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INSTITUTO DE PS IQUIATRIA - IPUB CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE - CCS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ SUJEITO E PSICOSE ANGELA DE ANDRADE PEQUENO Tese de Doutorado submetida ao Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental - PROPSAM do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do tulo de Doutor em Ciências . da Saúde - Área de Concentração em Psicanálise. Orientador EDSON GUIMARÃES SAGGESE Doutor Rio de Janeiro Setembro, 2000

SUJEITO E PSICOSE · TERCEIRA PARTE-PERCORRENDO A TEORIA 1. OS TRÊS REGISTROS E O NOME-DO-P AI ... Lacan formaliza esse conceito que está prefigurado em Freud,

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INSTITUTO DE PSIQUIATRIA - IPUB

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE - CCS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

SUJEITO E PSICOSE ANGELA DE ANDRADE PEQUENO

Tese de Doutorado submetida ao Corpo Docente do

Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental - PROPSAM do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciências. da Saúde - Área de Concentração em Psicanálise.

Orientador EDSON GUIMARÃES SAGGESE

Doutor

Rio de Janeiro

Setembro, 2000

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INSTITUTO DE PSIQUIATRIA - IPUB

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE - CCS

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFR.l

SUJEITO E PSICOSE

AN GELA DE A NDRADE PEQUENO

Tese de Doutorado submetida ao Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em

Psiquiatria e Saúde Mental - PROPSAM do Instituto de Psiquiatria da Universidade

Federal do Rio de Janeiro. como parte dos requisitos necessários para a obtenção do

título de Doutor em Ciências da Saúde - Área de Concentração em Psicanálise.

Aprovada por:

tíífa< ;:,f:t;;;/ EDSON Gu1JA�ÃES �bEsE (Presidente) D<:,utor

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ANA BEATRIZ FREIRE Doutora

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Doutora

�J\� MARCO ANT�IO�COUTINHO JORGE Doutor

Rio de .Janeiro

Setembro. 2000

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-

PEQUENO, Angela de Andrade

Sujeito e Psicose / Angela de Andrade Pequeno.

Rio de Janeiro: UFRJ/IPUB, 2000.

viii, 135 p.

Tese de Doutorado: Universidade Federal do Rio

de Janeiro, IPUB, 2000

1. psicanálise 2. sujeito 3. psicose

1. PROPSAM.

II. Tese de Doutorado. JFRJ/ Instituto de

Psiquiatria.

m

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Para Lia Para Daniel e Fabrício

iv

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A GRADE CIMENTOS

A Edson Saggese, agradeço a interlocução inteligente e

atenta, bem como a ética com a qual soube conduzir a orientação de

minha tese de doutorado.

A João Ferreira, diretor do Instituto de Psiquiatria, por me ter

proporcionado as condições de possibilidade para a realização do

trabalho.

Ao CNPq, pela bolsa de estudos.

A meus pares: Inês Lamy, Amélia Sant' Anna, Ana Cristina

Figueiredo, Ana Tereza de Faria Groissman, Carlos Fernando Motta,

Isabel Lins, Marcus André Vieira, Maria Silvia Hanna, Stella

Jimenez e Ruth Dantas, que deram, cada um à sua maneira singular,

contribuições essenciais para a elaboração de minhas idéias.

A Ana Lúcia East, Ana Paula Sartori, Daniela Menaged,

Fernanda Dias, Filippo Olivieri, Lorenna Figueiredo de Souza,

Maria Cristina Bezerril Fernandes, Marta Cristina de Jesus Silva, Patrícia de Aguiar Oliveira e demais participantes de meu seminário

que, sem recuar. diante das dificuldades do texto de Lacan,

percorrem cmµigo os meandros da psicanálise de psicóticos.

A minha mãe, pela acolhida.

V

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......

RESUMO

Esta tese consiste em uma articulação entre a teoria psicanalítica e sua

clínica, que entendo como a única via que permite fazer avançar o conhecimento

em psicanálise. Nela trabalho a psicose como um campo privilegiado para se

pensar as questões do sujeito tal como a psicanálise o concebe.

O desencadeamento da psicose provoca a dissolução da estrutura pela qual

o sujeito se sustentava no período anterior ao surto. No entanto, a partir dessa

dissolução um processo que visa à restauração da estrutura põe-se em movimento.

Em meu trabalho, procuro investigar a constituição, a desconstrução e a

reconstrução do sujeito na psicose.

Apresento inicialmente o relato de duas análises de psicóticos, ambos

atendidos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ. O primeiro desses sujeitos

permaneceu internado durante quinze meses, no decorrer dos quais pude ser

testemunha de um processo de derrocada subjetiva. O segundo continua em

atendimento ambulatorial e parece estar construindo uma via para a estabilização.

A seguir, empreendo um percurso teórico; no qual abordo o aparelho ·

psíquico da primeira tópica desenvolvida por Freud; a primeira etapa do ensino de

Lacan, com ênfase na célula elementar do Grafo do Desejo e nos Esquemas L, R e

I; e seu ponto conclusivo: a teoria dos nós. No decorrer desse percurso, os casos

clínicos são retomados e tecidos à teoria.

A clínica é necessariamente portadora do real; e a clínica com psicóticos

traz essa marca a céu aberto. A especificidade da psicanálise reside em acolher o

real, o que exige permanentemente novas articulações. Acolher o real: isso equivale

a incluir o sujeito.

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-ABSTRACT

This thesis links psychoanalytical theory and clinical practice, which l

understand as being the only way to develop knowledge in psychoanalysis. ln this thesis l investigate the psychoanalytical concept of "subject", taking psychosis as a

fruitful basis. The onset of a psychosis causes the breakdown of the structure by means of

which the subject supported himself previously. Starting from this breakdown, however, a process of restoration is set in motion. ln my work l seek to analyse the constitution, the disruption, and the reconstruction of the subject in psychosis.

At the beginning, l report two analyses of psychotics, both attended at the ·1nstitute of Psychiatry ofthe Federal University of Rio de Janeiro. Toe first of these subjects stayed in hospital for fifteen months, during which l could witness a process of dissolution. Toe second is an outpatient and seems to be on the way to stabilisation.

On the basis of these two cases, l develop a theoretical approach in which l use: Freud's first topographical theory; the first period of Lacan's teaching, with an emphasis on the elementary cell of the Graph of the Wish and on the Schemes L, R, and l; and Lacan's theory of knots. Within this argument, the clinicai cases are reintroduced and involved to the theory.

Clinical practice always carries with it the dimension of the real, which is the core of the subject. This is the link l discuss in my thesis.

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SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE -INTRODUÇÃO 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................................. 2 2. O SUJEITO: FILOSOFIA, CIÊNCIA E PSICANÁLISE .................................... ! O

SEGUNDA PARTE - ENTRE A DERROCADA E A CONSTRUÇÃO: OS DESTINOS DO SUJEITO NA PSICOSE

1. NOTA INTRODUTÓRIA ................................................................................... 18 2. FABRÍCIO E OS DEMÔNIOS DO GOZO ........................................................ 19 3. AS LEMBRANÇAS DE DANIEL. ..................................................................... 33

TERCEIRA PARTE-PERCORRENDO A TEORIA 1. OS TRÊS REGISTROS E O NOME-DO-P AI ..................................................... 48

1.1 O Real, o Imaginário e o Simbólico ............................................................. .48 1.2 O Nome-do-Pai .............................................................................................. 48

2. O APARELHO PSÍQUICO .................................................................................. 51 2.1 O Nome-do-Pai e o Aparelho Psíquico .......................................................... 51 2.2 A Foraclusão do Nome-do-Pai na Psicose ..................................................... 54

3. A CÉLULA ELEMENTAR DO GRAFO DO DESEJO ...................................... 59 3.1 O Ponto de Vista Diacrônico .......................................................................... 59 3.2. O Nome Próprio na Psicose: Duas Ilustrações Clínicas ............................... 67 3.3 O Ponto de Vista Sincrônico .......................................................................... 70

4. OS ESQUEMAS L, R E 1. .................................................................................... 78 4.1 O Esquema L ................................................................................................. 78 4.2 O Esquema R ................ : ................................................................................ 81 4.3 A Foraclusão do Sujeito ................................................................................ 83 4.4 O Esquema R em Três Dimensões ................................................................ 84 4.5 O Esquema 1. ................................................................................................. 87

5. SUJEITO DO SIGNIFICANTE E SUJEITO DO GOZO .................................... 94 5.1 O Sujeito do Significante ............................................................................... 94 5.2 O Pai real ....................................................................................................... 96 5.3 O Sujeito do Gozo ......................................................................................... 97 5.4 A Morte do Sujeito na Psicose .................................................................... .101

6. A TOPOLOGIA DOS NÓS ................................................................................ l 08 6.1 O Nó Borromeano ........................................................................................ 108 6.2 Três ou Quatro Elos? ................................................................................... 111 6.3 O Nó Trevo e a Paranóia ............................................................................. 117 6.4 O Sujeito e o Nó .......................................................................................... 118 6.5 A Chamada Segunda Clínica Lacaniana ...................................................... 120

QUARTA PARTE -PARA NÃO CONCLUIR .................................................. 124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 135

viii

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-,

PRIMEIRA PARTE

-INTRODUÇÃO

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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A psicose é uma questão de sujeito porque nos conduz aos confins de sua produção

Millcr,1987:181

Esta é uma tese de doutorado necessariamente incompleta. A questão que a

sustenta não será aqui esgotada; conforme veremos, é mesmo impossível dar-lhe uma

resposta plena. Nessa medida, minha reflexão sobre o tema que elegi deverá se

prolongar para além da conclusão deste trabalho, marcada pelo tempo cronológico de

um prazo acadêmico.

Minha tese é de que há sujeito na psicose. Aparentemente isso não constitui

uma novidade. A afirmação de que o psicótico não é sujeito está fora de moda, pois

ela como que o destitui da condição humana e vem assim reforçar todo tipo de

confinamento e exclusão. No entanto, esse não é um argumento que faça ciência,

sobretudo se considerarmos que de algumas definições de Lacan I poderia se deduzir

que o psicótico não é um sujeito.

Se, "na perspectiva freudiana, o homem é o sujeito capturado e torturado pela

linguagem" (Lacan, 1955-1956:276), o psicótico é sem dúvida sujeito. Conforme

veremos, é o sujeito de uma escolha específica e paradoxal. Mas ele mantém com a

linguagem uma relação outra que a do neurótico. Como se constitui o sujeito na

psicose? O que ele nos ensina sobre a condição humana? -são questões centrais deste

trabalho.

Minha tese consiste em uma articulação entre a teoria psicanalítica e sua

clínica, que entendo como a única via que permite fazer avançar o conhecimento em

psicanálise. Nela pretendo trabalhar a estrutura clínica da psicose como um campo

privilegiado para se pensar as questões do sujeito tal como a psicanálise o concebe.

1 Por exemplo, a de que o sujeito é o que um significante representa para outro significante. Remeto o leitor à seção 5 .1 da Terceira Parte desta tese.

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Para além da ilusão de autonomia que o neurótico entretém no jogo da vida,

Freud desde muito cedo se deu conta de que o sujeito se apresenta descentrado com relação a seu eu. A descoberta própria da psicanálise é a descoberta do inconsciente.

"No curso dos tempos, a humanidade teve de suportar por parte da ciência duas graves afrontas ao seu ingênuo amor próprio. A primeira, quando se inteirou de que nossa terra não era o centro do universo, e sim uma infima partícula dentro de um sistema cósmico mal imaginável em sua grandeza. ( ... ) A segunda, quando a investigação biológica reduziu a nada o suposto privilégio na Criação que o homem tinha se conferido, demonstrando que ele provinha do reino animal e possuía uma inerradicável natureza animal. ( ... ) Uma terceira e mais dolorosa afronta, porém, está destinada a experimentar hoje a megalomania humana por obra da investigação psicológica; esta pretende demonstrar ao eu que nem sequer é senhor em sua própria casa e sim que depende de parcas notícias sobre o que ocorre inconscientemente em sua alma" (Freud,1916-1917:260).

No entanto, se o sujeito é um tema freudiano, não é um termo que Freud tenha alçado à condição de conceito. Ao contrário, faz dele um uso apenas esporádico e

assim, para se referir ao que virá a ser o conceito, é forçado a permanecer em um nível

mais descritivo, mais próximo ao fenômeno: o sonhador, o neurótico, o psicótico, a

criança, o primitivo, o eu. Ou seja, a rigor o conceito de sujeito em psicanálise não é

de Freud e sim de Lacan. Lacan formaliza esse conceito que está prefigurado em

Freud, ressignificando-o mediante o recurso a desenvolvimentos desde então ocorridos no campo dos demais saberes, para falar do cerne da descoberta freudiana: o inconsciente e o desejo. Para Lacan, importa "o sujeito verdadeiro", isto é, "o sujeito

do inconsciente" (Lacan,1954-a:372), que ''vai bem além do que o indivíduo

experimenta 'subjetivamente"' (Lacan, 1953 :265).

Alguns trabalhos de Lacan constituem marcos no seu percurso em direção a Freud; não por acaso, eles são correlativos à. formalização do conceito de sujeito. São

eles: a tese de doutoramento, Da Psicose Paranóica em suas Relações com a

Personalidade (1932); o ensaio sobre Os Complexos Familiares na Formação do

Indivíduo (1938); e o escrito O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu

tal como nos é revelada na Experiência Psicanalítica ( 1949). O simples exame dos

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títulos permite estabelecer uma série que demarca a via própria de Lacan: a

personalidade ➔ o indivíduo ➔ o eu (Ogilvie,1991)2. Além disto, a referência à

paranóia é indicativa do ponto de partida de Lacan na clínica psiquiátrica das psicoses;

após uma breve passagem por um pensamento mais sociológico, assinalado pela

referência ao indivíduo, o título do terceiro trabalho já explicita seu ponto de chegada:

a psicanálise.

Essa série é ressignificada a posteriori, quando Lacan publica seus Escritos

(1966). Ele então escreve um prefácio a Função e Campo da Fala e da Linguagem

em Psicanálise (1953), artigo que afirma a supremacia da ordem simbólica sobre o

imaginário na determinação dos fenômenos psíquicos e assinala, com isso, o início de

seu ensino. A esse prefácio, Lacan intitula: Do Sujeito enfim em Questão.

O sujeito constitui a dimensão específica em que a psicanálise opera, sua

"referência ineludível" (Miller, 1988, 100). O campo do sujeito é coextensivo à

psicanálise. Recusar ao psicótico a condição de sujeito seria assim equivalente a

excluí-lo da própria psicanálise.

A produção freudiana acerca da psicose tem como ponto central a Análise de

um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (Freud, 1911 [ 191 O]). O caso

Schreber é o exemplo paradigmático da clínica psicanalítica das psicoses, que só se

tomou acessível a Freud e seus seguidores por ter o paciente redigido suas memórias.

Schreber foi um juiz alemão que abriu um surto após ter sido nomeado para um alto

cargo. No ápice da crise, ele acreditava que o mundo teria acabado e que ele seria o

único sobrevivente da catástrofe. Também nos relata ter lido um dia, em um jornal, a

notícia de sua própria morte. A redação das Memórias de um Doente dos Nervos

representou para Schreber a via para a reconstrução do eu e do mundo, o que

possibilitou a estabilização da psicose.

Em uma passagem de sua análise, Freud fala desse trabalho de reconstrução do

mundo:

2 Nesta tese, não me deterei no livro de Ogilvie - Lacan: a Formação do Conceito de Sujeito. Mas ele certamente forneceu um enquadre preciso e rigoroso para meu trabalho. Recomendo-o vivamente ao leitor interessado no tema.

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"E o paranóico o reconstrói, claro que não mais esplêndido, mas ao menos de modo a que possa nele voltar a viver. Edifica-o de novo mediante o

trabalho de seu delírio. O que nós consideramos a produção patológica, a formação delirante é, na realidade, a tentativa de restabelecimento, a reconstrução Mas o homem recuperou um vínculo, com freqüência muito intenso, com as pessoas e coisas do mundo, se bem que o que antes era um

vínculo de ansiosa ternura possa tomar-se hostil" (Freud, 1911 [1910) :65-66).

Lacan faz a releitura dessa obra de Freud em seu Seminário 3 sobre as psicoses

(1955-1956), no qual a construção de um saber acerca dessa estrutura clínica é concomitante à elaboração de uma teoria acerca dos três registros que tecem a experiência humana, o real, o simbólico e o imaginário. Ao final do seminário, Lacan

terá formulado que a psicose é determinada pela foraclusão do Nome-do-Pai3.

Em seu escrito De uma Questão Preliminar a todo Tratamento Possível da

Psicose (1957-1958-b), já dispondo do conceito de foraclusão, Lacan retoma o Seminário 3. Baseando-se na informação do psiquiatra de que Schreber teria atravessado um longo período de estupor catatônico, bem como no relato do próprio paciente, ele propõe ter havido, no ápice da crise que Schreber atravessou, uma morte do sujeito. Como veremos no decorrer desta tese, Lacan confere, a essa morte, uma

positividade.

Neste trabalho, interessa-me discutir essa noção, que me parece passível de ser

generalizada para outros casos de psicose. A concepção de uma morte do sujeito vem ao encontro do que observo na clínica. Na psicose, há uma ameaça de morte subjetiva, que pode se efetivar em maior ou menor grau, e que exige do sujeito mobilizar os

recursos à sua disposição para não soçobrar. É pela via do delírio que Schreber consegue conferir alguma organização,

embora frágil, a seu mundo.

l ) .

"O delírio dá respostas às diferentes etapas da disse, ução imaginária, para aí restituir uma ordem do sujeito" (Lacan, 1957-1958-b:572, grifo meu).

3 Reenvio o leitor ao capítulo intitulado "Os Três Registros e o Nome-do-Pai" (Terceira Parte,

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"É em tomo desse buraco onde o suporte da cadeia significante falta ao sujeito ( . . . ) que se jogou toda a luta na qual o sujeito se reconstruiu" (Lacan, 1957-1958-b:564, grifo meu).

Parece-me, assim, que a dissolução da estrutura do sujeito põe em movimento

um processo que visa à sua restauração. A pergunta sobre a possibilidade da psicanálise de psicóticos é tributária da

questão preliminar que sempre se coloca e que se refere à estrutura (Lacan,1957-1958-

b ). A psicose é urna estrutura clínica, urna modalidade de estruturação da

subjetividade humana. Freud (1933 [1932]) nos traz urna imagem segundo a qual urna peça de cristal nunca se quebra de forma aleatória, mas ao longo de linhas de força que estavam desde sempre presentes nela. Ou seja, ela se quebra segundo leis

estruturais e de urna forma que revela a estrutura. A clínica psicanalítica deverá então

necessariamente tomar corno ponto de partida a estrutura do sujeito na psicose. O que pode o analista oferecer ao psicótico? As respostas a essa questão são

controversas. A posição de Freud era marcada pelo ceticismo: ele afirmava que a psicanálise pode constituir urna técnica de investigação, mas não de tratamento da

psicose (Freud,1914;1937). Em outros momentos, porém, parece apontar urna

possibilidade, ao afirmar que, em psicanálise, investigação e tratamento caminham

juntos (Freud,1913 [1911]): disso podemos depreender que efeitos de conhecimento produzem necessariamente efeitos terapêuticos. Quanto a Lacan, nos primeiros anos de seu ensino sua posição é de reserva: a análise de um pré-psicótico pode acarretar a eclosão do surto - com a ressalva, porém, de que isso também depende do manejo da

transferência. Nos últimos anos, essa posição é matizada pela recomendação ao

analista de não recuar diante da psicose. Soler (1993) interpreta de forma fecunda essa exortação de Lacan. Não recuar

diante da psicose significa não ceder, não apenas diante dos impasses da clínica, mas

também dos problemas teóricos que a psicose coloca para o analista e que por vezes

constituem verdadeiras aporias. Há psicóticos que se mantêm em análise e, nesses casos, o tratamento

desempenha urna função crucial na sustentação dos sujeitos na existência. Com

freqüência, a demanda do psicótico diz respeito à sua errância, à falta de um lugar

simbólico. Um sujeito cujo caso acompanhei corno supervisora pedia ajuda para

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"voltar a ser gente". Um outro se descrevia como "uma folha seca solta ao vento".

Nesse sentido, encontrar um lugar junto ao analista e lhe endereçar sua fala já é

construir para si algum lugar simbólico. E isso tem conseqüências.

Tomando como fio condutor o conceito de sujeito pretendo trazer alguma

contribuição para essas questões.

A Introdução desta tese divide-se em duas seções. A segunda versará sobre o

advento, na história, do sujeito da psicanálise. Nela, trabalho de forma sucinta o

percurso cuja origem é assinalada pelo cogito cartesiano, que funda as condições de

possibilidade tanto da ciência quanto da psicanálise. E comento a afirmação de Lacan segundo a qual o sujeito da psicanálise é o sujeito da ciência, procurando estabelecer

os pontos de conjunção e disjunção existentes entre ambos.

O trabalho analítico exige a articulação do saber referencial e do saber textual

(Lacan, 1 967). O saber referencial do analista -saber acerca da estrutura, da teoria que

permite que ele conduza uma análise - vai ao encontro dos significantes de um

sujeito. Do saber textual assim produzido poderá advir um ganho de saber referencial.

Cabe ao analista, se ele o é, não fazer do saber referencial um obstáculo à escuta e

permitir que esta o vivifique. Para mim, é fundamentalmente nesse sentido que a

psicanálise, como a define Lacan, é uma práxis - isto é, visa a tratar o real pelo

simbólico.

No que diz respeito ao saber textual, construo nesta tese dois casos clínicos,

que são apresentados em sua Segunda Parte. Também recorro, de forma pontual, a

exemplos retirados dos tratamentos de outros psicóticos. A meu ver, as análises desses

dois sujeitos constituem o coração de minha tese.

Ambos foram atendidos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ; do ponto de vista

do diagnóstico estrutural eles se incluem, respectivamente, nas categorias da esquizofrenia e da paranóia, o que permite a abordagem desses tipos clínicos da

psicose.

O primeiro desses sujeitos foi internado pouco após o início do tratamento

analítico. Durante quinze meses, o atendimento prosseguiu em uma das enfermarias

do IPUB, sendo interrompido pela transferência do paciente para outra instituição.

Pude ser testemunha de um doloroso processo de derrocada subjetiva que, no entanto,

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sempre coexistiu com uma tentativa de cura e reconstrução que tinha algo de heróico.

O segundo paciente continua sendo atendido no ambulatório e está possivelmente

construindo uma via para a estabilização.

Eles foram escolhidos porque constituem exemplos paradigmáticos.

Presentificando as duas vertentes que pretendo abordar nesta tese, a desconstrução e a

reconstrução do sujeito na psicose, possibilitam adentrar os meandros desses. processos.

Qualquer separação entre a teoria e a clínica é artificial e didática; assim, para

a construção desses casos foi necessário o recurso a uma vasta rede teórica, que só

poderá ser explicitada e desenvolvida nos capítulos subseqüentes. Do leitor não

familiarizado com a psicanálise, peço então a paciência. Os casos clínicos deverão ser

retomados e articulados ao percurso teórico que irei empreender na Terceira Parte

desta tese.

No que diz respeito ao saber referencial, o ensino de Lacan pode ser dividido

em três etapas, nas quais ele recorre a instrumentos teóricos distintos para pensar a

articulação do real, do simbólico e do imaginário. Na década de cinqüenta, mais

precisamente entre 1953 e 1961, para fundar a prevalência do simbólico sobre o

imaginário, Lacan desenvolve os esquemas e o Grafo do Desejo. Nos anos sessenta

( 1 961 -1971 ), ao trabalhar o real, recorre à topologia das superficies. E nos últimos

anos de seu ensino ( 1972-1981 ), a topologia dos nós constitui o instrumento para

demonstrar a interdependência dos três registros.

Nesta tese, trabalho a primeira e a última formulação teórica de Lacan:

privilegio, dentre os instrumentos que constituem o ponto de partida de seu

pensamento, os Esquemas L, R e I, bem como a célula elementar do Grafo do Desejo;

e seu ponto conclusivo, a teoria dos nós.

Quanto às superficies topológicas, irei me deter apenas em duas delas: a banda

de Moebius e o plano projetivo. É fácil justificar essa escolha: Lacan as trabalha em

uma nota de roe pé que acrescentou ao Esquema R, cerca de oito anos após a redação

de De uma Questão Preliminar a todo Tratamento Possível da Psicose,

provavelmente tendo em vista a publicação dos Escritos.

Uma leitura diacrônica me possibilitará realizar um estudo comparativo dessas

duas etapas da construção da teoria de Lacan, acompanhando assim seu percurso no

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que concerne à estrutura do sujeito e à psicose. Uma leitura sincrônica permitirá

extrair os elementos comuns a esses dois momentos e cernir algumas constantes

estruturais para pensar a questão da tese.

A revisão da literatura psicanalítica será necessariamente parcial. Uma revisão

exaustiva teria um efeito análogo à exposição minuciosa de um tratamento analítico,

cujo resultado seria, conforme assinala Freud, o cansaço do leitor e não sua convicção . . Faz-se necessária uma palavra acerca das citações de Freud e Lacan. Os textos

aos quais as referências bibliográficas são feitas são a edição Amorrortu da obra de

Freud em castelhano e o original francês de Lacan. No entanto, para dar mais fluência

às citações julguei conveniente cotejá-los, respectivamente, com a Standard Edition e

as traduções já realizadas do texto de Lacan para o português. Portanto, as citações

que se encontram nesta tese são retrabalhadas, e não apenas transcrições das traduções

já publicadas.

De um modo geral, refiro-me aos textos de Freud, Lacan e demais autores

consultados para a elaboração desta tese pelo ano em que seus trabalhos foram

escritos, por considerá-lo mais elucidativo para o leitor do que o seria a referência à

data de sua publicação.

Acredito que, se meu trabalho vier a fazer alguma contribuição original, ela

será trazida pela clínica. A clínica é necessariamente portadora do real; e a clínica com

psicóticos traz essa marca a céu aberto. A especificidade da psicanálise reside

justamente em acolher esse real que, não cessando de não se escrever, exige

permanentemente novas articulações. Acolher o real: isso equivale a incluir o sujeito.

9

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2 . O SUJEITO : FILOSOFIA, CIÊNCIA E PSICANÁLISE

Lacan assinala a equivalência do sujeito da psicanálise ao sujeito da ciência,

que surge sobre a base do sujeito cartesiano:

"( . . . ) o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise só pode ser o sujeito

da ciência" ( 1966-a:858).

"Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo ( . . . ) - porque é

Descartes quem o faz" ( 1 964-b:45).

Para abordar a questão deste trabalho, faz-se necessária uma fundamentação do que vem a ser o sujeito para a psicanálise. Sabemos que a psicanálise é uma práxis

datada no tempo e situada no espaço. Outras eras foram caracterizadas por formas distintas de organização da subjetividade. Isso indica que devemos buscar na história

as condições de possibilidade para o advento do sujeito tal como a psicanálise o

concebe. A transição da Idade Média para o Renascimento trouxe consigo a queda da

verdade revelada pela religião. No plano ideológico, essa verdade era unívoca, não

dava lugar para o advento da dúvida; no plano sociológfoo, o sujeito pré-moderno era transparente, já que rigidamente determinado pelas relações sociais em que se inseria.

O Renascimento faz emergir o cético como figura dominante da cultura. Com

a derrocada das concepções e valores que até então vigoravam, instauram-se a dúvida e a descrença. Ao tudo por em questão, o ceticismo aniquila a possibilidade de um

saber sobre o real e, portanto, da ciência.

A história da cultura coloca Descartes na gênese da modernidade. Descartes foi

o intérprete preciso e sensível das transformações que estavam se operando em sua

época. Seu interlocutor é o cético, a quem pretende refutar no Discurso sobre o Método. Contra ele, Descartes recorre à dúvida metódica e funda uma nova modalidade de certeza, possibilitando, com este passo, o advent•) da ciência moderna. Sobre esse momento crucial, dirá Lacan: "penso, logo existo (cogito ergo sum)" marca

"o apogeu de uma reflexão histórica sobre as condições da ciência" ( 1957:516).

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Em sua busca obstinada da verdade e da certeza, Descartes encontra uma

primeira idéia indubitável no próprio ato de pensar:

"( . . . ) enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria

necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que

esta verdade: eu penso. logo existo era tão firme e tão certa que todas as

mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar,

julguei que podia aceitá-la, sem escnípulo, como o primeiro princípio da

Filosofia que procurava" (Descartes, 1 637:9 1 -92, grifo do autor).

Para os filósofos, há em Descartes dois tempos do sujeito. O sujeito é

inicialmente a coisa pensante, res cogitans, que é extraída de forma imediata do

enunciado indubitável "eu penso". No entanto, ela é "uma verdade instável e fugaz"

(Landim,1997:47), da qual ainda se pode duvidar:

"Eu sou, eu existo: isto é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o

tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse

de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito

agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando

precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um

entendimento ou uma razão ( . . . )" (Descartes, 164 1 :269, grifo do autor).

Ou seja, antes da prova da existência de Deus a única certeza que pode ser

afirmada diz respeito ao instante evanescente do cogito, que é puro pensamento.

Segundo alguns estudiosos, na passagem do cogito à coisa que pensa dá-se uma

substancialização (Badiou, 1997), introduz-se "um resíduo do velho realismo"

(Morente, 1966: 168) no sistema cartesiano.

Ao final do percurso do pensamento cartesiano, que recorre ao Deus não

enganador como garantia da existência, o sujeito é concebido como a união da mente

com o corpo.

Landim conclui: "Provada a tese da união da mente com o corpo, qual é o

sujeito cartesiano? A res cogitans ou o homem? Não há uma resposta definitiva a essa

questão: o sistema cartesiano comporta várias interpretações" (p.55).

1 1

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1 .......,

A interpretação do cogito pelo psicanalista considera também dois tempos do

sujeito, mas demarcados em um ponto preciso, distinto daquele que assinala o filósofo

(Milner, 1996). Retomemos a frase de Lacan já citada anteriormente: penso, logo existo

( cogito ergo sum) marca o apogeu de uma reflexão histórica sobre as condições da ciência. Na tradução lacaniana do enunciado do cogito surge um detalhe, uma vírgula

ausente da frase em latim, que separa o pensamento da existência e efetua uma

suspensão da passagem do primeiro ao segundo tempo. Como em uma interpretação, o

psicanalista corta a res cogitans, revelando a estrutura de corte do ato inaugural de

Descartes.

O sujeito assim produzido pela operação de Descartes é o sujeito dividido (no enunciado cartesiano, entre cogito e sum). Mais radicalmente, o sujeito cartesiano

emerge no intervalo entre significantes: ele é puro corte, momento fugaz de abertura para o ser, que Descartes se apressou a recobrir pelo recurso ao imaginário - ao

sintagma "coisa que pensa" 4 e, depois, à união da mente com o corpo.

Em seu ato inaugural, Descartes terá vislumbrado o real do sujeito5• Ele

certamente terá chegado a um ponto de impossibilidade, de ex-sistência, que assinala o limite, a fronteira do real6

A partir desse ponto de convergência inicial, o encaminhamento de Freud

diverge do de Descartes. O filósofo recorre a Deus como garante da verdade, enquanto

que o psicanalista sustenta o desejo no inconsciente: "desidero é o cogito freudiano"

(Lacan, 1964-b: 141 ).

No cerne da constituição da ciência está o esvaziamento do imaginário, das

qualidades egóicas. Esse movimento é brilhantemente analisado por Bachelard em A

4 Essa afirmação certamente padece de um certo esquematismo. Embora vários intérpretes de

Descartes (Milner, 1996; Morente, 1966; Lacan, 1964-b; Badiou, 1997) apontem que na passagem do cogito para a res cogitans se produz uma imaginarização, a coisa pensante não pertence ao registro do imaginário.

5 Nesse ponto, cumpre distinguir o ser enquanto real, que ex-siste, do ser da filosofia realista, que existe, na realidade. Para precisar a distinção entre o real e a realidade, remeto o leitor à Terceira Parte, seções 1 . 1 e 4.2.

6 Como veremos na conclusão desta tese, o cogito em seu primeiro momento constitui o umbigo do enunciado cartesiano, "o lugar em que ele penetra no não conhecido" (Freud, 1900:5 19).

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Formação do Espírito Cientifico. Trago aqm, como exemplo, sua análise do

pensamento alquímico, que apresenta de forma expressiva os pontos que desejo precisar e foi retomada por Lacan no Seminário 11 .

Segundo Bachelard (1938), os alquimistas, acusados de cobiça, na verdade não

buscam bens terrestres, mas o bem da alma. Quando uma experiência alquímica

fracassa, conclui-se que as condições e o material da experiência são impróprios, ou_ .

que o tempo oportuno para sua realização ainda não chegou. E, fundamentalmente, a

experiência fracassa por falta de pureza moral do experimentador. Para purificar a

matéria, o alquimista precisa, primeiro, purificar a própria alma. Ele vai encontrar a

verdade na natureza porque a sente dentro de si. A dedução dos símbolos não se dá

num plano experimental objetivo, mas sim no plano da subjetividade. "Não se trata de

provar, e sim de experienciar. Então, encontrar o objeto é de fato encontrar o sujeito"

(p.65).

Esse exemplo mostra que o pensamento pré-científico não faz uma separação entre sujeito e objeto, mas incide sobre um sujeito e um objeto igualmente qualificados (Pequeno, 1998-a). Cumpre assinalar que esse sujeito, saturado pelo objeto imaginário, não é o sujeito do cogito.

Como vimos, o sujeito do cogito é puro ato de pensamento, sem conteúdo; é

uma função do significante e ao mesmo tempo escapa a este. Se a dúvida revoga as qualidades, a certeza do cogito incide sobre um pensamento sem qualidades.

A idéia de um pensamento sem qualidades remete-nos simultaneamente à

psicanálise e à ciência.

- À psicanálise, já que o pensamento do sonho, pensamento inconsciente, é

sem qualidades. Essa é uma questão que mereceria ser discutida em seus matizes.

Mas, atendo-me ao que interessa para este trabalho, faço referência à obra inaugural

da psicanálise, A Interpretação dos Sonhos, em cujo capítulo metapsicológico Freud define a consciê.1cia como "órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas"

(1900:603) e, apontando para o que virá a ser o real em Lacan, afirma que no interior

do aparelho psíquico só existe quantidade. Freud é ainda mais claro em uma passagem do Projeto: "a consciência nos dá o que se chama qualidades" (1950(1895]:372).

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Dessa definição da consciência, podemos deduzir que o pensamento inconsciente é

sem qualidades.

- À ciência, que também é caracterizada por um pensamento sem qualidades.

O pensamento cartesiano, ao elaborar a separação entre sujeito (res cogitans) e objeto

(res extensa), opera um esvaziamento de significação a partir do qual a atividade

científica pode se dar como puro jogo de letras (Milner, 1996). Em suma, o pensamento inconsciente e o pensamento científico são ambos

sem qualidades e correlatos do sujeito do cogito.

Sujeito do inconsciente e sujeito da ciência são ambos produtos da divisão do sujeito operada pelo cogito. No encaminhamento de Descartes, esta é discernível como divisão entre verdade e saber.

Em uma de suas múltiplas definições do inconsciente, Lacan diz que este

consiste na verdade sem o saber: Inconsciente = verdade - saber (Lacan, 1968- 1969:5/03/ 1969)

A verdade como tal está sempre para além, em outro lugar. Ela só se revela enquanto saber7 . "Nós interrogamos a verdade no inconsciente como desvanecimento

criativo do saber, como ponto de origem do desejo de saber: o saber está condenado a não ser jamais senão o correlato dessa falha" (Lacan, 1 968- l 969:23/04/ 1 969). A

verdade que causa o sujeito é sua hiância.

Nesse ponto separam-se os encaminhamentos da psicanálise e da ciência. A

psicanálise fica do lado da verdade e a ciência, do saber. Ou seja, a psicanálise opera a destituição do saber já sabido e produz a abertura do sujeito à verdade, enquanto que a

ciência busca tudo saber e nada quer saber da verdade8.

7 A relação entre verdade e saber segue o modelo de uma banda de Moebius. Ver a Terceira Parte, 4.4.

8 Como vimos, a questão da verdade se encontra na origem do sistema cartesiano, mas é logo tamponada pela resposta que Descartes encontra, pela qual ele inventa o Sujeito suposto Saber: Deus garante a verdade das idéias claras e distintas.

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íl

n

Ciência e a psicanálise lidam diferencialmente com esse resto real produzido

pela operação significante9. O sujeito, condição da ciência, é ao mesmo tempo

excluído do campo que ela determina. A foraclusão do sujeito da ciência, segundo

alguns autores, está em que não se espera que a subjetividade do cientista exerça

qualquer efeito sobre os seus resultados (Miller,1984). Considero esse argumento

insuficiente, embora correto. Parece-me que nele o conceito de sujeito está sendo

retomado num sentido psicológico - no sentido do eu, da união cartesiana. Se o sujeito

não é a subjetividade, excluir o eu não equivale a foracluir o sujeito

Que a exclusão do eu do cientista seja condição da atividade científica,

Bachelard (1938) demonstrou-o cabalmente, chegando mesmo a chamar este processo

de retificação discursiva e de dessubjetivação, termos carregados de ressonâncias para

o psicanalista. Mas, a meu ver, a foraclusão não pode se restringir a isso, já que o

sujeito, na radicalidade de sua acepção psicanalítica, é o sujeito em sua vertente real

É de Milner que me vêm as indicações mais preciosas para esboçar uma

resposta a essa questão. Pensando a ciência a partir do binômio do necessário e do

contingente, esse autor demonstra que o que é foracluído é o real do sujeito.

"A estrutura da ciência moderna repousa inteiramente na contingência. A

necessidade material que é dada às leis é a cicatriz dessa contingência

mesma. Durante um ínfimo momento, cada ponto de cada referente de

cada proposição da ciência surge como podendo ser infinitamente outro

que é, numa infinidade de pontos de vista; no momento ulterior a letra o

fixou como ele é e como não podendo ser outro que é, a não ser mudando

de letra, isto é, de partida. Mas a condição do momento ulterior é de fato o

momento anterior. Manifestar que um ponto do universo é como é requer

que sejam lançados os dados de um universo possível onde esse ponto

seria outro que é. Ao intervalo de tempo em que os dados turbilhonam

antes de cair, a doutrina deu um nome: emergência do sujeito, o qual não é

o lançador (o lançador não existe), mas os próprios dados enquanto estão

em suspensão.

9 Esse é um ponto complexo e só na seqüência deste trabalho poderei esclarecê-lo para aqueles não familiarizados com o pensamento lacaniano. Por ora, remeto o leitor à Terceira Parte, 1 . 1 .

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( . . . ) assim que a letra se fixou, só a necessidade permanece e impõe o esquecimento da contingência que a autorizou. A inoportunidade desse retorno do contingente é o que Lacan chama de sutura. A radicalidade do esquecimento é o que Lacan chama de foraclusão. Já que o sujeito é o que emerge do momento anterior ao momento ulterior, sutura e foraclusão são necessariamente sutura e foraclusão do sujeito" (Milner, 1 996:52).

Ou seja, quando se completa o processo de destituição do imaginário que está

na origem da ciência, o sujeito em sua vertente real (metaforizado pelos dados em

suspensão) é obliterado, fica como se não tivesse existido 1 0• É esse o sentido da

foraclusão do sujeito pela ciência, é essa a diferença radical com relação à psicanálise.

10 A . od d meu ver, esse movtmento repr uz o percurso o pensamento cartesiano, que se apressou a recobrir o instante evanescente do cogito com a existência.

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S EGUNDA PA RTE

- ENTRE A DERROCADA E A

CONSTRUÇÃO: OS DESTINOS DO

SUJEITO NA PSICOSE

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1 . NOTA INTRODUTÓRIA

Nesta Segunda Parte de minha tese apresento dois casos clínicos, em que me

detenho nas filigranas da constituição dos sujeitos. Essa forma de trabalho encontra-se

plenamente justificada pelo tema de minha tese - o sujeito e a psicose - bem como

pelo método que elegi -a articulação entre a teoria e a clínica.

Não penso, em absoluto, que a ética da psicanálise consista no sigilo. O

próprio Freud argumenta que "a discrição é indispensável na vida real, mas inútil em

nossa ciência" (1915 [1914]:163). Se um caso clínico permite novas articulações,

trazê-lo à luz é um dever ético do analista. O que não deve ser revelada é a identidade

dos sujeitos, pois isso lhes causaria um sofrimento desnecessário e equivaleria a uma

quebra do dispositivo analítico. Não é ela que importa, mas sim aquilo que do caso se

deposita em termos de ganho de saber, ou seja, a contribuição que ele traz para a

psicanálise enquanto práxis.

A meu ver, o fato de essas análises se darem em uma instituição, como parte

de um trabalho de doutorado, só vem redobrar a ética da psicanálise, impondo o dever

de prestar contas do saber assim produzido.

Fiz tudo o que foi possível para ocultar quaisquer dados que pudessem revelar

a identidade dos sujeitos para outros que não eles próprios ou aqueles que lhes são

muito próximos. No caso de Daniel, uma razão adicional para o sigilo consiste em

que, segundo ele me diz, uma das causas da perturbação de sua existência deveu-se a

seus problemas terem sido publicados por um profissional que o atendeu.

Tal como está apresentada, esta tese terá uma circulação restrita. Seus leitores

serão, predominantemente, meus pares. Estou certa, assim, de que os dois casos

clínicos que se seguem serão tratados com a mesma delicadeza e respeito com que os

atendi.

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2 . FABRÍCIO E OS DEMÔNIOS DO GOZO

O mundo jamais é inumano porque é composto pelo homem

Lacan. 1955-1 956

Fabrício procura uma psicoterapia em março de 1997, após ter passado meses

internado em um hospital psiquiátrico. O motivo é sua agressividade, atualmente ·

dirigida à esposa, a quem diz amar muito. Sente uma ira que não controla.

Conta-me então que seu primeiro surto ocorreu há dez anos. No dia em que

conheceu a esposa, convidou-a para ir até sua casa. Assim que ela foi embora, sua mãe

lhe disse que ela não servia para ele. Começaram a namorar. No período que antecedeu o casamento, sua mãe lhe

telefonava todos os dias, dizendo: "não deixa ela tirar você de mim". Seis meses depois do casamento, Fabrício teve o primeiro surto.

O surto foi caracterizado por episódios de violência em seu local de trabalho.

Depois, perdeu a lucidez, não se lembra de mais nada. Sua esposa telefonou para a

mãe dele para comunicar-lhe o que estava ocorrendo e ela lhe respondeu: "eu o dei

para você bom, só quero recebê-lo de volta bom".

Esse sujeito é o objeto exclusivo e absoluto da mãe. Fabrício sofre de uma triangulação impossível. Mais tarde, ele me dirá que o surto 'já estava escrito".

A situação que desencadeia a psicose é o encontro com Um-pai (Lacan,1957-

1 958-b):

"Que se procure no início da psicose essa conjuntura dramática. Quer ela se apresente, para a mulher que acaba de dar à luz, na figura de seu marido, para a penitente que confessa seu erro, na pessoa de seu confessor, para a mocinha enamorada, no encontro com o 'pai do rapaz', sempre a encontramos, e a encontraremos com mais facilidade ao nos guiarmos pelas ' situações' no sentido romanesco desse termo" (p.578).

O primeiro surto foi uma catástrofe subjetiva, da qual Fabrício não se recupera.

Passa a viver, durante nove anos, como que internado em casa, a esposa assumindo o

lugar que antes a mãe ocupara. Fabrício, cujo parco conhecimento de psicanálise é

aguçado por seu rigor de psicótico, sabe que fez uma transferência da mãe para a

esposa. Em 1996 teve o segundo surto, caracterizado por cenas de violência contra a

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--,

-,

esposa, e passou dez meses internado. Sabe do que fez através dela, pois não se

lembra de nada.

Já na segunda entrevista, Fabrício diz que eu o irrito. Meu silêncio lhe lembra

sua mãe, que ficava calada quando queria irritá-lo; meu jeito de falar também.

Na terceira entrevista, chega pedindo um outro terapeuta. Não está gostando do

meu silêncio. Respondo que seu pedido poderá ser atendido, mas proponho que ele

venha na sessão seguinte.

A irritação é o significante da transferência (Lacan, 1967) -sem suposição de

saber, no sentido que esta assume na psicanálise de neuróticos. Isto é, a suposição de

saber não se refere aos significantes da cadeia inconsciente, mas seria uma suposição

de saber fazer (savoir faire) com o gozo.

Com a emergência desse significante, Fabrício entra no trabalho analítico. A

irritação é a resposta que ele emite a partir de uma posição de objeto. Esse foi o

momento em que ele me incluiu na transferência, constituindo uma série psíquica: a

mãe ➔ a esposa ➔ a analista. Quando escuto seu pedido, fazendo intervir o desejo do

analista, reconheço nele um sujeito. A partir daí dissolve-se a transferência negativa

cuja intensidade ameaçava inviabilizar o trabalho. Consigo assim preservar a análise

de sua agressividade.

O significante do laço que ele então estabelece comigo é "nossas conversas"

ou, menos freqüente, "nossa terapia". Significante preciso, em que cada termo, o laço

e a fala, tem um valor. Diz sempre que "nossas conversas o estão ajudando" a se

conhecer, a controlar sua ira.

A partir de minha clínica com psicóticos, penso que o Sujeito suposto Saber­

fazer, como correlato do sujeito do gozo, é uma forma que a suposição de saber

assume com freqüência em casos de psicose. Como a singularidade desses sujeitos

exige uma grande cautela nas generalizações, deixo essa afirmação como hipótese a

ser repensada a partir de uma reflexão mais detida sobre o tem.1.

Quando decide permanecer no tratamento, Fabrício passa a trazer elementos de

sua história. Esta parece ter sido alvo, não de uma contínua ressignificação como

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ocorre na neurose, mas de uma verdadeira remodelação, que se pusera em movimento

a partir da eclosão da psicose. Sua relação com a mãe - relação exclusiva que o sustentara na existência - é

definida pela expressão carícias negativas. Desde criança, quando brigava com ela, sumia pelo mundo e fazia coisas de que não se lembrava depois. Ficava sabendo por

terceiros que tinha se envolvido em "episódios bissexuais" (isto é, ora com homem e ora com mulher). Em três anos, chegou a sair com cem ou duzentas meninas, quase

todas virgens. Ao pensar nisso fica triste, pois quando está "localizado na razão" não

faz nada disso. Quando se afastava da mãe, ocorriam as ausências, os lapsos de memória, que

preenche com essas construções em que os produtos da atividade imaginativa se

mesclam a idéias delirantes, as quais, como sabemos, se apóiam em fragmentos da

história (Freud, 1 937). Na esquizofrenia não ocorre a simbolização da ausência da mãe tal como se dá

na paranóia. Sua mãe funcionou para Fabrício como bengala imaginária. Quando ela não estava presente, ele se perdia. Após a ruptura dessa sustentação ele fabula suas ausências. Atualmente acontece algo análogo: sua esposa não pode deixá-lo sozinho, pois aí ele corre o risco de sair errando, sem destino. Confessa-me que faz "o possível para parecer localizado, mas é perdidinho".

Nessas passagens, Fabrício apresenta sua errância de psicótico. As duzentas

virgens traduzem a invasão de um gozo infinito, sem o basta do Nome-do-Pai.

Um mês depois do início do tratamento psicanalítico, Fabrício é internado no

IPUB, devido à intensificação da violência dirigida contra a esposa. No decorrer da análise pude confirmar minha hipótese quanto ao motivo dessa internação, assim como da anterior: a relação teria se desestabilizado porque a esposa, cansada de sua função de enfermeira, o estaria deixando cair.

Sua esposa é para ele a única referência. Só tem ela no mundo, ela é seu pont-> de apoio na vida. Para me mostrar como é isso, põe um dedo sob a mão estendida. A mão, explica-me, é como se fosse seu mundo e o dedo que a sustenta, sua esposa.

Lacan compara o mundo de um sujeito a um tamborete cujos pés são os

significantes fundamentais. "Nem todos os tamboretes têm quatro pés. Há os que

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ficam em pé com três. Mas então, não pode faltar mais nenhum, se não a coisa vai

mal" (Lacan,1955-1956:228). O mundo de Fabrício se sustenta num tamborete de um

pé só.

Na esquizofrenia, a representação do sujeito pelo significante está

comprometida. Fabrício se sustenta pelas bengalas imaginárias. Sua imagem é precisa

e rigorosa: o que sustenta seu mundo é, não a armação significante, mas sim a bengala

imaginária que a esposa representa para ele ou, antes dela, sua mãe representara.

Nessa medida, a instituição vem ocupar o lugar do qual a esposa se retirava,

formando-se assim a série: a mãe ➔ a esposa ➔ a instituição. Eu fiquei fora dessa

série, pois a ira de Fabrício foi dirigida a outros elementos da instituição. Foi assim

possível preservar meu lugar de analista.

Um dia, quando ele me fala mais uma vez da transferência que efetuara da mãe

para a esposa, diz: "a raiva é da mãe". Assinalo o duplo sentido de sua fala e ele então

me conta as circunstâncias de seu nascimento. Nascera de uma relação em que sua

mãe fora estuprada pelo pai, de quem estava separada. Seu pai queria que ·ele

nascesse, sua mãe não queria. Aí, como sempre, prevaleceu a vontade da mãe. Ao questionar essa revelação estarrecedora, verifico que não se trata de um lapso, mas de

uma constatação lúcida.

Para o sujeito naitre equivale a n 'être, nascer é não ser. (Lacan, 1 961 -1 962;

Ogilvie, 1988). Nesse sentido, Fabrício não nasceu. Com o rigor que caracteriza sua

condição de psicótico cujo corpo é palco do gozo do Outro, ele me fala desse impasse

em sua constituição como sujeito.

Conta um episódio ocorrido quando tinha dois anos e meio. Olhou para sua

mãe e viu um olhar de ódio. Depois disso, nunca mais foi o mesmo.

"Não é fácil dizer o que é um olhar. É algo que pode muito bem sustentar uma existência ou devastá-la" (Lacan, 1968- 1 969:26/3/69).

Na enfermaria, as crises de Fabrício consistiam em se arremessar

violentamente contra a porta de saída, golpeando-a com a mão e com a cabeça. Esses

episódios são acompanhados de perda de consciência. Só volta a si quando está sendo

medicado. Mas lembra-se de sentir uma ira fortíssima, que o deixa cego. Tento

interpelá-lo, mas ele insiste: é como lodo, não entra luz nenhuma.

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Quanto falta o vetor do desejo, quando não há a inscrição do vazio, o sujeito

oscila entre a abulia e a passagem ao ato. É esse o caso de Fabrício.

As amnésias são furos na cadeia significante. Nesse distúrbio maciço da

memória, vemos a desarticulação do simbólico. A ira é um nome do gozo do Outro

que nesses momentos invade o sujeito.

Fabrício tenta controlar o impulso agressivo mediante "um esforço

monumental"; quando não o consegue, insere significantes no lodo da vivência, em

busca de uma elaboração.

Dessa época, alguns episódios são compreensíveis. É comum, por exemplo,

que ele tenha uma crise após uma visita de sua mulher, que sempre lhe diz algo

rejeitador. Pude também observar que suas ameaças ou ataques concretos, fora da

crise, a médicos ou a outros pacientes, sempre tiveram algum fundamento.

É durante esse período que começa a falar das vozes que escuta

continuamente. Revela que agora está prestando mais atenção a elas, pois ele próprio

tem quem o escute. A constituição do lugar do analista possibilita ao sujeito encontrar

significantes para o gozo. As vozes são acompanhadas de descargas elétricas que vão

de uma orelha para outra. Às vezes consegue entendê-las, às vezes não. Quando as

entende, elas dizem: "ataque!", "destrua!". E aí consegue se opor. Quando não as

entende, é mais perigoso.

Um dia, reconheceu a voz do irmão (mais do que a voz, o jeito de falar); num

outro dia, as vozes eram ''várias e desconhecidas". Ou seja, são vozes que têm uma

alteridade e não pensamentos auditivados que ele poderia reconhecer como seus.

Fabrício vai piorando, o que atribuo a uma série de razões. Entre elas, ao

desenvolvimento de idéias delirantes de perseguição em relação a seu psiquiatra. Logo

após um exame médico, que sentira como extremamente invasivo, ele me fala de sua

atração sexual pelo psiquiatra; em seguida, este se desloca de uma série paterna, mais

acolhedora, p� a a série materna, e a perseguição se desence.deia. Além disso, Fabrício

está percebendo com maior clareza o abandono por parte da esposa. Não fala

claramente sobre isso, mas o manifesta de algumas maneiras. Passa a não reconhecê-la

e chamá-la de "doutora da roupa". Vejo nisso também uma maneira de barrar sua

agressão dirigida a ela.

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Se antes ele falava sobre o gozo, agora este passa a se presentificar em sua

fala, interrompendo-a. O gozo se apresenta sobretudo como um riso do tipo que os

psiquiatras chamam de imotivado.

Começa a falar em suicídio como solução para sua vida. Tenta o suicídio desde

criança. Bebia detergente, água sanitária ... Divertia-se com a cara dos médicos, que

olhavam para ele preocupados, perguntando porque teria feito aquilo. Gostava

também de botar fogo no seu colchão. Essas narrativas são interrompidas por risos

desproporcionais.

Em termos do nó borromeano, essa é mais uma evidência da ruptura dos

registros, ficando solto o elo do real - o que se manifesta também nos arremessos

contra a porta da enfermaria. Fabrício tenta restaurar a articulação dos registros

mediante uma reconstrução retrospectiva de sua história. Tipicamente, projeta no

passado elementos do presente, visando a estabelecer uma continuidade temporal.

Após minhas férias, de início não se lembra de mim. Reafirmo a convicção de

que de alguma forma ele se lembra. Dias depois, declara: "você vem conversar

comigo. Isso quer dizer que não estou abandonado".

Surge uma nova fantasia gozosa: quer matar gatinhos e pombinhos, dar-lhes

comida para que voltem a viver, e depois matá-los de novo ... Quer ver sangue. Quer

sorvete de gatinho, sorvete de pombinho . . . Sempre ri quando fala disso.

Se o seu sangue cair na terra, será que pode nascer bichinhos?

O estupro derrama sangue. Nascido de um estupro, Fabrício é fruto do sangue

e não do sêmen. A idéia de que o sangue poderia fecundar a terra surge como efeito da

foraclusão do Nome-do-Pai e da carência fálica.

Quando, ao se separar da mãe, ele cria cenas em que estupra virgens, estaria

efetuando uma identificação imaginária com seu pai?

Se o sangue fertiliza - são suas próprias palavras -, será que beber sangue é

uma fantasia de ser copulado para além do falo? Uma manifestação do empuxo à

mulher?

Um dia, já decorridos seis meses de internação, encontro-o assustado. Conta­

me que veio um auditor lhe dizer que ele estaria ameaçado de alta administrativa por

ter batido em uma médica.

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Esse "auditor" era, de fato, o diretor clínico do IPUB. Quanto ao ato agressivo

de Fabrício, ele foi dirigido à psiquiatra que tinha ido buscá-lo para uma apresentação

de pacientes - ele se recusava a ir e foi levado "no susto". Mais uma vez, o comportamento agressivo de Fabrício foi motivado. Reagiu contra um ato de violência institucional e provocou, em resposta, um outro ato de violência institucional. Mas,

como costuma acontecer em casos semelhantes, a pecha de violento cabe a ele.

Detalho esse evento porque me parece que ele contém o germe de muito do

que irá se suceder no tocante à instituição. A permanência de Fabrício desafiava as

concepções de cura e o saber médico. O diagnóstico oscilava, sem se firmar, entre esquizofrenia, epilepsia ou mesmo um grave transtorno dissociativo, histérico. Além disso, se a remissão de sintoma não se dá com presteza, supõe-se que a internação

esteja tendo um efeito cronificador sobre o paciente. Ou seja, assim como a esposa, a

instituição não o estava sustentando. Esse foi, a meu ver, o determinante fundamental

da direção que o caso tomou.

Começa nessa época uma série infindável de questionamentos: por que tomamos banho com sabonete e lavamos a cabeça com shampoo e não o contrário? por que sai água da torneira e não refrigerante? São perguntas que incidem sobre elementos básicos da realidade, cujo contorno, como · sabemos, é simbólico. Elas

indicam um desatrelamento do significante, evidenciam que o elo do simbólico está

solto. Para Fabrício, a realidade e seu contorno simbólico não estão se sustentando.

Em vários momentos deste relato clínico, pontuei fenômenos que demonstram que o nó pelo qual Fabrício se sustentara na existência estava se desfazendo.

O desatrelamento do simbólico inclui, além das vozes que fazem do mundo

desse sujeito um viveiro de pássaros 1 1, as amnésias e as perguntas que dirige à

analista, concernentes aos significantes que contornam o campo da realidade. A ruptura do elo do real se manifesta nas passagens ao ato e nos acessos de riso

desconectados do significante. O elo do imaginário é sustentado pela esposa ou pela instituição psiquiátrica, que estavam se retirando.

1 1 Essa expressão foi trazida em uma discussão clínica por François Leguil.

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Quando assistia o noticiário na televisão, esta tentou sugá-lo para seu interior, para matá-lo. Decide que não mais verá televisão. Rompe-se mais um elo de sua

ligação com os humanos.

Um dia, recebe-me alegremente, dizendo que é seu aniversário. Está fazendo

três aninhos. Está na creche, ganhou uns bolinhos ... descreve os remédios. Gosta de

seu bercinho. Não quer sair daqui. Fica de quatro, olhando as formigas. As vozes lhe

dizem que deve observar as formigas. Elas devem ter razão.

Quando ele diz: "estou fazendo três aninhos", parece-me que há todo um

endereçamento aos médicos e aos burocratas, um pedido institucional, mas há também

um grande rigor. É uma maneira de falar de uma regressão profunda. A partir de então, tomam-se freqüentes suas referências à creche. E passa a

brincar de controle remoto com formigas. Penso que, possivelmente, se identifica com

elas: é como se fosse uma formiga teleguiada sonhando com a liberdade.

Essas e outras produções de Fabrício são mesclas de elementos fantasiosos e

de idéias delirantes e se apóiam em diversas modalidades de alucinações verbais

(auditivas, visuais, cenestésicas). Elas são construídas em contraponto às suas vivências no IPUB, a partir do valor simbólico que estas adquirem para ele, e me fazem pensar em uma versão esquizofrênica do teatro particular de Anna O. São

frágeis tentativas de cura, a partir das quais Fabrício não consegue sistematizar uma construção que o estabilize.

Como o eu está posto fora de ação, Fabrício não consegue discernir a fantasia

da realidade. Além disso, parece-me que os dois planos da realidade em que vive -

nesse exemplo, a creche e o hospital psiquiátrico - permanecem em compartimentos

estanques. Aquilo que para o neurótico apareceria como uma divisão não se articula

na psicose em virtude da foraclusão do Nome-do-Pai. No entanto, esses fenômenos produzem, para quem os observa, um semblante de divisão que aumenta a possibilidade da confusão diagnóstica entre a esquizofrenia e histeria.

Na véspera de Natal conta-me um sonho e a partir daí se lembra de que tem este sonho desde criança.

Sonhou com um animal grande, peludo e de chifres. Ele llie dava ordens a que

tinha que obedecer.

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-,

l

Esse animal o acompanha desde criança. Era ele que o fazia irritar sua mãe e

mais tarde maltratar a esposa. Acha que ele é o diabo. O diabo são nossos defeitos. São dele as vozes que ouve, desde criança, dizendo-lhe para atacar e destruir.

É mais do que um sonho: ele também escuta e vê esse animal e tem que obedecer a ele.

O bicho peludo é uma figura do gozo. Fabrício assim nomeia o gozo, numa

tentativa de localizá-lo. Reitera que o bicho peludo está menor. Com a internação e

nossas conversas, está conseguindo controlar sua agressividade. Ainda muito pouco,

mas já é um passo.

Apesar da gravidade de sua condição - há um perigo de apagamento do sujeito - Fabrício se lança com dedicação a um trabalho com a fala. Por vezes, é de uma enorme lucidez. Reconhece, por exemplo, que há dez anos vive um surto contínuo.

Atualmente, o máximo que consegue ter são surtos de lucidez dentro do surto de loucura.

Em sonhos e fantasias, Fabrício passeia com a grande árvore do pátio da

enfermaria. Uma noite ela o leva até Salvador; em outra ocasião circunda com ele a

Estátua da Liberdade. Um dia, sonhou que estava conversando comigo no mesmo banco em que

costumo atendê-lo no pátio da enfermaria e as telhas viravam telhas vampiras. Elas criavam dentes e partiam voando para cima de nós. Conseguiu fugir correndo para o

posto de enfermagem.

Essa é a primeira vez que ele relata um sonho comigo. O lugar em que me coloca não é de perseguição, mas de companheirismo.

Tanto o bicho peludo como as telhas vampiras foram inicialmente produzidas em sonhos. Depois, mantiveram uma existência na vigília.

Freud compara o sonho à esquizofrenia, dado o caráter alucinatório desta afecção 1 2

• Nesse paciente esquizofrênico, sonho e vigília estão em continuidade. Os

12 Em Complemento Metapsico/ógico à Doutrina dos Sonhos ( 1 9 1 7 ( 1 9 1 5)), Freud afirma que tanto o sonho quanto a esquizofrenia são caracterizados pela regressão temporal: o eu regride ao estágio do narcisismo e a libido, à etapa da realização alucinatória de desejos. O que diferencia o fenômeno normal do patológico é a ausência, neste último, da regressão tópica, . isto é, do pré-consciente ao inconsciente, a qual fica inviabilizada por ter o processo defensivo atingido as representações de coisas do inconsciente ( 1 9 1 5-b).

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--,

sonhos de Fabrício têm o mesmo conteúdo que suas fabulações autísticas, são ambos

produzidos a partir das vivências no hospital psiquiátrico.

F abri cio sonha com o dragão do rei. Esse monstro se manifestou há pouco

tempo e quer tirá-lo dessa creche para levá-lo para outra. No sonho ele brigava com o

dragão do rei e conseguia vencê-lo, mas saía todo machucado.

Traduzo: ele quer lutar para ficar aqui.

Essa é uma escolha do sujeito -que não se sustentou.

Ao contar outro sonho, produz um lapso: "sonhei com o monstro alto. Ele me

dava um pontapé e dizia: -aqui você não entra mais". Quando fala sobre esse sonho,

verifico que sua intenção era dizer "moço". "Moço alto" é como ele costumava

chamar o diretor clínico. Fica então claro para mim que o Dragão do Rei é o diretor

clínico, o mesmo que o ameaça com a alta administrativa e a transferência para outro

hospital.

Como pensar essa seqüência de monstros? Quando percebe que a instituição

também pode desertá-lo, ele recorre a um enxame de significantes. A pluralização dos

S 1 1 3 nesse analisando esquizofrênico aponta para a ausência deste termo. É uma

tentativa de instaurar um vazio - em vão já que, para ele, todo simbólico é real

(Freud,1915; Lacan,1954-b; Miller,1982) 1 4• É a partir desse vazio que o sujeito

poderia advir.

A queixa de ouvir vozes se intensifica. Quando elas lhe dizem para matar,

responde: "matar não". Mas em sonhos, obedece. É muito desejo de matar. "Desejo de

quem?", pergunto. Não sabe; das vozes. Deixo isto como uma questão na qual ele

talvez possa pensar.

Durante uma sessão, se assusta. Há um vampiro atrás de sua orelha direita,

querendo chupar seu sangue. Esse vampiro, que ele não consegue ver nem tocar, passa

a ser uma presença habitual na vida de Fabrício.

13 S l , em francês faz homofonia com essaim, enxame. Ver a Terceira Parte, 5 .1 . 14 "O esquizofrênico busca constituir a hiância de um vazio. Em vão, porque para ele todo

simbólico é real" (Lacan, 1954-b:392).

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7

Uma sessão subseqüente inaugura um marco. Nela se dá um passo decisivo 1 5

no sentido de barrar o gozo do Outro. Conversando com a voz, Fabrício repete

algumas vezes: "sangue humano, não". Pergunto-lhe do que se trata: o vampiro está

lhe dizendo para ele cortar meu pescoço e beber meu sangue. Reitero: sua resposta é

não.

A partir daí, esse diálogo com a voz se toma habitual. Fabrício passa a levar

uma garrafa d'água para a sessão. Quando o vampiro lhe diz para beber meu sangue,

responde: "quer sangue?" - e bebe água. Um dia, sublinho: "Você o engana". Fabrício

me responde, rindo: "Sim, esses demônios são muito burros".

Ele consegue aí introduzir alguma barra no Outro, de quem o vampiro é uma figuração. Cabe ao psicótico, sujeito do gozo, fazer a lei do Outro. Fabrício não

consegue construir um conceito elaborado e estável como o da Ordem do Mundo de Schreber, que faz suplência da lei. Só lhe resta o recurso ao engano.

A burrice é uma falta, de inteligência ou de esperteza. Momentaneamente, o

sujeito consegue "constituir a hiância de um vazio". Mas, para Fabrício, "todo

simbólico é real" e o engano, vão. E assim é que os demônios vão se tomando mais e mais poderosos.

Pouco depois, inaugura-se uma série de sonhos de enterros. O único enterro ao

qual Fabrício de fato compareceu foi o de seu pai. Sentira então um misto de tristeza e

de estranha alegria.

Os personagens desses sonhos, que testemunham o animismo crescente que invade o mundo do sujeito, são os objetos inanimados que o circundam na enfermaria.

Tipicamente, uma pilastra está no caixão, para ser enterrada. Ao enterro

comparecem pilastras, telhas e lajotas.

Em um desses sonhos, um poste do pátio tinha morrido. O caixão era em forma

de cruz, como o próprio poste. Durante o enterro uma telha caiu dentro do caixão e se espatifou. Fabrício sabia que era um suicídio.

Nessa época, queixa-se de es·ar triste. Sobretudo após os sonhos com enterros, acorda deprimido, com uma sensação de morte, como se a morte estivesse rondando.

15 Esse passo, infelizmente, não se sustenta. Como já dissemos, além de sua gravidade motivos de ordem institucional tiveram um enorme peso no desenlace do caso de Fabrício, mas não iremos aqui nos alongar sobre eles.

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Tem início uma nova série de sonhos. Sonhou que estava deitado e chegavam

o dragão do rei e o vampiro, arrancavam seu coração, dividiam-no em dois e cada um

comia uma metade. Acordou angustiado.

Outro sonho terrorífico: o dragão do rei veio por trás, pegou-o pelo pescoço

com as garras e levou-o até a pedra que se vê da enfermaria, deixando-o cair de uma

grande altura. Ele ainda estava vivo mas sem conseguir se mexer, quando o monstro

se aproximou e ficou comendo seus braços, suas pernas, seus órgãos internos. E ele

sentia toda a dor.

O esquizofrênico se defronta com seu corpo sem o recurso a um discurso

estabelecido. Esses sonhos, que me evocam a violência dos rituais astecas, o

demonstram.

"Se há algo em que o esquizofrênico nada é nesse manejo enlouquecido da

linguagem, mas simplesmente não consegue que se finque sobre um

corpo" (Lacan, apud Miller, 1 982:29) .

As construções de Fabrício se revelam insuficientes, inadequadas para barrar o

gozo.

É só depois dos sonhos em que as coisas do mundo se suicidam que surgem

esses sonhos mortíferos, ápice da dissolução imaginária, em que o corpo do sujeito é

desmembrado e seus órgãos tomados como objeto do gozo do Outro. Essa é uma

hipótese, mas ela se impõe.

Mas mesmo nesse momento de pengo máximo, Fabrício reconhece que

nomear as vozes anônimas constitui um caminho. Os monstros, frágeis pontos de sustentação de sua existência como sujeito, são construídos sob transferência.

Surge o bebê vampiro: ele é muito mau, fica no bercinho chupando ovo de

cobra, de morcego . . . À noite, vem lamber o pescoço de Fabrício, preparar a mordida.

Se ele o derruba da cama, volta a subir. É muito forte.

A psiquiatra supervisora que, a pedido do próprio Fabrício tinha assumido seu

caso, estava grávida. Ele via isso, com muito senso de realidade, como uma enorme

ameaça à sua permanência na instituição. O bebê vampiro é, assim, uma encarnação

do mal.

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Um dia, encontro-o na cama. Não faz nenhum gesto para se levantar,

parecendo em estupor. Consigo que diga apenas quatro frases, que seguem o mesmo

padrão. Cito uma delas: "aquela porta vai explodir" (aponta para a janela). Diz ainda,

segurando a cabeça com ambas as mãos: "dor".

Procuro indagar o que teria havido e fico sabendo que Fabrício recebera um

bilhete endereçado à sua esposa, convocando-a para uma reunião com o diretor

clínico. Não sabemos se ele teria lido o bilhete, ou em que termos a esposa lhe teria

falado de seu conteúdo. De qualquer maneira, levando-se em conta o que estava

ocorrendo na instituição, o desenlace não poderia ter sido diferente do que foi.

Aos poucos, surgem indícios de que a relação transferencial está preservada

ou, pelo menos, sendo retomada. Em uma ocasião ele encosta a cabeça no travesseiro

e fecha os olhos, o que tomo como indicativo de que está encerrando a sessão, como

era seu hábito. Outra vez, quando cheguei no horário combinado, tive a impressão de

que estava me aguardando. Ao lhe perguntar como estava, obtive como resposta:

"arrebentado". E justifica: "aquelas telhas caíram do chão" (olha o teto) "e

mergulharam no teto" (olha o chão).

As poucas frases que Fabrício enuncia são indicativas de um profundo

desmantelo do simbólico. É como se retomasse as perguntas que me fazia antes, mas

agora afirmando o lado que antagoniza o simbólico.

Aos poucos, seu pensamento vai ficando mais organizado. Nessa época, ele

assim comenta o nascimento do filho da psiquiatra: "o bebê vampiro tem perturbado

muito. Ele estava preso num subterrâneo do castelo. A princesa gostava dele, mas o

carcereiro, não". Conta também que está sendo perseguido pela mamadeira

envenenada. Ela quer que ele a beba. Hoje ele se refugiou no seu quarto e conseguiu

escapar. Assinalo, tentando colocar algum limite, que algo ele consegue barrar.

Lembro-lhe de que me tinha dito que os demônios são burros. Não daria então

para ele os vencer? Fabrício então retruca que por trás deles está Cabeça de Legião,

que pensa por todos. Nessa época, ele já sabia que o d'iretor da instituição estav 1 se

ocupando de seu caso.

Fala-me então da última batalha que está para travar contra o demônio. Se

perder, perderá sua alma e nunca mais verá sua amada. Se vencer morrerá, mas estará

livre do demônio e livrará dele a humanidade. Enquanto nossos atendimentos durarem

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- pela primeira vez menciona a possibilidade de sua intenupção -, quer falar de sua

luta contra esse demônio, o mais forte de todos. Nesse momento, muda subitamente de

registro, fala da realidade factual. Não sabe quanto tempo permanecerá aqui. Esse é

um hospital-escola, onde os pacientes ficam pouco tempo.

Entre os dois termos dessa seqüência, parece-me que não há uma associação

no sentido neurótico; a visada associativa, nesse caso, equivaleria a uma tentativa de

compreensão. Embora possamos observar que o que se passa na realidade tem efeitos

sobre o mundo autístico de Fabrício e vice-versa, a conjunção entre ambos é mínima.

Sobretudo, não há possibilidade de dialetização 1 6•

Em uma de nossas últimas conversas, Fabrício apresenta sua posição

subjetiva. Sabe que é culpado do que está lhe acontecendo. Sempre foi covarde,

deixou-se manipular pelos demônios.

Nessa época, seu destino já estava selado: ele seria transferido para outra instituição.

Não pude me despedir dele. As últimas palavras que dele escutei foram: "o

rato está comendo o gato" e "a vingança será terrível".

16 Segundo Bleuler ( 1 97 1 ), que introduziu a esquizofrenia e o autismo no vocabulário psiquiátrico, os esquizofrênicos perdem em maior ou menor grau o contato com a realidade e "vivem em um mundo imaginário em que se realiza todo tipo de desejos e surgem idéias de perseguição. Ambos os mundos constituem para eles realidade, e às vezes podem mantê-los conscientemente separados. Outras vezes, o mundo autístico é para eles o real, o outro é mera aparência. Os seres humanos autênticos são 'máscaras', 'sombras', etc. Segundo a constelação do momento, e em casos de mediana gravidade, ora um dos mundos está em primeiro plano, ora o outro" (p. 436).

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3 . AS LEMBRANÇAS DE DANIEL

Começo a atender Daniel poucos meses após o primeiro surto. Segundo seu

próprio relato, a entrada na psicose pode ser escandida em três momentos:

I O

- Uma nomeação - tudo começou quando ficou sabendo que é

mundialmente conhecido por um nome que não o seu 1 7. Esse nome é uma injúria que

simultaneamente o feminiza e o reduz ao silêncio. Não é sequer um substantivo, mas

um imperativo, ao qual Daniel confere um forte acento de singularidade.

Esse nome é construído sob o modo da alusão. Há dez anos Daniel já o

escutava sem saber que se referia a ele. Inicialmente isso se espalhou pela cidade,

depois pelo país, finalmente pelo mundo. Quando ficou sabendo, tomou-se clara a

origem do mal-estar que há muito sentia.

A julgar pela amplitude desse processo de reconstrução, o mundo de Daniel

deve ter sido profundamente implodido pela catástrofe subjetiva da psicose.

Penso que o novo nome de Daniel, nome de um sujeito por advir, chave do

enigma (Lacan,1955-1956:43), corresponde à questão que, na psicose, se põe sozinha

(p.227). A construção delirante vem em resposta a essa questão.

2° - Daniel descobre que seu irmão lutava várias vezes por dia, todos os dias,

para protegê-lo.

3° - Pouco depois, descobre que sua irmã transava todos os dias, várias vezes,

também por sua causa. Quanto às motivações da irmã, os argumentos de Daniel são

complexos. Em sua primeira formulação, ela o fazia também para protegê-lo. Mas

logo esse enunciado é modificado - e o ódio que ela lhe dirigiria ganha mais e mais

consistência.

Podemos pensar que pela via do delírio esse sujeito é também levado a

reconstituir as paixões do ser (Lacan, 1953-1954; 1972-1973).

É característico da psicose que o amor e o ódio surjam do exterior. Daniel

reconstrói essas paixões pelo recurso aos atos que no imaginário a elas se associam: o

1 7 De acordo com as considerações tecidas em minha "Nota Introdutória", o novo nome desse sujeito, produto de seu trabalho de reconstrução do mundo pelo delírio, não será revelado.

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sexo e a luta. Mas aí se dá uma curiosa inversão do senso comum: o irmão, que luta

para defendê-lo, o ama. A irmã transa com todos os homens para destruí-lo. Nesse caso, parece-me que a paixão da ignorância está ligada à criação de um

inconsciente que permanece exterior ao sujeito, a céu aberto. Suas lembranças têm também a estrutura da alusão. Há dez anos falavam-lhe dessa história, mas ele nada

sabia disso. Só depois pôde se reconhecer. Atualmente espanta-se: como é possível_

que isso tudo tivesse acontecido durante dez anos sem que ele se desse conta? Como

pôde ter sido inconsciente de tudo isso? Podemos empregar para esse sujeito as palavras de Lacan sobre Daniel

Schreber: "as coisas vão tão longe que o mundo inteiro é tomado nesse delírio de significação ( . . . ) Não existe quase nada de tudo o que o circunda que, de uma certa forma, ele não seja. Por outro lado, tudo o que ele faz existir nessas significações está

de certa forma vazio dele próprio" (1955-1956:91). Desconhecendo que criara a sua

realidade, Daniel fica impossibilitado de nela se incluir.

Dois fatores teriam lançado esse sujeito na psicose: a ruptura da relação com a namorada, que foi morar em um outro país, e sua demissão da empresa onde exercia uma função burocrática. A demissão se deu no dia do casamento de sua irmã, que se tomará a figura central do delírio.

Podemos supor que a companheira e o emprego funcionavam como bengalas

imaginárias. Quando elas são retiradas, o mundo de Daniel desaba. Tipicamente,

Daniel não se implica nesses acontecimentos, que são relatados como tendo ocorrido

independentemente de sua participação. Mas, no decorrer da análise, irá formular dois

objetivos para a sua vida: amar e trabalhar.

No delírio, há um fracasso do juízo de existência. A uma representação, o

sujeito confere existência real. A atividade delirante se apóia em restos mnêmicos

(Freud,1937), mas nela é romi:·ido o vínculo com a realidade supostamente compartilhada do neurótico.

Daniel assinala o início do processo delirante mediante as palavras: "aí eu

comecei a me lembrar". Durante a análise, sou constantemente testemunha da

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produção de novas "lembranças", da construção de uma trama que vai se espraiando

indefinidamente.

"O irmão luta" e "a irmã transa" originam séries infinitas de objetos, nas quais

é patente a inexistência de um ponto de basta. Por exemplo: sua irmã transou com

todos os operários que trabalharam na casa onde moravam, com todos os funcionários

que consertaram o telefone, com os operários que fizeram uma obra nos encanamentos

da rua, com os vizinhos dos três prédios adjacentes; transou com todos os amigos de

rua de Daniel, com seus inimigos no trabalho, com seu primo, seu tio e seu avô. "Que

loucura!", comenta Daniel, para quem a loucura se situa no exterior. A seu ver, a

relação com a irmã sempre fora caracterizada pela sedução; como a atração existente

entre ambos não se concretizava, ela passou a transar com todos os homens, gritando

seu nome.

Essa história permite explicar sua dificuldade de fazer amigos, que sempre

atribuíra ao azar ou às circunstâncias. Nunca poderia ter atinado com a verdadeira

causa: seus colegas consideravam-no tarado, devido ao comportamento de sua irmã.

Por causa dela, o mundo ficava fechado para ele.

Só se sentiu "quase gente" durante os anos em que viveu com a namorada.

Dada a sua história -Daniel assim confessa sua dificuldade de se constituir enquanto

sujeito - é impossível sentir-se gente. Por outro lado, é por essa via que alguma

reconstituição da dimensão subjetiva se toma possível. O delírio faz com que o sujeito

recupere ''um vínculo com as pessoas e coisas do mundo, um vínculo freqüentemente

muito intenso, embora o que era antes um vínculo de ansiosa ternura possa tomar-se

hostil" (Freud,1911 [1910]:66).

Daniel tem duas lembranças marcantes de seu pai. A primeira é uma cena

infantil. Um dia, ele e o irmão foram tomar banho com o pai. Daniel tocou o pênis do

pai e disse para o irmão: "olha como papai tem o pinto grande!" Em resposta a seu

gesto, o pai lhe dirigiu um olhar de asco.

Esse é um momento em que se evidencia a devastação do Nome-do-Pai. Do

ponto de vista do simbólico, a resposta do pai não faz função paterna, não oferece ao

menino qualquer possibilidade de se inserir na cadeia geracional. Do ponto de vista do

imaginário, o olhar que ele lhe dirige não especulariza, não permite uma identificação.

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E quando Daniel interpreta o olhar do pai como resposta a uma ereção automática que

este teria tido, o que poderia ter se constituído como função paterna é rebaixado a

gozo do órgão. A segunda cena data de sua adolescência. Ele ia a uma festa e acordou seu pai

para lhe pedir uma camisa emprestada. Quando este o viu, dirigiu-lhe o mesmo olhar

da primeira cena.

A cena da adolescência, em que Daniel já recorre ao pai como alguém que

teria um corpo semelhante ao seu, reproduz a lembrança infantil. Novamente, seu pai

lhe dirige um olhar aniquilador, que o reduz à condição de dejeto e não lhe permite

constituir uma imagem.

No início do tratamento, Daniel fez algumas tentativas de escrever um livro

contando "a história", à qual, caracteristicamente, nunca se refere como sendo a sua.

Mas sua relação com o ato de escrever, que poderia vir a barrar o gozo, é marcada

pela ambivalência e obstaculizada pela própria história do sujeito. Para Daniel,

escrever significa ficar na posição de objeto da mãe: após a separação dos pais, fora

por ela "instalado" no lugar do pai, que era jornalista e escritor. Um outro fator que determina o fracasso de seu projeto de escrever a história

reside em que, ao tentá-lo, o ódio que sente em relação à irmã se dirige também à mãe.

Esta nunca o amou, só o chamava de "ela" ou "minha filha". Faz mais de um lapso em

que confunde a irmã e a mãe, colocando-as na mesma série de pessoas que o

prejudicaram. O gozo do Outro é por ele subjetivado como ódio.

Para ele, escrever é perigoso porque o leva a se defrontar com a fragilidade,

decorrente da foraclusão, de seu nome de origem. Ainda na adolescência, ganhou um

concurso escolar. Mas o conto que escrevera tinha sido assinado pelo irmão, pois, na

época, Daniel já havia ultrapassado a idade para concorrer. O delírio, no qual ele é

conhecido por um nome que não o seu, parece retomar esse evento, retrabalhando-o.

Há alguns anos, chegou a publicar um artigo, poético e bem articulado, numa r� vista. Mas é o único não assinado, porque o diretor teria se esquecido de colocar seu nome.

Algo acontece aí como que por acaso: assim como ocorreu com o conto, ele não

poderia assinar esse artigo.

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Se o seu nome de origem não se sustenta, seu nome de delírio, ao mesmo

tempo que representa uma tentativa de reconstrução e de cura, o anula. Penso que esse

nome pode estar preparando o caminho para a construção de uma metáfora delirante, mas, à diferença da expressão cunhada por Schreber - Mulher de Deus -, ele não confere dignidade ao lugar de objeto de gozo do Outro (Gallano, 1 994). Ao contrário,

o sofrimento de Daniel é decorrente dessa designação injuriosa de sua pessoa, da

transferência negativa que o mundo inteiro lhe dirige18•

Além disso, sua produção escrita, e mesmo o lento e penoso oficio de escrever, desmentem seu ideal megalômano. Daniel nunca fica satisfeito com o que escreve. De

um poema seu, afirma: "não está à minha altura". Não obstante os obstáculos, sente-se compelido a escrever. Uma afirmação sua

a esse respeito nos faz evocar Schreber: ou escreve ou se transforma em um idiota 1 9•

Passados alguns meses de análise, começa a tomar vulto uma questão que se

prefigurara desde o início.

A certeza de Daniel é inabalável: "não acreditar nessa história seria deixar de acreditar em mim mesmo"2º. Afinal, "milhares de lembranças" a respaldam. Mas seus

familiares e os psiquiatras insistem que é delírio.

A vida é cansativa e solitária para Daniel, que só consegue estudar nas brechas do trabalho de delírio. Se ninguém corrobora a história, resta-lhe ficar pensando

sempre os mesmos pensamentos para sustentar a verdade deles. Se parasse de pensar,

ficaria sem chão: sua vida perderia qualquer sentido, se tomaria um idiota.

No Esquema L2 1 , podemos situar as "milhares de lembranças" em A. O furo,

então, surge no imaginário. Quanto mais os outros negam sua história, mais o

prendem a ela: "para cada pessoa que diz que não sabe de nada, eu tenho três novas

lembranças".

18 Esse foi um comentário de Jacques-Alain Miller em uma discussão do caso de Daniel realizada na 2ª Conversação Clínica Brasileira da Escola Brasileira de Psicanálise.

19 Atualmente, Daniel está conseguindo formular outros projetos de escrita, mais afastados da cena do delírio. Talvez, aos poucos, esteja se esboçando uma saída para esse impasse.

20 Essa afirmação soa como um eco da descoberta de Freud , de que os paranóicos "amam o delírio como a si mesmos" ( 1 895:25 1 ).

21 Terceira Parte, 4. 1 .

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Apesar de sua certeza, o fato de não obter nenhuma confirmação para a história o faz temer que possa ser um delírio. E, se estiver louco, isso significa que não é

sequer capaz de atravessar uma rua.

Ser louco, para ele, é não ter uma biografia, estar permanentemente entregue à loucura. Os loucos são perdedores na política familiar. Tudo o que fez na vida foi

tentando não enlouquecer. Mas se enlouqueceu, então não tem mais jeito.

Isso corresponde a um período de acentuada piora, em que a morte passa ao primeiro plano. Pensa em matar a irmã ou, então, se matar. O risco de suicídio é

concreto. Sente-se encurralado: "a única saída é chumbinho". A saída dessa fase crítica é marcada por seu presente de Natal à analista: o

disco Per amore. Na transferência, o amor é invocado para barrar o ódio, que é uma

das figuras que assume para Daniel o gozo do Outro. Nessa mesma sessão, refere-se à possibilidade da escrita como a única saída. A

história com sua irmã está impressa dentro de si, como uma marca. Tem um livro dentro de si. Mas escreve com lentidão, a escrita não flui. E além disso, ela não poderia ser publicada, por envolver seus familiares.

Ocorre-me então o exemplo de Flaubert, cuja escrita fluía lentamente e que

chegou a afirmar, acerca de seu livro, "Mme. Bovary e 'est moí''.

Nesse momento não me lembrava de que, assim como o romance de Flaubert,

o livro de Daniel teria por título um nome feminino seu nome de delírio.

Tampouco do que Daniel acrescentou, concordando comigo: para descrever com

realismo o suicídio de Mme. Bovary, Flaubert havia envenenado um papagaio. A via que então se descortinou permitiu-lhe instaurar uma distância em relação

às idéias de suicídio que o atormentavam. A partir daí, Daniel não mais fala em se matar.

D, niel não entende qual é a utilidade de uma terapia no seu caso. Esta teria o

objetivo de mudar sua maneira de lidar com a história; em sua opinião, porém, consegue fazê-lo bem. Mais uma vez, parece estar citando Freud: acha que seu caso é

de investigação e não de terapia. É como se nós fôssemos Sherlock Holmes e seu

ajudante, Watson, descobrindo mais fatos de sua história. Nessa comparação, Daniel

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se coloca como sujeito de uma investigação; e a analista fica no lugar de secretário do

alienado22.

No entanto, progressivamente, a crise vai se instaurando no coração da transferência. Insiste em saber se, para mim, é verdade ou delírio.

Não basta lhe responder que é verdade, a sua verdade. Sua questão incide sobre a realidade. A história saiu em todos os jornais, será que eu não li nada sobre ela? Nem discuti a situação com meus colegas? Se for assim, tudo muda. Nesse caso, resta-lhe pedir desculpas à irmã - e aceitar ficar dopado para o resto da vida.

Não respondo. Em parte, porque não me caberia responder. Em parte, também,

por não saber o que fazer. Mas também por pensar, à época, que a direção da cura estaria em sustentar a dúvida, já que era ela que estava endereçada à analista.

Os psiquiatras dizem que é delírio, com isso ele sabe lidar. Aceita a posição deles até certo ponto, toma os remédios. Mas já que se trata comigo, a opinião que lhe importa é a minha. Se eu não digo nada, "nossa terapia se torna um exercício de impossibilidade de provar essa história de minha irmã".

Não adianta relançar sua pergunta, colocá-la como questão a ser respondida no

decorrer do trabalho. Tampouco consigo por limites ao saber supostamente pleno da

analista. A Daniel não ocorre que eu possa não saber, e sim que minha técnica me

proíbe lhe dizer qual é a verdade. Para ele, meu saber é consistente, sem furos. E ele

acha que eu penso que é delírio. A transferência nessa fase é marcada pela projeção. Diz-me: "seu problema é

que você pensa demais e isso te paralisa"; e "aqui, quem tem que mudar é você".

Produz dois lapsos. Reclama que eu não respondo às suas indagações: se é dúvida ou delírio. E reitera que o essencial para ele é confirmar essa história que ele

inv ... essa história em que só ele acredita Estaria a não resposta da analista fazendo vacilar o delírio?

22 A discussão acerca do analista como secretário do alienado está para além dos limites dest.e trabalho. Mas penso que o analista se instalar nessa posição é uma condição necessária mas não suficiente para uma psicanálise de psicótico. Com freqüência o analista assume junto ao psicótico o lugar de outro, de companheiro, mas deste lugar visa a algo que pode, genericamente, ser chamado: barragem de gozo.

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,7

Seja como for, parece-me que meu silêncio diante dessa questão cava para

além do suportável o furo no imaginário. Vai se formando a intenção de interromper a

análise.

Daniel se queixa de.não ter uma persona. Há um abismo entre quem pensa que

é e a imagem que os outros fazem dele. Durante toda a sua vida, os outros souberam

mais acerca dele do que ele próprio. Agora, quando finalmente dispõe de uma história,

acham que é delírio.

No que diz respeito à analista, fica-lhe um sentimento ruim, de que sou

mesquinha. Sei de algo que resolveria sua vida e não lhe digo por questões de técnica.

Ao final dessa sessão, recusa-se a remarcar.

Admito então não ter lido nos jornais as notícias de sua história.

Segue-se um silêncio denso e, depois, a resposta de Daniel: "Aí faz sentido.

Isso resolve tudo. Então estou louco".

Concorda em voltar, como louco. E me pede um livro sobre esquizofrenia.

Com minha intervenção, não respondi à sua pergunta. Apenas coloquei em

cena meu não saber. De qualquer maneira, isso teve o efeito de por alguma barra no

saber pleno do Outro. Então, ele pôde fazer para si um lugar, em a, como louco e

continuar vindo.

Na sessão seguinte, delimita sua história no espaço: pode ser que tudo seja

verdade, só que não tenha chegado a ser conhecido internacionalmente. E também no

tempo: se for delírio, diz respeito a seu passado. Não acha que alguém o esteja

perseguindo agora. O momento é de trégua. Daniel afirma que, como não há

possibilidade a curto prazo de resolver essa história de sua irmã, só lhe resta cuidar da

própria vida.

Diz então ter se lembrado de um fragmento de poema - penso que ele o estaria

compondo naquele momento, sob transferência. É um poema sobre o intervalo entre

os significantes no qual, ao lado de seu nome de ori:...,em, ele parece recuperar a

possibilidade de uma outra relação com a linguagem: "Entre uma palavra e outra há

um bambalalão, de um lado um sim de outro lado um não ... ( ... ) Que cada palavra

possa me chamar de Daniel e me dar um beijo".

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1

Essa mutação da transferência em que o Outro perde consistência tem uma

série de desdobramentos benéficos. Além da limitação do delírio no tempo e no espaço, Daniel inicia um namoro logo depois e consegue novamente estudar. Nesse

período, sua história só o perturba à noite, quando vai dormir. Tem mesmo um certo

prazer em recordá-la - o prazer que perdeu e não mais recupera. Com essas palavras,

fala-me de um gozo barrado. Ele parece agora lidar com o delírio como um neurótico com seus devaneios.

Daniel padece de sua paixão não consumada pela irmã e a analisa sob dois

prismas distintos.

Na época em que poderia ter transado com a irmã, detinha-o o pensamento de

que isso desencadearia "raios e trovões". A conseqüência da realização de seu desejo

seria uma desordem cósmica - o fim do mundo?

Por outro lado, segundo um nexo que não fica de imediato claro para quem o

escuta, se a atração pela irmã tivesse se consumado sua vida teria sido outra, nada disso de que se queixa teria ocorrido: "construi sobre esse vazio e vou ter que conviver com essa lacuna terrível", diz-me ele.

Em suas falas, Daniel parece apontar os dois pólos do desejo: o desejo

constitui; mas sua realização, se ela fosse possível, seria mortífera.

Na neurose, o desejo, metonímia da falta a ser, funda-se em uma primeira

experiência de satisfação. A partir dela cria-se o mito de um gozo pleno, para sempre

perdido, e o sujeito é lançado no devir. No caso de Daniel, podemos pensar que seu

desejo irrealizado pela irmã faz função da primeira experiência de satisfação. Não chega a inscrever, mas toma presente a interdição, a castração, de uma forma que

precisa sempre ser reiterada, renovada. E dessa maneira organiza, tempera o gozo.

As duas perspectivas sobre sua história convergem para o mesmo ponto: a

tentativa de construir ''um chão" que, por incluir um furo, um ponto de impossibilidade, dê ao sujeito a possibilidade de organizar seu mundo e poder vir a

compartilhá-lo.

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Essa hipótese é reforçada por uma retificação subjetiva23 produzida sob

transferência, em um momento no qual, não por acaso, Daniel lia Uma Recordação

Infantil de Leonardo da Vinci.

Lembrou-se então de uma lenda que criou para si na infãncia. Um dia, escutou

sua irmã dizer que achava seu irmão mais bonito do que ele e aí começou a se achar

pouco inteligente, desinteressante, "um lixo". Dá-se conta agora de que essa

interpretação da fala da irmã pautou toda a sua vida. Na verdade, não foi isso que ela

teria dito e sim que seu irmão seria mais interessante do que ele. Após ter chegado a

essa conclusão, olhou-se no espelho e se achou bem razoável. Reconhece agora que

entre ele e o irmão havia uma disputa pela irmã, embora não se recorde dela.

Daniel parece estar criando um inconsciente e uma suplência do Édipo, em que

seus irmãos assumem o lugar do casal parental.

Mas, se a relação triangular com os irmãos representa uma suplência do Édipo,

por outro lado é clara sua identificação com essa irmã, dotada de uma sexualidade

infinita, pela via do empuxo à mulher.

Lembra-se de ter escrito um poema em que louva uma mulher sem defeitos,

sem falhas e que termina mais ou menos assim: "uma mulher como essa não poderia

deixar de mover o mundo inteiro". É nesse lugar que ele se coloca.

Um sonho que me relata vai também na direção do empuxo à mulher. Estava

preenchendo uma ficha para abrir uma conta bancária. Os dados eram todos seus. A

fotografia era de uma amiga de sua mãe. Em suas associações, diz-me que essa mulher

era belíssima, perfeita. Com a difamação de que fora vítima, seria dificíl para ele abrir

uma conta, mas, para ela, não haveria problema.

Daniel planeja preparar-se para um concurso. Mas sua família o desestimula,

com o argumento de que, se escrevesse um livro, poderia ganhar muito mais. Nessas

condições, não se sente à vontade para pedir que lhe paguem o curso preparatório e

23 A retificação subjetiva é um processo que se produz durante -as entrevistas preliminares à entrada em análise e no decorrer desta, pelo qual o sujeito se apercebe de "qual é sua própria parte na desordem da qual se queixa" (Lacan, 195 1 :2 19). Ver também Miller ( 1987).

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não poderá concretizar sua intenção. Intervenho, sustentando seu desejo: se quer fazer

o concurso, não haverá alguma forma de conseguir se preparar para ele?

Isso inaugura uma fase de marcado alívio: "estou respirando prova", diz-me

Daniel. A qualidade obsessiva de seu pensamento, ele a está empregando no estudo. A

preparação para a prova faz uma barragem ao gozo que a escrita por ora não consegue

produzir. E dá um sentido à sua vida, desempenhando a função que, . pouco antes,

cabia ao delírio.

Nessa época chama sua história de "baboseira". Há uma clara desativação do

delírio, do qual fala com visível má vontade de dele se ocupar. Daniel diz se sentir

apto a resolver os problemas, com vontade de viver.

Recentemente, produziu-se um avanço nessa construção delirante, que me

trouxe elementos novos para refletir sobre a forma paradoxal pela qual a psicanálise

opera em um caso de paranóia e por que vias ela contribui para a produção do sujeito.

Uma crise se desencadeia quando Daniel interrompe a medicação, com a

anuência do psiquiatra que acompanha seu caso, na mesma época em que ele

planejava escrever um livro, que seu pai teria encetado e deixado inconcluso. Daniel

passa a ser assolado por um gozo impossível de suportai.

Em meio a um grande sofrimento descobre então algo que "muda sua vida":

quem é doente é sua irmã. Retoma o dia em que a escutou dizer que seu irmão era

.mais bonito do que ele. Dentre as pessoas que estavam presentes àquela cena,

lembrou-se de uma senhora, que teria comentado que segundo Freud sua irmã poderia

ficar traumatizada caso Daniel não a perdoasse. Como ele não a perdoou, ela passou a

querer transar com ele para convencê-lo de que não era feio. Por essa via, transformou

a culpa em tesão. Assim, na origem de tudo está "uma interpretação freudiana". Ou

seja, na origem dessa nova elaboração delirante, pela qual Daniel localiza a culpa no

exterior, está presente a analista.

P�uco tempo depois, burila essa nova perspectiva acerca de sua vida,

produzindo uma série, um diagrama, para me mostrar a evolução dos sentimentos de

sua irmã para com ele: amor ➔ culpa ➔ tesão ➔ ressentimento ➔ ódio. O amor

fraterno que no início havia entre eles se transformou em culpa e esta, em tesão, o

qual, dada a frustração da irmã por não conseguir transar com ele, gerou um

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ressentimento que, com o correr do tempo, vai se intensificando e se transforma em ódio.

No final dessa sessão, me cumprimenta: "parabéns pela sua terapia". O que

levara anos sem descobrir nas outras terapias, descobriu agora. Antes só tinha acesso a

si mesmo, às suas próprias percepções e lembranças; agora, teve acesso ao

inconsciente da irmã.

O que aí se produz é uma retificação subjetiva às avessas. Se há análise, é a

análise desse inconsciente exterior ao sujeito. A analista entra não só como

testemunha do delírio - Daniel explicita que se sente mais seguro e tranqüilo podendo

contar para mim o que está vivendo -, mas como causa de lembranças. Pela transferência, algo se desloca e o amor passa a ser o ponto de origem de

sua história. Essa introdução do amor, que vem atenuar o ódio, me parece estar sendo

um vetor da análise de Daniel.

Na psicose não se dá a inscrição do Nome-do-Pai, que organiza a cadeia significante a partir de um ponto de falta. Quando do desencadeamento, desvela-se a

carência foraclusiva, cava-se o buraco no simbólico. Daniel tenta contorná-lo mediante as "lembranças", recobrindo todo o seu mundo com os significantes do delírio.

Nos períodos em que quase consegue realizar esse ideal da paranóia, o gozo é

aplacado: 'já me lembrei de tudo o que tinha para lembrar, não há mais nada a ser

sabido. Atualmente vou à praia, sei que todos meus colegas comeram minha irmã.

Mesmo assim, converso com eles. O que poderia fazer? Brigar?"

Daniel se lembra de incontáveis alusões que fizeram à história antes que

ficasse sabendo dela, o que prova que não é delírio: "será que um delírio pode ser assim tão concatenado, tão integrado?" - indaga. As lembranças cobrem toda a sua

vida. É essa a função do delírio de assimilação (Freud, 1 896), pelo qual o eu refaz seu

estoque de memórias para ad- ptar-se ao delírio primário, produzindo com esse

processo uma alteração em sua estrutura. Por outro lado, Daniel reconhece que as alusões estão todas no passado. Isso o leva a pensar que possa ter enlouquecido,

apesar de sua certeza. E se for um delírio? Às vezes fica em dúvida ... Encontrou-se

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com um amigo de longa data, que o saudou efusivamente. Se fosse verdade, ele estaria

sabendo e o veria como um crápula.

Há períodos em que Daniel parece conciliar a certeza sobre a verdade de sua

história com o fato de seus interlocutores considerarem-na delírio: "o que eu penso é

verdade, isso ninguém pode me tirar; mas em parte acho que é delírio, porque todos

dizem isso". Nesse funcionamento do inconsciente a céu aberto, a certeza delirante

por vezes parece coexistir, sem contradições, com o diagnóstico de louco.

Em outros períodos, a possibilidade de que sua história possa ser, ao mesmo

tempo, verdade e delírio é para ele inaceitável. A uma observação da analista nesse

sentido, reitera: "eu sou feito de linguagem. Você é feita de linguagem. E a linguagem

é lógica". Para Daniel, a linguagem é sem furo.

Quando o quadro se agudiza, a questão sobre o estatuto do delírio retoma,

excruciante. Não será capaz de compactuar com essa farsa de tratar aqui de sua

história como se fosse verdade e se relacionar com os outros como se fosse mentira.

Se for assim, ele próprio é uma mentira. "Eu desnasci", afirma Daniel, valendo-se da

palavra de um poeta.

A análise tem uma função importante na vida de Daniel. Queixa-se: "fico

sustentando sozinho, aqui, isso que dizem que é delírio", demostrando, com suas

palavras, que não está tão só, pois a analista reconhece o valor de verdade do delírio.

Na psicose, o analista tem uma função de testemunha, de secretário do

alienado. Mas penso que seu trabalho não se reduz a uma sustentação do imaginário.

Daniel está reconstruindo sua história, e a história, com a ordenação no tempo que lhe

é essencial, tem uma vertente simbólica (Lacan, 1954-b ). Trata-se, pois, de uma

tentativa de reconstrução do simbólico, apesar da irreparável carência do Nome-do­

Pai.

Em certos períodos, a fala de Daniel passa a incluir uma modalização nova.

Não passou no concurso, mas fez o possível. Conseguiu falar com uma mulher bonita,

sentiu-se meio desajeitado; mas foi o possível. Ele par ce estar conseguindo suportar

melhor suas imperfeições humanas, satisfazer-se com o possível.

Em um momento de desânimo, Daniel cita Joyce: ''um pier é uma ponte

frustrada". Sua história é uma tentativa, que fracassou, de construir uma ponte entre

ele e o mundo. Pergunto-lhe, então, para que pode servir um pier. Daniel reflete: ''um

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pier pode ser um porto; dele pode ser lançado um barco, que talvez chegue a algum

lugar".

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TERCEI RA PA RTE

- PERCORRENDO A TEORIA

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1 . OS TRÊS REGISTROS E O NOME-DO-PAI

1 . 1 O REAL, O IMAGINÁRIO E O SIMBÓLICO

A distinção do real, do imaginário e do simbólico está esboçada desde o Seminário 1. Mas, na verdade, o que Lacan então formula é o plano de um trabalho, ·

em que o sentido de cada um desses registros, bem como suas interrelações, vai sofrer

deslocamentos sucessivos. Como rastreá-los escapa ao escopo desta tese, irei apenas

delinear alguns de seus aspectos principais. O simbólico é a ordem da linguagem e, especificamente, dos significantes. A

ordem simbólica cava uma falta: a palavra instaura uma ausência, é a morte da coisa. Torna-se então possível a realização simbólica da presença e da ausência. Lacan vai

buscar em Saussure a concepção segundo a qual "na língua há apenas diferenças, sem termos positivos" (p. 1 39). A introdução das oposições significantes torna possível

distinguir, ou seja, escrever as diferenças. Em De uma questão preliminar ... , Lacan afirma que o simbólico cava sulcos no real. Em RSI, dirá que o simbólico é o furo.

O imaginário opera na dimensão das imagens - primordialmente, da imagem

corporal, narcísica, que é dotada de uma completude e perfeição ilusórias. Da cena do

imaginário participam os afetos que enganam o sujeito (a angústia é de uma outra ordem): a relação imaginária é a matriz da ambivalência constitutiva das relações do homem com seu semelhante, mistura inextrincável de amor e ódio a que Lacan

denomina hainamoration. O imaginário tampona o furo, é o portador das ilusões sem

as quais é impossível viver. Em RSI, Lacan nomeia como consistência esse atributo

essencial do imaginário.

O real é o impossível de se representar, ou mesmo de se pensar. Ele não cessa

de não se escrever; ou seja, não se escreve jamais, mas produz incessantemente efeitos sobre os dois outros registros. Sua relação com estes é de ex-sistência: é dotado de uma ex1stência radicalmente exterior ao simbólico e ao imaginário.

1 . 2 O NOME-DO-PAI

O Nome-do-Pai é um termo que Lacan vai buscar na .esfera da religião. Deus,

para Freud, é um prolongamento do pai. Assim como na in:fancia o pai protegia seu

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filho, Deus é criado pela criança que o adulto traz dentro de si para se proteger do

desamparo. Para Freud, Deus é uma ilusão. Para Lacan, é um dos nomes do Outro. O

Nome-do-Pai é o conceito nuclear da fórmula da metáfora paterna, que corresponde à

interpretação lacaniana do Édipo freudiano.

Tentando escapar ao destino que lhe fora revelado pelo oráculo de Delfos,

Édipo vai ao seu encontro, matando seu pai e se casando com sua mãe. Quando toma . consciência da extensão de seu crime, pune-se com a cegueira, que metaforiza a

castração.

O Nome-do-Pai corresponde, não ao pai da realidade, mas ao pai simbólico

que, como transparece na história de Édipo Rei, é o pai morto. Ele ordena o mundo do

sujeito, conferindo-lhe uma articulação a que Freud chamou de realidade psíquica.

O tema da morte do pai retoma insistentemente nos mitos. Freud (1913) é levado a conceber o mito do assassinato do pai da horda primordial para pensar o

ponto de origem da cultura. Segundo a interpretação freudiana (1939 [1934-38]),

Moisés, o fundador da religião judaica, também teria sido assassinado. O cristianismo

é uma religião do filho, mas tampouco escapa à necessidade lógica da morte do pai

pois, se o filho morre para expiar o crime original da humanidade, deduz-se que este

teria sido o parricídio.

Na relação primitiva da criança com sua mãe, o Nome-do-Pai é o significante

que surge ''no lugar primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe"24

(Lacan,1957-1958:557). O Nome-do-Pai vem instaurar uma separação, um hiato entre

a criança e seu objeto primordial, pois sem ele a ausência da mãe é ainda remetida à

criança, sendo experienciada como um radical abandono e a mergulhando no

desamparo. O Nome-do-Pai acrescenta um terceiro termo à simbolização primitiva da

ausência e da presença. A mãe se ausenta porque deseja algo para além da criança.

24 Na paranóia, ocorre a simbolização primordial da presença e da ausência, que corresponde a um primitivo fort-da. O paranóico se move em um mundo sem dialética, não marcado pela falta, no qual não opera a lei da oposição significante, que traria consigo a possibilidade de dialetizar a experiência. Esse mundo é organizado por uma lógica binária, que lhe é essencial. Para Daniel, suas lembranças são, ou verdade, ou delírio.

Essa simbolização primitiva não se verifica na esquizofrenia. Como vimos, Fabricio sequer consegue conferir a seu mundo uma ordenação binária. Diante da ausência da mãe ou de seu substituto, ele se perde enquanto sujeito.

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O Nome-do-Pai é, assim, um nome para a ausência da mãe; e a operação da

metáfora paterna implica a substituição da ausência por um significante. Ao efetuar uma separação entre o filho e sua mãe, a inscrição do Nome-do-Pai nesse Outro

primordial também regula seu modo de presença - ela não pode usar até o abuso do

corpo da criança -, bem como as alternâncias da presença e da ausência.

NP . DM ➔ NP DM x cj>

O Nome-do-Pai não nomeia um desejo que preexistiria a ele, mas constitui o

desejo enquanto tal. O desejo sem lei da mãe é gozo25 e não desejo. A partir da inscrição do Nome-do-Pai, o desejo caprichoso da mãe estará barrado, desviado do corpo da criança como seu objeto exclusivo.

O Nome-do-Pai é simultaneamente a lei de proibição do incesto e a lei da linguagem, que são as duas faces da mesma moeda - pois a interdição do objeto de uma satisfação originária lança o sujeito no mundo da linguagem. Ele confere uma ordenação à cadeia S 1 - S/6

, introduzindo a lei da oposição significante, que traz

consigo a possibilidade de dialetizar a experiência.

Quando abordarmos o Esquema R, veremos que o Nome-do-Pai é o termo que

possibilita a articulação do real, do simbólico e do imaginário. Ele é um significante sem par, isto é, fora da cadeia. Como o nome do Deus dos hebreus ele não é falável. Mas é condição da fala27•

25 Em De uma questão preliminar . . . , Lacan não tinha ainrla desenvolvido seu conceito de gozo.

Nas poucas ocorrências do termo nesse escrito ele é tratado como imaginário. Ver nota de rodapé nº 4 1 ,

na Seção 2.2. 26 Ver a Seção 5 . 1 . 27 O outro significante da fórmula da metáfora paterna, o falo, será trabalhado quando

abordarmos o Esquema R Ver a Seção 4.2.

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2 . O APARELHO PSÍQUICO

2 . 1 O NOME-DO-PAI E O APARELHO P SÍQUICO

Em Os Fundamentos da Clínica, Bercherie ( 1980) apresenta um resumo das

concepções vigentes na psiquiatria alemã nos anos formativos de Freud, que

exerceram uma profunda influência sobre o seu pensamento. A psiquiatria alemã da

Escola de Illenau, à qual pertencia Krafft-Ebing, professor de Freud, concebe a

atividade psíquica segundo o modelo do arco reflexo: ela é acionada por um estímulo

que, incidindo sobre o pólo perceptual, é conduzido até o pólo motor. A percepção

engendra imagens mentais que se associam, sendo a ação regulada por uma série que

vai do desprazer ao prazer.

A novidade de sua concepção em relação às idéias da época - é assim que

Freud inicia, em 1896, a Carta 52 a Fliess - é que a memória não se deposita apenas

em um registro, mas tem pelo menos três transcrições28:

I P Ps

X X - X X -X X X

II III Ics Pcs

X X - X X - X X X X

Cs

Esse esquema do aparelho psíquico é aperfeiçoado em 1900, em A

Interpretação dos Sonhos, quando se constitui a primeira tópica freudiana (p.534). Ics

P Mn Mn � Pcs

I 1 1 I · · · · · · 1 1 1\ M

28 Es1.e é o esquema do aparelho psíquico tal como se encontra na Edição Amorrortu (Freud, 1896-b:275), com a diferença de que substituo as abreviaturas Ic, Prc e Cos por aquelas que lhes correspondem em português: Jcs, Pcs e Cs. São elas que serão usadas no texto que se segue, no qual mantenho, entre parênteses, a designação alemã de Freud.

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Examinemos, sucintamente, o modelo do aparelho psíquico formulado em

1896.

Em P ( Wahmehmungen) chegam as percepções. Diante delas, a possibilidade

de evasão é a fuga29 e, nesse caso, a percepção não deixa traço. No caso contrário, ela

é registrada, não em P, mas em um primeiro sistema de transcrições, os signos de

percepção, Ps (Wahmehmungszeichen). Subjacente ao pensamento freudiano, nesse

ponto, está a concepção segundo a qual há uma incompatibilidade entre a percepção e

a memória, ou seja, um mesmo sistema não pode registrar os traços mnêmicos e ao

mesmo tempo permanecer aberto a novas impressões.

Os signos de percepção têm uma vertente simbólica que são os signos

(Zeichen) (Lacan,1955-1956), que se apóiam sobre o lastro real das percepções

( Wahmehmungen) e se organizam segundo relações de simultaneidade. A segunda

transcrição, Ics (Unbewusstsein), é o inconsciente, onde as representações se associam

segundo outros nexos, incluindo os causais. A terceira transcrição, Pcs

(Vorbewusstsein), o pré-consciente, é ligada a representações de palavras. · As

representações pré-conscientes são passíveis de se tomarem conscientes. Quando isso

ocorre, a consciência, Cs (Bewusstsein ), devolve a essas representações de palavras

algo de suas qualidades perceptuais.

Em A Interpretação dos Sonhos, Freud acrescenta aos signos de percepção

outros sistemas mnêmicos. Cada um deles recolhe os traços das percepções e os

organiza segundo uma modalidade específica de associação.

No Seminário 11 , Lacan propõe "dar, aos Wahrnehmungszeichen, seu

verdadeiro nome de significantes" (p.46). Sua organização sincrônica permite neles

reconhecer a vertente da metonímia. Nos · registros subseqüentes encontram-se as

associações por contraste e similitude, a partir das quais se produz a metáfora30•

O inconsciente congrega os diferentes modos de associação dos vários

sistemas mnêmicos, articulando-os. É assim que a releitura de Freud por Lacan

29 Aqui se encontra uma falha desse sistema defensivo que, conforme sabemos, terá conseqüências cruciais no caso da psicose: o ouvido é o único orifício corporal que não pode se fechar.

30 Uma palavra pode se associar a outra, seja por contigüidade, seja por similaridade. Assim se constituem os eixos da combinação e da substituição, os processos metonímico e metafórico da linguagem, cujos pontos extremos são a metonímia e a metáfora em seu emprego poético (Jakobson, 1956).

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possibilita-nos compreender a passagem, a meu ver obscura, dos sistemas mnêmicos

ao inconsciente na Traumdeutung. O termo que efetua essa ordenação significante é o

Nome-do-Pai.

No inconsciente encontramos as Vorste/lungsreprãsentanz, os representantes

ideativos da pulsão (Freud, 1915-b ). Em seu artigo metapsicológico acerca dessa

instância, ao estudar o funcionamento da linguagem no esquizofrênico, Freud verifica que o inconsciente é o campo das representações de coisas (Sachvorstellungen)

(Freud, 1915-c) e o pré-consciente, das representações de palavras

(Wortvorstellungen) (Freud, 1897; 1915-c ).

Na psicose, verifica-se um fracasso da metáfora. O sujeito psicótico tem

sonhos e produz lapsos, formações que, na neurose, seriam denominadas do

inconsciente. Mas em ambos os casos, na minha experiência clínica, elas não dão

origem a um processo associativo, de decifração, que implique o sujeito. Isso conduz à

pista de que elas desempenhariam uma outra função, distinta da que têm na neurose3 1 •

Na atividade delirante há uma continuidade entre o pensamento e a realidade, o simbólico e o imaginário. O pensamento não vem, como na neurose, tentar cernir uma

realidade que inclui um furo, um ponto que escapa32, mas se cola a esta, sem que uma

distância se estabeleça entre ambos.

A diferença entre um delírio ou alucinação e uma lembrança consciente é um

ponto dificil da teoria e, ao mesmo tempo, fundamental para o meu trabalho. Na Traumdeutung, Freud afirma que, enquanto as lembranças que se tomam conscientes possuem uma qualidade sensorial mínima se comparadas às percepções, na

alucinação, em virtude da regressão, as qualidades sensoriais recobram sua

3 1 Na neurose, como veremos, wn primeiro significante, S 1 , cai sob a ação do recalque primário e remete o sujeito à cadeia significante, S2• Essa metáfora do sujeito não se produz na psicose por não ter ocorrido o recalque. Ver a Seção 5 . 1 .

Os artistas psicóticos são capazes de criar metáforas poéticas e as reconhecerem como tais. O que não opera, em seu caso, é a metáfora paterna. A metáfora poética se produz porque a criação artística constitui uma suplência eficaz ao Nome-do-Pai.

Em alguns casos, ao presentificar o inconsciente a céu aberto, os sonhos e lapsos do psicótico teriam a função de fazer wna suplência ao inconsciente. Quando Daniel me relata um sonho, comenta-o em geral com as palavras: "Veja se isso quer dizer alguma coisa para você, pois para mim não significa nada".

32 Remeto o leitor ao Capítulo 4, sobre os esquemas lacanianos.

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intensidade. Em Construções em Análise, após um longo percurso clínico, ele

reconhece que algumas lembranças que emergem no decorrer do processo analítico

podem ser dotadas de extrema clareza, mas o que as toma diferentes da alucinação é a

manutenção da função do teste de realidade. O fracasso dessa função do eu e a regressão formal em direção ao pólo perceptual do aparelho psíquico constituem,

assim, as principais diferenças metapsicológicas entre uma percepção e uma

alucinação ou delírio. Em O Eu e o Isso, ao investigar o processo de tomada de consciência, Freud

afirma que, pela vinculação com as representações de palavras, "os pensamentos são

realmente percebidos - como se viessem de fora - e conseqüentemente são tidos como verdadeiros" (p.25). Ou seja, é a percepção de que os pensamentos vêm do Outro,

como tesouro dos significantes, que lhes confere o acento de verdade. Na psicose, este

se transmuta em certeza.

2 . 2 A FORACLUSÃO DO NOME -DO-PAI N A PSICOSE

A Verwerfung33 opera no nível dos signos de percepção:

Freud "admite formalmente na Carta 52 .( . . . ) uma primeira colocação em

signos, Wahrnehmungszeichen. Ele admite a existência desse campo que

eu chamo do significante primordial ( . . . ), a existência desse estádio

primordial que é o lugar eleito disso que eu chamo para vocês a

Verwe,fung'' (Lacan, 1 955- 1 956: 1 77).

Seguindo essa indicação, Rabinovitch ( 1998) deduz que a Verwerfung impede

a passagem do primeiro para o segundo sistema de transcrições e sugere a seguinte modificação do esquema do aparelho psíquico da Carta 52 na psicose (p.79)34

:

33 A Verwe,fung é o significante freudiano ao qual Lacan conferiu o estatuto de mecanismo específico da psicose. Na última liçfo de seu Seminário 3, tendo determinado que cela incide sobre o significante do Nome-do-Pai, Lacan propõe traduzi-la por "foraclusào".

34 No esquema que se segue, traduzi para o português as abreviaturas que Rabinovitch mantém em alemão.

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I

P - - - Ps nada

III

Pcs - - - Cs

(vozes e pensamentos de fora) endereço e atual

Pela foraclusão, o Nome do Pai não advém em Ps e, em decorrência disso, não

irá organizar as inscrições em /cs. A foraclusão, assim, ocorre em Ps e irá incidir

sobre a articulação dos sistemas mnêmicos no inconsciente. Nos termos do esquema

de A Interpretação dos Sonhos, os vários sistemas mnêmicos não irão compor um

único sistema, no qual se passa o pensamento inconsciente. Na psicose, o Outro do significante se inscreve em Ps e demais sistemas mnêmicos, mas não se inscreve o

Nome-do-Pai, o Outro da lei, que articularia a cadeia significante.

No Seminário 3, ao definir o pensamento inconsciente como "a coisa que se

articula em linguagem"35 (p.128) Lacan considera, na trilha de Freud, que ele resulta

da articulação entre representações de coisas e representações de palavras. Segundo Rabinovitch, no lugar do psiquismo que foi esvaziado das representações de coisas inconscientes, surge na psicose o "nada"36

, que vai ser suprido pelos sintomas de

retomo.

O retomo do foracluído se dá sob a forma das vozes, pensamentos e sensações

que vêm do exterior e irrompem no sistema percepção-consciência:

"O retorno do foracluído habita essa bizarra localidade psíquica onde nenhum traço se imprime, mas onde não cessa de reaparecer, suportado pelo que se ouve, pelo que se vê, pelo que se sente, pelo que se lê, o significante rejeitado nas trevas exteriores" (Rabinovitch:76).

Para Rabinovitch, o inconsciente como tal não se constitui na psicose. Meu

trabalho psicanalítico com psicóticos e a reflexão teórica que ele suscita levam-me a

35 A esse respeito, veja considerações na Seção 3. 1 . 36 Essa observação resulta de uma leitura lacaniana do t:xto freudiano. Como sabemos, Freud

oscila entre as concepções de que na psicose "o que foi abolido internamente retoma .do exterior" ( 19 1 1 [ 1 910] :66) e de que nessa estrutura clínica existiria uma instância propriamente inconsciente, passível de ser decifrada, mesmo que apenas pelo investigador-analista.

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concordar com essa concepção37 • Penso que a formulação de Lacan no Seminário 3

acerca de um inconsciente a céu aberto alude a essa função de suplência pela qual se

constitui algo distinto do que teria sido a estrutura moebiana do inconsciente, que teria

conferido uma continuidade entre as representações de coisas e as de palavras38• Pelo trabalho da psicose, esse "algo" que se decanta no lugar do "nada" pode produzir a

estabilização. No caso de Daniel, o delírio claramente se sedimenta em uma

construção. No de Fabrício, a mesma história se reproduz infinitamente a partir das

alucinações39. A meu ver, uma função da escrita na psicose é suprir a ausência das

inscrições em Ics.

Pelo retorno do exterior a realidade psíquica é reconstruída. Mas ele vai se dar em outro lugar e outro tempo que não o lugar do inconsciente e o tempo do simbólico.

O foracluído retorna em um tempo que Rabinovitch nomeia "atual" e um lugar que ela

denomina "endereço".

O tempo na psicose não é o tempo a posteriori do recalque. É um tempo fora do tempo, não datável, sem contorno simbólico, onde o foracluído não cessa de se

reproduzir. No Seminário 3, diz Lacan:

"Sabemos que o paranóico, à medida que avança, repensa retroativamente

seu passado e encontra até em anos muito antigos a origem das

perseguições das quais foi objeto. Ele tem por vezes a maior dificuldade de

situar um evento, e percebe-se bem sua tendência a projetá-lo por um jogo

de espelhos em um passado que se toma ele próprio bastante

indeterminado, um passado de eterno retorno, como Schreber escreve"

(p. 1 36).

37 Com ressalvas: essa concepção extrema é passível de ser extraída da teoria Iacaniana dos anos 50 e parece-me adequada aos casos de Fabrício e Daniel. No entanto, quando um psicótico consegue construir um Sinthoma, que "especifica o inconsciente" (Lacan, 1975- 1 976: 16/ 12/ 1975), poderá talvez constituir algo da ordem desse registro. Como, neste trabalho, não tive acesso a esse tipo de caso, essa afirmação fica como hipótese a ser confirmada pela clinica. Remeto o leitor ao Capítulo 6, referente à topologia dos nós.

38 Retomarei a esse ponto ao trabalhar o ponto de vista sincrônico da célula elementar do grafo do desejo e os esquemas Iacanianos.

39 As produções do psicótico levam o selo de uma atividade reprodutiva e não repetitiva. Ou seja, na neurose a repetição é repetição do novo: ela carreia consigo a possibilidade de que uma diferença se faça, o que é assinalado pela expressão com a qual os analisantes freqüentemente sinalizam o reconhecimento de que se trata desta modalidade de repetição: "de novo . . . ". Na psicose, o significante rejeitado retorna sempre no mesmo lugar, no real.

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O lugar do retomo do foracluído é o corpo do sujeito. O corpo é ao mesmo

tempo fonte do retomo e seu objeto, um objeto não separado do sujeito, pois "o

retomo constitui ( . . . ) o sujeito como endereço" (Rabinovitch:79)40.

Enquanto na esquizofrenia, como nos demonstra o caso de Fabrício, há uma

prevalência da oralidade, na paranóia a região anal predomina em termos de pulsão. Além dessa característica, a paranóia tem em comum com a neurose obsessiva �

prevalência do que diz respeito ao pensamento: na neurose obsessiva o pensamento é

eretizado; na paranóia, é por essa via que se dá a reconstrução do mundo.

Daniel me fala de episódios de masturbação anal durante a adolescência, que

teriam sido desencadeados por uma cena que sua mãe presenciara na rua e lhe contara. Devido a essa prática - que para ele não teria um cunho sexual, mas seria movida por "interesse científico" -, ele teria sofrido um acidente que redundara em um defeito fisico, um buraco facilmente observável. Daniel pensa que deve se assumir como

fisicamente diferente dos outros, pois assim ficará mais fácil se relacionar com eles. Pelo defeito fisico, a castração rejeitada retoma no real, singularizando o sujeito e lhe permitindo construir um lugar, uma forma de inserção.

No esquema da Carta 52 modificado para a psicose, duas linhas pontilhadas ligam P a Ps e Pcs a Cs. Em I, chegam ao sujeito percepções que estão para além do

princípio do prazer. Em III, o pensamento se sonoriza: são as vozes. Os retornos alucinatórios do olhar, da voz ou do que se sente perfuram o imaginário do corpo e,

assim, localizam o lugar ausente do inconsciente.

O retomo dos significantes no real tem uma dupla face. Por um lado, eles

portam o gozo 4 1• Mas, na medida que são significantes, podem indicar o caminho de

uma construção, no caso das alucinações (Lacan, 1 955-1 956; Freud, 1 9 1 7 ( 1 9 1 5]), ou, no caso do delírio, possibilitar que uma barragem se construa.

40 "Le retour constitue (. . . ) /e sujet en adresse". 41 O gozo é uma dimensão inter-dita do humar-:>, para além do significante, mas em estrita

dependência deste. Na neurose, o Outro é esvaziado de gozo e este se constitui como dimensão perdida para sempre, ao mesmo tempo buscada e temida. Um dos nomes freudianos para o gozo é o para além do princípio do prazer.

Quando um sujeito cuja estrutura é psicótica se defronta com uma situação que a foraclusão não lhe pennite simbolizar (como no caso de Fabrício), ou quando se dá a perda de uma bengala imaginária ( como no de Daniel), ocorre a ruptura da cadeia significante . . Produz-se então uma reação em cadeia, em que o gozo vai minando os pontos de sustentação do sujeito e irrompendo com uma intensidade que aumenta vertiginosamente. É esse o momento do desencadeamento.

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--,

Isso pode se dar na medida que as representações pré-conscientes de palavras

são restos mnêmicos do escutado. Quando ao pensamento, à representação de palavra

se acrescenta a voz que vem do exterior, dá-se a alucinação A voz assume então a

função de uma coisa que se alia a uma palavra, recompondo-se o elo, rompido na

psicose, entre palavra e coisa.

As alucinações são sempre verbais. Pois só se sabe do que se escuta, se vê ou

se sente na medida que há uma associação entre o escutado, visto ou sentido e o

significante.

A alucinação não precisa nem mesmo formular palavras. Pode ser a presença

de uma palavra lá onde ela não deveria estar (André, 1 982). Nas passagens ao ato de

Fabrício, verifica-se a incidência do significante42• No fenômeno dos pensamentos

impostos está em jogo uma ''voz, mesmo que muda" (Rabinovitch:88). Daniel

experiencia uma coação a pensar - proponho esse termo para diferenciá-la da

compulsão obsessiva. Deixar de reiterar o passado de eterno retorno está por completo

fora de seu alcance. Se o esquizofrênico é falado, o paranóico é pensado.

42 Ver o final da seção 3. l .

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3 . A CÉLULA ELEMENTAR DO GRAFO DO DESEJO

3 . 1 O PONTO DE VISTA DIACRÔNICO

A elaboração do grafo do desejo exigiu de Lacan cerca de cinco anos de

trabalho. Iniciada no seminário sobre As Formações do Inconsciente ( 1 956- 1 957), a

construção do grafo prosseguiu em O Desejo e sua Interpretação (1958- 1 959), tendo

encontrado sua forma definitiva em 1 960, no escrito Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano.

O grafo é uma montagem em patamares e visa a "apresentar onde se situa o

desejo com relação a um sujeito definido por sua articulação pelo significante"

( 1 960:805). Sua célula elementar conjuga dois planos: o plano sincrônico e o

diacrônico. Nela já se mostra toda a estrutura do grafo, assim como a análise de uma

folha de árvore permite a um botânico discernir a que espécie ela pertence

(Lacan, 1 955- 1 956).

A célula elementar do grafo do desejo pode ser tomada como ponto de partida

para se pensar a estrutura do sujeito tanto na neurose quanto na psicose, tema deste

trabalho.

Lacan assimila a célula elementar do grafo do desejo ao ponto de estofo (point

de capiton) "pelo qual o significante detém ·o deslizamento de outra forma indefinido

da significação" (Lacan, 1 960:805). A pontuação põe um limite à diacronia dos termos

de uma cadeia significante, S ➔ S, e, em seu efeito retroativo, constitui a frase.

s S'

A função de deter o deslizamento da significação, de enlaçá-la ao significante,

deve ser atribuída à lei dos significantes, o Nome-do-Pai. O advento da significação

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fálica é, portanto, efeito da inscrição do Nome-do-Pai. Na neurose, o funcionamento

do grafo é correlativo à operação da metáfora paterna.

NP

A foraclusão gera um vazio no lugar da significação:

"Encontramo-nos aqui na presença desses fenômenos que foram

erroneamente chamados de intuitivos, pois o efeito de significação neles se

antecipa ao desenvolvimento desta. Trata-se de fato de um efeito do

significante, na medida que seu grau de certeza (grau segundo:

significação de significação) toma um peso proporcional ao vazio

enigmático que se apresenta de início no lugar da própria significação"

(Lacan, 1 957- 1958-b: 538).

A "intuição" delirante, efeito de significação, é na verdade efeito do

significante - nessa passagem, Lacan é claro quanto à prevalência do simbólico sobre

o imaginário. O vazio assinala que algo não se operou nesse dispositivo de

engendramento do sujeito. A significação em segundo grau advém no lugar da

significação fálica que não se produziu. O significante será chamado para suprir essa

ausência.

A certeza surge em resposta a um esgarçamento da tela da realidade por

ruptura da cadeia significante. Ela é certeza de que isso significa algo que diz respeito

ao sujeito e vem em substituição à realidade do neurótico (Lacan,1955-1956).

Lacan (1957-1958) denomina fenômenos de código e de mensagem a duas das

formas pelas quais, na psicose, se evidencia a produção de um vazio no lugar da

significação. Em seu escrito, ele nos fornece uma indicação, que no entanto

permanece vaga, de que esses fenômenos poderiam ser formalizados mediante o

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recurso ao grafo do desejo43. Tentarei aqui precisá-la, recorrendo ao artigo de

Jakobson (1957) ao qual Lacan se refere nessa passagem bem como ao livro de

Darrnon ( 1990) sobre a topologia.

Em seu artigo, o lingüista russo trabalha com os conceitos de código e

mensagem, que "funcionam de uma forma desdobrada: um e outra podem ser sempre

tratados ou como objetos de emprego, ou como objetos de referência" (-1957: 176). A

partir daí, são discernidas quatro estruturas duplas de linguagem:

A mensagem reenvia à mensagem (MIM): trata-se de uma mensagem sobre

uma mensagem e, ao mesmo tempo, uma mensagem no interior da mensagem. Seu

paradigma é a citação.

O código reenvia ao código (C/C). São os nomes próprios, em que a

significação de uma unidade do código reenvia ao próprio código: "João" significa

uma pessoa chamada João.

A mensagem reenvia ao código (M/C). Corresponde ao que se chama em

lógica o modo autônimo do discurso. Inclui "qualquer interpretação que tenha · por

objeto a elucidação das palavras e frases - seja intralingüal (circunvoluções,

sinônimos) ou extralingüal (tradução)" (p.178).

O código reenvia à mensagem (C/M). São os shifters ou dêiticos, ou seja, os

elementos do código encarregados de introduzir a mensagem.

A partir da classificação efetuada por Peirce dos signos como símbolos, índices

e ícones, um shifter é considerado um símbolo-índice. É símbolo porque é uma

convenção e é índice por ter uma relação existencial com o objeto que representa,

podendo ser comparado ao ato de apontar para este objeto. Por exemplo, o pronome

"eu" é associado à pessoa que o enuncia por convenção mas só pode representar seu

objeto porque "a palavra 'eu' que designa o enunciador tem uma relação existencial

com a enunciação" (p.179).

Jakobson emprega a palavra "enunciação" no sentido do que para a psicanálise

é o enunciado. No ent, nto, ela pode ser lida em sua acepção 1 ,sicanalítica. Resulta

também expressivo ter ele tomado o "eu" como paradigma de shifter.

43 Essa indicação, ao mesmo tempo fundamental e enigmática, é a seguinte: "Mensagens de código e códigos de mensagem se distinguirão sob formas puras no sujeito da psicose, aquele para o qual é suficiente esse Outro prévio" ( 1 960:807). Tentarei precisá-la a seguir e na Seção 5.3, em que trabalho o sujeito do gozo.

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n

n

Para Lacan, o "eu" indica, no sujeito do enunciado, o sujeito da enunciação,

operando a passagem de um nível para outro. De modo mais geral, os shifiers são ••os

termos que, no código, indicam a posição do sujeito a partir da própria mensagem"

(1957-1958-b:540).

No seminário sobre as formações do inconsciente, o código está colocado no

lugar onde ficará A, como tesouro dos significantes, no grafo definitivo. No lugar que

corresponderá a s(A), o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem de forma

invertida.

As quatro estruturas duplas que Jakobson propõe podem então ser dispostas

como se segue (Darmon, 1 990:162):

MIM não

C/M

M/C

Nome Próprio

O Nome-do-Pai (NP) está colocado à direita do esquema. Sabemos que ele é

um significante fora da cadeia, impronunciável, mas que se presentifica como nome

próprio. É um significante sem significação, que não pode ser referido senão ao

próprio código, pois constitui a lei dos significantes. Assim como o nome próprio, o

Nome-do-Pai é uma estrutura C/C.

Na origem, o sujeito se identifica ao objeto do desejo do Outro. Se este

primeiro Outro é marcado pela lei do significante, sua mensagem é redobrada pela

mensagem paterna interditora, que se resume em um "não". Ou seja, se a mensagem

da mãe é "reintegrar seu produto" (Lacan,1955-1956; Darmon,1990), por ação do

Nome-do-Pai essa mensagem vai se transformar em "não reintegrar seu produto". O

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"não" no discurso da mãe é, assim, efeito da inscrição do Nome-do-Pai e tem a

estrutura de uma mensagem sobre a mensagem, MIM.

Na psicose, a foraclusão do Nome-do-Pai tem por efeito a não inscrição do

nome próprio como tal. A ausência da categoria do nome próprio e a tentativa de

compensá-la mediante o recurso ao imaginário, empregando-o como nome comum, é_

patognomônica da psicose 44.

A foraclusão acarreta a supressão de C/C e MIM. Rompido o circuito da fala, o

discurso vai se dissociar em mensagens autônimas e shifters. Lacan (1957- 1 958-b)

distingue essas duas categorias ao analisar as alucinações de Schreber (Darmon,

1990:163). mensagens interrompidas

C/M

, , - ... � , , - ... , neo-código I "(- ) \ , M , , e , ', ... _ _ ,� ... _ _ ,'

M/C palavras da língua fundamental

M/C - os fenômenos de código são "mensagens de código" (Lacan, 1960:807).

No caso de Schreber, são as palavras da língua fundamental. Trata-se de "um código

constituído de mensagens sobre o código" (Lacan,1957-19578:540), em que o objeto

da mensagem é o próprio significante.

Como efeito da foraclusão, a cadeia significante se esgarça e seus elementos

ficam soltos45• As palavras da língua fundamental ao mesmo tempo evidenciam essa

falha e buscam supri-la. Ficam como "chumbo na rede significante", constituindo a

"assinatura do delírio" (Lacan,1955- 1 956:44). O próprio Schreber assinala para o

leitor a ocorrência dessas palavras e observa sua radical alteridade:

44 Na próxima seção, a partir de dois exemplos da não inscrição do nome próprio na psicose, poderemos fazer novas considerações acerca de sua função.

45 Nos termos do último Lacan, o elo do simbólico se abre e se desprende do nó. Ver Capítulo 6.

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"A expressão 'vestíbulos do céu' não foi inventada por mim, como todas

as outras expressões que neste trabalho estão entre aspas (assim, acima,

por exemplo, 'homens feitos às pressas', 'vida de sonho', etc.), mas ela

apenas reproduz a designação sob a qual as vozes que falavam comigo se

referiam ao fenômeno em questão. São expressões às quais eu nunca teria

chegado por mim mesmo, que nunca ouvi de qualquer outro homem, de

natureza em parte científica, especialmente médica, e das quais nem ao

menos sei se são de uso corrente na ciência humana correspondente.

Voltarei a chamar a atenção sobre esta singular situação em casos

particularmente notáveis ( 1 903:40, grifos meus).

As palavras da língua fundamental vêm no lugar do inominável. Mensagens de

código, elas se inscrevem em A mas não retomam a s(A); sua exterioridade indica

uma interrupção do circuito que vai de A a s(A).

C/M Os fenômenos de mensagem, "códigos de mensagem"

(Lacan, 1 960:807), são mensagens reduzidas a pedaços de frase. Elas indicam no

código que uma mensagem se segue. Lacan demonstra, ao analisar as frases

interrompidas de Schreber, que a quebra da cadeia verbal se dá no ponto em que seria

introduzida a enunciação.

As frases interrompidas são também patognomônicas da psicose. A meu ver,

elas se distinguem dos chamados "brancos" do neurótico, lacunas que indicam a

aproximação de conteúdos recalcados. A interrupção das associações na neurose se

situa no registro semântico. Na psicose, a própria frase é interrompida, a quebra se dá

no plano sintático.

O circuito da fala é uma cadeia ininterrupta, que vai do Outro ao sujeito e para

lá retoma. No seu seminário sobre as psicoses, ao analisar a expressão freudiana

"pensamento inconsciente", Lacan antecipa de forma fulgurante desenvolvimentos

futuros:

"Pensamento quer dizer a coisa que se articula em linguagem. ( . . . ) Essa

linguagem, poderíamos chamá-la interior, mas esse adjetivo já falseia tudo.

Esse monólogo supostamente interior está em perfeita continuidade com o

diálogo exterior, e é bem por esta razão que podemos dizer que o

inconsciente é também o discurso do Outro" ( 1 955- 1956 : 1 28).

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Na psicose não se instaura a continuidade entre o discurso interior e o exterior.

A meu ver, a extimidade não se constitui nessa estrutura clínica pois, como veremos

ao tratar do Esquema R, ela se estabelece pela inscrição do Nome-do-Pai no Outro. A

transformação topológica que produz o Esquema I a partir do Esquema R consiste

justamente no corte da banda de Moebius que, na neurose, constitui o campo da

realidade. Isso acarreta a quebra da continuidade entre o dentro e o fora.

A atividade do sujeito será convocada para restaurar na medida do possível a

continuidade, estabelecendo o prosseguimento da frase:

"A princípio prevalecia o sistema do não-falar-até-o-fim, isto é, as vibrações às quais meus nervos eram induzidos e as palavras daí resultantes continham predominantemente pensamentos incompletos e inconclusos em si mesmos, contendo apenas fragmentos de pensamentos, cuja complementação em algum sentido razoável era colocada como uma tarefa para os meus nervos. É da natureza dos nervos esforcar-se

espontaneamente por encontrar o que falta para chegar a um pensamento completo que satisfaça o espírito humano, quando desse modo se lançam dentro dele palavras desconexas ou frases interrompidas" (Schreber, 1 903:209, grifos meus).

A profunda desordem simbólica não se dá sem distúrbios na regulação do

gozo. O gozo, ordinariamente excluído do simbólico, cifrado pela linguagem, invade o

campo do Outro e/ou o corpo. A prevalência de um ou outro desses retornos do gozo

sobre o sujeito vai caracterizar os diferentes tipos clínicos da psicose, a paranóia e a

esquizofrenia.

Tomemos o exemplo de Daniel, cuja entrada na psicose foi marcada por uma

nova nomeação 46• Ela constitui uma resposta à experiência enigmática desse psicótico.

O nome de delírio se inscreve em A e faz suplência ao nome próprio, embora

assumindo uma dimensão de nome comum. E engendra. significações em s(A), vindo

justificar o mal estar que o sujeito sempre sentira. O primeiro sentido desse nome é o

de injúria. A partir daí o significante se desdobra, é posto em ação. Daniel

compreende que era visto pelos outros como tarado e homossexual, o que lhe

46 Ver o início do caso clínico (Segunda Parte, 3).

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impossibilitava fazer amigos e levar uma vida interessante. A realidade que o delírio

reconstrói, já diz Freud, pode não ter um sentido radioso, mas confere algum sentido à

existência do psicótico.

Essa nomeação não se apresenta como um fenômeno alucinatório - embora

não se possa excluir que tenha sido originalmente escutada. Penso que se pode

aproximá-la do "Luder" de Schreber47 (1903:143), que Lacan coloca como nomeação

e ponto de virada do delírio. Ela faz suplência ao Nome-do-Pai e ao falo, nos dois

pontos capitais da célula elementar do grafo.

Em um exemplo extraído de uma apresentação de pacientes, Lacan (1955-

1956; 1957-1958-b) demonstra que a alucinação pode vir em suplência à dimensão da

enunciação. Nesse caso, nas palavras que a paciente pronunciara ao ver o amante da

vizinha - "eu venho do salsicheiro" - a designação do pronome "eu" teria ficado

imprecisa até ter ela escutado da parte dele a injúria "porca". Antecipando seus

desenvolvimentos posteriores, Lacan afirma que, no momento em que essa alucinação

se produz, "o objeto indizível é rejeitado no real" (Lacan,1957-1958:535). Penso que,

no caso de um novo nome, esse objeto é o próprio ser do sujeito.

Na neurose, o sujeito é o que um significante representa para um outro

significante. O caso de Daniel parece indicar que o novo nome de um psicótico vem

responder à não existência de um intervalo entre os significantes. Seu nome de delírio

faz função de um primeiro significante para o qual todos os outros representam o

sujeito48. Daniel pode assumir seu nome de batismo quando esse intervalo é em certa

medida construído no trabalho de análise. Relembro, aqui, o fragmento do poema que

Daniel escreveu sob transferência49•

Algumas das alucinações de Fabrício se incluem na classe dos fenômenos de

mensagem. Tratam-se de mensagens que, com demasiada freqüência, não chegam ao

sujeito. Ora ele entende o que as vozes dizem, ora não. Ou seja, uma significação se

47 Schrcber escutou essa injúria do :;,róprio Deus, na única ocasião -:m que este apareceu para ele. Ela não é passível de uma tradução exata, pois provém do alemão arcaico, como tantas outras expressões da língua fundamental. "Puta" é uma tradução aproximada Lacan propõe a alternativa charogne, "carcaça" ( 1955-1956: 1 14). Retornarei a esse ponto na parte conclusiva da tese.

48 Ver Seção 5. 1 .

49 "Entre uma palavra e outra há um bambalalão, de um lado um sim de outro lado um não ... ( . . . ) Que cada palavra possa me chamar de Daniel e me dar um beijo". Retomarei esse episódio em "Para não Concluir".

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produz e se refere a ele, mesmo que ele não alcance o seu conteúdo. Quando consegue

entendê-las, as vozes dizem: "ataque! destrua!" - e então Fabrício consegue se opor a

elas. Quando não as entende desencadeia-se o que chama de "crise", a qual, na maioria das vezes, consiste em atos de violência contra si mesmo acompanhados de perda de consciência.

As alucinações podem operar como suplências. Enxertam significantes no campo indiferenciado do gozo. São como os letreiros à beira das pequenas estradas

vicinais que, à falta da estrada principal, podem indicar o caminho (Lacan, 1 955-

1 956). Quando consegue entender o que as vozes dizem, um sentido se destaca e o

sujeito pode se posicionar frente a ele. O perigo, segundo o próprio Fabrício, está no apagamento da dimensão do significante - e, portanto, na emergência do puro vazio da significação -, que o mergulha num gozo do qual ele só pode sair pela passagem ao

ato.

3 .2 O NOME PRÓPRIO NA P S ICOSE : DUAS ILUSTRAÇÕES

CLÍNICAS

Seguem-se dois exemplos clínicos. O primeiro é derivado de minha prática de supervisora e o segundo, de minha experiência como psicanalista.

Uma estagiária de psicologia do IPUB costumava conversar com um paciente da enfermaria chamado Taboli50

• Eu lhe sugeri que investigasse a origem desse

estranho nome - o nome próprio traz informações preciosas sobre o sujeito. Em

resposta à sua pergunta, o paciente explicou: "Meu pai se chama Tais. Meu nome é formado por Tais e aboli, e significa 'te aboli '. Meu pai me deu esse nome para me

eliminar, me abolir. Mas abolir pode ter o sentido de eliminar ou de salvar. A saída,

então, é salvar o mundo".

Nesse exemplo, a foraclusão do Nome-do-Pai se materializa, a céu aberto, no

próprio nome do paciente. Sem o Nome-do-Pai, o significante retoma no r� perfurando o corpo. E a solução delirante se coloca como saída para a ameaça de abolição do sujeito.

so Optei por revelar o nome desse sujeito porque, do contrário, esse rico exemplo clínico se perderia (Pequeno, 1 99 1 ).

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Para esse psicótico, diagnosticado pela psiquiatria como esquizofrênico

paranóide, essa solução se revela frágil. Taboli acabou sendo internado em uma

instituição para pacientes crônicos, onde chegou em condições gravíssimas do ponto

de vista tanto psiquiátrico quanto clínico, por ter feito uma incisão em seu crânio para

de lá extrair um transistor que sua mãe teria instalado.

O outro paciente, Tancredo, procurou-me devido a um problema corporal, um

defeito de postura que lhe impossibilitava trabalhar para ganhar a vida. Ele teria sido

causado por uma lesão de coluna, decorrente de práticas masturbatórias na

adolescência. Tancredo chegou a trabalhar durante alguns anos, mas foi demitido "por

rigidez". A partir de então, sua vida tomou-se ''uma errância", pois sua suposta lesão

de coluna o faz ir de médico em médico, na busca infrutífera de uma solução.

A linguagem de órgão caracteriza a esquizofrenia (Freud, 1915-c). No caso de

Tancredo, a dificuldade de se posicionar na vida se deriva, sem solução de

continuidade, de um suposto problema de postura.

Seu retomo à segunda entrevista -não havíamos ainda combinado o preço -

dependeria de um parente se comprometer com o pagamento.

Tancredo faltou à segunda entrevista. Como ele não tivesse telefone, enviei-lhe

um telegrama. Veio então me ver, trazendo consigo o telegrama. No decorrer da

sessão, inquiriu: "Você é Angela Pequeno? Pensei que você fosse Angela Barata".

Ao perguntar-lhe o porquê de sua suposição, respondeu apenas que sabe que

existe um analista com esse nome.

Volta a desfiar sua queixa e, provavelmente intrigado com meu interesse em

atendê-lo, retoma: "Quantos pacientes você tem? O Eduardo Mascarenhas deve

ganhar muito dinheiro, pois tem um nome conhecido. É ruim não ter um nome".

Este paciente, assim como o primeiro, não tem acesso à dimensão do nome

próprio e, nessa medida, usa o nome próprio como nome comum. Substitui então o

nome da analista por "barata", que faz oposição a "mais-carenhas", em função da

dificuldade de pagamento que se coloca nesse início de análise. Seu comentário final -

"é ruim não ter um nome" - retrata, com o rigor de que só um psicótico é capaz, sua

própria condição.

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Nesses exemplos observamos que, se para o esquizofrênico a falta de inscrição

do nome próprio retoma do exterior, sem que o sujeito nisso se implique, o paranóico

permanece paralisado sob a significação mortífera de seu delírio.

Em seu Seminário 9, sobre a identificação, Lacan trabalha a questão do nome

próprio, que jamais é indiferente para um sujeito. Conclui que o nome próprio tr�

consigo a relação mais radical do sujeito à letra: conjugando o simbólico ao real,

produz o "enraizamento do sujeito" (10/01/1962).

O nome próprio assinala o lugar do sujeito no tempo, na cadeia geracional, e

no espaço, no contexto familiar e social. Nessa medida, materializa o Nome-do-Pai,

que é um significante fora da cadeia5 1 • O nome próprio "é o Nome-do-Pai no uso

comum" (Miller, 1 992:28).

O nome próprio não tem nenhum predicado. Apontando para o real como

impossível de se dizer, faz advir o ser como falta a ser - isto é, o sujeito. O nome

próprio, que será gravado sobre o túmulo, indica que o sujeito surge como morto no

jogo dos significantes, que está morto desde sempre. O que há de vivo no sujeito é o

gozo. O gozo é "um ser que aparece como que faltando no mar de nomes próprios"

(Lacan, 1960:819). O nome próprio designa o ser do sujeito que é o gozo e nessa

medida, barra o gozo.

Onde o sujeito não advém como falta a ser, isso acarreta distúrbios na

economia do gozo. A ausência da operação do nome próprio é correlativa à

foraclusão. Dada a não inscrição do significante da falta do Outro que é o Nome-do­

Pai, o psicótico vai preencher o nome próprio, enquanto lugar vazio, com o nome

comum.

A ausência dessa dimensão do nome próprio como tal deixa o sujeito aberto a

toda sorte de alienação e errância. O recurso do psicótico ao imaginário ao mesmo

tempo denuncia a carência radical daquilo que é da ordem do nome próprio e busca

constituir uma compensação para ela. É o que demonstràm os casos acima expostos.

51 Remeto o leitor à Seção 4.2, na qual trabalho o Esquema R

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n 3 .3 O PONTO DE VISTA S INCRÔNICO

O ponto de vista sincrônico permite pensar a origem do sujeito. Cabe, então,

tecer algumas considerações sobre a noção de origem.

a) A origem é mítica. Segundo Lacan ( 1964-c), os mitos devem ser compreendidos não como um reenvio ao irreal, mas como uma mitificação do real. Se

o real é o impossível de se pensar - o que, neste contexto, se traduz no caráter

inapreensível da origem -, ele poderá, de certa forma, ser abordado mediante o recurso ao mito . .

As chamadas culturas primitivas constróem mitos de origem cuja necessidade pode ser deduzida do fato mesmo de sua coincidência,· em diferentes culturas, quanto a pontos precisos - a partir dos quais os antropólogos constróem os mitemas.

b) O real é o que não cessa de não se escrever. Assim, esses mitos vêm trazer

uma resposta à exigência de encontrar um ponto de origem: "há uma necessidade estrutural de colocar uma etapa primitiva em que aparecem no mundo os significantes como tais" (Lacan, 1 955- 1 956: 1 69).

c) O mito confere uma ordenação cronológica às etapas da constituição de uma

estrutura que nos é dada apenas de forma sincrônica. "O que lhes conto é também um

mito, pois não creio de modo algum que haja em algum lugar um momento, uma etapa

em que o sujeito primeiro adquira o significante primitivo, e que depois disso se

introduza no jogo de significações e que depois disso ainda, significante e significado tendo se dado o braço, entremos no domínio do discurso" (Lacan, 1 955- 1 956: 1 72).

d) Pensar o ponto de origem, que se coloca na fronteira do real, engendra

múltiplos paradoxos. Na matemática, a origem é pensada mediante o recurso ao conceito de infinito, que é por excelência o campo dos paradoxos. O infinito, como a

origem, só se atinge no limite, é inapreensível (Pequeno, 1 999-a).

Na psicanálise, essa questão concerne a origem do sujeito e, portanto, de um

determinado modo de estruturação. Deparamo-nos aí com um primeiro paradoxo - a escolha da neurose. O paradoxal diz respeito à temporalidade, uma vez que o sujeito

"escolhe" uma estrutura - a neurose, a psicose ou a perversão -, "antes" de se

constituir, ou no processo mesmo de sua constituição.

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n

n

A insistência com que Freud retoma ao problema da escolha da neurose ao

longo de sua obra exige que não recuemos diante dele. Para Strachey, Freud teria

encontrado a resposta ao formular a teoria das fases de desenvolvimento da libido e os

conceitos de fixação da pulsão e regressão. Mas resta explicar porque uma fixação se

dá em uma determinada etapa e não em outra.

Um caminho para deslindar a concepção freudiana de uma Neurosenwahl seria

pensar esta "escolha do sujeito" como escolha paradoxal, na qual sua posição é

simultaneamente ativa e passiva. Ao atribuir a escolha da neurose a uma "insondável

decisão do ser", Lacan ( 1950: 177) reconhece este ponto opaco ao pensamento.

Do ponto de vista sincrônico, Lacan apresenta a célula elementar do grafo do

desejo como o grafo mítico, que remete à origem, à entrada mesma do sujeito na

linguagem. A escolha da neurose é, sobretudo, escolha do mecanismo pelo qual o

sujeito irá se situar diante do Nome-do-Pai e, portanto, da castração. A neurose, a

psicose e a perversão constituem as três posições do sujeito na estrutura, dependentes

das estratégias que são o recalque ( Verdriingung), a rejeição ( Verwerfung) e o

desmentido ( Verleugnung). A foraclusão do Nome-do-Pai, em sua radicalidade, além

de seus efeitos sobre o sujeito, altera a própria estrutura (Rabinovitch, 1998).

Hanns (1996) assinala que Verwerfung tem um sentido bem menos abrangente

e mais preciso do que "rejeição" em português. O termo alemão não tem a conotação

de repúdio, mas de descarte e eliminação. Segundo esse autor, Freud utiliza o termo

Verwerfung num sentido ora mais frouxo, ora mais aproximado ao que para Lacan

virá a ser a foraclusão.

Penso que a Verwerfung é um termo freudiano que Lacan eleva à categoria de

conceito -à diferença da Verdriingung, da Verleugnung e da Verneinung (negação),

aos quais Freud já dera um tratamento conceituai. Lacan irá buscá-lo para construir a

resposta à questão insistente de Freud (1924 [1923]), acerca do mecanismo, análogo

ao recalque, responsável pela defes t na psicose.

No seminário sobre as psicoses, Lacan estuda uma ocorrência pontual da

Verwerfung no caso do Homem dos Lobos.

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Freud considera o quadro clínico do Homem dos Lobos como uma condição

que se segue a uma neurose obsessiva grave. Lacan não entra em considerações

diagnósticas, mas recorre a um episódio muito preciso, a alucinação do dedo cortado

(Freud,1918-(1914]:79), para aprofundar a afirmação com a qual inicia seu seminário

sobre as psicoses e que constitui ao mesmo tempo uma questão: o que é rejeitado do

simbólico retoma no real. No Seminário 3, esse episódio faz contraponto ao caso

Schreber, iluminando, em seu caráter de experiência fugaz, os fenômenos que se

apresentam maciçamente no caso do grande paranóico.

Freud percebe duas posições do Homem dos Lobos diante da castração. Uma

corrente reconhece a castração. É ela que efetua o recalque, que vem impedir que a tendência homossexual chegue à consciência e proteger assim o sujeito da castração imaginária que seria o preço a ser pago para que o amor ao pai pudesse ser satisfeito. Uma corrente mais primitiva rejeita a castração, preservando a concepção de uma

relação pelo ânus.

"Quando disse que {ele} a rejeitou, o significado mais imediato dessa expressão é que nada quis saber dela no sentido do recalque. Com isso, na verdade, não havia pronunciado nenhum juízo sobre sua existência, mas era como se ela não existisse" (p. 78).

Hanns observa que nessa passagem Freud distingue a Verwerfung não só da

Verdriingung mas também da Verleugnung, uma vez que na língua alemã esta é a expressão que implica um julgamento sobre a existência. No recalque, o sujeito nada

quer saber da castração, mas o saber é preservado no inconsciente. A Verwe,fung vai

além, abole o saber. Freud assinala, quanto a isso, uma escolha do sujeito, que se dá, como vimos,

no plano mítico da origem52:

"Sabemos a tomada de posição inicial de nosso paciente diante do problema da castração. Rejeitou-a e se atew� ao ponto de vista da relação pelo ânus" (p.78, grifo meu).

Ou ainda:

52 Foi esse, aliás, o interesse dominante de Freud ao se debruçar sobre o caso clínico do Homem dos Lobos.

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"Rejeitou o novo - em nosso caso, por motivos derivados da angústia

diante da castração - e se ateve ao antigo. Decidiu-se a favor do intestino e contra a vagina" (p.8 1 , grifo meu).

A escolha do sujeito, escolha da Verwerfung, é o mecanismo que está na base

da alucinação do dedo cortado. Freud demonstra que a ativação dessa corrente tem

uma potencialidade alucinatória. Na etapa em que o Homem dos Lobos está tomando · conhecimento da castração, a corrente que a rejeita se faz presente e produz a

alucinação. Esse "tempo atual" (Rabinovitch,1998), sem contorno simbólico53, é uma

característica do retomo do foracluído54 na psicose (Lacan, 1954-b ). Esse episódio ilustra, de maneira fina e precisa, a operação da Verwerfung.

Como efeito desse mecanismo temos, por um lado, a impossibilidade de falar que

assinala a emergência do impossível de dizer e, por outro, a alucinação visual em que

a castração, rejeitada, retoma. O "terror indizível" (p. 79) que avassala o paciente é o signo dessa emergência.

Em 1925, ao estudar o mecanismo da negação tal como ele se manifesta no cotidiano da clínica, Freud é levado a investigar a função do julgamento. Este

consiste em "afirmar ou negar os conteúdos dos pensamentos" (p.254) e articula duas

operações: o juízo de atribuição e o juízo de existência55.

Ao se indagar sobre a origem dessas operações, Freud é conduzido para o

tempo inaugural do sujeito. Ele constrói então um mito sobre a formação do eu e do

não eu, um mito de origem do dentro e do fora. Lacan irá recorrer ao artigo de Freud

comentado por Hyppolite (1954) como um fio condutor em sua pesquisa acerca da

origem do sujeito.

53 Ver a Seção 2.3. 54 No Seminário 3, Lacan introduz esse tenno por analogia com o retorno do recalcado na

neurose. No entanto, ele tem algo de problemático: o foracluído "retorna" de um lugar onde não está inscrito. Mantenho-o aqui por ser de uso corrente em psicanálise.

55 Essas designações são trazidas da filosofia por Hyppolite ( 1 954).

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--,

7

Não caberia reproduzir aqui os argumentos de Freud. Farei então apenas

algumas pontuações, que me parecem essenciais para o prosseguimento deste

trabalho56•

O juízo de atribuição primitivo efetua um primeiro mapeamento do dentro e do

fora em consonância com o princípio de prazer. De sua operação resulta a inclusão no

eu do que é vivido como bom, fonte de prazer, e a expulsão para fora do eu do que � experienciado como mal, desprazeroso.

Freud fará derivar a afirmação enquanto operação de julgamento dessa

introdução primitiva no eu; e a negação, do movimento de expulsão. Mas, entre essas duas derivações há uma assimetria (Hyppolite,1954), que é marcada pelo emprego das palavras "substituto" e "sucessora" no texto freudiano: "a afirmação - como substituto

da união - pertence a Eros, e a negação - sucessora da expulsão - à pulsão de

destruição" (p.256). A afirmação se deriva diretamente da união. Lacan se baseia

nessa continuidade para denominar Bejahung primitiva ao momento inaugural de introdução no sujeito da marca do significante57

• Mas entre a expulsão destrutiva e a negação há uma descontinuidade, pois a negação resulta da intrincação pulsional, constituindo assim a condição de possibilidade do próprio pensamento.

No Seminário 2, Lacan (1954-1955) faz corresponder seu Esquema L a Para

além do Princípio do Prazer e estabelece uma sinonímia entre a ordem simbólica e a

pulsão de morte. Penso que ele terá se encaminhado nessa direção a partir das

considerações de Hyppolite aqui apresentadas. Como veremos no próximo capítulo, o

simbólico traz consigo a mortificação do sujeito.

O juízo primitivo de existência fica a cargo do eu-realidade e leva a construção do dentro e do fora para outro patamar58• Se na primeira etapa a questão dizia respeito

a trazer ou não para dentro o que estava fora, trata-se agora de conferir ou não ao que está dentro uma existência exterior, de decidir se uma representação corresponde a um objeto que possa ser reencontrado na realidade.

56 Para o que se segue baseei-me também em meu artigo Sobre o Mecanismo da Psicose ( 1 99 1 ).

57 Do movimento de incorporação do objeto, o que resulta é a introjeção de seus traços. 58 Muito embora haja uma continuidade entre o discurso do sujeito e os significantes do Outro

- o inconsciente é o social, reitera Lacan - há também a necessidade de, sobre a base da extirnidade, constituir um dentro e um fora.

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-,

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No plano do juízo de existência se conjugam a perda do objeto e a construção

da realidade. Freud assinala "uma condição para que se institua o teste de realidade:

devem ter sido perdidos objetos que outrora proporcionaram uma satisfação objetiva

real" ( 1 925 :256) 59. Essa conclusão é essencial para o que desejo desenvolver no meu

trabalho, pois, conforme veremos, na psicose não se dá a extração do objeto a.

Trata-se de reencontrar - e não de encontrar - o objeto: esse ponto concentra

toda a diferença entre a psicanálise e a psicologia. A realidade humana se constrói

sobre a base de algo para sempre perdido, diz Freud - desde sempre perdido,

aprofunda Lacan: o objeto a. Lá onde os psicólogos diriam "foi", para o psicanalista,

''teria sido".

A expressão cunhada por Freud, princípio de realidade ( e não "da realidade"),

mostra que a realidade não é unívoca, mas sim equívoca, multívoca, construída por

cada sujeito.

Assim, o mundo do sujeito será ordenado, construído, a partir da operação

conjunta do juízo de atribuição e do juízo de existência. Dessa articulação complexa

resulta a configuração de dois campos. A ordem simbólica, campo dos significantes,

em que a Bejahung é prévia à possibilidade do recalque e da negação. E o campo do

que ex-siste ao significante, o real, cujo núcleo é o objeto.

As psicoses têm origem em um acidente ocorrido nessa etapa mítica e, assim,

constituem para o analista uma via de acesso a ela.

"Previamente a toda simbolização - esta anterioridade não é cronológica, mas lógica - há uma etapa, as psicoses o demonstram, em que pode ser que uma parte da simbolização não se faça ( . . . ) Pode acontecer assim que algo de primordial quanto ao ser do sujeito não entre na simbolização e seja, não recalcado, mas rejeitado" (Lacan, 1 955- 1956:94).

Esse algo essencial que cai sob a Verwer:fung é o significante do Nome-do-Pai.

A foraclusão equivale, assim, a uma falha da Behajung primitiva.

A meu ver, as respostas à questão das relações temporais entre a Verwer:fung e

a Bejahung são necessariamente parciais e aproximativas, como tudo o que versa

59 A Negação é um dos textos cruciais para se pensar o objeto perdido em Freud. Ver também o quinto capítulo de Mais Além do Princípio do Prazer (1920).

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sobre a origem. Quanto mais distanciado no tempo se encontra aquilo que se quer

reconstruir, mais di:ficil se toma o trabalho do arqueólogo - ou do psicanalista. Se o

lugar do retomo do foracluído não é o inconsciente que ele vem suprir, se seu tempo

não é o presente simbólico mas um atual intemporal, mais imprecisos ainda ficam os

resultados dessa busca das origens.

A Verwerfung é contemporânea ou posterior à Bejahung? Se a Verwerfung

ocorre no registro dos signos de percepção60, ela é posterior à entrada do sujeito no

campo do significante e, portanto, à Bejahung. Isso vai ao encontro da concepção

segundo a qual há uma escolha do sujeito na psicose pois, para que ela seja possível,

algum nível de constituição, mesmo que mínimo, deve ter se dado.

No entanto, outros comentários de Lacan nos levam na direção oposta. Em De uma questão preliminar ... - que, cabe ressaltar aqui, é um escrito do próprio Lacan, e

não um seminário - encontramos:

A Verwerfung é "a ausência dessa Beiahung. ou juízo de atribuição, que

Freud coloca como precedente necessário a toda aplicação possível da

Verneinung que ele lhe opõe como juízo de existência. ( . . . ) A Verwerfung

será portanto tida por nós como foraclusão do significante. No ponto onde,

veremos como, é chamado o Nome-do-Pai pode responder no Outro wn

puro e simples furo, o qual pela carência do efeito metafórico provocará

um furo correspondente no lugar da significação fálica" (p.558, grifos

meus).

Nessa passagem, Lacan é claro: a Verwerfung é a ausência da Bejahung do

Nome-do-Pai.

No entanto, não me parece haver uma contradição irredutível entre os dois

pontos de vista: considero uma resposta adequada a essa di:ficil questão que a

Verwerfung corresponda a uma abolição no plano dos signos de percepção, que tem

como conseqüência a não inscrição do Nome-do-Pai no inconsciente e, portanto, a não

constituição dessa instância.

Finalizando esta sessão, faço ainda algumas considerações, a partir de minha

clínica com psicóticos:

60 Ver a Seção 2.2.

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a) Na psicose verifica-se, em diferentes patamares, o fracasso da construção de

um dentro e um fora. O delírio confere existência objetiva ao conteúdo do

pensamento. No tratamento analítico de Daniel, esse aspecto se dá a perceber a céu

aberto. Ele assinala o início do processo delirante com as palavras: "aí eu comecei a

me lembrar". Sob transferência, as "lembranças" vão aflorando continuadamente. Um

passo é aí saltado: a prova de realidade. Nas alucinações, também há urna falha do

juízo de existência, mas nelas o remodelamento da realidade vaí além, atinge a

percepção.

b) Os termos alemães usados por Freud - Bejahung e Verneinung - contêm o

"sim" e o "não". Hanns ( 1996) assinala que essas expressões são geralmente

empregadas para confirmar ou negar urna frase anterior - pressupondo assim a

presença de urna fala prévia, do Outro como tesouro dos significantes.

Daniel me conta que ficou paralisado diante da beleza de urna mulher, não

conseguindo lhe endereçar a palavra. Indago: "é como se você antecipasse um não?"

Ele então me corrige: "é mais do que isso: se eu pudesse me expor à possibilidade de

receber um sim ou um não, estaria em outro patamar de humanidade".

Esse exemplo clínico nos mostra que o negativismo do psicótico não tem a

estrutura do "não", símbolo da negação, mas resulta de uma falha na operação de

alienação.

Se Daniel se fecha à possibilidade de dialetizar, no caso de Fabrício o

negativismo se manífesta como um rechaço radical do simbólico, um consentimento

ao gozo. Assolado pelas alucinações, na iminência de ser mandado embora da

instituição que o abrigara durante maís de um ano, ele mostra sua posição subjetiva:

"a culpa é minha, sempre me deixei dominar por esses demônios". Como vimos, os

demônios são figurações do gozo que retoma no corpo do sujeito tomado como

objeto. Dominá-los, ou domesticá-los, é função do significante.

No caso de Daniel, o gozo se apresenta no lugar do Outro; no de Fabrício,

incide sobre o corpo. Essas formas distintas de retomô do gozo configuram os tipos

clínicos da psicose: a paranóia e a esquizofrenia.

n

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4. OS ESQUEMAS L, R E I

No texto De uma Questão Preliminar . . . , Lacan apresenta uma seqüência de

três esquemas. Eles têm uma importância crucial para a formalização do conceito de

sujeito com o qual a psicanálise opera.

No Esquema L são apresentadas as coordenadas estruturais do sujeito.

Com base no Esquema L, o Esquema R demonstra a construção da realidade,

na neurose, a partir dos registros real, simbólico e imaginário.

O Esquema I constitui uma transformação topológica do Esquema R. Ele

mostra como, após a catástrofe subjetiva do desencadeamento, o delírio pode levar o

psicótico a reconstruir um mundo no qual seja possível voltar a viver.

4. 1 O E SQUEMA L

A primeira versão do Esquema L se encontra no escrito O seminário sobre "A carta roubada ", de 1955. Em De uma Questão Preliminar . . . , Lacan o apresenta de

forma simplificada, incluindo apenas as linhas a partir das quais construirá o Esquema

R (1957-1958-b:548). a

A

Em seu escrito, Lacan confere ao Outro uma anterioridade lógica, pois ele

funda uma ordem do sujeito. O Outro engloba os "princípios permanentes das

organizações coletivas, fora das quais não parece que a vida humana possa manter-se

por muito tempo" (Lacan, 1 957-1958-b:547). Ele é "o lugar, presente para todos e

fechado para cada um, onde Freud descobriu que ( ... ) isso pensa" (p.548). E é também

"o lugar de onde se pode colocar para ele { o sujeito} a questão de sua existência"

(p.549).

Essas três definições apresentam o Outro em seus aspectos fundamentais. Ele

constitui a ordem da cultura, a ordem da linguagem. É o palco da Outra cena, em que

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se passam os sonhos, lugar do inconsciente, regido pelo processo primário. E é a partir

do inconsciente como discurso do Outro que a questão do sujeito é posta.

À pergunta acerca da localização do sujeito no Esquema L três respostas

podem ser dadas: 1. Em S. S é o sujeito "em sua inefável e estúpida existência" (p.549) e .

constitui, a meu ver, sua vertente real - afirmação que pretendo fundamentar no

decorrer do trabalho. Ele antecipa o que virá a ser o real em seu sentido lacaniano, que

ainda não estava formalizado à época da construção dos esquemas e será o fruto de

um longo processo de decantação.

S é uma letra - em alemão Es, o isso. 2. Do lado esquerdo do Esquema L. O sujeito é dividido em uma vertente

simbólica (S) e uma vertente imaginária (a '), nas dimensões da enunciação e do enunciado, termos lacanianos que recobrem o inconsciente e o consciente freudianos.

No plano do enunciado, a ' é o "pensa que pensa o mais pensável". No plano da

enunciação, S é o lugar onde "isso pensa" (p.548).

O ego61, a ', como instância de desconhecimento, desconhece que nada é

produzido em seu próprio nível, que tudo se passa em A. Essa é a ilusão de autonomia

que faz com que o ego se sinta "senhor em sua própria casa" (Freud,1916-1917:260). Além disso, os pensamentos que lhe chegam - ecos do pensamento inconsciente

filtrados pela barreira do recalque - são os mais banais e corriqueiros e distanciam o sujeito de sua verdade. Nesse ponto, como em tantos outros, Lacan está sendo rigorosamente fiel ao pensamento de Freud. Tomemos como exemplo os comentários

deste autor sobre a elaboração secundária dos sonhos:

"Não há dúvida, então, de que o nosso pensamento normal é a agência psíquica que se aproxima do conteúdo dos sonhos com a demanda de que ele seja inteligível, submete-o a uma primeira interpretação e conseqüentemente produz um compl-�to mal entendido acerca dele" ( 1 900:500).

61 Parece-me que o uso que Lacan faz do pronome je joga com a tensão existente entre o enunciado e a enunciação, com o fato de que, na neurose, um não vai jamais sem o outro. Quando quer se referir à vertente imaginária, Lacan recorre ao termo moi. É essa a leitura do je e do moi que faço neste trabalho, em que adoto a tradução deste último por "ego".

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No plano da enunciação, S é, como vimos, o isso freudiano, instância

caracterizada por uma duplicidade essencial : por um lado sua condição é inefável; por

outro, isso fala, ça par/e62•

A construção do Esquema L procura dar conta dessas diversas dimensões do sujeito: o Es, inefável, para aquém da fala, e o "isso fala", do qual é tributário o ego -

pois "o sujeito se fala com seu ego" (Lacan, 1 955- 1956:23)63.

3. No Esquema L como um todo. Atrelado aos quatro cantos desse esquema, a

topologia do sujeito é quaternária 64. Pois à divisão do sujeito entre S e a · vai corresponder uma divisão análoga do objeto, entre A e a. O Outro simbólico é o lugar

da alteridade, enquanto que o outro é o campo do imaginário, dos semelhantes, dos "égaux", equivoca Lacan, com base na homofonia que se estabelece, em francês, entre

"ego" e "iguais". O Esquema L é assim composto por dois eixos: o eixo simbólico, entre S e A,

que não é explicitado em De uma questão preliminar . .. ; e o eixo imaginário, entre a e

a '.

Como já vimos, a dimensão narcísica é essencialmente ambivalente e a ordem

simbólica vem trazer um ponto de basta ao conflito imaginário: "a ambigüidade ( ... )

da relação imaginária exige alguma coisa que mantenha relação, função e distância. É

o sentido mesmo do Complexo de Édipo" (Lacan, 1 955- 1956: 1 1 1 ). O simbólico

introduz uma distância entre a e a •. Pois, se A for retirado de seu lugar Outro, o homem sequer se sustentará em sua posição de Narciso (Lacan, 1957- 1958-b).

O inconsciente é o discurso do Outro, do qual o sujeito recebe sua própria

mensagem de forma invertida (Lacan, 1960). O sujeito se constitui alienado na fala fundadora que vem do Outro: "esse 'tu és isso ', quando o recebo, me faz na fala outro do que sou" (Lacan, 1955- 1 956:31 5).

62 No Seminário 11, Lacan vai dizer que o inconsciente é uma "zona de larvas" (1964-b:26). Sem entrar em uma longa digressão acerca das relações entre o inconsciente e o isso nos vários momentos ia elaboração teórica de Lacan, a qual forçosamente nos afastaria do propé:;ito deste trabalho, sugiro que o mesmo se possa dizer do isso.

63 "Le sujet se parle avec son mot'.

64 Nos seus últimos seminários, Lacan formulará em termos renovados a estrutura quaternária do sujeito, ao verificar que o quarto elo do Sinthoma é condição necessária para distinguir, e assim constituir, os outros três como real, imaginário e simbólico. Remeto o leitor ao último capítulo deste Percurso Teórico, no qual trato da topologia dos nós.

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A questão do neurótico surge referida a essa fala fundante. Como a resposta

que advém do simbólico não responde ao erugma do ser, recoloca-se em permanência

a questão que, em sua impossibilidade de resposta, sustenta o sujeito. O Outro é o lugar de onde se coloca para o sujeito a questão de sua existência,

"não sob o modo da angústia que ela suscita ao nível do moi e que não é

senão um elemento de seu cortejo, mas enquanto questão articulada: 'O

que sou eu lá?', concernindo seu sexo e sua contingência no ser, isto é que

ele é homem ou mulher por um lado, e por outro que poderia não ser, os

dois conjugando seu mistério e o enlaçando nos símbolos da procriação e

da morte" (Lacan, 1 957-1958-b:549).

Nessa passagem, Lacan nos fornece os elementos para uma clínica das

questões na neurose. A questão referente ao sexo - "sou homem ou mulher?" - é por

excelência histérica; enquanto que a contingência no ser - "estou vivo ou morto?" - é

a armadilha que entrava o obsessivo em seu desejo. Esses dois modos pelos quais a questão do sujeito se presentifica têm, como sabemos, um ponto de conjunção: a neurose obsessiva é um dialeto da histeria (Freud, 1 909-b ).

4 .2 O ESQUEMA R

Neste trabalho, não farei uma análise detalhada do Esquema R, que foi

construído a partir da neurose e delineia as principais linhas que configura esta

estrutura. Ele irá nos interessar aqui sobretudo como base para a transformação que

constitui o Esquema I. Assim, irei abordá-lo de forma condensada, remetendo o leitor

interessado em aprofundá-lo ao texto de De uma Questão Preliminar (p.553) e ao

livro de Darmon ( 1990) sobre a topologia na obra de Lacan.

p

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A base do Esquema R é o temário simbólico, cujos vértices são os

significantes do Complexo de Édipo - M, I e P. M é o significante do objeto

primordial; I é o infans e também o Ideal do Eu que a criança constitui enquanto

desejada; e P é o Nome-do-Pai, cuja inscrição duplica o Outro, desdobrando-o em um Outro da linguagem e um Outro da lei. "O Nome-do-Pai reduplica, no lugar do A, o

significante mesmo do temário simbólico, na medida que ele constitui a lei do

significante" ( 1957- 1958-b:578). Ele é "o significante que no Outro, enquanto lugar

do significante, é o significante do Outro enquanto lugar da lei" (p.583).

O ponto <I> se produz na extremidade do eixo simbólico A➔S do Esquema L.

Esse vetor, cujo ponto de partida é P, não é evidenciado no esquema R, mas pode ser

deduzido do Esquema L que lhe serve de base.

O falo, <!>, é um efeito do simbólico no imaginário, como se pode ler no lado

direito da fórmula da metáfora patema65. Ao barrar o gozo da mãe, o Nome-do-Pai se

inscreve como lei no Outro e produz a significação fálica. "O falo é o significante por excelência da relação do homem com o significado" (Lacan, 1 957- 1958-a:4 1 8).

O sujeito S, que está inscrito no mesmo ponto que <I> é, assim como o falo, um

efeito no imaginário do simbólico (André, 1982). No Esquema R, Lacan está tratando

o sujeito, tal como advém em S, como significação fálica. Mas não podemos esquecer

com isso a complexa elaboração acerca da estrutura do sujeito que o Esquema L

propicia.

A partir da inscrição de <!>, o temário simbólico, S, se duplica homologicamente

em um temário imaginário, I, cujo vértice é o falo. A mãe apresenta em primeira instância o Outro para a criança, mas também representa um primeiro outro com o

qual ela estabelece uma relação imaginária que lhe permite integrar, na imago do

corpo próprio, os elementos do corpo despedaçado. O lado MI do temário simbólico,

assim, superpõe-se ao lado a-a ' do temário imaginário, que, como vimos, corresponde ao eixo imaginário do Esquema L.

No Esquema R, a ' e a têm como matrizes, respectivamente, m, o moi, e i, a

imagem especular do eu. Ao longo de uma vida, as imagens vão se sucedendo a partir

de padrões que se repetem. As formas do eu e do outro, a e a, vão assim se

65 Ver a Seção 1 .2.

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deslocando na história de cada sujeito. Aqui, Lacan faz eco à constatação freudiana de

que "o caráter do eu é uma sedimentação de investimentos de objeto abandonados,

contém a história dessas escolhas de objeto" (Freud,1923:31). Nessa perspectiva

temporal, os pontos a ' e a passam a representar os suportes de dois segmentos de reta

que unem, respectivamente, m a I e i a M. No ponto extremo do segmento a, o outro

passa a corresponder ao Ideal do eu; enquanto que, no extremo do segmento a ', o moi

coincide com o eu ideal.

Mim! constitui então o campo da realidade. Seu contorno é feito pelo

simbólico, pela cadeia significante; seu tecido, sua consistência, é imaginário; e, como

uma tela, ele barra o real. O ponto de sustentação dessa estrutura quaternária é P, o Nome-do-Pai inscrito no Outro. Conforme Freud demonstrou, a realidade do sujeito

corresponde à realidade psíquica, ou seja, à fantasia. Para Lacan, em 196666, o campo

R, com sua estrutura RSI, será o lugar-tenente da fantasia, a qual se localiza no

Esquema R como um todo.

4.3 A FORACLUSÃO DO SUJEITO

Sobre o sujeito, tema desta tese, Lacan traz contribuições essenciais ao

trabalhar o Esquema R:

E ainda:

"O quarto termo é dado pelo sujeito em sua realidade, como tal foracluída

no sistema e só entrando sob o modo do morto no jogo dos significantes,

mas se tornando o sujeito verdadeiro à medida que esse jogo de

significantes vai fazê-lo significar" ( 1957- 1958-b:55 1).

"O sujeito por outro lado entra no jogo como morto, mas é como vivo que

irá jogá-lo ( ... ). Ele o fará servindo-se de um set de figuras imaginárias

( . . . )" (p.552).

Tendo já formalizado a foraclusão do Nome-do-Pai, Lacan propõe f·gora a

foraclusão do próprio sujeito. A meu ver, essa concepção antecipa a de uma

foraclusão generalizada, que ele irá desenvolver nos últimos anos de seu ensino67•

66 Retomarei a esse ponto na Seção 4.4.

67 Ver a Seção 6.2.

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Foracluída sua realidade, o sujeito se instaura na dimensão da verdade. Sua

questão é posta no simbólico e sua consistência é imaginária. O núcleo foracluído do

sujeito é real: o sujeito é resposta do real (Lacan, 1972: 1 5). De sua constituição

participam assim os três registros: o real, o imaginário e o simbólico.

Esse sujeito, que surge já morto, "se constitui como sujeito à morte"

(Lacan, 1 957-1 958-b:552). Ele vive no breve intervalo entre duas mortes. "A vida de

um homem é só o tempo de se contar 'um "'68.

4.4 O ESQUEMA R EM TRÊS DIMENSÕES

Em 1 966, Lacan faz uma leitura retrospectiva do Esquema R, que é anexada

como nota de rodapé ao texto de De uma Questão Preliminar. . . . À luz de

desenvolvimentos teóricos ulteriores, ele agora reconhece nesse esquema a estrutura

de um cross-cap. Sem me deter nos detalhes da topologia, seguirei sucintamente os

passos do pensamento lacaniano.

O cross-cap, ou plano projetivo, decompõe-se em uma banda de Moebius e um

disco. As letras m, M, i, I, diz Lacan, delimitam "o único corte válido sobre o

Esquema R (mi, MI)" (p.553), que revela uma banda de Moebius.

A banda de Moebius pode ser construída imprimindo-se uma semitorção ou, o

que vem a dar no mesmo, um número ímpar de semitorções, a uma faixa retangular e

colando-se suas extremidades. A ordem que Lacan atribui às letras do quadrilátero

Miml - m, M, i, I -é indicativa dessa semitorção que origina a estrutura e pela qual m

é unido a M, e i a I, de tal forma que um ponto fique no verso do outro mas

constituindo um único ponto.

Essa figura topológica, Lacan também a chama de contrabanda, para assinalar

seu caráter paradoxal e mesmo subversivo. A semitorção coloca em continuidade as

bordas mi e MI da faixa retangular, que passam a constituir uma borda única. A banda

também subverte a noção de direito e avesso, que podem ser definidos apenas

localmente, pois as duas faces são postas em continu;dade pela semitorção. A banda

de Moebius é assim uma superfície unilátera e de uma só borda.

68 Shakespeare. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1999, Ato V, Cena II.

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Uma outra conseqüência dessa semitorção essencial à estrutura é que, ao

contrário do que ocorre com uma banda cilíndrica - que não contém semitorções, ou

cujo número de semitorções é par -, a banda de Moebius não delimita um campo interior e um campo exterior. Para caracterizar a continuidade que ela estabelece entre

o dentro e o fora, Lacan cunhou o neologismo extimidade, que assinala a conjunção do que é mais exterior ao mais íntimo ao sujeito.

A extimidade participa da estrutura neurótica, é condição de possibilidade do

pensamento inconsciente69• A partir dessa continuidade de base, delimitam-se o dentro

e o fora, ilusões caras ao neurótico, que lhe permitem organizar e conhecer seu mundo. A concepção da extimidade está no cerne do pensamento psicanalítico, enquanto que as chamadas ciências humanas, como a psicologia e a sociologia, se fundam na distinção entre o interior e o exterior.

Quando se faz um corte longitudinal no centro da banda, ele acompanha sua

borda e vai desenhando uma figura que se assemelha a um oito. Esse é o oito interior da banda de Moebius, figura topológica trabalhada em momentos fundamentais da

obra de Lacan ( 1 964-b; l 972). Quando o corte se completa, a banda de Moebius é destruída. Como efeito deste, a semitorção original se desdobra em duas semitorções, com o que a superficie bilátera é restaurada.

Isso mostra de forma precisa, por um lado, que o corte revela a estrutura, a banda é o corte da banda (Lacan, 1 957- 1 958-b; 1 972); e, por outro, que ele a

transforma 7°. Para o pensamento topológico, não importam as medidas, que podem ser alteradas sem que a figura perca suas propriedades. No Esquema R em três dimensões, a banda de Moebius corresponde à faixa que, no esquema planificado, está em R. Essa faixa pode se estreitar até se reduzir ao contorno do campo R, ou seja, ao corte do oito

69 Ver Seção 3.3.

A relação entre os dois sistemas do aparelho psíquico, o Ics e o Pcs/Cs, segue o modelo de uma banda de Moebius. Freud inicialmente pensava a meta do tratamento psicanalítico como tornar consciente o inconsciente. Com as reformulações posteriores a 19 15, podemos dizer que ela :e mantém, mas como objetivo parcial, ou mesmo estratégico - a análise produz sentido para depois reduzi-lo ao não sentido -, não mais fundamental. Ora, Freud sempre deixou claro que não se tem acesso ao inconsciente em si, mas só pela via da tomada de consciência. Há uma relação de continuidade entre as duas instâncias, que se organizam segundo uma estrutura moebiana.

70 O corte muda a estrutura: é esse o efeito da interpretação do psicanàlista.

Para se apreender o pensamento topológico, que se afasta da intuição ordinária, é fundamental o fazer: nesse caso, o corte da banda.

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interior. Se, como vimos, o contorno do campo da realidade é a cadeia significante, o

oito interior pode ser assimilado ao sujeito do significante.

O corte da banda é real, é o sujeito. Eis, novamente, a concepção de um sujeito

cujo núcleo é real mas para cuja constituição é necessária uma annação simbólica e

imaginária, pois o corte mediano é impensável sem o suporte material da superficie da

banda. A partir da estruturação moebiana do campo da realidade, o Esquema R como

um todo pode ser concebido como um cross-cap. O cross-cap é uma estrutura topológica cuja imaginarização é impossível, à diferença da banda de Moebius que,

apesar dos paradoxos que engendra, pode ser construída. Uma banda cilíndrica pode

ser recoberta costurando-se um disco circular à sua borda. Mas, para se recobrir uma

banda de Moebius com um disco, este terá que se auto-atravessar, o que porá em

continuidade as duas faces, ínterna e externa, da superficie. Para tal, será necessário

que ele tenha uma linha de auto-atravessamento e um furo. Há assim, no cross-cap,

um furo que lhe é essencial e que Lacan identifica como o ponto <l>. O cross-câp é

uma organização do furo (Lacan,1961-1962). Se o sujeito está no campo R, o objeto a7 1 , que é o disco do cross-cap, está nos

campos S e I do esquema planificado. O Esquema R como um todo, assim,

corresponde à fantasia: i <> a.

4.5 O ESQUEMA I

O Esquema R é a solução neurótica. A psicose vai se caracterizar por um modo

distinto de articulação ao Outro. "A condição do sujeito S (neurose ou psicose)

depende do que se desenrola no Outro A", diz Lacan (1957-1958-b:549). A psicose é "uma circunstância da posição subjetiva" (p.557) em que se manifesta a carência do

significante do Nome-do-Pai. O Esquema I é o esquema da estabilização do delírio de Schreber Assim como

os precedentes, tampouco ele ..;erá trabalhado em detalhes. Para fazê-lo, precisaria

71 Na nota de rodapé de 1 966, já se trata do objeto pequeno a, real. O objeto a é wn conceito de extrema complexidade, o único que Lacan diz ter criado. A psicose problematiza ao extremo a relação entre o sujeito e o objeto. Esse objeto corresponde ao objeto freudiano da primeira experiência de satisfação (Freud, 1900; 1920), é fundamentalmente real e suas vestimentas imaginárias são o seio, as fezes, o olhar e a voz.

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entrar nos meandros do caso Schreber, o que equivaleria a uma outra tese. E minha

escolha, neste trabalho, é deixar a vez e a voz para psicóticos não tão ilustres quanto o

presidente da Corte de Apelação de Dresde.

Procederei, portanto, com o Esquema I como o fiz com os outros dois,

recorrendo ao caso Schreber apenas na medida do necessário para desenvolver meus

argumentos. Remeto o leitor que ainda não tenha se detido nesse caso ao texto

fulgurante das Memórias de um Doente dos Nervos ( 1 903) e à análise que Freud dele

empreendeu ( 1 9 1 1 [ 1 9 1 0]).

O caso Schreber constitui a análise do livro de um juiz alemão o qual, após ter

sido nomeado para o alto cargo de Presidente da Corte de Apelação de Dresde abriu

um surto, do qual conseguiu sair pela via da escrita. As Memórias de Schreber

constituem uma vasta construção interpretativa, uma reinvenção do mundo, em que a

escrita não apenas testemunha mas produz o estádio terminal da psicose (Lacan, 1 957-

1 958-b ). Pela escrita, Schreber sistematiza seu delírio e recria sua realidade,

construindo uma identidade nova, como mulher de Deus (Freud, 1 9 1 1 [ 1 9 1 0] :30). A

estabilização obtida por essa via absolutamente smgular foi eficaz a ponto de lhe

possibilitar conduzir com sucesso um processo judicial visando à sua alta e

permanecer nove anos ao abrigo da estrutura asilar.

A situação que desencadeia a psicose faz o sujeito se defrontar com a

foraclusão do Nome-do-Pai, Po. Toma-se agora evidente a ausência de inscrição, o

buraco na trama do Simbólico que até então fora possível contomar72.

Como efeito do desvelamento da foraclusão do Nome-do-Pai, revela-se a

carência fálica, ct>o.

Po ⇒ cl>o

E toda a cadeia significante - o quadrilátero Mimi do esquema R - será

convocada para contornar os buracos abertos pela foraclusão e pela carência fálica.

72 Não me proponho aqui responder à questão, sem dúvida relevante, acerca dos recursos de que um prépsicótico se utiliza para se situar no mundo. E nem poderia fazê-lo pois, nos casos em que me baseei para escrever meu trabalho, a psicose já tinha sido desencadeada quando do início do tratamento. Disponho apenas de algumas indicações de como esses sujeitos se sustentavam na existência antes do surto. Remeto o leitor interessado no tema ao artigo de Deutsch ( 1 942), caracterizado por uma fina capacidade de observação clínica, e à recente discussão em Arcachon

(Miller, 1 997).

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Para fazer o contorno de Po, a linha simbólica M-1 irá se deformar. Analogamente, a

linha imaginária m-i virá fazer o contorno de <l>o. Essa é a solução delirante.

Em linhas gerais, eis o Esquema I (Lacan,1957-1958-b:571):

Se o determinante da psicose é a foraclusão do Nome-do-Pai, não se pode reduzir seu processo a suas determinações simbólicas. Como contrapartida da foraclusão e em ressonância ao buraco aberto no simbólico, aparece no pólo

imaginário o furo correspondente à ausência da significação fálica.

Para esse sujeito que não se constitui sob a égide do falo, quando é abalada a

identificação, qualquer que ela seja, pela qual ele assumira o desejo da mãe

(Lacan,1957-1958-b), desencadeia-se a dissolução do temário imaginário.

A dissolução imaginária traz consigo a fragmentação do outro, da imagem do

semelhante. Ela vem atestar que toda unidade, toda integração é parcial e ilusória e

está sempre "em relação com a possibilidade de uma fragmentação, de um despedaçamento" (Lacan, 1955-1956: 113).

Os exemplos da fragmentação do outro proliferam ao longo do texto das

Memórias. Segundo seu relato, quando se inicia o chamado "período sagrado" (1903:82), Schreber passa a ser freqüentado por um número cada vez maior de almas

de mortos (p.70). Durante um certo tempo, a alma de seu perseguidor, Fleshsig, se dividiu em um grande número de partes de almas, de quarenta a sessenta (p.121); certa

vez, entraram na cabeça de Schreber, para aí encontrar seu fim, a alma de duzentos e

quarenta frades beneditinos (p. 70); havia noites em que as a�mas, na qualidade de

"homúnculos", despencavam às centenas de milhares em sua cabeça (p.87).

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-

A dissolução imaginária é correlativa à regressão tópica ao estádio do espelho.

Sem um terceiro termo que sustente a relação ao outro, a morte vem se colocar no centro da relação dual: se "a identidade {é} reduzida ao confronto com seu duplo psíquico", "a relação com o outro especular reduz-se aí a seu gume mortal"

(Lacan, 1957-1958-b:568) 73•

Data dessa fase uma fórmula que Schreber era obrigado a repetir: "eu sou um cadáver leproso que carrega um outro cadáver leproso" (p. l 06). Na identificação com o cadáver leproso, ponto extremo da regressão tópica ao estádio do espelho, vemos

emergir o objeto a como resto, dejeto.

Schreber dedica todo um capítulo de suas Memórias, intitulado Danos à

Integridade Física através de Milagres, à colisão do gozo com seu corpo. Podemos nele acompanhar como as diversas partes do corpo próprio perdem sua solidariedade e ganham independência, por ter sido desfeito o único corpo que existe para o sujeito,

que é o corpo da linguagem. Quando este se desfaz, a dimensão da imagem se

dissolve correlativamente e o que emerge é o objeto a como dejeto.

O delírio é uma interpretação que confere palavras à experiência inefável do

psicótico e assim localiza esse gozo que atravessa e desarticula seu corpo,

possibilitando uma ordenação a seu mundo.

O caminho de Schreber consiste em construir uma metáfora que faça função da

metáfora paterna faltante. Pelo delírio, ele se acredita o único homem que teria sobrevivido à catástrofe do fim do mundo e que, nesta condição, estaria fadado a

engendrar uma nova humanidade a partir de sua transformação em mulher e da cópula com Deus. A figura da mulher vem fazer suplência ao falo: "por não ter podido ser o

falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens" (Lacan,1957-1958-b:566). Assim, Schreber reinscreve a falta no Outro: a Deus, objeto

primordial, falta a Mulher. Ao final do processo da psicose, ele se coloca

explicitamente como aquele que confere uma significação ao mundo: "tudo o que

acontece se refere a mim" (1903:247).

73 Daniel testemunha o impasse a que a regressão tópica ao estádio do espelho pode conduzir um sujeito quando assevera, pouco depois de ter ultrapassado um período critico, que "sem a terapia e o remédio é matar ou morrer". A morte é aí evocada como último recurso para efetuar uma separação.

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Os novos limites da realidade de Schreber serão dados pelos significantes de

seu delírio. Aqui essa tese encontra uma de suas fronteiras, pois não é meu objetivo, já

o disse, trabalhar o caso Schreber. Quero apenas sublinhar que cabe ao psicótico contornar os buracos do simbólico e do imaginário e que na psicose, assim como na neurose, o campo da realidade é demarcado por significantes.

Schreber destina suas Memórias à esposa e às demais pessoas com as quais irá

conviver após sua alta, para que elas possam compreender suas idéias 74. Essa tentativa

de compartilhar, ao menos parcialmente, sua construção singular evidencia que "a relação ao outro como seu semelhante e mesmo uma relação tão elevada quanto a

amizade ( . . . ) conjugal são perfeitamente compatíveis com a relação fora-do-eixo ao

grande Outro" (Lacan, 1 957- 1958-b:574). O endereçamento específico à esposa, em a ', constitui a base sobre a qual se apóia o endereçamento, mais geral, em a, e,

portanto, toda a suplência do eixo imaginário a - a ' (Jimenez, S. e Pequeno, A., 1 998). A solução de Schreber revelou-se suficientemente eficaz para resistir aos

assaltos do gozo durante alguns anos, após os quais ele soçobrou na psicose. A invenção do psicótico, como sabemos, é mais frágil que a do neurótico. Isso é evidenciado, no Esquema I, pela abertura do campo da realidade reconstruída, Mim!,

em comparação à forma retangular que este campo assume no Esquema R.

Se uma das bases sobre a qual se assenta a constituição do Esquema I é a

transformação de Schreber em mulher, a outra é sua peculiar relação com Deus. Em circunstâncias normais, o Deus de Schreber não influi na vida dos homens.

Ele só toma conhecimento do que ocorre no mundo quando as almas destes se reintegram a ele após a morte. Foi assim que Deus adquiriu a linguagem, que não é, portanto, criação divina. Pelo distanciamento ele estaria protegendo a própria

74 Lacan assinala que o livro de Schreber é resultado de um desejo de reconhecimento: "o louco �ece à primeira vista distinguir-se por não ter necessidade de ser reconhecido. Mas essa suficiência que ele tem de seu próprio mundo; a autocompreensibilidade que parece caracterizá-lo não deixa de apresentar alguma contradição" (Lacan, 1955- 1956:90-9 1 ). Assim como Schreber, Daniel busca compartilhar o delírio.

Outro psicótico ilustre, Arthur Bispo do Rosário, parece ter conseguido pela via da arte uma certa ilusão de que seu delírio místico era compartilhado. Bispo exigia, de quem quisesse visitar os quartos que ocupava na Colônia Juliano Moreira e onde abrigava sua produção, que respondesse à pergunta acerca da cor de sua aura. Era como uma senha e, se um visitante não respondesse corretamente - a resposta era azul -, a ele seria negado o acesso.

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existência, que ficaria ameaçada caso seus raios fossem capturados em grande

quantidade no corpo de um só homem. No caso de Schreber, essa ocorrência, tendo

mobilizado o "instinto de conservação" de Deus ( 1 903 :55) e provocado assim o sem­

número de milagres operados sobre seu corpo, estaria na origem da catástrofe de sua

existência.

O Deus de Schreber não é infinito e eterno como o Deus dos neuróticos. É

finito e mortal. Ele é dotado de uma "onipotência limitada" (p.52): "o próprio Deus,

contudo, não era nem é o ser de perfeição absoluta que a maioria das religiões diz

ser" (p.54 ).

O Deus de Schreber não é o Deus da lei, mas o Deus do gozo. Em situações

normais, a instância que inscreve a lei em Deus é a Ordem do Mundo, "relação

legítima que subsiste entre Deus e a criação por ele chamada à vida" (p.8 1 ). Em

situações anormais como a que Schreber vivencia, a Ordem do Mundo barra o gozo

do Deus sem lei:

"Da luta, aparentemente tão desigual, entre um homem fraco e o próprio

Deus, saio vencedor, embora após amargos sofrimentos e privações,

porque a Ordem do Mundo está do meu lado" (p.8 1).

Cabe ao psicótico fazer a lei do Outro. A Ordem do Mundo, "construção

prodigiosa" (p.4 7) do delírio, desempenha essa função para Schreber.

No estágio final da construção do delírio, Deus fica na posição do outro de

Schreber. A relação entre os dois parceiros é, ao menos em parte, regulada pela

Ordem do Mundo. A metáfora delirante permite assim uma certa configuração dos

campos do sujeito e do outro 75•

O Esquema I é assim denominado porque, no estágio final da psicose de

Schreber, o Ideal do eu (I) assume o lugar do Outro. Devido à reconstrução do campo

da realidade pelo delírio e à percepção daí resultante de que ele não é o único homem

vivo, a cópula de Schreber com Deus é postergada para um futuro indeterminado,

75 A Ordem do Mundo não é propriamente simbólica, mas faz as. vezes dessa instância terceira que falta na psicose.

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assintótico (Freud,1911 [1910]; Lacan,1957-1958-b; Miller,1979). Isso nos conduz à

transformação topológica que se opera na passagem do Esquema R para o Esquema I.

O raciocínio matemático subjacente a esse desenvolvimento escapa ao escopo

deste trabalho. O que se segue é apenas um esboço.

Se o Esquema R é um plano projetivo, o Esquema I corresponde a um plano

hiperbólico (Darmon, 1990).

Como vimos, o plano projetivo ou cross-cap pode ser construído a partir de

uma banda de Moebius. A união dos pontos opostos de uma faixa retangular faz com

que eles fiquem identificados dois a dois -no Esquema R, m coincide com M e i, com

I. Colar um disco à banda de Moebius assim obtida equivale a identificar os pontos antipodais do disco, uma vez que, topologicamente, não existe diferença entre uma

faixa retangular e um disco: em ambos os casos, obtém-se um cross-cap.

No plano projetivo há um furo, um vazio central; ele se resume então à sua

superficie, à borda do disco. No plano hiperbólico, inversamente, desaparece o furo

central e ele se reduz ao centro, ao miolo. A borda do disco é excluída e, em · sua

vizinhança, os pontos convergem para o infinito. Assim, na passagem do plano

projetivo para o plano hiperbólico, perde-se a identificação dos pontos antipodais. M,

i, m e I são lançados ao infinito e as cordas MI e mi passam a constituir retas infinitas.

A passagem do plano projetivo para o hiperbólico modifica essencialmente a

relação do finito ao infinito. Nos termos da psicanálise, a invasão de um gozo infinito,

não coordenado ao falo, destrói o diagrama do esquema R. É esse o efeito da irrupção

do gozo na psicose 76•

Isso permite esclarecer porque o idiossincrático Deus de Schreber é

simultaneamente próximo e imperfeito. No plano projetivo, os pontos são os

representantes do infinito. O neurótico não tem contato direto com Deus, mas sim com

seus representantes -oráculos, profetas, ou sacerdotes. No plano hiperbólico dá-se a

invasão do infinito. Schreber convive com Deus, é ele que compartilha sua solidão

superpovoada de almas. ''Na neurose, Deus ex-siste; na psicose, Deus coexiste"

(Jimenez, 1998).

76 Aqui, faz-se necessária uma precisão. A psicanálise se apóia na matemática para construir os dois esquemas, mas dai não se pode deduzir que a estrutura do pré-psicótico seja o esquema R. A invasão de gozo destrói o modo, qualquer que tenha sido este, pelo qual o sujeito se sustentava antes do surto.

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No entanto, o infinito mesmo - a borda do disco, que está excluída - continua

inalcançável. Resta então a Schreber realizar o desejo num futuro assintótico. No Esquema I, as linhas MI e mi do Esquema R sofrem uma deformação e

passam a ser retas infinitas de um plano hiperbólico. O eixo do esquema é a reta

infinita mM, assíntota comum entre MI e mi, que lança a copulação divina para um

futuro remoto. Na passagem de um esquema para o outro, a estrutura unilátera da banda de

Moebius é rompida, configurando-se então uma superficie bilátera 77• Os pontos M e

m, que no Esquema R estavam na cadeia significante, isto é, em continuidade, passam para lados opostos do Esquema I e uma distância infinita se estabelece entre ambos.

M e m ficam então separados no espaço e no tempo. Entre o eu delirante e o outro divino, Lacan ( 1 957- 1 958-b:527) aponta a "divergência imaginária no espaço e no tempo" e "a convergência ideal de sua conjunção".

O Esquema I restabelece o trajeto do Esquema L, Saa 'A (Lacan, 1 957- 1 958-b ), que está na base também do Esquema R. No Esquema I, esse circuito é sustentado pontos i, M, m e I, que são as coordenadas fundamentais do sujeito (Darmon, 1 990). Isso me leva a formular a hipótese de que o Esquema L constitui a armação mínima do sujeito.

O Esquema R e o Esquema I senam assim as duas modalidades de

apresentação do Esquema L, caracterizando a neurose e a psicose, esta última pela

vertente da reconstrução delirante.

77 Daniel com suas lembranças e Fabrício com seus demônios dão ambos testemunho da reconstrução de um exterior absoluto, irredutível, em que o que está fora não é mais recuperável como dentro.

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5 .SUJEITO DO SIGNIFICANTE E SUJEITO DO GOZO

5 . 1 · O SUJEITO DO SIGNIFICANTE

Em A Subversão do Sujeito . . .. , Lacan define:

"um significante é aquilo que representa o sujeito para um outro significante. Esse significante será portanto o significante para o qual todos os outros significantes representam o sujeito: quer dizer, à falta desse significante, todos os outros não representariam nada" (Lacan, 1960:8 1 9).

Esse significante primeiro, originário, que se escreve S 1 , cai sob o recalque primário 78

• Isso cava uma falta na cadeia significante, S2, localizada em A, e ao

mesmo tempo constitui o Es79, em sua inefável e estúpida existência. Cria-se assim

um lugar simbólico para o sujeito, que é lançado ao Outro, em busca de significantes

que o representem para o significante primariamente recalcado: ça parle, isso fala. O Nome-do-Pai é o significante que faz a passagem de S 1 para S2, articulando­

os. Como vimos na seção em que trabalhamos o aparelho psíquico, é ele que organiza a cadeia significante no inconsciente.

Para que advenha o sujeito do significante, é necessário que o lugar do Outro

seja marcado por uma falta.

"O sujeito só se constitui ( . . . ) ao se subtrair {da bateria significante} e ao descompletá-la essencialmente para, ao mesmo tempo, dever se contar ali e não fazer função senão de falta" (Lacan, 1960:807-808).

À falta de um significante para o sujeito, o sujeito do significante se constitui como falta-a-ser. A falta se cava tendo como pano de fundo uma positividade, o ser.

78 A concepção de um núcleo primariamente recalcado, que estabelece wn ponto de fixação e exerce um efeito de atração sobre os pensamentos aos quais si associa, foi elaborada por Freud em seu artigo metapsicológico sobre o recalque ( 1 9 1 5-b ).

Em A Subversão do Sujeito ... , Lacan não recorre aos maternas S 1 e S2, mas remete o significante originalmente recalcado ao traço unário. Disso deduzimos sua escrita como S 1 • No Seminário 11, Lacan propõe S2 como o significante primariamente recalcado. Nesta tese, vamos nos ater à concepção que ele apresenta em seu escrito.

79 Mantenho aqui o termo alemão Es, Isso, devido à sua homofonia com o S de sujeito. Ver o Esquema L, na Seção 4. 1 .

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Na elaboração teórica de Lacan, penso que se pode remeter o Es, em sua

inefável e estúpida existência, a esse ser perdido na origem e que permanece o objeto

de uma busca. A busca do objeto que completaria o sujeito80 tem assim como alvo seu

próprio ser. O impossível reencontro do objeto restauraria uma condição de gozo

pleno: a dimensão do ser é também a do gozo8 1• Há portanto uma equivalência entre

essa vertente silenciosa do Es, que não pode se articular ao significante, o ser perdido .

e o objeto pequeno a. Esses termos não são sinônimos, mas cada um pode ser

remetido aos outros dois. Poderíamos dizer que eles são produtos da incansável

pesquisa de Lacan acerca do real.

Na neurose, o sujeito do significante estabelece com o simbólico uma relação

que implica seu ser. Em uma insondável decisão do ser82, pelo recalque primário de

S 1 , o Es se conecta à cadeia significante. A partir daí, o sujeito busca no simbólico

uma resposta para o enigma do gozo: o núcleo real do sujeito não cessa de não se

escrever; e a questão simbólica, "quem sou?"83, que se produz a partir do desejo do

Outro como "que queres?", pode então se formular a partir de A. Essa é a essência do

Esquema L.

S 1 , significante cuja falta descompleta o tesouro dos significantes em A,

constitui o furo do simbólico (1974-1975:14/01/1 975), só a partir do qual pode se

fazer o nó do sujeito84•

Em A Subversão do Sujeito. . . (1960), Lacan apresenta, como significantes da

falta do Outro, além de S1, o Nome-do-Pai, o falo e o Ideal do eu. Já nessa época,

S()t) tem um caráter dúplice, pois esses significantes demarcam a falta do Outro, sem

no entanto preenchê-la. A dimensão real de S()(), esboçada em A Subversão do

80 Trata-se do objeto pequeno a.

81 Nessa etapa de sua elaboração teórica, Lacan opõe os campos do significante e do gozo. O gozo é "um ser que aparece como que faltando no mar de nomes próprios" (Lacan, 1 960:8 1 9). Ver a Seção 3.3, referente ao nome próprio na psicose.

A palavra "inefável", no vernáculo, faz referência ao real e ao gozo, mesmo que. este não se presentiiique, aí, em sua dimensão que apenas a psicanálise permitiu descortinar. "Inefável" é o "que não pode se exprimir por palavras, indizível"; e é também "delicioso, inebriante" (Dicionário Caldas Aulete).

82 Reenvio o leitor à Seção 3.3, sobre o ponto de vista sincrônico da célula elementar do grafo do desejo.

83 Ver "O Esquema L". 84 Remeto o leitor ao próximo capítulo, no qual trato da topologia dos nós.

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Sujeito . . . , é explicitada a partir do Seminário 20: "S()() que outra coisa pode ser, senão

a impossibilidade de dizer toda a verdade?" ( 1972-1973 :87).

5 .2 O PAI REAL

Embora não tenha conferido um estatuto conceitua! à Verwerfang, Freud teve a

intuição de que haveria um mecanismo específico em ação nas psicoses. É assim que,

em As Neuropsicoses de Defesa, afirma que na confusão alucinatória "existe uma

modalidade defensiva mais enérgica e eficaz" (1894:59) do que na histeria ou na

neurose obsessiva, pois o eu rejeita (verwirt) tanto a representação que contradiz o

desejo quanto o afeto a ela ligado. Trinta anos depois ( 1924[ 1923 ]), ele se perguntará sobre a modalidade de defesa, análoga ao recalque, que opera na psicose. Mas Freud

não se apercebeu da vinculação existente entre ela e a função do Pai. É Lacan quem

irá estabelecê-la, ao construir o conceito de Nome-do-Pai e formalizar as estratégias

do sujeito diante da castração.

O Pai tem três vertentes - simbólica, real e imaginária. Na psicose, na ausência do Nome-do-Pai, ele só pode ser imaginário ou real85 •

Daniel e Fabrício apresentam suas versões do pai. O pai de Fabrício é fraco, sua vontade não prevalece, mas, de qualquer forma, é mais benévolo que sua mãe. Na

medida que temos algum acesso ao mundo em que ele vivia antes do surto, podemos

mesmo discernir uma suplência do imaginário pelo lado paterno: Fabrício exercia um

oficio que lhe veio pela linhagem do pai, na mesma instituição em que um de seus tios

paternos trabalhara. O pai de Daniel é igualmente ausente enquanto pai, mas tem mais

peso, um matiz negativo, é "um anti-pai". O exemplo mais impressionante da

pregnância do pai imaginário na psicose me foi fornecido por um paciente cujo caso

acompanhei em supervisão, que se referiu a seu "ex-pai", já falecido. A face real do pai, o Pai do gozo, é uma conseqüência inevitável das

elaborações de Lacan acerca do real. Ela está profundamente ancorada em Freud (1913;1930 [1929]), para qu imi a lei de proibição do incesto, ou seja, a cultura, repousa sobre o assassinato do pai da horda, que gozava de todas as mulheres. O pai da horda não é o Pai real, e sim um mito, mas, enquanto tal, é um nome para o real -

85 Talvez uma exceção se dê quando se constróem suplências particularmente eficazes, como no caso de Joyce, que, pela escrita, criou um pai e se criou como pai.

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no caso, o real do gozo do Pai. A exceção cria a regra, o Nome-do-Pai se assenta sobre

algo que lhe escapa, o Pai do gozo.

Quando do desencadeamento da psicose, dá-se a "irrupção de Um-pai como sem razão" (Lacan, 1 972:22): no caso de Fabrício, isso ocorre pela intromissão da esposa em sua relação dual, exclusiva, com a mãe; na história de Daniel, talvez possamos discerni-lo como sendo a ausência ela mesma: o abandono pela

companheira, a demissão do emprego. Quando o sujeito não mais dispõe de seus pontos de sustentação, sejam estes

bengalas imaginárias ou suplências86, abre-se o quadro psicótico e emerge o Pai do gozo. Dá-se então a dissolução da estrutura do sujeito anterior ao surto e este se defronta com a tarefa de se reconstituir como sujeito do gozo.

5 . 3 O SUJEITO DO GOZO

Ainda em A Subversão do Sujeito . . . , encontramos uma referência de Lacan ao "sujeito da psicose, aquele para o qual é suficiente esse Outro prévio" da bateria significante completa instalada em A ( 1 960:807).

Segundo Rabinovitch ( 1 998), a foraclusão incide sobre S 1 , abolindo-o. Meu ponto de vista é algo distinto do dela. A foraclusão incide primariamente sobre o Nome-do-Pai, cuja abolição não permite que S 1 se encadeie a S2, fazendo com que

86 Para fins de clareza, cabe uma nota acerca do uso que faço desses dois termos.

Lacan emprega a expressão "bengalas imaginárias", de forma pontual, no Seminário 3. Ela não é retomada em De uma Questão Preliminar . . . , embora esteja subjacente à afirmação de que o psicótico, no período anterior ao desencadamento, se sustentaria por uma identificação ao desejo da mãe. No quadro do pensamento de Lacan nesse período, essa identificação só pode ser pensada como imaginária. Trata-se de uma compensação imaginária para a ausência do Nome-do-Pai.

Na elaboração lacaniana da década de cinqüenta, as suplências - como a fobia de Hans (Freud, 1 909-a; Lacan, 1956- 1 957) - vêm suprir uma falha da função paterna. S ão, portanto, estruturas simbólicas.

No entanto, a partir da concepção do último Lacan de que "os Nomes do Pai é isso - o simbólico, o imaginário e o real" (Lacan, 1974- 1975 : 1 1 /03/1()75), as bengalas imaginárias podem também ser consideradas suplências. Pois as suplências agora vêm suprir, seja a carência ou a ausência da inscrição do Pai simbólico, seja a não existência de um significante do Outro sexo, e podem ser simbólicas, imaginárias, ou da ordem do Sinthoma (Ver Seção 6.2).

Neste trabalho, a justaposição e/ou contraposição desses dois termos devem ser lidas a partir da tensão que se estabelece entre o Lacan dos esquemas e o Lacan dos nós. A interpretação do termo "suplência" de modo a abranger um espectro mais amplo de fenômenos, embora não seja a única possível, parece-me a mais fecunda, por motivos derivados da clinica, uma vez que permite abordar as múltiplas vias pelas quais pode se encetar a recomposição de um sujeito.

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esse primeiro significante, para o qual todos os outros representariam o sujeito, fique

solto, não se constitua como tal. Em decorrência disso, não se cava uma falta no Outro

e o sujeito não faz para si um lugar simbólico. Não se enlaçando ao simbólico, o Es fica desconectado do Outro e, nessa medida, o psicótico não acredita que pela via do

significante possa encontrar uma resposta para o enigma do gozo.

Um analisando esquizofrênico pôde construir, em análise, um significante qu�

fizesse as vezes de S 1 • Ao final de uma sessão particularmente silenciosa, José assim

me anunciou que aquele era o dia de seu aniversário: "esse silêncio está fazendo trinta

e nove anos hoje". Acossado por um silêncio abissal que o lançava ao encontro do

gozo, a dificuldade de falar tinha se feito presente desde o início dessa análise, em que

as sessões quase que invariavelmente se iniciavam pela fórmula: "estou pensando no

que falar, nada me ocorre". No entanto, quando José se nomeia como "silêncio", já há

uma certa medida de separação em relação a esse gozo indizível que o destitui da

posição de sujeito (Pequeno, 1998-b ).

Rabinovitch (1998) diz também que a foraclusão do Nome-do-Pai toma

impossível a foraclusão do sujeito87 na psicose. A meu ver, a foraclusão do sujeito se

dá independentemente da estrutura, é transestrutural. Sem ela, seria mesmo impossível

se falar de sujeito na psicose88 •

Retomemos a afirmação de Lacan segundo a qual para o psicótico é suficiente

o Outro prévio. Daí se deriva uma importante conseqüência clínica. Sabemos que o

psicótico põe o analista na posição de outro, companheiro, testemunha. Sabemos

também que o analista corre o risco de resvalar para o lugar do Outro e, assim, ser

incluído no delírio. Mas de que Outro aí se trata? Certamente o analista não pode fazer

semblante do Outro que remete ao segundo andar do grafo, portador do enigma do

desejo, pois, para o psicótico, não há significante da falta do Outro. Mas penso que ele

deve, ao menos em alguns casos, apontar, do lugar do outro, para o Outro do primeiro

andar do grafo, o Outro prévio, tesouro dos significantes. Talvez assim ele possa

oferecer a esses analisandos a oportunidade de recompo'r, em maior ou menc r medida,

o tecido simbólico. A meu ver, isso se dá tanto no caso de Fabrício quanto no de

Daniel. Os monstros de Fabrício foram claramente construídos sob transferência; as

87 Pela qual o sujeito surge foracluído no jogo significante (ver "O Esquema L"). 88 R . � 1 . da etomare1 a essa questão na parte cone us1va tese.

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lembranças de Daniel são parte de um processo de cura que, na paranóia, pode ocorrer

sem a intervenção do analista mas que, em seu caso, se alicerça na transferência. Essas

duas modalidades de construções constituem exemplos de uma recomposição das

falhas significantes do Outro. Da passagem de Lacan acima citada, cabe também ressaltar a expressão:

sujeito da psicose. Em 1960, este é pensado como o sujeito que não se subtrai da bateria significante, não cava uma falta no Outro. Em 1966, já imerso na tematização

do real, Lacan irá contrapor, ao sujeito do significante na neurose, o sujeito do gozo na

psicose.

Na psicose, o inconsciente está a céu aberto. Por isso, e pela genialidade de Schreber, Lacan pôde sublinhar, em sua Apresentação da tradução francesa das

Memórias, a afinidade existente entre o texto deste paranóico ilustre e o pensamento

de Freud: "o texto de Schreber é um grande texto freudiano, não porque Freud o

esclareça, e sim porque ele traz à luz a pertinência das categorias que Freud forjou, para outros objetos sem dúvida" - ou seja, para a neurose (1966-b:6). Graças às

categorias freudianas, Lacan pôde construir o conceito de sujeito, que se verifica tanto

na neurose quanto na psicose. Retomemos por um instante o sujeito do significante. Ele é o produto de uma

divisão da qual resulta um resto irredutível, o objeto a, cujo encontro, se fosse possível, devolveria ao sujeito seu ser, perdido na origem.

Na nota de rodapé do Esquema R, acerca da construção da realidade pelo sujeito, Lacan diz que "o campo da realidade ( ... ) só se sustenta pela extração do

objeto a, que no entanto lhe dá seu enquadre" (Lacan,1957-1958:554). Analisando

essa frase, Miller (1983) assinala que se o objeto é extraído do campo da realidade, o

sujeito advém como falta-a-ser nesse mesmo lugar de onde o objeto foi extraído. O

sujeito, que é um buraco no simbólico, é um objeto no real. De um ponto de vista

como do outro, o sujeito é real, isto é, ex-sistente (Silvestre, 1985). O sujeito da psicose é, em primeira i.nstância, sujeito de uma escolha

originária: não inscrever a lei dos significantes, o Nome-do-Pai. Como efeito dela, ele terá de se haver com o retomo do gozo no real. Na neurose, o objeto perdido é

buscado pela via do significante; na psicose ele retoma no real.

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Como pensar esse ponto difícil da teoria e da clínica? Na psicose, não ocorre o

recalque primário de S 1 • Em decorrência disso, tampouco se verifica a extração do

objeto a. No entanto, as bengalas imaginárias e as suplências permitem, em maior ou

menor medida, barrar o objeto. Este emerge de forma pontual em fenômenos como a alucinação verbal ou, então, faz-se presente de forma maciça em momentos como os

que Lacan denomina, em Schreber, a morte do sujeito 89•

Em sua análise das Memórias de Schreber, Freud propõe, como determinante

da paranóia, uma abolição que, com Lacan, só pode ser pensada no registro simbólico:

"Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada

para o exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que

aquilo que foi internamente abolido retorna desde fora" (Freud, 1 9 1 1

[ 1 9 1 0] :7 1) .

Essa frase de Freud será retomada por Lacan, no Seminário 3, como: "o que é

rejeitado da ordem simbólica, no sentido da Verwe,fung, reaparece no real" (p.2 1 ). E,

a partir de uma leitura retroativa que leva em conta os ensinamentos posteriores de

Lacan, pode ser repensada: "o que é foracluído do simbólico como Nome-do-Pai

retorna no real como gozo do Outro" (Miller, 1 983-c: 1 89).

Se o objeto a é parte da estrutura do sujeito, daí resulta que este possa se localizar, em a, como objeto. No Seminário 11 , Lacan afirma que, na esquizofrenia, o sujeito é a alucinação verbal. Nesse ponto, ele mais uma vez segue Freud ( 19 17 ( 1 9 1 5]), para quem a alucinação é a via que toma o retorno da realidade rechaçada na

psicose e, portanto, constitui uma tentativa de cura. Ora, o que retorna na alucinação é

o objeto voz. Enquanto na neurose o sujeito emerge como significação fálica (S=-<1>)9º,

no fenômeno psicótico ele coincide com o objeto (1 = a). Sublinho a expressão:

fenômeno psicótico. Pois, mesmo que o objeto não seja extraído do campo da

realidade, o psicótico dispõe de recursos para barrá-lo.

A alucinação pode operar como tentativa de cura, enxertando significantes na

expenência inominável do gozo. Um outro recurso é a construção delirante.

89 Ver a próxima seção. 90 Ver a apresentação do Esquema R, na Seção 4.4.

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O delírio simultaneamente presentifica o gozo e o barra, ligando-o a palavras.

Ele é uma construção do sujeito, impregnada de gozo do Outro, mas que vem conferir

uma significação que pode fazer suplência à significação fálica faltante.

A concepção psicanalítica do sujeito não é alheia "ao laço que para Schreber,

com o nome de Flechsig, coloca-o em posição de objeto de uma espécie de

erotomania mortificante" (Lacan, 1966-b:9). Também Daniel começa a organizar o_

campo do sujeito e o campo do Outro, ao se descobrir mundialmente conhecido por um nome que é uma injúria. Na paranóia, o sujeito localiza o gozo no lugar do Outro

e, assim, constitui esse Outro.

Acerca de sua paixão pela irmã, Daniel confessa: "eu fico refém dessa história". Essa declaração ilustra com rigor aquilo que, a meu ver, é o sujeito do gozo: por um lado, Daniel é tomado por pensamentos relativos à sua irmã, que o atormentam

e ocupam, em maior ou menor grau, seu cotidiano; por outro, sua vida depende dessa

história, é esta que o constitui, é a partir dela que pode construir para si um futuro. Meses mais parte, ele leva à frente essa idéia: o amor pela irmã é impossível, mas tudo

o que ele quer fazer de sua vida - trabalhar, namorar - é por causa dela. Penso que

essa passagem de uma posição que, em um sentido amplo, poderia ser dita de per­seguição - a lembrança de sua irmã o acompanha em todos os seus passos - para uma

função de causa de desejo é fruto do trabalho analítico. O sujeito do gozo é aquele que, de uma posição de objeto, terá de se haver com

o retomo do gozo no real. O delírio é uma das estratégias, mas não a única, para a

produção do sujeito do gozo. Essa tentativa também se verifica, embora com pouco sucesso, no caso de Fabrício.

5 .4 A MORTE DO SUJEITO NA PSICOSE

Na elaboração delirante de Schreber pode ser discernido um percurso, no qual,

pelo próprio trabalho de delírio, vai-se operando um deslocamento da posição do

sujeito em relação a ele.

A primeira indicação do que será construído como a metáfora delirante de

Schreber é encontrada na frase que emerge quando do desencadeamento da psicose -"como seria belo ser uma mulher no momento do coito" (Lacan,1957-1958-b:566).

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Segundo o próprio Schreber, ela só não lhe provocou a mais violenta indignação por

ter ocorrido entre o sono e o despertar.

"Schreber parecia sustentar seu papel de homem e ser qualquer um, como

todo o mundo. A virilidade significa certamente alguma coisa para ele,

pois é o objeto de seus mais vivos protestos quando da irrupção do delírio,

que de saída se apresenta sob a forma de uma questão sobre seu sexo, um

apelo que lhe vem de fora" (Lacan, 1 955-1 956:286).

Freud e Lacan conferem a essa frase o estatuto de uma fantasia. Ela constitui,

nessa época, uma "solução prematura" (Lacan,1957-1958-b:556) e corresponde à

questão que, na psicose, se põe sozinha9 1• No entanto, ela aponta uma resposta,

assinalando o caminho que a reconstrução delirante irá tomar.

Na primeira fase da longa internação que motivou a redação das Memórias, Schreber tinha como parceiro de seu delírio Fleshsig, o psiquiatra que dele tratara durante o primeiro surto e em cuja clínica ele estava então internado. Schreber estava

certo de que ele encabeçava uma conspiração cujo objetivo seria usá-lo como

prostituta feminina, destruir seu entendimento e, finalmente, deixá-lo largado. Como parceiro, o "pequeno Fleshsig" (Schreber,1985:348) - como Schreber a

ele se referia no período inicial do surto - não possibilitava uma construção que

aplacasse o gozo, estabilizando o delírio. Mais tarde, Schreber tem visões em que seu psiquiatra se apresentava como o "Deus Fleshsig" (p.98). Talvez possamos reconhecer

nisso o elo verbal intermediário da série que leva de Fleshsig a Deus.

A colocação de Deus como interlocutor representou de início um acirramento

do conflito, mas tomou possível a estabilização do delírio. Deus passou a ocupar o

lugar do significante do objeto primordial e foi esse um dos fatores que fizeram com

que Schreber se reconciliasse com a emasculação como destino.

Segundo Freud, o que propiciou essa passagem foi a condição enaltecida de mulher de Deus. Lacan argumenta que, ao atribuir à megalomania um papel de�erminante, Freud estaria se contradizendo e incorrendo no mesmo equívoco que criticara nos psiquiatras, ou seja, priorizando o imaginário em detrimento do

91 Eis, na íntegra, o texto de Lacan: "estamos certos de que os neuróticos se puseram uma questão. Os psicóticos, não é tão certo. A resposta talvez lhes tenha vindo antes da questão - é uma hipótese. Ou então a questão se pôs sozinha - não é impensável" (Lacan, 1955-1956:227).

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--,

simbólico. A Freud teria escapado a resposta a essa questão por não haver ainda

escrito a Introdução ao Narcisismo, para a qual a análise desse caso de paranóia

prepara o caminho. A resposta que Lacan dá a essa questão tem, a meu ver, a dimensão de um

enigma: o que teria conduzido Schreber à reconciliação foi que, "no intervalo, Q

sujeito estava morto" (Lacan, 1957- 1 958:567, grifo do autor). Entre o início do surto e a reconciliação (Schreber, 1 903 : 1 76), transcorreram

cerca de dois anos. Nesse intervalo, a morte do sujeito teria propiciado a inversão da

posição de revolta com a qual Schreber reagira ao pensamento de que "seria belo ser

uma mulher no momento do coito". Para fundar essa noção de uma morte do sujeito em Schreber, Lacan se apóia

no texto das Memórias:

"Lembro-me de que por volta de meados de março de 1 894, quando a relação com forças sobrenaturais já tinha atingido certa intensidade, me veio às mãos um jornal no qual se podia ler algo como a notícia da minha morte; tomei esse evento como uma advertência de que eu não deveria mais pensar em retornar à sociedade humana" (Schreber, 1 903 :97).

Em março de 1 894, segundo o laudo do médico legista, Schreber ainda estaria

atravessando um período marcado por um quadro de estupor alucinatório, que antecedeu o início de seu trabalho de reconstrução pelo delírio. Ou seja, pela escrita ele estaria, a posteriori, tematizando algo que teria ocorrido em uma época em que havia quase que perdido o acesso à sua condição de falante (p. 1 29, nota 59; p.346). A redação das Memórias testemunha uma profunda dissolução subjetiva, bem como a

reconstrução da dimensão do sujeito.

Em Schreber, a morte do sujeito é uma ameaça nunca descartada e que por

vezes tem uma emergência pontual. Lacan diz, acerca do milagre dos urros - que escapavam de Schreber a qualquer momento e à sua revelia, desde q1:1e Deus dele se

afastasse para uma distância infinita (p. 1 99) - que "o desamparo que {ele} trairia já não tem mais nada a ver com algum sujeito" ( 1 966-b:7).

Schreber não conseguirá escapar à morte subjetiva: alguns anos após sua reconstrução heróica, é internado em um estado gravíssimo que rapidamente o leva à

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demenciação (Carone,1985). Em Schreber, a morte do sujeito certamente antecedeu a

morte biológica.

A morte do sujeito está em ressonância com outros significantes de Schreber: o

assassinato de almas (Schreber,1903:48), o fim do mundo (p.88). Mas, se Schreber e

Lacan lhe conferem uma especificidade, isso deve ser tomado ao pé da - letra: deve-se

buscar o valor próprio desse termo, que o distingue dos demais.

Uma primeira indicação de uma resposta consiste em que Lacan confere à

morte do sujeito uma positividade.

Em sua análise do caso Schreber, Freud cita apenas parcialmente a seguinte

passagem das Memórias, que considero crucial:

"Em tomo de 15 de fevereiro de 1 894 sobreveio mais um colapso nervoso, que marca uma etapa importante em minha vida; foi quando minha esposa, que até então passava diariamente algumas horas comigo ( . . . ) fez uma viagem de quatro dias para a casa de seu pai, em Berlim. ( . . } Foi particulannente decisiva para o meu colapso mental uma ocasião em que, numa única noite, tive uma insólita quantidade de poluções ( cerca de meia dúzia).

A partir de então surgiram os primeiros sinais de uma relação com forças sobrenaturais, em particular uma conexão nervosa que o professor Fleshsig estabeleceu comigo, no sentido de que falava com meus nervos sem estar presente em pessoa. A partir desta época fiquei também com a impressão de que o professor Fleshsig não tinha boas intenções a meu respeito" (p.66-67).

Segundo Freud, o número elevado de poluções testemunha um avanço da

libido homossexual, possibilitado pela ausência da mulher. Baseando-se no ponto de

vista econômico, Freud estaria vislumbrando um dado de estrutura: a esposa de Schreber teria funcionado como bengala imaginária, sustentando seu marido em uma

posição viril. Com referência a esse mesmo episódio, Miller (1979) comenta que

Schreber estaria então se despedindo do gozo fálico92.

92 Ver também Jimenez e Pequeno, 1998.

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Em seu escrito sobre a psicose, Lacan joga com os conceitos de Jung, para

quem o animus seria o princípio masculino do ser falante e a anima, o princípio

feminino, e com os elementos do Esquema L: "porque retirem-no daí { o Outro de seu lugar A}, o homem não pode nem mais se sustentar em sua posição de Narciso. A

anima, como por efeito de um elástico, retoma sobre o animus e o animus sobre o

animal" (Lacan, 1957-1958-b:55 l ).

Nessa passagem, que prenuncia o que Lacan irá desenvolver com a topologia

dos nós, ele compara a desamarração que se dá na psicose com o que acontece quando

um elástico muito estirado se solta e volta à posição inicial. Quando se desvela a

foraclusão do Nome-do-Pai, desfaz-se a dimensão do Outro simbólico e o temário imaginário se dissolve; a regressão tópica ao estádio do espelho acarreta a colisão dos

dois pólos do eixo imaginário, a e a '. O sujeito perde, então, sua sustentação

quaternária.

Podemos assim pensar a morte do sujeito como a dissolução do Esquema L -

que, como vimos, constitui sua armação mínima93 -, que é concomitante à

emergência, no real, de um gozo inominável.

A morte do sujeito constitui uma ocorrência específica no caso Schreber, ou é

passível de generalização para outros casos de psicose?

Alguns comentadores do texto de Lacan se mostraram fisgados por esse seu dito enigmático e respondem pela segunda alternativa. Como o sujeito tem múltiplas

facetas, cada autor pensou sua morte, na psicose, a partir de uma, ou algumas, delas.

Bruno (1992) confere uma interpretação precisa à morte do sujeito. Na

paranóia, ela equivale à morte do nome. Na notícia de jornal que Schreber teria lido

estaria escrito: "Schreber morreu". Mas, se na paranóia morre o nome - argumenta Bruno -, isso significa que a

dimensão do nome existe, que o nome se inscreveu, à diferença do que ocorre na esq:lizofrenia. Concordo com ele. No entanto, a clínica nos demo 1stra que, na

paranóia, o nome é uma frágil construção. O nome próprio é sustentado pelo Nome­do-Pai.

93 Ver o final do Capítulo 4, sobre os esquemas lacaníanos.

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À morte do sujeito como morte do nome pode se seguir uma renomeação94. É

essa a via que toma Darmon, que também reconhece uma positividade na experiência de morte subjetiva de Schreber: "seu mundo psicótico verdadeiramente desabou; só

lhe resta aceitar esse lugar de ' carcaça'95 que as vozes lhe designam. E é aceitando essa verdadeira morte que ele pode se engajar no processo que fará dele a Mulher-de­

Deus" ( 1 990: 1 89). Se a morte do sujeito é a morte do nome, Luder - termo que Schreber teria

escutado do próprio Deus - equivale a um batismo, a uma renomeação. Darmon assinala um importante deslocamento, uma construção: ver-se como "carcaça" é se defrontar com o ser do sujeito, que é um rebotalho (Lacan, 1 973 :9); mas é pela via desse significante que Schreber poderá vir a se construir como a Mulher, que faz

suplência do falo. Klotz ( 1 988) pensa a morte do sujeito a partir da afirmação lacaniana de que "o

sujeito ( ... ) como efeito de significação é resposta do real" ( 1 972: 1 5)96. O

desencadeamento da psicose esboroa a suplência que fazia as vezes do vetor P ➔ q, do

Esquema R, no final do qual o sujeito emerge como efeito de significação. Assim, para Klotz, a morte do sujeito se dá pela "extinção do efeito de significação" (p.54). É gerado um vazio no lugar da significação, que vai ser preenchido pelo pleno de sentido da certeza. Para esse autor, subjetivar a psicose equivale a fabricar uma significação a partir do fenômeno elementar.

Segundo Miller, se o sujeito da psicose é aquele que resiste à falta a ser (Miller, 1 987, 1 78), a morte do sujeito na psicose é decorrente da não extração do

objeto a do campo da realidade ( 1 983).

De acordo com nossa concepção, o sujeito deve ser pensado nas três vertentes:

real, simbólica e imaginária. Reduzir-se a um puro objeto de gozo do Outro não constitui nenhuma posição subjetiva. No extremo dessa invasão por um gozo anômalo e deslocalizado, o sujeito é destituído de sua condição. A morte do sujeito marca,

94 Isso teria ocorrido no caso de Daniel. Ver relato clínico. 95 Como vimos, Luder (Schreber, 1 903 : 143) pode ser traduzido seja como "carcaça", seja como

"puta". 96 Retomaremos essa afirmação posteriormente ("Para não Concluir").

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assim, sua emergência como objeto; mas também possibilita sua "metamorfose"

(Lacan, 1 957- 1 958-b:544): a reconciliação com sua nova condição de sujeito do gozo.

Formulo, então, a hipótese de que o sujeito do gozo é o que se reconstrói após

a morte do sujeito.

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6. A TOPOLOGIA DOS NÓS

6 . 1 O NÓ BORROMEANO

Desde seu primeiro seminário Lacan apresenta, como fundamento da

psicanálise, os três registros que tecem a experiência humana: "sentimo-nos sempre

horrivelmente entravados porque distinguimos mal o imaginário, o simbólico e o real"

(Lacan, 1 953- 1 954: 1 O 1 ).

Em sua elaboração teórica, Lacan irá enfocar sucessivamente cada um dos

registros até, ao final, dar-se conta de que eles estão ligados borromeanamente. Eis,

em suas próprias palavras, o relato desse percurso:

"Comecei pelo imaginário e em seguida precisei mastigar bastante essa

história do simbólico, com toda essa referência lingüística na qual não

encontrei afinal tudo aquilo que me teria servido. E depois esse famoso

real que acabei por apresentar para vocês sob a forma mesma do nó"

(Lacan, 1 974- 1 975 : 14/0 1/ 1 975).

A partir dessa sua última formulação, os três registros passam a ser

considerados equivalentes, interdependentes cada um dos outros e dependentes da

articulação do nó. Como veremos, ela veio conferir uma flexibilidade maior à

operação diagnóstica e à própria clínica.

Mas penso que essa concepção, produto do gênio de Lacan ao longo de

décadas de sua pesquisa sobre o real, ainda está em processo de elaboração pela

comunidade analítica, que dela pode derivar uma clareza nova e novos efeitos para a

psicanálise enquanto práxis. Eu mesma só posso falar do ponto ao qual cheguei em

meu próprio percurso, sabendo que esta é uma tentativa de leitura, dentre outras

possíveis.

O trabalho com a topologia dos nós vai permitir a Lacan explicitar, ainda mais

claramente, que para o advento do sujeito é necessária uma armação real, simbólica e

imaginária. O nó é agora o suporte do sujeito, para cuja constituição concorrem os três

registros que o compõem.

O nó borromeano é impropriamente chamado de nó, pois na verdade é uma

cadeia, ou seja, é formado por elos distintos. Caracteriza-se pela propriedade segundo

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a qual, se um elo se desprende do nó, os outros também se soltam. Isso ocorre porque

nenhum dos elos passa pelo centro do outro, pelo furo do outro, mas a amarração é

dada pelo próprio nó. Daí se depreende que a propriedade borromeana pode se

verificar para um nó cujo número de elos seja igual ou superior a três. O nó

borromeano não é encontrado na natureza, mas sim no brazão dos Borromeus, uma

família que viveu em Milão durante o Renascimento e cujos membros mais ilustres .

foram, portanto, contemporâneos de Descartes e Galileu. Isso nos leva de volta ao

período histórico em que foram criadas as condições de possibilidade para o advento

do sujeito moderno.

O nó borromeano irá enlaçar os três registros heterogêneos: o real - R -,

caracterizado pela ex-sistência, o imaginário - I -, pela consistência e o simbólico -

S -, pelo furo. I

Logo na pnme1ra lição de RSI, Lacan se pergunta o que é um ponto.

Contrariando o pensamento matemático tradicional, conclui que um ponto se forma,

não pelo encontro de duas retas, que poderiam facilmente deslizar uma sobre a outra,

mas de três retas infinitas. Elas constituem uma das representações do nó borromeano,

desde que tenham um ponto em comum, pois cada uma pode ser pensada como um

círculo de raio infinito (Lacan,1974;1974-1975:10/12/1974). O nó borromeano é o

suporte do ponto; e o ponto assim determinado é o sujeito.

Parece-me que a concepção do sujeito como emergência pontual não é nova;

novo é o recurso ao nó borromeano para mostrá-la. Na década de cinqüenta Lacan já

conceituara que o sujeito emerge no intervalo entre significantes. O sujeito assim

produzido necessita de toda umá armação que o delimite e o constitua: e esta é

concebida, seja como ou o Esquema L ou o Grafo do Desejo, seja, agora, como a

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armação RSI do nó borromeano97. Em RSI, assim Lacan redefine o sujeito como

função do nó borromeano:

"Parto da tese de que o sujeito é determinado pela figura em questão { do nó} .

Não que este seja seu duplo. Mas é pelos acunhamentos do nó, daquilo que no nó determina pontos triplos, é pelo apertamento do nó que o sujeito se condiciona ( 1 8/03/1 975)98 ."

O sujeito é movido por uma causa que "cause toujours" (2 1 /0 1 / 1975)

expressão francesa de sentido dúplice, pois causer é simultaneamente "causar" e "falar". Essa causa é o objeto a, que se escreve no centro do nó.

Do sujeito assim determinado Lacan nos diz, recorrendo a um jogo de palavras

intraduzível para o português, que "il vit de / 'être (= il vide / 'être)" (Lacan, 1975:32) ­"ele vive do ser {= ele esvazia o ser)". O sujeito vive do ser, à condição de esvaziá-lo. Essa formulação é particularmente importante para minha tese, pois_ o ser é da

dimensão do real, do gozo99. Esvaziar o ser é um dos trabalhos com que o psicótico se

defronta. Um momento crucial da análise de Daniel demonstra-o claramente. Sempre

que ele tenta parar de tomar a medicação, verifica-se uma invasão de gozo, o que

exige o recrudescimento do trabalho do delírio. Este passa a ocupar um espaç�

exclusivo em sua vida: as "lembranças" afluem aos borbotões, ao preço de um enorme

sofrimento para o sujeito.

Em uma dessas ocasiões, Daniel me telefona, pedindo-me uma sessão extra. O

delírio tinha ganho um impulso vertiginoso, passando a incluir os integrantes de um grupo do qual ele participara. Estes tinham-lhe feito tanto mal que o castigo seria a

morte. Daniel não se incomodaria em acabar sua vida na prisão.

O pedido do sujeito era, claramente, que eu barrasse a passagem ao ato, e foi o que fiz, ao lhe dizer que não foi para isso que ele veio procurar uma analista. A aposta

97 O sujeito que emerge na alucinação verbal é também uma ocorrência pont.1al. Mas está fora da cadeia, "como uma pontuação sem texto" (Lacanl 954-b:388). Esse é o sujeito do gozo. Remeto o leitor à Seção 5.3.

98 "Acunhamento", termo que escolhi para traduzir coincement é, provavelmente, um galicismo. A palavra "acunhado" significa apertado, firmado _por cu�as. Traduzi serrage por apertamento: ação e efeito de apertar, como ocorre no apertamento da corda de um instrumento musical. Mmha fonte foi o Dicionário Caldas Aulete.

99 Ver, no capítulo anterior, a seção referente ao sujeito do significante.

110

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--,

da psicanálise é de que cada um possa fazer alguma coisa com sua própria história,

seja ela qual for.

Daniel decide então voltar a tomar o remédio. Mas - prossegue - aí vai ter que

viver dopado. Ou seja, "não vai viver uma vida plena, e sim a vida possível". Pergunto-lhe se isso não seria próprio da condição humana. Escuta-me atentamente e diz ter gostado de minha observação - que o insere

em uma dimensão compartilhável do humano. É evidente que uma vida plena está vedada a qualquer sujeito,

independentemente de sua estrutura. Para Daniel, essa fantasia responde a um incremento do gozo do Outro e é vivida como suprema ameaça. Diante dela ele traz, como solução, "matar ou morrer".

6 .2 TRÊS OU QUATRO ELOS?

Nas primeiras lições de RSI, Lacan propõe o nó borromeano de três elos como suporte do sujeito. Comparando suas idéias com as do criador da psicanálise, afirma que Freud teria tido "uma suspeita" do real, do imaginário e do simbólico

( 1 4/01 / 1 975). Mas, não dispondo da concepção do nó borromeano, ele teria feito da realidade psíquica um quarto elo que enlaça os três registros heterogêneos. A forma mais comum de constituição da realidade psíquica é o complexo de Édipo, cujo núcleo é o Nome-do-Pai. Assim, para Freud, a realidade psíquica, isto é, o Édipo, enlaça os três registros.

Lacan então irá propor que, para Freud, o nó borromeano teria quatro elos - os três registros enlaçados pela realidade psíquica -, enquanto que, para ele, tem três.

No seminário seguinte, O Sinthoma, encontramos Lacan convertido à solução

freudiana. Talvez tenha sido isso que o levou a afirmar, em sua última conferência: "sejam lacanianos, se quiserem; quanto a mim, sou freudiano" ( 1 98 1 :30).

O caminho dessa conversão vai sendo traçado ao longo das lições de RSI e passa pelo questionamento . ta solução "lacaniana", da eficácia do nó de três:

"Colocarei ( . . . ) esse ano a questão de saber se, quanto àquilo de que se trata, o

enlace do imaginário, do simbólico e do real, é necessária essa função

1 1 1

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suplementar, em suma, de um toro a mais 100, este cuja consistência deve ser

referida à função do Nome-do-Pai" ( 1 1/02/75).

Uma série de razões conduziu Lacan a concluir quanto à necessidade do quarto

elo para a constituição do nó borromeano. Destacarei quatro delas.

1 ) Um motivo fundamental consiste em que, para além da foraclusão do

Nome-do-Pai na psicose, passa a ganhar peso a noção de uma foraclusão generalizada,

que operaria para todos os sujeitos. No Seminário 23, Lacan alude a uma modalidade

de foraclusão mais radical do que a foraclusão do Nome-do-Pai:

"Alguém me perguntou se haveria outras foraclusões além daquela que resulta da foraclusão do Nome-do-Pai. É bem certo que a foraclusão, isso tem algo de mais radical. Porque o Nome-do-Pai é algo, no final das contas, leve" ( 1 6/03/1 976).

A meu ver, o conceito de foraclusão generalizada vem sendo gradualmente

estabelecido, mas essa noção já está prenunciada desde os primeiros anos do ensino de

Lacan. No texto De uma questão preliminar .. . , ele afirmara que o sujeito está

foracluído em sua realidade 1 0 1• Em Encore, desenvolve a tese de que não existe o

significante do Outro sexo, d'A mulher -o que levou Miller (1933-b) a propor que

sobre ele incidiria uma foraclusão que não é específica da psicose, mas opera para

todo sujeito (Miller, 1 993-b ).

A relação entre os sexos só pode ser concebida como uma relação entre

significantes pois, na medida que o sujeito está alijado da natureza, só a partir do

simbólico pode-se apreender o que é ser homem ou ser mulher. A foraclusão do

significante d' A mulher faz com que não exista A mulher e sim uma mulher, ou as

mulheres tomadas uma a uma. Se não existe o significante d' A mulher, a relação

sexual não existe (Lacan, 1 972- 1 973). A relação que se estabelece entre homens e

mulheres é, portanto, não complementar, mas suplementar, engendrando-se assim o mal-estar decorrente da busca de uma completude impossível. A meu ver, não foi por

acaso que em Encore, seminário em que Lacan ãdentra a questão do feminino, ele

tenha dado início à sua longa cogitação sobre os nós.

100 Cada elo do nó é wn toro. Um toro, que topologicamente é descrito como uma esfera com alça, pode ser imaginarizado como uma bóia, uma rosquinha, ou ainda uma rodinha de barbante.

101 Ver a Seção 2 do Capítulo 4, sobre os esquemas lacanianos.

112

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r

Se a foraclusão do Nome-do-Pai instaura um buraco na trama significante, a

não existência da relação sexual não é um buraco, é um puro "não há" (Miller, 1 997). No tocante à foraclusão do Nome-do-Pai, como vimos, toda uma discussão se estabelece acerca de se ela corresponderia a uma não inscrição ou a uma abolição; mas quanto à foraclusão generalizada, essa questão não se coloca: trata-se aí, claramente, da não inscrição de algo que não poderia de forma alguma se inscrever, já que não. existe. Na perspectiva inaugurada pela foraclusão generalizada, o próprio Nome-do­Pai é também uma suplência - ele é a suplência neurótica, que se estabelece pela via do Complexo de Édipo.

Como se pode apreender, no nó, a foraclusão generalizada? Já em RSI, Lacan afirmara que o ponto de partida do nó de quatro é a "disjunção, concebida como originária, do simbólico, do imaginário e do real" ( 1 1 /02/75). Essa disjunção

originária equivale à foraclusão generalizada. Não se pode afirmar que uma seja o efeito da outra, pois, para Lacan, "o nó não é modelo, é suporte. Ele não é a realidade,

é o real" ( 1 5/04/75). Na década de cinqüenta, em seu seminário sobre as psicoses, Lacan dissera que

"não se toma louco quem quer" ( 1 955- 1 956:24). Vinte anos depois, em O Sinthoma,

reformula essa concepção: "ser louco não é um privilégio" (Lacan, 1 975-1976: 1 7 /2/76). A psicose é agora a estrutura de base, pois o nó borromeano de três elos é um ideal que não se verifica para os sujeitos. A psicose, assim como a neurose, responde à falha de estrutura que é a foraclusão generalizada.

Haveria em Freud algum conceito que permitiria vislumbrar a foraclusão generalizada? Como vimos na seção referente ao ponto de vista sincrônico, pelo juízo de atribuição primitivo o que é vivido como desprazeroso é expulso e passa a constituir um exterior hostil; no mesmo passo, é introjetado aquilo que traz prazer sob a forma de um primeiro significante.

Esse passo se dá sob a ação do eu prazer purificado. No entanto, ele não é

inicial, mas secundário, pois, em um primeiro momento lógico, teria e:ústido um eu

realidade inicial, um Rea/-Ich (Freud, 1 9 1 5-a; 1 930; Lacan, 1 964-b), que, em sua busca de homeostase, "distinguia o interno e o externo por meio de um critério objetivo confiável" (Freud, 1 9 1 5-a: 1 30): a possibilidade, ou não, de afastar o estímulo mediante a ação motora. Com a constituição do eu-prazer, o eu-real é perdido.

1 1 3

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Já há, portanto, uma perda no plano do eu que é anterior à constituição do eu­

prazer e à própria perda do objeto. A perda de sua natureza originária ocorre para todo

sujeito e, a partir dela, constituem-se os três registros heterogêneos. Talvez a perda do eu real corresponda, em Freud, ao que virá a ser a foraclusão generalizada para

Lacan 1 02.

2) Outro forte argumento que levou Lacan a aceitar a solução freudiana que

inicialmente rejeitara, passando do três para o quatro, consiste em que, para que se

produza o sujeito, é necessário não apenas que haja nó, mas que os três registros

possam ser discernidos corno real, imaginário e simbólico. E isso não é simples, pois

se os registros são heterogêneos, na realidade cada elo é idêntico a qualquer outro, na medida que é dotado de ex-sistência, furo e consistência.

Furo

tênc i a

Assim, para poder ser discernidos, os elos que compõem o nó borrorneano devem ser marcados, seja por cores diferentes, seja por letras que distinguem os três registros. A hipótese de um quarto elo não faz mais do que explicitar o quarto

elemento que é constituído pela cor, pelas letras ou pela própria articulação do nó: "de

três consistências não se sabe jamais qual é real. É por isso que é necessário que elas sejam quatro" (Lacan, 197 4-197 5: 15/04/7 5).

3) No nó de três, estabelece-se urna perfeita simetria entre os elos. Se os

numerarmos, poderemos facilmente verificar que ( 1 , 2 e 3) são intercambiáveis, ou seja, qualquer rodinha poderá ser levada para o lugar de qualquer outra. Fica assim

impossível discernir os registros. Mas, se numerarmos os elos de uma cadeia borrorneana tetrádica,

verificaremos uma afinidade entre o primeiro e o segundo elo, por um lado, e entre o

102 Essa foi uma sugestão de Stella Jirnenez, em seu seminário sobre os nós.

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terceiro e o quarto, por outro. Ou seja, ( 1 e 2) são facilmente intercambiáveis, o mesmo ocorrendo com (3 e 4); sem a menor dificuldade, poderemos também trocar as

posições de ( 1 e 2) e (3 e 4), obtendo o arranjo (3,4, 1 ,2). No entanto, para separar 1 e 2, colocando o primeiro no lugar do terceiro, será necessário exercer um esforço. E

verificaremos, então, que o 1 ficará ligado ao 2 pelos elos 3 e 4, que permanecem

solidários, formando um "falso buraco" - falso porque um segmento de reta que passe

entre eles não estará passando pelo furo de um, nem do outro (Lacan, 1974-

1975:13/05/1975; Darmon; Vappereau).

2 1

( 1 e 2) e (3 e 4) constituem, assim, dois pares. O nó borromeano resulta,

portanto, do acoplamento de dois falsos buracos, o primeiro constituído pelo real e o

imaginário, e o segundo, pelo simbólico e o Sinthoma. Essas propriedades só podem

ser entendidas pela manipulação do nó, recomendação que Lacan não cessa de

reiterar.

4) Finalmente, se o nó de quatro é planificado e apresentado em sua forma

''tradicional", uma dissimetria se produz. Pois, conforme mostra Schejtrnan ( 1997), o

quarto elo cruzará com um dos outros três em quatro pontos e com os dois outros elos em apenas dois pontos. Na figura que se segue, o quarto elo é o Sinthoma, que "especifica o inconsciente" (Lacan: 1 975-1976,16/ 12/75), mediante o estabelecimento

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de um enlace privilegiado com o simbólico103. A partir daí, os outros dois termos

podem ser discernidos, pois, se um deles é o imaginário, a ele necessariamente ex­

siste o real; ou, inversamente, se um deles é o real, só poderá ser apreendido na

medida que for imaginarizado 1 04•

) ,: , ,

I

R .. . ---L

Na neurose, a realidade psíquica, isto é, o complexo de Édipo, constitui o

quarto elo do sintoma. Lacan irá propor para ele, em lugar da designação usual,

symptôme, a grafia arcaica, sinthome, que permite alguns jogos translingüísticos,

fazendo alusão ao pecado original, à falta pela qual cada sujeito se enlaça à estrutura.

O Sinthoma105 (I,) divide o sujeito, tomando-o distinto de si mesmo. A partir desse

simbólico reduplicado, os três elos se diferenciam. Assim, o Sinthoma funda a

distinção dos três registros: o 4 cria o 3, o 2 e o 1 .

Essa série de considerações levou Lacan a propor que um quarto elo é

necessário para que o nó borromeano se constitua como tal: "sem o quarto, nada é ( . . . )

colocado em evidência do que verdadeiramente é o nó borromeano" (Lacan, 1 974-

1975: 1 3/05/75). Agora, Lacan estabelece o quatro como o número mínimo a partir do

103 Ao nomear o simbólico, o Sinthoma especifica o inconsciente. Em RSI, Lacan considera que a nomeação não fica necessariamente restrita ao simbólico, podendo ser também imaginária ou real. Comparando a sua triade de registros com a triade freudiana, também heterogênea, da inibição, do sintoma e da angústia, propõe que a nomeação do imaginário é a inibição; a nomeação do real, a angústia; e a nomeação do simbólico, o sintoma. No seminário seguinte, Lacan se limita a trabalhar com o sintoma. Esse trajeto é por demais complexo e ultrapassa o objetivo deste trabalho. Aqui, apenas o indico em suas linhas mais gerais. Para quem desejar aprofundá-lo, remeto aos seminários de Lacan ou, de forma condensada, ao in .:igo de Schejtman ( 1 997).

104 Podemos observar que uma irrupção do real sempre provoca, como resposta, a proliferação de fenômenos imaginários. Isso pode se verificar mesmo em processos considerados normais, como o são a adolescência e o luto. Essa é uma evidência clínica da afinidade existente entre o real e o imaginário.

105 Alguns autores mantêm, em português, a mesma grafia para symptôme e sinthome. Já outros traduzem este último de modo a preservar, na língua portuguesa, uma diferença ao menos ortográfica entre os dois termos. Neste trabalho, opto por "Sinthoma".

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qual pode se verificar a propriedade borromeana. Ou seja, se o nó de três elos dos

matemáticos for levado para a psicanálise e referido à estrutura do sujeito, a

propriedade borromeana se perde.

6.3 O NÓ TREVO E A PARANÓIA

Como vimos, o nó borromeano enlaça os três registros heterogêneos; mas há,

no entanto, uma homogeneidade de base entre eles. Sem o quarto elo, uma

continuidade se estabelece entre os outros três. Na medida que são indiferenciados, eles se prolongam um no outro. Assim, a cadeia borromeana de três elos se transforma

em um nó no sentido estrito, no qual é clara a continuidade e o prolongamento de um registro no outro e um único elo configura os três campos. Esse é o nó trevo.

O nó trevo caracteriza a paranóia. Durante o surto, os três elos que compõem o

nó se rompem e os pontos-sujeito se desfazem 106. No processo de reconstrução pelo

delírio, as pontas rompidas são emendadas, configurando um nó trevo 1 07 :

"Quando um sujeito enlaça a três o imaginário, o simbólico e o real, é

apenas a sua continuidade que lhe dá suporte. O imaginário, o simbólico e

o real são uma só e mesma consistência. É nisso que consiste a psicose

paranóica" (Lacan, 1975- 1976: 16/ 12/75).

Lacan reconhece que se recusara a publicar sua tese de doutorado - Da Psicose

Paranóica em sua Relação com a Personalidade - porque seu ingresso na via

psicanalítica o fizera perceber que a paranóia não tem nenhuma relação com a

personalidade, visto que são a mesma coisa. J '. nos primeiros anos de seu ensino,

106 Como procuramos mostrar no relato clínico, o caso de Fabrício, que em suas próprias palavras vive wn surto contínuo, demonstra essa contínua desamarração dos três registros.

107 Não cabe, neste trabalho, detalhar como se dá a formação do nó trevo a partir da abertura do nó borromeano. Para os que se dispõem a aprofundar esses meandros do pensamento topológico, remeto aos livros de Vappereau.

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,....,

.....,

Lacan percebera a estrutura paranóica do eu e do conhecimento. No Seminário 3,

apontara o caráter fundamentalmente delirante do eu e seu duplo, o eu ideal. Como

qualquer ficção, a personalidade, o eu e o conhecimento estabelecem uma

continuidade entre real, simbólico e imaginário: o eu, instância de desconhecimento,

denega a existência dos três registros diferenciados.

Para fins de clareza, repetirei alguns dos argumentos já expostos neste capítulo e que foram desenvolvidos nestes seminários dificeis que são RSI e O Sinthoma.

O nó é o suporte do sujeito. Para Lacan, como vimos, acaba prevalecendo a

hipótese da disjunção originária do real, do simbólico e do imaginário. Esta é a

foraclusão generalizada: os três elos têm a tendência a se soltar, a não ser que um quarto impeça que isso ocorra.

Uma das possibilidades de recomposição é o nó trevo, que constitui tanto a personalidade quanto a paranóia, pois em ambas ocorre a tentativa de dar uma continuidade aos três registros heterogêneos. A diferença consiste em que, na paranóia

desencadeada, terá ocorrido o desprendimento dos elos; enquanto que o neurótico que

quer se ver como personalidade está às voltas com o mal-estar causado pela heterogeneidade dos registros.

Se psicose paranóica é o nó trevo, a metáfora delirante, que permite sua

estabilização, teria também essa estrutura? Nesse ponto, como em tantos outros, as

concepções dos estudiosos da topologia divergem. Assim, segundo Vappereau108, o

Esquema I corresponde ao nó trevo e, para Skriabine (1993), ao nó borromeano de quatro elos - ou seja, para este autor não haveria uma diferença de estrutura entre uma suplência bem sucedida em uma psicose já desencadeada e o Nome-do-Pai neurótico.

Retomarei a esse ponto no capítulo conclusivo da tese.

6 . 4 O SUJEITO E O NÓ

Tendo diferenciado os tipos de nós e os avatares da nodulação, Lacan é levado a se perguntar sobre a.� relações que se estabelecem entre os nós e o sujei o. Qual é, ou

quais são os nós que fundam o sujeito? "Se o nó a três se enlaça borromeanamente,

será que isso é suficiente para suportar uma ordem do sujeito?" (Lacan,1975-

108 Vappereau, J.-M. Conferências ministradas na Escola Letra Freudiana em novembro­dezembro de 1 994.

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1 976: 1 6/12/75). A primeira resposta a essa questão parece ser negativa, já que o nó de

três tende a se transformar em nó trevo, perdendo assim a propriedade borromeana 1 09.

Lacan indaga: "numa cadeia borromeana, não nos parece que o mínimo é sempre

constituído por um nó de quatro?" (16/12/75).

Mas, a seguir, ele considera que não há apenas uma espécie de sujeito, cuja

estrutura seria dada pelo nó borromeano: "Se o nó a três é o suporte de toda espécie de .

sujeito, como interrogá-lo? Como interrogá-lo de modo a que se trate de um sujeito?"

(16/12/75).

Lacan introduz essas considerações sob a forma de perguntas, às quais não

responde. Outras questões poderiam também ser formuladas.

Se a estrutura da neurose é borromeana e o suporte do sujeito na paranóia é o nó trevo, que é não borromeano, a propriedade borromeana fundaria a diferença entre

a neurose e a psicose?

Quais seriam as outras formas de amarração na psicose que não o nó trevo 1 1º?

Haveria a possibilidade de se obter uma estrutura análoga à neurose na psicose, mesmo o quarto elo não sendo o Pai edípico? Em outras palavras, seria possível

encontrar o nó borromeano de quatro em alguns casos de psicose? No episódio

pontual do poema que Daniel compôs, a resposta parece ser afirmativa. Mas será que

essa construção pode se sustentar? E sob que condições? 1 1 1

No quadro dessa nova formulação de Lacan, a metáfora delirante pode ser

ainda considerada uma suplência da metáfora paterna, ou ambas constituem

suplências distintas, construídas a partir da foraclusão generalizada? Em outras

palavras, nessa etapa do pensamento de Lacan, qual é o grau de descontinuidade ou de

continuidade entre a neurose e a psicose?

No caso de se verificar a primeira dessas alternativas, a metáfora delirante

seria uma suplência em segundo grau, uma suplência de suplência. Isso introduz uma

diferença, que explicaria a maior fragilidade das suplências na psicose. Nesta tese,

109 Esse argumento é anterior ao estabelecimento do nó trevo como a estrutura da psicose paranóica.

1 10 O caso particular do lapso de nó de Joyce e da solução que ele encontrou, pela escrita, não será considerado neste trabalho. ?ara sua abordagem, remeto ao nosso artigo Joyce, o Sinthoma (Jimenez e Pequeno 1995), do qual algumas considerações mais gerais foram incluídas neste capítulo da tese.

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trabalho ora com uma dessas perspectivas, ora com a outra; a meu ver, ainda não se

encontrou a resposta para essa questão.

6 . 5 A CHAMADA SEGUNDA CLÍNICA LACANIANA

Uma conseqüência da abordagem da clínica pela topologia dos nós é uma inversão de perspectiva concernente à relação entre a neurose e a psicose. O Nome­

do-Pai visto como suplência está na origem de uma paranóia, mas de uma paranóia compartilhada. Os neuróticos compartilham o delírio edípico, a religião do Pai. Freud

já dizia que as religiões são "delírios de massas" ( 1 930 [ 1 929] :8 1 ). É por isso que Lacan considera a realidade psíquica engendrada pelo Édipo como a realidade religiosa ( 1 974- 1 975 : 1 1 /02/75). Nessa etapa do pensamento lacaniano, todos deliram. A neurose não é mais a norma, mas um subconjunto da psicose.

Essa nova perspectiva coloca uma questão metodológica importante: do ponto de vista clínico e teórico, quais serão as conseqüências de se pensar tanto a neurose quanto a psicose como respostas à foraclusão generalizada? Aqui se dá uma ruptura com qualquer possibilidade de um pensamento classificatório e se instaura uma série, uma diagonal, que vai da neurose à psicose, e que permite superar a concepção deficitária da psicose que é uma das possibilidades de interpretação do Lacan dos anos

cinqüenta, que concebe o Esquema I como uma deformação do Esquema R 1 1 2 •

Um debate atual em psicanálise opõe a clínica estrutural descontinuísta à

chamada segunda clínica lacaniana, ou clínica continuísta, que se funda na topologia dos nós. Essa oposição, no entanto, não pode ser tomada de forma absoluta.

Vejamos: a clínica dos anos cinqüenta, no que diz respeito ao diagnóstico diferencial entre a neurose e a psicose, é claramente uma clínica descontinuísta, na

medida que ela tem como núcleo um único elemento, o Nome-do-Pai. Isso determina uma lógica binária, em que a distinção das duas categorias se escreve: Nome-do-Pai,

sim ou não. Essa classificação binária sempre deixara, entre os pontos extremos, uma

pluralidade de casos que não se conseguia pôr facilmente de um lado ou de outro e

1 1 1 Retomarei essas considerações em "Para não Concluir". 1 12 s t t t - é . .

1 . ' 1 us en o, no entan o, que essa nao a uruca e1tura poss1ve .

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que, na modernidade, estão se tomando ocorrências mais e mais freqüentes 1 1 3• Se não

quisermos abrir a porta dos fundos para categorias banidas do diagnóstico

psicanalítico por sua falta de rigor, como é o caso dos chamados pacientes border/ine,

cabe repensar a clínica.

O recurso à teoria dos nós outorga ao Nome-do-Pai um novo estatuto. Até

então, Lacan pensara que o Nome-do-Pai corresponderia a uma certa norma -a norma

neurótica da estrutura. Agora isso é relativizado e o Nome-do-Pai passa a ser visto

como um ponto de basta, uma suplência entre outras possíveis. O Nome-do-Pai é uma

solução específica para a não existência da relação sexual, para a foraclusão

generalizada. O Nome-do-Pai é um Sinthoma (Lacan, 1 975-1 976): ele é o mais banal dos Sinthomas, embora constitua o mais eficaz instrumento para a estabilização

(Miller, 1997). A metáfora delirante vem em suplência à metáfora paterna, mas esta já

é, ela própria, uma suplência. Além delas, há uma pluralidade de suplências possíveis,

que apenas a observação dos sujeitos em sua singularidade permitirá discernir e a

pesquisa clínica construir, caso a caso. Segundo Cottet,

" . . . trata-se de extrair as conseqüências de uma clínica das suplências, que se presta a uma tal variedade que o conceito de foraclusão e seus efeitos, por si sós, não permitiriam deduzir. Sob essa perspectiva será possível admitir que tipos de sintomas referidos a uma mesma causa constituem tipos clínicos muito diferentes uns dos outros, dos quais o arquétipo 'do' psicótico, utilizado de maneira abusiva, certamente não dá conta. Esse genérico, com efeito, induz urna homogeneidade que se encontra bem longe das categorias clínicas" (Cottet, 1 999:242).

Embora o Nome-do-Pai seja agora também considerado uma suplência, isso

não nos autoriza a pensar que uma continuidade absoluta se estabelece entre a neurose

e a psicose: a clínica continuísta não abole a descontinuidade entre a neurose e a

psicose, apenas a relativiza. E desde o início de seu ensino Lacan já apontava algumas

continuidades - por exemplo, ao afirmar que "nada se parece tanto com uma

sintomatologia neurótica do que uma sintomatologia pré-psicótica" (Lacan, 1 955-

1 956:2 1 6; Zenoni, 1998).

1 13 Ver, por exemplo, os dezoito casos clínicos que foram discutidos na Conversação de Arcachon (Miller: 1997).

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Uma contribuição relevante é trazida por Zenoni. Esse autor assinala que a

continuidade se estabelece não no plano da estrutura, mas no dos fenômenos. Mais

precisamente, ela se dá, não entre os tipos clínicos, mas quanto ao laço que se

estabelece entre fenômeno e estrutura. Uma clínica continuísta não opõe um fenômeno

a outro, mas duas lógicas do mesmo fenômeno. "Mais a similitude, a proximidade, a

continuidade entre os fenômenos é percebida ( ... ), mais uma construção descontinuísta

de sua lógica subjetiva é exigida" (Zenoni, 1998:2). Nessa perspectiva, não se poderia

mais falar de fenômenos patognomônicos 1 1 4• O que nela estaria sendo ultrapassado é o

ponto de vista lacaniano dos anos cinqüenta, de que existiria uma relação direta,

biunívoca, entre fenômeno e estrutura.

O argumento de Miller em Arcachon é interessante. Ele compara a

continuidade e a descontinuidade que podem ser pensadas na clínica às considerações

de Leibniz acerca das relações que se estabelecem entre o repouso e o movimento.

Assim como para o filósofo o repouso é um caso limite do movimento, a

descontinuidade seria um caso limite da continuidade. Ou seja, "tomando-se os pontos

extremos há oposição, mas ao mesmo tempo há passagem contínua de um a outro"

(Miller, 1997:279). Os relatos clínicos que constituem o coração de minha tese situam-se em um

dos pontos extremos desse continuum. Esses sujeitos certamente não teriam precisado

aguardar a clínica borromeana para receber um diagnóstico rigoroso. Mas, sem

dúvida, ela trouxe contribuições significativas para a interpretação e a condução

desses casos.

Essas observações permitem esclarecer quais as contribuições que a segunda

clínica traz para a discussão de casos de psicose, mesmo daqueles cujo diagnóstico

não oferece dificuldades. A meu ver, a clínica borromeana permite apreender de forma

mais flexível e matizada a singularidade de uma posição subjetiva e, assim, fazer

avançar a concepção do sujeito com o qual operamos em psicanálise.

1 14 Penso, no entanto, que a ocorrência de certos fenômenos permanece fortemente indicativa da psicose, como é o caso das perturbações do nome próprio que abordo nesta tese.

1 22

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QUA RTA P A RTE -

PARA NÃO CONCLUIR

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Este é o momento em que devo explicitar um dos pressupostos que norteou a

realização de minha tese.

Um debate se estabelece na atualidade acerca de qual seria o ponto de vista

mais profícuo para a leitura de Lacan. Pode-se trabalhar sua obra buscando nela

estabelecer constantes e recorrências, ou pontos de corte e escansão. Neste momento

de meu percurso e para os objetivos que pretendi atingir em minha tese, opto pela . primeira alternativa, embora sem esquecer que a disjunção entre ambas não é absoluta.

Essa é uma tomada de posição metodológica, que poderá se inverter no futuro.

Considerando que o real é o que retoma sempre no mesmo lugar (Lacan, 1954-

1955; l974) e que não cessa de não se escrever (Lacan, 1972-1973); e que o real é o Sinthoma de Lacan, assim como o inconsciente teria sido o de Freud (Lacan,1975-

1976), constato nesta tese que a questão do real, abordada por múltiplos e distintos

caminhos, sustentou o percurso de Lacan ao longo de toda a sua vida. Atualmente verifica-se também uma tendência, por parte de algumas correntes

da psicanálise lacaniana, a desvalorizar o Esquema L, por ser este contemporâneo das

afirmações de Lacan acerca da intersubjetividade. A meu ver, estas podem ser objeto

de uma interpretação mais matizada. Não poderei desenvolver aqui esse ponto, mas me parece claro que o percurso de Lacan em seus seminários equivale à travessia que

se dá em uma análise, em que o Outro vai perdendo progressivamente a consistência. Assim, de início Lacan afirma que a relação intersubjetiva se dá entre dois sujeitos

verdadeiros, S e A. Ele estaria, com isso, marcando sua oposição ao excesso de imaginário que, na época, tirava da psicanálise seu gume cortante e buscando

estabelecer a prevalência do simbólico. Ou seja, Lacan contrapõe, à relação egóica,

entre égaux - a e a ' - [Terceira Parte, 4.1] 1 1 5, uma relação em que o sujeito recebe do

Outro sua própria mensagem de forma invertida. Essa "intersubjetividade" que acaba por implicar um só sujeito - o sujeito do inconsciente, do significante - seria assim

um prenúncio do que Lacan, só depois, irá denominar extimidade. Penso que o Esquema L não se red11z a um esquema da intersubjetividade e

tem ainda muito a ensinar para o psicanalista. Não é à toa que seu nome provoca, nos

alunos pouco versados na teoria, um estranhamento: por que Lacan o teria assim

1 15 No decorrer desta conclusão, indicarei entre colchetes os capítulos nos quais exponho o fragmento teórico ao qual estarei retornando a cada momento.

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denominado, quando sua forma é a de um Z? Seria L de Lacan? Se o Esquema L é o esquema da colocação da questão do sujeito, que questão crucial de Lacan estaria nele sendo posta? A questão do real?

No capítulo sobre os esquemas lacanianos, propus que o Esquema L teria as

vertentes simbólica, imaginária e, por antecipação, real; propus, também, que ele constituiria a armação mínima do sujeito.

Se assim for, poderemos fazer corresponder o sujeito tal como Lacan o

estabelece no Esquema L ao sujeito que emerge na cultura a partir de Descartes

[Primeira Parte, 2]. A meu ver, essa é uma decorrência inelidível da afirmação de Lacan segundo a qual o sujeito da psicanálise é o sujeito cartesiano.

O Es, em sua inefável e estúpida existência, corresponde à vertente real do

Esquema L; o cogito em seu primeiro momento constitui a via de acesso de Descartes

ao real. Descartes efetua, a seguir, a passagem do cogito para a res cogitans: eu · sou

uma coisa que pensa, isso é, "que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente" [Primeira Parte, 2]. O Es se conecta ao tesouro dos significantes localizado em A: · ça pense, isso pensa os mais

diversos pensamentos. A verdade destes, desde que eles sejam claros e distintos, é garantida por Deus, que fica no lugar do grande Outro.

"Para Descartes, no cogito inicial ( . .. ) o que visa o 'eu penso' no que ele bascula para o 'eu sou' é um real - mas o verdadeiro fica de tal modo de fora que é preciso que Descartes em seguida se assegure, de quê? - senão de um Outro que não seja enganador" (Lacan, 1964-b:37, grifos meus).

É a existência desse Deus não enganador que permite a Descartes provar a união da mente ao imaginário do corpo. Constitui-se a ' - e também o semelhante, a,

pois o corpo do homem, à diferença do dos animais, n�ca é pura máquina, por estar unido a uma alma.

Não teria sido assim por acaso que, após ter trabalhado, no Capítulo IV do Seminário 3, o Esquema L na neurose e sua desconstrução na psicose, Lacan aborda,

na lição seguinte - De um Deus que não enga_na e de um que engana - a relação ao

Outro nessas duas estruturas clínicas. O Deus que não engana, que sustenta o

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encaminhamento de Descartes, é o Deus do neurótico. Como vimos, sua existência

funda a possibilidade tanto da ciência quanto da psicanálise.

Conforme antecipei nessa mesma seção [nota de rodapé nº 6], podemos

aproximar o momento evanescente do cogito à concepção freudiana de um umbigo do

sonho. Nas palavras de Freud,

E ainda:

"mesmo nos sonhos mais bem interpretados é preciso com freqüência

deixar um lugar em sombras, porque na interpretação se observa que dali

sai um emaranhado de pensamentos que não se deixam desenredar ( ... ).

Esse, então, é o umbigo do sonho, o lugar em que ele penetra no não

conhecido'' (Freud, 1900,5 19).

"Todo sonho tem pelo menos um lugar no qual é insondável, um umbigo

no qual se conecta com o não conhecido" (p. 132).

Esse ponto insondável, incognoscível, é onde aparece, no sonho, o recalque primário, S()C), furo do simbólico. Como vimos, nesse ponto em que falta o significante para falar do ser, o sujeito mergulha suas raízes no real [Terceira Parte, 5-

a]. Se Es é o umbigo do Esquema L, o cogito corresponde ao umbigo do

enunciado cartesiano.

A concepção que norteou minha leitura da obra de Lacan permite cernir

algumas recorrências. Uma delas constitui um /eitmotif de minha tese. O sujeito da psicanálise é o sujeito cartesiano, cuja estrutura é dada pelo Esquema L. Essa mesma

estrutura é abordada por Lacan em outros momentos de sua obra, mediante

instrumentos teóricos que se renovam. Dentre eles, detive-me, nesta tese, na consideração da banda de Moebius e dos nós.

A meu ver, o impossível do real do sujeito tem a contrapartida necessária do simbólico e do imaginário. O necessário se revela contingente durante a travessia que

se efetua em uma análise 1 1 6; e a psicose revela essa contingência a céu aberto. Isso fez

1 16 Lacan retoma as modalidades aristotélicas - o necessário, o impossível, o contingente e o possível - sob uma perspectiva temporal, introduzindo a oposição entre "cessar" e "não cessar". Assim,

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com que, no decorrer da elaboração teórica de Lacan, tenha se produzido um

deslocamento no tocante aos delineamentos simbólicos e imaginários do sujeito, bem

como à sua própria concepção do real.

O sujeito é real, simbólico e imaginário. Ele ex-siste, é puro corte. Mas, para que este se efetue, é necessária uma consistência a ser cortada; e, além disso, ele deve

ser produzido segundo determinadas leis. O corte topológico não é qualquer. É um corte que revela a estrutura, no

próprio ato em que a transforma. Por exemplo, o corte topológico da banda de Moebius é o corte longitudinal. Um corte transversal viria destruir a estrutura, sem

revelá-la - como pode ocorrer como efeito de um tipo de interpretação a que Freud denomina "selvagem" ( 191 O).

A banda de Moebius é real, simbólica e imaginária. Mas, além disso, como

vimos [Terceira Parte, Capítulo 6], para Lacan a topologia não é um modelo do real,

mas o próprio real. Sob esse prisma, a banda de Moebius é real. A banda de Moebius é

real ou é real, simbólica e imaginária? Lacan sustenta, simultaneamente, ambas as possibilidades.

Da mesma forma, o nó é real, mas é também real, simbólico e imaginário. Esse é o sujeito da psicanálise. Como a banda de Moebius e o nó, que

constituem dois de seus suportes, ele é simultaneamente real e real, simbólico e

imaginário. Deparamo-nos aqui com um paradoxo, mas segundo Badiou, com quem concordo inteiramente, "o ser do sujeito é intrinsecamente paradoxal e a lógica do sujeito é uma lógica do paradoxo" ( 1997 :29).

Lacan se apercebe da articulação entre sujeito e real no Seminário 3, não por acaso ao trabalhar a psicose: "a dimensão até o presente elidida na compreensão do freudismo é que o subjetivo não está do lado de quem fala. É algo que reencontramos

no real" (1955-1956:210-211). E também afirma, com uma clareza que antecipa seus desenvolvimentos futuros, que "há com :feito alguma coisa de radicalmente

o necessário não cessa de se escrever; o impossível não cessa de não se escrever, o contingente cessa de se escrever e o possível cessa de não se escrever (Pequeno, 1 999 - b ).

Em Encore, Lacan afirma que o falo aparece de início como necessário, mas no processo da análise se revela contingente. A travessia possibilitada por uma psicanálise permite ao neurótico deparar-se com o nada sobre cuja base funda seu ser e seu padecer.

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inassimilável ao significante. É simplesmente a existência singular do sujeito" ( 1 955-

1956:202).

A abordagem do sujeito em sua vertente real especifica a psicanálise. Ela nos

permite trabalhar, e talvez esclarecer, alguns pontos dificeis da teoria. No decorrer da redação deste trabalho, eu me perguntava como articular a

foraclusão generalizada e a foraclusão do Nome-do-Pai. Perguntava-me, também�

como situar, entre as duas, a morte do sujeito na psicose. São questões complexas e não teria a pretensão de esgotá-las, mesmo porque elas se situam na fronteira do real.

Mas vou tentar dizer o que pude pensar até o ponto a que cheguei.

A meu ver, a foraclusão generalizada equivale à foraclusão do sujeito. Ela ocorre para todos - neuróticos, perversos ou psicóticos. Se assim não fosse, não

caberia falar de sujeito a propósito da psicose.

O real não cessa de não se escrever. Isso fez com que a foraclusão generalizada

tenha sido abordada pelo psicanalista ao longo de diversas vias.

Miller a interpreta, baseando-se em Lacan, como a não existência · do

significante d' A mulher [Terceira Parte, 6.2]. Assim como não existe o significante do Outro sexo, não há o significante do sujeito. Foracluído em sua realidade, resposta do real, só lhe resta ser efeito de significação.

Freud teria vislumbrado a foraclusão generalizada ao deduzir a perda de um eu

originário, o Real-Ich. A perda do eu real ocorre para todo e qualquer sujeito. A partir dela, como vimos [Terceira Parte, 6.2], o homem é expulso da natureza e se criam os

três registros.

O advento do Es com seu núcleo inefável é concomitante à entrada do sujeito na linguagem, à formação dos três registros heterogêneos. Ele é um corolário da

foraclusão generalizada e se dá, portanto, para todo sujeito. O que não se constitui na

psicose é a representação do sujeito pelo significante a partir do recalque primário.

Cabe distinguir a foraclusão do sujeito da foraclusão do Nome-do-Pai. A foraclusão do sujeit') está na origem de sua entrada na linguagem; o K me-do-Pai tem

como efeito a inscrição da lei da linguagem. Nos termos da topologia dos nós, o Nome-do-Pai é um quarto elo que enlaça

os lrês registros e representa a solução neurótica para a foraclusão generalizada. A

foraclusão do Nome-do-Pai corresponde, portanto, ao fracasso do advento dessa

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modalidade mais eficaz de suplência e pode se manifestar, se3a quando se dá o

desencadeamento da psicose, seja pelo desligamento do sujeito em relação ao

Outro 1 1 7. A meu ver, a morte do sujeito é uma vicissitude da foraclusão do Nome-do­

Pai 1 1 s _

A passagem de uma topologia ternária para uma topologia quaternária constitui

mais uma recorrência que minha leitura da obra de Lacan me permitiu discernir. Ela

se verifica nas duas etapas de sua elaboração teórica em que me detive nesta tese: na

produção dos anos cinqüenta e na elaboração topológica dos nós.

No Seminário 3 ( 1955- 1956), Lacan recorre a um modelo temário. A estrutura do sujeito é dada pelo real, pelo imaginário e pelo simbólico. Na psicose, este registro está excluído, o que leva o sujeito a tentar compensar sua falta pelo recurso ao

imaginário. Assim, acerca da paciente da alucinação da "porca" [Terceira Parte, 3.1],

Lacan comenta: "se essa mulher é propriamente uma paranóica é que o ciclo, para ela,

comporta uma exclusão do grande Outro" (1955- 1956:64). Em seus seminários, que constituem um verdadeiro work in progress, Lacan sempre considera os objetos de sua

investigação sob uma perspectiva multívoca. Mas podemos dizer que esta é sua concepção predominante no Seminário 3: o Outro como tal se ausenta na psicose. Já

em De uma Questão Preliminar ... ( 1957- 1958-b), tendo construído o conceito de Nome-do-Pai e sua foraclusão na psicose, Lacan irá, como vimos, desdobrar o

simbólico em um Outro da linguagem e um Outro da lei [Terceira Parte, 4.2]. O

psicótico entra na linguagem, mas para ele não opera a lei dos significantes, o Nome­

do-Pai. De forma análoga ao que ocorre entre o Seminário 3 e De uma Questão

Preliminar .. . , a passagem de uma topologia ternária para uma topologia quaternária será reproduzida entre RSI e O Sinthoma.

1 17 Em termos freudianos, este equivale à retirada da libido do mundo externo, com poucos sinais evidentes de uma tentativa de reconstrução e cura. Alguns dos casos clínicos discutidos na Conversação de Arcachon ilustram essa possibilidade (Miller, 1997).

1 18 À frente, retomarei a esse ponto. Penso que pode haver também uma morte do sujeito na neurose, por ação de experiências extremas, como as que ocorrem em um campo de concentração ou sob tortura. Essa possibilidade é uma decorrência da clínica dos nós e a deixo aqui apenas indicada, pois ela está para além do alcance de meu trabalho.

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Em RSI (1974-1975), Lacan afirma que o nó borromeano, pelo qual o sujeito

se constitui, tem três elos. Já no Seminário 23 (1975), reformula sua concepção: o nó

de três não se sustenta como tal. É preciso um quarto elo, o Sinthoma, que reduplique

o simbólico [Terceira Parte, 6.2].

Observamos, assim, que nessas duas etapas, a inicial e a final, do ensmo

próprio de Lacan, foi posta a questão sobre a natureza unária ou binária do simbólico e .

que ele lhe deu, reiteradamente, a mesma resposta.

Não por acaso, Lacan fez a passagem do três para o quatro a partir da clínica

das psicoses. Na virada que se reproduziu duas décadas depois de seu Seminário 3, ele

se apóia novamente em um caso de psicose -não mais em Schreber, mas em Joyce.

O passo do três para o quatro, se examinado mais de perto, pode nos trazer

novos ensinamentos sobre a estrutura do sujeito e o percurso que Lacan empreendeu

para cerni-la.

O Esquema L constitui a estrutura mínima do sujeito e fornece a base para a

construção tanto do Esquema R quanto do Esquema I. A estrutura RSI do sujeito

encontra sua última formulação na concepção topológica dos nós. Retomando essas

duas conclusões, poderemos traçar um paralelo entre a topologia que se depreende dos

esquemas lacanianos e a topologia dos nós.

O Esquema L, caracterizado por uma topologia ternária, equivale ao nó

borromeano de três elos. Vappereau 1 1 9 rebatiza esse esquema com o nome de

"efetividade". Segundo minha compreensão, ele fornece a estrutura mínima necessária

para que a constituição do sujeito se efetive.

O Esquema da realidade do neurótico, Esquema R, cuja topologia é

quaternária, corresponde ao nó borromeano de quatro elos 1 20• Em De uma Questão

Preliminar ... , Lacan relê o Esquema L à luz dessa nova elaboração. O Esquema L só

se sustenta pela inscrição do Nome-do-Pai no Outro, ou, então, por algo que lhe faça

as vezes.

1 19 Conferências na Escola Letra Freudiana, 1 994. 120 Na lição que encerra o Seminário 3, a propósito do Édipo, Lacan antecipa sua última

concepção topológica em uma frase profética: o Pai "está no anel que faz tudo se manter junto" ( 1 955-1956:359).

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Para que se efetive a constituição do sujeito é necessário que os três registros

se enlacem e sejam discerníveis e, para isso, três não são suficientes. Essa é a

conclusão que Lacan reitera ao trabalhar os nós. Na passagem do Esquema L para o Esquema R temos: R, S, I e P. E, na passagem do nó de três para o nó de quatro: R, S,

I e L - o Sinthoma, o Nome-do-Pai.

A retirada desse elemento quarto, ponto de sustentação da estrutura, lança o.

sujeito no surto.

Assim como o Esquema I reproduz o trajeto do Esquema L, o nó trevo faz

suplência ao nó borromeano de três elos. Podemos então deduzir uma correspondência

entre o Esquema I e o nó trevo.

Em um determinado momento da elaboração desta tese, quando estava

trabalhando a foraclusão do sujeito [Terceira Parte, 4.3], supus que, se este se constitui

como morto no jogo dos significantes, a morte do sujeito na psicose seria decorrente de um fracasso originário desse dispositivo de engendramento. Não é o que penso

hoje, ao encerrar a tese.

Penso que a foraclusão do sujeito, que se dá para todos, não tem qualquer

relação com a morte do sujeito na psicose. A primeira consiste na mortificação operada pelo simbólico, enquanto que a morte do sujeito corresponde ao ápice da

desconstrução dessa estrutura pela qual o sujeito se constitui a partir de uma morte

inaugural. Trata-se aí de duas mortes, a morte simbólica e a morte do simbólico: de um lado, a morte que inaugura uma vida humana; do outro, o esboroamento do

dispositivo que permitia ao sujeito viver, embora mortificado, e a invasão do gozo do

Outro. A morte do sujeito equivale, assim, à destruição do Esquema L ou, nos termos

da topologia dos nós, à ruptura dos registros. A questão da morte está presente para todo e qualquer sujeito,

independentemente de sua estrutura. O sujeito leva consigo a marca de se saber

mortal. Mas meu f onto de vista é de que essa presença se reveste de uma especificidade em cada uma das estruturas clínicas.

Quando Schreber afirma que enquanto não se realizarem o milagre de sua transformação em mulher e a cópula com Deus ele será "absolutamente imortal"

(Schreber,1902:351), trata-se de uma abordagem psicótica do tema da morte.

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Na neurose obsessiva, a realização do desejo está imbricada à morte. Nesse

sentido, é paradigmática a frase da neurose infantil do Homem dos Ratos: "se eu tenho

o desejo de ver uma mulher nua, meu pai terá de morrer" (Freud, 1 909-b: 1 3 1 ). É nesse

ponto de intersecção que se ancora a questão do obsessivo, confrontado aos impasses

de seu desejo: "estou vivo ou morto?"

Totalmente dissimilar, a meu ver, é o que ocorre na psicose: a morte do sujeito

é a morte de qualquer possibilidade de desejar.

Sustento a hipótese de que todo psicótico, se há desencadeamento, vive uma

experiência de morte subjetiva.

Essa possibilidade, que lhe está dada desde sempre - como constata Fabrício,

ao me confessar que prevalecera a vontade de sua mãe, que desejava abortá-lo -,

retoma no real em momentos de perigo máximo.

Fabrício vivia sob uma ameaça contínua e crescente de morte subjetiva. No

decorrer do relato clínico, assinalei os fenômenos que demonstravam que o nó pelo

qual ele se sustentara na existência estava se desfazendo. Todo seu esforço para

construir um mundo consistia em manter uma distância entre o campo do sujeito e o

campo do Outro, o lado esquerdo e o lado direito do Esquema L [Terceira Parte, 4. 1 ] .

Essa construção pode ser escrita: Sa ' - aA. Penso que sua gratidão à analista, da qual

ele nunca deixou de dar testemunho, deve-se a que esta, com sua presença, sustentava

esse intervalo que lhe permitia respirar. R�lembro sua observação de que se saber

escutado estaria fazendo com que ele prestasse atenção às vozes que sempre o haviam

assolado. A criação dos monstros, que se dava sob transferência, permitia-lhe

constituir, em certa medida, um exterior e um interior.

Quando emerge, no real, sem qualquer sentido, o objeto voz, os elementos do

Esquema L se embaralham. Nesses momentos, dá-se o apagamento do sujeito, que se

toma ele próprio objeto e se arremessa contra a porta da enfermaria, em uma tentativa

de efetuar a separação no real. Para essas passagens ao ato acompanhadas de perda de

consciência, valem as palavras de Lacan ace ca do "milagre dos urros" em Schreber:

não se pode mais falar de qualquer sujeito, a dimensão propriamente subjetiva se

apaga.

No final desse processo, quando Fabrício sabia que a transferência de

instituição viria interromper sua permanência no IPUB e, com esta, a transferência

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analítica, ocorrem os sonhos em que as c01sas do mundo se suicidam e o Outro

gozador se alimenta de suas entranhas. Eles sinalizam, a meu ver, a derrocada de um

sujeito.

José, que também diz ficar inconsciente durante os surtos, assim descreve seu desencadeamento: "parece que uma energia vai penetrar na minha mente, me fazer

perder o controle sobre meu corpo e tirar minha vida". Essa frase, de uma precisão .

extrema, evidencia como, a partir da irrupção do gozo, separam-se os elos do

simbólico, do imaginário e do real.

No caso de Daniel, dá-se a recomposição do Esquema L e a constituição do

campo da realidade, embora de forma distorcida 12 1 • Está preservada a dimensão da intersubjetividade, o que ele demonstra ao pedir, de forma insistente, o acordo da analista. Sua construção delirante permite-lhe distinguir a verdade da realidade e, a partir daí, colocar em questão o estatuto da própria construção.

No entanto, esta não tem a solidez da metáfora paterna. Quando seu irmão, em

um momento crucial, nega a realidade de seu delírio, Daniel anuncia que "desnasceu".

O fracasso da tentativa de conquistar uma mulher leva-o a se sentir morto; a saída é

"ressuscitar". Em momentos particularmente críticos, o campo do sujeito e o campo

do Outro se vêem em risco de colisão. Quando se presentifica, em sua radicalidade, a

ameaça da morte subjetiva na psicose, a passagem ao ato - "matar ou morrer" - fica

colocada no horizonte, como solução virtual.

Retomo agora a hipótese de que a morte do sujeito pode levar à sua

recomposição como sujeito do gozo [Terceira Parte, 5.4] . A concepção de que o delírio recompõe o nó como nó trevo - no qual os registros se põem em continuidade

- permite confirmar essa hipótese com um certo grau de segurança.

Permanece no entanto uma questão: o Esquema I corresponde ao nó trevo ou

ao nó de quatro elos? Como vimos [Terceira Parte, 6.4], acerca desse ponto as

interpretações divergem.

12 1 Ao trabalhar o Esquema I, Lacan mostra como "a realidade é restaurada para o sujeito: para ele, uma espécie de ilhota cuja consistência lhe é imposta, depois da prova, por sua constância; para nós, ligada ao que a toma habitável para ele, mas também a distorce" (1957- 1958-b:573).

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É evidente que meus conhecimentos topológicos não me permitem responder a essa dificil questão. Aliás, o próprio Lacan nunca cansou de nos advertir de que não devemos compreender cedo demais ( 1 953- 1 954), ou de que ele escreve para ser lido e não para ser compreendido ( 1 972- 1 973). No entanto, ouso formular uma hipótese, que deixo para ser confirmada ou refutada pela clínica com psicóticos e pelo

aprofundamento da experiência no manejo dos nós. Penso que o nó trevo corresponde ao sujeito do gozo. Mas a constituição do sujeito do gozo já é uma forma deste começar a se enlaçar novamente ao significante. Ou seja, o sujeito do gozo está a meio caminho entre a morte do sujeito e o sujeito do significante. Assim, a formação do nó

trevo, no caso de um sujeito para o qual a psicose tivesse se desencadeado e os três elos se soltado, estaria no caminho da formação de um nó em que os três registros poderiam novamente ser discernidos - do nó borromeano de quatro. Nesse caso, só a clínica do sujeito - que é a clínica do um-por-um - permite apreender que tipo de configuração nodal teria se constituído.

Retomemos o momento resolutivo da crise transferencial de Daniel. Com minha intervenção - de que não teria lido nos jornais as notícias sobre

sua história -, cavo para ele um lugar simbólico: Daniel se dispõe a voltar porque

deduz uma resposta para o desejo da analista. Esta presentifica o furo no Outro, sustentando, com sua presença, SÇK). Nos termos do imaginário, isso lhe confere uma

possibilidade de identificação: para mim ele é louco, apesar de sua certeza. E, assim, permite-lhe recompor o eixo a - a ' do Esquema L e efetuar o enlace do imaginário, que estaria se desprendendo do nó.

É esse o momento em que ele compõe o poema que relembro aos leitores desta tese: "entre uma palavra e outra há um bambalalão, de um lado um sim de outro lado um não ... ( . . . ) Que cada palavra possa me chamar de Daniel e me dar um beijo".

Essa hiância é essencial para o sujeito advir. Pela criação de um intervalo entre as palavras, Daniel consegue, durante um certo tempo, barrar seu nome de delírio e reassumir seu nome próprio. Isso deu início, como vim'os, a uma fase em que o gozo foi mitigado e se produziu uma acentuada melhora em suas condições de existência.

Nesse momento, emerge o sujeito do significante. O poema é uma evidência de que teria havido uma passagem do nó trevo para o nó de quatro. Ele expressa que o

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real - o intervalo entre as palavras - ex-siste, distinto do simbólico - o nome próprio e

a oposição significante - e do imaginário - o afeto do amor.

Sob que condições essa construção pode se sustentar permanece em questão.

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