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7/29/2019 TCC ECA/USP_O FILME A FANTSTICA FBRICA DE CHOCOLATE: UMA PERSPECTIVA SOBRE A INFNCIA E A CULTUR
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAES E ARTES
DEPARTAMENTO DE RELAES PBLICAS, PROPAGANDA E TURISMO
CURSO DE PUBLICIDADE E PROPAGANDA
Renata Ferreira Franco
O FILME A FANTSTICA FBRICA DE CHOCOLATE: UMA
PERSPECTIVA SOBRE A INFNCIA E A CULTURA DE MASSAS
So Paulo
2012
7/29/2019 TCC ECA/USP_O FILME A FANTSTICA FBRICA DE CHOCOLATE: UMA PERSPECTIVA SOBRE A INFNCIA E A CULTUR
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Renata Ferreira Franco
O FILME A FANTSTICA FBRICA DE CHOCOLATE: UMA PERSPECTIVA
SOBRE A INFNCIA E A CULTURA DE MASSAS
Trabalho de Concluso de Curso apresentado
ao Departamento de Relaes Pblicas,
Propaganda e Turismo da Escola de
Comunicaes e Artes da Universidade de
So Paulo, como requisito para a obteno
ttulo de Bacharel em Comunicao Social
habilitao em Publicidade e Propaganda, sob
a orientao do Prof. Dr. Eneus Trindade
Barreto Filho.
So Paulo
2012
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Renata Ferreira Franco
O FILME A FANTSTICA FBRICA DE CHOCOLATE: UMA PERSPECTIVA SOBRE
A INFNCIA E A CULTURA DE MASSAS
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Orientador __________________________________
Prof.(a) Examinador(a)______________________________
Prof.(a) Examinador(a)_____________________________
Avaliao_______________________
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Dedicatria e agradecimentos
minha me, ao meu pai, ao meu irmo: meus companheiros e amores eternos.
Aos Ferreira e aos Franco, por serem parte vital da minha construo individual.
Denise por sua presena essencial.
Tadzia, ao Igor, Dafne, ao Lucas, Jlia, Aline, Dani e ao Bruno: a todos os Litroz,
meus grandes amores ecanos.
Ao meu queridssimo professor Luli pelos conselhos profissionais e pela amizade.
Ao Eneus, pela ajuda e ideia motivadora.
Carla, por suas ideias humanas e aconchegantes.
Ao Redigir, onde aprendi que amor e educao so palavras indissociveis.
s crianas que so, foram e viro.
A todos que acreditaram que este trabalho ia sair: nasceu o filho de parto mental!
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Wild child full of grace
Savior of the human race
Your cool face
Natural child, terrible child
Not your mother's or your father's child
Your our child, screamin' wild
(An ancient lunatic reigns
in the trees of the night)
With hunger at her heels
And freedom in her eyes
She dances on her knees
Pirate prince at her side
Staring into the hollow idol's eye
Wild child full of grace
Savior of the human race
Your cool face
Your cool face
Your cool face
You remember when we were in Africa?
Wild ChildJim Morrison
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Resumo
O presente trabalho tem como objetivo investigar discursos dirigidos sobre e para o
universo infantil atravs das mass medias com o intuito de problematizar o meio social em
que vive a criana na era ps-industrial do capitalismo. O trabalho conta com uma parte
terica e conceitual sobre a cultura de massas e a infncia e outra parte analtica e reflexiva.
Como forma de analisar a inter-relao entre a infncia e a cultura de massas ser utilizado o
filme A Fantstica Fbrica de Chocolate, de 1971, tanto em seu contedo narrativo, quanto
em seus desdobramentos reais como produto e motor da cultura industrial. A partir do
trabalho fica evidente que discursos e ideias adultas inundam o imaginrio sobre a infncia,assim como textos e mensagens comerciais se diluem, tomando formas amplas e praticamente
invisveis. A anlise permite uma releitura sobre a ideia de infncia em contato com as
instituies adultas, bem como uma contextualizao dos discursos disseminados pelas mass
medias sobre o universo infantil no Brasil.
Palavras-chave: infncia; mass media; cultura de massas; mercado infantil; imaginrio;
realidade; A Fantstica Fbrica de Chocolate.
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Resumen
Este trabajo tiene el objetivo de investigar los discursos dirigidos sobre y para el
universo infantil a travs de las mass medias con el intuito de problematizar el medio social
donde vive el nio en la era pos-industrial del capitalismo. El trabajo cuenta con una parte
terica y conceptual sobre la cultura de masas y la infancia y otra parte analtica y reflexiva.
Como una forma de analizar la interrelacin entre la infancia y la cultura de masas ser
utilizado la pelcula A Fantstica Fbrica de Chocolate, de 1971, tanto en su contenido
narrativo, cuanto en sus desdoblamientos reales como producto y motor de la cultura
industrial. A partir del trabajo es evidente que discursos e ideas adultas inundan el imaginario
sobre la infancia, as como textos y mensajes comerciales se diluyen, tomando formas amplias
y prcticamente invisibles. El anlisis permite una relectura sobre la idea de infancia en
contacto con las instituciones adultas, as como una contextualizacin de los discursos
diseminados por las mass medias sobre el universo infantil en Brasil.
Palabras clave: infancia, mass media, cultura de masas, mercado infantil, imaginario,realidad; A Fantstica Fbrica de Chocolates
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Sumrio
Introduo .............................................................................................................................. 9
Captulo 1 - Aporte terico: Cultura de massas ................................................................. 12
1.1Instrumentos comunicacionais e os primrdios da cultura de massa: impactos nouniverso simblico ............................................................................................................ 12
1.2 Contexto ps-industrial ..................................................................................................... 17
1.3 Sociedade de consumo ...................................................................................................... 21
1.4 A industrializao da cultura e a cultura de massas........................................................... 23
1.4.1 Sincretismo e tendncias da cultura de massa ............................................... 25
1.5 Imaginrio/real, realidade/fico ....................................................................................... 30
1.5.1 Espetculo miditico ...................................................................................... 35
1.5.2Happy end...................................................................................................... 39
Captulo 2Infncia e sociedade miditica ....................................................................... 42
2.1 Criana: ser biolgico, ser cultural ................................................................................... 42
2.2 Criana e imaginrio ......................................................................................................... 46
2.3 A infncia, o consumo e as mdias .................................................................................... 48
Captulo 3 - O filme A Fantstica Fbrica de Chocolate (1971): uma perspectiva sobre
a infncia e a cultura de massas ..................................................................................... 55
3.1 Um resumo do filme ......................................................................................................... 55
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3.2 Anlise reflexiva e simblica sobre o filme ...................................................................... 57
3.2.1. A estrutura narrativa ..................................................................................... 58
3.2.1.1. Saga pelos cupons dourados: cotidiano das crianas, a marca Wonka
e a mediao da TV - Parte I .................................................................................................. 62
3.2.1.1.1. Reflexes geraisParte I ............................................... 77
3.2.1.2. A saga na fbrica: Willy Wonka, triagem das crianas e felicidade
do heri Parte II .................................................................................................................. 80
3.2.1.2.1. Reflexes geraisParte II ............................................ 104
Captulo 4 - A Fantstica Fbrica de Chocolate: produto e motor da cultura infantil
industrializada ..................................................................................................................... 109
4.1Willy Wonka e panorama brasileiro ............................................................................ 114
Consideraes finais ............................................................................................................ 125
Referncias bibliogrficas .................................................................................................. 127
Anexos .................................................................................................................................. 132
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Introduo
A cada segundo todos ns mudamos e levamos conosco o mundo, o nosso mundo,
esse que a gente conhece, cria, transforma, recria, remonta e refaz a cada momento. O hoje, o
ontem e o amanh so mais agora que nunca, so presentes infindveis. O presente o nico
tempo atemporal. Somos seres que tem conscincia da morte, temos a lembrana do passado,
a esperana do futuro, somos os que fazem a histria e os que sofrem os seus efeitos, ns
somos tempo. O tempo existe porque ns existimos.
Somos tambm seres espaciais, para ns o mundo feito de lugares (perto, longe, ocaminho, a mata, a cidade, o campo, o mar, a montanha, o cu, a Terra), dimenses (grande,
pequeno, largo, cheio, raso, vazio...) e de qualidades (cores, sabores, sons, texturas, conceitos,
imaginao). Somos um mundo uns com os outros e, pelo que podemos perceber ao longo da
civilizao, da nossa natureza viver em sociedade, em grupo, o que proporciona conflitos,
relaes afetivas, de luta, de esperana e paz. Mas tambm guerra, violncia e opresso.
Parece ser um curso natural de renovao e transformao, mas apenas as pessoas que
conhecem e tm dimenso do mundo em que vivem, em suas diferentes esferas conceituais esimblicas, sabem da existncia dessas mudanas, tm conscincia de que antes era de um
jeito, hoje de outro e que mais tarde pode vir a ser um mundo ainda diferente. Quando existe
uma reflexo crtica e analtica acerca da realidade - estando ela intimamente ligada ao eu, aos
fatos vividos e conhecidos - possvel inclusive prever os desdobramentos desses fatos e seus
impactos na sociedade e no nosso entorno. Quem faz previses e reflexes complexas e
filosficas sobre a humanidade so frequentemente os adultos. Quem cria, expande e
produz as ferramentas que movem a histria, a economia, a tecnologia e a poltica so elestambm. Vivemos um mundo feito por adultos e para adultos. Parece no haver espao para
incluso das crianas nas decises srias e formais inerentes ao seu prprio mundo.
Esquecer que o adulto teve uma pr-vida, nasceu e foi ao menos por um tempo uma
criana , no mnimo, negligente. Ser criana ao menos uma vez o nico estgio obrigatrio
da vida, assim como o presente o nico tempo obrigatrio. Sem ele ningum existiria. Os
primeiros anos da vida por mais que muitas vezes no sejam recordados e no faam parte da
nossa memria, so complexos e de grande influncia no nosso desenvolvimento como
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pessoa cidad de dimenso psicolgica, biolgica, comunicativa, poltica, cultural e
imaginria.
A histria original do filme A Fantstica Fbrica de Chocolates
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, de 1971, deRoald Dahl e traz um conto voltado tanto para crianas quanto para adultos e surpreende pela
ousadia imaginativa do universo capitalista de Wonka e pelo moralismo generalizante. O
autor problematiza o sistema capitalista e suas ferramentas (a magia, a propaganda, as
estratgias invisveis") inerentes ao imaginrio do personagem Willy Wonka e centraliza a
aventura do heri pobre, Charlie Bucket, em um clich romanesco e adocicado. Enquanto isso,
no ncleo infantil demonaco, as crianas so punidas drasticamente com castigos violentos
pelos seus comportamentos malcriados e suas atitudes asquerosas, assim como seus
respectivos pais, responsabilizados pelos comportamentos imprprios e desobedientes de suas
crianas.
A escolha do filme de 1971 se d principalmente pelo fato de representar a
transformao do imaginrio do livro para uma linguagem acessvel e inteligvel para a
maioria das pessoas. Com o rompimento da barreira da escrita, rompe-se tambm as barreiras
impostas pela linguagem que exige antes de tudo a leitura, e exclui do contato direto com a
obra os que no entendem os cdigos lingusticos, o alfabeto. Alm do mais, nesta verso dofilme, a insero da mdia televisiva e do jornalismo espetacular como motores essenciais da
relao entre o capitalismo imaginrio da marca Wonka e as crianas, tornam a trama mais
real.
Atravs da primeira verso do filme como objeto de estudo, pretendo fazer uma leitura
crtica sobre o universo simblico inerente obra atravs de uma anlise de seu contedo
narrativo e conceitual, da sua insero no mundo cultural-comercial hoje e as relaes entre a
ideia de infncia vinculada obra, assim como a ideia de infncia hoje disseminada pela
mdia de massa no Brasil.
O tema das crianas na histria do filme central e evoca questes ligadas famlia,
educao, ao consumo, ao espetculo miditico e, em geral, relao criana e adulto nas
diferentes instncias e instituies. O tema pode ser analisado desde uma perspectiva interior,
dentro das tramas e do roteiro, em que a mdia e o capitalismo mediam as relaes do mundo
1O nome original do filme Willy Wonka and the Chocolate Factory, mas ficou conhecido no Brasil como A
Fantstica Fbrica de Chocolate.
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infantil, informando e apresentando produtos, valores, tendncias e influenciando
comportamentos e gostos. Outra perspectiva analisar o filme desde uma viso exterior, o
filme como produto cultural miditico, ou seja, envolvendo as relaes existentes entre o
produto, a produo, o pblico global e as transformaes simblicas e culturais da obra que
reverberam no Brasil na atualidade a partir de relaes comerciais miditicas envolvendo o
mundo infantil e, consequentemente, a ideia de infncia atual.
O trabalho est organizado da seguinte maneira: no captulo 1, trago um aporte terico
sobre o mundo simblico e comunicativo criado atravs de tecnologias e alimentado pela
cultura de massas - termo defendido pelo filsofo e socilogo francs Edgard Morin para
exprimir as transformaes da corrente da cultura produzida atravs de um aparato industrial
que se integra e se expande pelos horizontes da civilizao. No captulo 2, um aporte terico
sobre a infncia e suas relaes com as mass medias permite uma contextualizao sobre o
sentido do termo e as qualidades das relaes entre crianas e o mundo contemporneo. O
captulo 3 refere-se ao filme A Fantstica Fbrica de Chocolate, sendo apresentado como
produto da cultura industrial e analisado a partir da sua narrativa centrada nas relaes entre
crianas e o consumo material e miditico, assim como as mediaes adultas nessas relaes.
O captulo 4 dedicado a uma relao entre o imaginrio de Wonka e a atualidade miditica e
de consumo da infncia no Brasil.
O filme serve de apoio e complemento s teorias, assim como proporciona um dilogo
ramificado com a narrativa e o seu contexto cultural, possibilitando uma anlise que vai alm
das imagens e do roteiro em si, buscando reflexes que ajudem a desvendar os significados da
palavra infncia no filme, as relaes adulto x criana no seio da cultura cotidiana de massa
e sua relao com a vida real e atual da infncia no Brasil. Proponho um olhar crtico para
os discursos dos adultos sobre as crianas, a partir dos estudos do educomunicadorBuckingham, envolvendo-as em relaes mais amplas que englobam no apenas as comuns
relaes de causa e efeito entre crianas, mdias e consumo, mas um olhar sobre a essncia
dos discursos dirigidospara e sobre as crianas e a ideia de infncia alimentada pelos adultos
e envolvidas nessas expresses. Inevitavelmente, passa a ser necessrio um olhar crtico sobre
os discursos dos adultos e seu estilo de vida permeado por um sistema econmico e social
desigual e desumano, que impe situaes de vida degradantes no s maioria dos adultos,
mas tambm maioria das crianas.
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Captulo 1 - Aporte terico: Cultura de massas
1.1. Instrumentos comunicacionais e os primrdios da cultura de massa:impactos no universo simblico
Durante mais de dois sculos, o moderno processo de emancipao do indivduo realizou-se pelo direito e pela poltica, pela produo e pela cincia; a segunda metade do sculo XXprolongou essa dinmica pelo consumo e os meios de comunicao de massa(LIPOVETSKY, 2007, p. 155).
A partir do sculo XX, as artes tcnicas passaram a ser utilizadas e moldadas pararesponder a uma demanda de consumo no mais voltada apenas para a experincia palpvel e
material, mas tambm para o campo psquico e sensitivo, apoiado pelos campos frteis e
afetivos da linguagem audiovisual, potente exploradora de informaes e narrativas com a
mescla de diferentes universos simblicos: a imagem, a palavra falada, a escrita, a msica, o
silncio (MORIN, 2009).
Configurando o incio da industrializao da cultura, as tcnicas e seus
desdobramentos no campo cultural e comunicativo - o cinema, a TV, o rdio, a Internet, atelegrafia sem fios - somente puderam se desenvolver e se aprimorar devido aos interesses
econmicos e polticos existentes por trs de tais tecnologias e potencialidades comunicativas
e artsticas.
Nesse sentido, creio ser necessrio citar duas tecnologias anteriores ao sculo XX: a
imprensa e o telgrafo. Elas iniciaram aos poucos um terreno frtil para a implantao e
manuteno do controle dos meios de comunicaes de massa, sua produo e,
consequentemente, a divulgao dos valores e ideais envolvidos nos interesses de uma
pequena parcela da populao, que tem acesso no somente ao consumo miditico, mas
produo de contedo de mdia massiva.
Desenvolvidas em pocas diferentes, a imprensa no sc. XV e o telgrafo no fim do
sc. XIX, inevitavelmente (mas no intencionalmente) interferiram de maneira irreversvel e
impactaram de uma vez por todas a vida prtica e simblica humana. A partir delas, as
referncias de tempo e espao so deslocadas e o contato entre os seres humanos, e entre eles
e o mundo, transformado de maneira drstica.
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O surgimento da prensa tipogrfica se d no sculo XV, importante momento de
transio da histria marcada pelo fim da Idade Mdia e o incio da Idade Moderna, assim
como o nascimento do capitalismo e o fim do feudalismo. Tal transformao significou uma
mudana radical na organizao das sociedades ocidentais: do campo para as cidades; na sua
forma produtiva: do trabalho na terra para o trabalho urbano (comrcio), permitindo a
ascenso da burguesia como classe dominante, bem como os seus valores e ideologias ligadas
Igreja, famlia e propriedade privada dos meios de produo, incluindo-se a no apenas
meios de produo de produtos materiais, mas tambm os meios de produo de comunicao
de massas.
De acordo com Neil Postman (1999), a prensa tipogrfica marcou a formao de um
novo ambiente comunicacional a partir do sculo XVI caracterizado pela impresso e
disseminao de livros atravs do prelo (forma pioneira de impresso de livros) e do
nascimento da imprensa, que causaram impactos na vida cultural e letrada da humanidade.
O alfabeto era um cdigo altamente complexo e de difcil decifrao, concentrado e
controlado pelas corporaes de escribas e pela Igreja, em que lhes eram garantidos
privilgios intelectuais e poder baseado em deteno de conhecimento. Apesar do
analfabetismo altamente disseminado na poca, a prensa tipogrfica significou um avano emrelao democratizao dos smbolos da comunicao a partir da simplificao da tipografia
e da produo de livros.Interessava Igreja estimular um acesso mais restrito alfabetizao,
induzindo seus clrigos a formar uma corporao de escribas que fossem os nicos a conhecer
os segredos teolgicos e intelectuais (POSTMAN, 1999, p.26).
Com a simplificao do alfabeto e a disperso dos livros e da cultura clssica, houve
espao para que a alfabetizao socializada acontecesse e o acesso aos cdigos lingusticos
fosse difundido. Postman explica a alfabetizao socializada como contrria alfabetizao
corporativa e restrita, sendo ela caracterizada pela condio em que a maioria do povo apto
para a leitura e realmente o faz.
A tipografia, ento, possibilitou o exerccio da leitura (primeiro em voz alta e depois
silenciosa) como um processo do desenvolvimento de autocontrole e da pacincia, j que
necessrio aguardar a sequncia das palavras at que elas faam algum sentido. Alm disso, a
leitura silenciosa pessoal e introspectiva, sem presena da oralidade, at ento base das
comunicaes humanas. Dessa forma, a transferncia do leitor em voz alta para o leitor
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silencioso e voltado para si mesmo criou um ambiente psicolgico frtil para que o
individualismo se tornasse uma condio psicolgica normal.
A partir de Gutenberg, pode-se dizer que os nossos interesses so alterados e dirigidoscada vez mais para o eu, indivduo nico e importante em si mesmo: a vida e a mente humana
transcendem a comunidade em algum sentido fundamental (POSTMAN, 1999, p. 42). Alm
disso, a busca pelo reconhecimento e realizao pessoal foi ampliada de forma extraordinria,
criando uma nova ideia de individualidade, a partir da possibilidade criada com o prelo de
fixar as prprias palavras e obras para sempre, transportando a identidade pessoal para lugares
e tempos desconhecidos, nascendo assim a ideia de autor.
Nesse contexto, Postman se refere ao nascimento das duas primeiras tendnciasjornalsticas que vigoram at os dias atuais: a imprensa marrom e o ensaio pessoal. Pietro
Aretino o primeiro a us-la como meio de exposio massificada de assuntos
constrangedores e tabus (obscenidades clericais, histrias difamatrias, acusaes pblicas e
opinies pessoais). Em outras palavras, ele representa o incio de uma tradio jornalstica que
prospera at os dias atuais: o que chamamos hoje de imprensa marrom ou sensacionalista - a
mdia peridica como confessionrio e expositora da vida privada. Pouco depois, outro
homem, Montaigne, adotou um estilo de escrita compatvel com a necessidade do indivduode se comunicar com a multido: o ensaio pessoal, onde o escritor divulga a si prprio como
indivduo em oposio comunidade, dando potncia e grande difuso s palavras. Ao
abordar estas tendncias jornalsticas, Postman cita uma frase de Marshall McLuhan que
resume de maneira geral o que significou o impacto da prensa tipogrfica na sociedade: com a
tipografia foi imediata a descoberta do vernculo como sistemas de alto-falantes (MCLUHAN,
1962, p.233, apud POSTMAN, 1999, p.40). A tipografia inaugura o que poderamos chamar
de pleo-cultura de massa, no sentido de que ela atrai um lento movimento de democratizaoda cultura clssica (greco-latina-crist) e que ela sustenta a cultura burguesa (MORIN, 2009,
p.56).
Assim, dado incio disperso da informao, da cultura clssica e dos valores
burgueses atravs da potente linguagem escrita. Esse movimento ampliado e acentuado com
a inveno de Morse em 1832, o telgrafo. Antes dele, a comunicao humana se baseava nas
referncias de alcance mvel humano, seja atravs do seu prprio corpo ou atravs da
intermediao de veculos humanos (transporte fsico) - o que poderia ser um impedimentopara a efetividade da comunicao. Com o envio instantneo de uma mensagem eltrica
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atravs de um meio condutor - essncia do telgrafo, da telefonia, do rdio - as dimenses da
comunicao humana foram transformadas, ultrapassando as barreiras do tempo e do espao
humanos e rompendo o vnculo histrico entre transporte e comunicao. A notcia enviada
por esse tipo de tecnologia comunicativa instantnea e sem fonte identificvel, sendo
possvel a criao de um mundo de informao annima e descontextualizada. As mensagens
tomaram propores gigantescas, pois uma voz do alm que envia a notcia, uma voz que
vem de todos, um todo no identificado, eles. O telgrafo e o jornal direcionam uma
mensagem a uma massa, a uma multido, mas se diferem no fato de que a mensagem enviada
pelo telgrafo no tem uma fonte identificvel, enquanto que o jornal tem, mesmo que se trate
de uma fonte questionvel.
Paralelamente ao telgrafo e ao desenvolvimento da comunicao eltrica,
desenvolve-se a revoluo grfica - cinematgrafo, TV, computao - e com ela a ascenso de
um novo mundo simblico, onde estampas e anncios ganham poder e se disseminam pelo
imaginrio social atravs dos meios de comunicao. Imagens e ideias (informao) so
produzidas numa quantidade estrondosa, descontrolada e fragmentada, e logo, dispersadas
para os quatros ventos, aos quatro cantos do mundo e direcionadas a quaisquer pessoas,
independentemente do gnero, idade, crena ou classe social.
A invaso da informao imagtica e audiovisual no do mesmo universo simblico
da palavra, ela tem suas caractersticas particulares e exige outro tipo de percepo e resposta,
que pode ser resumida na palavra esttica. A linguagem uma abstrao da experincia, ao
passo que as imagens so representaes concretas da experincia (POSTMAN, 1999, p. 87).
O autor atenta ainda para o fato de que essas duas formas de se comunicar exigem processos
cognitivos distintos e so percebidos de diferentes maneiras. A linguagem composta de
smbolos (palavras) que exprimem um significado abstrato, uma ideia, um conceito e exigeum conhecimento prvio do cdigo, o alfabeto. J as imagens so concretas e irrefutveis, so
de assimilao imediata e exige uma resposta esttica.
Tendo em vista essa comparao como tentativa de esboar de maneira objetiva as
qualidades do novo complexo comunicativo em que estamos todos inseridos, no convm
julgar se um tipo de informao e tecnologia mais vlido que outra, mas sim encar-las
como complementares ao corpo simblico e cultural da civilizao a partir do sculo XX.
Assim, o carter da informao antes marcado pela pessoalidade e regionalidade pde
transformar-se em informao impessoal e global; a informao antes essencialmente de
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carter textual e oral, passa a ser produzida maciamente atravs de imagens o que no
implica numa substituio e sim em uma complementao do ambiente comunicativo,
passando a coexistir livros, filmes, jornais, televiso, internet. Ou seja, o carter da
informao pde passar de discursivo e racionalista a no-discursivo e emotivo, afetando o
meio comunicacional humano e tornando relativas e complexas as noes e percepes de
realidade e imaginao, um desordenado e poderoso ataque linguagem e leitura, uma
reelaborao do mundo das ideias em cones e imagens com a velocidade da luz (POSTMAN,
1999, p.87).
Postman aponta a evidncia de que existem ideias de natureza comunicativa por trs
dessas tecnologias e mquinas que podem influenciar nosso ambiente comunicacional e
apresentar uma viso de mundo prpria que ir entrar em contato com a vida prtica humana,
que por sua vez ir se adaptar e atuar sobre ela. Por exemplo, o conceito de tempo, de espao,
de escala e de conhecimento so impactados por essas ideias encarnadas em tecnologias
atravs de mquinas criadas pelo homem, como: o relgio, a bssola e o telescpio,
evidenciando a constituio dialtica da relao cultural e existencial humana, em que o que
criamos forma e transforma de alguma maneira o que somos, a nossa essncia.
Ao longo dos anos os temas que desabrocham ou desfalecem, evoluem ou se estabilizam nocinema, na imprensa, no rdio ou na televiso traduzem uma certa dialtica da relaoproduo-consumo (...) dialtica entre o sistema de produo cultural e as necessidadesculturais dos consumidores (MORIN, 2009, p.47).
A partir das mudanas tecnolgicas no campo da comunicao, Postman cita Harold
Innis e revela resumidamente a essncia dos trs tipos de efeitos invariveis decorrentes
destas transformaes: alteram a estrutura dos interesses (as coisas em que pensamos), o
carter dos smbolos (as coisas com que pensamos) e a natureza da comunidade (a rea em
que os pensamentos se desenvolvem) (POSTMAN, 1999, p.37).E estes efeitos operam muitas
vezes sem nos darmos conta da sua dimenso e do seu poder de influncia na vida humana,
pois, como veremos, essas tecnologias vo muito alm do impacto tecnicista, entrando a
fundo no esprito do homem por tratar-se de intervenes de cunho comunicativo, educativo,
afetivo e persuasivo em relao constante com indivduos e instituies (pblicas e privadas).
Podemos descobrir que a estrutura da nossa conscincia vem sendo remodelada para
corresponder estrutura da comunicao (POSTMAN, 1999, p.37).
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1.2. Contexto ps-industrial
O desenvolvimento das tecnologias que possibilitaram a exploso audiovisual einformativa no mundo est ligado condio ps-industrial das sociedades ocidentais, que
baseadas na economia estadunidense passaram a responder scio-culturalmente a uma nova
condio poltica e econmica: o neoliberalismo. Nessa nova conjuntura, alguns aspectos
importantes da transformao do capitalismo e da vida prtica humana so evidentes no seio
da produo e do consumo e traaram o novo caminho das sociedades ocidentais a partir da
dcada de 50 relacionado ao consumo de massas em conjunto com as mass medias -
oligoplios miditicos globalizados.
De acordo com Chau, o modelo fordista da fase industrial do capitalismo foi
caracterizado pelas grandes fbricas, pelo controle das etapas da produo, pela ideia de
durabilidade e qualidade dos produtos, pela criao de grandes estoques, pelas divises
sociais visveis e pela organizao poltica das classes trabalhadoras. Na condio ps-
industrial dado espao a uma nova fase do capitalismo caracterizando-se pela fragmentao
e disperso da produo e da diviso social; pela perda das referncias da identidade
trabalhadora e da sua organizao poltica; pela hegemonia do capital financeiro; o incessantesurgimento de novas tecnologias; rotatividade da mo-de-obra; e produo e consumo
massificados de produtos descartveis que contam com o apoio das mdias de massa
possibilitado pela significativa reduo dos preos e expanso do crdito, correspondendo a
uma tendncia democratizao do consumo, mesmo que limitada.
So expostos, a partir da anlise de Marilena Chau, dois fenmenos que
caracterizam as mudanas produtivas e tecnolgicas no seio do capitalismo: por um lado a
fragmentao e a disperso espacial e temporal, e por outro lado, a compresso do espao e do
tempo com o desenvolvimento das tecnologias da comunicao e da informao. Essas
transformaes desembocam na vida prtica e influenciam as experincias humanas que, a
partir do imperativo do presente, do instantneo e da tela, tornam-se efmeras e volteis.
Alm disso, a influncia do capital financeiro dos Estados Unidos passou a se
disseminar pelo globo e inundar as economias e as culturas dos pases perifricos,
impulsionando-os a uma corrida pelo progresso tcnico e pela modernidade. Kapln (1985)
aponta que na dcada de 60, a modernizao chegou Amrica Latina como soluo para o
problema do subdesenvolvimento, sendo introduzidas novas e modernas tecnologias com o
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intuito de aumentar a produo e a produtividade. Nesse sentido, o modelo dos pases
desenvolvidos e as inovaes tecnolgicas eram vistos como a cura para todos os males dos
pases perifricos. Concomitantemente ao desenvolvimento e expanso dos modelos
produtivos dos pases desenvolvidos, a desigualdade econmica e social atingia nveis
exorbitantes entre pases ricos e pobres e, internamente, entre minorias ricas e maioria pobre
ou miservel.
De acordo com Morin, a era ps-industrial coincide com a garantia da diminuio do
tempo de trabalho e a ampliao e estabilizao do tempo livre em zonas pr-fabricadas de
tempo de lazer, baseado no tempo de trabalho: frias, fim-de-semana, folgas; devido
organizao burocrtica do trabalho e presso sindical. Alm disso, as especializaes e
tecnologias maquinrias que caracterizaram o trabalho no comeo do sculo XX negaram a
incluso da personalidade humana e excluram a criatividade e a responsabilidade no processo
produtivo (autonomia), fazendo com que o tempo no dedicado ao trabalho fosse preenchido
no mais pelo descanso e repouso, mas pelos interesses individuais, pela personalidade e pelo
bem-estar. Ao mesmo tempo em que so oferecidos pela indstria cultural e pelos mercados
globalizados infindveis produtos feitos para alimentar e inspirar os desejos, a felicidade, as
necessidades de uma vida de qualidade, caracterizando uma adeso ao aspecto ldico da vida.
Na nova era do consumo, das tecnologias e da mdia, o lazer deixa de ser um privilgio
burgus e torna-se mais acessvel s classes de menor poder aquisitivo.
O lazer passa a ser o lugar por onde entram os contedos essenciais da vida, onde a
aspirao felicidade individual torna-se exigncia, representando por um lado as referncias
dos valores privados e por outro um acabamento em si mesmo, tendo o entretenimento
divertido e o descompromisso como fatores principais. no lazer que a cultura de massa e de
consumo orienta a busca pela sade individual e se torna estilo de vida, onde os nossoscontedos mais essenciais entram em cena e onde nossa viso de felicidade se enquadra.
Lipovetsky refere-se s experincias vividas no lazer na condio ps-industrial como
estando ligadas, de alguma maneira, a uma satisfao de tipo hednico, que no se refere ao
trabalho. No lazer, o homem se preocupa em se afirmar como indivduo e o faz a partir do
consumo de produtos tangveis e de produtos intangveis. A cultura de massas permeia a vida
do indivduo, seja dando referncias aos ideais de bem-estar e consumo, seja atravs de
momentos do consumo da prpria vida por meio de aspiraes sobre amor e felicidadeinspiradas em filmes e histrias, produtos e servios. Nesse sentido, a cultura de massa pode
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ser definida como uma cultura cotidiana dominada pela felicidade privada e pelos ideais
hedonistas em que o lazer torna-se estilo de vida.
A partir dos anos 50, com o advento da televiso, todo o novo mundo simblicorelacionado cultura de massas e consequentemente com a nossa linguagem e percepo
ligados diretamente ao o nosso ser geral, que como Morin explicita ao mesmo tempo
semirreal e semi-imaginrio, passa a estar presente nos lares, nas reunies de famlia, na vida
privada. No h dvida de que j o livro, o jornal eram mercadorias, mas a cultura e a vida
privada nunca haviam entrado a tal ponto no circuito comercial e industrial (MORIN, 2009,
p.13).
Paralelamente, Lipovetsky aponta que a estrutura familiar sofreu grandestransformaes: as grandes famlias, em que muitas geraes convivem, so substitudas por
famlias nucleares (pais e filhos). O peso sobre as despesas familiares diminuem (economia e
transmisso de herana), assim como o peso dos trabalhos domsticos. O lar adquire
autonomia interna e se torna mais individualizado, o consumo passa a representar escolhas
individuais e a afirmao do homem como ser privado e se reflete no seio da famlia moderna.
Sendo assim, o ncleo familiar tambm o lugar onde as grandes aspiraes humanas so
afloradas: a felicidade, o bem-estar, o amor. Nesse sentido, a famlia nuclear moderna tende aafrouxar as relaes de autoridade - base essencial da definio de ordem no lar apoiada pelo
paternalismo e pelas prticas tradicionais de disciplina (agresso fsica e verbal, por exemplo)
- e levanta questes sobre as relaes de autoridade entre adultos e crianas na
contemporaneidade.
A elevao das possibilidades de consumo e a promoo da vida privada a partir da
cultura de massas correspondem a um novo grau de individualizao da existncia humana -
j em curso desde o incio da modernidade e da imprensa de Gutenberg marcada pelo
hedonismo e psicologia, pela privatizao da vida e a autonomizao dos sujeitos em relao
s instituies coletivas (LIPOVETSKY, 2007, p.36). Nesse sentido, enquanto a modernidade
representa um momento estvel da vida, baseado no trabalho, na tcnica e em princpios e
normas bem definidas e conservadas em referncias coletivas: claras distines entre bom e
ruim, certo e errado, o chique e culto do popular e as divises de classe explcitas,
caracterizaram um ambiente hierarquizado e slido, que ao culminar na chamada ps-
modernidade, na era do consumo e da individualidade suas bases so abaladas e diludas. Essaordem hierrquica se desmantelou ou se desagregou em favor de sistemas desregulados e
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plurais, de classificaes imprecisas e confusas que fazem depender do indivduo o que, at
ento, dependia de regras e de estilos de vida comunitrios (LIPOVETSKY, 2007, p.50).
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1.3. Sociedade de consumo
Tendo em vista as novas caractersticas industriais, mercadolgicas e comunicacionais,
os novos mercados globalizados oferecem uma abundncia de produtos das mais distintas
qualidades e valores para suprir as demandas oriundas do consumo, seguindo a lgica do
maior alcance e lucro. Essa tendncia implica uma alta competitividade entre marcas e
mercados, que muitas vezes inclusive investem e se beneficiam da prtica da
autoconcorrncia, em que uma grande organizao lana produtos diferentes dentro de um
mesmo segmento para movimentar o mercado.
Os mercados passam, ento, a operar atravs do imperativo do lanamento e noapenas da produtividade. As demandas do consumo exigem a individualizao atravs de
novos produtos e novas estratgias. Os atributos devem ser originais e personalizados - de
alcance tangvel e intangvel, como publicidades, embalagens, qualidades novas, promoes e
atitudes relacionadas s marcas. Sendo assim, a ateno voltada para a imagem do
produto e da marca, s estratgias de comunicao e de estmulo adeso ao estilo de vida
disseminado pela marca atravs da publicidade e das comunicaes que entram em cena para
movimentar o mercado da informao e do mundo simblico do produto e da marca. Asnovas formas de se vender apoiada em estratgias criativas de publicidade e comunicao
passam a mediar as relaes entre indivduo e produtos de consumo na chamada era ps-
industrial e levantam a questo sobre os desejos e necessidades envolvidos nessas relaes.
J no se trata tanto de vender um produto quanto de um modo de vida, um imaginrio,valores que desencadeiem uma emoo: o que a comunicao se esfora por criar cada vezmais uma relao afetiva com a marca. Os intuitos da persuaso comercial mudaram; jno basta inspirar confiana, fazer conhecer e memorizar um produto: preciso conseguirmitificar e fazer amar a marca (LIPOVETSKY, 2007, p.96).
Ao referir-se aos "bens de fato no durveis" (o beber e o comer) Lipovetsky os
qualifica como sendo um segmento especial, j que proporcionam prazeres intensos,
imediatos e renovveis, sendo sobretudo resistentes decepo. Em compensao, o autor se
refere aos bens durveis como a geladeira e o aquecedor como sendo propcios decepo por
ocasionarem prazeres apenas na aquisio ou nos primeiros testes, depois, eles no asseguram
mais que um conforto sem alegria (LIPOVETSKY, 2007, p.161).
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Fica evidente, dessa forma, que o esforo do mercado em atender de maneira
ininterrupta as demandas vindas do consumo praticamente infinito e sempre poder trazer
novas solues e signos de felicidade e prazer encarnados em produtos e em seu mundo
comunicacional e afetivo para agradar os consumidores. A questo principal fica a cargo do
indivduo, que passa a manter contato com uma gama gigantesca de produtos e estratgias de
comunicao feitas para saciar os mais diferentes desejos e necessidades. O consumo
estimulado como forma de saciar suas vontades mais ntimas. Logo em seguida lhe
oferecido outro produto relacionado a uma nova necessidade e/ou desejo e o indivduo pode
novamente consumir ou no, ficando sua saciedade merc da infinitude.
A paradoxal forma de operao do capitalismo neoliberal, ao oferecer uma infinita
possibilidade de produtos destinados a suprir e a estimular nossas necessidades e a realizar
desejos, coloca em evidencia a insatisfao humana - que tambm infinita. Nesse sentido, a
decepo e a frustrao so aprofundadas a partir das possibilidades de felicidade que no
param de cessar. No novo momento do capitalismo a identificao e a relao afetiva entre
indivduos e marcas esto relacionadas saciedade ntima do indivduo e ao desejo de sentir-
se uma pessoa de qualidade, de se comparar vantajosamente com os outros e de ser diferente
da massa, como aponta Lipovestsky.
Nesse sentido, cabe aqui levantar a questo acerca do mercado e da indstria de bens
culturais. A que tipo de necessidades e satisfaes nos referimos quando falamos em consumo
de cultura, consumo de arte e quais as qualidades das relaes travadas entre os sujeitos e os
objetos na cultura massificada?
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1.4. A industrializao da cultura e a cultura de massas
Paralelamente ao desenvolvimento tcnico e crescente mecanizao da produo nas
indstrias de bens de consumo materiais, formado um complexo industrial caracterizado
pela centralizao do capital e dos grandes conglomerados de mdia de massa voltados para a
produo massificada de produtos culturais atravs de diferentes gneros, linguagens e
ferramentas, visando sua distribuio de maneira global e a mxima de consumo nos mesmos
moldes da produo de bens de consumo materiais.
A formao de um complexo campo industrial de produtos culturais representou a
mola propulsora da efervescncia da cultura de massas, caracterizada pela produo industrialdos bens de consumo intangveis e impalpveis, que iriam dar incio a uma nova
industrializao baseada - em termos gerais - na venda de cultura, dando novas dimenses ao
que Morin chama de industrializao do esprito: a segunda industrializao, que passa a ser a
industrializao do esprito, e a segunda colonizao que passa a dizer respeito alma
progridem no decorrer do sculo XX (MORIN, 2009, p.1).
Morin, dessa forma, refora a profunda influncia da cultura - ligada totalmente ao
contexto socioeconmico da sociedade - na construo da essncia humana e define a cultura
como um corpo de normas, smbolos, signos e mitos amparados e moldados pelas relaes
travadas entre o indivduo e os modelos de vida, histrias, heris, ideias oferecidos pelos
produtos culturais. Em se tratando de cultura de massas, esses pontos de apoio da vida prtica
e da vida imaginria humana esto relacionados ao contato com a cultura escoada pela TV,
cinema, imprensa, rdio, internet, smartphones.
A venda de cultura, informao e arte de maneira desregrada e industrial levantou
crticas sobre a qualidade dos produtos culturais produzidos por essa nova indstria e pela
funo da arte na contemporaneidade. A crtica da camada intelectual em relao cultura de
massas - chamada de kish nos Estados Unidos - direcionada para o fato de que a produo
cultural industrial no faz parte de um processo de cultivo e refinamento, mas est totalmente
ligada e controlada pelos valores do mercado, do consumo. Para a camada cultural elitizada,
os intelectuais, o produto cultural industrial est estritamente determinado por seu carter de
consumao diria, sem poder emergir para a autonomia esttica. Ele no policiado, filtrado,
nem estruturado pela Arte, valor supremo da cultura dos cultos (MORIN, 2009, p.18).
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Morin aproveita a crtica intelectualizada para problematizar os valores sagrados da
cultura dos cultos, apontando sua qualidade segregacionista, mitificadora e formal, s endo
muitas vezes influenciada e impulsionada pela relao comercial e superficial com a obra e
baseada nos valores burgueses de arte. Assim, Morin identifica um novo momento cultural
da histria, em que os valores artsticos se misturam aos valores do consumo e habitam
concomitantemente o mesmo espao na cultura de massas atravs dos meios de comunicao
massificados e, por isso, acabam por perder a Arte (valor dos cultos) como fator de
referncia.
A guinada no mercado da cultura industrial e da era do consumo bem como a
formao de uma nova grande classe salariada (antigo proletariado operrio e antiga classe
mdia), fez com que classes sociais de diferentes concepes e naturezas (prestgios,
convenes, hierarquias e reivindicaes) compartilhassem no apenas do mesmo estatuto
salarial (regras e normas trabalhistas, intervenes do Estado), mas tambm da cultura
produzida a partir dos grandes meios de comunicao de massas: o nico grande terreno de
comunicao entre as classes sociais (MORIN, 2009, p.41).
Assim, transformaes quantitativas (aumento do poder aquisitivo, substituio
crescente do trabalho da mquina pelo esforo humano, aumento do tempo de lazer)impulsionam uma lenta metamorfose qualitativa: os problemas da vida privada, da realizao
pessoal, so colocados com insistncia no apenas nas classes burguesas, mas tambm na
nova camada salarial em desenvolvimento. Nesse sentido, as mass media divulgaram a
conscincia popular do que constitui uma boa vida (MORIN, 2009, p.90).
Confinadas em casa por falta de recursos financeiros, essas populaes frequentemente
passam longas horas diante da televiso: mais de 10% das pessoas da camada social maisdestituda passam mais de cinco horas por dia diante da telinha. Hiperconsumidores desries, de filmes, de jogos a dinheiro, os grupos econmicos muito frgeis so tambm, aomesmo tempo, hiperconsumidores de publicidades comerciais. Nessas condies, os menosfavorecidos so tanto mais excludos do consumo quanto esto superexpostos s imagens es mensagens mercantis (LIPOVETSKY, 2007, p.194).
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1.4.1. Sincretismo e tendncias da cultura de massa
Uma caracterstica marcante de qualquer indstria, e de muitas empresas do setor
privado, que suas bases organizativas - que orientam a produo de forma a manter todos os
passos sob controle - so extremamente burocrticas. No caso da indstria cultural essa lgica
tambm se aplica: so muitos os trmites, aprovaes, processos de anlise dos produtos
culturais antes que estes cheguem s pessoas com poder de deciso, como redatores-chefes e
produtores. Estes ainda so responsveis por examinar desde a rentabilidade at os interesses
polticos que envolvem o produto. Dessa forma, o poder sobre a obra muda de mos, passa do
autor (aquele que a idealizou) para as mos da burocracia, tornando a criao, em parte,
despersonalizada e desconectada de sua essncia criativa.
Mas, a diviso do trabalho e o sistema industrial da cultura no so incompatveis com
a individualizao da obra, pois enquanto o produto se adapta ao modelo industrial e
concentrao tcnico-burocrtica, uma exigncia contrria vinda do consumo cultural solicita
produtos novos e individualizados. O mesmo acontece na indstria de bens de consumo
materiais e na indstria da informao e da notcia, em que a mesma lgica de
individualizao do produto opera, dando-se mais importncia ao acontecimento primeiro, aopresente, ao contingente que ao processo de apurao e manipulao responsvel da
informao.
Nesse sentido, Morin declara que a produo cultural no sistema industrializado no
pode se dobrar totalmente s leis burocrticas da indstria, pois a partir da demanda
consumidora de produtos novos e nicos necessrio o foco na criao, na busca da novidade,
da inveno, assim, o padro se detm para ser aperfeioado pela originalidade (MORIN,
2009, p.26). Ento, para que seja possvel o equilbrio entre as foras burocrticas e as noburocrticas, tendo como objetivo o mximo de consumo e alcance, esse equilbrio depender
das caractersticas do prprio produto.
No cinema industrial busca-se uma relao equilibrada entre a padronizao e a
originalidade. O padro se refere ao que j foi considerado sucesso, mas ao ser resgatado
corre o risco de no agradar por sua reutilizao e o original se refere s novas tentativas de
emplacar um sucesso, podendo tambm correr o risco de desagradar. Na busca pelo equilbrio
a partir de uma enorme gama de riscos e possibilidades, uma frmula anti-risco
implementada no cinema: a procura da vedete, personalidades estruturadas (padronizadas) e
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individualizadas ao mesmo tempo (...). Quanto mais aumenta a individualidade da vedete,
mais diminui a do autor e vice-versa (MORIN, 2009, p.32). O filme Os Mercenrios, por
exemplo, em suas duas verses (2010 e 2012) conta com a participao de mais de dez astros
consagrados do cinema de ao hollywoodiano e, mesmo recebendo muitas crticas dos
entendedores de cinema, significou um grande sucesso de bilheterias e um alto rendimento
em cifras (IMDb, 2012).
As vedetes so o resultado da retroalimentao da cultura de massas da imagem de
felicidade e lazer de uma personalidade da mdia (no necessariamente artista, mas tambm
atletas, jornalistas, intelectuais...) e reflete uma tendncia da cultura de massas: a de consagrar
aqueles que tm acesso ao mundo desejoso do sucesso, da vida de lazeres, de reconhecimento
e prazer. O Olimpo, conhecido como o local de encontro entre os semideuses gregos, est
atualmente localizado na cultura de massa e em seus produtos atravs das celebridades e dos
heris que representam o ideal e a finalidade da cultura de lazer, tornando-se os novos
semideuses da modernidade. A vida privada dos olimpianos explorada e exaltada assim
como o espetculo, pois eles so os que vivem segundo a tica do prazer e da felicidade totais.
Nesse sentido, Morin (2009) define essas personalidades como olimpianos modernos devido
ao seu papel mitolgico conferido pela mdia e sua influncia como modelos de
comportamento e conduta. Sua dimenso divina sedutora, repleta de sonho e fantasias, mas
pela dimenso mortal e mundana que os olimpianos se aproximam dos simples mortais
annimos. Sendo assim, a substncia humana (a mortalidade e a vida cotidiana e privada)
que permite a identificao dos sditos-admiradores e so exploradas pelas mass media.
Dessa forma, o paradoxo implcito na forma produtiva da indstria cultural
burocracia/inveno, padro/individualidade - encontra sustentao na prpria estrutura do
imaginrio, que Morin explicita no seguinte trecho:
O imaginrio se estrutura segundo arqutipos: existem figurinos-modelo do espritohumano que ordenam os sonhos e, particularmente, os sonhos racionalizados que so ostemas mticos ou romanescos. Regras, convenes, gneros artsticos impem estruturasexteriores s obras, enquanto situaes-tipo e personagens-tipo lhe fornecem as estruturasinternas (MORIN, 2009, p.26).
Dessa forma, a lgica industrial da cultura de massas evidencia duas grandes
tendncias constantemente usadas para facilitar a identificao com o produto, torn-lo mais
atrativo e de rpida absoro para o pblico mdio ideal ou a massa dos
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espectadores/consumidores: a democratizao da cultura e a vulgarizao. A
democratizao se d no mbito da multiplicao, da tendncia integradora e disseminadora
da cultura, mesmo que esteja limitada s particularidades de acesso e interesse. J a
vulgarizao, alm da sua tendncia multiplicadora, se apropria da simplificao,
modernizao, maniqueizao e atualizao para tornar seus produtos mais consumveis.
A maniqueizao ou a polarizao acentuada do antagonismo entre o bem e o mal
uma estratgia de construo de personagens com o intuito de facilitar a empatia e a
identificao do pblico com um heri e tambm facilitar o rechao e a repulsa do pblico
sobre um personagem antagnico. Para isso, os traos simpticos e antipticos desses
personagens so realados e, s vezes, at exagerados, apresentando-se sob a forma de
esteretipos e clichs.
Nesse sentido, a esquematizao dos conflitos, a reduo das caractersticas dos
personagens a uma psicologia clara e a eliminao do que poderia ser dificilmente
compreendido pelo espectador so fatores constantes e evidentes nos produtos da cultura
industrial que tornam a obra mais palpvel e de fcil assimilao para os mais diferentes
nichos sociais.
A nova cultura escoada, produzida e amparada pelas diversas tecnologias miditicas
disponveis movimenta-se assim num processo contnuo de democratizao da cultura que
comea com a inveno da prensa tipogrfica e a consequente popularizao da literatura e as
transformaes no seu contedo, que evidenciam a ascenso do romance burgus moderno no
sc. XIX: romance de relaes, conflitos, problemas entre os indivduos no seio de sua
sociedade, onde o amor desempenha um papel essencial (MORIN, 2009, p.57). O romantismo
e a cultura burguesa, caracterizados pela cultura das individualidades, das necessidades da
alma e do amor, representam segundo Morin (2009, p.58) uma tendncia projeo dos
problemas humanos no universo do imaginrio, mas, cada vez mais fortemente, de
identificao entre o leitor e seus heris. Enquanto isso, a corrente popular de tradio
melodramtica continua seu movimento na zona marginal da cultura e invade o cinema e o
folhetim no comeo do sculo XX e se propaga a partir da metade do sculo pelo setor de
teledifuso pblico, com novelas, programas sentimentais e jornalismo sensacionalista.
A cultura popular passa a ganhar espao no setor cultural miditico quando emerge um
novo tipo de imprensa e cinema voltados para a mxima de consumo e com a funo se dirigir
a todos, configurando a procura incessante pelo pblico variado, visando satisfao da maior
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gama possvel de interesses e gostos. Nos filmes industriais, por exemplo, comum e
evidente a mescla de gneros e a combinao de conflitos de distintas naturezas. Aventura,
erotismo, ao, romance e drama em um mesmo conjunto cinematogrfico com o intuito de se
aproximar do gosto comum, que, teoricamente, compartilhado por esse pblico e medido
atravs de cifras e audincia.
A mescla de contedos direcionados a diferentes classes de pessoas (ricos, pobres,
crianas, jovens, adultos) e a busca pela homogeneizao e o denominador comum que une
esses pblicos, do aos contedos da cultura de massa uma caracterstica dominante a partir
da homogeneizao das idades: a juventude, o termo mdio entre as idades. Ela pode ser
notada no apenas no consumo de produtos culturais entre crianas, jovens e jovens adultos,
mas na prpria temtica da cultura de massas, que une idades distantes a um mesmo mundo
simblico jovial de produtos, livros, programas, filmes, jogos e um clima de diverso.
Segundo Morin, essa caracterstica est relacionada, entre outros fatores, formao
de um novo pblico com a criao da imprensa infantil de massa, filha direta da indstria da
cultura e relacionada aos seus interesses lucrativos e de consumo desse setor dominado por
adultos. Ao diluir contedos infantis (cadernos especiais, jogos, quadrinhos e etc.) nos
espaos de mdia adultos como os jornais e revistas, acabam integrando-os imprensa adulta,que passa a multiplicar o uso da imagem e a significar uma preparao para o mundo adulto,
seja pelo consumo das mesmas, seja pelo contato com informaes de temticas adultas.
Assim, o mundo entre crianas e adultos acaba sendo cada vez menos definido e separado na
cultura de massas: pode-se dizer que a cultura de massa, em seu setor infantil, leva
precocemente a criana ao alcance do setor adulto, enquanto em seu setor adulto ela se coloca
ao alcance da criana (MORIN, 2009, p.39).
Sendo assim, nos produtos da cultura globalizante e industrial, as individualidades,
regionalidades, heterogeneidades culturais so adaptadas a uma linguagem e a temas
homogeneizantes e universais, enfraquecendo as diferenciaes culturais nacionais em prol de
uma cultura transnacional, configurando tendncias contraditrias que se manifestam em
diferentes nveis: pessoas de diferentes classes, etnias, culturas, crenas, idades, assistem aos
mesmos programas (aqueles que agradam a todos), veem as mesmas historias, filmes,
anncios e se deparam com os mesmos ideais de felicidade e bem-estar. Por outro lado, as
correntes culturais marginais tambm so integradas bolo cultural e transformadas a partir denovas ressignificaes e multiplicaes. Morin, dessa forma, verifica o carter ao mesmo
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tempo sincretista (ecltico) e homogeneizante da cultura de massas impulsionada pelo
mercado mundial.
A cultura industrial adapta temas folclricos locais transformando-os em temascosmopolitas, como o western, o jazz, os ritmos tropicais (...) pegando esse impulsocosmopolita, ela favorece, por um lado, os sincretismos culturais (filmes de co-produo,transplantao para uma rea de cultura de temas provenientes de uma outra rea cultural) e,por outro lado, os temas antropolgicos, isto , adaptados a um denominador comum dehumanidade. (MORIN, 2009, p.44)
Esse pblico heterogneo de origens e gostos diversificados mantem contato com o
mundo dos produtos tangveis e intangveis atravs dos mesmos meios de comunicao de
massa, controlados por uma minoria detentora de poder econmico, poltico e cultural. Em
teoria, houve um processo de democratizao da cultura (erudita e popular), j que ela passou
a escoar por diferentes mdias e classes, mas inegvel que se trata de uma democratizao
limitada devido no s falta de acesso e situao de misria em que vivem muitas
sociedades - que muitas vezes consomem produtos miditicos deturpadores da realidade e
disseminadores de ideais classistas - mas tambm subjugao de uma maioria cultura
miditica produzida por uma minoria - representada pelos grandes conglomerados de mdia.
A cultura de massas, como viso homognea da cultura globalizante impulsionada
pelo consumo no seio das grandes mdias, no se atm s pluralidades das culturas regionais e
s particularidades do pblico, como sua origem ou sua idade, muito menos s
potencialidades produtivas (comunicao e arte) da sociedade marginalizada, incluindo-se a
as crianas. Assim, ela traz tona temas, como: o desconectar da realidade mundana, a
aspirao a desejos de razes classistas, do no olhar para o prprio eu e seu entorno, o que
pode fazer com que uma pessoa se alimente a fundo de material cultural e informativo nocompatvel com a sua realidade social ou at mesmo fsica. Nesse sentido, a cultura produzida
nesse aparato industrial banaliza as complexidades da existncia social e cultural dos
indivduos e reduz a realidade a uma condio de espetculo. Enquanto no mbito ficcional,
d vazo a experincias realistas que penetram o interior da essncia humana.
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1.5. Imaginrio/real, realidade/fico
Cristina Costa (2002), em Fico, Comunicao e Mdias, percorre a histriaimaginria do homem a partir da linguagem e faz relaes entre o processo cultural e
comunicativo da sociedade miditica e o gnero ficcional como sendo necessrio ao ser
humano. Costa aponta que o homem passou a ser constitudo de subjetividade a partir do
rompimento com o seu estado de natureza, passando a perceber o seu entorno como existindo
de forma exterior e objetiva a ela. Essa ruptura possibilitou ao homem construir a percepo
de si mesmo como indivduo nico, repercutindo em um novo processo de interao do
homem com o mundo e exigiu o desenvolvimento dos elementos responsveis pelaconscincia humana e pelos processos simblicos: o imaginrio e a abstrao. A amplificao
da dimenso humana trouxe tona a dialtica interioridade/exterioridade,
objetividade/subjetividade caracterizadas por sua essncia comunicativa, que ao ser traduzida
atravs da linguagem, permitiu ao homem compartilhar impresses obtidas a partir das
experincias vividas e processadas internamente. A linguagem pde, assim, unir realidades
distintas e isoladas, a partir das diversas formas de discurso e os diferentes usos da linguagem,
integrados a um campo maior de comunicao e linguagem, a cultura.
Os discursos construdos pela linguagem referem-se ao mundo real traduzido pelasindividualidades que o experimentam, mas transformam-se, uma vez expressos, emmodelos que orientam futuras percepes do real. Aderem s coisas como parte integrantedelas, adquirindo concretude quase da mesma natureza (COSTA, 2002, p.12).
A expresso humana, nesse trecho, refere-se ao discurso dirigido para o real, porm, a
ela vai muito alm do real e por meio da fico possibilita um discurso que se afasta dele parase referir s profundidades do interior do homem. A fico prope uma experincia
intersubjetiva na qual a realidade que a circunda se apresenta de forma indireta e de maneira
dialgica. Ela subentende o real e procura aderir s conscincias que a percebe, no s coisas.
Assim, na cultura de massas, a fico tornou-se a forma narrativa de maior penetrao,
pois apelando para uma inteligibilidade sensvel e emocional, ela estabelece um trnsito mais
gil entre culturas, classes, sexos, restaurando a homogeneidade necessria do universo
simblico. Por outro lado, a experimentao das realidades atravs das mediaes miditicas,dos noticirios e do jornalismo contemporneo nos permite um contato com um mundo real
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fragmentado e dotado de caractersticas dramticas, que relativizam a caracterstica real
de um fato.
O desenvolvimento e a aceitao da ficcionalidade que acontece na sociedade miditicamoderna, somados relao cada vez mais mediada a que se sujeitam as pessoas, deram sociedade um carter espetacular, que torna cada vez mais indefinidos os limites entrefico e realidade (COSTA, 2002, p.15).
Nesse sentido, os contedos da cultura de massa so apresentados sob a forma de
informao, de jogo e, principalmente, sob a forma de espetculo. O espetculo, relacionado
qualidade profana e efmera da nova cultura, demanda um consumo imaginrio atravs de
relaes estticas, que passam a mediar as relaes entre espectadores e produtos culturais,bem como o mundo interior do indivduo e o mundo exterior a ele. Sendo assim, o campo
esttico deve ser entendido no apenas como uma qualidade da arte, mas como um tipo de
relao humana mais ampla. O imaginrio nas relaes estticas definido por Morin (2009,
p.80) como: a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos real, e sem a qual,
sem dvida, no haveria o real para o homem, ou antes, no haveria realidade humana.
Morin explica que as relaes estticas proporcionam experincias aproximadas dos
processos psicolgicos envolvidos na magia ou na religio, pois relativizam e problematizam
as percepes de realidade e imaginao. Nesse sentido, a principal diferena entre as relaes
estticas na cultura de massa e as relaes estticas na espiritualidade humana se d em seu
acabamento: enquanto na religio e na magia ocorre a reificao do imaginrio, na esttica,
ela nunca acabada e a crena destruda, pois o mundo imaginrio permanece conhecido
como tal.
Mas, ser mesmo que o mundo imaginrio permanece sendo conhecido como
imaginrio? Como explicar, ento, os sonhos concretos baseados em ideais imaginrios?
Digo isso, pois h pouco tempo em uma atividade do Projeto de Extenso da ECA, Redigir,
fomos para as proximidades do Capo Redondo com o intuito de recolher histrias (em vdeo,
udio e conversas). L conhecemos uma mulher de mais de 65 anos, migrante nordestina que
veio para So Paulo seduzida pela terra do progresso. Bem, a questo que hoje, aps anos de
estadia na cidade e excluda do mundo do consumo, pois de acordo com ela somente possui
recursos para comer e sobreviver, ela mantem uma relao mitolgica com a televiso e
revela que o seu maior sonho de vida ganhar na Tele Sena. Ela demonstra ter muita f nisso
e deposita grande carga energtica e espiritual nesse sonho, ela inclusive compra o ttulo de
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capitalizao h muitos anos, mesmo que no tenha dinheiro para as despesas bsicas. A
mulher, ento, nos revelou que o sonho da Tele Sena possibilitaria a compra de um carro e
com ele ela poderia ver a cidade de dentro do carro, como ela v nas ruas.
Sendo assim, as relaes estticas demandadas pela cultura vo permitir trocas e
movimentos mentais de projeo e identificao que iro relativizar os contatos humanos
entre o real e o imaginrio. Esta penetrao se efetua segundo trocas mentais de projeo e de
identificao polarizadas nos smbolos, mitos e imagens da cultura (...) uma cultura fornece
pontos de apoio imaginrios vida prtica, pontos de apoio prticos vida imaginria
(MORIN, 2009, p.12).
O imaginrio nesse sentido d suporte no somente aos desejos e aspiraes da vida,mas tambm s nossas angstias, temores. Nessa nova relao desprovida de contato fsico
com o espetculo (no apenas por meio do vdeo, mas da revista, do jornal tambm) o
espectador assume um papel e um estado passivo caracterizado pelo voyeurismo. Nele, o
processo de interao do espectador com o produto cultural se passa longe da tangibilidade do
espectador: ele v tudo e est em tudo (bastidores, fofocas, confidncias, casos bizarros,
revelaes), mas ele no pode interagir fisicamente de fato. Sua participao limitada e
acontece sempre atravs de intermediaes: reprter, heri, operadores de cmera... Tudo estprximo em certo sentido, mas ao mesmo tempo longe da materialidade: a maior ausncia e
a maior presena, como afirma Morin (MORIN, 2009, p.71).
A cultura de massa o produto de um dilogo entre uma produo e um consumo. (...) Aproduo (o jornal, o filme, o programa de rdio) desenvolve as narraes, as histrias,expressa-se atravs de uma linguagem. O consumidor no fala. Ele ouve, ele v ou serecusa a ouvir ou a ver (MORIN, 2009, p.46).
Assim, mesmo que as relaes estticas permitam um contato superficial no que diz
respeito sua palpabilidade atravs do voyeurismo, elas podem desempenhar um papel de
importncia reguladora e consoladora da vida, seja favorecendo um escape imaginrio das
presses interiores, seja permitindo as semi-satisfaes psquicas obscuras dentro de ns,
podendo dessa forma aliviar em parte as necessidades agressivas que no podem ser
praticadas na vida real.
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As potencialidades das projees esto dispersas por todo o campo imaginrio e so
favorecidas pelas suas qualidades idealizadoras e intensas, sendo por meio dessas liberaes
psquicas que tambm podem ocorrer as identificaes.
Nos movimentos mais significativos de projeo e libertao psquica das relaes
estticas esto aquelas que fixam o mal sobre o personagem levando-o a uma longa vida de
provao ao corredor da morte, representado pela tragdia. Dessa maneira, so integradas
relao esttica as virtudes de um dos mais arcaicos e universais ritos mgicos: o sacrifcio
significando no apenas uma oferenda agradvel aos deuses e espritos, mas tambm uma
transferncia psquica das foras do mal, da infelicidade e da morte para uma vtima, um
inocente. Ou seja, preciso que o heri trgico passe da Felicidade para a Infelicidade
para atingir a catarse. Essa catarse pode ser interpretada, portanto, como uma fora justiceira
ou vingativa, que apazigua a angstia dos homens e a clera dos deuses - representada na
Histria Grega por Nmesis, deusa da justia, da vingana, da solidariedade e da fortuna,
representao de uma personificao do sentimento moral, reprovador de toda violncia e de
todo excesso.
J, nos movimentos mais significativos de identificao, ocorre um equilbrio entre
realismo e idealizao. O realismo, caracterizado por condies de verossimilhana efamiliaridade, proporciona uma aproximao com a vida prtica humana, com o cotidiano. Ao
mesmo tempo, o imaginrio impulsionado por idealizaes a partir de personagens que
vivem intensamente, com grandes doses de riqueza afetiva e felicidade do que o comum dos
mortais. Alm disso, os conflitos em que essas personagens esto inseridas devem ser de
grande interesse e profunda relevncia para os espectadores ou leitores. Dessa forma, os
heris so dotados de qualidades supremas e sagradas, de extrema simpatia e idoneidade. O
heri suscita o amor, a ternura e a unio, favorecendo a identificao e empatia erepresentando o alter ego idealizado dos leitores e espectadores. Essa identificao com os
heris podem vir a se tornar modelos que perpassam o imaginrio e desembocam na vida
prtica, tornando-se mitos diretores, como a busca do amor, da felicidade e realizao pessoal.
Tais interpretaes determinam um pice identificativo que podem constituir verdadeiros
modelos de cultura e, inversamente, um pice projetivo caracterizado pela evaso
purificadora. J o ponto baixo ocorre quando a relao real-imaginrio fica bloqueada entre o
sonho e a vida: a projeo pode ser a tal ponto fascinante que ocasiona uma espcie de
converso hipntica da vida, que se sonambuliza, e cuja seiva toda se escoa no consumo
imaginrio (MORIN, 2009, p.83).
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Dessa maneira, os nveis projetivos e identificativos so variveis e dependem tanto
dos temas da obra quanto das caractersticas do pblico. Independentemente das
caractersticas particulares desse pblico e das suas necessidades, importante ressaltar que
um campo imaginrio comum entre eles possvel atravs da cultura massificada, mesmo que
nela a explorao dos campos imaginrios esteja baseado em interesses econmicos e
polticos.
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1.5.1. Espetculo miditico
Esse campo imaginrio se potencializou a partir do sistema de teledifuso, que se
aproximou do espetculo na segunda metade do sculo XX. O jornal, nascido da imprensa e
essencialmente escrito, na cultura de massa passa linguagem audiovisual e a operar sob o
interesse dos grandes conglomerados de mdia que representam integrao entre canais de TV,
jornal impresso e jornal eletrnico sob controle de uma minoria. Tendo em vista a TV aberta
como o veculo representativo da essncia massiva, emotiva e informativa dos meios de
comunicao, o ncleo informativo da cultura de massas principalmente representado pelos
jornais televisivos e onde a tendncia espetacularizao mais explcita.
O campo informativo da cultura de massa atende lgica industrial da busca por
produtos novos para atender a uma demanda de consumo, sendo muito procurado o
contingente, o novo e o ao vivo para informar. A seleo dos acontecimentos, sua forma de
captura e o tipo de abordagem jornalstica, de acordo com Chau (2006), do um panorama
sobre o jornalismo televisivo opinativo relacionado nova ordem comunicativa e imperativa
das mdias de massa: a imediatez, a espetacularizao e a banalizao, somando-se aqui o
carter divertido (entretenimento) das mdias de massa e a explorao da vida privada.
Chau refere-se aos jornais televisivos de canais abertos como seguidores da tendncia
dramatizao sobre a informao propriamente dita. Alm disso, as pautas da grande
imprensa muitas vezes referem-se a acontecimentos gratuitos, destitudos de importncia
pblica e poltica e selecionados a partir da sua intensidade afetiva. Ou, quando so de
interesse pblico e poltico, no esto a salvo da tendenciosidade. Em outubro deste ano, o
jornal eletrnico Correio do Brasil soltou uma nota informando que a TV Globo havia sido
acusada de crime eleitoral pelo Movimento dos Sem Mdia - uma organizao da sociedade
civil em favor da democratizao da mdia - devido a uma edio tendenciosa e espetacular do
Jornal Nacional, que direcionou longos dezoito minutos da programao para cenas do
julgamento do caso do Mensalo logo aps o horrio eleitoral. Alm disso, este ano,
presenciamos propagandas comerciais pela TV extremamente ofensivas e hostis, que
acusavam e denunciavam os erros dos candidatos concorrentes. Essa postura foi notvel em
todos os principais candidatos eleio para a Prefeitura de So Paulo, que apelaram para a
agresso verbal direta.
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Para exemplificar essa tendncia, Chau usa a concepo de Umberto Eco para a
pelotev e a neotev para distinguir as caractersticas da transmisso jornalstica na TV
do incio da cultura de massa e da atualidade: antes, o evento acontecia independentemente da
sua transmisso e, hoje, ele muitas vezes preparado para ser transmitido. Alm disso, o
acontecimento ou o fato variado , muitas vezes, influenciado pelo padro das regras
cronometrais da indstria e frequentemente apresentado de forma mnima, rpida, inexata e
descontextualizada.
A transmisso de um evento - seja um acidente trgico familiar ou um show de rock -
feita atravs de uma mediao tcnica e espalhafatosa, que atende demanda audiovisual
para sua produo, seja com iluminao e equipe tcnica, seja com preferncias e
particularidades dos ngulos de viso da cmera. A captura da cena real implica em uma
interveno fsica e aparelhada no ambiente, ela no espontnea e limpa (sem
aparelhagem tcnica) como aparece na tela. feito um recorte esttico do evento (visual,
angular), interpretativo e discursivo, em que o reprter dita quais os pontos principais a
serem transmitidos e os cortes ditam a linha de montagem e de raciocnio da notcia, o que
evidencia o poder de transformao do carter da informao no ncleo das mdias de massa
(CHAU, 2006, p.16).
Alm disso, no se pergunta o que pensam os indivduos ou o que sabem sobre um
acontecimento do qual foram testemunhas diretas, o ncora, o reprter, o homem da mdia
quem detm a informao suprema, ele quem domina o discurso sobre o acontecimento,
mesmo que a informao seja repassada sem fontes ou atravs de interpretaes pessoais dos
prprios jornalistas. Com a frase: a opinio emitida de um lugar outro, o lugar do saber
como o lugar do poder (CHAU, 2006, p.11), a autora refora a hierarquizao do discurso e a
relao de poder atribuda mdia, como detentora da informao e da opinio, sendo dadoaos intelectuais, artistas e jornalistas a voz de autoridade e o ttulo de formador de opinio.
As mdias de massa tornaram irrelevantes as categorias de verdade e de falsidadesubstituindo-as pelas noes de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidadepara quealgo seja aceito como real, basta que aparea como crvel ou plausvel, ou como oferecidopor algum confivel (CHAU, 2006, p.8).
Essa transmisso de um recorte da realidade influenciada pela tcnica e pelaabordagem do homem da mdia, representa a manipulao de uma viso sobre um
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acontecimento, dando-se enfoque aos temas de interesse do jornal, da emissora e de
patrocinadores (Estado e empresas) - para o bem ou para o mal. Os espectadores reais do
evento que acontece ao vivo veem a interveno aparelhada e recortada da mdia no evento
- que poderia ser uma missa ou um enterro e presenciam a profanao da realidade. Em
contrapartida, na viso do espectador do telejornal, a realidade e a notcia so oferecidas de
maneira transmutada, recortada, decorada e explicada. No um fato real que entra em
contato com o cidado, a sua encenao, ou o simulacro do acontecimento, como refora
Chau. A questo recai, portanto, sobre o processo de captao e de consumo da informao e
levanta problemas acerca das responsabilidades ticas dos veculos e patrocinadores.
Encarado como entretenimento banal na cultura de massas, Chau (2006) aponta que o
espetculo miditico representa um importante indicador de despolitizao para a populao
que se atm s formas jornalsticas tradicionais da TV aberta como referncias para a
construo da opinio. Ferrenha crtica dos meios de comunicao de massa, Chau na mesma
obra utilizada como referncia defende que atravs do apelo intimidade, personalidade,
vida privada, a mdia serve de suporte e garantia da ordem pblica, pois os cdigos da vida
pblica (atravs do compartilhamento dos contedos da mdia de massa) passam a ser
determinados e definidos pelos cdigos da vida privada, abolindo-se a diferena entre espao
pblico e espao privado. Assim, ela aponta as caractersticas das mdias de informao como
cooperadoras da destruio da esfera da opinio pblica, transformando-a em manifestao
pblica de sentimentos.
vlido ressaltar que a imprensa sensacionalista transgressora da tica jornalstica,
j era evidente desde o incio da imprensa tipogrfica e no a nica tendncia jornalstica
existente, mas est amplamente disseminada pelos meios de comunicao de massa, como a
TV aberta. Alm disso, as caractersticas espetaculares atribudas imprensa sensacionalistapodem ser visveis tambm nos programas de entretenimento da TV, como os programas de
auditrio e esportivo.
De aspecto realista, a informao e a funo jornalstica ganha carter audiovisual,
afetivo e emotivo, com abordagens centradas no sentimentalismo, nos gostos individuais e nas
preferncias, mesmo que o assunto seja de interesse poltico e pblico. Por outro lado, as
tragdias da vida real so redimensionadas para a tela: os acidentes, mortes, casos bizarros e
sofrimentos alheios so explorados como um show de horrores da vida real e privada. Atravsdo contato banal e massivo com tabus e temas trgicos relacionados diretamente vida real
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como: a morte, o assassinato, a violncia, a crueldade real, o desespero alheio, a dor, resgatam
as relaes projetivas e evasivas antes relacionadas tendncia trgica da arte que
proporcionam a libertao dos fantasmas que vivem em nosso interior.
De alguma maneira, a cultura trgica que havia comandado o imaginrio social fictcio
ocidental antes da introduo massificada do happy end, volta sob o prisma da realidade, da
informao crvel e real, verdadeira, fsica, ganhando assim tons de fico e melodrama.
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1.5.2. Happy end
De acordo com Morin (2009), partir da dcada de 30 a direo do imaginrio da
sociedade ocidental se volta para as foras realistas orientadas pela introduo em massa do
happy end, estimulando uma significativa onda massificada em direo s experincias de
identificao do espectador e do leitor com o heri simptico. O elo sentimental entre eles
to realista e psicolgico que irrompe um apego intensificado com o heri, tornando-o
inabalvel e inatingvel, sendo esperado, assim, que o heri alcance o sucesso e o xito
sempre, pois o espectador precisa da prova de que a felicidade possvel. Assim, ao se
aproximar da vida real ele acaba proporcionando a viso mais mtica da realidade: a satisfaodos desejos e a felicidade privada e eternizada. Nesse sentido, apesar do carter plenamente
esttico e profano da cultura de massa, nos deparamos com uma tendncia simblica e
mitolgica voltada para a busca da felicidade tanto no mbito do homem-massa/homem
mdio/anthropos universal (denominador comum de humanidade), quanto do homem
individual, estimulando um movimento na direo da universalizao da civilizao moderna
a partir da cultura de massas.
De maneira diversa, a ordem estabelecida a Leste e a Oeste quer exorcizar o pessimismoem relao ao mundo realista, que fermento de crtica social ou de desintegraoideolgica. Mas existe uma diferena entre o fim otimista em favor do sistema social e ohappy endem favor do indivduo privado. No happy endprivado, a eliminao ou o evitardo absurdo, a vontade de salvar os heris dos perigos constituem negativamente umaespcie de segurana social ou de garantia contra todos os riscos imaginrios, positivamenteuma valorizao mitolgica da felicidade (MORIN, 2009, p.97).
Essa nova corrente que passa a atuar no centro da cultura de massas atua no sentido dedirecionar o novo imaginrio para a ideia de felicidade, rompendo com a tradio trgica que
se seguia. A tragdia, caracterizada no apenas pela punio dos maus, mas tambm pelo
sacrifcio dos inocentes e puros, revela ao espectador que preciso passar por uma longa vida
de provao ou at mesmo pela morte. No happy end, a vida de provao e o sacrifcio do
heri so curtos e as resolues dos conflitos respondem lgica da felicidade, da vida eterna
e da realizao pessoal.
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No filme de happy end, se o heri vtima do mal, padece at a tortura, moral ou fsica, asprovaes so de curta durao; dificilmente elas acompanham toda uma vida (...). O herique supera os riscos parece ter-se tornado invulnervel morte. O filme termina como umaespcie de eterna primavera, onde o amor, algumas vezes acompanhado pelo dinheiro, opoder, ou a glria, brilhar para todo o sempre (MORIN, 2009, p.93).
Com o happy end, a fico passou a habitar temas cada vez mais realistas e de poder
identificativo, tornando-se a referncia de realidade para o imaginrio social, representando os
ideais da busca pela felicidade sempre. Em contrapartida, ele poupa os espectadores da
experincia trgica projetiva atravs da fico e acaba encontrando espao na grande
imprensa, adotando ares de espetculo e fico. A partir da relao envolvente entre o real e o
imaginrio: impulsionado pela informao real revestida de fico e pela fico realista, osincretismo revelado como caracterstica fundamental da cultura de massas e que significa
uma nova forma de encarar e perceber a realidade.
O sincretismo tende a unificar numa certa medida os dois setores da cultura industrial: osetor da informao muito procurado o sensacionalismo (isto , essa faixa de real, onde oinesperado, o bizarro, o homicdio, o acidente, a aventura irrompem na vida quotidiana).Tudo que na vida real se assemelha ao romanesco ou ao sonho privilegiado. Mais que isso,a informao se reveste de elementos romanescos