se

não nos dermos conta de que somos herdeiros de uma cultura escravocrata, autoritária e repleta

de preconceitos vinculados ao núcleo constituinte das sociedades de classe”. (FRIGOTTO, 2011,

p. 39).

Os fundamentos do Teatro do Oprimido coadunam-se com a luta da Educação do Campo,

com os oprimidos do Campo na atualidade. Seu método se revela útil, podendo contribuir, por

meio do diálogo, expressividade e visibilidade artística-crítica dos temas do campesinato, para

uma maior elucidação, tratamento e luta coletiva pelos interesses oprimidos, fortalecendo a

politização da educação no sentido de transformação da sociedade com a superação da situação

de opressão.

6 Dados estatísticos com gráficos dessas desigualdades são apresentados em Panorama da Educação do Campo. In: MUNARIM, Antônio,

BELTRAME, Sônia, CONDE, Soraya e PIXER, Zilma (Orgs). Educação do Campo: reflexões e perspectivas. 2ª Ed. Editora Insular.

Florianópolis, 2011. Para os dados relativos a Educação do Campo em Minas Gerais indicamos SILVA, Lurdes Helena da. Cenários da

Educação no Meio Rural de Minas Gerais. Editora CRV. Curitiba, 2009.

64

Arte é forma de conhecimento, pois envolve a história, a sociedade, a vida. Não está apenas ligada a

idéia de prazer estético, contemplação passiva, mas ao contrário, é dinâmica e representa trabalho já

que possui forças materiais e produtivas que impulsionam as relações históricas e sociais e levam o

homem à compreensão de si mesmo e da sociedade. (CAVASSIN, 2008, p.49).

O Teatro do Oprimido efetiva uma educação estética, esta concebida em sentido amplo,

abarcando diferentes aspectos relacionados à dimensão sensível do humano. Som, palavra e

imagem articulam-se de infinitas formas, ampliando as conexões cognitivas e as possibilidades

de conhecimento, especialmente por estarem implicadas num processo de criação, com

aguçamento da percepção, estímulo à criatividade e reflexão sobre o mundo. “Arte é uma forma

de conhecimento, portanto o artista se obriga a interpretar a realidade, tornando-a inteligível.

Porém, se ao invés de fazê-lo, apenas a reproduz, não estará conhecendo nem dando a conhecer.”

(BOAL, 2005, p. 261).

Em primeiro lugar o teatro trabalha com a idéia de que seu essencial instrumento é o próprio ser – a

pessoa. O corpo, a fala, a expressão, a consciência de si mesmo é preciso ser desenvolvida. Assim,

um trabalho no teatro tem início a partir do corpo físico e todas as suas possibilidades, é ele que irá

atuar não só no palco, mas em sua vida. É o seu veículo, que lhe possibilitará andar pelo mundo. O

olhar volta-se para o concreto de si mesmo, a densidade do corpo, sua materialidade, como se

movimenta, a função das articulações, o contato com o chão onde os pés pisam e as possibilidades

desses braços que estão soltos e podem gesticular. (SERPA, 2006, p58).

Criticando o uso hegemônico do teatro, que o reduz a instância única de entretenimento, e

denunciando sua prática nas escolas públicas, realizado em festinhas comemorativas de datas

capitalistas e religiosas como Dia das Mães, Páscoa e Natal, “para agradar pais e diretores”,

Serpa (2006) pauta o teatro como instrumento educativo sob uma perspectiva crítica.

As técnicas teatrais deveriam estar em sala de aula, estimulando o aluno com a vontade de aprender,

desenvolvendo a capacidade criativa, o uso da palavra, da comunicação e levando o aluno a posições

críticas sobre o passado e o presente, dando-lhe oportunidades de construir um futuro, consciente de

suas escolhas e de seu papel na sociedade. (SERPA, 2006, p.71 e 72)

Nesse sentido, a prática artístico-teatral pode inserir-se nas escolas do campo construindo

alternativas para ampliar a integração da instituição à história, à vida e à cultura, sempre

dinâmicas, das pessoas que lá vivem e trabalham.

Em diferentes partes do mundo o Teatro do Oprimido é utilizado na luta dos povos do

campo. Uma experiência com camponeses na Índia, retratada no documentário “JANA

SANSCRITI: um teatro em campanha” revela um movimento com mais de vinte cinco anos de

luta. Trabalhando sobre diferentes temáticas político-sociais como o direito ao voto e o povo

65

como massa de manobra político-partidária, as relações de gênero e a violência contra a mulher,

o alcoolismo e o tráfico de bebidas alcoólicas nos municípios, entre outras, o Jana Sanskriti

promove a formação de grupos de Teatro do Oprimido em vilarejos na índia, garantindo que a

população se aproprie de meios de produção artística, de modo crítico, fortalecendo o

engajamento comunitário em torno dos problemas de cada grupo oprimido e a luta por direitos

na Índia.

Depoimentos de integrantes deste Movimento revelam a transformação de suas vidas,

mudança de valores, ampliação da visão política do mundo, iniciando com o entorno a sua volta.

“Quando entrei no Jana Sanskriti eu tinha 14 anos. Eu não entendia nada de política. Só sabia

que as pessoas podiam votar. Não somos de um partido, mas fazemos política. Pois toda ação

realizada é ação política. A partir do momento em que temos um objetivo, toda ação é política.

Qual é o meu objetivo? Que os camponeses precisam saber o que fazem.Que não devem

obedecer cegamente às ordens, e não depender de ninguém. Não devem ter complexo de

inferioridade. Nós lutamos contra isso.”

Numa proposta diferenciada, o Grupo de Teatro do Oprimido de Maputo (GTO-Maputo),

em Moçambique, utiliza há mais de dez anos, as técnicas do Teatro do Oprimido, num país onde

um número superior a setenta e cinco por cento da população é de analfabetos e a contaminação

pelo vírus HIV cresce diariamente. Como meio de atingir principalmente a população não

alfabetizada, num programa de promoção da saúde, as peças de Teatro-fórum apresentadas

discutem as relações sexuais, entre homens e mulheres, o uso de preservativo, a prática da

poligamia e os meios de contaminação pelo vírus da AIDS.

No Brasil, uma parceria do CTO-Rio com o MST Nacional, através do Grupo Patativa do

Assaré, em 2001, propiciou uma capacitação para lideranças deste movimento. Os

multiplicadores do Teatro do Oprimido oriundos desta e de outras formações atuam em

acampamentos e assentamentos, formando grupos e produzindo espetáculos de Teatro-Fórum

que são apresentados no campo e nos centros urbanos. Um militante do MST, historiador e

multiplicador em Alagoas afirma: “Em nossa organização a arte está a serviço da luta, a arte só

faz sentido se ela ressaltar o ser humano, se ela for mais um instrumento para que as pessoas se

descubram protagonistas de suas vidas, ou seja, sujeitos da história”. (PEREIRA, 2008, p.47).

O Teatro do Oprimido, nesta pesquisa, se insere em um município da Região

Metropolitana de Belo Horizonte, cuja principal atividade econômica não é agrária, ou pecuária,

66

mas mineradora. Há, portanto, uma forte marca da atuação de empresas multinacionais como

empregadora de mão de obra, cuja atividade, porém, degrada o meio ambiente no considerado o

quadrilátero ferrífero, que é também um quadrilátero aquífero, em Minas Gerais. No que tange à

escola, Munarim (2011) esclarece:

São definidas como escolas do campo não somente aquelas que têm sua sede no espaço demográfico

classificado pelo IBGE como rural, mas também aquela que, mesmo situadas em perímetros

considerados formalmente como urbanos, identificam-se com o campo. Em outros termos, a

identidade da escola do campo é definida não exclusivamente pela sua situação especial não urbana,

mas prioritariamente pela cultura, relações sociais, ambientais e de trabalho dos sujeitos do campo

que a frequentam. (MUNARIM, 2011, p.12).

Antes de adentrar no cenário da pesquisa, porém, para conhecer seus sujeitos e o

desenvolvimento das oficinas teatrais, uma análise sobre o desenvolvimento do curinga no

Teatro do Oprimido será apresentada para reflexão sobre a dramaturgia do Teatro-Fórum e

considerações sobre o Professor-Curinga, tendo em vista discussões posteriores presentes neste

texto.

III.3. O Curinga, seu desenvolvimento e desdobramentos: reflexões sobre a dramaturgia do

Teatro Fórum e o Professor-curinga.

A figura do Curinga no Teatro do Oprimido tem suas origens com as experiências de

Boal ainda no Teatro de Arena. Boal (2005) descreve o Sistema Coringa, iniciado na montagem

de “Arena conta Zumbi”, na década de 60 e, posteriormente, em “Arena conta Tiradentes”,

quando o Teatro de Arena encontrava-se na sua etapa dos musicais. “Zumbi, primeira peça da

série “Arena Conta...” desordenou o teatro. Para nós, sua principal missão foi a de criar o

necessário caos, antes de iniciarmos, com Tiradentes, a etapa de proposição de um novo sistema.

A sadia desordem foi provocada por quatro técnicas principais...” (BOAL, 2005, p. 256).

As técnicas as quais se refere Boal são: primeiro, a desvinculação ator-personagem,

podendo um personagem ser representado por diversos atores na mesma peça e, de outro modo,

um mesmo ator representar diferentes personagens; segundo, a narração conjunta propiciada por

esse agrupamento de atores numa interpretação coletiva para contarem uma história; terceiro, o

ecletismo de gênero e estilo, incluindo, no mesmo espetáculo, cenas melodramáticas e de

chanchada circense, nos estilos simbolista, realista, surrealista e expressionista; e quarto, a

utilização da música, introduzindo e intercalando cenas, preparando a platéia, “a curto prazo,

67

ludicamente, para receber textos simplificados que só poderão ser absolvidos dentro da

experiência razão-música.” (BOAL, 2005, p. 260).

O Sistema Coringa assim iniciado qualificava uma poética do oprimido, pois

possibilitava a não apropriação de um personagem por parte do ator, permitindo que todos os

atores representassem todos os personagens, e garantia, também, uma narração coletiva da

história. Essa representação de um personagem por vários atores era assegurada por meio de uma

“máscara”, não o objeto, mas um conjunto gestual associado a marcas psicofísicas e históricas

que caracterizava um determinado personagem. Os atores podiam representar, indiferentemente,

papéis masculinos e femininos, salvo no caso do sexo ser determinante na ação dramática.

Já em “Arena conta Tiradentes” os atores assumiam funções dentro da estrutura do texto.

A primeira função é protagônica, a única que vincula ator e personagem do início ao fim do

espetáculo, sendo a função de protagonista desempenhada por um único ator. O protagonista

assenta-se na realidade concreta, fotográfica, sob os limites de um ser humano real. A segunda

função é o próprio Coringa, de realidade mágica, onisciente, polimorfo, polivalente, atuando em

cena como um mestre de cerimônias, diretor de cena, contra-regra, juiz, conferencista, podendo

assumir outras funções e, inclusive, substituir o protagonista, nos impedimentos deste devido sua

realidade naturalista.

Importante salientar que o caráter mágico do coringa deve-se à sua polivalência, à

possibilidade de assumir diferentes papéis e funções, em oposição ao protagonista de realidade

naturalista. Pois no que tange a análise do texto e sua revelação para a platéia, o coringa se

aproxima do espectador.

A camuflagem acaba criando um “tipo” de personagem, muito mais próxima dos demais

personagens do que da platéia: “Coros”, “narradores”, etc., são habitantes da fábula e não da vida

social dos espectadores. Propomos o Coringa contemporâneo e vizinho do expectador. Para isso, é

necessário o esfriamento de suas “Explicações”; é necessário o seu afastamento dos demais

personagens, é necessária a sua aproximação aos espectadores. (BOAL, 2005, p. 266).

Retomando as funções da estrutura do elenco no Sistema Coringa, todos os demais atores

são divididos em dois Coros, sem número fixo de personagens, cada um, no entanto, com o seu

Corifeu. O coro Deuteragonista apóia o protagonista e o Antagonista se opõe a este. Há ainda a

Orquestra Coral, composta por músicos que dão apoio musical ao espetáculo e cantam todos os

Comentários de caráter ilusionístico ou informativo, muitas vezes em conjunto com o Corifeu.

68

Todas as Explicações que são dadas pelo Coringa, também podem se dar com o auxilio do

Corifeu e da Orquestra.

Além dessa estrutura de elenco, o Sistema Coringa apresenta uma estrutura de espetáculo

composta por sete partes principais. São elas: Dedicatória, Explicação, Episódio, Cena,

Comentário, Entrevista e Exortação.

A Dedicatória ocorre sempre no início do espetáculo, podendo ser a alguém ou alguma

coisa, por meio de um texto, uma canção, uma cena, ou ambos. A Explicação, quando

introdutória, apresenta o espetáculo ou um fato importante do dia da apresentação; durante o

espetáculo efetiva uma quebra na ação dramática, proferida em prosa pelo Coringa, como

conferência.

O espetáculo é dividido em Episódios, composto por cenas mais os menos

interdependentes. As Cenas, de pequena magnitude, encerram em si uma variação qualitativa no

desenvolvimento da ação dramática e podem ser dialogadas, cantadas ou a leitura de um poema,

documento ou notícia. Os Comentários, cantados pela Orquestra, pelos Corifeus ou por ambos,

em versos preferencialmente rimados, efetivam a ligação entre as cenas; podem também

enunciar o tempo ou local da ação dramática.

As Entrevistas condicionam-se a eventuais necessidades expositivas e, por isso, não têm

posição estrutural pré-determinada. Sempre que necessário o Coringa paralisa a ação para

entrevistar um determinado personagem, permitindo que ele declare seus sentimentos ou razões.

Por fim, a Exortação no final do espetáculo, com declamação em prosa, canção coletiva ou

ambas, na qual o Coringa estimula a platéia sobre o tema retratado na peça.

Boal fundamenta o Sistema Coringa dentro das etapas de desenvolvimento do Teatro de

Arena, atrelado as necessidades da sociedade da época. Para o autor, esta estrutura básica do

Sistema Coringa deveria ser flexível bastante para adaptar-se à montagem de qualquer peça. “No

Curinga pretende-se propor um sistema permanente de fazer teatro (estrutura de texto e estrutura

de elenco) que inclua em seu bojo todos os instrumentais de todos os estilos ou gêneros”.

(BOAL, 2005, p. 268). “... o sistema é permanente apenas dentro da transitoriedade das técnicas

teatrais. Com ele não se pretendem soluções definitivas de problemas estáticos: pretende-se

apenas tornar o teatro outra vez exeqüível em nosso país. E pretende-se continuar a pensá-lo

útil”. (BOAL, 2005, p.283).

69

A dramaturgia do Teatro-Fórum, desenvolvido posteriormente por Boal e inserido no

conjunto de técnicas que compõem o Teatro do Oprimido, guarda algumas semelhanças com as

estruturas do Sistema Coringa.

Na estrutura do elenco percebemos o Protagonista, representado por um único ator do

início ao fim, atuando de modo verossímil, naturalisticamente, a semelhança de um ser humano

real, sempre com a consciência de personagem, e não do ator, promovendo a empatia com a

platéia. Seu figurino, no entanto, não precisa ser extremamente realista, abarcando adereços

teatrais simbólicos, de proporções exageradas, que promovam magnitude em determinado

aspecto relevante da caracterização daquele personagem.

O Coringa mantém sua função onisciente e polivalente no espetáculo, no entanto ele não

substitui nenhum outro personagem, mantendo-se como mestre de cerimônias, contra-regra,

diretor, editor, conferencista, exortador. O coringa promove as explicações iniciais acerca dos

propósitos do Teatro-Fórum, apresenta o espetáculo e o elenco, pode declamar uma dedicatória

ou anunciar fatos que se relacionam com o tema da peça. O coringa tece os comentários,

entrevista os personagens quando necessário e, ao final do espetáculo, estimula a platéia sobre o

tema da peça e promove, assim, o fórum teatral.

Os demais atores dividem-se nos coros de Antagonistas e Deuteragonista, que não

possuem um número fixo de personagens. A função de Corifeu ganha destaque entre os

antagonistas, pois o esquema básico da dramaturgia do Teatro-Fórum opõe necessariamente um

Antagonista ao Protagonista. A Orquestra pode ser composta por músicos, embora muitos

espetáculos não apresentem essa estrutura de modo separado, sendo as músicas cantadas e os

instrumentos tocados pelos próprios atores, que assumem, portanto, a função de Orquestra.

Quanto à estrutura do texto, o Teatro-Fórum pode ou não apresentar uma dedicatória

inicial. As Explicações ocorrem no início do espetáculo, raramente no decorrer da peça, e

comumente durante o fórum. A divisão em Episódios não se justifica, em função do tamanho das

peças, geralmente curtas; o texto, porém, é dividido em Cenas que encerram, em si, pelo menos

uma variação qualitativa da ação dramática. Os Comentários não fazem ligação,

necessariamente, de todas as cenas da peça, mas podem estar presentes, de formas variadas, em

versos rimados ou não e situando locais e tempos. As entrevistas são raras, mas podem

acontecer, especialmente durante o fórum, para esclarecimentos de dúvidas sobre as razões dos

70

personagens. A Exortação acontece no final da peça e se prolonga ao longo de todo o fórum

teatral.

A dramaturgia do Teatro-Fórum pode ser esquematizada conforme figura abaixo:

ESQUEMA 2: Dramaturgia do Teatro Fórum

Fonte: Apostila do Projeto Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto, desenvolvido pelo CTO-Rio em parceria com o Governo Federal, em 2007.

A peça inicia-se com uma Contra-preparação, de sentido contrário ao desenrolar da

trama. Neste momento é revelado o desejo da personagem oprimida, sua motivação. O

Protagonista acredita em seus sonhos e tem confiança na sua capacidade de realizá-los. A

empatia com a platéia se estabelece em função do sentido de justiça dos ideais da personagem.

No desenvolvimento da Ação Dramática deflagra-se o conflito entre Protagonista e

Antagonista, com seus respectivos aliados. O conflito é representado de modo objetivo,

apresentando as estratégias utilizadas por ambas as personagens para consolidação dos seus

ideais e expressando, assim, o desejo e a necessidade do grupo em transformar a realidade.

O auge do conflito é denominado Crise Chinesa devido aos dois ideogramas chineses

que, conjuntamente, representam a crise: perigo e oportunidade. Trata-se de um momento de

perigo no conflito, mas também de oportunidade para as personagens. No Teatro-Fórum, porém,

71

o oprimido fracassa, desistindo de lutar pelos seus sonhos. Segue o Desenlace da peça que

necessariamente termina com um final infeliz para o protagonista e seus aliados, possibilitando

que o público se mobilize para entrar em cena e propor alternativas à ação.

As peças de Teatro-Fórum assim constituídas recebem o nome de modelo, por se

configurarem num protótipo da sociedade na qual vivemos; ou ainda contra-modelo, por

apresentarem algo que não se deseja reproduzir. Embora não representado no esquema acima,

muitas peças de Teatro-Fórum trazem, antes da contra-preparação, uma Contextualização,

retratando a conjuntura social na qual o problema apresentado se insere, ganha amparo e

sustentabilidade.

A inclusão de contextualização na dramaturgia do Teatro-Fórum é um desafio estético e uma

necessidade ética e política, que exige do grupo uma compreensão ampliada do problema para a

preparação do modelo. Esse movimento investigativo do micro (situação particular) em direção ao

macro (conjuntura social) foi definido por Boal como ASCESE, exercício fundamental tanto na

preparação do modelo quanto na sessão de Fórum. Para Boal, sem ascese, o Fórum não chega a se

estabelecer plenamente. (SANTOS, Bárbara, 2010, p. 70).

O termo ascese, apesar de possuir um sentido religioso, no Teatro do Oprimido refere-se

à idéia de ascensão, de ascender a um patamar mais elevado, de maior visão. Esse movimento de

ascese busca a ampliação da consciência sobre os fatos sociais, no intuito de favorecer a

transposição de uma consciência ingênua para uma consciência crítica. O debate conduzido pelo

curinga durante o desenvolvimento do Fórum, portanto, deve sempre remeter e propiciar este

movimento de análise do particular e do social, conjuntural.

O termo Curinga, como foi dito no capítulo anterior, é uma alusão à carta do baralho que

assume diferentes funções conforme o jogo. No Teatro do Oprimido ele permanece com função

polivalente, sua atuação, porém, acontece não somente durante um espetáculo, mas também fora

dele.

Augusto Boal batizou o facilitador do teatro do Oprimido (TO) de “Curinga”: artista com função

pedagógica; praticante, estudioso e pesquisador do Método. Trata-se de um especialista em processo

de aprendizagem. Deve ser um conhecedor rigoroso dos fundamentos teóricos, políticos, estéticos e

filosóficos do TO, que, ao mesmo tempo, é sensível às demandas da realidade, sendo capaz de re-

inventar o conhecido, para atender as necessidades das pessoas. Um Curinga deve ser capaz de entrar

em cena e atuar, de ministrar oficinas e cursos teóricos e práticos; de organizar e coordenar grupos

populares; de orientar a produção de espetáculos de Teatro-Fórum (da criação da imagem ao texto

coletivo); de mediar diálogos teatrais em sessões de Fórum e de Teatro Legislativo e de estimular a

efetivação de ações sociais concretas e continuadas. [...] Sua função é diversa e complexa: da

identificação à representação do conflito, até as estratégias que possibilitem a transformação da

72

realidade encenada. [...] Um Curinga precisa ser especialista na diversidade, tendo formação e postura

multidisciplinares, porque a Árvore do TO se alimenta dos conhecimentos humanos para promover

ações concretas. Procurar saber de teatro, cultura, educação, psicologia, ecologia, economia, e do que

mais for possível, associando saber a sensibilidade e bom senso, é uma atitude essencial. (Santos,

Bárbara, 2008, p.75 e 76).

Para possibilitar essa especialização tão diversificada, a qual requer a função do Curinga,

o Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO-Rio), dirigido por Boal até o seu

falecimento, aposta numa formação de longo prazo, contínua, amparada pela atuação prática e

não apenas teórica, e que requer, ainda, um amadurecimento pessoal. Sua estrutura de

funcionamento atualmente comporta praticantes de Teatro do Oprimido atuando como Curinga,

Curinga-Assistente e Curinga-Comunitário.

Os praticantes de Teatro do Oprimido são todas as pessoas envolvidas com o método, em

alguma instância, seja como participante das oficinas, dos grupos comunitários e teatrais, seja

como multiplicador ou Curinga. Os multiplicadores são pessoas que “utilizam o TO como

instrumento de trabalho e de comunicação lúdico e eficaz em sua atuação comunitária, para

dinamizá-la e diversificá-la e para ampliar o seu raio de ação”. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.76).

O Curinga-Comunitário exerce suas funções no âmbito específico do grupo ao qual está

inserido, coordenando-o, ministrando jogos, assessorando os ensaios das peças e mediando os

diálogos teatrais nas apresentações do grupo. Já o Curinga-Assistente assume responsabilidades

específicas nas atividades práticas desenvolvidas por um Curinga, embora não tenha autonomia

para conduzir todo o processo. No CTO-Rio essa experiência funciona como estratégia de

formação, constituindo um estágio supervisionado.

Há uma diferença entre ser Curinga e o ato de curingar, que corresponde ao desempenho

de atividades como ministrar exercícios e jogos (curingar um jogo) e mediar o diálogo teatral nas

sessões de Teatro-Fórum e de Teatro-Legislativo (curingar o fórum). “Curingar não transforma,

necessariamente, um praticante em Curinga mesmo sendo exercício essencial para sua

formação”. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.76).

O curinga exerce uma função de liderança junto aos grupos com os quais trabalha; uma

liderança democrática, que requer o diálogo como base do processo de apropriação artística e

leitura crítica do mundo. O método do TO cria condições para que

o oprimido se aproprie dos meios de produzir teatro e assim amplie suas possibilidades de expressão.

[...] O Curinga auxilia as pessoas a descobrirem suas potencialidades, a se conhecerem melhor, a

73

expressarem suas idéias e buscarem alternativas próprias. Teatro do Oprimido só pode ser

apropriado por quem compartilha generosamente seu saber e sua experiência. Método que só se

aprende ensinando e que só se ensina estando aberto para aprender. (SANTOS, Bárbara, 2008,

p.75).

Nesse sentido o Curinga exerce uma função pedagógica que o assemelha ao educador

freiriano: aprendendo enquanto ensina e ensinando enquanto aprende. O Professor-Curinga

agrega um valor democrático, pautado no diálogo, aos estabelecimentos de ensino que primam

pela hierarquia autoritária. A sua formação generalista aponta em direção a uma escola cujos

conteúdos não sejam trabalhados de modo compartimentado, com professores encerrados em

uma única disciplina, a da sua formação acadêmica.

Santos (2008) afirma que o Curinga não é um detentor de respostas. “Deve ser um

“perguntador”. Deve ser maiêutico: formular perguntas que gerem respostas e que provoquem

novas perguntas. O Curinga não persegue a resposta perfeita, estimula as respostas possíveis que

desenhem a realidade desejada, para torná-la palpável”. (SANTOS, Bárbara, 2008, p.75).

Entretanto, não podemos perder de vista que o Curinga é um ser humano, portanto político, que

se propõe a causa de transformar a realidade no sentido de superação da organização social

opressiva. Também é parte de sua função analisar, criticar, expor suas opiniões como meio de

construir o diálogo e promover o debate junto ao grupo no qual atua. No fórum, utiliza-se de

diferentes estratégias discursivas, reforçando falas, contrapondo argumentos, referendando

situações da encenação, solicitando a opinião da platéia, entre outros, para trazer luz ao debate e

contrapor argumentos contrários aos do grupo.

Nunes (2004) reconhece no Curinga uma figura de poder: “A própria função do curinga, misto

de psicólogo, diretor de teatro, professor e animador cultural, há que ser problematizada. O

curinga é figura de autoridade! O especialismo do multiplicador!” (NUNES, 2004, p.68). Em sua

análise a autora refere-se ao curinga como um porta-voz da instituição teatral, detendo em si o

poder do Teatro do Oprimido que é um misto do poder do teatro com o dos multiplicadores e

dinamizadores de grupo das militâncias políticas e projetos democráticos de cidadania.

A autora, após relatar diversos depoimentos de experiências com o Teatro do Oprimido,

praticadas por diferentes pessoas em áreas variadas, questiona se o alívio trazido com tais

práticas chega a ameaçar o status quo social.

74

Paranhos (2009), por outro viés, analisa uma decisão coletiva, aprovada em uma sessão de

Teatro Legislativo, realizada na I Conferência Internacional de Teatro do Oprimido, em 2009, no

Rio de Janeiro. Para esse autor, a proposta de instalar câmeras nos ônibus como meio de coibir

práticas racistas e/ou autoritárias dos funcionários reforçam uma sociedade de vigilância,

panóptica, sem questionar justamente esse estado de coisas, num meio de transporte público

onde nenhum outro passageiro da peça se manifestou contrário à atitude do motorista, somente a

personagem oprimida.

Algo desta conservação, segundo Nunes (2004) deve-se à forma fórum que é:

a forma de domínio da consciência, onde o juízo/julgamento funciona como uma linha de

segmentaridade dura (podendo flexibilizar-se, mas sem que a coisa mude de natureza). A questão

parece ser a seguinte: como evitar que a clandestinidade transversalizante (visada pela sua proposta)

recaia no ardil do julgamento e seja, efetivamente, abertura de mundos sensíveis capazes de mostrar

quais modulações de vida intensa poderão pulsar ou já estarão pulsando aquém ou além dos juízos

forenses. Igualmente, o quanto ele é capaz de perceber e não atrapalhar quando algum movimento,

alguma variação se dá. (ORLANDI, apud NUNES, 2004, p. 69 e 70).

Paradoxalmente, o fórum não é uma forma muito diferenciada da sala de aula quando o

professor propõe numa dinâmica mais dialogada, com seminários, debates, enfim, mais

“democrática”. O professor mantém-se como figura de autoridade e poder, pontuando o que

convém ou não, valorando e referendando o conveniente para o assunto em pauta.

O desenvolvimento do fórum de teatro, no entanto, tende a ser incomparavelmente mais

dinâmico, irreverente, audacioso, imprevisível, arrojado e divertido que um fórum verbal, pela

própria natureza das improvisações teatrais e, pela transgressão promovida com ingresso da

pessoa em cena. O riso, o clima de irreverência, já é em si um convite para a criação e

agenciamento do novo. No entanto, o curinga é determinante nesse processo, para promover

questões provocadoras e ativadoras da platéia, podendo, no extremo oposto, reduzir a discussão

de modo maniqueísta, retirando do debate potencialidades e riquezas plausíveis de serem

investigadas com a multiplicidade da vida que se apresentada em cena e, assim, amortizar a

discussão e contribuir com a reprodução social.

75

IV. EM CAMPO, NO CAMPO, PELO CAMPO

IV.1. O Município, a escola e a comunidade: caracterizando os locais.

O Município de Itatiaiuçu, situado na Cordilheira do Espinhaço, localiza-se na encosta da

serra que leva o seu nome. Suas terras foram habitadas pelos índios Cataguás e, ainda hoje é

possível encontrar, no meio rural, objetos por eles utilizados como machados de pedra,

cachimbos e potes de barro. Seu nome é de origem Tupi-guarani e significa Pedra (ita) Dentada

(tiaia) Grande (uçu), ou Grande Pedra Denteada7.

O povoamento atual tem sua origem com as expedições Bandeirantes nos sertões em

busca de ouro e pedras preciosas para a Coroa Portuguesa, no século XVII. Foi distrito criado

com a grafia de Itatiaiussu, subordinado primeiramente ao município de Bonfim (em 1850) e,

posteriormente, ao de Itaúna (a partir de 1901), sendo emancipado em 1962.

Prefeitura Municipal de Itatiaiuçu. Casarão do período colonial.

Itatiaiuçu possui 294,65km² de extensão territorial, uma população de 9.9388 habitantes,

sendo 6.231 moradores da área urbana e 3.707 distribuídos nos seus oito povoados rurais. Sua

principal atividade econômica é a mineração, seguida pela produção hortifrutigranjeira e

pecuária de corte e leiteira. Situa-se a 70 quilômetros de Belo Horizonte, nas margens da

Rodovia Fernão Dias (BR-381), que liga os Estados de Minas Gerais e São Paulo, sendo que o

centro do município fica na MG-010.

7 Fonte: Wikipédia.

8 Dados do IBGE, censo 2010.

76

A proximidade com a capital favorece o deslocamento de sua população para este grande

centro e também para outras cidades maiores à beira da Rodovia, como Igarapé, Betim e

Contagem, seja para fins de trabalho ou em busca de serviços e produtos ausentes em Itatiaiuçu.

Esse trânsito de pessoas foi potencializado recentemente pela inserção geográfica do município

na denominada Região Metropolitana de Belo Horizonte (ou Grande BH), adquirindo transporte

metropolitano a custos mais acessíveis. Outra cidade tradicionalmente procurada pela população

de Itatiaiuçu é a vizinha Itaúna (distante 32 quilômetros), para fins de saúde, lazer, compras,

trabalho e também para estudos universitários.

Mirante do Cristo Redentor. Igreja de São Sebastião na praça Antônio Quirino da Silva.

Entre os pontos turísticos da cidade destaca-se o Mirante do Cristo Redentor, a Cachoeira

dos Chaves, o Parque de Exposições João Belo de Andrade e a Praça Antônio Quirino da Silva,

localizada no centro do município, em frente ao prédio sede da Prefeitura.

A Escola Municipal João Marques Machado, situada no bairro Kennedy, funciona nos

três turnos, sendo o matutino e o vespertino com crianças em idade de alfabetização até a quarta

série e o noturno com Educação de Jovens e Adultos (EJA). É a única escola do município que

oferece o Ensino Fundamental noturno, na modalidade EJA, e a prefeitura fornece transporte

escolar em ônibus e/ou vans para estudantes dos povoados e distritos distantes. Esses veículos

também servem aos estudantes da Escola Estadual, que cursam o Ensino Médio na modalidade

regular ou EJA.

Em função de obras na instituição, as aulas estão ocorrendo, temporariamente, nas

instalações do Programa Saúde da família, situado no centro de Itatiaiuçu, a meio quarteirão da

77

Praça Antônio Quirino da Silva. O espaço, por isso, está bastante reduzido, mas as reformas

estão previstas para terminar em outubro de 2011.

À esquerda da entrada observamos o banheiro masculino de estudantes e três salas: na

primeira funciona a Secretaria, com banheiro de funcionários e almoxarifado nos fundos; na

segunda, a Direção, com depósito de materiais atrás e sala de Informática ao lado; a terceira é

uma sala de aula. À direita funciona o Programa de Saúde, com entrada independente, anterior ao

portão da escola. No corredor da entrada observamos, ainda, a caixa d’água e a janela da

biblioteca no final. A biblioteca escolar está funcionando numa sala de aula com mobiliário para

estudantes menores e, à noite, é utilizada como sala dos professores.

Entrada da escola.. Sala da Direção com depósito no fundo.

Sala de informática, ao lado da Direção. Material do teatro entre outros, na Direção. Entrada do Posto de Saúde, junto agrade.

78

No corredor ou pátio central ficam as mesas do refeitório. À esquerda estão a biblioteca,

a cozinha, a dispensa e uma passagem para o corredor dos fundos, onde funcionam três salas de

aulas; à direita observamos a parede do Posto de Saúde e uma escada de acesso para um estreito

corredor com outras quatro salas de aula.

As oficinas de teatro aconteceram na sala ao lado da Direção, onde diariamente são

ministradas as aulas para os adultos em início do processo de alfabetização. A proposta desta sala

surgiu em função da distância em relação às demais turmas e do tipo de atividade, bastante

sonora, com exercícios e jogos corpóreo-teatrais, e foi prontamente aceita. Trata-se de uma sala

com aproximadamente 28m², um quadro verde, um armário e uma estante, carteiras separadas

das cadeiras, com estrutura de metal, algumas com tampo de madeira, outras de fórmica. A

decoração envolve um varal com as letras do alfabeto pendurado ao longo de uma das paredes.

Nos dias de oficina as duas turmas trocam de sala e afastamos as carteiras para um lado,

formando um amplo círculo com as carteiras para as atividades teatrais.

Corredor ou pátio central. Detalhes do final do corredor central.

79

Vista da porta da sala da oficina teatral no fundo, à direita. Sala de aula onde ocorriam as oficinas teatrais.

A comunidade de Pedras de Itatiaiuçu fica próxima a BR-381, à direita da rodovia (no

sentido Belo Horizonte - São Paulo, um pouco depois do distrito de Santa Teresinha de Minas,

este situado nas margens da Rodovia Federal). O acesso ao centro do povoado se faz por uma

estrada de terra, nas mediações do pedágio. No centro da comunidade, distante quatro

quilômetros da rodovia, há uma praça com a Igreja de Santo Antônio.

Ao redor de toda a praça a estrada é calçada com pedras. Na frente da Igreja, à direita,

encontramos o Bar do Sr. Célio e da D. Márcia; na lateral da praça, a E.M. Arminda Evangelista

Pereira, que atende estudantes de todos os níveis do ensino fundamental no período diurno, o

Salão Comunitário Jovelina Maria de Miranda, que funciona como Posto de Saúde durante a

semana e, acima do Salão Comunitário, uma quadra de cimento. Na parte posterior da praça está

o Estádio Municipal Antônio Católico da Silva, com um campo de futebol gramado em ótimas

condições. Um pouco acima, em frente à lateral do campo, uma venda. A estrada que continua

sem calçamento leva à comunidade do Rio São João.

80

Lateral da Igreja, vista da frente do Salão Comunitário. Salão Comunitário Jovelina Maria de Miranda.

Entrada da quadra, Salão Comunitário, Escola e Igreja. Vestiário do Estádio de futebol.

A comunidade de Pedras possui diferentes representantes na Associação de Artesãos de

Itatiaiuçu e, nas margens da rodovia (BR-381), nas proximidades do pedágio, é possível ver

diferentes armações de pau expondo à venda as tapeçarias produzidas pelas artesãs do local.

IV.2. As contradições do processo: um olhar sobre a oficina teatral na escola.

IV.2.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: conhecendo o grupo

A proposta inicial para o trabalho na escola, levada ao conhecimento da Secretaria

Municipal de Educação e da Coordenação escolar, contemplava uma oficina de Teatro do

Oprimido que poderia atender a diferentes públicos, entre estudantes e profissionais da EJA, e

ser realizada com diversos formatos e tempo de duração, em diferentes espaços, conforme

81

conveniência para a instituição. Deveria, no entanto, haver um tempo mínimo de 40 horas para

desenvolvimento do trabalho, a frequência dos encontros não poderia ser superior a semanal e,

cada encontro, possuir entre duas e quatro horas de duração.

O projeto de pesquisa foi aceito e o grupo de profissionais da escola optou pelo

desenvolvimento do trabalho com a turma do 7º ano: a mais numerosa, com 23 estudantes

inscritos e 20 freqüentes. Era predominantemente jovem, com 17 pessoas na faixa etária entre 17

e 25 anos e apenas três entre 30 e 45 anos; majoritariamente masculina, sendo 13 homens e 7

mulheres, entre elas as três mais velhas. O primeiro contato com a turma ocorreu no dia 17 de

maio, terça-feira, acompanhado pela coordenadora escolar, com uma breve conversa na própria

sala de aula dos estudantes para apresentação da proposta da oficina que se iniciaria na semana

seguinte.

O funcionamento da escola apresentava uma EJA seriada, com os estudantes agrupados

por nível de conhecimento dos conteúdos escolares disciplinares e tendo acesso a progressão

semestralmente. Os professores eram moradores do próprio município ou de municípios vizinhos

e todos atuavam em mais de uma escola. Alguns, inclusive em três ou quatro, para compor a

carga horária regulamentar. Todos com habilitação específica na área de atuação. A oficina de

Teatro do Oprimido foi incorporada ao conteúdo das aulas de Português e a professora desta

matéria participou de todo o processo.

Inicialmente, as oficinas teatrais foram realizadas em dias diferentes a cada semana

(segundo a coordenadora no noturno, para não haver prejuízo em nenhuma disciplina).

Posteriormente, a pedido de alguns estudantes, foi transferido para as sextas-feiras, dia com duas

aulas de Português, uma de Matemática e duas de Educação-Física. Em função do espaço da

escola, as aulas de Educação Física estavam limitadas à sala de aula; havia mais aulas de

matemática em outros dias; portanto, as sextas-feiras, não prejudicaria as demais disciplinas,

cujas aulas eram apenas uma vez por semana.

A turma apresentava diversos conflitos internos, prática de bulling, que atribuímos ao

processo de constituição do masculino na sociedade, envolvendo práticas de reforço de um ideal

hegemônico reafirmado com a intimidação daqueles que divergem deste padrão.

Os meninos, ao competirem entre si em uma performance que lhes garanta maior proximidade da

posição hegemônica, terminam por solidarizarem-se uns contra os outros no heterocentrismo em que

aos homossexuais é destinado um valor inferior de pertencimento identitário na casa-dos-homens.

82

[...] A zoação serve como canal, suporte e fronteira entre os gêneros para demarcar identidades e

estrategicamente tecer as diferenças entre os masculinos e os femininos. Nesse sentido, a zoação se

faz entre os meninos e as meninas, mas possui níveis de tensão e ambigüidade distintos em que se

gradua a homogeneidade pretendida e, em seu interior, a heterogeneíza. Entre meninos e meninas, na

perspectiva inter grupos, a zoação possibilita, como já visto, reafirmar o lugar do masculino e sua

ascendência sobre o feminino em um movimento no qual manifesta-se a amizade e a sedução para

com as meninas. [...] Zoar serve também para os meninos, intra grupo dos homens, se afirmarem

como macho e destratar a dissensão dos menos “homens” por serem efeminados... (NOGUEIRA,

2006, p. 333 e 334).

As oficinas iniciavam-se com o afastamento das carteiras para os cantos da sala e

posicionamento das cadeiras em círculo, tornando-a mais acessível à realização dos exercícios,

dos jogos e improvisações, além de mais condizente, também, com a proposta político-dialógica

e estética do Teatro do Oprimido. Tal movimento favorecia outro posicionamento físico-espacial

na sala de aula: um corpo ativo, criativo, irreverente, livre da rigidez quase imóvel que prende o

sujeito sentado numa cadeira, em fila, atrás das carteiras e dos colegas, numa disposição espacial

controladora e hierárquica. A sala de aula, com o decorrer das atividades, foi transposta para

outros espaços, por meio da realização de improvisações e ensaios nos pátios da escola.

Os conceitos de Ética e de Solidariedade ganharam novo campo de discussão junto aos

estudantes, por meio do método do Teatro do Oprimido. No primeiro encontro, uma técnica

modelo de fórum denominada O aperto de mão9, introduziu uma discussão sobre o respeito

versus a zoação nas relações. Nesta técnica, uma pessoa segue, com a mão estendida, em direção

a outra. No momento de cumprimentá-la, no entanto, a pessoa dá as costas e cruza os braços,

deixando a outra “sem graça”, “humilhada”, “no vácuo”, como os participantes costumam dizer.

No segundo encontro, a discussão assumiu o viés das relações de gênero, com a

realização da técnica Invasão de Território. De modo resumido, essa técnica se desenvolve com

cinco cadeiras dispostas lado a lado num espaço vazio. Uma mulher entra e senta-se na última.

Em seguida, um rapaz, observa todas as outras cadeiras vazias e senta-se ao lado da mulher. Esta

se levanta e vai para a primeira cadeira. O rapaz também se levanta e, novamente, senta-se ao

lado dela, na segunda cadeira. Mais uma vez a mulher troca de lugar e o homem torna a sentar-se

ao seu lado. Por fim, a mulher levanta-se e vai embora.

9 A descrição desta e de outras técnicas, exercícios ou jogos teatrais desenvolvidos nas oficinas e citados neste

trabalho estão disponíveis em BOAL, Augusto. 400 jogos para atores e não atores. Civilização Brasileira. Rio de janeiro, 1998.

83

A questão do bulling, especialmente no que afeta dois estudantes obesos da sala,

começaram a ser analisadas na terceira oficina, após a realização da técnica modelo de fórum

denominada Os quatro em marcha: quatro pessoas marcham de um lado para outro do espaço ao

som de “Pom pom pom rom rom". Outra pessoa se movimenta um pouco atrás das primeiras,

com um ritmo, movimento e som completamente diferente. Quando os Quatro em Marcha viram

e vêem a pessoa diferente deles, a atacam cenicamente com socos no topo da cabeça, abaixando-

a até o chão e seguem com o seu movimento. A pessoa levanta e segue com seu próprio ritmo

por três vezes, sendo sempre atacada pelos Quatro em Marcha, até que desiste, se insere no

grupo dos quatro e segue marchando com ele, ao som de “Pom pom pom rom rom”.

Associada com temáticas de preconceito emergiu a discussão da discriminação racial,

com reflexões a partir da expressão cabelo ruim e prosseguiu analisando os padrões de beleza

impostos pela mídia e os valores culturais atribuídos aos homens e às mulheres na sociedade.

Logo nas primeiras oficinas realizadas na escola a prática do Teatro do Oprimido propiciou esse

questionamento abrindo possibilidades para a reconstrução da concepção que cada um tem de ser

humano, associada a valores e preconceitos sociais estigmatizantes.

Tornou-se comum, nos vinte ou trinta minutos finais da oficina, a inspetora, entre outras

funcionárias da escola, permanecer na porta da sala assistindo às improvisações teatrais. No

terceiro encontro, um pouco antes do intervalo do recreio, dois estudantes improvisaram algumas

“personagens” da própria escola, entre coordenadora, inspetora e professores. Nos minutos finais

deste encontro a coordenadora, juntamente com a secretária e a inspetora, solicitaram a repetição

de suas imitações. Os estudantes repetiram, revelando alguns aspectos de seus comportamentos

num misto de crítica e humor.

Nesses três primeiros encontros realizou-se exibição de vídeos sobre o Teatro do

Oprimido no Brasil e no exterior, conversou-se sobre o histórico de desenvolvimento do método,

apresentaram-se seus fundamentos e realizaram-se jogos das quatro categorias de exercícios,

técnicas de Teatro-Imagem e improvisações teatrais. Nem todos os jogos contaram com a

concentração necessária ao seu bom desenvolvimento. As improvisações iniciais revelaram

temáticas como drogas, abuso de poder e violência policial, violência doméstica e homofobia.

84

IV.2.2 - O desenvolvimento das oficinas: entre altos e baixos

Viana (2011) relata uma dificuldade inicial que teve com o desenvolvimento dos jogos

teatrais em oficinas com estudantes da EJA, numa escola estadual em Belo Horizonte.

Não é demais reforçar que estamos tratando de jogos com adultos de EJA, público com suas

particularidades e que, a todo o momento, demonstra as suas inseguranças e idiossincrasias. [...]

Nesse ambiente as atividades também encontraram seus percalços. Alguns alunos e alunas, por

exemplo, não compreenderam a função do jogo como elemento preparatório para a atuação dos

atores e atrizes em um suposto espetáculo e, desse modo, atribuíram valor duvidoso para a atividade

com jogos. [...] Isso nos obrigou a mobilizar habilidade e esforço para a condução das aulas visando

possibilitar que o grupo entendesse a necessidade dos jogos. Como conseqüência, conseguimos fazer

com que a maioria dos alunos aderisse à proposta. (VIANA, 2011, p. 97 e 98).

No caso da escola em Itatiaiuçu, alguns jogos decorriam bem, outros encontravam

resistência por parte dos estudantes. Percebia-se certo silencio no grupo, uma falta de confiança

nos colegas, uma espécie de receio na realização dos jogos, talvez um medo da crítica alheia ou

excesso de autocrítica. Talvez esta postura, que não era da maioria, mas “contaminava” o grupo,

devesse à “escolarização” do teatro. Como as pessoas viam a oficina? Qual o sentido da

proposta? Tratava-se de mais uma atividade escolar cumprida por obrigação? Qual o sentido da

escola para eles? O que é positivo e negativo em todo esse contexto? Eram questões ainda em

aberto e latente.

No caso dos jogos, após reexplicitar sua função no Teatro do Oprimido, buscou-se uma

solução compartilhando com o grupo a responsabilidade de escolher e ministrá-los, a partir do

livro Jogos para atores e não-atores, do Boal. Porém, no quarto encontro, o primeiro após este

combinado, dos três estudantes responsáveis pelos jogos, uma faltou, o outro não selecionou e

apenas uma o ministrou. O exercício por ela selecionado foi o Dança das cadeiras, no qual

cadeiras são dispostas em círculos, com os assentos virados para fora da roda, em um número

inferior ao dos participantes, de modo que sempre sobra uma pessoa em pé. Ao som de uma

música os participantes dançam ao redor da cadeira e buscam sentarem-se quando a música pára.

A cada rodada, saem o participante que sobrou em pé e uma cadeira da roda.

Para não ficar muito demorado, optou-se por retirar duas cadeiras de cada vez, assim, a

cada rodada, duas pessoas sobravam em pé. A falta da música foi solucionada com o toque do

pandeiro e do chocalho pelos dois estudantes que não queriam participar. Os que saíam

acabavam pegando outros instrumentos e fazendo som também. Algumas vezes, no entanto, não

85

ficava evidente o final da música e as pessoas sentavam-se antes da hora. Mas estava bastante

divertido e aproveitou-se para realizar um variante deste jogo no qual saem as cadeiras, mas os

participantes ficam e precisam arrumar um jeito de todos se sentaram, uns sobre os outros,

inclusive. Esta variante pareceu ainda mais divertida!

Na seqüência, realizou-se o jogo Vampiro de Estrasburgo, em meio a uma áurea de

suspense, alegando ser sexta-feira de lua cheia. Este jogo pertence a terceira categoria e é

executado com os olhos fechados. Entretanto, avaliou-se que foi um pouco antecipado. A

maioria dos participantes não permaneceu de olhos fechados e foram poucos os gritos de pavor e

prazer exigidos pelo exercício. O jogo não funcionou.

No exercício seguinte, Esculpir Imagem, solicitou-se a construção da escultura de um

opressor conhecido do escultor. As esculturas seriam construídas em duplas, modulando o corpo

do colega. Apareceram nas imagens o bandido e traficante de drogas, um padre ou pastor, uma

pessoa arrogante e esnobe. Uma polêmica surgiu em torno da figura de uma prostituta: trata-se

de uma opressora ou de uma oprimida? Aparentemente o jogo não foi bem explicado e entendido

por todos.

Após o intervalo, propôs-se a formação de duplas, com pessoas de confiança, para

contarem, mutuamente, histórias pessoais de opressão. Não houve motivação para a atividade.

Sugeriu-se, então, uma estratégia que garantia o anonimato: cada um escreveria num papel o

tema que gostaria de discutir com a peça. Drogas foi o predominante, seguido por namoro,

gravidez na adolescência, preconceito social, relações familiares, preconceito racial, violência

contra a mulher, homossexualidade e prostituição.

Assim, metade da turma foi discutir e identificar histórias sobre o tema das drogas, a

outra metade sobre namoro, gravidez na adolescência e relações familiares, para montagem da

peça. Com a história definida, em vez de realizar uma improvisação como nos encontros

anteriores, foi solicitada a representação da história por meio da poesia, da pintura e da escultura

de papel. Cada subgrupo trabalhou num local diferente, inclusive fora da sala e não houve tempo

de reunir o grupo no final. Por isso a atividade terminou de modo um pouco disperso, mas foi o

primeiro encontro em que absolutamente todas as pessoas participaram efetivamente, além da

simples observação.

86

O quinto encontro ocorreu quinze dias após o anterior, em função do feriado de Corpus

Cristi, e o grupo retomara uma postura silenciosa, de resistência, no início da oficina. As dúvidas

relacionadas ao significado das atividades teatrais para os participantes retornaram. Então, foi

proposta uma roda franca de conversa, na qual as pessoas poderiam perguntar e se posicionar

sobre a oficina. Entretanto, intuindo que ainda não havia clima para a conversa pretendida, a

ministrante da oficina se pôs na berlinda, como no jogo do Interrogatório, sentando-se numa

cadeira, no meio da roda, para responder as perguntas dos estudantes.

Diferentes perguntas surgiram inclusive de cunho pessoal como: “Onde você mora?”,

“Onde você nasceu?”, “Você é parente da Uciara?”, “Onde você estudou?”, “Você tem filho?”,

“Você é casada?”. Estas e outras perguntas foram todas respondidas, até não restarem mais

dúvidas e os participantes terem as suas curiosidades satisfeitas. Depois, de volta à roda, as

pessoas se posicionaram. A maioria reafirmou o interesse pelo teatro, verbalizando a vontade de

participar, entretanto, foi importante ouvir àqueles com opinião contrária, descobrir seus

interesses e motivações.

A primeira a falar foi uma das mulheres mais velhas afirmando, categoricamente, que não

queria fazer teatro, pois não estava ali para isso; o que ela gostava era de escrever. A segunda

fala, de uma mulher mais nova, foi de sentido oposto, confirmando o gosto pela atividade teatral.

O terceiro, um rapaz de 25 anos, disse não queria se apresentar: poderia ajudar em outras coisas,

mas não como ator. E assim, cada um foi se posicionando, trazendo seus interesses em relação à

cenário, figurino, maquiagem, música, arte gráfica dos cartazes e à própria encenação.

Num dado momento da conversa a professora que acompanhava o processo se

manifestou alegando que o teatro fazia parte das atividades de Português e seria avaliado por ela.

A oficineira interveio com um misto de pergunta e afirmação: “Mas é possível realizar uma outra

atividade para àqueles que não desejam participar, não é?” A professora assentiu embargada.

Parecia que ela também gostava de participar do teatro, como vinha demonstrando nas oficinas.

E voltando-se para o grupo a oficineira confirmou a não obrigatoriedade do teatro, a importância

das pessoas participarem por prazer e quem quisesse ajudar seria muito bem vindo.

Antes de sair para o intervalo, um adolescente procurou a oficineira dizendo que gostaria

de participar, mas não sabia se iria continuar na turma, pois corria o risco de ser reprovado

naquele semestre. Surgira ali uma primeira demanda contrária ao agrupamento seriado. A

87

oficineira se posicionou afirmando que, caso a reprovação realmente se consolidasse, eles

buscariam uma maneira dele continuar participando do teatro, conversando com a coordenação e

demais professores, buscando um caminho possível.

Na volta do intervalo algo que surpreendeu à oficineira e à professora: duas

improvisações maravilhosas, com engajamento e compromisso de todos os estudantes. Até quem

falou que não queria participar na conversa anterior, atuou. E, pela primeira vez, encenaram fora

da sala de aula, no pátio na entrada da escola.

Para melhor atender a demanda de construção das artes dos cartazes, bem como a

produção de um folheto para a peça, contendo seu histórico e ficha técnica, foi solicitada à

coordenadora escolar do terceiro turno a utilização dos computadores da sala de informática,

pelos estudantes que se propuseram a desempenhar tais tarefas. Devido as regras que regem o

funcionamento do Laboratório de Informática na escola, exigindo a presença de um monitor, esta

solicitação precisou ser feita, por escrito, para conhecimento e autorização da Secretaria

Municipal de Educação; no entanto, não houve resposta.

Na semana seguinte não haveria oficina em função das atividades de recuperação,

destinadas aos estudantes que não conseguiram obter notas para serem aprovados e dos

preparativos para a festa junina da escola. O sexto encontro ocorreu, então, no último dia de aula

antes do recesso. A turma estava vazia, com apenas 8 pessoas.

Conversou-se um pouco sobre o encontro anterior e as improvisações das cenas para

situar dois estudantes que estiveram ausentes. Revistas e outros materiais de leitura contendo

informações sobre drogas e gravidez na adolescência no Brasil foram disponibilizados para os

presentes. Alguns se interessaram em ler ali mesmo, outros pediram para levar pra casa.

Especulou-se como tornar aquele encontro útil e uma das propostas foi iniciar a escrita do

texto da peça, sistematizando a história a partir dos dados das improvisações do encontro

anterior. Porém, tal sugestão não encontrou ressonância no grupo que contrapôs solicitando

jogos. “Alguém propõe algum?”, perguntou a oficineira sem resposta. “Então manda essa bola

que está aí no seu pé”, falou apontando para um estudante. A turma pareceu não acreditar no que

ouvia. “É sério. Vamos fazer um jogo com ela”, concluiu.

88

Afastaram-se algumas carteiras e, em círculo, começaram a rebater a bola, com o objetivo

de mantê-la o maior tempo possível sem cair no chão. Diferentes regras e objetivos foram

acrescentados ao longo do desenvolvimento do jogo pelos participantes, tornando a atividade

sempre renovada e interessante. Dois estudantes de outra turma apareceram na porta procurando

um colega, se interessaram e entraram para participar. O jogo seguiu até o intervalo da merenda.

E aquele encontro encerrou-se ali. A escola estava vazia e, após o intervalo, os estudantes foram

assistir a um filme prometido anteriormente pelo professor de História e que seria exibido na

turma ao lado.

Após o recesso de julho, os encontros teatrais reiniciaram na primeira semana de agosto.

Três estudantes saíram da escola: um não se soube o motivo; o outro pediu transferência para a

cidade vizinha de Itaguara, onde estava trabalhando; e a terceira não animou a ir para a escola

sem a companhia do marido, que havia desistido após concluir o 5º ano, com receio de ser

reprovado no semestre seguinte. Essa informação foi revelada para a oficineira num encontro em

Pedras, pois o casal era daquela comunidade: “Eu senti muita dificuldade esse ano. Consegui,

passei, mas preferi parar pra não reprovar. Eu não ia dar conta não. Tô com muito trabalho.”

declarou.

Por outro lado, dez novos estudantes ingressaram na turma aumentando

significativamente o grupo, seis mulheres e quatro homens. Entre eles, dois eram repetentes da

própria escola. Um, porém, rapaz de 16 anos, não continuou, comparecendo apenas na primeira

semana de aula. O outro, já maior de idade, com 21 anos, afirmou algumas vezes que continuara

por causa do teatro. Os outros dois eram jovens também, com 17 e 19 anos. Entre as mulheres,

duas eram mais velhas, com 34 e 38 anos, as outras quatro tinham entre 17 e 22 anos.

Os gráficos seguintes mostram essa mudança no perfil da turma, em relação a sexo e

idade dos estudantes.

89

GRÁFICO 1: Percentual de mulheres e homens no 1º Semestre. GRÁFICO 2: Percentual de mulheres e homens no 2º Semestre.

GRÁFICO 3: Faixa etária dos participantes no 1º Semestre. GRÁFICO 4: Faixa etária dos participantes no 2º Semestre.

Com tanta gente novata e alguns antigos ausentes, houve a necessidade de explicar a

proposta da oficina teatral para integrá-los na atividade. Os novos estudantes demonstraram-se

animados com a ideia de fazerem teatro na escola e pareceram interessados nas temáticas

escolhidas anteriormente pelo grupo, reconhecendo a existência de tais questões no município.

Três jogos foram realizados com desenvoltura pelos participantes antes do intervalo.

Após o intervalo, a turma foi dividida em dois grupos, conforme o tema de interesse, para

improvisação das cenas. Como havia muita gente nova e mais de um mês decorrido desde a

última atividade de improvisação, deixou-se que cada grupo se reorganizasse em torno das

histórias sobre drogas e gravidez na adolescência a serem representadas naquele encontro.

Surpreendentemente, ambas as improvisações retomaram as histórias encenadas antes do recesso

65%

35%

Sexo - 1o semestre

Homens

Mulhers 54% 46%

Sexo - 2o semestre

Homens

Mulheres

65%

20%

15%

Idade - 1o semestre

15 a 20 anos

21 a 30 anos

30 a 45 anos 68%

16%

16%

Idade- 2o semestre

15 a 20 anos

20 a 30 anos

30 a 45 anos

90

de julho, confirmando a identificação daquele grupo com tais temas. A professora de Português

ficou admirada: “Parece que não houve mudança na oficina. Foi uma continuidade”.

O encontro subsequente, na segunda semana de agosto, estava com turma cheia e,

diferente do anterior, ocorreu com muita dispersão, zoação entre colegas e dificuldades no

engajamento coletivo sobre a proposta teatral. Foi necessário, constantemente, parar as

atividades para debater um ato de desrespeito entre colegas, uma fala preconceituosa e diversas

brincadeiras de mau gosto. Na volta do intervalo também não houve concentração para

construção das cenas. O clima era de constrangimento, insegurança, medo de exposição. Propôs-

se uma roda de conversa para avaliação da oficina.

Algumas pessoas se posicionaram mostrando indignação quanto à postura de certos

colegas. Uma estudante, inclusive, falou diretamente para um deles: “A gente não tem que aturar

suas atitudes. Ninguém tem culpa se você brigou e quer descontar em todo mundo”. Nesse

momento o rapaz, um adolescente de dezesseis anos, se retirou da sala. Antes de sair ainda deu

um tapa na aba do boné de outro colega, fazendo-o cair no chão. As pessoas mostraram

descontentamento com o corpo, mas ninguém foi atrás. Um estudante novo afirmou que o teatro

da semana passada fora muito diferente daquele dia e foi apoiado pelos outros novatos.

O encontro encerrou-se com uma mensagem positiva da oficineira, apontando a

importância de se cuidar daquele espaço do teatro, das relações com as pessoas e relembrando

que se tratava de um processo coletivo. Pontuou, ainda, a responsabilidade de todos naquele

projeto que visava ações para muito além daquela sala de aula.

Na semana seguinte o grupo estava bem mais tranquilo, concentrado e alguns integrantes

com rosto envergonhado, abaixando a cabeça e esquivando o olhar diante ao da oficineira.

Chegara aos seus ouvidos que a coordenadora dera uma broca nos estudantes em função do

comportamento apresentado na última oficina. A oficineira apoiou seus materiais sobre a mesa e,

buscando ser solidária, falou: “Fiquei sabendo que vocês levaram uma bronca por minha causa”.

Alguns consentiram com a cabeça. “Mas está tudo bem?”, continuou. Todos assentiram

novamente e sorriram. Entendeu-se que havia ações escolares, de segunda a sexta-feira, além das

atividades da oficina, que podiam dizer respeito à sua realização e, ao mesmo tempo, ser alheio

aos seus propósitos, fugindo completamente ao seu alcance.

91

Neste dia foi realizado apenas um jogo, o Círculo de nós, antes de iniciarem os trabalhos

para construção da cena. O jogo foi bem sucedido, repetido e finalizado com palmas pelos

participantes. Em seguida, com a turma subdividida em dois grupos, iniciaram-se os trabalhos

para construção da cena, buscando uma contra preparação e definição dos conflitos entre os

personagens, até a Crise Chinesa. Cada grupo trabalhava independentemente, um dentro e o

outro fora da sala, sob a orientação da oficineira.

Após o intervalo, durante o ensaio da contra-preparação da cena sobre gravidez, um

estudante do 6º ano chegou à janela da sala para fazer a chamada e ficou observando a atividade.

Além de observar, passou a dar sugestões, então foi convidado pela oficineira para entrar em

cena e mostrar. Suas improvisações agradaram a todos e trouxeram ótimas contribuições as falas

dos personagens. Tinha que continuar a chamada, por isso pediu licença e se retirou, mas fora

convidado a voltar.

Esse rapaz mais velho, por volta dos 35 a 38 anos, passou a ser um agregado do grupo,

participando de diferentes ensaios e da apresentação. Era um ator “curinga” no sentido de

contribuir com o grupo de diferentes maneiras, ora orientando nos ensaios, ora substituindo

diferentes personagens em cena e ainda auxiliando nos preparativos da peça, sempre propositivo

e pertinente com suas colocações e argumentos. Chegou a ser sugerido que auxiliasse na

curingagem do Fórum, ministrando algum jogo de ativação da plateia, mas disse que preferia

conhecer melhor o terreno.

Neste encontro os estudantes pronunciaram o desejo de juntar as duas peças. Sugestões

dessa união já haviam chegado anteriormente ao conhecimento da oficineira, mas sempre de

modo individual. Neste dia, no entanto, o grupo falou coletivamente, trazendo sugestões

concretas para o texto conjunto. Havia um certo receio da oficineira quanto ao funcionamento da

peça longa, com duas temáticas distintas, para Fórum. Entretanto, segundo sugestão dos

estudantes, a Dramaturgia do Teatro-Fórum seria garantida e, como era desejo do grupo, a

decisão foi acatada.

No encontro seguinte, com o texto da peça em mãos, os estudantes apontaram a

necessidade que sentiam de definir um personagem para cada ator, como forma deles assumirem

responsabilidade sobre o papel nos ensaios. Como no Teatro do Oprimido “o que não é

92

expressamente proibido é permitido”10

, dividiu-se os papéis entre os interessados e não houve

polêmica. Aparentemente todos ficaram satisfeitos com os seus personagens em cena.

Entretanto, salvo raros papéis, a rotatividade dos personagens permaneceu em virtude das

faltas dos estudantes nos ensaios. A protagonista e a dona do bar, por exemplo, foram

representadas por atrizes diferentes no Ensaio de Fórum e na apresentação na Câmara e o mesmo

aconteceu com um dos traficantes. Os dois amigos do Protagonista, por sua vez, acabaram se

fundindo num único personagem devido às faltas consecutivas de um dos atores.

Na semana seguinte ao feriado de Sete de Setembro, dois estudantes de 16 anos, um que

assumira o personagem do rapaz envolvido com drogas e o outro o papel de pai da adolescente

grávida, disseram que não participariam mais do teatro. Aquela notícia, aparentemente sem pé

nem cabeça e nem propósito, parecia surreal aos ouvidos dos demais integrantes do grupo que

estavam indignados com a falta de responsabilidade e senso de coletivo dos adolescentes, há

menos de um mês da apresentação.

Foi proposta uma roda de conversa para compreensão e resolução do problema. Naquele

período de ensaio as oficinas ocorriam no pátio central da escola. Os estudantes chegavam,

vestiam alguns figurinos e arrumavam o espaço com objetos indicativos do cenário. E a roda de

conversa aconteceu ali mesmo, inclusive com a presença da coordenadora que, inicialmente,

propôs levar os dois estudantes para um particular em sua sala, no entanto, argumentou-se que o

diálogo precisava ser coletivo, pois a decisão dos rapazes afetava todo o grupo do teatro.

Após alguns minutos de conversa entendeu-se o que se passava. Houve um desfile de

Sete de Setembro na cidade e os estudantes foram convidados a participar como representantes

da escola. Entretanto, foram poucos os estudantes presentes e a diretora escolar, em comum

acordo com a coordenadora e os professores, deu uns pontos de participação para aqueles que

participaram do desfile. Esses pontos incidiriam sobre todas as matérias.

Os pontos eram extras, mas os dois estudantes, que estavam com pendências em algumas

matérias, reclamaram por não saber que a atividade valia ponto. “Se eu soubesse que ia valer

ponto eu tinha ido. Tô precisando desses pontos. Eu tinha até matado o serviço.”, argumentou

um deles. A coordenadora explicou que ninguém foi informado que valeria ponto, pois essa

10

Palavras de Boal, em Oficina de Teatro-Fórum, no Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro.

93

decisão de gratificar os estudantes presentes no desfile surgiu após o evento. Afirmou, também,

que o convite foi feito igualmente para todos os estudantes e não era para ninguém ir por

interesse. Reafirmou, ainda, que os pontos eram extras e, portanto, não prejudicaria nenhum

estudante ausente. “Ninguém perdeu ponto por não estar presente”, concluiu.

Ao pessoal do teatro interessava saber qual a relação entre os pontos do Desfile de Sete

de Setembro com a participação na peça. Entendeu-se que eles estavam utilizando as suas boas

atuações no teatro como arma de negociação com a coordenação do tipo: eu não ganho os

pontos, mas também não participo da atividade na qual vocês contam comigo. A professora de

Português, por sua vez, lembrou que as atividades teatrais seriam avaliadas na matéria dela. Se a

questão deles era por pontos, deveriam participar para serem pontuados em Português.

A oficineira buscou uma síntese daquela discussão e argumentou que continuava sem

entender qual a relação dos pontos do Desfile com a participação deles no teatro. Pontuou que,

em sua opinião, eles precisavam assumir suas responsabilidades enquanto estudantes até para

reivindicar uma escola com funcionamento diferente. Havia problemas muito maiores para serem

discutidos ali e pelos quais lutarem, em vez de querer pontos extras do Desfile de Sete de

Setembro. “Você, por exemplo, que é trabalhador e certamente não tem seus direitos trabalhistas

garantidos, já parou pra pensar porque um litro de leite custa menos que um litro de água?” –

Perguntou. O estudante confessou que nunca tinha pensado naquilo. “Mas deveria pensar”,

continuou, “São questões que dizem respeito à transformação de toda uma sociedade capitalista,

injusta, desigual, que favorece uns em detrimento de outros”.

Um dos estudantes parecia irredutível. O outro, no final da conversa, trouxe outro

discurso, alegando que queria o direito de não participar daquele ensaio. Diferentes pessoas

faltavam, eram substituídas, deixaram de encenar algum dia. Aquela seria a vez dele, pois queria

assistir o processo, ele que sempre esteve presente e engajado nas atividades.

Esse discurso trazia um argumento interessante para reflexão no grupo em termos de

compromisso versus o direito de se ausentar da atividade. De fato aquele rapaz fora sempre

assíduo e compromissado com o teatro e agora mostrava para os demais como se sentia quando

os outros diziam que não queriam participar em determinado dia, ou mesmo faltavam. Por outro

lado, aquela atitude após toda a discussão do Sete de Setembro e há menos de um mês da

apresentação não foi bem acolhida pelo grupo.

94

No final da conversa a coordenadora solicitou a presença dos dois estudantes em sua sala;

depois se soube que assinaram uma ocorrência. O grupo de teatro resolveu ensaiar sem eles,

fazendo um remanejamento dos atores nos personagens. Um traficante assumiu o papel do

Protagonista e o rapaz do sexto ano o personagem do Pai da adolescente grávida. Um rapaz que

perdera recentemente um irmão assassinado por motivos de drogas e raramente participava

assumiu o personagem do traficante. Todos atuaram bem nos novos papeis. Foi um ensaio

especial, com sensação de vitória. O grupo era maior que a soma – ou a subtração – das partes e,

realmente, queria apresentar o teatro.

O encontro seguinte foi destinado à construção dos cenários e adereços cênicos e, na

oficina subsequente, os dois estudantes pediram para retornar aos ensaios, da maneira que

pudessem. O grupo não apresentou objeção devolvendo-lhes, inclusive, os mesmos papéis. O

grupo intitulou a peça de Foi sem querer querendo, entendendo que, tanto no caso do

envolvimento com as drogas como o da gravidez há um desejo por parte das personagens

envolvidas de experimentar o novo, de ter prazer, embora não desejassem as consequências

advindas dos seus atos. E se autodenominou Os ousados por que... “Ah! Pela ousadia de fazer

teatro!” – afirmou uma estudante. “É, nós somos ousados mesmo.” – complementou outro.

No terceiro ensaio após o episódio do Sete de Setembro, alguns estudantes cobraram da

oficineira uma postura mais enérgica em relação à postura de brincadeiras e desconcentração de

determinados estudantes. Alegaram ainda o excesso de paciência da oficineira ao longo de todo o

processo. Curioso que essa solicitação surgiu num momento coletivo de avaliação do ensaio e a

oficineira perguntou: “O que vocês acham que eu deveria fazer?” “Dá uma bronca neles”,

sugeriu uma estudante. “É, xinga a gente”, propôs outro se incluindo no grupo da bagunça. “É

isso mesmo que vocês acham que eu deveria fazer?”, insistiu a oficineira. “É”, afirmaram alguns.

A oficineira riu incrédula ante aquela proposta tão arraigada no imaginário do universo

escolar e seguiu buscando apontar a incoerência daquela reivindicação num projeto que se

propõe com autonomia e igualdade entre as partes. “Vocês acreditam mesmo que eu estou aqui

para dar bronca em vocês? Não entenderam ainda que o esquema aqui é outro? Honestamente,

quem sou eu para dar carão em qualquer um de vocês? Não tem a mínima chance disso

acontecer. Um bando de marmanjos, muitos maiores de idade, trabalhadores, esperando correção

95

da professora...” Aos poucos cada um foi entendendo, revendo e mesmo rindo do próprio

posicionamento anterior.

A peça Foi sem querer querendo contou com uma única apresentação pública realizada

na Câmara Municipal, aberta à comunidade em geral. Dez dias antes desta apresentação da peça

houve uma grande faxina na escola e embelezamento de seus espaços, em virtude da visita que

receberiam de Gestoras da Secretaria de Educação e Diretoras e Coordenadoras de outras escolas

municipais, como atividade de um curso de formação realizado conjuntamente. Nesta faxina

grande parte do material do teatro fora jogada fora, entre roupas, adereços e objetos do cenário.

Só restou o carro, pois estava pendurado na parede da sala, os bonecos pertencentes aos

estudantes, que não ficavam guardados na escola e algumas peças de figurino utilizadas também

pelo grupo de Pedras.

“Como resolver esse problema?”, pensava a oficineira; “Como contar isso para o grupo

sem abalá-los?”, era sua principal questão; “Como substituir o material?”, refletia. Este não era

um dia de oficina; passara na escola apenas para mostrar e distribuir os cartazes e panfletos de

divulgação da peça que foram impressos. Os estudantes estavam em sala e, antes de se dirigir

para lá, listou os materiais que precisariam ser repostos para tomarem uma decisão conjunta.

Antes de aparecer na porta da sala, expôs apenas o cartaz, exibindo-o pela porta,

sustentado pela mão. Aos poucos os estudantes foram percebendo e começaram a comentar. Era

a professora de Português que estava em sala e a oficineira solicitou parte do tempo da aula para

acertarem questões do teatro, o que foi concedido. Os estudantes ficaram animados com os

cartazes e panfletos. Lamentaram não serem todos na versão colorida, mas entenderam a

limitação financeira, uma vez que a impressão com cor custava quatro vezes mais quando

comparada com a preta e branca. Por outro lado, gostaram da versão preta e branca impressa nos

papéis coloridos, tendo, assim, cartazes de todas as cores que também chamavam a atenção.

Passada a euforia com os cartazes e panfletos e decidida a forma de distribuição dos

mesmos nos estabelecimentos públicos e comerciais da cidade, pautou-se a questão do cenário.

“Pessoal, agora a gente tem um grande problema para resolver. Mas eu tenho certeza que nós

vamos tirar de letra, afinal, somos ousados ou não somos?”, iniciou a oficineira. Entre falas de

confirmação – “Somos!” – e questionamentos – “Que problema?” – explicou-se que grande parte

do cenário havia se perdido durante a limpeza da escola. “Como?!”, “Não pode ser!” –

96

exclamavam os estudantes. “Infelizmente o material ficou do lado de fora quando limparam a

biblioteca e o pessoal da manhã entendeu que era para jogar tudo fora.”, esclareceu.

“Mas então eles vão ter que dá conta disso”, reivindicou um estudante. “Eu concordo que

é um direito nosso cobrar esse material. Tinha, inclusive, objetos pessoais lá. Mas se a gente

quiser apresentar, agora é hora de centrar forças na reconstrução do cenário. Eu já fiz uma

listagem e não está difícil. O que vocês querem?”, contra argumentou a oficineira. A decisão do

grupo foi pela apresentação e diferentes pessoas se responsabilizaram por trazerem objetos de

casa para comporem o cenário. O fogão seria refeito na escola mesmo.

Neste dia, na secretaria da escola, o clima era de tensão e correria com fechamento dos

diários de classe. Averiguavam-se, nas listagens, aqueles estudantes que já estavam reprovados

por falta. Um nome do 8º Ano foi citado com um número pequeno de faltas superior ao limite

máximo estipulado por Lei. Uma professora pontuou que o caso dele era de reprovação por

conteúdo também, pois não fizera nenhuma de suas atividades. A oficineira argumentou que no

caso do teatro tratava-se de um estudante muito participativo, que assumira toda a parte musical

da peça, trazia seu órgão para os ensaios e contribuiu bastante com o processo do grupo

elaborando os efeitos sonoros utilizados em cena. “Em Matemática eu sei que ele também não

fez nada”, disse a professora para a diretora. “E, no entanto, toca maravilhosamente, é o músico

da peça; se é verdade quando dizem que música é matemática”, ressaltou a oficineira.

Dois dias depois, num ensaio, soube-se que aquele estudante havia tentado suicídio.

Alguns colegas mais chegados e a oficineira combinaram de ir a casa dele no final de semana.

Neste dia houve uma forte chuva e somente a oficineira compareceu. Encontrou-o ainda um

pouco abatido e justificou a ausência dos outros colegas. Levou um panfleto da peça e uma blusa

que fora feita com a imagem da versão colorida do cartaz. Perguntou: “Então, podemos contar

com você na apresentação?”. A resposta foi positiva.

A oficina na escola decorreu assim: entre altos e baixos, problemas e soluções, acordos e

decisões coletivas, porém, mais altos do que baixos com os diferentes impasses, constantemente

dialogados e negociados no grupo.

97

Cena de ensaio: Visitas para Fernando recém-nascido. Cena de ensaio: Bia no bar e Fernando chegando de carro.

Cena de ensaio: no carro, Bia com Fernando e roupa voando pela janela. Cana de ensaio: Bronca dos pais de Bia quando ela chega tarde.

Cena de ensaio: Fernando experimentando drogas na balada. Cena de ensaio: Fernando na balada, um pouco antes da sua morte.

98

IV.2.3 - A escolha do tema gerador da peça: com poucas palavras

O tema majoritariamente escolhido para a montagem da peça foi o uso de drogas. Esse

tema surgira desde os primeiros jogos de imagens e improvisações, com força de mobilização da

maior parte do grupo. Porém, ainda não havia consenso e, devido ao grande número de

participantes, foi proposta a construção de uma segunda peça cujo tema selecionado foi gravidez

na adolescência, abarcando, também, questões relativas a namoro e relações familiares,

levantadas por alguns participantes.

Ao longo do processo, no entanto, com os estudantes constantemente implicados em

ambas as montagens, houve a sugestão de união das peças, tendo como elemento de integração a

personagem do rapaz que se envolve com drogas e engravida a adolescente, com a qual não tem

nenhum relacionamento afetivo anterior. No final da peça o rapaz é assassinado e a menina

expulsa de casa pelo pai.

A expressão estética e a diversidade de técnicas artísticas e teatrais disponíveis no arsenal

do Teatro do Oprimido garantem uma multiplicidade de formas e meios para se colher e

construir histórias que culminarão na montagem das cenas de uma peça. Algumas vezes essas

histórias surgem a partir de depoimentos verbais e individuais dos participantes, mobilizando o

grupo e favorecendo sua identificação com o tema apresentado. Em outras, aparecem nas

improvisações teatrais e nas demais atividades estéticas, dispensando a narração pessoal,

antecipando e favorecendo a explicitação de questões ainda confusas ou difíceis de serem

verbalizadas.

Este foi o caso do trabalho na escola, pois no penúltimo encontro antes das férias de

julho, a professora participante das oficinas teatrais comentou sobre a história escolhida para a

segunda peça, tratando-se de uma das estudantes do processo, grávida de um rapaz de fora, que

ela pouco conhecia. A gravidez daquela adolescente ainda não era de conhecimento da sua

família, tendo ela buscado apoio primeiro em seus colegas da escola e nos professores; seus

familiares tomaram conhecimento do fato inicialmente por boatos na vizinhança.

No segundo semestre, após a decisão de unir as histórias, revelou-se também que, à

semelhança da peça, o pai do bebê da estudante estava sumido, possivelmente morto, pois sua

família não sabia do seu paradeiro. Entretanto, a notícia da morte do rapaz não se confirmou. Tão

99

pouco a adolescente real fora expulsa de casa, apesar do receio que sentia do seu pai abandonar

sua família.

As histórias das peças, facilmente fundidas em uma única história, eram de conhecimento

daquele grupo, que as improvisaram com evidencia tanto no primeiro como no segundo

semestre, apesar da mudança dos seus integrantes. Para a escolha dos temas, não houve um

momento coletivo de contar e compartilhar histórias pessoais, no entanto, ela estava lá, nítida,

evidente, se desenvolvendo a cada dia, explícita no corpo daquela jovem de 17 anos.

IV.2.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita durante o processo

As improvisações de ambas as histórias, tanto no final do primeiro semestre

quanto no início do segundo, com a inclusão de novos estudantes, revelaram uma dramaturgia

praticamente pronta. O acompanhamento atento das mesmas com escrita simultânea das falas das

personagens garantiu, aproximadamente, setenta e cinco por cento do texto da peça. Os outros

vinte por cento ficaram por conta dos ajustes necessários à união das peças e criação de uma

contra-preparação.

Os efeitos sonoros foram inseridos ao longo dos ensaios ajudando no ritmo e na ligação

de algumas cenas. Foram criados por um estudante que gostava de música e levava seu órgão

para a escola, ou sugeridos por outros integrantes e executados por ele. Ao longo do processo de

ensaio, diferentes textos, poesias e paródias foram criados pelos participantes retratando algum

momento ou aspecto da história. Duas paródias foram inseridas como música na peça.

A sistematização da escrita do texto, no sentido de sua transposição para o papel, foi feita

em parte pela oficineira e outra parte por dois estudantes, segundo a divisão de tarefas colocadas

pelo próprio grupo, considerando os interesses de cada participante. Esses dois estudantes

escreviam, transcreviam e reescreviam a história utilizando o computador da oficineira,

disponibilizado para esta e outras atividades da oficina.

Como afirma Freire (1987) “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a

leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. [...] De alguma maneira, porém, podemos

ir mais além e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas

por uma certa forma de “escrevê-lo” e de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de

100

nossa prática consciente.” (FREIRE, 1987, p.22). O Teatro do Oprimido no interior da escola

efetivou esse movimento crítico de leitura, escrita e ação consciente sobre uma dada realidade.

A história inicia-se com a mãe do rapaz, Fernando, e os pais da adolescente, Bia,

apresentando seus filhos recém-nascidos para visitas e falando dos sonhos que têm para os

mesmos. Em seguida, aparece Fernando, já rapaz, jogando bola com os amigos, quando é

abordado por uns traficantes. Fernando sai com eles, apesar da advertência dos colegas de se

tratarem de “maus elementos”. Os traficantes deixam Fernando dirigir o carro rebaixado deles e

o levam para um bar no distrito de Santa Terezinha. Neste bar Fernando conhece Bia que sai para

dar uma volta de carro com ele. Uma das amigas de Bia lhe oferece camisinha, mas ela recusa,

alegando que não vai rolar nada de mais.

Bia recebe uma bronca dos pais ao chegar tarde a casa e mente para eles alegando que

estava com as amigas. Fernando prolonga a noite com os traficantes e experimenta drogas numa

balada. Chega com o dia amanhecendo a casa, num estado lastimável. Sua mãe, D. Cecília, tenta

conversar com ele ao acordar, mas Fernando se antecipa, reconhecendo seu erro e a tranqüiliza

afirmando que aquilo não irá se repetir. A mãe acredita. Fernando sai para se encontrar,

novamente com os traficantes. Em outra cena, Bia, sem entusiasmo, conta para a amiga que fez

sexo com Fernando na noite anterior, sem camisinha. Diante da reação acusativa da amiga Bia

pede para ser abraçada. Nada é falado sobre contraceptivo de emergência ou medicação retro-

viral.

Fernando rouba o dinheiro do cofre que a mãe economizava para pagar sua faculdade.

Quando a mãe descobre, Fernando torna a mentir alegando que fez inscrições em vestibulares de

diferentes faculdades, em várias cidades, Itaúna, Belo Horizonte, Viçosa, Lavras, entre outras, e

ainda comprou as passagens para as viagens das provas. Cecília pede para ver as passagens, mas

o filho afirma que estão com Bruno, o amigo de infância de quem Fernando se afastara em

função da aproximação com os traficantes. A mãe novamente acredita no filho.

Cecília se encontra com Bruno na rua e descobre toda a verdade, porém, tarde demais.

Fernando furta muitos objetos em casa e quando sua mãe chega, depara com a casa arrasada. Bia

confirma sua gravidez por meio de um exame de farmácia levado pela amiga e as duas partem

para o centro de Itatiaiuçu a procura de Fernando. As adolescentes encontram a casa e deparam

101

com Cecília em mal estado; ao saber da gravidez, ela se enche de esperança que aquele bebê

pode salvar seu filho. Saem as três em busca de Fernando.

Chegam numa festa, escutam um tiro, pessoas correndo. Entram e se deparam com

Fernando caído no chão, morto. Cecília fica chorando sobre o corpo do filho. As adolescentes

vão embora. Bia volta para casa e, sem recurso, conta sobre a gravidez para os pais. A mãe vai a

sua defesa e ambas são expulsas de casa pelo pai.

Importante ressaltar que, mesmo tendo o texto escrito no meio do processo como base

para os ensaios, continuou havendo espaço para improvisações e algumas expressões cômicas

que funcionavam nos ensaios foram acrescentadas à peça.

IV.2.5 - A cenografia, figurinos e adereços: mobilização para reconstrução

A construção dos cenários e adereços cênicos ocorreu num encontro específico, após

terem-se listado todos os objetos utilizados em cena pelos diversos personagens, como aqueles

destinados à ornamentação dos ambientes. Os estudantes se organizaram por conta própria,

distribuindo-se na realização das tarefas e demandando, junto ao almoxarifado escolar, os

materiais necessários à confecção dos objetos.

O cenário consistia em cinco ambientes principais: a sala da casa de Fernando, a cozinha

da casa de Bia, o bar onde os dois se conhecem, o carro e o local da balada. Os três primeiros

foram posicionados nas laterais e no fundo do palco, respectivamente, de modo a garantir o meio

livre para extensão desses ambientes no momento de cada cena. O carro e o local da balada

ficaram no fundo, num andar mais alto, aproveitando-se o corredor que dava acesso à sala da

Direção e da Oficina de Teatro.

Foi um cenário simples, aproveitando os materiais existentes na própria escola. A base de

todos os móveis foram as carteiras e cadeiras escolares. Na sala de Cecília e Fernando três

cadeiras cobertas por uma toalha bege formavam o sofá e uma carteira coberta por um lenço era

a mesa onde se via uma televisão e o cofre. Os objetos eletrônicos roubados por Fernando foram

dispostos, no dia do Ensaio do Fórum, no parapeito da janela da biblioteca, atrás do sofá.

A cozinha da casa de Bia tinha um fogão, uma mesa e duas cadeiras. O fogão foi

montado sobre uma carteira, encoberta com papel pardo; o tampo era de isopor e, as trempes e os

102

acendedores foram feitos com um papelão azul, aproveitado da embalagem das maças da

merenda escolar. Sobre a mesa um forro dourado e um jarro com flores de papel crepom.

Cenário: sala da casa de Cecília e Fernando. Cenário: cozinha da casa da Bia.

As carteiras do balcão do bar foram

cobertas com colchonetes finos e marrons.

Sobre ele, uma bandeja de papelão com

copos de papel pardo. Dois engradados se

tornaram mesas e as cadeiras utilizadas eram

pequenas, pegas na sala dos estudantes mais

novos do turno da tarde. O carro, preso na

grade do corredor, foi todo feito de papelão.

No fundo da parede um TNT preto cobria as

janelas e escurecia o ambiente da balada.

Cenário: bar, carro e espaço da balada ao fundo, no alto.

Para a apresentação na Câmara Municipal aproveitou-se parte do mobiliário daquele

espaço para mesa da casa da Bia e balcão do bar; fez-se um novo fogão; utilizaram-se tapeçarias

típicas da região, trazidas da casa, para cobrir o sofá do Fernando e mesas do bar; e pegou-se

emprestada uma estante do cenário do grupo das Pedras, juntamente com os adereços. O carro

permaneceu o mesmo, assim como as cadeiras da escola, embora na casa da Bia, em vez das

cadeiras convencionais das salas de aula, fez-se uso de umas de madeira, existente na sala dos

professores. O local da balada ficou na frente do palco, em baixo.

103

Quanto ao figurino, alguns conseguiram manter suas roupas ou arrumar outra interessante

a tempo. O pai da adolescente, por exemplo, consegui uma fantasia de policial. Os traficantes, no

entanto, cujas capas pretas sugeriam um misto de herói, noite e morte, teve esse figurino

reduzido ao chefe do tráfico. A maioria, porém, utilizou roupas próprias.

Cenário da apresentação na Câmara Municipal. Cenário da apresentação na Câmara Municipal.

IV.2.6 - O Ensaio de Fórum: uma apresentação para os colegas da escola

O ensaio de fórum aconteceu numa sexta-feira, dia 7 de outubro, na própria escola. Neste

dia a escola estava bastante vazia em função do recesso da semana do 12 de outubro e a

apresentação, prevista para a turma do sexto ano, aconteceu para todos os estudantes, com uma

platéia de aproximadamente 30 pessoas. Foi uma noite cultural na escola. Antes do intervalo

houve a apresentação de um Coral da cidade e, após, a apresentação teatral, que acabou tendo um

tom de Sessão de Fórum.

Os atores representaram com afinco e a platéia atuou com quatro intervenções: duas no

papel da mãe do Fernando, uma como mãe da Bia e outra como amigo do Fernando. A primeira

intervenção no papel da mãe não alterou muito esta personagem, que tentou conversar com o

filho, mas num tom bastante permissivo, sem transformar a relação entre eles. A segunda, ao

contrário, foi bastante enérgica, aproximou-se fisicamente do rapaz e demonstrou um misto de

carinho, amor e preocupação para com o filho ao chamá-lo na responsabilidade.

104

A intervenção como mãe da Bia ocorreu na última cena, no sentido de garantir o direito

de mãe e filha permanecerem em casa e propiciou algumas colocações sobre os direitos das

mulheres após a Lei Maria da Penha. Por fim, o amigo do Fernando, foi mais contundente na

hora de alertá-lo sobre as consequências de uma aproximação com traficantes. A cena terminou

num impasse, pois o próprio personagem do Fernando ficou sem saber se ia ou não encontrar os

traficantes.

No final da última intervenção o espect-ator, ainda no palco, falou para o outro na plateia:

“Pode vir. Não é ruim não.”, traduzindo aquele misto de medo e realização, entre outros

sentimentos, envolvidos no processo de transgressão da parede invisível que tradicionalmente

separa o palco da plateia.

Após as intervenções, a diretora da escola teceu um comentário com misto de elogios e

reclamações, cobrando dos atores, que foram “capazes de realizar um trabalho tão bonito com

aquele”, a encenação dos “problemas da escola”, causados por tanta indisciplina estudantil.

Inicialmente foi difícil entender a ligação entre os contextos apresentados naquela fala. A

indisciplina escolar pode adquirir diferentes sentidos conforme o olhar sobre a educação, seus

objetivos, funções e os respectivos papéis atribuídos aos agentes envolvidos no processo

educativo, incluindo professores, estudantes, pais ou responsáveis, dirigentes escolares, entre

outros.

Numa concepção bancária, por exemplo, na qual o professor é o “depositante” do

conhecimento pré-determinado pela cultura dominante e os estudantes meros depositários, a

disciplina torna-se fundamental para o sucesso do processo de transmissão de conhecimento,

sendo, assim, condição necessária para o aprendizado do aluno. Essa concepção de educação

teve origem com a ideologia liberal burguesa do século XVIII, objetivando domesticar os

sujeitos, tornando-os dóceis e adaptados ao mundo em que viviam, e permanece impregnada no

imaginário educacional atual, sendo perpetuada de modo irrefletido na maioria das escolas

brasileiras, por meio dos seus currículos, modos de funcionamento, hierarquias, relações

interpessoais, organização espacial das salas de aula, avaliações e outras diferentes práticas

pedagógicas.

Segundo Foucault (1998):

105

A disciplina é uma técnica de exercício de poder, não inteiramente inventada, mas elaborada em seus

princípios fundamentais durante o século XVIII. Historicamente as disciplinas existiam há muito

tempo, na Idade Média e mesmo na Antigüidade. Os mecanismos disciplinares são, portanto, antigos,

mas existiam em estado isolado, fragmentado, até os séculos XVII e XVIII, quando o poder

disciplinar foi aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens (Foucault, 1998, p. 105).

Os métodos disciplinares permitem o controle minucioso do corpo, por meio de

instrumentos como o “olhar hierárquico” (vigilância favorecida pela organização espacial,

separação e distanciamento dos indivíduos), “sansões normatizadoras” (castigos para redução

dos desvios e manutenção dentro das normas estabelecidas), “exames” (com objetivos de

qualificar, classificar, diferenciar, sancionar, punir), realizando a sujeição de suas forças,

impondo uma relação de “docilidade-utilidade”. “A disciplina aumenta as forças do corpo (em

termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de

obediência)” (Foucault, 1997, p. 126 e 127).

Como afirma Rabelo (2005)

Nesse tipo de educação não há construção do conhecimento em busca da transformação e superação

das dificuldades sociais; pelo contrário, com o objetivo apenas de transmitir valores e conhecimentos

de forma simplificada e fragmentada, esse tipo de ensino anula o poder criativo e participativo do

aluno, contribuindo para que esse não se sinta sujeito capaz de participar do processo de construção

histórica. [...] Nela, a obediência e o silêncio dos alunos são aspectos importantes para garantir que os

conteúdos determinados pela cultura dominante sejam transmitidos pelo professor sem interferências

externas (Rabelo, 2005, p.48).

Constituindo uma prática anti-dialógica, com vistas à imobilidade social, na concepção

bancária de educação as manifestações dos estudantes contrárias as normas estabelecidas,

práticas culturais diferentes da exigida pela escola, e mesmo reações de denúncias a essas

normas, reivindicações dos estudantes por direitos e regras diferenciadas, e as resistências que

ameaçam a ordem estabelecida são consideradas indisciplinas.

A educação bancária foi imensamente criticada por Paulo Freire que, em contrapartida,

propôs uma educação problematizadora. Nessa proposta educacional, a problematização do

mundo e das relações sócio-culturais e econômicas vigentes é questão central, em prol da

transformação social. Esta problematização não é unilateral, ao contrário, surge de um diálogo

que é fruto e ao mesmo tempo promotor de uma reflexão crítica sobre a sociedade. O diálogo,

como já foi dito, é base de relações horizontais, onde há o respeito e reconhecimento da visão de

mundo do outro, de diferentes culturas. Educar é um ato de amor e educadores e educandos

atuam juntos num processo ativo de conhecimento e transformação do mundo.

106

A disciplina, na concepção problematizadora, é fruto dessa relação horizontal, é

comportamento ativo, atitude de compromisso com o processo educativo que é ação sobre o

mundo no qual os sujeitos se inserem. A indisciplina, por sua vez, é considerada como uma

forma de reação, denúncia, desinteresse ou insatisfação sobre o processo educacional, ações e/ou

relações estabelecidas nesse processo. É uma fala, um sinal, uma forma de comunicação que

indica ao educador a necessidade de revisão do processo – revisão esta que se dá em comunhão,

com diálogo, de modo conjunto, democrático, sendo todos sujeitos e responsáveis pela educação.

A fala da diretora apresentava-se, também, alheia ao contexto do Teatro do Oprimido, ao

exigir, de modo imposto, um tema para a montagem da peça. Uma estudante assumiu a palavra e

explicou a importância para o grupo em discutir drogas e gravidez na adolescência como um

problema real do município. A diretora insistiu na questão da indisciplina escolar e a oficineira

argumentou que, certamente, aquele tema atingia muito mais a ela e aos demais educadores que,

propriamente, aos estudantes. “Talvez esse tema possa surgir numa oficina de teatro realizada

com os professores. Esse grupo de estudantes considerou importante discutir drogas e gravidez, e

não a indisciplina”, concluiu.

Como sugestão para aperfeiçoamento da peça os espest-atores propuseram acelerar a

transição das cenas, deixar mais evidente que o Fernando é o filho recém-nascido do início da

peça e aumentar o volume de voz de alguns personagens.

Ativação da platéia no Ensaio de Fórum, na escola. Início da peça: professora atuando como Cecília, a mãe do Fernando.

107

IV.2.7 - A Sessão de Teatro-Fórum: atuação além dos muros da escola

A Sessão de Fórum aconteceu no dia 29 de novembro, terça-feira, na Câmara Municipal.

O longo período decorrido entre esta apresentação e o Ensaio de Fórum deveu-se a contratempos

diversos, desde feriados e recessos escolares, como provas e outras atividades na escola, além de

uma viagem da oficineira. A plateia estava cheia, havendo a necessidade de buscar mais cadeiras

no hall de entrada para garantir que todos assistissem à encenação sentados.

Diferentes intervenções foram propostas naquele dia, além das experimentadas

no Ensaio de Fórum, na escola. As duas primeiras transformaram o papel da Cecília, e uma delas

foi bastante propositiva, não se deixando enganar facilmente pelo filho. Esta intervenção criou

uma rica polêmica na plateia a respeito da confiança nas relações familiares e dos melindres e

dificuldades existentes para dizer a um filho que não se confia nele. Uma intervenção como mãe

da Bia trouxe à tona discussões sobre diálogo a respeito da saúde sexual entre pais e filhos, uso

de preservativos e os direitos das mulheres na sociedade.

Um rapaz atuou no papel do Fernando e recusou-se a experimentar a droga. Uma

adolescente, no papel da Bia, também não quis sair de carro com o rapaz desconhecido,

propondo que ficassem conversando ali mesmo no bar. Essas duas intervenções levantaram a

discussão da vulnerabilidade não só infanto-juvenil, mas humana. Junto a ela, a noção de

consequência e a importância de “se prevenir em vez de remediar”, apontando a validade de se

evitar situações que tornem as pessoas mais suscetíveis a realizar ações das quais poderá se

arrepender depois.

Não foi uma sessão de Teatro-Legislativo, mas a sessão de Fórum ocorreu na Câmara

municipal, com a presença de três vereadores da cidade. No final um espect-ator se manifestou

no sentido de reivindicar ações governamentais voltadas para o tratamento de pessoas viciadas

em drogas no município. Outra pessoa da plateia revelou a existência de um grupo de apoio a

usuários de drogas e seus familiares, porém, de iniciativa particular, ligados à Igreja Evangélica.

Essa discussão não foi adiante, pois algumas pessoas já estavam se retirando, mas levantou uma

demanda da população para o Poder Publico local.

Os estudantes gostaram da apresentação, embora alguns lamentassem, no final, os erros

que cometeram em cena. Apontaram o interesse de se apresentarem em outros locais, mas a

108

dificuldade de tempo em função do calendário escolar e dos horários de trabalho dos atores

impossibilitou tal proposta.

Cena da apresentação na Câmara Municipal. Cena da apresentação na Câmara Municipal.

Cena da apresentação na Câmara Municipal. Risos e aplausos da plateia.

Intervenção do público em cena, na Câmara Municipal. Intervenção do público em cena, na Câmara Municipal.

109

IV.2.8 - O encerramento da oficina: avaliação e integração nas festividades de formatura

O encerramento da oficina ocorreu na própria escola, com um encontro de avaliação das

atividades, exibição de fotos e lembranças do processo. Todos haviam gostado da experiência e

alguns demandaram o teatro na Escola Estadual, para onde a maioria seguiria para cursar o

Ensino Médio, na modalidade EJA ou Regular.

Foi uma conversa descontraída e um impasse girava em torno de novas apresentações,

dificultada em função da agenda no final do ano escolar e do horário de trabalho dos estudantes,

nos finais de semana. Também surgiu a proposta de realização de uma festa com almoço de

confraternização num sítio, porém não houve consenso sobre dia, local e meios de transporte

para os estudantes. Alguns alegavam que já haveria uma festa de confraternização da turma na

escola, além da Missa e do Jantar de Formatura oferecidos pela escola.

A oficineira foi convidada para ser madrinha da turma, juntamente com o professor de

História. Aquele convite a comoveu e confirmou o estabelecimento de uma relação de confiança,

respeito, aprendizagem e trocas significativas ao longo do ano. A diretora e a coordenadora

escolar fizeram questão de enfatizar que a escolha da madrinha e do padrinho da turma era feito

por estima e não por interesses materiais, pois era vetada a entrega de quaisquer presentes aos

estudantes, além de um bombom com um cartão.

No Jantar da 8ª série, realizado na escola como solenidade de Formatura, um dos

estudantes afirmou para a oficineira que gostaria de tê-la apresentado para seus familiares,

presentes na missa: “Eu queria que eles vissem que tem gente que confia em mim”.

Festa de confraternização na escola. Missa de formatura da turma do 8º Ano.

110

IV.3. Ampliando o olhar por meio da comunidade.

IV.3.1 - O contato inicial e as primeiras oficinas: a espera pela definição do grupo

A oficina proposta para a comunidade de Pedras visava atender também os moradores de

duas comunidades vizinhas: Medeiros e Rio São João. O contato inicial foi feito com lideranças

comunitárias identificadas por meio de conversas com moradores locais, donos de

estabelecimentos comerciais, dirigentes públicos e o pároco do município. Cartazes foram

fixados nos armazéns, bares e portas das igrejas, além de um convite verbal feito ao final da

missa nessas três comunidades, seguido pela entrega de panfletos.

Em função do caráter de novidade da atividade proposta e do calendário de festas na

comunidade de Pedras, optou-se por realizar os três primeiros encontros abertos aos interessados,

com atividades que se encerravam no próprio dia, para simples conhecimento da proposta. Cinco

moradores de Medeiros, entretanto, se fizeram presentes nos encontros iniciais, sendo quatro no

primeiro e três no segundo. Eles afirmaram o interesse em permanecer, a adequação do dia e do

horário escolhidos (sábado, às 19 horas), porém verbalizaram a dificuldade de locomoção e não

continuaram. Os moradores do Rio São João, ao contrário, não compareceram a encontro algum.

O primeiro encontro contou com apenas oito participantes. Houve uma conversa inicial

sobre os objetivos da oficina e os fundamentos político-estéticos do Teatro do Oprimido. Em

seguida foram realizados quatro jogos teatrais, abarcando as categorias11

“sentir tudo que se

toca”, “escutar tudo que se ouve”, “ativação dos vários sentidos” e “ver tudo que se olha”. Na

avaliação final os participantes destacaram a validade do encontro para se conhecerem e terem

um momento divertido e diferente, pois aquela atividade de teatro ajudou a sair da rotina. Sobre

os jogos, ajudaram a perceber “como a gente passa pelo mundo sem ver o que acontece,

parecendo que tá cego, mecanizado mesmo”, segundo as palavras de uma participante.

Na segunda oficina o público aumentou significativamente, chegando a vinte e cinco

pessoas, entre participantes e observadores, de todas as idades. Essa oficina contemplou novos

jogos teatrais das quatro categorias supracitadas e culminou com improvisações teatrais. Os

conflitos apresentados nas cenas envolveram uma situação de bar aonde outras pessoas chegam

11

No livro Jogos para atores e não-atores Boal esclarece a importância dos exercícios e jogos no Teatro do Oprimido e os separa por categorias, conforme suas funções específicas de diminuir as distâncias entre sentir e tocar, escutar e ouvir, ver e olhar e desenvolver, concomitantemente, os vários sentidos.

111

tocando sua música bem alta e pessoas em passeata, reivindicando ao poder executivo, seus

direitos básicos, especialmente de moradia. A diversão (o caráter lúdico do TO), a atividade

diferenciada (o TO na comunidade) e a possibilidade de encontros com as pessoas foram os

principais motivos para validarem a oficina.

A terceira oficina foi exclusiva com moradores de Pedras, contando com treze

participantes, número este que permaneceu mais ou menos estável até o final. As improvisações

realizadas neste encontro trouxeram outras duas temáticas pertinentes para o fórum: a falsidade

de amigos que falam dos outros pelas costas e criticam de modo não construtivo e as drogas no

município. Neste encontro se discutiu a questão do público da oficina e houve a opção por

trabalhar todo mundo junto: crianças, adolescentes, jovens, adultos... “Quem quiser!” Também

foi estabelecido um calendário para o trabalho teatral ao longo do ano. Nos dois sábados

subsequentes não haveria oficina em função da Quadrilha e da Festa de Santo Antônio, padroeiro

da comunidade.

IV.3.2 - O desenvolvimento das oficinas: processual

A proposta inicial objetivava o público jovem e adulto, entretanto foi cada vez maior o

número de adolescentes e mesmo de crianças que acompanhavam seus pais, sendo a maioria

mães. No terceiro encontro, como foi dito, eles verbalizaram a vontade de participarem todos

juntos. No quarto, a oficina tornara-se majoritariamente juvenil, com 11 adolescentes entre 12 e

17 anos, duas crianças e apenas três adultos.

Indagados sobre a possível inibição adulta pela presença adolescente uma mãe foi

enfática: “A gente prefere que seja pra eles, pra eles ter alguma atividade, alguma coisa pra

fazer”. Em encontros anteriores a validade da oficina de Teatro do Oprimido foi destacada por

adultas participantes em termos de promoção de um momento de encontro na comunidade,

momento de descontração, “bom pra sair da rotina”.

Além do aumento da participação de adolescentes, a oficina tornou-se majoritariamente

feminina entre os integrantes adolescentes e adultos. As crianças compareciam em número

aproximado de meninas e meninos e eram, conforme seus interesses, integradas as atividades,

especialmente nos jogos e algumas improvisações. Em outros momentos ficavam brincando nos

arredores.

112

Os exercícios e jogos teatrais eram desenvolvidos com interesse e afinco e as

improvisações deles decorrentes revelavam um pouco mais sobre os universos daqueles

participantes: a homofobia presente na comunidade, o alcoolismo e o uso de drogas ilícitas,

fofocas e intrigas entre conhecidos e amigos, tabus e interditos sobre relações conjugais, sejam

elas de casamento, namoro ou “ficar”.

No quinto encontro, diversos materiais, objetos e roupas foram expostos para utilização

na oficina. Cada um que chegou foi, espontaneamente, interagindo com os materiais, de modo

curioso, investigativo, todos experimentando e se divertindo com as diversas imagens e

possibilidades estéticas e performáticas que aqueles objetos e roupas proporcionavam.

Aproveitando essa movimentação dos participantes, foi solicitado que cada um

construísse um personagem. Entre personagens fantásticos, estereotipados, distantes, televisivos

como Michael Jackson, baiana macumbeira, múmia, Jacques Le Clair, surgiram algumas pessoas

da comunidade, inclusive três opressores: uma atendente do Posto de Saúde, uma senhora que

atrapalha as festas da comunidade e um policial que abusa do poder.

As imagens abaixam retratam alguns momentos desta atividade, revelando descontração,

auxílio mútuo, alegria e irreverência entre os participantes.

Atividade de construção de personagens. Personagens em fase de construção.

113

Personagens variados construídos pelo grupo. Personagens: Jacques Le Clair, múmia e moça de pijama.

Construção da Funcionária do Posto de Saúde. Personagem misto de bahiana macumbeira com cigana cartomante.

Personagem da Múmia . Personagem do Palhaço. Personagem da Travesti.

114

Uma cena improvisada ao final deste encontro retomou o tema do alcoolismo sobre outro

enfoque: uma pessoa embriagada sendo furtada por um conhecido, com a mãe rezando

inutilmente pela proteção do seu filho. Outra revelou intrigas e briga na organização de uma festa

da comunidade.

As imagens expressas nos jogos, nas técnicas de teatro imagem e nas improvisações

realizadas até o momento retratavam questões como o alcoolismo, o uso de drogas ilícitas,

homofobia, fofoca, entre outros. Entretanto, nenhum desses temas continha força de mobilização

do grupo como um todo para a montagem da peça. É como se houvesse o reconhecimento da

existência do problema na comunidade, mas faltasse uma história objetiva para concretizá-la.

IV.3.3 - A escolha do tema gerador da peça: depoimentos íntimos

O sétimo encontro se tornou exclusivamente adolescente e majoritariamente feminino. A

ausência dos adultos da comunidade possibilitou vir à tona uma temática ainda não revelada: a

dificuldade de diálogo com os pais, especialmente no que tange as questões de namoro e

relacionamentos afetivo-sexuais. As improvisações deste dia trouxeram duas famílias: em ambas

a dificuldade de relacionamento entre os pais. Uma enfatizou a separação do casal, outra, a saída

da filha de casa culminando no envolvimento com drogas. As duas expressavam grandes

dificuldades no diálogo familiar.

Conversou-se sobre as imagens retratadas e, de repente, a roda de conversa se tornou

bastante intimista e emotiva, com as adolescentes revelando as próprias dificuldades com o

diálogo na família: a conversa das meninas com os pais é sempre mediada pelas mães, os filhos

têm dificuldade de conversar sobre questões relativas à paquera e namoro, e quando há separação

do casal a relação entre os pais não é boa, refletindo negativamente na convivência com os

filhos. Ao final da conversa as adolescentes se mostraram aliviadas por falarem sobre aquele

assunto e agradeceram pelo encontro.

Enfim, eclodira um tema que sensibilizava o grupo de modo suficiente e necessário para

a montagem da peça. Boal ressalta a importância da identificação das pessoas no processo de

construção da peça de Teatro-Fórum. Esta identificação com o tema pode ser de três tipos: por

identidade, por analogia, ou por empatia. A identidade, a mais forte delas, trata da relação direta

115

entre a vivência pessoal e o tema escolhido; a analogia, como o próprio nome diz, refere-se a

histórias com situações análogas a retratada na peça; por fim, a empatia, com menor força, mas

não menos necessária, trata-se da solidariedade com algo vivenciado pelo outro e reconhecido

como injusto.

No encontro seguinte foi proposto um trabalho estético, no qual cada participante iria

contar a história da peça por meio da pintura. Neste dia havia missa antes da oficina, mas quando

os adolescentes viram o salão cheio de papéis, tintas e pincéis ficaram rodeando os materiais e

não foram à igreja. Foi necessário começar as atividades um pouco antes das 19 horas para dar

vazão a tanta ansiedade. Os demais participantes que chegaram após a missa ingressaram na

atividade, conforme exposto nas imagens seguintes.

Atividade de pintura de cenas da peça. Atividade de pintura de cenas da peça.

Pintura de cenas da peça utilizando materiais variados. Pintura de cenas da peça utilizando materiais variados.

116

Pintura de cenas da peça, incluindo recorte e colagem. Pintura de cenas da peça, incluindo recorte e colagem.

Pintura de cenas da peça. Pintura e escultura da peça. Pintura de cenas da peça.

A culminância desta atividade propiciou diferentes leituras sobre as pinturas e projeções

de diferentes histórias, muitas delas próximas e relacionadas entre si. Neste dia não houve

construção de imagens corporais, nem improvisação. A expressão artística propiciada pela

pintura cumprira este papel.

Em encontro posterior o tema se ampliou: a falta de diálogo familiar e o medo da

conversa com os pais ganharam nova dimensão e conseqüência na improvisação, revelando uma

gravidez na adolescência. As duas mães participantes assíduas da oficina passaram por isso,

engravidando aos dezesseis anos e casando-se. Neste dia elas se colocaram a respeito,

exemplificando suas opiniões com as próprias experiências. A filha de uma delas, com catorze

anos e o primeiro namorado presente no encontro, exclamou: “Eu nunca soube como tinha

117

acontecido!” Neste caso, este é um exemplo das próprias atividades do Teatro do Oprimido

ampliando o diálogo em família almejado pelos participantes. Nesse sentido, a oficina

configurou um espaço peculiar de relacionamento familiar e comunitário, mediado pelo teatro.

No final da oficina uma conversa esclareceu alguns detalhes da história da peça. Era

consenso no grupo associar a falta do diálogo com a gravidez na adolescência.

IV.3.4 - As improvisações das cenas e a construção do texto: uma escrita posterior

O processo de construção do texto da peça na comunidade se deu em diversas etapas,

com constantes ajustes e transformações, a partir de diversas improvisações. A rotatividade dos

atores nos diferentes personagens sempre agregava valores, mas também transformava o

contexto da história, especialmente quando determinado personagem era representado por um

ator ausente que perdera os acontecimentos do encontro anterior.

A rotatividade de atores nas oficinas também alterava o rumo das improvisações no

sentido de quantidade e qualidade dos personagens, entre o coro de aliados do protagonista e do

antagonista. O problema era proposto ao grupo: “Há uma história para ser contada, nós

conhecemos essa história. Como vamos contá-la?” Ora havia duas irmãs, ora uma; em algumas

improvisações contávamos com um dono de bar fofoqueiro, noutras não; as vezes aparecia

também um irmão para acompanhar as meninas para a festa. Quando o grupo todo estava

presente surgia uma amiga para a adolescente grávida.

Certos atores demonstravam clara preferência por determinados personagens; outros

personagens ainda eram alvo de disputa entre os atores. Algumas improvisações ajudavam a

esclarecer o rumo da peça, outras traziam novos problemas a serem solucionados esteticamente.

Qual a relação entre os diferentes personagens? As fofoqueiras são amigas da mãe? O namorado

é colega de escola? Como é a relação entre mãe e pai? E deles com as filhas? Estas foram

algumas perguntas que surgiram naquele momento.

O processo de escrita do texto foi se dando em paralelo com as improvisações. Uma vez

determinado o conflito, a gravidez da adolescente protagonista, buscou-se solucionar o roteiro da

peça até este ponto e seus desdobramentos sobre como a notícia chegaria ao conhecimento do

namorado e da família. A atividade de escrita, no entanto, contava com certa resistência por parte

118

dos atores que preferiam atuar. Numa atividade de sistematização do texto da peça em dupla, por

exemplo, uma participante se absteve dessa função verbalizando para outra colega: “Ai! Escreve

você. Eu faço isso todo dia!”

As idéias propostas de forma verbal ou escritas eram improvisadas e constantemente

alteradas. Entre resistências, indefinições e muitas improvisações, uma atriz num encontro

determinou a direção da peça caracterizando a personagem da amiga em oposição a da

protagonista e todos gostaram. Tratava-se de uma amiga ardilosa e interesseira: ao mesmo tempo

em que se posicionava positivamente em relação à protagonista, também a ameaçava, pedindo

favores em troca da sua lealdade.

A personagem da mãe foi gradativamente se opondo a do pai: aquela de fala mais

enérgica, sempre reclamando, cobrando um posicionamento do pai e este totalmente passivo e

anuído, buscando evitar discussão para poder assistir sua televisão. Na família, a irmã do meio

seria aliada, agindo sempre em defesa da protagonista; a mais velha, por sua vez, uma

antagonista invejosa. O irmão, alvo de desejo da amiga, era um rapaz novo, com seus dezenove

anos, que bebia muito.

Por falta de ator, foi decidido eliminar o dono do bar. As fofocas seriam realizadas por

duas fofoqueiras que, apesar de amedrontar a protagonista com suas simples presenças e

comentários, de fato não passavam a diante as notícias que possuíam. As intrigas eram tecidas

por elas mais no intuito de constatação das informações.

O desejo da personagem protagonista, de aproximadamente 14 anos, era estudar, se

formar, para depois casar. Sonho este que termina após uma gravidez indesejada, causada por

uma relação sexual inesperada e desprotegida com o namorado. No desenlace da peça a

protagonista vai morar com o marido na casa da sogra. Em cena aparece ela ninando a criança

enquanto o marido sai para uma festa.

A peça enfocou, então, a realidade de uma família composta por pai, mãe, um filho rapaz

que bebe bastante e três filhas adolescentes, com pouco diálogo entre eles. A filha mais nova

começa a namorar escondida e engravida. O jovem casal de namorados assume o casamento em

função da gravidez e a menina vai morar na casa do marido. No final, marido sai para uma festa

e a menina, ninando o bebê, impedida de sair, questiona a falta de companheirismo do marido.

119

O desenho da peça com essas personagens foi se consolidando dia após dia, ensaio após

ensaio. No final do processo de ensaio todos os atores já haviam assumido um personagem

próprio e, freqüentemente, descobriam uma ação diferente, uma frase nova, uma piada que se

assentava na ideologia do personagem e somava na cena. O grupo constituído se autodenominou

Pedra sobre Pedra e escolheu, para nomear a peça, o titulo Igual à família da gente! O texto da

peça, entretanto, só foi escrito posteriormente as apresentações do grupo, como forma de registro

do processo, tendo por referência as próprias encenações nas sessões de Teatro-Fórum.

IV.3.5 – A cenografia, figurinos e adereços: um processo ampliado na comunidade

O décimo primeiro encontro aconteceu num domingo tarde, na praça, à sombra da igreja,

com materiais diversos para construção do cenário. Estouraram-se pipocas, comprou-se suco

para um encontro bastante diferente dos anteriores. Duas integrantes compareceram

extremamente arrumadas e não permaneceram na atividade. Outras participantes justificaram que

o jogo de futebol no campo lhes era mais atraente por motivo de paquera.

Uns meninos que sempre andam de bicicleta na quadra desta vez ficaram andando na

praça, interessados na atividade diferenciada. Inicialmente a presença deles incomodava algumas

integrantes. Foi necessário intervir, explicar que a praça era pública e, principalmente,

argumentar o quanto a atividade estava causando interesse e curiosidade nos garotos. A

argumentação funcionou: no final, terminaram todos comendo pipoca e bebendo suco juntos.

Neste dia não foi possível terminar o cenário. No final de semana seguinte, porém, não

haveria oficina em função de uma festa de 15 anos na comunidade, no sábado, e do dia dos pais

no domingo. No entanto, foi decidido ensaiar no encontro seguinte para não ficarem tanto tempo

sem ensaio.

A construção do cenário ocorreu, então, em duas etapas e propiciou novas articulações

familiares e comunitárias sob a proposta da utilização de materiais reutilizáveis e presentes na

comunidade. A tia de duas adolescentes compareceu apenas para essa atividade, ensinando aos

demais um meio de construção de bancos com garrafas “pet”, gerando um produto leve, fácil de

transportar para as futuras apresentações em outros povoados do município. Uma estante foi

reaproveitada entre o mobiliário do Posto de Saúde, que seria devolvido ao depósito da

Prefeitura – e, de fato, foi devolvida após as apresentações teatrais.

120

No lado direito do palco ficava a casa da protagonista, com sala, quarto e cozinha. No

canto, ao fundo, a cozinha com fogão, geladeira e mesa; na frente, o quarto das filhas com uma

cômoda e um espelho. No centro a sala, representada apenas por uma estante com alguns livros,

objetos variados a televisão e a poltrona do pai. As costas da estante era a frente da igreja, toda

ornamentada de bandeirinhas para a festa. No lado esquerdo ficavam o bar, no fundo do palco e

o quarto da criança na frente, composto por armário e berço, conforme imagens a seguir.

Casa da protagonista. Frente da Igreja.

121

Quarto da criança, a esquerda e bar, no fundo.

O cenário, porém, se adequava ao local da apresentação. Algumas vezes foi montado

invertido, com a casa na esquerda, bar e quarto da criança na direita, para favorecer as entradas e

saídas de cena. Em duas apresentações, como outro exemplo, utilizamos o mobiliário do local

para representação do bar.

Cenário da apresentação numa escola, com casa à esquerda. Cenário da apresentação na Câmara, com quarto no fundo.

122

Cenário da apresentação em Medeiros com bar na frente. Cenário em Ponta da Serra, com material da escola no palco.

Bar do cenário utilizando o mobiliário de madeira da Câmara. Bar do cenário com mobiliário da Associação Comunitária.

O figurino fugia do cotidiano por meio de adereços como coletes, chapéus e lenços,

principalmente, em cores variadas. As mulheres usavam sempre saias ou vestidos e os homens

calças. A saia da mãe, com tecido de chitão, se integrava ao mobiliário da casa. O pai, de pijama,

chinelo e gorro estava sempre pronto para assistir televisão e dormir. Os rapazes, irmão e

namorado, usavam coletes coloridos com boinas ou bonés, conforme o momento da peça. As

adolescentes, com saiões ou vestidos curtos estampados, também alteravam seus adereços de

acordo com as cenas. E as fofoqueiras trajavam vestido estilo antigo, com lenços na cabeça.

123

IV.3.6 - O Ensaio de Fórum: o gosto de uma primeira apresentação

O chamado Ensaio de Fórum é uma prática comum entre os praticantes de Teatro do

Oprimido que desenvolvem uma peça de Teatro-Fórum, realizando uma apresentação para

convidados antes da sessão pública. Esta apresentação traz diferentes benefícios, permitindo um

balanço geral do espetáculo, do desempenho dos atores e do ato de curingar, possibilitando,

assim, eventuais ajustes na peça antes da exibição aberta ao grande público.

O Ensaio de Fórum revela a coerência da peça e sua inteligibilidade junto à platéia. Trata-

se do primeiro contato dos atores com o público, auxiliando-os no controle de qualquer

nervosismo, orientando-os em termos de projeção vocal e treinando-os nas improvisações com as

intervenções dos espect-atores em cena. Permite, ainda, o treino da curingagem, com a

constatação de como o público apreende e reage ao problema apresentado e praticando a

argumentação junto à platéia.

No caso específico da peça “Igual à família da gente”, o ensaio foi aberto à comunidade

de Pedras em geral, com convite feito ao final da missa de Nossa Senhora Aparecida, com Igreja

lotada. Este ensaio se configurava como uma apresentação, pois era também a despedida de um

dos atores do grupo, que fazia o papel do namorado.

Esse adolescente, morador da cidade de Contagem, é primo de outros atores da peça,

vinha para a comunidade de Pedras em, praticamente, todos os finais de semana e participava

assiduamente das oficinas teatrais. No entanto, seu transporte nos finais de semana, após aquele

momento, ficaria comprometido com a venda do carro da família e seis apresentações da peça

estavam previstas para o meio da semana, cinco delas em escolas, o que impossibilitaria a sua

presença.

O ensaio aberto aconteceu numa manhã de domingo, no dia 9 de outubro, com umas 20

pessoas, aproximadamente, entre crianças, adolescentes e adultos. Os atores desempenharam

com segurança os seus papéis, souberam improvisar com tranqüilidade, solucionando os poucos

momentos nos quais saíram do roteiro e se surpreenderam descobrindo humor com o riso da

platéia em cenas inesperadas. Algumas vozes, no entanto, saíram um pouco baixa, mas não

comprometeram o entendimento da história.

124

Os problemas levantados pela platéia enfatizavam a falta de diálogo na família; a postura

do pai que consentia tudo, evitando discussões para assistir sua televisão; as atitudes da mãe de

reclamação, sem se posicionar frente aos desejos dos filhos; a gravidez adolescente e a bebedeira

do filho rapaz. O fórum contou com três intervenções: duas no lugar da mãe e uma substituindo a

protagonista. Todas investindo no momento anterior à gravidez.

Duas intervenções, em especial, marcaram os atores naquele dia. Uma ressaltava o

posicionamento da protagonista junto ao namorado, afirmando que tinha necessidade de

conhecê-lo primeiro, de conversar, antes de partirem para uma relação sexual. O modo tranqüilo

como a espect-atriz verbalizou sobre seus sentimentos e desejos em relação a sexo causou

admiração nas pessoas presentes e sua intervenção foi bastante aplaudida pela platéia e pelos

atores. Outra substituíra a mãe, fazendo-a tomar as rédeas da relação familiar, sendo mais

propositiva e franca na orientação dos filhos antes de saírem para a festa e se posicionando

firmemente com relação à bebedeira do filho.

O ensaio aberto revelou, portanto, outro foco de discussão presente na peça, ainda não

percebido pelo grupo: a questão do alcoolismo. No que tange à gravidez, uma rica polêmica se

instaurou na platéia, causando um debate sobre a orientação do uso de preservativos na educação

sexual dos filhos. De um lado, mães argumentando a favor dessa informação; do outro, a crença

de que tal orientação incentiva a prática sexual.

No final, o público elogiou o trabalho, salientou a questão das vozes baixas e sugeriu uma

maior ênfase no problema do alcoolismo. Os atores ficaram satisfeitos e contentes com a

apresentação. Restaria, agora, resolver essas pendências e a substituição do ator para o papel do

namorado.

O volume das vozes foi resolvido nos ensaios. A maior ênfase no alcoolismo foi

solucionada com a inclusão de um conflito entre mãe e filho, por causa da bebida, na hora de ir

pra festa. A substituição do ator, por sua vez, foi tentada, primeiramente, na própria comunidade.

Posteriormente, por sugestão do grupo, fez-se um convite aos atores da peça da escola. Alguns

deles eram conhecidos dos atores de Pedras. O convite foi aceito por um rapaz de Santa

Terezinha, distrito vizinho, que não conhecia diretamente os atores do grupo, mas tinham amigos

em comum e rapidamente se integrou à equipe, desempenhando bem o papel do namorado.

125

IV.3.7 - As sessões de Teatro-Fórum: diferentes experiências

A culminância de todo um processo de desmecanização corporal, análise crítica da

realidade social e criação artística de uma peça de Teatro-Fórum é a sessão de Fórum, com

apresentação pública da história encenada e debate sobre o problema exposto, visando sua

transformação. A peça “Igual à família da gente” contou com nove apresentações, sendo quatro

em escolas da Rede Municipal, uma na Escola Estadual, uma na Câmara Municipal e três em

centros comunitários de distritos e povoados.

A primeira apresentação foi na própria comunidade de Pedras, num sábado à noite, no dia

5 de novembro e contou com platéia cheia, havendo pessoas, inclusive, assistindo do lado de

fora, através das janelas do Salão Comunitário. Nessa Sessão de Fórum quatro intervenções

trouxeram diferentes propostas para o problema da gravidez. A primeira propôs uma mãe

tentando conversar com os filhos na hora de ir pra festa. A platéia argumentou que tal conversa

precisa ocorrer antes, com mais freqüência, e não em cima da hora de sair. A segunda apresentou

uma mãe acompanhando as filhas na festa. Um senhor mais velho, avô de uma das atrizes, atuou

no sentido contrário e foi categórico no papel do pai, proibindo os filhos de saírem de casa. Por

último, uma intervenção como adolescente, que se recusou a ir para trás da igreja com o

namorado na festa.

A principal discussão na platéia, porém, girou em torna das diferenças de gênero, da

necessidade de acompanhar as filhas enquanto os rapazes podem ir sozinhos, da educação e

valores diferenciados para com meninos e meninas no que se refere aos cuidados com o corpo,

permissão de relacionamentos sexuais e responsabilidades sobre uma eventual gravidez.

Intervenção da platéia em Pedras. Intervenção da platéia em Pedras.

126

A segunda e a terceira apresentações aconteceram em escolas da Rede Municipal de

Educação, uma na E.M. Raimundo Benedito de Faria, no distrito de Santa Terezinha, e outra na

E.M. Dona Balbina Antunes Penido, no Povoado de Pinheiros, nos dias 8 e 9 de novembro,

respectivamente, para um público majoritariamente adolescente.

A platéia assumiu diferentes personagens em suas intervenções, muitas delas já apontadas

na Sessão de Fórum anterior como: mãe e pai proibindo os filhos de saírem ou os acompanhado

na festa; adolescente se recusando a ir para trás da igreja; e conversa entre mãe e filhas. Os

adolescentes, porém, intervieram também após a ocorrência da gravidez, como mãe dando apoio

para a filha; e como adolescente casada, cobrando responsabilidades do marido nos cuidados

com a criança.

Tanto na escola de Santa Terezinha como na de Pinheiros, uma adolescente terminou o

namoro, favorecendo a discussão sobre o empoderamento feminino na sociedade. Na escola de

Pinheiros, no entanto, o debate ficou um pouco prejudicado em função da acústica do pátio onde

ocorreu a apresentação. Freqüentemente os espect-atores sentados no fundo solicitavam que se

falasse mais alto e reclamavam da dificuldade para ouvir.

A quarta apresentação ocorreu no dia 2 de dezembro, uma sexta-feira, à noite, na Câmara

Municipal, no centro de Itatiaiuçu, aberta à população em geral e contou, também, com

estudantes da Escola Estadual na platéia. Os adultos, porém, interviram mais que os

adolescentes.

Um diferencial das propostas trazidas pelo público nesta seção de Teatro-Fórum foi no

final, indo marido, esposa e criança juntos para a festa. Outra intervenção alertou sobre a

necessidade de contratarem uma babá para tomar conta da criança para o casal sair. Essa

sugestão propiciou a discussão sobre os cuidados que requerem uma criança, desde o nascimento

e ao longo de sua vida; as transformações que ela gera na vida dos pais e os custos de sua

criação.

127

Ativação da plateia na Câmara Municipal. Intervenção da plateia na Câmara Municipal.

Intervenção da plateia na Câmara Municipal. Intervenção da plateia na Câmara Municipal.

A apresentação seguinte ocorreu no domingo à tarde, dia 4 de dezembro, no Salão

Comunitário de Medeiros, um povoado rural próximo da divisa com o Município de Itaguara. A

platéia era majoritariamente jovem e adulta com, aproximadamente, 30 ou 35 pessoas.

As intervenções ocorreram no sentido de substituir a mãe, para dialogar com as filhas e

acompanhá-las para a festa; no lugar da amiga, orientando a adolescente no momento de ir para

trás da igreja; como adolescente, se posicionando diante do namorado, atrás da igreja, afirmando

“Eu não vim aqui com você pra isso. Vamos voltar pra festa”; mãe acolhendo filha após a notícia

da gravidez; e, por fim, como irmão, responsável pela irmã na festa, proibindo-a de sair com o

namorado de perto dele.

Enquanto analisava-se essa intervenção com a platéia, o espect-ator sentiu necessidade de

se explicar e falou, com bastante indignação: “O irmão não pode agir assim não. É obrigação

128

dele tomar conta das irmãs”. Essa afirmação foi devolvida em forma de pergunta para a platéia,

lançando luz num debate sobre a criação e os papéis direcionados para homens e mulheres na

sociedade.

Intervenção da plateia no Salão Comunitário de Medeiros. Intervenção da plateia no Salão Comunitário de Medeiros.

Após quatro apresentações externas, os atores voltaram ao seu local de origem, com uma

apresentação, no dia 7 de dezembro, quarta-feira, no Salão Comunitário, para estudantes e

educadores da E.M. Arminda Evangelista Ferreira, em Pedras. A escola de Pedras atende

também estudantes de outros três povoados: Biquinha de Pedras, Medeiros e Rio São João, os

dois últimos cujos moradores foram convidados para participarem das oficinas teatrais que

culminaram nessa peça.

Muitos atores estavam ansiosos por essa apresentação para os próprios colegas. Nesta

altura do processo os comentários sobre as encenações, a dispensa dos atores nos dias das

apresentações e as falas dos próprios participantes a respeito do processo e dos locais que

visitaram causavam interesse e curiosidade nos outros estudantes da escola.

Foi um encontro com bastante público, majoritariamente adolescente e pré-adolescente e

com muitas intervenções, embora grande parte dela trouxesse propostas redundantes, já

apresentadas por outros espect-atores como outros personagens: Mãe ou pai proibindo de ir para

a Festa; Mãe e pai acompanhando filhos na festa; amiga conversando com a adolescente, entre

outras.

Um diferencial foi ressaltado pelos atores e aplaudido com veemência pela platéia. Como

foi dito anteriormente, o Posto de Saúde de Pedras funciona, de segunda a sexta-feira, no espaço

129

do Salão Comunitário e o seu balcão de atendimento coincide com o balcão do bar, no cenário da

peça. Um estudante substituiu o namorado, foi até o balcão e pediu a atendente do Posto de

Saúde uma camisinha, causando risos em todos pela sua irreverência na integração dos papéis da

cena com a vida real. Enquanto todos exaltavam sua intervenção, no entanto, a funcionária do

Posto contestou: “Mas não adianta procurar camisinha só na hora da festa que o Posto vai tá

fechado”.

Após bastantes intervenções adolescentes, quando o ritmo do Fórum já anunciava seu

final, foi solicitada a intervenção de algum adulto. Os estudantes chamaram em coro por uma

professora específica e um deles conduziu-a até a cena. Sua proposta foi para o personagem da

mãe, conversando com as filhas sobre gravidez e orientando o filho a respeito do álcool e de

drogas em geral.

Cena da peça na apresentação para a escola de Pedras. Cena da peça na apresentação para a escola de Pedras.

Intervenção da plateia na apresentação para a escola de Pedras. Aplausos da plateia na apresentação para a escola de Pedras.

130

Estudante conduzindo professora para a cena. Atuação da professora em cena.

Diferentes contratempos determinaram algumas remarcações na agenda das

apresentações escolares, especialmente provas e avaliações variadas, tanto por parte dos atores

como das escolas anfitriãs. Deste modo, a última semana de espetáculos foi com agenda cheia.

Deixar para depois poderia significar não apresentar em função das recuperações do final do ano,

festas e férias em janeiro.

A apresentação subseqüente ocorreu na E.M. Jose Antonio Ferreira, em Ponta da Serra,

no dia 8, quinta-feira, pela manhã. O público não foi muito grande como nas outras escolas, pois

muitos estudantes não freqüentavam mais os últimos dias do ano letivo. Por outro lado, se

estivessem presentes “não daria para todos assistirem”, explicou a Diretora, devido o tamanho do

pátio interno da escola.

Apesar do pequeno espaço e do número reduzido de estudantes, o debate decorreu

animadamente. Nesta Sessão de Fórum surgiu, novamente, a proposta do sexo seguro, com uso

de camisinha. Uma professora, inclusive, assumiu o papel de namorada para negociar o uso do

preservativo. Um espect-ator se destacou na platéia intervindo três vezes em cena, sempre com

irreverência, descontração e comicidade, interpretando papéis masculinos e femininos. Numa

delas, antecipou-se, como namorado, em assumir as responsabilidades sobre a gravidez da

adolescente. “A gente vai casar. Eu fiz eu assumo. Vou lá na sua casa agora falar com seu pai”,

propôs.

Não houve alternativa com proposta inteiramente nova para os atores de Pedras que

estavam em sua sétima apresentação, mas o evento era completamente novidade para todos na

131

escola. A Diretora, que num primeiro momento achou positiva a ausência de alguns estudantes

em função do espaço, no final lamentou a falta, por não terem participado da atividade. Uma

professora elogiou, apontando que há o momento de brincar e o momento de falar sério, se

referindo as informações compartilhadas durante o Fórum.

Trajeto de ônibus para uma Escola Municipal. Trajeto de ônibus para uma Escola Municipal.

A penúltima Sessão de Fórum aconteceu no dia seguinte, sexta-feira, na E. E. Manoel

Dias Correia, no centro de Itatiaiuçu. Esta apresentação mobilizava os atores de um modo

especial, ao mesmo tempo em que lhes causava certa apreensão por se tratar da escola “Estadual”

com os estudantes mais velhos. No entanto, as encenações anteriores, tão bem sucedidas,

garantiram segurança suficiente para este novo desafio.

O auditório da Escola Estadual contava com um tablado que serviu de palco para a

encenação. Era o maior auditório entre as escolas já visitadas e estava cheio, com

aproximadamente 100 estudantes. A professora Rosário que acompanhara as oficinas de teatro

na EJA Municipal estava presente na platéia.

Um dos jogos de animação da platéia realizado nessa Seção de Fórum foi o

“Termômetro” ou “Gráfico da Participação”. Neste jogo os espect-atores devem movimentar-se

conforme sua pré-disposição para intervir em cena. Naquele dia foi solicitado que levantassem as

mãos para cima as pessoas que certamente participariam; em diagonal, aquelas que estavam na

dúvida; e, para o lado, quem não interviria em cena em hipótese alguma.

132

De fato, como anunciado anteriormente pelos espect-atores, foi um fórum com poucas

intervenções: apenas 3, sendo duas de estudantes e uma de professora. Algumas pessoas falavam

de seus lugares, mas quando interrompidas pela curingagem solicitando que mostrassem,

atuando em cena, elas se recusavam resolutas, veementes, enfáticas. As professoras tentaram

desafiar alguns estudantes, argumentando sobre suas atitudes desinibidas em outras

circunstâncias, mas não funcionou.

Algumas questões foram levantadas com a platéia a respeito de negociação de

contraceptivos entre o casal e diferenças culturais entre mulheres e homens na sociedade,

principalmente, em função dessas três intervenções; mas o fórum terminou antes do esperado.

Propôs-se, então um diálogo, caso a platéia quisesse fazer alguma pergunta para os atores sobre o

processo teatral. A única pergunta veio da professora de português, a respeito da criação do texto

do espetáculo. A atriz mãe assumiu a palavra e explicou que não havia um texto escrito; a peça

se consolidara a partir de improvisações. A atriz curinga aproveitou para ressaltar a diferença

entre o processo com o grupo de Pedras e o da EJA, cuja professora acompanhara, e que será

explicado mais adiante.

Ativação da platéia na sessão de Fórum na Escola Estadual. Cena da apresentação na Escola Estadual.

133

Cena da apresentação na Escola Estadual. Intervenção da plateia em cena na Escola Estadual.

A última Seção de Fórum aconteceu no sábado à noite, dia 10 de dezembro, na

Associação Comunitária de Santa Terezinha, um distrito situado na beira da BR-381. O espaço é

bastante amplo, com algumas colunas no centro, o que exigiu certo cuidado no modo de

organizar as cadeiras no espaço e o cenário, visando garantir uma boa visibilidade a todos.

Apesar do cuidado, o público não foi numeroso. A apresentação começou com 30

minutos de atraso à espera de mais gente que, no final, não ultrapassou a quantidade de 25

pessoas. Destas, 5 eram familiares dos atores, moradores de Pedras, que foram juntos no ônibus

para assistirem a última apresentação.

Havia chovido naquele dia, uma chuva fraca, porém em constante vai e vem. Entre

conversas com o público presente para acordar o atraso no início do espetáculo, descobriu-se a

existência de um casamento no local, o que poderia afastar parte do público. Alguns atores

ligaram para pessoas conhecidas, convidando-as. O grande tamanho do salão potencializava a

sensação de vazio.

Antes de começar, para dar ânimo ao grupo, foi recordado um conto do Eduardo Galeano

denominado “A dignidade da arte” que diz:

Os atores, mais numerosos que o público, trabalharam naquela noite como se estivessem vivendo a

glória de uma estréia com lotação esgotada. Fizeram sua tarefa entregando-se inteiros, com tudo,

com alma e vida; e foi uma maravilha. Nossos aplausos ressoaram na solidão da sala. Nós

aplaudimos até esfolar as mãos. (GALEANO, 2003, p.153).

A dignidade da arte se fez presente e o Fórum desenvolveu-se com diversas intervenções,

por parte da pequena, mas animada platéia, disposta a debater o assunto. Ao todo foram três

134

substituições como mãe, uma como pai e duas como adolescente. Uma espect-atora, ao final da

seção, falou: “Eu ficaria aqui a noite inteira”.

Grupo Pedra sobre Pedra, no dia da última apresentação. Concentração dos atores antes da apresentação.

Intervenção da plateia na ACMST. Intervenção da plateia na ACMST.

Diferentes questões chamaram atenção dos atores nas apresentações. Ao final de cada

uma delas, enquanto arrumavam o material cênico, durante as refeições nas escolas, ou mesmo

no trajeto de ônibus, sempre ressaltavam algo novo que lhes chamara a atenção, com relação ao

espaço físico, ao público presente ou a aspectos das intervenções e debates. Outrora riam dos

próprios erros e do modo como os solucionavam. Agradou-lhes conhecer outras escolas e locais

diferentes no próprio Município.

Em ambas as escolas visitadas houve referências dos estudantes aos conteúdos

ministrados em sala de aula sobre fecundação e métodos contraceptivos. A informação existe,

mas não é reproduzida livre de vergonha, constrangimento ou zoação dos colegas. Havia entre

135

eles, também, a informação sobre distribuição gratuita de camisinha nos postos de saúde, no

entanto, foram raros os adolescentes que confirmaram ter utilizado esses serviços, e sempre

rapazes. Essa discussão trouxe à tona os valores relacionados à sexualidade feminina na

sociedade, como às mulheres que praticam sexo, que ainda carregam conotações negativas.

As seções de Teatro-Fórum promoveram, de modo participativo, o debate junto ao

público presente, possibilitando discussões sobre questões relacionadas à relações de gênero, uso

de contraceptivos, distribuição gratuita de camisinhas nos postos de saúde, gravidez na

adolescência, papéis de homens e mulheres na sociedade e alcoolismo, principalmente. Os

estudantes e profissionais da Educação presentes elogiaram as apresentações nas escolas; uma

Conselheira Tutelar de Itatiaiuçu e o Presidente da Associação Comunitária de Santa Terezinha

solicitaram a realização de um trabalho semelhante em suas comunidades.

IV.3.8 - O encerramento da oficina: amigo-oculto e confraternização

O encerramento da oficina ocorreu na quinta-feira, dia 15 de dezembro, num final de

tarde, em Pedras, num sítio de um parente de alguns integrantes. Houve uma confraternização

entre participantes e familiares, com churrasco e amigo-oculto, organizado de modo coletivo,

com cada pessoa levando uma espécie de carne e bebidas. Os parentes do dono do sítio ficaram

responsáveis pelos acompanhamentos: arroz, farofa, vinagrete, além do carvão.

Foi um clima bastante festivo com gosto de festa de final de ano. A dúvida principal era

se o Teatro continuaria no ano seguinte. Alguns demonstravam claro desejo em continuar.

Outros, porém, eram francos ao explicitarem suas dificuldades de deslocamento e em manter o

compromisso todos os sábados à noite.

No momento do amigo-oculto, novos arranjos foram propostos para contemplar uma

criança que, por orientação da própria mãe, havia ficado de fora do sorteio dos nomes. Um

panetone levado para sobremesa entrou no círculo dos presentes abrindo um sorriso enorme no

rosto daquele menino, feliz por participar junto com os outros três irmãos e também ganhar um

presente.

136

A almofada de coração utilizada na peça fora sorteada entre os participantes, para a

alegria da adolescente que a ganhou e desgosto daqueles que a desejavam, mas não foram

contemplados com o sorteio. As fotos a seguir retratam um pouco do prazer vivenciado pelos

participantes naquele encerramento.

Confraternização de encerramento da oficina, em Pedras. Confraternização de encerramento da oficina, em Pedras.

Amigo-oculto no encerramento da oficina, em Pedras. Amigo-oculto no encerramento da oficina, em Pedras.

IV.4. Contrapontos e correlações entre os processos escolar e comunitário.

IV.4.1 - Rituais e normas das instituições

Indubitavelmente muitas diferenças se apresentaram na forma de inserção e

desenvolvimento do Teatro do Oprimido na escola quando comparada a comunidade de

137

moradores do povoado rural. No entanto, nenhuma dessas diferenças constituiu empecilho ao

desenvolvimento do TO.

O contato inicial na escola, por exemplo, passou, necessariamente, pela hierarquia de

poder institucional lá constituída. Não bastou falar com a coordenadora do noturno, nem mesmo

com a diretora escolar, foi necessária a autorização da Secretaria de Educação para a realização

do trabalho. Na comunidade, por sua vez, não havia uma pessoa responsável pela aprovação da

atividade: a proposta foi comunicada a diferentes pessoas, houve o interesse por parte do coletivo

de moradores na sua realização e o espaço do salão comunitário foi utilizado para o teatro. Na

escola, os tramites contratuais demandaram, também, a apresentação de documentos que de

algum modo oficializassem aquela relação de trabalho, como o projeto de pesquisa, por exemplo,

ao passo que na comunidade a proposta foi firmada apenas verbalmente.

Em ambos os locais existiam regras implícitas e explícitas para desenvolvimento das

atividades. Algumas delas foram apresentadas anteriormente ao início dos trabalhos, outras

surgiram no desenrolar do processo. Na escola essas regras perpassavam a hierarquia

institucional, a organização dos espaços e tempos, o currículo vigente, ao conteúdo da oficina e a

responsabilização sobre os estudantes. Na comunidade diziam respeito ao uso do espaço, ao

conteúdo da oficina e a responsabilização sobre os participantes. Entretanto, nenhuma delas

constituiu obstáculo ao desenvolvimento da oficina e aquelas que ofereciam algum tipo de

prejuízo ao teatro puderam ser discutidas ou relativizadas.

No que tange a realização das atividades, porém, a liberdade para se inserir ou se ausentar

do processo adquiriram conotações diferentes na escola e na comunidade. Na primeira, havia um

mecanismo institucional que anotava as pessoas com os corpos presentes ou ausentes,

independente de sua participação efetiva nas atividades. O compromisso com o coletivo da peça,

no entanto, foi exigido pelos próprios participantes pela demanda do trabalho. O mesmo

aconteceu no processo comunitário, que não tinha uma cobrança oficial por presença, mas essa

necessidade se apresentou com o desenvolvimento da montagem da peça.

Nas apresentações externas, a burocracia escolar exigia a autorização escrita dos

responsáveis pelos estudantes menores de 18 anos. Na comunidade não havia tal autorização:

fazia parte da proposta apresentada verbalmente a realização de oito apresentações, cujos

transportes seriam efetivados em ônibus da Prefeitura. No entanto, numa das apresentações o

138

ônibus não foi e os próprios moradores arrumaram um meio de se locomoverem, solicitando

ajuda ao primo de uma das participantes, proprietário de uma Kombi.

IV.4.2 - O currículo escolar

A atividade com o Teatro do Oprimido possibilitou uma inserção específica em diferentes

aspectos referentes ao currículo escolar. Como currículo está no centro das atividades escolares,

compreendendo o conjunto de todas as experiências de conhecimento presentes numa escola e

propiciadas aos estudantes, carregado de ideologia e valores repassados na instituição. O

currículo, portanto, não é neutro. “O nexo íntimo e estreito entre educação e identidade social,

entre escolarização e subjetividade, é assegurado precisamente pelas experiências cognitivas e

afetivas corporificadas no currículo” (SILVA, 1995, p.184).

Ressalta-se, com Moreira, A e Silva, T (2006) que

O currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e

interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares. O currículo não é um

elemento transcendente e atemporal – ele tem uma história, vinculada a formas específicas e

contingentes de organização da sociedade e da educação. (MOREIRA e SILVA, 2006, p.8).

A disposição das cadeiras em círculo passou a ser um hábito entre os estudantes que

chegavam e logo começavam a arrumá-las. No entanto, tal disposição era apenas para a oficina

de teatro (ou alguma atividade específica em determinada disciplina), não configurando uma

alteração permanente na escola. Ao contrário, no final das oficinas, as carteiras eram novamente

arrumadas em fileiras para o turno da manhã.

Outra proposta diferenciada em termos de uso dos espaços escolar ocorreu por ocasião

dos ensaios, com a constante utilização do pátio. Durante o intervalo, os materiais do teatro

permaneciam expostos no pátio, ao alcance da curiosidade dos outros estudantes. Além desta

transposição, outra ocorreu, pontual, específica, por ocasião da apresentação na câmara

municipal, ampliando na “sala de aula” para além dos muros escolares.

O teatro pautou, também, demandas contrárias à seriação. A primeira, apenas anunciada,

quando um estudante, com receio da reprovação e consequente mudança de turma, manifestou

seu interesse em manter-se na atividade teatral. A segunda, efetivada pelo estudante do sexto

139

ano, que se retirava de sua sala de aula, conforme disponibilidade, para desenvolver o teatro com

o grupo do oitavo ano.

A reflexão sobre o bullying, entre outras formas de violências presentes no cotidiano

social, como racismo, machismo, homofobia, ganharam campo de discussão junto aos estudantes

a partir dos jogos teatrais. Outras demandas dos movimentos sociais na luta por justiça social e

igualdade de direitos foram discutidas em diferentes momentos das oficinas, no processo de

construção das cenas e por ocasião da recusa dos dois estudantes em permanecerem na

encenação, no episódio após o Desfile de Sete de Setembro.

Muitos desses temas assumiram correspondência na oficina da comunidade, por meio das

atividades teatrais, que propiciaram um espaço de reflexão sobre problemas sociais que atingem

diferentes sujeitos na sociedade. Os temas de ambas as peças, por exemplo, guardaram muitas

semelhanças entre si, trazendo à tona a discussão das drogas, lícitas ou ilícitas, e da gravidez na

adolescência.

Nas Sessões de Fórum essas discussões ganharam perspectivas variadas com os

diferentes públicos e suas intervenções em cena. As apresentações do grupo de Pedras nas

escolas também propiciaram uma inserção diferenciada nos conteúdos curriculares escolares,

incrementando o debate sobre relações de gênero, papéis de homens e mulheres na sociedade,

gravidez na adolescência, uso de contraceptivos, distribuição gratuita de camisinhas nos postos

de saúde e alcoolismo, principalmente, por meio de um debate cênico, teatral, que garantia uma

margem de segurança, provida pelos personagens, para exposição pessoal sobre o assunto. E

estudantes e professores puderam atuar juntos em cena.

IV.4.3 - Um fórum educativo com aprendizagem por modelo

Uma premissa para o desenvolvimento do Fórum é a não substituição dos personagens

opressores, sob a pena de se produzir as chamadas soluções mágicas, que transformam o

opressor automaticamente em “bonzinho”, retirando o problema de cena e destituindo o

oprimido de sua causa de luta. A respeito da contradição opressores-oprimidos e sua superação,

Freire (1987) afirma: “Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que sua

“generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A

140

ordem social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte,

do desalento e da miséria.” (FREIRE, 1987, p.31).

Uma opressão existe justamente porque há as diferenças nas relações de poder na

sociedade e um opressor que obtém vantagens com uma determinada situação certamente não irá

abrir mão de seu status facilmente, utilizando diversas estratégias para sua manutenção. É o

oprimido que revela o opressor e precisa lutar pela superação da situação de opressão.

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma

sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles,

para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas

pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta

que, pela finalidade que lhe deram os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao

desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista de falsa

generosidade refletida. (FREIRE, 1987, p.31 e 32).

No entanto, as relações estabelecidas pelos sujeitos em suas diversas relações sociais

muitas vezes não permitem falar de um opressor absoluto. No caso da maioria das personagens

de ambas as peças montadas havia desejos ambíguos, conflitantes e margem para substituição,

em cena, de diferentes personagens.

Na peça Igual à família da gente, por exemplo, não era o desejo de absolutamente

nenhuma personagem a gravidez da adolescente. No entanto, diferentes omissões oriundas do

modo patriarcal, capitalista e midiático de se viver nesta sociedade propiciaram tal

desdobramento para a história. O pai, símbolo de opressão do patriarcado, não se opunha ao

desejo da protagonista de sair; era exatamente quem detinha a palavra final nas relações da

família e consentia que os filhos fossem a festa sem maiores diálogos e orientações, sob as

reclamações e descontentamentos da mãe.

A maioria das intervenções ocorreu no lugar da mãe, no sentido de assumir uma postura

diferente, mais firme, frente ao pai e a educação dos filhos. No entanto, algumas pessoas

substituíram também o pai, revelando erros e responsabilidades daquele personagem na educação

familiar. O mesmo aconteceu com o personagem do namorado adolescente, quando, sob a

intervenção da plateia, se propôs, espontaneamente, a usar camisinha, antecipou-se para assumir

a responsabilidade sobre a gravidez e, depois de casado, sugeriu irem todos juntos à festa ou

pagar uma babá para cuidar da criança enquanto o casal saía.

141

Em maior ou menor instância, todas essas intervenções no papel do namorado continham

um componente mágico, que fugia ao contexto ou a realidade do personagem da peça. No

primeiro caso, porém, abriu-se um debate riquíssimo sobre a responsabilidade masculina no uso

de preservativos, considerando ainda o seu custo e a distribuição gratuita nos postos de saúde,

diferentemente da camisinha feminina. No segundo, possibilitou a discussão dobre confiança nos

relacionamentos versus o exame de DNA. No terceiro, argumentou-se sobre os cuidados e

limitações advindas da criação de uma criança. E o quarto caso lançou luz nos custos financeiros

e condições emocionais desta criação.

Na peça Foi sem querer querendo, por sua vez, os únicos três personagens identificados

integralmente como antagonistas eram os dois traficantes, com desejo evidente de persuasão ao

vício, e o pai da adolescente grávida, que era extremamente machista e grosseiro com as

mulheres em cena, não dando margem à boas intenções quanto à gravidez da filha. Os demais

personagens, entre mães, adolescentes e colegas aliados eram passíveis de substituição.

Deste modo, com substituição de personagens variados, sem se eximir do debate sobre o

patriarcado, o capitalismo e a mídia contemporânea, e mesmo correndo o risco de cair, como

alerta Boal, “no teatro exemplar: uma pessoa mostrando a outra o que ela deve fazer – o velho

teatro evangelista, o teatro político de antigamente” (BOAL, 2008, p.340), propiciou-se fóruns

educativos, com uma aprendizagem advinda, também, pelo modelo de como um personagem

específico deveria agir, pautando, porém, um novo ideal social para determinados papéis na

sociedade.

IV.4.4 - Delineando limites para o Teatro do Oprimido na escola

Se todo teatro se propõe à apresentação num espaço para outras pessoas, o Teatro-Fórum

se propõe a apresentação com debate teatral, à discussão com a comunidade, à proposição de

soluções para os problemas sociais junto a outros grupos. O Teatro do Oprimido é um método de

práxis, ação-reflexão-ação no mundo, e todas as suas modalidades estimulam uma postura

protagônica em seus praticantes e espect-atores. Esse protagonismo se coaduna com as lutas dos

movimentos sociais em prol dos direitos humanos, pois “é teatro de luta! É teatro DOS

oprimidos, PARA oprimidos, SOBRE oprimidos e PELOS oprimidos, sejam eles operários,

camponeses, desempregados, mulheres, negros, jovens ou velhos, portadores de deficiências

142

físicas ou mentais, enfim, todos aqueles a quem se impõe o silêncio, de quem se retira o direito à

existência plena” (BOAL, 2005, p.30).

Como linguagem, o TO pode estimular a discussão de qualquer tema, no qual exista um conflito claro e

objetivo e o desejo e a necessidade de mudança. Na maioria absoluta dos conflitos, o diálogo é o primeiro

passo para a resolução, pois aponta caminhos e alternativas. O TO não oferece soluções mágicas para

problemas concretos, mas é um instrumento lúdico, criativo e eficaz de estímulo à reflexão, ao diálogo e à

elaboração de propostas. O TO oferece condições para que as alternativas sejam encontradas e estímulo

para que extrapolem do teatro para a vida real e se tornem fatos concretos, como no Teatro Legislativo,

onde as propostas dos espectadores se transformam em projetos de lei (Disponível em

http://www.ctorio.org.br/PRISOES.htm - acesso em 17/10/2011).

Para ser Teatro do Oprimido sua prática não pode prescindir de seus preceitos éticos.

“Fazer Teatro do oprimido já é o resultado de uma escolha ética, já significa tomar o partido dos

oprimidos. Tentar transformá-lo em mero entretenimento sem conseqüências, seria desconhecê-

lo; transformá-lo em arma de opressão, seria traí-lo” (BOAL, 2005, p.25). Sua prática deve se

dar sempre no sentido de superar as situações de injustiça e de opressão sociais; deve incentivar,

portanto, a revolta dos oprimidos e não sua adaptação e passividade, combater a “invasão dos

cérebros” pelas mídias que impõem autoritariamente seus valores e concepções estéticas; deve ir

sempre ao encontro de valores compatíveis com a distribuição de renda, equidade de direitos,

respeito às diversidades, contrário à exploração capitalista, à educação acrítica, ao preconceito,

discriminação, machismo, racismo, homofobia e toda ação humana que contrariem os direitos

humanos universais.

Por isso, para ser praticado adequadamente, alerta Santos (2010), o Teatro do Oprimido

nas escolas precisa

que a participação seja voluntária, não obrigatória, e que o projeto não vise à adaptação de estudantes ao

status quo pedagógico da instituição. É fundamental que exista a possibilidade de questionamento das

relações de poder para que o trabalho com o TO não seja cooptado, domesticado ou transformado em

trabalho didático. O TO não existe para ensinar o que seja considerado “certo” por uma elite política,

econômica, social, cultural ou intelectual e, sim, para questionar a realidade, duvidar do certo, estimular

reflexões e construir alternativas (SANTOS, Bárbara, 2010, p.128).

Uma escola que pratica a educação bancária, autoritária, sem prática democrática e

dialogada constitui uma instituição oposta à proposta do Teatro do Oprimido. Os praticantes

deste método precisam estar permanentemente vigilantes para não trabalharem a favor dos ideais

institucionais. “O desenvolvimento de um projeto de TO feito de forma adequada, com base nos

princípios éticos, estéticos, pedagógicos, políticos e filosóficos do método, invariavelmente

143

levará ao questionamento da própria existência instituição” (SANTOS, Bárbara, 2010, p.128),

com os seus mecanismos de poder e opressão.

No caso desta pesquisa, percebeu-se a inserção do Teatro do Oprimido numa fronteira

delicada entre a teatralização da escola e escolarização do teatro: ao mesmo tempo em que foi

inserido como uma atividade escolar no conteúdo das aulas de Português, manteve-se como uma

oficina independente e não obrigatória a todos os estudantes; acontecia no interior da escola, mas

propunha novas forma de utilização dos seus espaços para as aulas de teatro; sua oficineira era

vista como professora, mas não dava nota, não reprovava e nem xingava os estudantes; analisava

a estrutura do funcionamento escolar, para posicionar-se em seu interior, ao mesmo tempo que

denunciava o teatro daquela instituição, por meio da imitação de seus funcionários, por exemplo;

estava sujeito as regras da instituição, porém, não se abstinha em negociá-las, conforme suas

necessidades.

Contudo, para não cair num equívoco maniqueísta de associar uma instituição escolar a

tudo que é impositivo, autoritário e anti-democrático, é importante salientar a abertura e

acolhimento por parte dos funcionários da E.M. João Marques Machado à proposta do teatro,

sempre buscando atender as solicitações e proposições da oficineira e do grupo de estudantes

participantes.

A prática do Teatro do Oprimido na escola se inseriu nesse processo de constante

construção das relações sociais, no embate cultural, com legitimação ou refutação das regras

institucionais. Conceber a escola como espaço sócio-cultural privilegia a ação dos sujeitos na

relação com as estruturas sociais. Nas palavras de Dyrell (2001)

a instituição escolar seria resultado de um confronto de interesses: de um lado, uma organização

oficial do sistema escolar, que “define conteúdos da tarefa central, atribui funções, organiza, separa e

hierarquiza o espaço, a fim de diferenciar trabalhos, definindo idealmente, assim, as relações sociais”;

de outro, os sujeitos – alunos, professores, funcionários, que criam uma trama própria de

interrelações, fazendo da escola um processo permanente de construção social. Apreender a escola

como construção social implica, assim, compreendê-la no seu fazer cotidiano, onde os sujeitos não

são apenas agentes passivos diante da estrutura. Ao contrário, trata-se de uma relação em contínua

construção, de conflitos e negociações em função de circunstâncias determinadas. Desta forma, o

processo educativo escolar recoloca a cada instante a reprodução do velho e a possibilidade da

construção do novo, e nenhum dos lados pode antecipar uma vitória completa e definitiva. Essa

abordagem permite ampliar a análise educacional, na medida em que busca aprender os processos

reais, cotidianos, que ocorrem no interior da escola, ao mesmo tempo que resgata o papel ativo dos

sujeitos, na vida social e escolar. (Dayrell, 2001, p.137).

144

Diferentes movimentos condizentes com uma postura de autonomia e protagonismo

foram percebidos no processo, desde propostas para as cenas até a negociação para apresentação

da peça em outra escola, passando pela construção do cenário e iniciativas variadas no dia-a-dia

para solução de problemas. Entre alguns embates, foi possível desenvolver o teatro com

autonomia, efetivando na oficina um espaço de diálogo, pautado na horizontalidade das relações

entre as pessoas, buscando uma ampliação da consciência crítica sobre as desigualdades sociais,

bem como da intencionalidade política das ações humanas.

. Uma fala da coordenadora apontou três aspectos positivos em termos escolares e

educacionais que ela atribui à oficina teatral: primeiro a melhora do comportamento dos

estudantes, segundo o aumento da freqüência e, terceiro, o fortalecimento das relações do próprio

grupo.

Acredita-se que a melhora do comportamento não esteve, neste caso, relacionada com

uma submissão passiva as propostas apresentadas, pois deste modo o trabalho teatral estaria

contribuindo com a manutenção da opressão social. Ao contrário, retrata a melhora na qualidade

da relação entre os colegas, que no início envolvia diversas práticas de bullying e, com o

processo, possibilitou um amadurecimento no sentido de ver o outro como igual, companheiro de

uma caminhada na qual é importante todos chegarem juntos, a despeito dos valores

preconceituosos, competitivos e desumanizantes veiculados na mídia e no sistema vigente.

O aumento da frequência numa sexta-feira à noite certamente não se vinculou ao risco de

reprovação por falta. O teatro indubitavelmente significou prazer no universo das atividades

escolares e agregou-lhes um sentido novo ao propiciar uma investigação sensível e simbólica

sobre temas da realidade imediata dos estudantes. A rotatividade ainda presente entre os

participantes da oficina, no entanto, não impediu a análise da realidade social, montagem da peça

sobre as temáticas de interesse dos participantes, tão pouco o trabalho com sentido coletivo.

Por fim, espera-se que a coesão do grupo não se limite ao período de existência da

oficina, podendo, no entanto, abarcar os propósitos desta na atuação no cotidiano de cada um.

Todos tinham a consciência que, terminado aquele ano, cada qual seguiria seu rumo, conforme

projetos pessoais, não mantendo o grupo e nem o teatro, apesar de algumas demandas neste

145

sentido. O que não impede futuros envolvimento em movimentos coletivos em prol da

transformação social.

Entre a teatralização da escola e a escolarização do teatro pulsavam vidas que garantiam e

transformavam os sentidos das ações humanas no mundo. As limitações do método são as

limitações do próprio ser humano, com suas capacidades de olhar e ver, ouvir e escutar, tocar e

sentir, agir e transformar, engajado num processo coletivo de ampliação da consciência crítica e

transformação social, envolto, porém, em suas múltiplas personalidades e contradições sociais,

no entanto, passíveis de serem desveladas e mesmo reveladas a todo instante.

IV.4.5 - A ação da comunidade

A oficina teatral na comunidade confirmou problemas já constatados como carências

ainda características do campo no Brasil, como a dificuldade de transporte e de acesso aos bens

culturais, especialmente quando se trata de manifestações artísticas distintas das existentes no

próprio local.

Neste sentido, o trabalho com teatro veio a somar na constituição de mais um espaço

cultural, educativo e de diálogo. Pessoas com diferentes idades, presentes em diferentes graus,

aprenderam juntas uma nova modalidade de teatro, apropriando-se, cada qual ao seu tempo e

modo, desse método artístico-político-teatral que é o Teatro do Oprimido. Uma mãe, participante

em todo o processo da oficina, professora em uma escola da comunidade de Pinheiros, ao

encontrar posteriormente com a oficineira relatou que assumiu uma turma bastante agitada, em

2012, e vem desenvolvendo alguns jogos praticados na oficina, obtendo bons resultados.

Apesar das temáticas tão semelhantes apontadas em ambos os processos, diferenças entre

os povoados e distritos de Itatiaiuçu foram reveladas no cotidiano do processo, tanto nas falas

dos participantes como de modo estético. Uma oficina na qual se realizou o jogo Máquina de

ritmos e movimentos constitui um bom exemplo: as imagens corporais e sons dos integrantes

retrataram a comunidade de Pedras como uma grande família em festa e o centro de Itatiaiuçu

com características mais próximas a uma grande cidade, movimentada, barulhenta, com pessoas

e carros passando rápidos de um lado para o outro.

146

De fato a oficina de teatro aberta à comunidade, em Pedras, se configurou num espaço

bastante familiar, no sentido mesmo do parentesco entre os participantes, com a presença

constante de três famílias, sendo uma mãe com dois filhos, outra mãe com três, e quatro irmãos,

além de duas adolescentes primas dos demais. Outros participantes que compareciam de modo

mais esporádico também guardavam alguma espécie de parentesco com os frequentes.

Não foi por acaso que o tema escolhido para montagem da peça e discussão nos fóruns

pautasse um diálogo direto com a vida da família, levantando questões sobre os planos de um

jovem casal de namorados e os desdobramentos de uma gravidez no planejamento familiar. Os

tabus sobre a sexualidade, a prática de sexo seguro, os valores associados à atividade sexual de

homens e mulheres e as consequências de uma gravidez na adolescência ofereceram

contrapontos ricos para avançar no debate sobre as práticas sociais sexistas.

O modo de retratar o contexto de ocorrência da gravidez, no entanto, guarda diferenças

significativas da peça montada na escola. Na peça Igual à família da gente ela acontece a partir

de um relacionamento de namoro, ao passo que, na Foi sem querer querendo, é fruto de um

relacionamento casual e momentâneo. Não se trata de tomar uma situação como representativa

de todas as outras, mas salientar um aspecto que pode retratar diferenças dos modos de produção

de vida entre os povoados rurais e os distritos de Itatiaiuçu.

Os bairros próximos ao centro e os distritos abrigam a quase totalidade dos funcionários

das empresas mineradoras, majoritariamente homens, que vêm de outros municípios, por tempo

esporádico, para fins de trabalho, determinando um ambiente de maior fluxo de pessoas. No

período de realização das oficinas, ouviram-se referências e reclamações sobre essa presença -

“Tá uma homaiada nessa cidade”, ou “A gente só vê os ônibus chegando e descendo aquele

bando de peão” – além de casos de crianças filhas desses trabalhadores que, ao nascerem, os pais

já não estão mais na cidade.

Neste caso vale ressaltar que, aproximadamente 80% dos participantes da oficina teatral

na escola eram moradores de área urbana, em contraposição com os 20% da zona rural – perfil

que não se alterou com a mudança do semestre, como mostram os gráficos abaixo.

147

GRÁFICO 5: Local de moradia dos participantes do 1º Semestre. GRÁFICO 6: Local de moradia dos participantes do 2º Semestre.

Esta proporção apresenta uma diferença representativa quando comparada a população

total do município: 37,3% de moradores na zona rural e 62,7% na área urbana. No entanto,

nenhum dado obtido pela pesquisa pode afirmar os motivos dessas distorções percentuais.

O tema do alcoolismo entre os homens perpassou a oficina e a peça, se apresentando

como outro assunto digno de discussões na comunidade, necessitando, no entanto, de um

tratamento mais aprofundado. As histórias dos participantes revelaram diferentes casos em suas

famílias e na comunidade, relatadas sempre com dor, sofrimento e pesar.

As drogas ilícitas também foram alvo de reflexão, com especial preocupação por parte

dos adultos participantes, que revelaram o aprisionamento de um caminhão de crack, num sítio

próximo à praça central do povoado, em 2010. Uma pesquisa realizada, em 2011, pela

Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apontou a presença de crack e outras drogas em

98% dos municípios brasileiros, demonstrando que esse problema atinge a quase totalidade das

cidades do país, não se configurando como assunto exclusivo dos grandes centros urbanos.

O Teatro do Oprimido propiciou uma instância diferenciada de diálogo na comunidade e

entre as famílias participantes, recheada de prazer e arte, abrindo, porém, um leque de questões

acerca dos desafios colocados para a educação do campo no país.

37%

42%

21%

Local de moradia - 1o semestre

Centro e bairros vizinhos

Distritos

Povoados rurais

52% 28%

20%

Local de moradia - 2o semestre

Centro e bairros vizinhos

Distritos

Povoados rurais

148

V. UMA ARMA VÁLIDA: À GUISA DE CONCLUSÃO

Demonstrou-se, ao longo deste estudo, como o Teatro do Oprimido e a Pedagogia do

Oprimido, obras contemporâneas, formuladas e desenvolvidas no contexto das concepções de

educação e cultura popular que efervesceram no país na década de 1960, muito além da analogia

de seus títulos, contemplam profundas semelhanças teóricas.

O final dos anos de 1950 e, especialmente, o início da década de 1960, marcou a história

da educação popular de jovens e adultos no país, abarcando inovações metodológicas e pautando

a ênfase político-crítica necessária a um processo de apropriação da leitura e da escrita. Paulo

Freire começou a desenvolver, nesse período, sua Filosofia da Educação, construindo um método

de alfabetização de adultos, extremamente rápido e eficaz, com o diferencial de contextualizar a

realidade do educando em seu processo.

A educação para Freire se desenvolve coletivamente, em comunhão, com relações

horizontais e transversais de troca de saberes entre educadores e educandos e a prática

pedagógica é práxis, ação-reflexão-ação sobre o mundo, articulada, portanto, num processo de

análise crítica e transformação da realidade social, no sentido da superação da situação de

opressão. Com sua Filosofia de Educação e Método de Alfabetização de Adultos, Paulo Freire

contribuiu significativamente na mudança de uma visão preconceituosa e estigmatizante que

associava analfabetos a pessoas de menor valor, incapazes, ressaltando o conhecimento de

mundo, contribuições nos processos de trabalho e nas esferas sociais e culturais condizente a

esses sujeitos.

Este período da História do Brasil é marcado, politicamente, pela renúncia de Jânio

Quadros, seguida da conturbada posse de João Goulart, em 1961, sob a pressão da sociedade

civil numa campanha pela legalidade no país, contrária aos militares, entre outros grupos

conservadores que se opunham a posse do presidente de esquerda, por suas propostas populares,

democráticas e sociais. Havia uma efervescência política, de inspirações e bases socialistas, que

fortalecia os anseios de transformação no sentido de superar as injustiças e desigualdades as

quais estavam submetidas a população brasileira.

149

No campo, as Ligas Camponesas e os Sindicatos de Trabalhadores Rurais, que se

organizaram ao longo da década de 1950, pautavam os direitos dos cidadãos do campo,

reivindicando terra, moradia, saúde, educação; e denunciavam o descaso governamental com a

população campesina. Muitos padres e arcebispos católicos ratificavam as lutas dos camponeses,

destituídos de terras próprias, trabalhando em condições escravas, vivendo de modo paupérrimo,

subumano, apesar dos latifúndios improdutivos que serviam a especulação dos coronéis.

Os movimentos relacionados à cultura e educação popular, que se proliferaram por todo o

país, conduziam ações que vislumbravam uma conscientização da população, por meio das artes,

educação e cultura, com foco nas desigualdades sociais brasileiras. A favor da erradicação do

analfabetismo, universalização da educação e efetivação da reforma agrária, esses movimentos

buscavam integrar a população em torno das discussões em prol da transformação social.

O Movimento de Educação de Base (MEB), vinculado à esquerda da Igreja Católica,

concentrava suas atividades no campo. O Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife

contava com Paulo Freire à frente de suas ações e Augusto Boal articulava-se com os Centros

Populares de Cultura (CPCs) da UNE, no rio de Janeiro e em outros estados brasileiros, a partir

da difusão desses centros, vinculados às Uniões Estaduais dos Estudantes (UEEs).

Em meados da década de 1950, Augusto Boal iniciou sua trajetória no Teatro de Arena

de São Paulo, que se destacava no cenário do país por coadunar com um movimento de cunho

nacionalista, propondo uma estética pautada na realidade brasileira, valorizando as produções

artísticas nacionais, sem reproduzir os padrões culturais ou imitar as vanguardas artísticas dos

países desenvolvidos. As inquietações de Boal acerca da separação e diferenças de poder

existente entre o palco e a plateia o levaram a desenvolver e sistematizar o Teatro do Oprimido,

cuja primeira modalidade, o Teatro Jornal, fora construída ainda no Teatro de Arena, no início da

década de 1970.

A ditadura que se instalou no Brasil em 1964 interrompeu todo esse processo de

efervescência política em prol da justiça social. Acabaram-se os movimentos de educação e

cultura popular, censuraram-se produções artísticas e fecharam-se teatros. Freire e Boal foram

exilados, entre tantos outros que vislumbravam uma sociedade igualitária, e pagaram com tortura

e morte, nas mãos dos militares.

150

No âmbito educacional, o sistema ditatorial consolidou a incorporação da educação rural

ao conjunto da educação brasileira, sob um planejamento geral que excluía a possibilidade de

políticas específicas para os grupos campesinos. O processo cultural rural foi subordinado à

cultura urbana e aos mecanismos de controle ideológico do Estado Militar. Sem alocação de

recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas rurais tornaram-se responsabilidade dos

seus respectivos municípios e as atividades de profissionalização atendiam às exigências do

mercado urbano-industrial.

Ao longo do período ditatorial, a Pedagogia e do Teatro do Oprimido se desenvolveram

mundo a fora. Seus fundamentos afirmam o caráter político das ações de mulheres e homens em

suas relações sócio-históricas na sociedade e em constante produção cultural. Ambos os métodos

partem da realidade dos sujeitos envolvidos em suas ações para desenvolverem uma reflexão

crítica, educativa, dialogada, horizontal, analisando as situações de opressão social e buscando

caminhos para sua superação, coletivamente.

Tais fundamentos coadunam com as propostas teóricas e metodológicas apresentadas

pelo Movimento de Educação do Campo no país, que também assume uma posição contra

hegemônica nas relações capitalistas de produção, buscando afirmar e dar visibilidade aos

valores e à cultura dos sujeitos do campo, reconhecendo seus conhecimentos e modos próprios

de viver, reivindicando, deste modo, uma educação com escolas e práticas educativas que

atendam as especificidades dos povos do campo.

Constatou-se, ao longo deste estudo, que o caráter coletivo e, por isso, também educativo

do Teatro do Oprimido se revela do início ao fim de um processo de montagem e apresentação

das peças de Teatro-Fórum, perpassando os exercícios de ativação dos sentidos e

desmecanização corporal, os jogos de sensibilização e improvisação teatral, as técnicas de Teatro

Imagem, todos eles ativando mecanismos de comunicação não verbais e estéticos, exercitando os

pensamentos sensível e simbólico.

A montagem da peça, efetivando um processo pedagógico, com construção das cenas,

dos personagens, dos diálogos, dos cenários e adereços cênicos concretiza uma análise crítica da

realidade social, revelando uma visão dos participantes sobre as relações sócio-histórico-político-

culturais nas quais estão inseridos e anunciando um desejo de mudança. As sessões de Teatro-

Fórum culminam este processo, ampliando para mais pessoas as discussões das questões em

151

pauta, abarcando análises sobre as estratégias de poder e dominação vigente, contemplando

propostas de transformação, ampliando e aprofundando a compreensão do problema.

Evidenciou-se que o curinga, o professor-curinga ou o educador-curinga assume

fundamental importância no processo de desenvolvimento do método, uma vez que exerce um

papel de liderança junto aos grupos teatrais, podendo, com suas análises e questionamentos a

respeito dos problemas sociais abordados, favorecer o processo de ascese, ou limitá-lo. Neste

último caso, no entanto, a própria dinâmica dialogada, necessária ao desenvolvimento do Teatro

do Oprimido, permite a exaltação de múltiplas vozes, possibilitando, com elas, novos caminhos

de reflexão e ação.

Em analogia com as pedagogias e práticas educativas desenvolvidas nos estabelecimentos

de ensino, a analise sobre o curinga possibilitou lançar luzes na atuação de professores e demais

profissionais da escola, pautando sua responsabilidade ética e política na sociedade, podendo

contribuir de forma significativa para a efetivação de uma educação crítica e de uma instituição

onde predomina o diálogo nas relações humanas com vistas à transformação social.

Na pesquisa-participante, desenvolvida no município de Itatiaiuçu, com estudantes e

educadores da EJA municipal e moradores da comunidade rural de Pedras, o trabalho com o

Teatro do Oprimido propiciou a análise de parte das opressões sociais a partir das relações

conflituosas entre personagens oprimidas e opressoras, criadas por meio de jogos de imagens e

improvisações teatrais. Temas como gravidez na adolescência, drogas, alcoolismo, racismo,

homofobia, entre outros, foram geradores de discussões verbais e produções estéticas, expressões

artísticas, críticas, simbólicas e sensíveis, potencializadoras de analises e reflexões sobre a

sociedade, sua organização política e relações de poder.

Nas sessões de Teatro-Fórum, o problema das drogas lícitas e ilícitas como gerador de

dependência química e violência foi abordado, assim como questões relativas às relações de

gênero que, fruto do patriarcado sociocultural, perpetua uma diferença de poder entre homens e

mulheres, determinando papéis para ambos os sexos, limitando suas expressões de modo

condizente com a multiplicidade cabível e possível a todas as pessoas humanas. As discussões

sobre gravidez na adolescência possibilitaram, também, discussões com informações acerca do

uso de camisinha, dos tabus relacionados à sua utilização, além da sua distribuição gratuita nos

postos de saúde municipais.

152

No interior da escola, a prática do Teatro do Oprimido criou instâncias de diálogos

coletivos, horizontais, que questionaram o próprio funcionamento da instituição, a espacialidade

das salas de aula, sua estrutura física, as formas como estabelecem suas relações curriculares,

hierárquicas e de conhecimento. Sempre que surgia um impasse ou mesmo um problema na

oficina, este era solucionado coletivamente, com uma conversa em roda, considerando as

diferentes opiniões de todos os participantes. Em diversas ocasiões essas conversas se

desenvolveram no pátio central da escola, local de circulação de pessoas e, em uma delas, contou

com a participação da coordenadora, apesar de sua proposta inicial de promover uma conversa

fechada, apenas com dois estudantes, na sala da coordenação.

A prática do Teatro do Oprimido possibilitou, também, pautar as demandas sociais no

interior da instituição escolar, abarcando conteúdos curriculares normalmente ausentes dos livros

didáticos e possibilitando reflexões sobre ações concretas para superação das relações de

opressão. Quando, por ocasião do ensaio aberto do Fórum a diretora questionou o conteúdo da

peça, uma estudante assumiu a palavra e defendeu o grupo do teatro, ratificando suas escolhas,

necessidades e opções temáticas.

O desenvolvimento desta pesquisa permitiu uma aproximação do universo de Itatiaiuçu e

de seus moradores, com suas relações e formas de produção de vida, nesse município tão

próximo à capital. As peças montadas, tanto na escola quanto na comunidade, a partir das

histórias de jovens e adultos moradores do campo, revelaram questões comuns ao ambiente

urbano. Seria diferente num município distante de um grande centro? Ou exclusivamente

agrário? É certo que não faz mais sentido falar em campo como um espaço único e homogêneo,

mas em campos, múltiplos, diversos, com diferentes grupos sociais e apropriações destes sobre

os bens culturais locais, nacionais e internacionais.

Conclui-se que o Teatro do Oprimido pode se constituir como um instrumental útil

associado às lutas da Educação do Campo no país: se posicionando na contra-hegemonia do

sistema; vislumbrando o sonho e a utopia de uma sociedade igualitária e sem diferenças de

classes; propondo o diálogo nas práticas educativas; aproximando, inserindo e valorizando a

realidade das populações do campo, com seus valores, histórias e História, conhecimentos e

cultura no processo educacional; pautando as demandas sociais no interior das instituições

escolares e a luta pelos direitos humanos nos processos coletivos de apropriação do

153

conhecimento e transformação social, refletindo sobre ações concretas para superação das

relações de opressão.

Ressalta-se, por fim, como mais um elemento favorável ao Teatro do Oprimido e

condizente com a Educação do Campo, a sua metodologia lúdica, política, estética, artística e

teatral, que abarca processos simbólicos e sensíveis de conhecimento, integrando razão e emoção

de modo indissociável, ampliando os meios de expressão e compreensão da realidade, na

perspectiva da construção de um mundo mais solidário e justo.

154

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160

ANEXOS

PEÇA: FOI SEM QUERER QUERENDO.

AUTORIA COLETIVA DO GRUPO TEATRAL: OS OUSADOS

PERSONAGENS:

Bia: Adolescente que engravida

Alice: Mãe da Bia

Carlos: Pai da Bia

Maria: Amiga da Mãe de Bia

Marina: Amiga de Bia

Carol: Colega de Bia

Dona Flor: Dona do Bar

Fernando: Adolescente que se envolve com drogas

Cecília: Mãe de Fernando

Célia: Amiga de Cecília

Selma: Amiga de Cecília

Leandro: Amigo de Fernando

Bruno: Amigo de Fernando

Johnny: Colega traficante de Fernando

Fred: Colega traficante de Fernando

Jack: Chefe do tráfico

Waleska: Garota da Balada

DJ Tubarão e DJ Golfinho: Músicos da Balada.

CENA 1: Bia e Fernando, recém-nascidos, recebem visitas com presentes.

Na casa de Fernando, visitas levam bola de futebol, cofre e pingente de ouro.

Cecília: Meu filho! Mamãe está tão feliz e tem tantos planos para você!

Chegam as amigas trazendo seus presentes. Efeitos sonoros: TOC TOC TOC + PORTA SE

ABRINDO.

161

Célia e Selma: Ôh de casa! (E vão entrando).

Cecília: Oi! Entrem! Que bom que vocês vieram.

Célia: Eu trouxe uma bola pro Fernando. Para jogar com o meu filho. Os dois vão ser amigos.

Cecília: Muito obrigada. Imagine o meu Fernando e o seu Bruno jogando no Cruzeiro. Que

maravilha!!!

Selma: Eu trouxe um cofre para você ir juntando um dinheirinho para pagar os estudos quando

ele crescer. E como eu não tenho filho, e vou ser madrinha dele, trouxe esse pingente de ouro

que foi do meu avô.

Cecília: Selma, não tenho nem palavras para te agradecer. Muito obrigada.

Na casa de Bia, uma amiga da mãe leva boneca com kit de enfermagem.

Carlos: Beatriz! A que trouxe a felicidade do Papai! Ah! Minha filha! Muié, muié! Olha lá como

você vai criar essa menina! Você sabe! Filha minha não é pro bico de qualquer um não.

Efeitos sonoros: TOC TOC TOC + PORTA SE ABRINDO.

Alice: Oi, Maria, entre.

Maria: Vim conhecer a Bia. Oi, Carlos.

Carlos: Olha que belezura, comadre! Puxou o pai!

Maria: Eu trouxe essa boneca com kit de enfermagem.

Alice: Muito obrigada. Não precisava.

Carlos: Foi bom. Porque filha minha vai estudar. Estudar muito antes de namorar. Vai ser

médica! E assim é bom que ela já vai treinando com a boneca.

Maria: Nossa, Carlos! Deixa pelo menos a menina escolher o que vai querer ser.

Carlos: Fala isso com o frouxo do seu marido. Aqui vai ser da escola pra casa. E ai dela se sair

da linha.

Maria: E eu posso carregar um pouquinho?

Alice: Claro. Passa pra ela, bem.

Carlos: Por que você é mulher. Se fosse homem eu não deixava.

CENA 2: Fernando com os amigos jogando bola, chega o colega da rua.

Leandro: (narrando) Gooooooool, do Fernando!!!!!! No último segundo da partida!!!!!

162

Bruno: Que jogo, hein, amigo. Hoje você arrasou!!!! Parabéns!

Johnny: Fernando! Chega aí! Deixa eu te dar uma idéia.

Fernando: Tô Indo.

Leandro: Você conhece esse cara?

Fernando: Mora lá no alto da rua. Mudou pra cá tem pouco tempo. Parece ser legal.

Leandro: Sei, não. Já ouvi falar que ele se envolve com umas paradas erradas.

Fernando: Acho que não. Tô indo lá! (Vai saindo)

Bruno: Você vai subir com a gente?

Fernando: Não. Vão indo que eu vou demorar um pouco.

Saem: Fernando em direção à Johnny e seus amigos para o outro lado.

Johnny: (Para Fernando) Jogou bem, cara!

Fernando: Valeu!

Johnny: Vão dá um role lá em Santa Terezinha?

Fernando: Vamos. Nossa! Seu carro rebaixado ficou fino!

Fred: “Qué” dirigir?!

Fernando: Posso?! Mas eu não tenho carteira.

Fred: Tem problema não. A Chave.

CENA3: No bar.

Atendente pergunta o que desejam e a garota com as amigas pedem cerveja. Chegam os rapazes

e a garota demonstra interesse:

Bia: Quem são aqueles?

Marina: Sei não.

Carol: A placa do carro é de Belo Horizonte.

Os rapazes percebem e vão até a mesa delas.

Johnny: Ali. (indicando as meninas) Tão dando mole. Vamos chegar lá?

Fred: Vão vocês que eu to de boa. (saem em direção as meninas)

Fernando: Oi! Eu sou Fernando. Esse é meu amigo Johnny. Podemos nos sentar? (Já sentando).

163

Johnny: Gostei de você, sabia.

Marina: Leva a mal, não, mas eu tenho namorado.

Fernando: (Para Bia) E você, topa dar uma volta comigo?

Bia: Onde vamos?

Fernando: Você que manda, gata!

Bia: Vai indo que eu já vou.

Fernando: (para Amigo): Chega aí!

Saem Fernando e Johnny em direção à mesa de Fred. Fernando pede o carro para os amigos

Fernando: Empresta o carro pra eu sair com a garota.

Fred: Você não é fraco não. Leva. Mas fica me devendo essa.

Fernando passa na mesa das meninas.

Fernando: (Para Bia) Estou te esperando no carro.

Meninas sozinhas na mesa

Marina: Você sabe o que ta fazendo?

Carol: Se liga! Deixa ela se divertir!

Marina: Você sabe usar camisinha?

Bia: Que isso! Tá pensando o que de mim.

Marina: É preciso usar. Leva essa minha.

Bia: Ih! Não vai ser preciso. Não vai rolar nada.

Carol: Vai logo! Divirta-se!!!

Bia sai.

CENA 4: No carro.

Fernando: Esse carro só funciona se você me der um beijo. (Se beijam e saem)

Bia: Pra onde você ta me levando?! Aqui é tão escuro.

Fernando: Aqui a gente pode ficar a vontade. Me beija, vai.

Efeito sonoro de Música romântica.

Roupas saindo pela janela do carro.

Pára a música.

164

Bia: Não precisa usar camisinha?

Fernando: Relaxa. Confia em mim. Tá tudo sob controle.

CENA 5: Fernando deixa a menina em casa e os pais acham ruim com ela.

Alice: Beatriz! O que o pessoal vai dizer de você chegando essa hora em casa?!

Carlos: Quem é esse que veio te trazer?!

Bia: Ninguém não, Pai.

Carlos: Não mente pra mim que eu ouvi barulho de carro.

Bia: Sei do carro não. Eu estava com as meninas.

Alice: Que meninas?

Bia: A Marina e a Carol.

Carlos: Quem são essas? Duas vagabundas, aposto.

Alice: Calma, bem. A Marina é filha da Comadre Ana.

Carlos: Se eu souber de você aprontando um de nós dois sai dessa casa.

Alice: Não fala besteira. Ela já chegou. Tá tudo bem. Vamos dormir.

CENA 6: Fernando reencontra os colegas no bar e vão para uma festa!

Jonny: E aí garanhão! (Fernando fica tímido).

Fred: Diz aí, como foi?!

Fernando: Nossa! Um sonho! Muito obrigado, cara! Valeu mesmo!

Jonny: Você não viu nada. Vamos te levar pra um lugar onde tem muito mais.

Fernando: (Hesitando) Acho que não vai rolar. Minha mãe...

Fred: Mãe?! Você dirige meu carro, pega a mina e agora vai dar uma de filhinho de mamãe?!

Vira homem, porra!

Fernando: Tá certo. Vamos nessa.

Johnny: É assim que se fala! A noite tá só começando!!! Urruh!

Chegam na festa e CF1 pega um copo de bebida pra cada.

Fred: (Entregando um comprimido para Fernando) Aqui, parceiro. Experimenta isso.

165

Johnny: (Percebendo o receio de Fernando) Pode tomar. É irado. (E toma para mostrar.

Fernando toma também).

Festa rolando...

Fernando: (Para FC2) Pô, cara, me arruma mais um daquele.

Fred: O meu já acabou. Tem que comprar.

Fernando: Tô sem dinheiro.

Fred: Deixa eu fazer um negócio nesse seu colar.

Pega o colar de Fernando e sai em direção a Jack.

Fred: Aí, parceiro.

Jack: Firmeza?!

Fred: A festa tá bombando.

Jack: Maravilha.

Fred: Consegui esse ouro pra você. É do garoto ali.

Jack: (Analisando o colar): Vale. Leva esses comprimidos e depois passa lá pra buscar o seu

troco.

Fred: Valeu. (Sai em direção a Fernando com os comprimidos e mais bebida. Fernando toma).

CENA 7: Cecília horrorizada com o estado de Fernando.

Cecília rezando quando Fernando chega em casa pela manhã.

Cecília: Fernando, meu filho. Onde você passou a noite? Não me avisou nada. Não atendeu ao

telefone. Já ia chamar a polícia.

Fernando, tonto, vai direto pro sofá

Cecília: Fernando. Que estado é esse?! Você bebeu?!

Fernando apaga sem responder.

Cecília: Minha Nossa Senhora! O que deu nesse menino? Protegei meu filho.

CENA 8: Bia conversando com Marina.

Marina: Como é que foi ontem?

166

Bia: Ai! Sei lá. Foi tudo tão rápido.

Marina: Tudo o quê?! Não me diga que vocês...?!

Bia: (Encabulada) É.

Marina: (Entusiasmada) Aiii!!! Conta! Como é que foi?!

Bia: (Sem muita euforia) Uai?! Foi.

Marina: (Empolgada) Gostou?!

Bia: (Sem muita certeza) Gostei...

Marina: Que foi? Ele te forçou?

Bia: Não. Claro que não.

Marina: Mas vocês usaram camisinha?

Bia: Também não.

Marina: (Assustada) Não?! Como não? Você é doida de transar sem camisinha?! Ainda mais

com um cara que você nem conhece?!

Bia: Ai, pára de me xingar. Já basta o tanto que meus pais brigaram comigo ontem. Eles só

sabem me xingar, xingar, xingar.

Marina: Você contou pra eles?!

Bia: Claro que não. O maior carão só porque eu cheguei tarde. Me abraça, vai.

Marina: (Abraçando Bia) Ô, amiga.

CENA 9: Cecília conversando com Célia. Fernando acorda.

Cecília varre o quintal e Célia passa na rua.

Célia: Bom dia!

Cecília: Ôh, Célia. Que bom te ver. Queria mesmo falar com você.

Célia: Que houve? Que apavoramento é esse?

Cecília: Você sabe onde os meninos estavam ontem. Fernando chegou aqui num estado

deplorável.

Célia: O Leandro não saiu ontem.

Cecília: Tem certeza que os dois não estavam juntos?!

Célia: Tenho. Leandro inclusive acordou hoje cedo e tá lá ajudando o pai a capinar o quintal.

Cecília: Obrigada. Vou ter que descobrir onde esse menino passou à noite.

167

Célia sai. Fernando acorda, aproveita que a mãe está lá fora e pega dinheiro do cofre.

Fernando: Bom dia mãe.

Cecília: Fernando, nós precisamos conversar.

Fernando: Ô, mãe. Me desculpa por ontem. Eu sei que exagerei, mas não vai acontecer de novo.

Confia no seu filho.

Cecília: Eu confio.

Fernando vai saindo.

Cecília: Já vai sair?

Fernando: Só vou dar um pulo ali na praça.

Cecília: Vai com Deus.

CENA 10: Fernando encontra com Fred e Johnny e experimenta cocaína.

Fernando: E aí, Beleza?

Johnny: Fala, parceiro!

Fred: Firmeza?!

Fernando: (Mostrando o dinheiro que pegou no cofre) Olha o que eu arrumei!

Fred: Você não é fraco, não.

Johnny: Pô! Mandou muito bem!

Fred: Com isso aqui dá pra eu te arrumar da boa. Experimenta isso!

Prepara uma carreira de cocaína. Johnny mostra como cheira e Fernando experimenta a droga.

Fred: É toda sua.

Fernando cheira mais, até acabar.

CENA 11: Bia suspeita que esteja grávida.

Bia: Marina, eu estou desesperada.

Marina: Que houve?

Bia: Minha menstruação ta atrasada.

Marina: Quanto tempo?

Bia: Não sei, mas acho que tem quase um mês.

168

Marina: Quer fazer um teste de farmácia?

Bia: Tô com medo.

Marina: Eu vou pra aí. Vou comprar um teste e levo.

CENA 12: Célia descobre o cofre vazio. Fernando mente.

Cecilia: Fernando?! Fernando, vem aqui agora.

Fernando: Que houve mãe?

Cecília: Cadê o dinheiro da sua faculdade?

Fernando: Fiz inscrição no vestibular de Itaúna, Brumadinho, na PUC de Betim e de Belo

Horizonte. Fiz até na UFMG e na Federal de Lavras, de Uberlândia e de Viçosa. Em uma delas

eu passo.

Cecília: E gastou o dinheiro todo?!

Fernando: É que eu comprei as passagens para Lavras, Uberlândia e Viçosa também.

Cecília: E cadê as passagens?!

Fernando: Estão com o Bruno. Ele que comprou pra mim

Cecília: E porque você não me contou nada?

Fernando: Eu queria te fazer uma surpresa.

Cecília: (Abraçando Fernando) Oh! Meu filho! Como eu estou feliz!

CENA 13: Bia e Marina confirmam a gravidez e vão atrás de Fernando.

Bia mostra o papel para Marina.

Marina: Positivo, minha amiga, você está grávida.

Bia: (Chorando) E agora? O que eu vou fazer? Meu pai vai me matar. Pior: vai me expulsar de

casa. Pra onde que eu vou? Eu não sei nem onde o rapaz mora. Só sei que é de Itatiaiuçu.

Marina: Itatiaiuçu? Jura? Não é de Belo Horizonte?

Bia: O carro era de Belo Horizonte, mas naquela noite ele falou que morava em Itatiaiuçu.

Marina: Então nós vamos descobrir. Para de chorar. Enxuga este rosto. Vem, vamos.

Bia: Ir pra onde?!

Marina: Pra Itatiaiuçu!

169

CENA 14: Cecília encontra Bruno e descobre as mentiras de Fernando.

Cecília: Ei, Bruno! Oi, Leandro! Vocês estão sumidos. Não foram mais lá em casa.

Leandro: O Fernando que sumiu. Nem joga mais bola com a gente.

Cecília: Deve ser o vestibular.

Bruno: Uai! Ele fez vestibular? Não foi com a gente pra nenhuma prova.

Cecília: Não?! Pois ele me falou que te deu dinheiro pra comprar as passagens pra Uberlândia,

Lavras e Viçosa. Quando vai ser a viagem?

Bruno: Dinheiro?! Viagem?! Não estou sabendo de nada.

Cecília: Não?! Ele não te passou o dinheiro?!

Bruno: Não.

Cecília: Não pode ser.

Leandro: Olha, Dona Cacília, a senhora vai me desculpar, mas está havendo algum engano. O

Fernando não anda mais com a gente já faz um tempão.

Cecília: Mas vocês sempre foram amigos, desde crianças!

Leandro: Eu sei, mas ele está andando com uns caras aí, sei não...

Cecília: Que caras?

Bruno: A gente acha que eles mexem com drogas.

Cecília: Drogas?! O Fernando?! Ai, meu Deus! Eu não posso acreditar!

Bruno: Parece que está freqüentando umas festas estranhas...

Cecília: Festa estranha...

Leandro: É, dona Cecília, mas não fala nada pro Fernando que a gente te contou porque... já viu,

né?! Os caras são da barra pesada.

Bruno: A senhora está bem?

Cecília: Estou. Eu só preciso ir pra casa.

CENA 15: Fernando leva uns objetos de casa. Cecília vê a casa mexida e fica perplexa.

Música “Olha o que a droga te faz” enquanto aparece Fernando se drogando, trocando a

televisão por mais drogas, e o cordão de ouro.

170

Meu coração bate ligeiramente apertado, ligeiramente machucado.

Você caiu tão fundo nessa ilusão.

Primeira vez você bateu de frente comigo. Antes era só um menino.

Agora mudou tudo de vez.

Será que você pensa? Pois eu penso em você.

Será que é cocaína? Tá tão difícil de saber. Oh, oh...

Olha o que a droga te faz. Te deixa sem saber pra onde ir. Oh, oh...

Quando a lei te pegar não tem pra onde você fugir Oh, oh...

Nada será capaz de apagar esse amor em mim.

CENA 16: Bia e Marina chegam à casa de Cecília.

Marina: (Batendo palma) Ôh de casa?!

Cecília olha pra fora.

Marina: Boa tarde. É aqui que mora o Fernando?

Cecília: É sim.

Bia: A senhora é mãe dele?

Cecília: Sou. E vocês?!

Bia: A gente precisa falar com ele.

Cecília: Ele não está. Querem deixar recado?

Bia: Não, obrigada.

Marina: Se ele não está a gente conversa com a senhora mesmo.

Cecília: Por favor, entrem.

As meninas entram.

Cecília: Não reparem a bagunça, é que está acontecendo uma coisa horrível...

Cecília começa a chorar.

Bia: A senhora tá bem?

Cecília: O Fernando se envolveu com drogas. Vocês têm notícias dele?

Marina: Drogas?!

Bia: Eu tô esperando um filho dele.

Cecília: Filho?! Você ta grávida? Do meu Fernando?

171

Bia: (acenando com a cabeça) É.

Cecília: O Senhor seja louvado! É essa criança que vai salvar o meu filho! Vem. Nós vamos

atrás dele.

Saem

CENA 17: Morte de Fernando na balada.

Fernando: (Desesperado) Pô, arruma mais aí, cara. Eu juro que te pago.

Fred: Você está devendo muito. Não vai rolar.

Fernando: Mais eu preciso. Eu preciso. Porra, Fred!

Fred: Que isso, vai estressar agora?!

Jack, percebendo o problema, chega perto.

Jack: Tá tudo bem aí?

Fernando: Tô precisando de uma pedra. Arruma aí.

Jack: Sem dinheiro, nada feito.

Fernando: Arruma aí, porra!

Jack: Otário! Se acha muito macho.

Música na Balada enquanto levam Fernando pra morte:

Otário, se acha muito macho

Sou eu quem te esculacho,

Te faço meu escravo

Você é um lixo

Nem era tudo aquilo

Que contava pros amigos

Agora, eu destruí seu sonho de jogador Idiota

inconfiante

Não serva pra mandante

Nem mesmo pra traficante

E não se esqueça

Quem não me paga tudo

172

Não vive de forma livre

E logo vira um defunto

Antes de eu me esquecer

Todos, todos que provaram

Roubaram igual você

Antes de eu me esquecer

Só pra você saber

Todos que provaram

Acabaram igual você.

Atiram em Fernando (efeito sonoro de tiro).

Cecília, Bia e Marina chegam à festa e veem Fernando morto.

Cecília: Meu filho! O que fizeram com você!

Bia põe a mão na barriga.

Marina: (Para Bia) Vem. Vamos embora.

Música continua:

Olha os PM, olha os PM

Mataram menor de idade

Vão sair como inocente

CENA 18: Bia, em casa, conta que está grávida.

Carlos: Cadê nossa filha, mulher?!

Alice: (Vendo Bia chegar) Taí. Já chegou.

Carlos: (Para Bia) Onde é que você estava?

Bia: Na casa do Fernando.

Carlos: Quem que é esse? Vou matar esse desgraçado.

Bia: Ele já ta morto.

Carlos: Bão. É menos um.

173

Alice: Calma, Carlos. Olha o estado da menina.

Bia: (Explode) Ele é o pai do meu filho.

Carlos: (Perplexo) O quê?!

Bia: É isso mesmo. Eu estou grávida!

Carlos: Tá vendo no que deu você ficar batendo perna na rua? Não dá bom exemplo pra nossa

filha. Taí o resultado. Lixo! Eu vou sair pra não sentar a mão em vocês, mas quando eu chegar

não quero ver nem rastro de que um dia vocês tiveram nessa casa.

Sai.

Bia: E agora, mãe, o que nós vamos fazer?

Alice: Não sei, minha filha,

FIM

174

PEÇA: IGUAL À FAMÍLIA DA GENTE!

GRUPO TEATRAL: PEDRA SOBRE PEDRA.

PERSONAGENS:

Manuela: Adolescente que engravida.

Dirce: Mãe de Manuela.

Romeu: Pai de Manuela.

Betão: Irmão mais velho da Manuela.

Bela: Irmã mais velha.

Raquel: Irmã do meio.

João Pedro: Namorado da Manuela.

Pati: Amiga de Manuela.

Laura: Fofoqueira, mãe da Pati.

Lilica: Fofoqueira, tia da Pati.

Kadu: Menino do recado.

CENA 1: Em casa, filhas mais novas saindo para fazer trabalho escolar na casa da amiga.

Dirce: (Entra varrendo a sala) Oh, meu Deus! Não agüento mais essa vida de dona de casa. Todo

dia é a mesma coisa.

Romeu entra, pega o controle remoto na estante, senta-se na poltrona e liga a televisão.

Dirce: Ah, não. Assim não dá. Eu estava arrumando o quarto, você estava lá, eu vim pra sala e

você vem atrás. Eu preciso arrumar a casa.

Romeu: Ih! Vai arrumar a cozinha, vai. Não tá vendo que eu estou assistindo televisão.

Entram Raquel e Manuela, cada uma pega um livro na estante.

Manuela: Pai, mãe, nós estamos indo fazer trabalho na casa da Pati.

Dirce: Você está ouvindo, Romeu? Por que não chamam a Pati para fazer o trabalho aqui?

Manuela: Que é que tem fazer lá? Nós já combinamos.

Dirce: O que você acha, Romeu? Eu não gosto desse negócio de fazer trabalho na casa dos

outros.

Raquel: Ih, Mãe. O trabalho vale 10 pontos.

175

Romeu: Deixa ir. Elas vão estudar.

Dirce: Olha lá Romeu.

Manuela e Raquel: Tchau, mãe, tchau pai.

CENA 2: Manuela e Raquel encontram com Pati na rua.

Raquel: (Espantada) O que você tá fazendo aqui?

Manuela: A gente tá indo fazer trabalho lá na sua casa.

Pati: Ih! É mesmo. Tinha esquecido. Vim comprar a mais nova coleção de esmaltes para eu

arrasar na festa. Vocês vão?

Manuela: Se o pai e a mãe deixarem?

Raquel: Até parece que eles vão deixar.

Pati: Pois eu to agarrada lá! Já comprei uma roupa bem sexy.

Manuela: Até parece que sua mãe deixa você usar roupa curta.

Pati: Até parece que você não me conhece. Eu vou com uma saia bem longa e lá faço ficar bem

curtinha.

Riem.

Pati: Vamos sentar ali para tomar alguma coisa.

Raquel: A gente tem que fazer o trabalho.

Pati: Ah! Depois a gente faz.

Sentam-se na mesa do bar.

CENA 3: João Pedro pede Manuela em namoro.

João Pedro: Kadu, chega aí!

Kadu: Oi.

João Pedro: Chama a Manuela ali pra mim que eu te dou dois reais para você comprar um

picolé.

Kadu: (Vai até a mesa, cutuca o ombro da Manuela e aponta para João Pedro) Joao Pedro tá te

chamando.

Pati: Tá de namorico, Manuela?!

176

Manuela: Ih, gente! Nada a ver. É só amizade.

Pati: Amizade... Sei.

Manuela: Dá licença. Eu vou ali e já volto.

Sai em direção ao João Pedro.

Manuela: Oi, João Pedro.

João Pedro: Manuela, você quer namorar comigo?

Manuela: Namorar?! Eu quero, mas não posso.

João Pedro: Por que não?!

Manuela: Porque eu sou muito nova.

João Pedro: O que é que tem?! Eu também sou.

Manuela: Eu tenho que estudar.

João Pedro: Mas eu também estudo.

Manuela: Mas meus pais nunca vão deixar.

João Pedro: Eu peço a eles.

Manuela: Tá doido? Aí eles não vão deixar nem eu sair de casa.

João Pedro: A gente namora escondido.

Manuela: É que minha mãe sempre falou para eu estudar, me formar para depois casa.

João Pedro: E quem falou em casamento? Por enquanto a gente vai só namorar. (Entregando

uma almofada de coração que estava escondida nas costas) Namora comigo?

Manuela: (derretida) Tá. Eu namoro.

Beijam-se atrás do coração. João Pedro sai e Manuela volta para a mesa do bar.

CENA 4: Fofoca e chantagem.

Entram Laura e Lilica, vão em direção à mesa das meninas.

Laura: (pegando o coração da mão de Manuela) Manuela?

Lilica: Tá namorando?

Manuela: Ih, não é nada disso.

Laura e Lilica: Sei.

Pati: Mãe! Tia! O que vocês estão fazendo aqui?

Lilica: Viemos te buscar.

177

Pati: Mas nós estamos discutindo um trabalho.

Laura: Trabalho? Que trabalho?

Raquel: (Mostrando o livro) É trabalho sim. Aqui.

Laura e Lilica: Sei

Manuela: Vai indo que eu não demoro.

Laura: Só mais meia hora, então.

Lilica: (Cutucando Manuela) Tá namorando.

Laura e Lilica saem.

Manuela: (Após afastamento de Laura e Lilica) Pronto. Era só o que me faltava. As duas

maiores fofoqueiras daqui. Amanhã todo o mundo vai saber que eu to namorando e meus pais

vão me matar.

Pati: Calma que com elas eu me entendo, mas só se você me arrumar seu irmão na festa.

Manuela: Mas o Betão tá namorando uma menina lá de Medeiros.

Pati: Eu não sou ciumenta.

Raquel: Você quer ser chifruda?

Pati: Já falei que não tenho ciúmes.

Manuela: Mas ele está gostando dela.

Pati: Se vira. Ou então nada feito. Eu quero o Betão na minha mão. Olha ele ali. Fui.

Manuela sai.

CENA 5: Manuela e Raquel pedem Betão para as levarem na festa.

Manuela e Raquel: Betão, Betão, leva a gente na festa da igreja?

Betão: Festa que nada. Vocês querem é caçar homem.

Manuela: A Pati vai e você pode ficar com ela se a gente for.

Raquel: É. Ela tá super a fim de você.

Betão: Então peçam de joelhos.

Manuela e Raquel: (De joelhos) Leva a gente, Betão, por favor?

Betão: Vai lá pedir pros pais. Se eles deixarem eu levo.

Saem em direção à casa.

178

CENA 6: Em casa, autorização pra festa.

Manuela e Raquel entram todas ouriçadas.

Manuela e Raquel: Pai, mãe, deixa a gente ir à festa da igreja.

Dirce: (Vindo da cozinha) Oi, oi. Que alvoroço é esse aí?

Manuela: A gente pode ir à festa sábado?

Dirce: Que festa é essa que eu não estou sabendo?

Raquel: A festa da igreja, mãe.

Dirce: Vocês vão rezar?

Manuela: Não, mãe. A gente vai pra festa.

Dirce: O que você acha, Romeu?

Romeu: (Sem desviar a atenção da televisão) Por mim pode.

Dirce: Ah! Romeu. Eu acho que não. As meninas são muito novas.

Manuela: O Betão leva a gente.

Romeu: Pronto. Elas vão com o Betão.

Dirce: Ainda mais com o Betão. A Laura mais a Lilica já falaram que ele tá bebendo demais.

Até aqui com a gente ele já tá bebendo.

Romeu: Ele bebe porque é homem, uai.

Dirce: Não sei se é uma boa idéia não.

Chega Bela.

Bela: (Passando em direção ao quarto) Benção, pai. Benção, mãe.

Romeu e Dirce: Deus te abençoe.

Romeu: Bela.

Bela: Que foi, pai.

Romeu: Você leva suas irmãs na festa?

Bela: Posso até levar, mas tem uma condição: eu não vou ficar responsável por ninguém. Se

quiserem arrumar namorado, se forem beber, eu não tenho nada com isso. Eu sou irmã mais

velha, mas tenho só dezessete anos e não quero a obrigação de tomar conta de ninguém.

Romeu: Suas irmãs não fazem isso não. (Para Dirce) Tá vendo, a Bela leva.

Dirce: Ó, Romeu, então está sob sua responsabilidade. Por mim não iriam.

Manuela e Raquel: Obrigada, pai.

Saem.

179

CENA 7: Irmãs se arrumando no quarto e saindo pra festa.

Bela encontra o coração.

Bela: Tá explicado o motivo da festa.

Manuela: Isso é de uma amiga minha que pediu para eu guardar pra ela.

Bela: Pra cima de mim?

Raquel: Não é dela mesmo não.

Bela: Conta outra. Eu não vou tomar conta de vocês mesmo.

Manuela: Vamos rápido se não o Betão não espera.

Saem do quarto.

Manuela e Raquel: Tchau, mãe. Tchau, pai.

Bela: Benção, mãe. Benção, pai.

Romeu e Dirce: Deus te abençoe.

Manuela: Vamos, Betão.

Dirce: Betão, não bebe. Por favor.

Betão: Vou beber só água. Que passarinho não bebe.

Cuida das suas irmãs.

Betão: Ih, mãe. Eu bebo o quanto quiser. Não me enche.

Saem.

CENA 8: Fofoca na festa.

Chegam Laura, Lilica e Pati.

Lilica: Olha o tamanho da saia daquela menina? Isso é jeito de vir pra festa.

Laura: E aquela outra ali. A blusa mais parece um sutiã. Que horror.

Pati: Mãe! Tia! Não acredito que vocês já estão falando mal dos outros.

Lilica: Estamos falando mal não. É só a verdade.

Laura: É. Olha lá que pouca vergonha.

Pati: Parem de tomar conta da vida dos outros.

Laura: Estamos tomando conta não. Apenas comentando.

Lilica: Falar não faz mal a ninguém. Pelo menos a mim nunca me fez.

180

Pati: Não tem jeito com vocês mesmo. Assim eu não agüento nem ficar perto. Eu vou procurar

minha turma. Fui.

Laura e Lilica: Vai mesmo que nós vamos rezar muito pra vocês.

Pati sai inconformada em direção aos seus amigos. Laura e Lilica se ajoelham em frente à Igreja

em posição de oração.

CENA 9: Amigos na festa.

Pati: Ei, amigas. (Insinuando-se para Betão) Oi, Betão.

Betão (correspondendo) Oi, Pati.

Raquel: Nossa, a festa tá demais.

Manuela: Ah! Tá mais ou menos. Acho que vou ler um pouco.

Bela: Nunca vi trazer livro pra festa. Que coisa mais jeca.

Chega João Pedro tampando os olhos de Manuela.

Manuela: Oi, João Pedro.

Bela: Tá explicado aquele coração.

Manuela: De repente me deu uma vontade de ir ao banheiro. Você vai comigo?

João Pedro concorda.

Manuela: Já volto.

Saem.

CENA 10: Atrás da Igreja e volta da festa.

Manuela e João Pedro vão para trás da Igreja. As fofoqueiras espiam e fazem expressão de

escandalizadas. O casal sai de lá arrumando a roupa, cabelos e batom. Reencontram os amigos.

Bela: Nossa, que banheiro mais demorado.

Raquel: Por que você tá toda desarrumada?

Manuela: Vamos embora, gente. O Betão não tem mais condições de continuar na festa.

Todos ajudam a carregar o Betão que está extremamente embriagado e vão para a casa. Lá

chegando trombam nos móveis fazendo barulho. O pai levanta.

Romeu: O que tá acontecendo? Vocês estão chegando agora?

181

Manuela: Pão.

Raquel: Não.

Manuela: Nós fomos comprar pão. Quem pegou o pão.

Curinga: (Como narrador) Dois meses depois Manuela, novamente, sai para “comprar pão”.

CENA 11: Revelando a gravidez para Pati.

Manuela, se arrumando no quarto, olhando no espelho.

Manuela: Ai, nenhuma roupa mais está cabendo em mim.

Bela: É... Você tá engordando e enjoando.

Manuela: Enjoada é você.

Sai do quarto

Manuela: Mãe, to indo comprar pão

Dirce: Tem dinheiro na estante.

Manuela: Eu to com dinheiro.

Sai e encontra-se com Pati.

Pati: E ai?

Manuela abaixa a cabeça.

Pati: Não acredito...

Manuela confirma com a cabeça.

Pati: Manuela?! Você ta grávida?!

Manuela: To.

Pati: O João Pedro já sabe?

Manuela: Não.

Pati: Ótimo, porque ele ta ali no bar e você vai falar pra ele agora. Vamos.

Vão em direção a mesa do João Pedro.

CENA 12: Revelando a gravidez para João Pedro.

Pati: Oi, João Pedro.

Manuela senta-se em silencio. João Pedro percebe algo diferente.

182

João Pedro: Aconteceu alguma coisa?

Manuela: O dia ta frio, né?!

João Pedro: Eu to com calor.

Pati: Não enrola, Manuela.

João Pedro: O que você ta me escondendo?

Manuela: Não é nada não.

Pati: Manuela, Manuela. Conta logo.

João Pedro: Contar o quê?

Pati: Fala, Manuela.

Manuela: Eu to grávida.

João Pedro assusta-se.

João Pedro: E você tem certeza que o filho é meu?

Pati: Você ta achando que minha amiga é piriguete, que fica com qualquer um?

João Pedro: Ela anda com você.

Pati: Ela só ficou com você.

João Pedro: Mas foi só uma vez.

Pati: Basta uma vez.

Manuela: Da para parar de brigar, vocês dois, que o assunto aqui sou eu.

Pati: O que você vai fazer?

João Pedro: Vou sumir.

Manuela e Pati: O quê?!

João Pedro: Eu disse que vou assumir.

Manuela e Pati: (Aliviadas) Ah!...

Pati: Já sei. Domingo você vai lá na casa dela fazer o pedido do casamento.

João Pedro: É claro que eu vou.

Pati: Combinado, então.

Manuela: Ate domingo.

João Pedro: Você não vai me dar nem um beijinho?

Manuela: Não.

Manuela e Pati saem em direção à casa de Manuela. No caminho elas iniciam uma parlenda.

Pati e Manuela: “Hoje é domingo, pé de cachimbo, o cachimbo é de ouro...”

183

Manuela: (Alto, para si própria) Coragem, Manuela.

Pati: Você tem que contar.

CENA 13: Contando sobre o namoro para os pais.

Manuela: Mãe, pai, o meu namorado pode vir aqui em casa me pedir em namoro.

Dirce: Namorado? Romeu, você está ouvindo isso?

Romeu: To, to ouvindo.

Dirce: Eu acho que não deve. Você ainda é muito nova.

Romeu: Pelo menos tá vindo pedir. É melhor que namorar escondido.

Bela: Ah! Não é justo. Eu já vou fazer 18 anos e vocês ainda não me deixaram namorar.

Manuela: Eu não tenho culpa se você é encalhada.

Raquel: Não atrapalha.

Dirce: Mas e os estudos, Romeu?

Manuela: Mãe, eu vou continuar estudando.

Dirce: O que você acha, Romeu?

Romeu: Por mim pode deixar vir.

CENA 14: Pedido de casamento e saída de casa.

Betão chega com João Pedro.

Betão: Manuela, olha quem ta ai.

Manuela: Mãe, pai, esse é o João Pedro.

João Pedro: (Pegando na mão dos futuros sogros) Muito prazer.

Raquel e Pati: Oi, João Pedro.

João Pedro acena.

João Pedro: Eu vim pedir a mão da Manuela em casamento.

Todos se assustam.

Dirce: Casamento?! Mas não era namorar?

Manuela: Tem mais uma coisa.

Dirce: O quer, Manuela?

184

Manuela: Eu to grávida.

Dirce: O quê? Grávida?

Romeu quase desmaia na poltrona.

Dirce: E seus estudos, Manuela? E sua vida? Eu falei, Romeu. Não podia ter deixado essa

menina sair. Isso que dá ficar andando com a filha da Lilica.

Pati: Como assim? Eu não to de barriguinha não. Estou toda inteira e gostosona.

Dirce: vai arrumar suas coisas que você vai morar com a sua sogra. Eu não vou olhar filho dos

outros e nem quero criança chorando no meu ouvido.

Romeu: É. Nessa casa você não fica mais.

Todos se calam. Bela se antecipa, vai para o quarto e pega a mochila da Manuela. Manuela segue

para o quarto de cabeça baixa. João Pedro espera na sala. Bela entrega a mochila pra Manuela.

Bela: Isso que dá ficar indo pra trás da igreja.

Manuela pega a mochila e sai. Despede dos irmãos e da amiga na sala. Os pais se recusam a

abraçá-la. Sai abraçada com João Pedro que carrega a mochila pra ela.

Curinga: (Como narrador) Nove meses depois.

CENA 15: Na casa nova da Manuela.

Bebe chorando. Manuela veste o roupão resmungando.

Manuela: Calma, calma. Mamãe já vai te pegar. Não chora. (Pegando o bebe no berço) Pronto,

pronto.

Batem na porta.

Manuela: Poder entrar.

Pati: Oi, amiga! Vamos pra festa?

Manuela: De que jeito? O que eu faço com isso?

Pati: Deixa com sua mãe ou com a sua sogra.

Manuela: Minha mãe me odeia, esqueceu? Minha sogra me detesta. Tem jeito não. Sobrou foi

pra mim mesmo.

Pati: O seu marido vai.

Manuela: O João Pedro?! Ah! Coitado. Mas não vai mesmo.

Pati: Pois eu vou me acabar. (Mexendo com o bebe) Tchau, coisa linda. Fui.

185

Entra João Pedro.

João Pedro: Oi, To indo pra festa.

Manuela: Ah! Mas não vai mesmo.

João Pedro: Claro que vou. Por que não? Tem um tempão que eu não vejo meus amigos.

Manuela: Eu também.

João Pedro: E aquela que saiu daqui agora?

Manuela: Eu não tenho só ela de amiga.

João Pedro: Mas pelo menos viu.

Manuela: E essa criança, eu fiz sozinha, por acaso?

João Pedro: Claro que não. Nem tinha como.

Manuela: Você vai ficar para me ajudar a tomar conta dela.

João Pedro: Meu amor, ela precisa é de você agora.

Manuela: Precisa do pai também.

João Pedro: Eu vou poder dá peito pra ela?

Manuela. Claro que não.

João Pedro: Então.

Manuela: Mas você não vai.

João Pedro: Vou sim.

Manuela: Não vai.

João Pedro: Fui.

FIM

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