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Stierle, "A ficção"
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A Ficção
Karlheinz Stierle
Introdução
Poiesis e fictio são os conceitos estéticos fundamentais, originários do
pensamento grego e romano. Sua valia, na literatura pertencente ao círculo
cultural europeu, até hoje permanece inalterável.
Que é ficção? Ao fazer do fictício uma categoria básica da compreensão
antropológica do homem, a resposta decisiva foi oferecida por Wolfgang Iser, em
Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropologie (1991).
Contudo, enquanto no entendimento tradicional o fictício era tomado como
conceito contrário ao real e a ficção como contrária à realidade, Iser vê o fictício
como parceiro do imaginário e a ambos compreende como momentos de
transgressão do real. Em Iser, a tríade realidade – fictício – imaginário enuncia
que o fictício se torna um conceito de relação entre a realidade e o imaginário.
Ao passo que o imaginário - comparável à representação do Ser do existente
(Seiend) em Heidegger - é conceituável apenas em si mesmo e não dispõe dc
um fundamento compreensível, de que derivam as concretizações imaginárias, o
fictício é uma instância da transformação que dá ao imaginário sua
determinação e, deste modo, ao mesmo tempo conduz ao real. O fictício
concretiza-se no ato de fingir, que, simultaneamente, provoca a “irrealização do
real e a realização (Realwerden) do imaginário” (Iser, W.: 1991,1 23 [15]. Mas o
próprio ato de fingir resulta das múltiplas atividades de seleção, combinação,
relacionamento e “desnudamento”.
Se, na teoria tradicional da ficção, o fictício e o imaginário se entrelaçavam, no 1 Wolfgang Iser, Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropolgie (Frankfurt a. M., 1991). [ O número entre colchetes refere-se à paginação da trad. em português: O Fictício e o imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária, trad. de Johannes Kretschmer, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996 (N. do Trd.].
1
modelo triádico de Iser eles se separam. O fictício organiza-se como texto, mas
nele permanece o lugar por princípio aberto do imaginário que o próprio fictício
nunca consegue fechar. “Na abertura indicada, manifesta-se, pela configuração
verbal do texto, a presença do imaginário” (idem, 51 [33]). A reflexão de Iser
sobre o imaginário procura escapar daquela concretização. O imaginário corre
então o risco de se comparar à “faca sem lâmina” de Lichtenberg, a que “falta o
cabo2. Pois se pode pensar um imaginário subtraído de sua figuração
imaginativa? Já o estupendo chiste de Lichtenberg indica que também o
imaginário, para que se mostre como tal, exige o ato de realização. Para se
tornar experimentável, também o nada precisa de figuração. Mesmo que seja
inconstestável o que assim se ganha em compreensão, torna-se aqui visível o
preço a pagar pela dissociação entre fictício e imaginário Haver uma parceria
entre o imaginário experimentado passivamente, em que submerge a
consciência, e uma ficção ativa, em que o imaginário sofre sua metamorfose, é
uma intuição essencialmente estrutural de um fato antropológico central. No
entanto não se há de antemão recusar que ao imaginário basicamente pertence
sua figuração. “Porquanto a própria aparência é essencial à essência, a verdade
não seria caso não aparecesse e não se revelasse”3 Este axioma da Estética
hegeliana é também válido para o imaginário. Isso queria dizer que o imaginário
só se atualizava no fictício. O fictício não seria uma disposição simbólica, em
que fendas e rupturas apresentariam o imaginário como o outro da ficção, senão
que o fictício e o imaginário não se deixariam dissociar. O fictício se eleva no
imaginário, o imaginário, no fictício. Isso também significa que o imaginário em
vias de atualização é sempre conceitualmente mediado. Nem o fictício se
adianta ao imaginário, nem tampouco o imaginário ao fictício. Originariamente,
ele correm paralelos e são aspectos de uma unidade que se mostra como o
além da oposição. Se isso é correto, então o imaginário alcança sua mais alta
forma e, ao mesmo tempo, sua determinação suprema ao se transformar em
fictício e, em correspondência, se põe sob as condições de uma redução medial.
2 Georg Christoph Lichtenberg, “Verzeichnis einer Sammlung von Gerätschaften (…)”, in Lichtenberg, vol. 3 (Munique, 1972), p. 452.3 Hegel, Ästh, p. 55
2
Só na obra o fictício alcança sua concentração mais alta e sua expressividade,
mas deste modo também a aspiração do imaginário encontra sua via e sua
evidência.
Sem dúvida, a história do conceito não pode substituir o esclarecimento
conceitual sistemático e problemas sistemáticos - a exemplo da questão de se o
imaginário é pensável sem determinação - não podem chegar a respostas
definitivas só mediante a indagação histórica. A história do conceito pode,
entretanto, reconstruir historicamente a complexidade dos significados múltiplos
de um conceito e, assim, tornar claro o contexto do problema crescente. Apenas
vislumbramos o que “é” a ficção quando nos damos conta do trabalho sobre o
conceito de fingere. Neste sentido, a história seguinte de fingere, de suas
derivações e atualizações na história da ficção, deve perspectivizar um problema
atual: a questão das relações entre o fictício e o imaginário. Neste caso, mostrar-
se-á que, no conceito da própria ficção, sempre e já se declara o momento do
imaginário.
I. A inocência da ficção
A palavra latina fictio é por vários aspectos semelhante à grega poiesis e, ao
mesmo tempo, dela fundamentalmente distinta. Poiesis significa a produção de
um criador, seja a produção do Criador originário, seja a feita segundo
protótipos. Em Aristóteles, a poiesis só é poiesis estética quando está a serviço
da mímesis, da imitação. A poesia é imitação, mas a própria imitação, do ponto
de vista do que se imita, é algo completamente original. O prazer estético, tanto
do que faz quanto do que recebe, é gerado não pela própria criação mas sim por
sua imitação. Para Aristóteles, uma poesia sem imitação é impensável. Nesta
medida, em suma, o poeta é apenas poeta enquanto se põe sob a lei estética da
produção que imita. Assim o amplo campo da poiesis se estreita pela faculdade
da mímesis como a faculdade de imitação particularmente de homens em
ação4 .4 Cf. Asda Babette Neschke, “ ‘Poiesis’ et ‘mimesis’ dans la Poétique d’Aristote”, in Poetica, 29 (1997), pp., 325-342.
3
O que, em grego, se separa como poiesis e mímesis, se reune no conceito
latino de fingere e fictio. Mas fictio não é bem uma síntese de poiesis e mímesis
mas antes uma designação, que tanto pode corresponder, em um sentido
amplo, a poiesis, como, em um sentido estreito, a mímesis, sendo, por fim, uma
superposição de ambos os sentidos, de modo que, a cada momento, um deles
pode-se se atualizar no horizonte do outro. A correspondência grega a fictio não
seria nem poiesis, nem mímesis mas sim plasma. Enquanto tal, ela é usada nos
textos da Antigüidade tardia e bizantinos para a descrição do gênero do
romance5.
Para a história do conceito de fingere e suas derivações o locus classicus é a
obra de Ovídio, especialmente suas Metamoforses, onde não só se encontram
as expressões fingere, fictio, fictus, figura em vários sentidos, mas onde também
sua polivalência se reflete em equivalentes ficcionais6 Nas Metamorfoses, o
contínuo da significação de fingere é poeticamente descrito. Para a formação da
consciência da ficção na literatura moderna, nenhuma outra obra tornou-se tão
importante como as Metamorfoses, que, são em si mesmas como a ficção das
ficções. As cenas originárias da ficção, que até hoje determinam o conceito que
se torna global de ficção, são encenadas pela primeira vez no teatro das
Metamorfoses. Nessa obra, de cujo renome imortal o próprio Ovídio estava
convencido, o autor reúne os gestos mais elementares aos mais complexos do
fingere e os articula a uma ficção estética geral, que representa um equivalente
imaginário do conceito de ficção.
O livro primeiro das Metamorfoses começa com o gesto original do fingere, a
criação do mundo já formado a partir da ausência de forma originária. O criador
do mundo, “Ille opifex rerum, mundi melioris origo” (“Ele, mestre das coisas,
criador do mundo melhor” (Ovídio, Met., I, 79), não cria do nada senão que dá
5 Cf. Bernd Zimmermann, “Liebe und poetische Reflexion. Der Hirtenroman des Longos, in Prometheus. Rivista quadrimestriale di studi classici, 20 (1994), p. 193; Heinz Schlaffer, Poesie und Wissen 9Frankfurt a. M., 1990).6 Em posição contraria, Wolfgang Rösler, “Die Entdeckung der Fiktionalität in der Antike”, in Poetica, 12 (1980), pp. 283-319; Hans Robert Jauss, “Zur historischen Genese der Scheidung von Fiktion und Realität”, in D. Henrich/ W. Iser (eds.), Funktionen des Fiktives (Munique, 1983), pp. 423-431.
4
forma ao caos. Ao passo que ao fim de uma longa história do conceito de ficção,
a formulação de Iser estabelece uma ficção que ajuda ao imaginário aberto e
informe, no começo a ficção se mostra como um ato formativo. Só, entretanto, a
criação dos homens é a plenitude da criação. É ela, como o mito relata, a obra
de Prometeu, o filho do Titã Japetus, que mescla o sémen dos deuses com a
água e dela cria o homem, segundo a imagem divina: “Quam satis Iapeto
pluvialibus undis / Finxit in effigiem moderantum cuncta deorum” (“O filho de
Iapetus, misturando a terra com as águas das chuvas / Modelou à imagem dos
deuses, que presidem todas as coisas” (I, 82-3). Fingere aqui significa uma
criação, que, não obstante, pressupõe uma imagem. A terra, ainda quando
informe, converte-se em lugar de formas até agora nela desconhecidas: “Sic,
modo quae fuerat rudis et sine imagine, tellus / Induit ignotas hominum conversa
figuras” (“É assim que a terra, outrora rude e informe, / Se modelou em figuras
novas de seres humanos”) I, 87-8). Também figura, forma ou configuração, é
uma derivação do fingere originário. Semelhantes ao divino são os novos seres
antes de tudo porque seu criador conferiu-lhes o porte vertical, que lhes permite
mirar o céu e erguer o rosto às estrelas: “Os homine sublime dedit, aelumque
tueri / Jussit et erectos ad sidera tollere vultus” (“Deu aos homens um rosto
voltado para o céu, de que propôs a contemplação / convidando-a a dirigir aos
astros seu olhar a eles levantado” (85-6). A terra é uma “ficção” do deus que se
ocupa de um mundo melhor; o homem é uma ficção do semideus Prometeu.
Ficção tem aqui precisamente o uso verbal moderno, contraposto ao que se
extrai de dentro da realidade. Ao mito da origem responde o mito do artista de
Pigmalião, que da pedra esculpe a forma pela qual se incendiara em paixão
desenfreada, conseguindo, por mercê de Vênus, que a estátua se
metamorfoseasse na Galatéia viva. O primeiro ato do fingere é dar forma ao
informe, converter o barro em figura. Esta contudo não deve ser mimética.
Chama-se assim fictile o recipiente extraído do barro, cujo espaço vazio é
adequado para recolher o líquido. “Hans Adam war ein Erdenklos” (“Hans Adam
era um mortal”), diz Goethe no West-östlichen Divans, exatamente neste sentido
(“Erschaffen und Beleben”) e, no “Lied und Gebilde”, mistura a poiesis grega, o
5
fingere latino e uma idéia persa-oriental do fluxo livre em uma unidade paradoxal
e poética: “Schöpft des Dichters reine Hand / Wasser wird sich ballen” (“Cria a
pura mão do poeta / A água será plasmada”).
Um segundo grau de ficção sucede quando a forma tridimensional, que pode
ser uma pura formação do informe mas também uma fantasia, um simulacro, se
desfaz da trdimensionalidade na bidimensionalidade da imagem projetada na
superfície. Narciso, que se autodescobre na água, não se defronta, como
Pigmalião, com uma forma tridimensional criada de si mesmo, mas se
experimenta na superfície líquida como uma estranha imagem vinda à vida, cujo
movimento bidimensional nele produz a dupla ilusão da forma real e da forma
real de um outro. A fictio é aqui uma alucinação involuntária, cuja medialidade é
refletida pelo narrador, pelo herói perceptível mas que permanece
desapercebido: “[(…) Corpus putat esse, quod umbra est” (“ (…) Julga ser corpo
o que é sombra”) (III, 417)]. O conceito central, poeticamente realizado da fictio,
aqui permanece esvaziado e, no entanto, seu campo semântico é ocupado por
expressões como “visae correptus imagine formae” (“seduzido pela imagem da
forma contemplada”) (III, 416), “formatum marmore signum” (“estátua feita de
mármore”) (III, 419), “simulacra” (III, 432) e “Spectat inexpleto mendacem lumine
formam” (“Contempla insaciável a mentirosa imagem”) (III, 439). O meio
bidimensional e agitado da superfície líquida produz o movimento ilusório da
forma como eco do voltar-se de Narciso para si mesmo. Mas Narciso possui a si
apenas como eco visual; esta é a pena que pagava por recusar a ninfa Eco, que,
de todo modo, só no eco podia possuir seu amado.
O simulacro da imagem especular produz em Narciso o engano involuntário.
São também simulacro involuntários os sonhos do que dorme, a ele
administrado pelo filho do deus do sono, Morfeu. Também Morfeu é um artista
que sabe criar formas a partir do sono informe: “artificem simulatoremque
figurae” (“artífice e simulador de figuras”) (XI, 634). Assim Juno pede a Somnus
que envie a Alcione um sono que, na alma da adormecida, crie a ilusão de seu
esposo afogado: “Alcyonen adeant simulacraque naufraga fingant” [“
Aproximem-se de Alcione e simulem (os traços do rei) sob o aspecto de um
6
náufrago”] (XI, 628). Mas, como um simul (simultâneo), uma duplicação
enganosa, o simulacrum pode querer conscientemente se pôr seja em lugar de
um verdadeiro original, seja de um apenas fictício. A força do fingere, como de
uma faculdade de configuração do informe, pode-se pôr conscientemente a
serviço do engano. O simulacrum se põe em lugar de seu outro reduplicado.
Assim Circe, a feiticeira, para se vingar de Picus que a desprezava, cria a
imagem de um javali, que atrai Picus a uma emboscada: “Dixit, et effigiem, nullo
cum corpore, falsi /Finxit apri, praeterque oculos transcurrere regis / Jussit”
(“Disse e modelou uma aparência de javali irreal e sem corpo, e fê-lo atravessar
o caminho diante do rei” (XIV, 358-60). Há também ficção arbitrária quando,
inflamado pela beleza de Filomela, Tereus a imagina em seu quarto e a converte
em objeto imaginário de sua concupiscência: “At rex Odrysius, quamvis secessit,
in illa / Aestuat; et repetens faciem motusque manusque / Qualia vult fingit quae
nondum vidit, et ignes / Ipse suos nutrit (…)” (“Mas o rei dos Odrísios, apesar de
sua separação, arde com o desejo que Filomela lhe inspira; lembrando-se de
seu rosto, de seus gestos, de suas mãos, representa-se, à vontade de sua
imaginação, tudo que dela ainda não vira e se nutre de sua própria chama (…)”
(VI, 490-3).
No começo do Livro II, louva o poeta o palácio do deus Sol, cujas portas de
prata, como o escudo de Aquiles em Homero, são adornadas por Hefaisto com
uma representação do globo terrestre, em baixo relevo: “Materiam superabat
opus” (“A obra superava a matéria”) (II, 5). A arte transcende a matéria e se põe
por assim dizer de modo absoluto. Pigmalião personifica o lado oposto; sua
plena arte se dissipa através de si mesmo e assim cria o pleno simulacro:
“Sculpsit ebur, formanque dedit, qua femina nasci / Nulla potest; operisque sui
concepit amorem. / Virginis est verae facies, quam vivere credas /Et, si non
obstet reverentia, velle moveri: / Ars ardeo latet arte sua. (…)” (“Esculpiu no
mármore com a alvura da neve um corpo que uma mulher / Não pode ter na
natureza; e concebeu amor por sua obra. / Tinha a aparência de uma verdadeira
virgem, que se podia crer viva / E, se o pudor não o impedisse, desejosa de se
mover: / Tanto a arte se dissimula graças à sua arte (…)” (X, 248-252).
7
Como obra de arte, a fictio pode muito bem remeter a si mesma; como engano,
não menos se esconder. O duplo sentido da palavra, em sua disposição
significativa, permite a oscilação entre os dois. Isso se torna particularmente
evidente quando o meio da ficção é a linguagem. A linguagem é meio tanto da
arte quanto do engano, assim como, sobre o engano, da arte enaltecedora e, no
entanto, que não apaga o engano. “Ficta loquor” (1, 771) significa que o falante
põe conscientemente a linguagem a serviço do engano. “Quis se Caesaribus
notus non fingit amicum” [“Quem é conhecido de César, não finge ser seu
amigo” (Ovídio, Epistulae ex Ponte, I, 7, 21)], diz o poeta, cheio de amargura.
Mas o discurso enganoso pode ser ao mesmo tempo um belo discurso ou, por
meio de sua beleza, dispor as coisas sob uma luz enganosa. O grande exemplo
disso é o discurso de Ulisses na disputa com Ajax sobre o arco de Aquiles.
Enquanto o guerreiro Ajax pode circular apenas com a arma, Ulisses emprega
contra ele a arma da palavra afiada: “Necque abest facundis gratia dictis” [“E
compreendeu servir-se de suas astutas palavras”) (Met., XIII, 127)]. O engenho
da força da palavra vence a força apenas física. A Ulisses é adjudicada a arma
de Aquiles, Ajax precipita-se exasperado sobre sua espada e, assim, termina
sua própria vida. A fictio, lúdica, consciente, extraverbal e verbal, é, por fim, a
Ars amatoria, por assim dizer uma ars fictionis, na qual o amor se converte na
suprema obra de arte da vida.
Um passo adiante e, no meio tão-só da linguagem, está a ficção autotélica. Ela
é, ao mesmo tempo, a máxima intensificação do imaginário, na medida que o
imaginário, para atingir sua maior descarga, precisa sobretudo de configuração
artística. Mas o uso metalingüístico de fictio e seus derivados não ocorre nas
Metamorfoses. Uma exceção rara se dá em passagem das Tristia em que o
banido Ovídio justifica suas obras, no sentido próprio, como ficções, das quais
não permitia se tirassem conclusões sobre sua própria moral: “Crede mihi,
distant mores a carmini nostri / Vita verecunda est, Musa iocosa mea /
magnaque pars mendax operum est et ficta meorum / plus sibi permisit
compositore suo” (“Creia-me, minha conduta de vida nada tem a ver com minha
poesia: minha vida é honesta, minha musa, solta; grande parte de minha obra é
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inventada e fantasiada e mais permissiva que o autor”).
Embora Ovídio não descreva suas Metamorfoses propriamente como ficções,
seu uso maciço de fingere permite ver sob essa luz o conjunto de sua obra. O
texto é por assim dizer o metatexto do metatexto, nele se reflete a consciência
de um procedimento. Ovídio é o primeiro que permite que suas ficções se
esclareçam a partir de si próprias. Porque nas metamorfoses descritas sempre
se mostra a tensão entre fingere como forma e fingere como um prelúdio
enganador, sendo esta tensão propriamente constitutiva das Metamorfoses. Seu
recontar de mitos lhes dá a máxima plasticidade no sentido de destreza
intelectual, assim como no de maximização do imaginário. O fato de Ovídio
manter com sua própria obra uma relação consciente e reflexiva espelha-se nos
inúmeros mitos de artistas, em que sempre se exprime e por todos os meios a
faculdade produtiva do fingere. Todas as artes são pensadas com mitos
metamórficos próprios: as artes plásticas, a partir do barro e do mármore, a
imagem fugaz (e enganosa), a poesia, o canto, a arte de tecer. É assim que nas
Metamorfoses de Ovídio expõe-se poeticamente pela primeira uma articulação,
um “sistema” das belas artes. A metamorfose, a mudança de forma em forma é
propriamente a forma intuitiva ficcional de Ovídio. Por ela, o mito ao mesmo
tempo é transportado para a ficção. O protótipo do fingere é o deus criador, que
do caos configura as coisas. A ele responde Prometeu, o criador de homens,
que do barro modela a primeira forma humana, como um primeiro Pigmalião. O
deus do mar, Proteu, tem outra força configurativa, que transforma forma em
forma e de certo modo finge a si mesmo em infindas metamorfoses: “ (…) Sunt,
o fortissime, quorum / Forma semel mota est et in hoc renovamine mansit / Sunt,
quibis in plures ius est transire figuras / ut tibi, complexi terram maris incola,
Proteu” [“Há, oh mais corajoso dos homens, aqueles que foram transformados
uma vez e para os quais esta forma nova é definitiva; há aqueles que têm o
privilégio de passar por vários aspectos; é o caso para ti, habitante do mar que
abraça a terra, oh Proteu”( (Met., VIII, 728-731)].
O tema fundamental de Ovídio é a mudança de forma efetivada por força
divina: “In nova fert animus mutatas dicere formas / corpora” [“Formei o desígnio
9
de contar as metamorfoses dos seres em formas novas” (Met., 1, 1)]. Antes de
tudo, essa mudança de forma é a passagem da forma viva para a sem vida, da
forma do que se move para o imóvel, da espécie única para a criatura de gênero
em processo. Mas a metamorfose não finda aqui, mas só se plenifica na ficção
do poeta, que dá à passagem de forma em forma sua configuração narrativa
transicional e sua plasticidade verbal. No ato de poetar, como ato próprio do
fingir, se conjugam em unidade mental todas as dimensões da criação estética:
a plástica, a imagem, a artesania, a música, a fala. A passagem de forma a
forma, transposta em fluxo narrativa, converte-se no movimento da fala, ao
mesmo tempo, em permanência. A duração da forma verbal responde à duração
correspondente à metamorfose, que ela, simultaneamente, supera, como
permanência do movimento. Se a camada narrativa da histoire se põe como
signo da ficção elementar, enquanto formatividade do barro informe, a camada
do discours, a realização verbal, se põe como signo do tecer e entretecer. A isso
responde a infeliz Aracne, a hábil tecelã, que ousa superar Palas em combate e
por cuja vingança é transformada em aranha, mas também Filomela, que,
violentada por Tereu, é por ele despojada da língua e, muda, tece o crime numa
tela. Também o poeta é um artista do tecer e entretecer porque, engenhoso,
conjuga as histórias metamórficas em um único e amplo tapete de
metamorfoses, o tapete das ficções. Com a alegoria por Ovídio da escrita como
tecelagem, começa uma história metafórica, que ganhará, particularmente na
história do romance moderno, uma eminente função autoreferencial7.
Acabada a obra, Ovídio evoca o triunfo de suas ficções: “Iamque opus exegi,
quod nec Iovis ira nec ignis / nec poterit ferrum nec edax abolere vetustas” (“E
agora acabei uma obra que nem a cólera de Júpiter, nem o fogo / nem o ferro,
nem o dente do tempo poderá abolir”) (Met., 871-2). Também nos Amores opera
a última palavra, em que se sintetiza a altiva esperança do poeta no exílio. Ao
Deus inominado, que criava a forma do informe, como se apresenta na entrada
do Livro I, responde por fim o poeta como novo criador, cuja bela e harmônica
7 Karkheinz Stierle, “ Die Verwilderung des Romans als Ursprung seiner Möglichkeit”, in H. U. Gumbrecht,(ed.). Literatur in der Gesellschaft des Spätmittelalters (Heidelberg, 1980), pp. 253-313.
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obra em si oculta um novo cosmo de imagens e ficções. A capacidade
operadora do imaginário, que o poeta, por sua fala, libera, lhe é essencial; é esta
a única condição para que o imaginário possa reinvidicar a permanência. A obra
é uma metamorfose de seu material; ela converte em invisível a matéria em que
se realiza, mas, na força de sua evocação, se faz a si mesma também invisível;
no entanto, ambas são a condição para que o imaginário possa se manifestar
em sua forma mental. A ficção é ambas as coisas: a obra como produção da arte
e do imaginário, que só faculta a arte produzida a partir da obra, faz esquecer e,
no entanto, requer o retrospecto reflexivo sobre sua origem material.
Também em Horácio, quando usa a palavra, está sempre em jogo a dupla
natureza do fingere: criar uma obra e por meio da qual o imaginário é liberado.
Na Ars poetica, o protótipo da produção artística é a pedra-de-toque, sobre a
qual a ânfora atinje sua configuração. Redonda e em si fechada como o cântaro,
deve ser a obra de arte: “Denique sit quodvis, simplex duntaxat et unum” [“Em
suma, seja a obra como se queira, apenas há de ser fechada e una” (Ars poet.,
23)]. Para Horácio, a condição essencial para esse fechamento é a consistência
na realização do personagem e de seu discurso. Se o poeta se desvia da
matéria pré-dada, que então ouse fingir, no sentido próprio; assim a consistência
mas também a proximidade com a realidade da experiência são condições
essenciais: “Aut famam sequere, aut sibi convenientia finge” (Ou se segue a
tradição ou se criam caracteres coerentes consigo mesmos”) (Ars Poet., 119).
Assim como Aristóteles restringe o espaço de manobra da poiesis pelo princípio
da mímesis, assim também em Horácio a verossimilhança é uma condição
essencial do prazer estético: “Ficta voluptatis causa sint proxima veris:/ ne
quodcumque volet poscat sibi fabula credi”[“Não se distanciem da realidade as
ficções que visam ao prazer; não pretenda a fábula que se creia tudo quanto ela
invente”(Ars Poet., 338-9)]. Mas também em Horácio fingere significa igualmente
a realização concreta da textura poética. Sarcástico, opõe o respeito à arte das
armas e o esporte ao ocioso, que, incompetente, ousa exercitar-se no
artesanato poético: “Qui nescit versus, tamen audet fingere, quidni?” (“Quem
desconhece o verso, ousa contudo poetar. Por que não?” (Ars poet., 382). Em
11
uma carta poética a Augusto, em que Horácio advoga o direito da poesia
contemporânea, mas também de novo censura os limites dos diletantes
poéticos, fala da utilidade do verdadeiro poeta para a comunidade. É neste
contexto que diz: “Os tenerum pueri balbumque poeta figurat, / torquet ab
obscaenis iam nunc sermonibus aurem, / mox etiam pectus praeceptis formart
amicis, / asperitatis et invidiae corrector et irae” [“A boca tenra e balbuciante do
jovem forma o poeta, guia seu ouvido, já agora distante do discurso indecente, já
forma seu espírito com prescrições fraternas, corrige o capricho, a inveja e a
cólera” (Epistulae 2, 1, 126-9)]. Ainda aqui, fingere descreve a conversão em
forma do informe. O poeta educa a boca não adestrada em dar uma forma à fala
e, assim, de certo modo modela a boca ainda informe. Mas o poeta consumado
ou se manifesta em sua maestria formal, ou quando a serviço de um público
rude, que busca no espetáculo apenas a sensação, sendo capaz de ativar a
imaginação do leitor ou do espectador e de transferi-lo de seu próprio mundo
para mundos estranhos: “Ille per extentum funem mihi posse videtur / ire poeta
meum qui pectus inaniter angit. / inritat, mulcet, falsis terroribus implet, / ut
magus, et modo me Thebis, modo ponit Athenis” [“Parece-me que aquele poeta
sabe andar sobre a corda tensa, que só ele, com sua fantasia, inquieta, alarma e
aplaca meu coração, que, como um mago, me preenche com sobressaltos
imaginados, que me lança ora rumo a Tebas, ora rumo a Atenas “(Epistulae, 2,
1, 210-3)].
Eis aqui o poeta, o artista mágico, que graças às suas ficções sabe acionar o
registro anímico de seu leitor, ouvinte ou espectador e, mediante sua arte, se
distancia de seu próprio mundo. Engano e formatividade entram em uma síntese
indissolúvel, em que a ficção, como estrutura de realização estética, sob as
condições de um meio, intensifica a matéria ficcional, como imaginário livre e
ligado.
Na Ode a Píndaro, Horácio compara o poeta grego de hinos, arrebatado pelo
entusiasmo, com a própria e modesta obra, fruto do trabalho paciente,
comparável ao mel que as abelhas produzem das flores aromáticas do tomilho:
“Ego apis Matinae / more modoque, / grata carpentis thyma per laborem /
12
plurimum, circa nemus unidique / Tiburis ripas operosa parvos / carmina fingo”
[“Eu, à semelhança das abelhas matinais, / que, com infindo empenho, fazem a
colheita dos amados tomilhos, formo meu canto, uma discreta criatura, com
esforço, no bosque e às margens do Tibre dos mananciais” (Carmina, 4, 2, 27-
32)]. “Carmina fingo” não significa aqui que o poeta finge cantar, mas sim que dá
uma forma duradoura a seu canto. Contrapõem-se aos modestos poemas os
grandes cantos que Horácio quer cantar em louvor de César Augusto, quando
este retorne vitorioso. Mas o grande gesto poético é ironicamente retomado
quando o poeta pensa na vítima, a que, por essa razão, quer consagrar um
tenro bezerro, que se põe tão simpaticamente diante dos olhos que o gesto
triunfal é aniquilado. O canto “Maiore (…) plectro” [“com teu mais potente
instrumento” (4, 2, 33)] permanece uma promessa vazia.
À diferença de Ovídio e, de certa maneira, também de Horácio, Virgílio mantém
uma distância cética quanto ao valor próprio do fictício. Para Virgílio, a ficção
enganosa é a materialização do Ulisses criminoso, astuto e sem escrúpulos, a
que, na longa série de insultos que lhe dirige, também chama “fandi fictor Ulixes”
[“Ulisses dos discursos enganosos” (En., IX, 602)]. Na Eneida, fingere, fictio são
principalmente ocupados por representações negativas do engano, O valor
próprio do imaginário aqui desempenha um papel apenas subordinado, pois tudo
se apóia em que o cometimento épico, a fundação de Roma, venha a se
cumprir. E, no entanto, Virgílio é um mestre em emprestar ao informe, ao
numinoso, aos movimentos e forças psíquicas, assim como ao ausente
configuração poética e em concretizar o indeterminado em condensações
ficcionais. Assim Fama e as Fúrias, como formas, ganham expressão poética, as
sombras incorpóreas do Hades alcançam a figuração alegórica da conditio
humana, uma figuração fantasmagórica, assim Dido é capaz de ver o distante
Enéias diante de si, como se estivesse presente: “(…) Illum absens absentem
auditque videtque” [Está longe dele e ele, longe dela, e ela o escuta e o vê” (En.,
IV, 83)]. Há outra vez, no entanto, na Georgica, um fingere de maneira quase
elementar. Diz-se das abelhas que fazem o mel e da cera formam os alvéolos:
“Hinc arte recentis / excudunt ceras et mella tenacia fingunt” [“Também fazem a
13
fresca e rica cera e formam o mel viscoso” (Georg., IV, 56-7)]. Enquanto as
abelhas jovens, em uma astuta divisão do trabalho, reunem mel e cera, é da
tarefa das velhas o cuidado com a colméia: “Grandaevis oppida curae / et
munire favos et daedala fingere tecta” [“Às velhas incumbe o cuidado com os
lares, os alvéolos e a construção de casas mais engenhosas” (Geórg., 4, 178-
9)]. Mas a isso se opõe um outro fingere poético quando Virgílio, a seguir, para
explicar Proteu, o deus da ficção da mutação das formas, “formas se vertet in
omnis” [“transmuta-se em todas as formas”(4, 411], o feiticeiro das abelhas, que
deve reparar uma colméia aniquilada por doença, conta a história de Orfeu, que,
pelo poder de seu canto, liberta Eurídice do inferno e, por seu descuido, de novo
a perde.
Cícero parece haver sido o primeiro a conjugar estreitamente pictor e fictor, com
o que se torna expressiva a diminuição imaginária. Em Cícero, assim como em
Varro, fictor, no sentido estrito, se mostra como construtor de vítimas, que, ao
contrário dos animais reais, eram usadas; do mesmo modo, Servius comenta o
verso 634, do livro VIII da Eneida: “Fictores dicuntur qui imagines vel signa ex
aere vel cera faciunt” [“São chamados fictores aqueles que traçam imagens ou
signos sobre o bronze ou a cera”8. Em De natura deorum, Cícero volta-se contra
a idolatria que identifica a imagem bi ou tridimensional da divindade com ela
própria e, em seu lugar, está consciente da mera função de suplemento da
imagem: “Deos ea facie novimus, qua pictores fictoresque voluerunt”
[“Conhecemos (…) as divindades restantes pela aparência que pintores e
escultores querem lhes dar”(Nat: I, 81)]. Pictor e fictor aqui se opõem, em um
parentesco textualmente sublinhado, ao pintor e ao escultor. Na tradição dos
tempos modernos, ao contrário, pictor e factor se tornam cada vez mais
equivalentes e, assim, por fim, também o pintor exige para seu sujeito ter atuado
como factor. Em Cícero, é inimaginável um deus de carne e sangue. Cícero
podia compreender a semelhança entre um corpo a ser imitado e sua imitação,
mas não a semelhança entre corpos terrenos e o “corpo de um deus”: “Hoc
intelligerem quale esset si in ceris fingeretur aut fictibilibus figuris; in deo quid sit 8 Servius, (Comentário de Virgílio à Eneida, 8, 6340, G. Thilo/ H. Hagen (eds.), vol. 2 (Leipzig, 1881).
14
quasi corpus aut quid sit quasi sanguis inteliggere usu possum” [“Poderia captar
o que se entende quando se fala em figuras de cera ou de barro. Mas vai além
de minha compreensão o que se entende por um modo de corpo ou de sangue
de um deus” (Cícero: De natura deorum, 1, 71)].
De antemão, o campo semântico de fingere, fictio, factor, figmentum, figura é
articulado à representação de um ser consciente que planeja e constrói. Nisso,
diferencia-se essencialmente do campo semântico da fantasia, relacionado
sobretudo à faculdade subjetiva do criador de imagens. A representação
construtiva de fingere, relacionada à realização e ao esmero, exprime-se na
retórica romana, como é ela compendiada por Quintiliano. Na Institutio de
Quintiliano, que, em primeiro lugar, tinha em vista uma retórica forense, mas
também incluía o discurso político e as belas-letras, fictio é discutida, por assim
dizer com ingenuidade prática, como um modo particular de uso do discurso.
Fictio e figura convertem-se em conceitos centrais de sua retórica. A narratio ou
narrandi ratio dos advogados deve ter um alvo: a persuasão do juiz. Todos os
procedimentos e ardis subordinam-se a essa meta. Quintiliano mostra-se
particularmente insensível ao escrúpulo moral no caso da exposição do
acontecimento a ser julgado: tanto a exposição não mais corresponde aos fatos,
quanto mais hão de ser empregados os procedimentos retóricos para que se
alcance a impressão de verdade. Pela consistência de sua exposição, o
mentiroso deve assegurar sua verossimilhança, sua discreta sedução estética.
As “falsae expositiones”, entre as quais simples mentiras são expostas ante o
tribunal, se dividem em dois grupos. Há o falso testemunho de outros e, no
sentido estrito, o próprio informe do acusado ou de seu defensor. Na mentira, a
primeira condição é que se observe a verossimilhança: “Sed utrumcumque erit,
prima sit curarum, ut id, quod fingemus, fieri posit (…)”[“Seja como for, a primeira
de nossas preocupações deve ser imaginar uma narração verossímil” (De
Institutione oratoria, IV, II, 89)]. A isso visa a consistência interna da exposição.
É também de ajuda ligar a ficção com circunstâncias incontestavelmente
verdadeiras, devendo antes de tudo a simulação de fatos falsos não ter
contradições. O que minimamente significa que o mentiroso não há de esquecer
15
os detalhes de sua mentira: “Utrobique autem orator meminisse debebit actione
tota, quid finxerit, quoniam solent excidere quae falsa sunt; verumque est illud,
quod vulgo dicitur, mendacem memorem esse oportere” [“Aí, ademais, como no
foro, o orador deve, em todo seu discurso, lembrar-se do que imaginou, pois é
comum que nos esqueçamos do que é falso e nada há de mais exato que
quando se diz que o mentiroso deve ter uma boa memória” (De Institutione, IV,
II, 91)]. Depende do relato retórico que ao que se declara se acrescente eficácia
e força de convencimento. Um argumento crucial em favor da utilidade da
retórica nos tribunais está em que o êxito aí depende tanto da eloqüência,
quanto do conteúdo da exposição. Quem mente precisa, apesar da carência de
fundamentos, triunfar na eloqüência. Mas, pela mesma razão, também o que diz
a verdade diante de um tribunal há de dominar a arte do discurso: “Quare non
minus laborandum est ut iudex quae verer dicimus quam quae fingimus credat”
[Pois é preciso trabalhar-se tanto em fazer com que o juiz creia no verdadeiro
que dissemos quanto no que inventamos” (De Institutione, IV, II, 34)]. Em uma
sociedade em que o discurso retórico se converteu em norma, quem diz a
verdade, para ser acreditado, deve discursar como se quisesse mentir. A
verdade deve ser não só verossímil, mas se conformar às regras da arte para
que possa ser eficaz. Na fronteira entre verdade e mentira, para a intensificação
do efeito, se dispõem, para ser introduzidas, de circunstâncias ou pessoas
fictícias (cf. De Institutione, IV, II, 19). A ficção encontra outro uso na instrução
dos jovens mestres de retórica quando devem se encarregar de papéis em
situações verbais fictícias. Quintiliano chama a atenção para o fato de que isso
já era usual entre os gregos (cf. De Institutione, II, IV, 41). Mas também a escrita
da história serve-se da licença poética e, para intensificação do efeito, suas
exposições se adornam ficticiamente (cf. De Institutione, II, IV, 19). Do mesmo
modo Virgílio e outros tinham louvado qualidades abstratas como a glória, a
voluptuosidade e a virtude: “Sed formas quoque fingimus saepe, ut Famam
Vergilius, ut Voluptatem ac Virtutem (quemadmodum a Xenophonte traditur)
Prodicus, ut Mortem ac Vitam, quas contendentes in satura tradit Ennius” [Mas
também personificamos abstrações, Virgílio, a fama, Prodicus, em relação a
16
Xenofonte, a voluptuosidade e a virtude, Ênio, a morte e a vida, de cuja luta trata
em uma sátira (De Institutione, IX, II, 36)]. O pôr-em-forma e a concretização
imaginária são aqui indissoluvelmente associados. Um caso singular desta viva
representação imaginária é a prosopopéia como diálogo interno fictício, que
introduz o leitor ou o ouvinte na dramaturgia de um processo de decisão.
Às formas do fingir no discurso prático também pertencem as figuras da
linguagem, sejam as figuras do discurso, no sentido estrito, ou as figuras do
pensamento. Figura é uma derivação de fingere, que acentua o momento de
pôr-em-forma, por força de que as figuras da linguagem sempre põem em jogo
um momento do imaginário, que remete à sua origem verbal. Enquanto tais, as
figuras são verossímeis. Quintiliano diferencia entre tropos e figuras e, nestas,
figuras do pensamento e figuras da linguagem. Essas diferenças não são
sempre rigorosas, particularmente a diferença entre tropos e figuras parece
bastante contraditória. No campo da fictio verbal, entram por fim não só as
figuras destacadas do discurso mas, em um plano mais elementar, os modos de
proceder como o uso do plural em vez do singular, o próprio neologismo, que,
como estes, apontam para um ato volitivo da fala.
A Institutio oratoria de Quintiliano mostra de modo impressionante a
consciência estratégica com que se afirmava o adestramento retórico, no espaço
público, do uso da linguagem. Verificam-se assim afinidades surpreendentes
entre os mundos do sentido da poesia e do direito. Para Quintiliano, estas se
assinalam particularmente na arte da descrição e da persuasão, mas também na
aprendizagem do discurso forense, realizada por exemplos fictícios. O que
Quintiliano não reflete é outro momento da ficção no direito romano: que a
própria codificação legislativa necessita, para sua argumentação, da ficção do
direito. A ficção do direito, que já é corrente no direito romano9, receberá, no
direito dos tempos modernos, uma função significativa.
II. A Ficção no banco dos réus
9 Cf. Manfred Fuhrmann, “Die Fiktion im römischen Recht”, in Henrich/Iser (nota 5), pp. 413-415.
17
Na história do conceito de ficção, o surgimento do cristianismo implica uma
mudança paradigmática de significação imprevisível. A rigorosa exigência da
verdade que, na história, fixada nos evangelhos, da humanização do filho de
Deus, Cristo, até sua crucificação e ressurreição, estabelece a diferença entre
verdade e ficção de uma maneira muito mais virulenta do que antes. Para a
concepção do fictício, isso teve um significado decisivo. Em face do novo
postulado de verdade e seriedade, a ficção perde a sua inocência e é posta no
banco dos réus. Só na escrita da história ela mantém seu direito por sua função
retórica. Em seu lugar, entra a alegoria, em que a própria ficção se torna em
momento da verdade, a alegorese que revela a verdade do texto ficcional e, não
por ultimo, como desenvolvimento ulterior da teoria das figuras retóricas, o
conceito hermenêutico de figura, como estrutura temporal do ocultamento e
desvendamento, tornando-se um instrumento particular na consonância entre o
Velho e o Novo Testamento10.
Um dos primeiros embates cristãos com as “ficções” da religião e da poesia
pagãs aparece nas Divinae Institutiones de Lactâncio, dirigidas a um público
pagão erudito. Em vez de estabelecer um fosso entre a verdade (cristã) e a
ficção (pagã), Lactâncio procura trazer à prova que as ficções do poeta são
comparáveis a uma camada colorida que encobre uma verdade ou uma suspeita
de verdade: “Nesciunt enim qui sit poeticae licentiae modus, quousque progredi
fingendo liceat, cum officium poetae in eo sit, ut ea quae uere gesta sunt in alias
species obliquis figurationibus cum decore aliquo conuersa traducat” [ “(Os
homens), em geral, não sabem onde está a peculiaridade da licença poética e
até onde é concedido que vá a descrição; a tarefa do poeta é traduzir, com
ornamentos próprios, o que realmente sucedeu, por meio de formas figurais,
para que, mudado o que sucedeu, ganhe ele um outro aspecto” (Lactâncio:
Divinae Institutiones I, II, 24)]. Lactâncio procurava com isso trazer ou atrair os
(ainda) descrentes ao caminho do cristianismo. O poeta tem a permissão de
trabalhar a verdade nua, colori-la, convertê-la em poética. Esta também é a
tarefa do poeta cristão. Somente quem apenas quer “fingida” a bela aparência é 10 Cf. Erich Auerbach, “Figura” (1939), in Auerbach, Gesammelte Aufsätze zur romanischen Philologie (Berna/Munique, 1967), pp. 55-92.
18
incapaz e mentiroso. Para Lactâncio, trata-se antes de tudo da mediação da
nova mensagem cristã, enquanto esta é de natureza completamente diversa.
As Confissões de Agostinho são um testemunho impressionante da crítica
cristã da ficção. Nela, Agostinho vincula a confissão dos pecados e a profissão
da fé com a descrição exemplar de seu caminho para a crença. As Confissões
enfatizam a exigência de retirar-se do mundo mentiroso das ficções e fazer-se
consonante com a verdade, que se atualizou pelo testemunho da página escrita.
São uma antificção, que pretende haver-se desvinculado de todos os ardis da
bela fala e da retórica e que, no entanto, se serve de todos os meios da fictio
retórica para o recrutamento do leitor. Vê-se a retrospectiva quando ele, ainda
quase uma criança, se entregava à sedução poética da Eneida e seguia as
aventuras de Enéias, sem se dar conta dos próprios erros. Depreciativamente,
chama a obra de Virgílio de “poetica illa figmenta” (fabulações do poeta) e
lamenta que se interessasse não por conhecimentos úteis mas pelos teatros
vazios da imaginação: “Iam vero ‘unum et unum duo, duo et duo quattuor’ odiosa
cantio mihi erat et dulcissimum spectaculum vanitatis equus ligneus plenus
armatis et Troiae incendium” [“Repetir ‘um e um, dois; dois e dois, quatro’, era
para mim uma cantilena fastidiosa. E, pelo contrário, encantava-me o vão
espetáculo de um cavalo feito de madeira e cheio de guerreiros e o incêndio de
Tróia” (Conf. I, 13, 22). É exatamente no momento em que a arte mostra sua
habilidade e não só no do engano vazio que, para Agostinho, se dá a
provocação da ficção, pois que libera a presunção humana e afasta o homem de
suas exigências: “Quam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus,
calciamentis, vasis et cuiuscemodi fabricationibus, picturis etiam diversique
figmentis atque his usum necessarium atque moderatum et piam significationem
longe transgredientibus addiderunt homines ad inlecebras oculorum, foras
sequentes quod faciunt, intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod
facti sunt [“Quantas seduções inumeráveis, graças a diversos trabalhos de
artistas e artesãos, nas vestes, nos calçados, nos vasos e nos objetos de toda
espécie que se fabricam e também nas pinturas, nas modelagens variadas e
todas estas coisas que ultrapassam de longe um uso necessário ou moderado e
19
uma significação de piedade! Quantas seduções acrescentadas àquelas dos
olhos pelos homens que seguem de fora o que fazem e abandonam de dentro o
que os fez e arruinam o que deles Ele fez” (Conf, X, 34)]. Mas, entre as formas
de “ficção”, a poesia é a primeira entre os réus, porque as outras dela derivam.
Do mesmo modo, dela emana tudo que excita a vista, que se abre ao mundo. A
voluptas oculorum traz o risco de afastar do essencial e de se perder no
multiplicidade do mundo. Seu reflexo é o estímulo do teatro, cujo espetáculo
submete o expectador a ativar falsas paixões. Agostinho vive no horizonte dos
muitos livros, das muitas peças que excitam suas paixões até que encontre a
voz do livro da verdade, que muda o curso de sua vida. No fundo de seu
desespero, escuta a voz infantil que clama um misterioso: “Tolle, lege; tolle,
lege” [“Toma e lê; toma e lê” (Conf. VIII, 12)]. O livro que a invocação o faz abrir
é o Novo Testamento; a página acidentalmente aberta parece falar a si mesmo.
É o convite para que siga Cristo e que o leva a mudar sua vida. O livro da
verdade ocupou o lugar daquela “poetica illa figmenta”, que antes fora o encanto
do jovem leitor. À leitura como dispersão agora responde a leitura como suma
concentração na verdade, a partir da qual fala o livro. A partir de agora e por
séculos, a ficção estará a serviço da verdade.
Em De vera religione, as fantasmagorias, que capacitam o espírito a imaginar,
tornam-se opostos à religião verdadeira: “Non sit nobis religio in phantasmatis
nostris; melius est enim qualecumque verum quam omne quicquid pro arbitrio
fingi potest” [“Nossa religão não é um acervo de imagens fantasiosas. É então
preferível qualquer verdade barata do que tudo que se pode imaginar
arbitrariamente” (De vera religione, 55, 108)]. Entre o Deus representado,
“fingido” e o verdadeiro há o abismo incomensurável que separa o amigo
representado do, na verdade, ausente: “Si unus est ille amicus meus, falsus est
iste quem cogitans fingo; nam ille ubi sit nescio, iste ibi fingitur ubi volo ” [“Se
tenho um determinado amigo, então o que me represento mentalmente é falso.
Pois, se não sei onde aquele está, represento-me este como queira” (De vera
religione, 34, 63)]. “Cogitans fingo” significa a representação interna, sujeita à
vontade, infinitamente maleável porque sem a resistência de um meio. Essa
20
ficção interna, oposta ao ser-que-se-encontra da verdade, é ainda mais arbitrária
do que a ficção, que se manifesta em um meio e se converte em arte. “Si una
Roma est (…) falsa est ista quam cogitans fingo” [“Se há apenas uma Roma,
então aquela que me represento mentalmente é falsa” (idem, ibidem)]. Mas
também as configurações, que nunca foram vistas, formam-se facilmente, como
no sonho: “Formae corporum, quas nunquam vidimus, vel cogitando apud nos
vel somniando figurentur” [“Formas corporais, que nunca vimos, (apresentam-se-
nos) diante da alma em pensamento ou em sonho” (Agostinho a Nebridus,
Epistulae 9, 5)]. É fundamental para Agostinho que a representação do fingere
esteja ligada ao embuste. Assim abre a discussão de se, no começo do Gênese,
o texto grego deveria ser traduzido por “Et formavit Deus hominem pulverem de
terra” ou por “finxit”. Segundo Agostinho, “finxit” seria de imediato a tradução
correta, mas, para que se evitasse uma ambigüidade, “formavit” era preferível:
“Sed ambiguitas visa est devitanda eis, qui formavitdicere maluerunt, eo quod in
Latina lingua illud magis obtinuit consuetude, ut hi dicantur fingere, qui aliquid
mendacio simulante componunt” [“Preferimos, no entanto, a palavra ‘formou”,
para evitarmos a ambigüidade evidente em latim. Pois, nesta língua, diz-se
‘fingere’ sobretudo daqueles que querem simular alguma coisa” (Cid. de Deus
13, 24). A Enarratio in psalmum 138 justifica, ao contrário, o velho significado de
fingere: “Non enim quisquam nascitur, nisi quem Deus finxerit in utero matris
suae; aut ulla creatura est cuius non est ille plasmator” [“Pois nada nascerá que
Deus não tenha preformado no útero materno; e, em suma, não há criatura de
que ele não haja sido o criador” (Enarratio in psalmum 138 7, 19-20)]. A
peculiaridade estética da ficção, que ocupava o centro das refrações poéticas
das Metamorfoses de Ovídio, desaparece na oposição unívoca entre verdade e
mentira. Fica fora da oposição a licença ficcional da parábola. Agostinho observa
sobre a parábola do semeador: “Si audis fictum, intellegis significative: fictum est.
Si enim vere homo seminator exiret, et semina, sicut audivimus, per haec diversa
jactaret, non erat fictum, sed nec mendacium. Nondum autem fictum, sed non
mendacium. Quare? Quia significant aliquid, quod fictum est, non te decepit.
Quaerit intellegentem, non facit errantem. Hoc volens commendare Christus,
21
poma quasivit, figuratam ibi, non fallacem commendabat fictionem; ac per hoc
laudabilem, non criminosam fictionem; non qua discussa ea in falsitatem, sed
perscrutata invenias veritatem” [“Quando escutas o fictício, compreendes que se
quer dizer alguma coisa e que é fictício. O semeador de fato saiu e semeou em
diversos lugares, como ouvimos, então (seu ato) não seria fictício, nem um
engodo. Mas há aqui fictício, embora não haja engodo. Por que? Porque
significam algo que é fictício e não te engana. Exige inteligência e não leva ao
erro. Porque se tratava de Cristo quando reunia os frutos; tratava-se de uma
ficção figurativa e não enganadora e, desta maneira, de uma ficção louvável e
não repreensível; uma ficção cujo exame não te leva ao erro mas sim, pela
inspeção correta, à verdade” (Sermones, 89, 6)]. Em uma imagem admirável,
Agostinho descreve seu discurso, atrevendo-se a pôr a pergunta mais profunda
acerca do tempo e da eternidade, como “manus oris mei” [“mão de minha boca”
(Conf XI, XI, 13)]. Mas então, em particular o próprio discurso concebido como
escrito, já não é sempre e fundamentalmente fictio? Agostinho pensa a
possibilidade de uma ficção que se abstivesse do imaginário e se originasse do
espírito da verdade. Mas somente o próprio Deus ainda seria o autor de tal
ficção absoluta.
Também na Consolatio philosophiae de Boécio, a obra da Antigüidade tardia
que devia exercer a maior influência na literatura medieval, a arte e a poesia
eram rechaçadas como falso consolo. Ante a iminência de sua morte, o eu
desesperado da Consolatio philosophiae – o do próprio Boécio, que, no cárcere,
aguardando a pena capital, recupera a serenidade pela expressão e objetivação
verbais – assume confiança pelo espetáculo de toda a ordem cósmica. A
Consolatio se entrega à liberação interna da iminência da situação opressora até
ao ponto em que é alcançada a serenidade filosófica, fundada na confiança no
todo. No começo da Consolatio, apresenta-se um poema de queixa e dor, em
que o eu busca amparo nas musas, cujo consolo embusteiro apenas aumenta a
dor. Ao que se acha prostrado em seu catre, apresenta-se, no meio de suas
queixas poéticas, a forma majestosa da philosophia, que afugenta as musas que
circundam o leito do desditoso: “Quis, inquit, has scaenicas meretriculas ad hunc
22
aegrum permisit accedere, quae dolores eius non modo nullis foverent remediis
verum dulcibus insuper alerent venenis? Hae sunt enim, quae infructuosis
affectuum spinis, uberem, fructibus rationis segetem necant hominumque mentes
assuefaciunt morbo, non liberant [“ Eu, que antes compus cantos com todo o
fervor, ai de mim, como o destino me impõe melodias tão tristes. E então as
musas, surpresas, diante da dor profunda, me determinam e lágrimas do maior
sofrimento banharam o rosto delas. Pois o horror logrou vencê-las;
companheiras, as únicas que seguiram minha trilha”(Consolatio philosophiae,
4)]. A despedida das musas pela filosofia por assim dizer repete sua despedida
por Agostinho, mas, como neste, também em Boécio, à ficção, sob a guia da
filosofia, se concede um certo direito, talvez ainda mais oculto. Que a filosofia
expulse as musas do afeto, cuja imaginação revolve mais profundamente a
desgraça do eu, não significa que, no curso do tempo, a filosofia recuse a ajuda
da poesia. Esta se torna, por assim dizer, o prêmio sedutor no caminho da
compreensão e da serenidade filosóficas. Constantemente, a filosofia se serve
da poesia, chega mesmo a se apropriar da linguagem poética para fazer com
que o eu enfraquecido prossiga no caminho da filosofia. No nono poema do livro
3, Deus, como em Ovídio, se converte em criador: “Quem non externae
pepulerunt fingere causae /Materiae fluitantis opus” [“Nenhum poder externo te
impulsiona a formar da massa que flutua tua criação” (Consolatio philosophiae,
128)]. À própria matéria a filosofia pede sua ajuda para que o espírito se alce
sobre as dificuldades terrenas. Quando assim Boécio toma a poesia a serviço da
filosofia parece, por outro lado, que a poesia é o lugar em que a sublimidade da
fictio divina pode ser figurada no universo, o que nenhuma linguagem filosófica é
capaz de exprimir. Só através da poesia, além da filosofia, o eu pode se livrar
dos artifícios das doces sereias, que nele introduziram a poesia do desconsolo.
É estranho que essa poesia que se afirma contra a filosofia seja, ao mesmo
tempo, o lugar em que os mitos tradicionais mantenham sua função como
representações, embora não mais se organizem como criações fictícias
autônomas.
23
III. Etapas na reabilitação da ficção
Agostinho e Boécio são testemunhas poderosas do começo do que se chamou
“o cativeiro da mitologia na Idade Média”11 e do que com maior razão se poderia
chamar o cativeiro da ficção. A alegoria e a alegorese são os lugares em que a
ficção, como figura da verdade, conserva um relativo direito próprio. A alegoria,
mais do que a praxis interpretativa da compreensão figural, podia ao mesmo
tempo tornar-se o lugar em que a ficção recuperava sua peculiaridade. O
renascimento da ficção, a partir do espírito da alegoria, preludia, contudo, um
outro e surpreendente modo de configuração ficcional. Ele ganha, nos tempos
modernos, uma significação imprevisível e que mais a mais se tornará o próprio
paradigma da ficção: o romance.
A princípio, romance – no francês antigo, “romanz” – e ficção não são
sinônimos. O substantivo romanz, derivado do adjetivo de mesmo nome, que
remete ao latino romanice (loqui), descreve de início traduções do latim na
linguagem vulgar (francesa) e logo depois também textos, dirigidos à leitura, que
não mais seguiam o modelo latino. Nos primeiros tempos, romanz parece se
encontrar como substantivo no anglo-normando, especialmente na corte
londrina, onde o francês, a língua do conquistador normando, se convertera na
língua da camada superior e dominante. Como romanz já vêm a ser descritas as
redações em língua vulgar da Historia regum Britanniae, de Geoffrey de
Monmouth, em cujo centro se encontra a saga do rei Artur. Neste contexto, as
redações poéticas de Waces, sobretudo, levaram a designação romanz ao plano
de um gênero autônomo. Mas, na metade do século XII, como romanz também
se compreendem as redações originadas de antigas épicas ou de matérias
dramáticas, o Roman de Troie, o Roman de Thèbes, assim como o Aeneas, do
francês antigo, que apenas vagamente podem ser entendidos como romances,
no sentido do significado tardio da palavra. O verdadeiro descobridor do
romance, no sentido moderno, é Chrétien de Troyes, que, a partir da história do
11 Cf. H. R. Jauss, “Allegorese, Remythisierung und neuer Mythos. Bemerkungen zur christlichen Gefangenschaft der Mythologie im Mittelalter”, in M. Fuhrmann (ed.), Terror und Spiel. Probleme der Mythenrezeption (Munique, 1971), pp. 187-209.
24
legendário rei Artur, como é atestada por Geoffrey e Wace, que concebe um
imaginário mundo de Artur, na qual, entretanto, não só o próprio rei Artur mas os
cavaleiros de sua távola redonda ocupam a posição central12. Ao passo que a
chanson de geste do francês antigo converte os heróis na corporificação ideal de
interesses coletivos e, como poesia oralmente exposta, se volta para um público
que se identifica com tais interesses, os cavaleiros de Chrétien são muitas vezes
aturdidos pela singularidade que os restitui a seu próprio destino, que os
provoca a precisas aventuras, em um mundo sujeito a prodígios e ao
imprevisível. Os romances de Chrétien, que se processam na interioridade,
parecem dar a entender que se sobrepõem ao interdito da ficção, que levantara
a teologia cristã da Antigüidade tardia e da Idade Média. Só em seu ultimo
romance, Perceval, aparece no horizonte do mundo cavaleiresco o mundo da
devoção cristã.
É fascinante ver como em Chrétien se modifica o conteúdo do romanz, utilizado
auto-referencialmente, e como seu significado cada vez mais se aproxima do
conceito de uma ficção de novo legitimada. Ao passo que o romanz a princípio
assinala a tradução por completo tradicional em língua vulgar, mais
precisamente em francês ou a tradução fictícia do latim – parece como se o
romanz só alcança sua validez quando já não diferencia entre as línguas e
dialetos românicos – o texto que Chrétien descreve como romanz torna-se cada
vez mais consciente de sua própria forma e de sua genérica potencialidade
como paradigma de um novo gênero literário. Não parece acidental que a nova
consciência de ficção por Chrétien, cristalizada no novo conteúdo do romanz,
encontre seu ponto de partida em Ovídio. Em Cligès, escrito depois de Eric et
Enide, Chrétien a princípio se põe como autor e, a seguir, como tradutor da Ars
amatoria, de Ovídio: “Cil qui fist d’Erec et d’Enide, / et les comandemanz d’Ovide
/ et l’art d’amors an romans mist” [“Aquele que fez Erec et Énide e os
12 Cf. Brigitte Burrichter, “Wahrheit und Fiktion. Der Status der Fiktionalitär in der Artusliteratur des 12. Jahrhunderts”, in Beihefte zur Poetica, 21 (Munique, 1996); Volker Martens/Friedrich Wolfzetel (eds.), Fiktionalität im Artusroman (Tübingen, 1993); Alastair J. Minnis (ed.), Medieval literary theory and criticism c. 1100-c. 1375 (Oxford, 1988), pp. 113-164
25
Commandements13 de Ovídio, que pôs em romance L’Art d’amour” (Troyes, C.
de: Cligès, vv. 1-3)}.
Acrescente-se que Chrétien também traduziu dois episódios das
Metamorfoses. Já em seu primeiro romance, como antes o fizera Ovídio,
reivindica haver criado uma obra válida para o mundo inteiro: “Des or
comancerai l’estoire / Qui toz jorz mes iert an mimoire / Tant con durra
crestiantez:/ de ce s’est Crestiens vantez” [“Começo aqui meu relato. Chrétien se
gaba de que a lembrança desta composição durará tanto quanto a cristandade”
(Troyes, C. de: Eric et Énide, vv .23-6)].
Chrétien crê que a razão desta validade está em haver conseguido o que ele
próprio chama uma “bele conjointure”, uma sutil conexão interna do enredo, com
que acredita haver se diferenciado qualitativamente dos jograis que declamavam
suas histórias na corte e as preparavam para a necessidade correspondente,
enquanto ele oferecia uma forma escrita duradoura. De fato, a descoberta genial
de Chrétien não depende simplesmente da escrituralidade de um texto por si
bastante vivo, mas sim de uma complexidade narrativa, sem dúvida conseguida
graças ao meio da escrita, cujo potencial imaginário encontra seu ponto de
partida na situação de comunicação da leitura. A formula “lire romanz”, em
oposição a escutar a canção de gesta, é sempre essencial para o romanz, mas
em Chrétien esta forma se torna a única comunicação mediata para o dispositivo
de recepção adequado para a admissão dos complexos processos internos de
lembrança e memória, de perda e encontro de identidade: (cf. Stierle, K.: 1993,
117-59)14. Somente Chrétien converte a leitura em uma forma estética específica
de recepção, que se distingue de todas as outras formas de uma leitura
alegórica da ficção. O leitor isolado se ligla à consciência isolada dos heróis e o
prazer estético daquele tem novas perspectivas internas. Mas ao mesmo tempo
o leitor estará obrigado a ter presente, pela ironia da ficção, o fictício da ficção.
13 Segundo Daniel Poirion, editor dos romances de Chrétien, trata-se provavelmente de obra intitulada Remédios do amor, que se perdeu (cf. Poirion, D., notas à edição das Oeuvres completes de Chrétien de Troyes, Pléiade, Paris, 1994 (N. do Tr.)14 Cf. Stierle, nota 7; Stierle, “Die Unverfügbarkeit der Erinnerung und das Gedächtnis der Schrift. Über den Ursprung des Romans bei Chrétien de troyes, in A. Haverkamp/R. Lachmann (eds.), Vergessen und Erinnern (Munique, 1993), 117-159.
26
Há no romance de Chrétien uma contradição entre histoire e discours, pela qual
o discurso ilumina cada vez mais o fictício da ficção. Com Erec et Énide,
Chrétien ao mesmo tempo abre um novo mundo narrativo, que,
fundamentalmente, que ultrapassa sua ligação com a histoire isolada. Os
romances seguintes são sempre novas explorações deste espaço narrativo.
Depois de Chrétien, este se amplia de maneira imprevisível quando o mundo de
Artur se abre a novos mundos narrativos e as soluções da prosa de Lancelot, de
Perceval, de Tristan se reunem a poderosos complexos narrativos, pelos quais o
movimento próprio da ficção dinâmica e em ampliação por fim faz ressaltar um
autor concreto. Mas já em Chrétien é específico para o romance, como nova
forma de ficção, a tendência de pluralização multidimensional, que, a partir de
então, será o traço marcante da grande forma do romance, em relação às
formas de narrativa simples.
Com o Roman de la rose, de Guillaume de Lorris, comeca um novo capítulo na
história da reabilitação do conceito de ficção, posto desde a Antigüidade tardia
no banco dos réus. Seria entretanto falso dispor este texto, que se descreve a si
próprio explicitamente como romanz (“E se nus ne nule demande / comment je
vueil que li romanz / soit apelez que je comenz, / ce est li Romanz de la Rose, /
ou l’Art d’Amors est toute enclose [“E, se alguém pergunta como o romance que
começo deverá ser chamado, (respondo-lhe que) é o romance da rosa, em que
está contida toda a arte do amor” (Le Roman de la rose, vv. 34-8), como
pertencente ao mesmo gênero que Chrétien tinha fundado. O Roman de la rose
é romanz em um sentido antigo, pois se dispõe como alegoria para ser lido. Pois
a alegoria como forma de apresentação procede da alegorese, que é sempre
uma práxis de exposição de textos escritos. Mas, enquanto na primeira fase de
sua conjuntura cristã, a alegoria serve a uma praxis literária de afastamento do
mundo, a apresentação alegórica de Guillaume leva a cabo, pela primeira vez,
uma nova praxis de laicização do mundo, o recuo da esfera conceitual na esfera
da contemplação sensível. Pois o Roman de la rose é uma celebração da beleza
e do amor em um mundo só pertencente a estes, ainda que sempre ameaçado
por forças contrárias. A alegoria como uma poesia dos conceitos tem um
27
fundamento conceitual-sistemático. Aqui está a ars amatoria de Ovídio, que não
obstante vai além das estratégias de sedução sensível de Ovídio, pois abriga em
si a doutrina do amor cortês. Mas este saber sistemático do amor e das forças
favoráveis e antagônicas a ele é trazido por Guillaume à perspectiva subjetiva da
experiência15 .Antes ainda de haver seu amor encontrado o objeto de seu
desejo, sonha Amant que deixa a cidade em um belo dia de primavera, penetra
no campo aberto e ali descobre o império do amor. Ele é cercado por uma
muralha, em cuja parte externo estão fixadas as imagens daquelas forças
alegóricas que destroem a plena consumação do amor. Introduzido por Oiseuse,
Amant encontra a Rose, a quem cortejará e que, como promesse de bonheur,
aponta para a Dame, que tem o seu afeto e que (ainda?) não retribui a seu
amor. O perspectivismo subjetivo da alegoria do amor de Guillaume implica uma
mudança importante na consideração da ficção. Ao passo que a antiga ficção
fundamentalmente assinalava o território de sua produção e esta mesma se
convertia em objeto primeiro da atenção do leitor – por exemplo, quando em
Ovídio se trata de Narciso, Pigmalião ou das bela portas do Sol, construídas por
Hefaisto –, é o olhar que incide nas alegorias de entrada da muralha e do
império de Amors, um olhar subjetivo que dá vida ao mero esquema
apresentado, o resultado do trabalho artístico.
Assim como Chrétien, também Guillaume se intimida em voltar a conceder seu
direito à ficção. Esse direito ainda era bastante afetado por sua aparência de
puro engodo. O songe alegórico é, na verdade, ficção, mas permanece uma
ficção inconsciente ou ficção que ainda não ousa exprimir-se como ficção. Como
já em Chrétien, em Guillaume, bem como em seu continuador Jean de Meung,
Ovídio é o ponto de partida para a renovação da ficção. Amant, no momento que
é alcançado pela seta de Amors, ao se inclinar sobre a água do poço, tornou-se
o Narciso que antigamente se arruinara. Na segunda parte do Roman de la rose,
é Pigmalião que depois arde de desejo em se apropriar em vida da forma criada
por ele. Deste modo Pigmalião corresponde ao Narciso da primeira parte, que
15 Cf. Jauss, “Form und Auffassung der Allegorie in der Tradition der Psychomachia”, in H. R. Jauss:/D. Schaller (eds.), Medium aevum vivum. Festschrift für Walter Bulst (Heidelberg, 1960), pp. 202-206.
28
aspira à imagem ideal, involuntariamente criada por ele mesmo.
Também a Divina commedia (1321), de Dante, que tinha todo o direito de
chamar-se ficção, no sentido antigo da palavra, evita cuidadosamente o
conceito. Ou ele encontra aplicação onde se trata da criação divina, ou onde se
trata da própria obra. A obra do poeta não é uma ficção racional, mas sim
inspiração e o Deus que criou como sua obra de arte absoluta, no Canto X do
Purgatório, o baixo-relevo dos humilhados, é igualmente compreendido não
como um senhor do fingere, mas sim como produtor de uma obra de arte, por
cuja virtualidade penetra instantaneamente na atualidade estética [ “Colui che
mai non vide cosa nova / produsse este visibile parlare” (vv. 94-5) (“Aquele que
desconhece novidade / produziu este visível falar”) ] ou seja, na ficção suprema.
Esta, no entanto, é atualizada, como a alegoria do Roman de la rose, não no ato
de produção, mas apresentada pelas perspectivas subjetivas e vivificantes,
engendradas no observador de Dante pela obra de arte absoluta.
Também na Commedia de Dante se renova o Ovídio onipresente das
Metamorfoses. E, como este Ovídio, também Dante converte sua Commedia no
lugar de um sistema das belas-artes16.
Com Boccaccio, sucede a reabilitação da ficção em sua última e decisiva fase,
em que o conceito de ficção ganha outra vez um significado próprio. Em
prosseguimento direto de Ovídio, Boccaccio concede à ficção um novo direito,
além da alternativa tornada improdutiva entre verdade e mentira. Além do mais,
especialmente o jovem Boccaccio, experimenta várias formas e possibilidades.
Prosseguir Ovídio sob novas condições, mas também tornar disponível o
romance e a alegoria do amor do Roman de la rose e, assim, experimentar
novas formas de um bricolage híbrido de mitos.
Seu Filocolo, um animado romance em prosa de aventuras e de amor,
conforme ao modelo de Fleure et Blanchefleure do francês antigo, o romance
16 Cf. Stierle, “Das System der schönen Künste im ‘Purgatorio’ von Dantes Commedia”, in Stierle: Ästhetische Rationalität. Kunstwerk und Werkbegriff (Munique, 1997), pp. 389-416; Stierle, “La Table du monde et le système des beaux-arts: Ovide, Dante, Proust”, in Rassegna europea di letteratura italiana, 12 (1998), pp. 9-35; Richard Hamilton Green, “Dante’s ‘allegory of poet’’and the medieval theory of poetic fiction”, in Comparative literature, 9 (1957), pp, 118-128.
29
sentimental do amor infantil entre o filho do rei pagão espanhol e a menina
cristã, que leva a uma história de amor fabulosa e perfeita, é uma ficção no
espírito do novo romance e da ficção de Ovídio. A história da criação e a
sagrada história cristã são aí traduzidas na linguagem das mitologias antigas.
Em um qüiproquó atrevido, o Deus cristão se converte no summo Jiove, que
forma seu filho Prometeu com as próprias mãos, antes que criasse Adão e Eva,
segundo o modelo divino. Com a conversão do herói Florio ao cristianismo, a
ficção, por assim dizer, por fim se reconverte em um mundo cristão normativo. O
antigo céu dos deuses, de novo submetido, se unifica para que se torne a razão
de uma legibilidade anagógica, i.e., cristã. O Filocolo é o experimento ousado de
amalgamar uma camada narrativa cristã-medieval com uma pagã-antiga.
Enquanto a Ninfale fiesolano, como já antes a Comedia delle ninfe fiorentine,
constrói um mundo onírico arcaizante e fictício na concreta paisagem toscana, a
Amorosa visione é um sonho alegórico, que, na seqüência do Roman de la rose,
se abre, à maneira da Commedia de Dante, a uma galeria de formas pagãs,
judaicas e modernas dispostas em distintas regiões do mundo. Conduzido por
uma “donna gentil”, o eu chega a uma ampla porta, onde, contra o conselho da
donna, se dirige, à maneira de Giotto, às formas pintadas na parede, que, em
marcha triunfal, parecem desfilar à sua frente. Apesar dos esforços da nobre
dama, o eu se decide a não se separar das formas mundanas. A transformação
do amor mundano em mais alto amor fracassa, mesmo se o narrador afirme sua
conversão definitiva. Renova-se aqui o olhar subjetivo, que dá vida às formas,
ao passo que outra vez se dissipa o aspecto de produção. Na “elegia” Fiametta -
em que Fiametta, como o Amant do Roman de la rose, se envolve em uma
história de amor manifesta, conta seu triste destino às amigas, que, pelos
informes contraditórios vindos de Florença, o lugar em vive o amado, parece de
todo impossível -, o Ovídio da carta de Phyllis a Demofon é mais uma vez o
modelo evidente (cf. Ovídio: Heroides 2). Em todas essas obras, Boccaccio
realiza, na tradição da alegoria do amor do romance do francês antigo e de
Dante, uma nova idéia articulada de ficção, ao mesmo tempo consciente dos
antigos, que antes de tudo se inspira em Ovídio. Mas só na Genealogie deorum
30
gentilium - a apologia de Boccaccio da poesia pagã e, em suma, da poesia
ficcional – o próprio conceito de ficção recupera sua função e significado.
O Livro XIV da Genealogie (começado entre 1360 e 1365), ponto alto na
grande pesquisa de compor ou fingir um grande todo a partir de fragmentos de
mitos dos antigos, oferece a defesa da poesia contra seu desprezo cristão.
Assim, a ficção de novo se libera do ódio à mentira, e a poesia e a ficção
estabelecem uma aliança indissolúvel. O poeta é um produtor de ficções e, na
verdade, em um duplo sentido. Cria uma bela obra verbal, mas, ao mesmo
tempo, também a ilusão de um mundo em que o leitor pode ingressar. Mas,
como ficção, a poesia não é um engodo. Ela começa a participação em um
mundo que, do contrário, deveria permanecer fechado, sem que deste modo já
houvesse sido decidida a cunhagem específica de um gênero. A épica, o
romance, a narrativa curta ou a lírica são poesia, em igual medida. A faculdade
do poetar é igualmente doada pelo deus pagão e por Cristo. Por isso é justo que
também a poesia dos antigos pagãos tenha o direito de ser lida. “Amplissima
quidem fingendi est area, et pleno semper fictionum cornu poesis incedit; non
ergo deficiebant quibuscunque sensibus honestissima tegumenta” [“Amplo é o
campo do invento poético e sempre a poesia vem acompanhada por um clarim
cheio de ficção. Assim não lhe faltam abrigos respeitáveis e pertinentes para
cada sentido profundo” (Boccaccio, G.: Genealogie deorum gentilium 14, 14)].
Nunca a amplidão e a diversidade da ficção foi tão exaltadamente apreciada
como em Boccaccio. O poeta se apresenta em competição com a própria
natureza: “Quicquid eius opera ratione operantur perpetua, poeta celebri conatur
describere carmine. Quod si intueri velint isti, videbut formas, mores, sermones
et actus quorumcunque animantium, celi syderumque meatus, ventorum fragores
et impetus, flammarum crepitus, sonorous undarum rumores, montium
celsitudines et nemorum umbras atque discursus fluminum adeo apte descriptos,
ut ea ipsa parcis in licterulis carminum inesse arbitrentur” (“Pois o poeta procura
por todos os meios, em exxcelentes versos, narrar tudo que a própria natureza
alcança na organização incessante de suas obras. Se os adversários quiserem
refletir a respeito, encontrarão formas, costumes, conversas e ações de todos os
31
animais, os movimentos do céu e das estrelas, o bramido dos ventos, o crepitar
das chamas, o fragor sonoro das ondas, a elevada altura das montanhas, a
sombra dos bosques e o curso dos rios tão detalhadamente descritos que se
poderia crer que estivessem contidas nas letras do poema” (Genealogie 14, 17).
Mas os poetas não são apenas imitadores da natureza, na plenitude de seus
fenômenos concretos. Em suas obras, são idênticos aos filósofos, aos profetas e
aos teólogos. Têm, no entanto, seu entendimento original e um modo específico
de traduzi-lo na linguagem. Os poetas estão submetidos ou à filosofia ou à
teologia. Suas ficções não são um jogo vazio da linguagem, mas sim uma tela,
atrás da qual se oculta um sentido mais profundo. A própria ficção é apenas a
bela superfície, sob a qual o sentido se desvela. Entretanto este não apenas
sucede aos entendimentos da religião, da teologia e da filosofia, senão que os
pressupõe. E não por acaso os arautos de religião propagam com freqüência
uma linguagem, que é a linguagem da poesia. Para Boccaccio, a poesia é de
relevância antropológica, mas nela, ao mesmo tempo, se manifesta uma
compreensão originária, pré-religiosa, na experiência do divino. Boccaccio fala
aqui a partir do espírito de Dante, que se via ao mesmo tempo como filósofo e
teólogo e que, no entanto, como poeta, na visão complexa, imaginada,
impulsionada por metáforas, superava seus conceitos filosóficos e teológicos.
Seria, secretamente, a poesia mais filosófica do que a filosofia, mais teológica do
que a teologia? Boccaccio não vai tão longe e nem poderia ir. Contudo este
parece ser o ponto de vista não explicitado de sua defesa da poesia contra seus
detratores. Boccacio demonstra por um exemplo o quanto o argumento poético e
ficcional se distingue da argumentação discursiva do filósofo. Quando Virgílio
quer mostrar a ruína que a paixão causa ao homem, não define o que é a
paixão, mas descobre um equivalente imaginário do conceito que lhe permite
formulá-lo, ao mesmo tempo, em sua universalidade conceitual e nos múltiplos
matizes e sombreados. Mesmo por isso, a poesia se opõe sobretudo à retórica,
de que entretanto necessita para se exercitar na flexibilidade da palavra, para o
desdobramento de seu registro emotivo.
Francesco Petrarca tem com o conceito de ficção uma relação muito mais
32
descontínua do que Boccaccio, seu amigo mais jovem e que se considerava seu
discípulo. Nas poesias de seus Rerum vulgarium fragmenta, mostra-se manter
uma relação tensa e conflitiva que envolve Ovídio e Agostinho. Petrarca é por
certo o primeiro que reconheceu que os mitos da arte de Ovídio são
essencialmente mitos ou ficções sobre as artes, sua origem e natureza. Mitos de
arte como os de Apolo e Dafne, Aracne, Narciso e Pigmalião desempenham no
Canzoniere um papel decisivo. Estes, entretanto, agora se tornam em momentos
de uma ruminação reflexiva da autodiscórdia, que oscilam entre a fascinação do
mundo e sua recusa, com que Agostinho e sua negação do mundo formam o
pólo oposto do deleite dos sentidos de Ovídio. As ficções objetivas de Ovídio
tornam-se em Petrarca projeções subjetivas da consciência que em si mesma se
arruina. Na chamada “Canção das metamorfoses” (nº 23), é citada toda uma
série de mitos de metamorfose de Ovídio, para atualizar o estado interno do
amante frustrado e sua metamorfose na concretude das imagens do poema17. O
caminhante na estranha paisagem crê que a imagem da lembrança da amada
vem em sua direção18. Em ambos os sonetos ao pintor Simone Martini, que
fizera para Petrarca um desenho (ideal?) de Laura (cf. Petrarca, F.: Canzoniere,
números 77, 78), a imagem se torna em ficção viva aos olhos do observador. A
presença da imagem da Laura ausente torna-se tão intensa que o poeta crê
converter-se em um novo Pigmalião. Mas não é a própria Laura, a amada, que
sustenta o nome da fama ambicionada pelo poeta, uma ficção poética? Esta é a
hipótese que o amigo de estudos de Petrarca, Giacomo Colonna, bispo de
Lombez, parece ter manifestado e a que Petrarca responde em uma carta de 21
de dezembro de 1331. Numa indignação imediata contra a censura, “manufacta
esse omnia, ficta carmina, simulata suspiria” (“tudo é fabricado: as canções são
fingidas, simulados os suspiros”), termina com o pedido: “Hoc saltem oro, ne
finxisse me fingas” (“Ao menos esta, te peço, não me impinjas que eu haja
17 Cf. Stierle, “Metamorphosen des Mythos. Petracas Cansone ‘Nel dolce tempo’ “, in W. Haug/B. Wachinger (eds.), Traditionswandel und Traditionsverhalten (Tübingen, 1991), pp. 24-45.18 Cf. Francesco Petrarca, Canzoniere, nº 127,129l Rino Caputo, Cogitans fingo. Petrarca tra ‘Secretum’ e ‘Cansoniere’ (Roma, 1987), pp. 77-116.
33
fingido”)19. Fica, no entanto, a questão se a própria carta não é ficcional, e se
Petrarca, engenhosamente, aqui não pratica uma mistificação.
No Secretum, o colóquio imaginário com Agostinho, este censura Petrarca por
idolatria, que tem Laura, cujo retrato ele leva por todas as partes, por objeto,
bem como por sua fuga no isolamento, que a tal ponto excita seus sentidos que
a ausente parece se lhe mostrar. A fictio se converte em “infame privilegium”
(Secretum, 146), a que Agostinho se opõe com palavras que Virgílio empregara
a propósito da ruína do amor de Dido: “Illum absens absentem auditque
videtque” [“Está longe dele e ele, dela e ela o escuta e o vê (Aeneis, IV, 83)].
Agostinho converte a passagem em “Illam absentem absens audies et videbis”.
Virgílio está precisamente na contrafce do poeta, a quem Agostinho está
propenso a conceder que a sua Eneida não é simples mentira, mas sim que
formula uma compreensão psicológica relevante sob as vestes da ficção. Isso
vale de igual para a apresentação do assombro [“obstipuit” (Aen. I, 613)] que
sente Dido ao primeiro olhar de Enéias: “Que quamvis, ut nosti optime, fabulosa
narratio tota sit, ad nature tamen ordinem respexit ille, dum fingeret” [“Embora,
como bem o sabes, o relato seja inventado, o poeta, enquanto o imaginava,
respeitou a ordem da natureza” (Secretum, III, 132)]. Contra a objeção de que
Virgílio dava demasiado espaço às ficções, Petrarca, em sua carta a Federico
Aretino, se esmera na justificação bastante tradicional de que sob as ficções se
ocultam esplêndidas verdades alegóricas (Seniles, 4, 5).
Ao invés, no começo do tratado De vita solitaria (começado em 1346 e
ampliado até 1371), a fictio outra vez é posta em oposição unidimensional à
verdade. Em uma formulação elegante, são elas contrapostas pelo aspecto
temporal: “Ut enim immortalis est veritas, sic fictio et mendacium non durant”
[“Para que a verdade seja imortal, a ficção e a mentira hão de ser fugazes” (De
vita solitaria, 262)]. Para que, entretanto, a pura ficção signifique a consumpção
no tempo, é preciso que o aspecto que adere à obra e à sua própria duração
seja posto entre parênteses. A ficção não é aqui mais uma terceira via, mas o
que se opõe à verdade, em um encaminhamento bem diverso da formulação
19 Petraca a Giacomo Colonna (21.12.1336), in Epistotae familiars, 2, 9
34
que Petrarca apresentava em sua grande carta a seu irmão Gherardo, em que
vai tão longe a ponto de, como Boccaccio, fazer com que quase coincidam a
teologia e a poesia: “Parum abest quim dicam theologiam poeticam esse de deo”
[“Pouco temo falhar quando descrevo a teologia como a poesia proveniente de
Deus (Epistolae familiares 10, 4)]. Petrarca leva então especialmente em conta o
seu Bucolicum carmen, um poema bucólico que se funda na decifração
alegórica do sentido oculto. Antes mesmo de Boccaccio, Petrarca recorre à
justificação da poesia por Lactâncio, devendo ter estimulado bastante Boccaccio
a escrever a sua Genealogie deorum gentilium. Em seu discurso de
agradecimento na festa de sua coroação como poeta, em 1341 em Roma, cita
expressamente Lactâncio, ao afirmar o direito próprio do officium poetae (cf.
Collatio laureationis, 1270). Em sua polêmica contra o médico que caçoava de
sua poesia, Lactâncio renovava o testemunho em defesa da ficção poética,
desta vez, contudo, contra a concepção averroísta, de uma ciência da natureza
(cf. Petrarca: Invective contra medicum: 842).
IV. ficção liberada
O próximo passo na história da significação da “ficção” está estreitamente ligada
à história do romance entre a Idade Média e o Renascimento. Depois de
Chétien, abre-se ao novo gênero uma poderosa potenciação estrutural, que se
acompanha de uma nova exigência ficcional de verdade, que se conecta a uma
gênero que se exprime em prosa. Os romances em prosa depois de Chrétien, o
Lancelot, o Tristan em prosa e, acima de tudo, o ciclo em prosa de Artur são
compilações vigorosas de autores anônimos, que, por assim dizer, procuram ir
imaginariamente além do mundo de Artur, aberto por Chrétien. O romance o
consegue por um movimento narrativo fundamentalmente interminável. Para
isso, os diferentes mundos do relato se impulsionam uns aos outros, de maneira
que o leitor é levado de um ao outro. Com tal fim, estes romances empregam um
procedimento narrativo, que já desempenhava um papel progressivo em
Chrétien, o chamado entrelacement, o enredamento de fios narrativos
35
diferentes, que fazia o leitor experimentar uma graduação imprevisível de
mundos, de heróis e seus destinos. O narrador, que dispõe livremente e como
com toda a arbitrariedade, requer do leitor a consciência de uma copresença
extraordinária de formas, destinos e espaços, que se impunha a seu espaço de
representação e o conduzia às mais extremas fronteiras de sua própria e porosa
experiência do ser-no-mundo, até ao maravilhoso e ao outro. Desprendido das
coações formais e das leis de economia de Chrétien, o romance se torna o lugar
de uma dinâmica, que o converte na obra de arte ficcional da pluralização.
Mas a estas novas tendências também se combinam as misturas híbridas da
identidade oral e heróica nascida com a chanson de geste e do romanz voltado
para a leitura, com seu mundo da experiência subjetiva do cavaleiro, em
demanda de sua identidade isolada e de seu próprio destino. Por essa mistura,
as orientações formalmente constitutivas da chanson de geste e do romance
cortês são postas de lado. O mundo épico, como em Huon de Bordeaux, abre-se
para o maravilhoso e fantástico, ao mesmo tempo que a terra de ninguém do
romance abre-se para o horizonte do mundo real. Com suas fronteiras e suas
próprias leis, põem-se lado a lado os mundos cristão e pagão, mas agora
também se abrem imaginariamente, de tal modo que o herói cristão no mundo
pagão e o herói pagão no mundo cristão podem buscar sua identificação.
Também aqui o entrelacement muitas vezes desempenha um papel decisivo,
não mais porém como arbítrio do narrador que aceita a pluralidade dos “destinos
cruzados”20 ou como objetividade épica do ofuscamento recíproco de mundos
antagônicos, mas sim como superposição de ambas as formas em uma
apresentação complexa do mundo21.
A desterritorialização do romance em sua fase pós-Chrétien, como se
desenvolve, em dinâmica crescente, nos séculos XIII e XIV franceses, é o
pressuposto para que, na Itália do século XV, uma nova forma pudesse surgir,
que se compreendia essencialmente tendo em conta a ficção e a relação livre e
irônica com o material narrativo premoldado na França. Essa forma nova era o
romance. Se a princípio, romanzo é apenas a designação italiana do romanz 20 Cf. Italo Calvino, Il Castelo dei destini incrociati IMilão, 1973).21 Cf. Stierle, nota 7
36
francês, logo, na segunda metade do século XV, o gênero expressa a própria
perspectiva italiana do gênero. Seu ponto culminante é alcançado nas primeiras
décadas do século XVI, com o Orlando furioso (1516), de Ariosto. É essencial
para a estrutura do romanzo a mistura de temas do romance arturiano com
outros da chanson de geste e sua refração irônica por um narrador que relaciona
e comenta, pela descoberta de situações cômicas, pela criação de sempre
outras desilusões do leitor e, sobretudo, pela dominância temática do amor, em
todos seus matizes. A isso se acrescenta a rica ordenação formal do relato na
forma da oitava rima, a estrofe endessilábica de oito linhas com versos em rimas
cruzadas e uma acentuada rima emparelhada final. Um anônimo Orlando,
hipoteticamente originado no início do século XV, forma talvez a origem do
gênero. Mas o gênero só alcança a plenitude de suas possibilidades com
Morgante (1478), de Luigi Pulci e com o inacabado Orlando innamorato, de
Matteo Maria Boiardo, aos quais, como continuação e superação, encerra a obra
inexcedível do gênero, o Orlando furioso, de Ariosto.
O mundo de Orlando furioso é um mundo de ficções, do engano da bela
aparência, do que parece, da ilusão, do feitiço e do contrafeitiço, em que a
oposição entre o verdadeiro e o falso se dissolve em ambigüidades
inextrincáveis e sibilinas. Fingere é, em Ariosto, um obstinado tema recorrente.
O mundo não é mais como aparece para os heróis e para o leitor, mas, sob a
aparência, abre-se o abismo de máximas incertezas. Angelica, encarnação da
beleza real e da sedução, medita já no Canto primeiro em como poderá dobrar
Sacripante, um de seus cultores, sem cumprir sua vontade: “Ma alcuna finzione,
alcuno inganno, / di tenerlo in speranza ordisce e trama” [“Urde e trama entreter
sua esperança / por alguma ficção, algum engano” (Orlando furioso I, 51, 5-6)].
O infame Brunello é “tutto simulato e tutto finto” [“por completo simulado e
fingido” (IV, 2, 7) e “di finzioni padre” [“pai de todas as mentiras” (IV, 3, 2)].
Piscando os olhos, diz o narrador a propósito de Hipogrifo, o cavalo mágico:
“Non è finto il destrier, ma naturale” [“O corcel não pertencia às coisas mágicas”
(IV, 18, 1). Diz-se ao contrário de seu possuidor, o mágico Atlante: “Del mago
ogn’altra cosa era figmento” [“Do mago tudo mais era mentira” (IV, 20, 1)].
37
Quando o poeta diz da bela e encantadora fada Alcina, a dona da ilha ditosa,
que tira o herói Ruggiero de seu desterro: “Di persona era tanta ben formata /
quanto n’finger san pittori industri” [“A beleza de seu retrato vai além / do que o
industrioso pintor jamais encontrou” (VII, 11, 1-2), refere-se ele, na verdade, à
arte do pintor, mas, ao mesmo tempo, é dado indiretamente ao leitor um sinal de
que a beleza de Alcina poderia ser “finta”, mágica ou enganadora. A feiticeira é
necessária neste mundo para que o mundo se veja a si mesmo livre do engano,
mas isso mesmo não seria um engodo? (cf. Orlando furioso, VIII, 2)].O duplo
sentido, herdado do latim, de fingere – produção de uma forma estética e efeito
de um engodo – é engenhosamente encenado, quando se diz da atraente
Angelica, desnuda na ilha deserta: “Creduto avria che fosse statua finta / o
d’alabastro o d’altri marmi illustri” [“(Ruggiero) teria acreditado que fosse / uma
inventada estátua de alabastro ou de mármore” (X, 96, 1-2)].
A statua finta é, ao mesmo tempo, uma finta statua, ou seja, uma criatura viva.
Em um momento em que o narrador supostamente se assusta em ter de contar
o que “a história” o obriga, dirige-se a seu leitor, sobretudo à sua leitora, com a
proposta de que salte os três ou quatro próximos capítulos ou que os leia
ceticamente, como se fossem apenas ficção ou fábula, para que,
engenhosamente, se levante uma pretensão à verdade, que, no entanto, apenas
afirma a própria ficção como ficção: “Passi, chi vuol, tre carte o quattro, senza /
leggerne verso, e chi pur legger vuole, / gli dia quella medesima credenza / che
si suol dare a finzioni e a fole” [“Passem, se assim quiserem, três ou quatro
páginas sem / ler nenhuma linha e quem queira lê-las / deve lhes dar a mesma
crença / que se costuma outorgar a ficções e a loucuras” (XXVIII, 3, 1-4)].
O mundo fictício de Ariosto, que se abre, em profundidade imprevisível, para
enredamentos narrativos e graduações perspectivísticas, é um mundo do
fingere; por ele, ações e formulações verbais enganosas provocam o engano
dos sentidos e da capacidade de julgar, mas é também um mundo de embustes
óticos, de metamorfoses mágicas, de que são vítimas os personagens burlados
e o leitor. Neste mundo, também as coisas - que na chanson de geste e no
romanz estavam atadas em uma hierarquia de relevância narrativo-ideológica
38
fixa - ganham, por princípio, imprevisibilidade, uma imprevisível vida própria.
Elas se tornam quase sujeitos, que freqüentemente fazem dos heróis cômicas
vítimas da traição dos objetos. Pois há neste mundo, no qual cada certeza do
fenômeno se desmancha como ilusão, um novo modo de certeza e evidência
originada da própria aparência, a evidência do belo, não passível de ser negada
pela consciência do engano. Quando Ruggiero se aproxima do castelo da fada
Alcina, vê uma muralha que lhe parece de ouro, mas, ao passo que outros
poderiam supor a presença de um feitiço (alchimia), o narrador afirma: “A me par
oro, pois che sì risplende” [“A mim parece de ouro, porquanto brilha” (6, 59, 8)].
E, quando Ruggiero se põe diante da porta, cravejada de diamantes, do palácio,
mantém-se, em uma formulação memorável da bela aparência na história, a
autonomia e a realidade do belo, além da verdade e da falsidade: “O vero o falso
ch’all’occhio risponda, / non è cosa più bella o più gioconda” [“Seja verdade ou
engano dos olhos, / não há coisa mais bela ou mais jubilosa” (VI, 71, 7-8)].
Também a beleza originada do engano se exime [como ela?] e entra em uma
ordem do ser. Dispõe-se em uma oculta conexão com este lugar quando a
beleza de Alcina é comparada com o ouro resplandecente: “Oro non è che più
risplenda e lustri” [ “(Os cabelos louros) / Vencem a própria luz esplêndida do
ouro” (VII, 11, 4)]. Mesmo depois que ela, despojada de seu feitiço, se mostra
como uma velha odiosa, a beleza de sua aparência anterior não é apagada (cf.
IV, 6)22.
A forma de Hipogrifo, o cavalo mágico, de que se diz: “Volando, talor s’alza ne
le stelle, / e poi quasi talor la terra rade” [“Eleva-se agora às estrelas, / Agora
roça o chão” (IV, 6, 1-2)], é um emblema da liberdade e imprevisibilidade com
que se move o narrador no meio do imaginário. Se, no plano dos
acontecimentos, finzione significa a fraude generalizada, no plano da produção
literária significa o enlace artístico de um múltiplo narrativo. O romance como
tela (Gewebe) atualiza um dos dois gestos fundamentais do fingere, que já em
Ovídio era fundamental para a compreensão da ficção. A arte da tecelagem é,
22 Cf. Stierle, “Der Schein der Schönheit und die Schönhei des Scheins in Ariosts Orlando furioso”, in Klaus W. Hempfer (ed.), Ritterepik der Renaissance (Stuttgart, 1989), p. 277-298.
39
em, Ariosto, antes de tudo uma alta arte do entrelacement, que obriga o leitor a
ampliar sua experiência imaginária do mundo ao imprevisível. Como uma tela
que remete a si mesma, a grande obra narrativa de Ariosto ganha sua auto-
referência, que, como as muralhas de ouro de Alcina e como a própria Alcina,
deixa como supérfluas a questão da verdade e da fasidade. Às dimensões
múltiplas da ficção também pertence que o autor abandone sua história a uma
instância narrativa plural, que transforma o narrador que conta em um cantor
imaginário da chanson de geste que canta na praça aberta do mercado e se
entrega à autoridade narrativa de Turpin. O leitor se torna, por outro lado,
necessário para desempenhar imaginariamente o papel do ouvinte que escuta o
cantor. Quanto mais o narrador insiste na verdade de seu relato, que, não
obstante, se desfaz em uma seqüência de rupturas narrativas, tanto mais esta
se torna objeto de uma ironia ficcional que se autorevela. A divisa de Ovídio era
ainda “arte celare artem”; assim, a descoberta da ficção na ironia ficcional é um
procedimento novo da narratividade complexa, que desde então permanece
ligada à história do conceito de ficção. Mas a ironia ficcional, de que se origina,
com Friedrich Schlegel, a ironia romântica, desfaz tanto menos a ficção quanto a
desilusão da beleza pode apagá-la. Persiste o próprio espaço da poesia, cuja
beleza como ficção, cuja presença sensível na ordenação da sempre
surpreendente e engenhosamente acentuada ottava rima se libera do engano e
do autoquestionamento irônico.
V. A ficção domesticada
A dinâmica narrativa, liberada pela destruição do etos da forma da chanson de
geste e do romance cortês, alcançou no Orlando furioso de Ariosto por assim
dizer o ponto de um “furioso” do imaginário ligado à ficção. Com a
(re)descoberta da Poética aristotélica, sua edição, tradução e comentário ao
longo do século XVI, põe-se com urgência para a nova teoria italiana do poético
e da literatura a pergunta pela legitimidade estética da ficção que se
desencadeara e encontrara seu surpreendente ponto culminante no romance de
40
Ariosto. Em todas as posições divergentes ante a questão, mostra-se a
tendência constante de, digamos assim, sujeitar aristotelicamente a ficção de
Ariosto. Com isso, dois aspectos se destacam: trata-se de pôr o romance de
Ariosto sob o controle da compreensão aristotélica, em que, em princípio, na
épica, a unidade da narração tem de dominar à sua diversidade e em que,
apesar da grande variedade admitida, a épica deve permanecer estruturalmente
sob as mesmas condições de um mito que se move entre o começo e o fim,
como sucede na tragédia. Por outro lado, a ficção há de, como, depois de
Aristóteles, exigira Horácio, estar sob o princípio da verossimilhança e, deste
modo, ao mesmo tempo corresponder ao sentido geral formado a partir da
experiência. A querela sobre Ariosto23, que começa em 1549 com a Sposizione
sopre l’Orlando furioso de Simone Fornari, um defensor de Ariosto contra seus
críticos, é uma luta pela direção a ser tomada pela continuação e entendimento
da poesia italiana, em que também se trata da questão da continuidade entre
Idade Média e Renascimento ou da descontinuidade das épocas e do
renascimento da poesia, a partir do espírito dos antigos. Ao mesmo tempo,
origina-se nessa contenda os contornos de uma primeira teoria do romance, em
que se apresenta o romance como a forma legítima da ficção dos tempos
modernos, contra a concepção aristotélica da épica. Em 1554, Giovanni Battista
Pigna, em I Romanzi, e Giambattista Giraldi Cintio, nos Discorsi intorno al
comporre di romanzi justificam o romanzo e, particularmente, o de Ariosto.
Ambos partem fundamentalmente da poética aristotélica e, a partir dela,
procuram tornar Ariosto aceitável. Argumentam com a diferença dos tempos,
que, em cada momento, exige outras formas de composição narrativa. Assim a
nova ficção de Ariosto é explicada, em função das expectativas de seu leitor,
como uma modificação necessária da poética aristotélica. Ao contrário, De arte
poetica (1564), de Antonio Sebastiano Minturno agarra-se estritamente a
Aristóteles e vê no romance tão-só um desvio ilegítimo da única norma válida da
épica, tal como exposta por Aristóteles. A Minturno o sentido histórico é
estranho; para ele, a ficção só pode ser poética quando se mantém sob os 23 Cf. Bernard Weinberg, A Hisotry of literary criticism in the Italian renaissance (Chicago, 1963), cap. 19, 954ss.
41
postulados aristotélicos da unidade e do verossímil. Em posição oposta,
Giuseppe Malatesta é, em seu tratado Della nuova poesia ovvero della difesa del
Furioso (1589), um moderno radical, assim como Minturno era a voz dos
antigos. Malatesta é um ardente partidário da poesia moderna, cuja mais alta
realização via no Orlando furioso. A nova poesia é essencialmente “poesia
romanzesca” e, como tal, segue as expectativas de seu tempo, assim como
Homero e Virgílio responderam antes ao seu. A lógica poética intemporal de um
Aristóteles não pode prescrever suas leis ao poeta moderno, mas apenas a
“usanza” contemporânea. Assim o romance se torna a forma épica dominante do
mundo moderno, do mesmo modo como a épica foi outrora a forma narrativa
característica do mundo antigo. A teoria do romanzo como teoria do romance e,
desta maneira, ao mesmo tempo, como paradigma da ficção, no século XVI, não
é defendida por ninguém com tanta firmeza como pela poética de Malatesta.
Entre as posições de Minturno, com seu reconhecimento incondicional da valia
da poética de Aristóteles, e a de Malatesta, com seu reconhecimento não menos
incondicional de Ariosto como consumação da poesia moderna, move-se,
procurando diferenciações e sínteses, Torquato Tasso, que, como criador da
Gerusalemme liberata (1581), reflete, com freqüência, sobre os fundamentos de
sua obra. A Gerusalemme de Tasso é uma épica romântica, cuja estrutura se
submete à exigência aristotélica da unidade do mito entre princípio e fim, que, no
entanto, concede direito às divagações, confusões e riscos romanescos da
identidade heróica24 .Tasso segue a exigência aristotélica da verossimilhança e,
não obstante, concede ao maravilhoso como maravilhoso cristão seu direito
próprio, subjetivamente perspectivizado. As declarações teóricas de Tasso,
particularmente sua “Apologia del Signor Torquato Tasso in difesa della sua
Gerusalemme Liberata” (1585), seus “Discorsi dell’arte poetica” (1587, talvez já
escritos em 1565) e seus “Discorsi del poema eroico” (1594), mostram o quanto
refletiu teoricamente sobre sua produção poética. Se neles se mantém fiel aos
fundamentos de Aristóteles e Horácio, no entanto é também ineludível a
24 Cf. Stierle, “Erschütterte und bewahrte Identität. Zur Nebegründung der epischen Form in Tassos Gerasulamme liberata”, in S. Knaller?E. Mara (eds.), Das Epos in der Romania. Festchrift für Dieter Kremers zum 65. Geburstag (Tübingen, 1986), pp, 383-414.
42
diferença temporal da experiência dos antigos e dos modernos. Por isso advoga
por uma nova diversidade da épica “romântica” moderna e propõe uma
comparação estrutural com a história universal” “Ma fra l’istorie universali, che
s’assomigliano a’ poemi di molte azioni, quelle meritano maggior lode, le quali
contengono maggior notizia di cose e maggior copia d’avvenimenti: dunque nei
poemi, nei quali si riceve la moltitudine, si deve lodar la copia” [“Mas, entre as
histórias universais, que se assemelham a poemas de muitas ações, merecem
maior louvor aquelas que contêm maior informação de coisas e maior
quantidade de acontecimentos: portanto nos poemas, em que se recebe o
múltiplo, deve-se louvar a abundância” (“Apologia”, 419)]. A comparação
estrutural com a história universal – Friedrich Schlegel dela se lembrará em sua
definição da poesia romântica como “poesia universal progressiva” – remete ao
fundamento da afinidade: o aumento do espaço de experiência histórica, que
fará a história cada vez mais complexa.
Nos “Discorsi dell’arte poetica” (1587) se dedica à questão de que margem de
liberdade dispõe a ficção e que limites lhe são impostos pela verossimilhança e
pela história. Por um lado, as ações inferiores da comédia são objeto da ficção,
por outro, o são todo o novo que ainda não encontrou uma forma fixa. A história
não permite nenhuma ficção à medida que trata de fatos ainda recentes; quanto
mais, entretanto, ela recua, tanto mais oferece ao poeta matéria para sua ficção,
pois os conhecimentos transmitidos são tão vagos que o poeta pode ativá-los.
No segundo Discorso, Tasso chega à compreensão de que o romance,
essencialmente, é ficção, ao contrário da épica, que deriva da história, mas
vacila em aceitar uma separação tão rigorosa, pois, desta maneira, os diversos
casos entre os dois pólos seriam excluídos. Com tudo isso, em Tasso nunca se
concede à ficção um valor próprio.
Em seu último ensaio, “Discorsi del poema eroico”, escrito pouco antes de sua
morte, aguça-se o ceticismo de Tasso ante a ficção, acompanhado de
escrúpulos religiosos crescentes, que o levam à dissociação entre poesia e
ficção: “E ciò si potrebbe confermare con l’autorità d’Aristotele, perché, se i poeti
sono imitatori, conviene che siano imitatori del vero, perché il falso non è; e cual
43
che non è, non si può imitare; però quelli che scrivono cose in tutto false, se non
sono imitatori, non sono poeti, e i suoi componimenti non sono poesie, ma
finzioni più tosto; laonde non meritano il nome di poeta, o non tanto” [“E isso se
poderia confirmar com a autoridade de Aristóteles, porque, se os poetas são
imitadores, convém que sejam imitadores do verdadeiro, pois o falso não é; e o
que não é, não pode ser imitado; mas aqueles que escrevem coisas de todo
falsas, se não são imitadores, não são poetas e seus componentes não são
poesia mas antes ficção; donde não merecem o nome de poeta ou não tanto”
(“Discorsi”, 522)]. O poeta tem tanta maior liberdade na ficção quanto mais o que
expõe se subtrai da experiência e do conhecimento do leitor pressuposto: “Dee
dunque il poeta schivar gli argomenti finti, massimamente se finge esser
avvenuta alcuna cosa in paese vicino e conosciuto e fra nazione amica, perché
fra popoli lontani e ne’ paesi incogniti possiamo finger molte cose di leggeri,
senza toglier autorità a la favola” [“Por conseguinte, o poeta deve evitar os
argumentos fingidos, sobretudo se finge haver sucedido alguma coisa em país
vizinho e conhecido e entre nações amigas, porque entre povos distantes e nos
países desconhecidos podem fingir muitas coisas levemente, sem tirar a
autoridade da fábula” (“Discorsi”, 552)]. Por fim, também o Tasso tardio mantém
o direito da ficção como bela refundição da matéria. O poeta deve evitar o que
resiste bastante à liberdade poética de refundição, mas sempre a ficção
conserva uma licença, estritamente mantida sob controle: “Ecco, illustrissimo
signore, le condizioni che giudizioso poeta dee nella materia ricercare: le quali
[…] sono queste: l’autorità dell’istoria, la verità della religione, la licenza del
fingere, la qualità dei tempi accomodati e la grandezza de gli avvenimenti” [“ Eis,
ilustríssimo senhor, as condições que o judicioso poeta deve seguir na matéria:
a autoridade da história, a verdade da religião, a licença do fingir, a
conformidade dos tempos e a grandeza dos acontecimentos’ (“Discorsi”, 557)].
Em suas reflexões teóricas, Tasso examinava as possibilidades de uma épica
moderna, levantadas pelo estímulo positivo do romance, mas que, ao mesmo
tempo, devia ser o lugar em que, sob condições essencialmente modernas, se
realizassem as exigências aristotélicas sobre a épica. Isso vale especialmente
44
para a articulação da consciência subjetiva e “romanesca” dos heróis, que se
tornará o centro da decisão épica.
À “nova épica” de Tasso, posta sob o signo de uma ficção estreitamente
controlada, se opõe o novo romance de Cervantes, que deriva e, ao mesmo
tempo, se opõe ao sedimento de Ariosto e da teoria do romance aberta por seu
paradigma. Também no Don Quijote (1605-1615), a ficção é, de um modo
próprio, submetida às condições aristotélicas. Na configuração do empobrecido
Quixote, arruinado por suas leituras, o grau zero de uma ficção que se torna
mecânica, a girar em torno de si mesma, se converte em um acontecimento
cômico. Ante o leitor solitário do romance, dissolvem-se as fronteiras entre a
realidade miserável do Quixote e os mundos imaginários de seus livros de
cavalaria. O fantástico do romanzo perde seu status objetivo e se mostra como a
mera fantasia de uma mente extraviada. [O leitor entra em uma dupla
perspectiva: com o Quixote, ele comprova a inundação de realidade por um
imaginário que apenas reproduz, com que ele mesmo se vê de fora como o
narrador estilizado do historiador, que encara a realidade, transformada em
fantástica pela mente transtornada do protagonista. Enquanto o Quixote, que se
crê um cavaleiro, corre de aventura em aventura, a realidade se afirma em sua
sóbria, (quase) monótona cotidianeidade. Que Cervantes divida o romance do
Quixote em episódios, como um romance picaresco, já é formalmente um índice
da predominância da perspectiva externa. A ficção se passa apenas na cabeça
do protagonista, mas como estranha ficção que foi dele tomada. Assim a sua
verdadeira faculdade ficcional não está no fantástico de sua mente, mas sim em
que lhe permite tornar invisível a sua própria ficção, em uma metaficção. O
engenho do Don Quijote consiste em interpretar de tal maneira a realidade que
ela entra sem descontinuidade no contexto da ficção e em se enganar a si
mesmo em uma imediatidade não reflexiva, enquanto seu parceiro de jogo, o
narrador, retraduz essa realidade transformada e apropriada. Com Don Quijote,
o fictício da ficção se converte pela primeira vez em tema. O romance, como
forma narrativa dirigida para a leitura, se transforma em horizonte da própria
vida. Com isso, porém, a mistura de ficção e vida pode-se tornar em tema de
45
uma ficção de segundo grau, que faz do lugar da ficção na própria vida objeto de
uma ficção. O espelhamento da ficção em si mesma é deste modo tão
intensificado que Cervantes, assim como Ariosto, joga com a multiplicidade das
instâncias narrativas, as quais, em vez de garantir o relato, fazem com que este
se eclipse na incerteza de sua origem. A versão textual definitiva mostra-se por
fim como a sedimentação de camadas narrativas sempre hipotéticas. Assim o
autor Cervantes concede a palavra a um narrador, que se refere à tradução de
uma acadêmico, que traduz o texto arábico original de Sidi Hamid Ben Geli, por
efeito de que remete à incerteza as instâncias narrativas confundidas. A ficção
se torna multificção e, assim, supera o romance de Ariosto, à medida que ainda
a antificção faz parte da ficção.
Na primeira conversa, entre o cura da aldeia e o barbeiro sobre as
conseqüências funestas da leitura de romances, depois da primeira louca
escapada do Quixote, poucas obras da biblioteca do protagonista escapam das
chamas; entre estas, além do Amadis e do Orlando innamorato, de Boiardo, está
o Orlando furioso, de Ariosto. Em sua descrição, Cervantes emprega a metáfora
da tela, que Ariosto usara pela primeira vez a propósito de sua engenhosa
ficção: “Mateo Boyardo, de donde también tejió su tela el cristiano poeta
Ludovico Ariosto”. No segundo diálogo sobre o romance, entre o cura e o
cônego, enquanto acompanham o infeliz Quixote à casa, põe-se de novo em
questão a legitimidade do romance. Depois que o cura contou ao cônego,
enquanto cavalgam, toda a história do infeliz Quixote, a conversa se volta para
os romances, que são a causa da desgraça do protagonista. O cônego, que,
ainda no tempo da impressão de livros, sucumbe ao vício da leitura de
romances, explica porque, não obstante sua mania, não consegue lê-los do
começo ao fim: “Todos ellos son una misma cosa”. As partes do romance tanto
se assemelham que os romances, no todo, são permutáveis. As maravilhas
mecânicas do romance se assemelham às fábulas milésicas: “Y según a mí me
parece, este género de escritura y composición cae debajo de aquel de las
fábulas que llaman milesias”. Sua arbitrariedade interna parece promover uma
forma ilegítima e anárquica de prazer na leitura, que tanto contradizia a fórmula
46
horaciana do prodesse et delectare, quanto contrariava a estética classicista do
conjunto uno, que será a seguir desenvolvida, com cerrado apoio em Aristóteles.
O excesso do maravilhoso que os romances, sem se preocuparem com as
necessidades composicionais, impulsionam, justificava-se intencionalmente
como camadas conscientes de mentiras. O cônego, porém, objeta com
seriedade que as mentiras são tanto mais dominantes quanto mais se mostram
verossímeis. A história inventada deve corresponder às expectativas racionais
do leitor de modo a manter sua surpresa em suspenso, mas não em excesso,
assim ligando a surpresa com o prazer identificatório. Isso, no entanto, só é
possível pela articulação dos dois princípios aristotélicos da imitação e da
verossimilhança: “No he visto ningún libro de caballerías que haga un cuerpo de
fábula entero con todos sus miembros, de manera que el medio corresponda al
principio, y el fin al principio y al medio; sino que los componen con tantos
miembros, que más parece que llevan intención a formar una quimera o un
monstruo que a hacer una figura proporcionada”. A essa busca de pôr o
romance sob o controle aristotélico de uma perspectiva estético-recepcional, o
cônego porém acrescenta, depois de uma curta intervenção do cura, uma outra
perspectiva: quanto mais dificultosa é a leitura do romance, tanto mais
prazenteira é a sua produção. A liberdade de quem escreve, consciente da pura
ficcionalidade e que dela dispõe, cria o prazer da liberação produtiva do
imaginário. O romancista dispõe no imaginário de um mundo a que outorga uma
forma escrita e configurações. Na perspectiva da produção, a estreita ligação
com Aristóteles é relativizada. O romancista como sujeito da ficção toma a
liberdade de dispor de um mundo em vista da variedade e, ao mesmo tempo, de
mudar seus papéis: “Ya puede mostrarse astrólogo, ya cosmógrafo excelente, ya
músico, ya inteligente en las materias de estado, y tal vez le vendrá ocasión de
mostrarse nigromante, si quisiere”. Nasce deste modo a visão de um tipo de
romance filiado ao espírito de Ariosto, que pouco tem em comum com
Aristóteles, mas que sim antecipa o programa do romance como paradigma de
uma “poesia universal progressiva” e romântica, no sentido de Friedrich
Schlegel: “Y siendo esto hecho con apacibilidad de estilo y con ingeniosa
47
invención, que tire lo más que fuere a la verdad, sin duda compondrá una tela de
varios y hermosos lazos tejida, que después de acabada, tal perfeción y
hermosura muestre, que consiga el fin mejor que se pretende en los escritos,
que es enseñar y deleitar juntamente, como ya tengo dicho. Porque la escritura
desatada destos libros da lugar a que el autor pueda mostrarse épico, lírico,
cómico, con todas aquellas partes que encierran en sí las dulcísimas y
agradables ciencias de la poesía y de la oratoria; que la épica también puede
escribirse en prosa como en verso”. Como em Ariosto, mostra-se aqui, de novo,
o romance sob a imagem da tela. Só no capítulo seguinte, o cônego manifesta
que fala da própria experiência. Já escrevera centenas de folhas de um novo
romance, mas não fora adiante porque temia que o leitor comum devorasse seu
romance como um dos triviais romances de cavalaria e o número dos leitores
capazes de apreciar a obra de arte da ficção decrescesse.
Só o próprio Cervantes consegue com seu Don Quijote cativar igualmente o
leitor comum e o perito, mas não ensinar o leitor dos romances de cavalaria,
industrialmente fabricados, para que, ao menos conjunturalmente, o convertesse
em um novo leitor esclarecido, que não perdesse de vista a ficcionalidade da
ficção.
O romance novo de Cervantes transmitiu ao século XVII o conceito de uma
ficção que se infiltra pela vida, que devia se tornar em tema do romance, como
em L’Anti-roman (1633), de Charles Sorel ou no Roman bourgeois (1666), de
Antoine Furetière. O “romanesque”, particularmente no padrão de conduta
enaltecido pelo romance heróico-galante, se converte, ao entrar na vida
corrente, em uma experiência conflitiva, que pode outra vez se tornar tema do
romance ou do anti-romance. “J’écris romanesquement sur le bord de la rivière
où est située notre hôtelerie” [“Escrevo romanescamente à margem do rio em
que se situa nossa hospedaria]”25, escreve Madame de Sévigné à sua amiga
Françoise-Marguerite de Grignan. Também da França procede o tratado mais
erudito e diferenciado sobre o romance no século XVII, o Traité de l’origine des
romans (1670), do bispo de Avranches, Pierre Daniel Huet. Em Huet, o romance 25 Madame de sévigné a Françoise-Marguerite de Grignan (9.5.1680), in de Sévigné: Lettres, G. Gailly (ed.), vol. 2 (Paris, 1960), p. 695.
48
é explicitamente equiparado à ficção: “Ce qu’on appelle proprement Romans
sont des fictions d’aventures amoureuses, écrites en Prose avec art, pour le
plaisir et instruction des Lecteurs. Je dis des fictions, pour les distinguer des
Histoires véritables”26.Por outro lado, o romance agora se opõe à épica, em sua
forma clássica. No romance, domina a livre descoberta, ao passo que na épica o
fictício permanece submetido ao elemento histórico. Como forma, o romance
satisfaz uma tendência antropológica: “Cette inclination aux fables, qui est
commune à tous les hommes, ne leur vient pas par raisonnement, par imitation
ou par coustume: elle leur est naturelle, et à son amorce dans la disposition
meme de leur esprit, et de leur ame”27 [“Esta inclinação para as fábulas, que é
comum a todos os homens, não lhes vem por raciocínio, por imitação ou pelo
costume: lhes é natural e à sua atração na própria disposição de seu espírito e
de sua alma”]. Apesar do que, no sistema de gêneros do século clássico, o
romance tem uma significação secundária. Na Ars poétique (1674), de Boileau,
que se tornou o manifesto poetológico da época clássica, o romance não
merecia nenhuma atenção. Boileau fala do “art confus de nos vieux Romanciers” 28 e o opõe à nova arte poética de Villon. O romance heróico-galante, ainda
moderno na França, é apenas criticamente apontado e rechaçada sua influência
no teatro moderno. Enquanto o romance tem a liberdade de continuar a se
mover, sem regras, em todas as direções – “Dans un roman frivole aisément tout
s’excuse. / C’est assez qu’un moment la fiction s’amuse29 [“Em uma romance
frívolo tudo se desculpa / É suficiente que por um momento a ficção divirta]”– a
tragédia, o paradigma do clássico francês, tem sua construção submetida a uma
estrita economia: “Mais la scène demande une exacte raison” [“Mas a cena exige
uma razão exata” (idem)]. Para Boileau, partidário dos antigos, a épica é o
paradigma próprio da “noble fiction”: “La poésie épique, / Dans le vaste récit
d’une longue action, / Se soutient par la fable, et vit de fiction” (ibidem)]. À
diferença do romance, a épica é definida, segundo a Poética de Aristóteles, por 26 Pierre Daniel Huet, Traité de l’origine des romans (1670)27 Jean de la Fontaine, Fables (1688), in La Fontaine, Oeuvres completes, J.-P. Collinet (ed.), vol. 1 (Paris, 1991), p. 105.28 Nicolas Boileau, Art poétique (1674), J.-P. Collinet (ed.), (Paris, 1985), p. 230.29 Cf.Boileau, Dialoque des héros de roman (1688), in Boileau, op. cit., pp. 441-489.
49
uma ação una, que se desdobra artisticamente, a que se chama fable. Como
estrutura narrativa artística, a fábula, comparável à conjointure de Chrétien,
sustenta a continuação dos acontecimentos nunca isolados. A fiction aqui
descreve, ao contrário, a totalidade do meio, que dá ao abstrato a imediatidade
da contemplação, antes de tudo, porém, ao aparato mitológico, já vivificado pela
épica antiga. O épico deve não só narrar por uma construção cuidadosa mas
ainda orná-la, elevá-la retoricamente, ilustrá-la e intensificar a tonalidade do que
apresenta: “Ainsi dans cet amas de nobles fictions / Le poète s’egaye en mille
inventions [“Assim neste acúmulo de nobres ficções / O poeta se diverte em mil
invenções” (ib.)]. Expressamente, a épica cristã inaugurada por Tasso é
excluída, pois traz o perigo de estetizar a verdade da crença: “Et de vos fictions
le mélange coupable / Même à ses vérités donne l’air de la fable” [“E a mistura
culpada de vossas ficções / Dá um ar de fábula mesmo às suas verdades” (ib.)].
Que a fábula da épica, deva ser, apesar de sua unidade, diversa – “De figures
sans nombre égayez votre ouvrage” [“Alegrai vossa obra de inúmeras figuras”
(ib.)] – leva, com certa surpresa, de volta a Ariosto: “J’aime mieux Arioste, et ses
fables comiques, / Que ces auteurs toujours froids et mélancoliques” [Prefiro
Ariosto e suas fábulas cômicas, / Do que estes autores sempre frios e
melancólicos” (ib.)]. Homero permanece, no entanto, o mestre inexcedível da
épica, que ou se vota a divagações ou segue um longo “ordre méthodique” (ib.).
Boileau recusa o romance como forma legítima de ficção. Mas sua vontade de
uma nova épica, a partir do espírito da antiga, não se cumpre. Sua esperança no
renascimento da épica contra o romance termina em um beco sem saída. Poeta
algum achou-se capaz de fazer aquilo a que o próprio Boileau não se sentia
convocado: festejar numa épica os feitos heróicos de Luís XIV.
Enquanto a teoria da ficção de Boileau leva o controle do imaginário ao ponto
de não restar à produtividade do imaginário nenhum espaço mais, um outro
defensor dos antigos, o fabulista Jean de la Fontaine, na fábula programática de
introdução ao Livro 3 de suas Fables (1668), contrapõe àquela a concepção de
uma ficção da fábula, mantida em limites fixados, em que se conserva a primazia
dos antigos e que, no entanto, abre um campo imprevisível de produtividade
50
própria: “L’invention des arts étant un droit d’aînesse, / Nous devons l’apologue à
l’ancienne Grèce. / Mais ce champ ne se peut tellement moissoner / Que les
derniers venus n’y trouvent à glaner. / La feinte est un pays pleins de terres
désertes: / Tous les jours nos auteurs y font des découvertes [“Sendo a invenção
das artes um direito de primogenitura, / Devemos louvar a Grécia antiga. / Mas
não se pode segar este campo ? Que os pósteros aí não encontrem o que
recolher. / O fictício é um país cheio de terras desertas: / Todos os dias nossos
autores aí fazem descobertas” (La Fontaine, J. de: Fables, 1668)].
Assim como La Rochefoucauld [Réflexions ou sentences et maximes morales
(1665)], fizera do amor próprio o próprio princípio secreto da inquietude, que
opera incessantemente na bela tela de seus próprios enganos, de modo que o
moralista se revela como descobridor das “terres inconnues” que se projetam
nas figuras da bela aparência – “Quelque découverte que l’on faite dans le pays
de l’amour-propre, il y reste encore bien des terres inconnues” (Maximes, nº 3)] -,
assim também La Fontaine recorre à imagem atual das terrae incognitae para
dar à ficção um novo espaço para suas descobertas. Na verdade, o fabulista
procura neste espaço apenas a justificação para a sua nova forma da fábula
poética. No entanto, por detrás aparece todo um horizonte de possibilidades de
uma dinâmica da ficção.
De outro modo, o conceito de ficção ganha uma nova relevância no contexto do
discurso filosófico. O trabalho da vida de Descartes se dirige ao alcance de um
novo fundamento para uma filosofia certa, a que não mais atingisse o ceticismo
de Montaigne, e cuja objetividade não obstante se erigisse sobre o fundamento
inarredável da autoconsciência, do “je pense donc je suis” [Discours de la
méthode (1637)]. Descartes é obsedado pela suspeita dos equívocos em nosso
caminho pelo mundo. As “fictions de mon esprit” não são, para Descartes,
realizações produtivas da consciência humana, que vão além do dado, mas sim
fantasmas vazios de uma razão ociosa, cujas emanações não podem requerer
algum direito próprio. Na dúvida radical, Descartes opõe sua negação às
“fictions de mon esprit”: “Je suppose donc que toutes les choses que je vois sont
fausses; je me persuade que rien n’a jamais été de tout ce que ma mémoire
51
remplie de mensonges me représente; je pense n’avoir aucun sens, je crois que
le corps, la figure, l’étendue, le mouvement et le lieu ne sont que des fictions de
mon esprit”30 [“Suponho portanto que todas as coisas que vejo são falsas;
persuado-me de que nada jamais foi do que minha memória repleta de mentiras
me representa; penso não ter sentido algum, creio que o corpo, a figura, a
extensão, o movimento e o lugar não passam de ficções de meu espírito”]. Mais
opressora ainda é a representação; o próprio mundo poderia ser concebido
como obra de um mauvais génie, de modo que o ofuscamento geral seria dele
inseparável. O genius malignus, cuja essência poderia ser vista no Júpiter do
Amphitryo de Plauto, seria um deus da ficção, mas, ao mesmo tempo, um deus
cujas realizações só fomentam em uma contracriação fictícia, que deveria sofrer
de uma invalidade radical. Só a refutação do deus malignus como princípio
negativo da criatividade de fato criadora, realiza a pressuposto de uma
sobriedade epistemológica, que opõe irremediavelmente a verdade à mentira, só
a ficção deixando-se fundar na maquinação combinatória vazia da mentira.
A filosofia de G. W. Leibniz aplica e converte o deus benignum de Descartes
em criador do “melhor de todos os mundos”, que deveria atrair a burla
involuntária de Voltaire. “Il suit de la Perfection Supreme de Dieu, qu’en
produisant l’Univers il y choisi le meilleur Plan possible où il y ait la plus grande
variété avec le plus grand ordre” [“Ele decorre da Perfeição Suprema de Deus
que, produzindo o universo, aí escolheu o melhor plano possível, em que há a
maior variedade com a maior ordem” (Leibniz, G. W.: Principes de la nature et de
la grace fondés en Raison, 1714)]. Leibniz, no entanto, não só dá um realce
enfático à compreensão cartesiana de Deus como busca remediar o abismo
hiante entre res extensa e res cogitans de Descartes, à medida que, em uma
especulação metafísica ousada, reconcilia espírito e matéria, à própria matéria
correspondendo uma consciência, que permite as graduações infinitas e, nas
unidades concretas, deixa que se atualize o pressentimento do todo infinito.
Como Descartes, embora por razão diferente, Leibniz não concede ao fim último
da arte e da ficção um lugar sistemático. O melhor de todos os mundos é, como 30 René Descartes, Méditations (1641), in Descartes, Oeuvres philosophiques, F. Alquié (ed.), vol. 2 (Paris, 1967), p. 415.
52
tal, também esteticamente perfeito e não tem espaço para a concorrência
estética. Leibniz podia entretanto preparar um lugar vazio da arte possível. Pois
não só sua idéia do melhor de todos os mundos dá uma idéia concreta do que a
obra, segundo sua concepção estética, deveria ser, como abre a possibilidade
da arte “como silhueta do infinito”31, comporte o acesso àquela estrutura de uma
totalidade em si infinitamente escalonada e refletida, de que a consciência
humana pode ter uma imagem na ficção.
VI. A pluralidade das ficções
O século XVIII, em que se originou o conceito de estética, é também o século
em que se desenvolveu o conceito de ficção, presente desde os antigos. A
história do conceito de ficção conhece na época do Iluminismo um impulso
reflexivo, que, ao mesmo tempo, provoca a diversificação dos conceitos de
ficção coexistentes. Ressaltam deste modo as três raízes do antigo conceito de
ficção: a ficção como forma criada, a ficção que oculta seu trabalho produtivo e
se converte em engano, a ficção, que reune em si forma e imagem de engodo e,
além da alternativa entre verdadeiro e falso, se afirma em seu direito próprio.
Como fictor, como criador de mundos, o deus desconhecido, que deu sua
forma ao caos, é festejado, no Livro I das Metamorfoses. Na Oratio de hominis
dignitate (1486), Pico della Mirandola faz com que o “summus pater archictetus
Deus” dirija-se ao próprio homem. Como produto tardio da criação, o homem
chega a um mundo em que os dons divinos já foram distribuídos. Mesmo por
isso lhe é concedido fazer da falta um benefício infinito. “Nec te caelestem neque
terrenum, neque mortalem neque immortalem fecimus, ut tui ipsius quasi
arbitrarius honorariusque plastes et fictor, in quam malueris tute formam effigas”
[“Fizemos-te nem celestial, nem terreno, nem mortal nem imortal, de modo que,
com liberdade de escolha e honra, como se criador e modelador de ti mesmo,
possas te traçar a ti mesmo, na forma que prefiras” (Oratio, # 3)]. Criado por
Deus, o homem é posto como modelador de sua própria ilimitada nobreza. 31 Gotthold Ephraim Lessing,Hamburgische Dramaturgie (1767-1768(, parte 79ª, in Lessing (Göpfert), vol. 4 (1973), p. 598.
53
Historicamente, o tipo de tal autocriação é materializado por Francesco Petrarca,
que deveria ser nomeado como o primeiro “fictor et plastes sui ipsius” e que
Pico, com certeza, tinha em mente. Mas antes dele, em mais longa distância,
aparece a forma do Ulisses de Dante, que, com ânimo audaz, converte em
autodeterminação o projeto inaudito de sua vida. Também Erasmo sustenta
essa concepção: “Homines non nascuntur sed finguntur”32. Mas a modelagem
aqui significa ainda a disposição pedagógica, que primeiro converte os homens
em humanos. Em Pico, a automodelagem do homem, sua partida para o
encontro de suas possibilidades, está no centro. Em sua “Apologie de Raimond
Sebond”, Montaigne refere que o fingere não é apenas uma liberdade mas
possa ser uma carga: “Qu’y a-t-il de plus malhereux que l’homme esclave de ses
fictions?” (Essais, II, XII). Também se mostra uma forma negativa da auto-
revelação quando, em La Rochefoucauld, o amour propre se converte no artista
inconsciente da ficção do eu descobridor.
O argumento de Pico alcança uma nova qualidade na Scienza nuova (1725,
1730, ed. revista em 1744) de Giambattista Vico. Já Bernard de Fontenelle, em
seu ensaio “De l’origine des fables” (1724), não mais via o erro humano
simplesmente em sua negatividade como desvio da verdade, mas sim como
tendo aberto uma perspectiva historicamente dinâmica. Os mitos do início e
ainda os mitos dos gregos são, na verdade, por um lado, na visão de Fontenelle,
expressão da ignorância bárbara. Mesmo se aquele que um dia descobriu os
mitos tenha escondido um grão de verdade, este se perdeu por completo pela
transmissão boca a boca. No entanto, para Fontenelle o mais espantoso é que,
com as fábulas, também tenha nascido o espírito da filosofia. De fato, as fábulas
são respostas insensatas, mas respostas a perguntas inteligentes, em que pela
primeira vez se acende a curiosidade da filosofia e da ciência. “Il est assez
curieux de voir comment l’imagination humaine a enfanté de fausses Divinités [“É
muito curioso ver como a imaginação humana concebeu falsas divindades” (“De
l’origine des fables”, 1724]. A imaginação pariu o assombro diante do mundo e
32 Erasmus, Opera omnia, vol. 1 (Leiden, 1703), p. 493s; cf. Winfried Wehle, “Der Tod, das Leben und dieKunst”, in A. Borst/G. v. Graevenitz/A. Patschovsky/K. Stierle (eds.), Tod im Mittelalter (Konstanz, 1993), p. 243.
54
as fábulas, em que sempre podemos surpreender os primeiros espantos diante
do mundo. Com a descoberta da escrita, foi simetricamente posto o fundamento
para a ampliação geral das fábulas, assim como para a sua superação crítica,
em um processo bastante lento mas irreversível.
Vico põe a compreensão das fábulas e dos mitos e, desta maneira, ao mesmo
tempo a compreensão das primeiras culturas humanas em uma posição de
base, à medida que, contra Descartes e em concordância apenas parcial com
Fontenelle, radicaliza o ponto de vista da historicidade da cultura humana. Em
seu primeiro livro, De antiquissima Italorum sapientia ex linguae latina originibus
eruenda (1710), encontra-se o enunciado fundamental da “inversão de todos os
valores”: “Latinis verum et factum reciprocantur, seu, ut scholarum vulgus
loquitur, convertuntur”33 [“Em latim, o verdadeiro e o sucedido são recíprocos
entre si ou, como continuamente dizem os eruditos, são convertíveis”]. A partir
dessa determinação a princípio estabelecida por uma suposição apenas
etimológica se conformam as conseqüências extensas para a compreensão dos
“fatos” especificamente humanos. Tudo que é produzido pelo espírito humano
tem primazia para a compreensão do espírito humano, porque este, por assim
dizer, aí se apresenta a si próprio. Indo adiante de sua justeza etimológica, a
frase verum et factum convertuntur servia de fundamento para outra
equivalência, que poderia ser assim expressa: “factum et fictum convertuntur”.
Que Vico não tenha formulado essa conseqüência fundamental, que é
igualmente evidente pela história da língua, pode-se relacionar com as
conseqüências da suspeita que cerca a ficção, no contexto da compreensão
cristã de mundo, renovadas pela concepção cartesiana das “fictions de mon
esprit”. A Scienza nuova, de novo, desenvolve o enunciado de De antiquissima
Italorum sapientia em uma grande antropologia das primeiras culturas humanas,
em que a fantasia e a ficção alcançam, pela primeira vez, seu direito positivo e
sem restrições. Também aqui é a curiosidade humana que põe em marcha o
33 Giambattista Vico, De antiquissima Italorum sapientia ex linguae latinae originibus eruenda libre tres (1710), in Vico, Opere, vol. 1 (Neapoles, 1858), p. 71; cf. Ferdinand Fellmann, Das Vico-Axiom. Der Mensch macht die Geschichte (Freiburg/Munique, 1976).
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jogo da fantasia, que, de sua parte, traz o espírito para a via da racionalidade.
Lê-se no 39º princípio da Seconda scienza nuova: “La Curiosità, proprietà
conaturale dell’uomo, figliola della ignoranza, che partorisce la Scienza all’aprire
che fa della nostra mente la Maraviglia, porta questo costume, ch’ove osserva
straordinario effeto in natura, come cometa, parelio o stella di mezzodì, subito
domanda, che tal cosa voglia dire o significare [“A curiosidade, aquela
propriedade inata do homem, filha da ignorância, que pare a ciência, ao abrir
nossa mente para a maravilha, tem o hábito, onde quem que veja algum
fenômeno extraordinário da natureza, como um cometa, um parélio ou uma
estrela do meio-dia, de perguntar-se de imediato o que tal coisa pode querer
dizer” (Principii di Scienza nuova, I, II, XXXIX)]. Isso parece bastante próximo de
Fontenelle, mas com uma diferença decisiva: ao passo que em Fontenelle a
pergunta racional é respondida irrazoavelmente pelo mito, porque ele indaga a
partir de um fenômeno surpreendente e para isso conta uma história, em Vico a
pergunta se dirige ao significado e à referência sígnica. No horizonte do saber
dos primeiros tempos, o mundo se mostra numa forma poética, ou seja, humana.
Ao mesmo tempo, porém, a própria forma humana é trabalhada e intensificada
poeticamente. O galardão dos heróis das primeiras lembranças coletivas, a sua
dignità, provoca seu realce fabular, que, no entanto, se articula à sua verdade:
“Questa Degnità a proposito delle Favole si conferma dal costume ch’ha il Volgo,
il quale degli uomini nell’una o nell’altra parte famosi, posti in tali o tali
circonstanza per ciò che loro tale stato conviene, ne finge acconce favole, le
quali sono verità d’idea in conformità del merito di coloro de’ quali il volgo le
finge; e in tanto sono false talor in fatti, in quanto al merito di quelli non sia dato
ciò che essi son degni: talchè, se bene si rifletta, il Vero Poetico è un livro
Metafisico, a petto del quale il Vero Fisico, che non vi si conforma, dee tenersi a
luogo di Falso” [“Este axioma, aplicado às fábulas, é confirmado pelo costume
que tem o povo comum ao criar fábulas de homens famosos por isso ou aquilo e
postos nestas ou naquelas circunstâncias em fazer a fábula ajustar o caráter e a
condição. Essas fábulas são verdades segundo a idéia, adequadas ao mérito
daqueles em quem o povo comum as encontra; e, enquanto são falsas como
56
fatos, são falsas apenas na medida em que não é reconhecido o mérito
daqueles que o têm. De modo que, se consideramos bem a matéria, a verdade
poética é verdade metafísica e a verdade física que a ela não se conforma, deve
ser considerada falsa”] (Principii, I, II, XLVII). Nunca antes fora ousada
semelhante dialética, que converte o fictum no solo do verum e o verum remete
ao falsum. Do fundamento deste princípio, Vico chega à intuição genial de que o
grande poeta da Grécia, Homero, o grande inventor da fábula na Grécia, era
uma invenção fabular coletiva, em que a Grécia dos primeiros tempos se via a si
mesma, poeticamente: “ (…) Un’ Idea o vero un Carattere Eroico d’uomini greci,
in quanto essi narravano cantando le loro storie [“(Que este Homero) fosse uma
idéia ou um caráter heróico dos homens gregos, pois esses narravam, cantando,
as suas histórias” (Principii, III, II)]. Homero é, ao mesmo tempo, a essência de
toda a ciência poética, de todas as instituições, da linguagem ao direito, em que
os homens apontam para si mesmos e se liberam, em suas ficções ou facções,
de sua origem natural.
Também a teoria da cultura de Rousseau se origina de uma pergunta
penetrante e tormentosa pela articulação estrutural das formas do espírito
objetivo, implantou no mundo natural um mundo humano. Assim como para Pico
e, depois dele, para Vico, também para Rousseau o homem é um“plastes et
fictor sui ipsius”, que compensa a falta de seu aparato instintivo por sua ação
livre da execução instintiva. O segundo discurso de Rousseau Sur l’origine de
l’inégalité (1755) concebe a diferença originária mínima entre o homem e o
animal por uma negatividade, que se converte no momento impulsor da
diferença irreversível e crescente entre natureza e cultura. O homem inventa
suplementos para a falta e, deste modo, supera infinitamente a própria carência.
A linguagem se converte em possibilidade de dar realidade ao não-real. A
própria linguagem é ficção, condiciona novas ficções objetivas. Entre estas, à
propriedade corresponde uma significação central. Rousseau imagina o primeiro
homem, que traça um círculo simbólico em torno de um pedaço de terra e cria
verbalmente uma nova realidade: “Ceci est à moi” (Sur l’origine et les
fondements de l’inégalité parmi les hommes (1755)]. A frase primariamente há
57
de ser lida em sua negatividade originária: “Ceci n’est pas à vous” (“Isso não é
seu”). A propriedade é uma quimera objetiva, que, no entanto, como Rousseau
demonstra no Émile (1762), se transforma no fundamento da sociedade
burguesa. Ser irreversível a ruptura entre natureza e cultura significa que a
dinâmica da cultura aumenta irreparavelmente a diferença. Como, entretanto, o
homem concreto nunca deixa de ser homme naturel, experimenta ele o conflito
entre homme naturel e citoyen, que lhe empresta a identidade quebrada do
sujeito como consciência infeliz. Como uma produção desta consciência, o
imaginário ligado na ficção atinge uma nova qualidade. O romance é o lugar em
que esta experiência fundamentalmente se exprime. Na condição de ficção, o
romance é um mito da consciência moderna, que, simultaneamente, expõe a
ambigüidade, entre ganho e perda, do valor da cultura. Pois a liberdade, que a
saída da natureza concede ao homem, está sempre em risco de se tornar em
coerção social, que converte o avanço em impropriedade e, principalmente, o
ganho da autonomia cultural é sempre uma perda na confiança e na segurança
do mundo natural. Enquanto que, para Vico, a compreensão poética de mundo
pertence às primeiras culturas e é superada na época da plena racionalidade,
para Rousseau, a modernidade, com seu centro em Paris, é o lugar de um
imaginário, em que se origina a contradição entre cultura e natureza. A
experiência do negativo aqui retorna, a partir de um novo plano de reflexão. No
entanto só a divisão no sujeito é a condição do estímulo à consciência, que
impulsiona o imaginário a formas de máxima intensidade. A tese, apoditicamente
aguçada de Jacques Derrida a propósito da teoria da escrita contida na obra de
Rousseau: “Il n’y a pas de hors-texte”34, se perde no vazio porque tal tese
desconhece a combinação entre a linguagem como ficção e a ação verbal como
postulado de uma ficção social verbalmente mediada, que, ao mesmo tempo, é
uma nova realidade social. Que a língua não possa fundar uma “presença
natural” não significa que não possa instituir a presença social. A desconstrução
chega atrasada quando quer desmascarar uma ficção verbal que, mesmo
enquanto ficção, apenas contivesse sua realidade.
34 Jacques Derrida, De la grammatologie (Paris, 1967), p. 227
58
A Nouvelle Héloïse (1761), de Rousseau, é o romance da conciência
romanesca, originado da contradição no sujeito entre a pressão da ordem
burguesa e a espontaneidade “natural” da sensibilidade. Nos dois prefácios,
romance e ficção entram em uma ligação tão estreita que o romance de fato se
mostra como a ficção da consciência moderna, que, em sua desunião,
necessariamente há de ser uma consciência romanesca, mesmo se busca
desvincular-se de sua assinatura histórica. “Il faut des spectacles dans les
grandes villes, et des Romans aux peuples corrompus” (“As grandes cidades
precisam de espetáculos e os povos corrompidos, de romances”). A própria
Nouvelle Héloïse é uma ficção que serve à consciência falsa ou procura
converter essa consciência falsa em objeto de uma metaficção ou de um anti-
romance? Rousseau joga com o qüiproquó do romance e sua encenação anti-
romanesca: “Ai-je fait le tout, la correspondance entière est-elle une fiction?
Gens du monde, que vous importe? C’est sûrtout une fiction pour vous” (Fiz
tudo, toda a correspondência é uma ficção? Pessoas do mundo, que lhes
importa? Para vocês, é sobretudo uma ficção”). Rousseau pretende que o
“editor” apresente verossimilmente as condições do espírito romanesco. Seus
jovens correspondentes são “presque des enfants qui, dans leur imagination
romanesque, prennent pour de la philosophie les honnêtes délires de leur
cerveau” (“quase crianças que, em sua imaginação romanesca, tomam por
filosofia os honestos delírios de seu cérebro”). Mas não é o mundo que se opõe
à sua imaginação subjetiva, não é ele próprio o resultado de ficções
sedimentadas? Pode-se evadir da lei estrutural do sujeito, posta entre homme
naturel e citoyen? Julie antes se descarta das tensões insuportáveis de sua vida,
a correr entre a paixão e o dever, e confessa, em sua última carta a Saint-Preux:
“Le pays des chimères est en ce monde le seul digne d’être habité, et tel est le
néant des choses humaines, que hors l’Etre existant par lui-même, il n’y a rien de
beau que ce qui n’est pas” [“O país das quimeras é, neste mundo, o único digno
de ser habitado e tal é o nada das coisas humanas que, fora do Ser existente
por si mesmo, nada há de belo senão o que não é” (La Nouvelle Héloïse, sexta
parte, VIII, carta VIII, 687)]. No entanto, não é a ficção, desde o começo, a única
59
realidade que pode pôr a salvo o homem emancipado da natureza? Acrescente-
se apenas que, no realce do imaginário, a ficção ganha uma intensidade que
seria impensável sem a estrutura da consciência moderna. Para Vico, o
imaginário e sua ficção estão no começo do desenvolvimento das culturas dos
novos tempos. Para Rousseau, a ficção, como uma disposição universal
progressiva do homem, está no fim, onde se origina a forma mais intensiva do
fictício, a partir do espírito de alienação.
Rousseau se apresentara, em suas Confessions (publicação póstuma: 1781-
1788), como um leitor obstinado de romances, que caiu no vício do suplemento
imaginário já no início da juventude e a que permaneceu fiel em sua vida. Já a
criança, que perdera cedo a mãe, lia com o pai, da biblioteca que ela deixara,
um romance atrás do outro. As paixões despertadas pela leitura “me donnèrent
de la vie humaine des notions bizarres et romanesques, dont l’expérience et la
réflexion n’ont jamais bien pu me guérir” [“me deram da vida humana noções
bizarras e romanescas, de que a experiência e a reflexão jamais puderam me
curar” (Les Confessions: 1781-1788, I, 8]. A intensidade das emoções e dos
desejos de sorte não mais admitem nenhuma pacificação na realidade e
impulsiona ao mundo das “douces chimères”. Também a grande autobiografia
de Rousseau é dominada por um espírito romanesco, que reproduz a principal
negatividade do aparato humano e sua compensação sob novos pressupostos
subjetivos. As Confessions como auto-apresentação, [impregnadas na “Dichtung
und Wahrheit” (“poesia e vida”) goethiana], são como este momento de um
projeto de vida “fictício”, em que se objetiva um novo “plastes et fictor sui ipsius”.
Pode assim Rousseau, nos Rêveries d’un promeneur solitaire (póstumo: 1782),
lembrar-se de sua última auto-reflexão, oscilante entre o desespero e a
felicidade, com os olhos postos na ilha de Pedro, onde ficção e realidade se
fundiam em uma nova realidade: “laissant errer mes yeux au loin sur les
romanesques rivages qui bordoient une vaste étendue d’eau claire et cristalline,
j’assimilois à mes fictions tous ces aimables objets et me trouvant enfin ramené
par degrés à moi-même et à ce qui m’entourait, je ne pouvais marquer le point
de séparation des fictions aux réalités” [“deixando meus olhos errar ao longe,
60
sobre as margens romanescas que orlavam uma vasta extensão de água clara e
cristalina, assimilava às minhas ficções todos esses amáveis objetos e me
encontrando por fim reconduzido por graus a mim mesmo e ao que me envolvia,
não podia marcar a separação entre as ficções e as realidades” (Rêveries d’un
promeneur solitaire: 1782, cinquième promenade, 1048)].
A autocriação como fictio é, em Rousseau, sempre e ao mesmo tempo
autoperda e autoganho, a saída do homem da natureza é, simultaneamente,
liberdade e opressão. Está aí a ambigüidade radical da teoria da cultura em
Rousseau, que se recusa a qualquer univocidade. A máxima intensificação
dessa ambigüidade radical e insolúvel é o eu, que, ao sair da sociedade, chega
a si mesmo e cuja autoperda e autoganho como unidade do état romanesque
significa o auge da autocriação original do homem. No “Prometheus” (escrito em
1774), de Goethe, o eu em pedaços de Rousseau se transforma no semideus,
que, em gesto triunfal, festeja a si próprio e que, como fictor et plastes sui ipsius,
criará o homem segundo sua imagem e negocia com a liberdade em se formar a
si próprio ou em fingir: “Hier sitz’ ich, forme Menschen / Nach meinem Bilde, / Ein
Geschlecht, das mir gleich sei” [“Aqui me sento, formo o homem / Segundo
minha imagem, / Que logo é meu igual” (in Frühe Gedichte)].
Quando Nietzsche renova o mundo como fábula ou o descobre como ficção,
põe-se na seqüência de Vico e Rousseau, cujos nomes desconhece.
A teoria de Leibniz do melhor de todos os mundos, que, em princípio, supera
qualquer ficção do mundo, é o ponto de partida de um caminho especificamente
alemão para uma teoria da ficção e é a base do que será chamado por
Baumgarten de “Estética”.
A facultas fingendi converter-se-á pela primeira vez em tema de um tratamento
filosófico regrado na Psychologia empirica (1732), de Christian Wolff, que
antecipa a consideração da imaginatio como vis imaginationis (força da
imaginação). Não parece improcedente que Wolff tenha para isso se inspirado
na primeira grande reabilitação da imaginação, em Della perfetta poesia (1706),
de Muratori. Em seu livro, Muratori opunha ao rigorismo dos classicistas
franceses, especialmente de Bouhours, o direito poético próprio da imaginação
61
e, assim, simultaneamente, caracterizava uma tradição poética especificamente
italiana35. As idéias de Wolff sobre a imaginação e a ficção concernem à
faculdade de conhecimento inferior, ou seja sensível, que recebia, através de
Leibniz, um novo status teórico. A alma é capaz de reproduzir uma impressão
sensível também da ausência do objeto que provoca aquela impressão. A
imagem atual do ausente é um phantasma. Se imaginatio significa a faculdade
de manter presente uma imagem de coisas ausentes, então fictio é a
capacidade de combinar tais imagens em um complexo imagético. “Facultas
producendi perceptiones rerum sensibilium absentium Facultas imaginandi seu
imaginatio appellatur” [“A faculdade de produzir percepções de objetos dos
sentidos ausentes é chamada a faculdade da imaginação (Wolff, C.: Psychologia
empirica: 1732, # 92)]. No # 145, a facultas fingendi é determinada face aos
phantasmata como uma ocupação ativa e consciente: “Habet igitur anima
facultatem phantasmatum divisione ac compositione producendi phantasma rei
sensu antea nondum perceptae” (“A alma dispõe assim da capacidade, por
divisão e composição, de gerar fantasmas, a representação de uma coisa, cujo
sentido antes não tinha percebido”). A fictio ou facultas fingendi é uma
capacidade de recomposição de elementos sensivelmente dados, em novas
unidades imaginárias. A pergunta por sua qualidade estética específica ainda
quase não se põe. Como, porém, a compreensão combinatória reune os
elementos em novas figuras e ficções, estas estão, em princípio, no horizonte do
melhor de todos os mundos de Leibniz, que não tinha de temer nenhuma
concorrência estética.
A valorização do conhecimento sensível e do sensível em figuras de signos
combinatórios aperfeiçoa-se na Aesthetica (1750-1758), de Alexander Gottlieb
Baumgarten. É sabido que o próprio Baumgarten foi o primeiro a cunhar o
conceito de estética e por ele compreendia uma ciência da faculdade de
conhecer o “inferior”, a que a nova estética queria conceder, pela primeira vez,
sua própria dignidade. Como seu professor Wolff, também Baumgarten se põe
sob as premissas da metafísica de Leibniz do “melhor de todos os mundos”. 35 Cf. Alfred Baeumler, Das Irrationalismusproblem in der Ästhetik und Logik des 18. Jahrhunderts bis zur Kritik der Urteilskraft (1923; Darmstadt, 1967), p. 142s.
62
“Aesthetica (theoria liberalium artium, gnoseologia inferior, ars pulcre cogitandi,
ars analogi rationis) est scientia cognitionis sensitivae”36 [“A estética, a teoria das
artes livres, gnoseologia inferior, arte da bela reflexão, arte da analogia da razão,
é a ciência do conhecimento sensível], declara a monumental frase introdutória
da Aesthetica. A estética de Baumgarten é comparável ao esprit de finesse de
Pascal, uma faculdade de conhecimento de direito próprio. Se o conhecimento
sensível se dedica a encontrar uma entrada própria para a harmonia, então a
ficção é uma maneira de otimizar essa entrada, de intensificar a consciência ou
de abrir, pelo contraste ou pela alienação, uma via profunda para a harmonia do
mundo. Em um mundo leibniziano, a ficção não pode ter a tarefa de
simplesmente idealizar o mundo real ou de lhe opor um mundo ideal; ela só
pode se justificar pela intensificação da faculdade de conhecer sensível37,.
Baumgartem distingue entre a fictio historica, que se põe sob as condições de
nosso mundo, a fictio heterocosmica, que conduz a outro mundo e, por fim, a
fictio utopica, que, por assim dizer, permanece sem mundo e, daí, não pode
ganhar nenhuma função estética ou poética (Aesthetica, ## 507, 511, 514). A
elas se acrescenta, como classe própria de fictiones, as figuras retóricas, as
fábulas e os exemplos. Ambas, a fictio historica e a fictio heterocosmica podem-
nos dar, como invenções, em analogia com a perfeição do mundo, uma visão do
todo inexplicável do mundo e sua ordem.
Georg Friedrich Meier, um discípulo de Baumgarten, em seu Anfangsgründen
aller schönen Wissenschaften [Fundamentos iniciais de todas as belas ciências
(1748-1750)), popularizou o pensamento de Baumgarten sobre a estética e lhe
deu uma forma corrente. Com ele, pela primeira vez, a facultas fingendi se torna
unívoca à poeticidade. Seus objetos (figmenta e fictiones) querem dizer, em
sentido amplo, numa terminologia concisa, “Invenções”. Ao lado das invenções
históricas e das invenções de um outro mundo, bem como as poesias utópicas,
Meier agora põe as invenções poéticas, nas quais o poeta como “inventor ele
mesmo, cria um novo mundo”. A verossimilhança engendra este novo mundo
36 Baumgarten, vol. 1 (1750), p. 137 Cf. Friedrich Solms, Disciplina aesthetica. Zur Frühgeschichte der ästhetischen Theorie bei Baumgarten und Herder (Stuttgart, 1980), p. 69ss.
63
antes de tudo pela coerência interna, por força de seu engenho criador. Nisso, a
invenção poética é uma analogia para a própria criação e um exercício em sua
unidade e multiplicidade infinitas. Lessing se dispõe nesta linha quando exige do
drama que deva ser, como unidade na diversidade, uma “silhueta do infinito”.
O século XVIII deu à ficção uma nova dignidade, seja no sentido da auto-
realização como em Vico ou Rousseau, seja como analogia do melhor de todos
os mundos, no sentido de Leibniz. Mas também pôs a ficção como ficção sob a
luz da crítica iluminista. O Iluminismo como desmitificação significa, em primeiro
lugar, que o mito seja examinado como “pura ficção” ou fábula. Assim,
Fontenelle, em sua “Histoire des oracles” (1687), mostra a inconsistência do
oráculo e seu caráter fabricado e fictício. O entendimento ilumina as
obscuridades e a nebulosidade de uma fantasia ainda incompleta ou sua fraude
consciente. “Employons un peu notre raison, et ces fantômes disparaissent”
[Usemos um pouco de nossa razão e estas fantasmas desaparecem”
(Fontenelle: “Histoires des oracles”, 1687)]. Esta frase da reflexão de Fontenelle
sobre “Du bonheur”, poderia ser o axioma da filosofia iluminista do autor. Em “De
l’origine des fables” (1724), a origem dos mitos é vista nas ficções, que não
passam de metáforas das perguntas ainda movidas por um entendimento
infantil. Ao mesmo tempo, porém, as primeiras ficções são modelos de uma
fabricação das ficções, fabricação que impulsiona sempre formas espantosas e
absurdas. Se, no entanto, a ficção se converte em mito e o mito se solidifica em
religião, é um privilégio dos gregos estetizar a sua religião e apresentar em
ficções o novo modo da imaginação como um belo jogo. Em sua versão do
Oedipe (1718), Voltaire faz da própria crença cega no oráculo a base da
fatalidade de que Édipo teria escapado não houvesse crido no oráculo. No
Esquisse d’un tableau historique du progrès de l’esprit humain (1795), Condorcet
desmascarará a religião, o mito como manobra da classe sacerdotal, que,
conscientemente, se serve do efeito da ficção para o extravio do povo ignorante.
Mas, por outro lado, o século XVIII é a época da compreensão da
inevitabilidade da ficção quando trata de perguntar pelas origens, que são
logicamente conseqüentes e entretanto, suprimidas por toda a tradição escrita.
64
No ensaio “Mythen des Anfangs. Eine geheime Sehnsucht der Aufklärung”, Hans
Robert Jauß constatou no interesse pela “pergunta pelos começos da história da
humanidade” um “processo contrário à crítica oficial dos mitos pelo Iluminismo” e
a relacionou com uma nova “nostalgia pelos começos” (Jauss, H. R.: 1989, 23). 38O que Jauß descreve como “mito do começo” é, entretanto, talvez a ficção
consciente do começo, como hipótese da origem necessariamente teórica.
Assim, no princípio do Discours sur l’origine de l’inégalité, Rousseau, ao
questionar a visão da primeira diferença entre o animal e o homem, pode dizer,
numa rejeição provocadora de qualquer construção empírico-hipotética:
“Commençons donc par écarter tous les faits, car ils ne touchent point à la
question” (“Comecemos pois por afastar todos os fatos, pois não tocam de modo
algum na questão”). Sua história da origem da humanidade é uma ficção
hipotética, que escapa “des raisonnements hypothétiques et conditionnnels” (Sur
l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes). Não se trata aqui de
exorcismo mítico da origem, mas sim de uma construção teoricamente refletida,
sob a forma de um modelo temporal fictício. Também a visão dos homens
reunidos no poço, cujo encontro suscitaria o impulso da linguagem, no Essai sur
l’origine des langues (começado em 1755, publicado em 1781), é uma hipótese
poeticamente ressaltada, e não o conjuro de uma origem mítica.
A história da origem como forma da hipótese da origem tornou-se em uma nova
modalidade da forma de ver do Iluminismo. A seu lado, apresenta-se como outra
ficção necessária a ficção do direito, que já tivera sua origem na Antigüidade
romana (cf. Furhmann, M.: 1983, art. Cit.) e se desenvolvera no século XVIII,
especialmente na Inglaterra. A fictio iuris permite solucionar com elegância
casos jurídicos, de modo que um caso é fictiamente acrescentado a uma classe
de casos, que recebe um certo tratamento jurídico. Que também a matemática e
a ciência da natureza necessitem de grandezas fictícias é ressaltado
expressamente por Kant. Os conceitos de entendimento, pois não envolvem
“objeto algum em qualquer experiência” não são senão “ficções heurísticas” ou
princípios reguladores. O entendimento emprega a ficção, para, com sua ajuda, 38 Jauss, “Mythen des Anfangs. Eine geheime Sehnsucht der Aufklärung”, in Jauss: Studien zum Epochenwandel der ästhetischen Moderne (Frankfurt a. M., 1989), p. 23.
65
vir ao entendimento. O começo de tal compreensão, que o seeculo XVIII
desenvolveu, atingiu sua culminância na Kritik der reinen Vernunft (1781): “Os
conceitos de entendimento são, como se disse, simples idéias e, seguramente,
não têm objeto algum em qualquer experiência, mas, por isso, não designam
objetos inventados que seriam ao mesmo tempo admitidos como possíveis. São
pensados apenas problematicamente, a fim de fundarem, em relação a eles
(como ficções heurísticas) princípios reguladores do uso sistemático do
entendimento, no campo da experiência” (B 799). Mais de um século depois,
essa abordagem foi sistematizada por Hans Vaihinger, em sua grande síntese,
Die Philosophie das Als ob. System der theoretischen, praktischen und religiösen
Fiktionen der Menschheit aufgrund eines idealistischen Positivismus (A Filosofia
do como se. Sistema das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade,
na base de um positivismo idealista) (1911). O postulado puro, livre de toda
necessidade empírica, que não pode substituir coisa alguma, aqui se converte
na ficção prática por excelência, que se opõe à ficção estética como uma ficção
de direito próprio.
Também na época da filosofia se verifica um prosseguimento de reflexões
literárias específicas sobre a ficção, sobre suas formas literárias e
possibilidades. Um conceito classicista domesticado de ficção se encontra no
artigo “Fiction” nos Eléments de littérature (1787), de Marmontel, uma coleção
de suas contribuições teórico-literárias à Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert,
que reune como que a suma da compreensão do classicismo iluminista na
França. Para Marmontel, a tarefa própria da ficção é a imitação idealizante das
coisas reais, no sentido de uma beauté idéale, provocada por seleção e
estilização e entendida como símbolo da perfeição. “La fiction qui tend au parfait,
ou la fiction en beau, est l’assemblage régulier des plus belles parties dont un
composé naturel est susceptible, & dans ce sens étendu, la fiction est essentielle
à tous les arts d’imitation”39 (“A ficção que tende ao perfeito ou a ficção no belo é
a reunião regular das partes mais belas de que é suscetível um composto
natural e, neste sentido extenso, a ficção é essencial a todas as artes de
39 Jean-François Marmontel, “Fiction”, in Diderot (Encyclopédie), vol. 6, p. 679.
66
imitação”). O poeta ou o pintor dá continuidade à natureza no ideal, para tanto
empenhando-se em fazer acessível aos receptores um máximo de efeito Aos
olhos de Marmontel, são menos exitosas a “fiction d’exagération”, que quer
impressionar antes de tudo por uma intensificação quantitativa, a “fiction des
monstrueux”, que procura compatibilizar o incompatível e, por fim, a forma do
“fantastique”, que só é inteligível como “dérèglement de l’imagination”. Resta
portanto a “fiction qui se dirige au parfait, ou la fiction en beau” (a ficção que se
dirige ao perfeito ou a ficção como belo”), a única que pode se endereçar ao
gosto e ao entendimento e que é digna do trabalho do artista.
Contra o conceito classicista de literatura, exposto por Marmontel, que não
dava espaço algum ao romance e concedia fronteiras estreitas à ficção,
apresenta-se a reflexão de Diderot sobre as possibilidades da imaginação
narrativa, que, nele, com certeza, não se concretiza em uma teoria da ficção.
Diderot desenvolve um conceito do interessante como conceito experimental,
para abrir novos espaços para o estético. Seu Jacques le fataliste (ed. póstuma:
1796) é, neste sentido, um romance interessante, que questiona o contrato
ficcional entre o autor e o leitor de romances e, em cumplicidade com o leitor,
converte o próprio arbitrário dos postulados romanescos em tema. Assim a
ficcionalidade da ficção, em todos seus momentos, é sempre trazida à
consciência do leitor. Também pertence às estratégias do próprio
questionamento do romance que nele o relato pseudo-oral se afirme contra a
voz do narrador romanesco, em sua autonomia. Em um adendo ao relato “Les
Deux amis de Bourbonne” (1773), Diderot distingue entre o conte merveilleux, o
conte plaisant e o conte historique e se indaga por seu denominador comum.
Para Diderot, ele está, por um lado, em uma certa situação narrativa
“descontraída”40, por outro, em uma arte de pequenos detalhes, que também
empresta ao conto um efeito de realidade quando ele se aventura a entrar nos
“espaces imaginaires”: “Séduisez-moi par les détails; que le charme de la forme
me dérobe toujours l’invraisemblance du fond” [“Seduza-me pelos detalhes; que
o encanto da forma sempre me subtraia o inverossímil do fundo”]41. Diderot aqui 40 Harald Weinrich, Tempus. Besprochene und erzählte Welt (Stuttgart, 1964).41 A propósito, cf. Herbert Dieckmann, “Die Wandlung des Nachahmungsbegriffes in der
67
recorre a Quintiliano, que já havia descrito a arte da mentira como uma arte de
detalhes.
Diderot leva o romance à experiência de um cotidiano cortado em pedaços. Aí
pode estar a razão por que, para ele, a descrição se esquiva da ficção. No
“Eloge de Richardson” (1762), a nova forma do romance realista-burguês de
Richardson é estreitamente conectada com a nova forma de drama, como um
gênero entre a comédia e a tragédia. Enquanto o romance tradicional como
ficção não passa de um “tissu d’événements chimériques et frivoles”, Richardson
é apresentado como autor de um romance que merece pertencer a um gênero
bem diferente, distinto mesmo do drama que se dirige diretamente a seus
receptores e os afasta de suas ilusões. O romance de Richardson é, de certo
modo, a síntese de uma variedade de situações dramáticas, que o drama
encenado nunca teria concedido. O mundo de nossa experiência cotidiana se
transforma no palco do mundo, em que todos os personagens e todas as
camadas sociais desempenham seus papéis. Para que, no entanto, a ilusão da
partilha na realidade imaginária possa surgir, também aqui os detalhes são
necessários: “C’est à cette multitude de petites choses que tient l’illusion” (A
ilusão depende dessa multidão de pequenas coisas”). Pela arte do detalhe,
nasce um mundo vivo, em que se revelam dramas de “trinta ou quarenta
pessoas”, que, no palco efetivo, não seriam representadas e para o que o novo
romance oferece um palco imaginário.
O “Essai sur les fictions” (1795), de Mme de Staël, já na entrada do século XIX,
pergunta-se outra vez pelas possibilidades da ficção e as comprova com a
afirmação de “que les romans qui prendraient la vie telle qu’elle est, avec
finesse, éloquence, profondeur et moralité, seraient les plus utiles de tous les
genres de fiction” (“os romances que tomem a vida como ela é, com fineza,
eloqüência, profundeza e moralidade, seriam os mais úteis de todos os gêneros
de ficção”). Desta maneira o romance é renovado como paradigma próprio da
ficção, mas agora, a exemplo de Diderot, como forma da “vida como ela é”. Só
os “romans modernes” são apropriados para o tema de que a ficção deve agora
französischen Ästhetik des 18. Jahrhunderts”, in H. R. Jauss (ed.), Nachahmung und Illusion (Munique, 1964), espec. 53s.
68
de preferência servir, como dirá Mme de Staël, a “la peinture de nos sentiments
habituels”42.
VII. A ficção a partir do espírito da língua. Mallarmé e a modernidade
A teoria da literatura do século XIX não foi particularmente afligida pelo problema
da ficção. Isso poderia se explicar por uma concepção de literatura que a
racionalidade construtiva e a lógica retórica da ficção tornou questionável. No
programa de uma nova literatura romântica ou pós-romântica, que se
compreendia como produto do gênio ou como exposição da realidade social, o
conceito de ficção não tinha lugar de proeminência. No entanto, do ponto de
vista de uma história da significação do fingere, é de particular interesse o
filólogo-poeta Giacomo Leopardi, cuja poesia lírica parte da teoria de Rousseau
sobre a consciência alienada para uma consciência das camadas de significado
do italiano até suas origens latinas. No canto “Alla primavera”, encontram-se os
versos: “ (…) Quelle due varie note / Dolor non forma” (“Aquelas duas notas /
não são pela dor formadas”). O poeta o diz em uma apóstrofe ao rouxinol, que
sauda a primavera e cuja queixa não concerne ao destino humano. Na primeira
versão do poema, de 1824, em lugar de forma, ainda aparece finge. Leopardi
acrescentara uma anotação, em que lembra as duas significações originais de
fingere. Refere-se aqui ao fato de que fingere, em latim, primariamente significa
dar forma, que o próprio Leopardi, na passagem citada, quer recuperar. Mas, por
fim, para evitar uma falsa interpretação, o retira, como antes dele já o fizera
Agostinho e, depois, Petrarca, para empregar o unívoco formare. Ao contrário,
nos dois cantos “L’Infinito” e “Le Ricordanze”, Leopardi procura conscientemente
o vago, o efeito poético da oscilação, à medida que deixa que se engrenem o
momento construtivo e o momento do efeito. Assim se lê em “L’Infinito”: “Ma
sedendo e mirando, interminati / Spazi di là da quella, e sovraumani / Silenzi, e
profndissima quiete / Io nel pensier mi fingo” (“Mas sentando e mirando,
intermináveis / Espaços além daquela, e sobre-humanos / Silêncios, 42 Mme. De Staël, “Essai sur les fictions” (1795), in de Staël, Oeuvres completes, vol. 1 (Paris, 1836), p. 63.
69
profundíssima quietude, / Eu em pensar me finjo”).
O reflexivo io me fingo aqui significa que o eu dá uma forma subjetiva ao
informe e ilimitado e, ao mesmo tempo, se mantém consciente deste ato de
ficção. O eu, na fronteira entre a formatividade e o informe, da realidade
absoluta e da apropriação imaginária, experimenta o sublime, em que na
conguração se atraem o demasiado poderoso e o informe. Mas aí não está a
realidade própria do fingere; é o próprio poema que converte o naufrágio da
consciência na consumação poética: “E naufragar m’è dolce in questo mare”.
Em “Le Ricordanze”, em que o eu tardio recorda a felicidade imaginária do
primeiro dirigir-se ao mundo, se diz: “Il garzoncel, come inesperato amante, / La
sua vita ingannevole vagheggia, / E celeste beltà fingendo ammira” (“O menino,
como inesperado amante, / Corteja sua vida traiçoeira, / E celeste beleza
fingindo admira”).
Também aqui o objeto da reflexão poética é a indissolúvel unidade da ilusão,
da atividade que engendra a ilusão e a postulação poética. A celeste beltà,
metáfora da fascinação erótica anterior do moço entusiasta, é a obra do
imaginário, que, de sua parte, como em “L’Infinito”, pode-se tornar objeto de
outra trabalhada elaboração imaginária. Ao fingere da felicidade de antes,
ilusionista e inestável, agora se opõe o fingere poético sem ilusões, de que o
poema deriva.
Na terra da lingua romana, permaneceu viva a consciência da variedade
significativa original da palavra fingere. Nunca aqui se esqueceu por completo a
sua variedade original de significações, a metamorfose do conceito de ficção,
que o impulsiona a formas sempre novas. Também Giuseppe Ungaretti ainda
está na linha latina do fingere: “Quando erano giovani i tempi, quando si diceva
‘fingere’ alla latina, le illusioni si ‘foggiavano’, avevano materia per essere
‘foggiati’ e consistere, e si poteva credere vera la felicità” [“Quando os tempos
eram jovens, quando se dizia ‘fingere’ à maneira latina, as ilusões se ‘formavam’,
tinha matéria para ser ‘formadas’ e ter consistência, e se podia crer verdadeira a
felicidade]”43.43 Giuseppe Ungaretti, “Secondo discorso su Leopardi” (1944), in Per conoscere Ungaretti, L. Piccioni (ed.), (Milão, 1993), p. 424.
70
Só na teoria da literatura e da poesia elitista de Mallarmé, antagônica à fábrica
literária de seu tempo, o conceito de ficção assume um novo significado, que se
lança para o futuro, para a vanguarda literária do século XX. A poesia da
negação de Mallarmé explicita uma filosofia da linguagem. À diferença da poesia
de Hugo, conduzida pela exuberância do referencial jubilatório, a poesia de
Mallarmé, em um sentido radical, auto-referencial, tem em sua auto-
referencialidade o fundamento da ficção poética. Para Mallarmé, há um conflito
agudo entre a ficção na época de sua reprodutibilidade técnica e do consumo de
massa e um novo modo de ficção, cujo foco deixa de ser um contexto referencial
decorrente de si, mas sim que remete a si mesma. Em “Crise du vers” ((1886), a
resposta de Mallarmé ao fenômeno da imprensa de massa, oferece uma
expressão programática a seu novo conceito de ficção: “Au contraire d’une
fonction de numéraire facile et représentatif, comme le traite d’abord la foule, le
dire, avant tout, rêve et chant, retrouve chez le Poëte, par nécessité constitutive
d’un art consacré aux fictions, sa virtualité (“Ao contrário de uma função de
numerário fácil e representativo, como desde logo o trata a multidão, o dizer,
antes de tudo sonho e canto, encontra no poeta, por necessidade de uma arte
consagrada às ficções, sua virtualidade”). Esta é a base de uma nova poética,
que busca outra vez o conceito de ficção em seu domínio mais estreito. A poesia
não quer florescer como ilusão, ela se mantém na virtualidade do ilusório e a
converte no lugar da ficção. A ficção aqui recupera seu velho sentido concreto
de formação poética, como se formulava no carmina fingo de Horácio. Mas que
quer dizer ficção ou poesia como “virtualidade”? A virtualidade é o lugar do que,
em uma reflexão precedente, chamava de “notion pure”: “À quoi bon la merveille
de transposer un fait de nature en sa presque disparition vibratoire selon le jeu
de la parole, cependant; si ce n’est pour qu’en émane, sans la gêne d’un proche
ou concret rappel, la notion pure” (“Para que, entretanto, a maravilha de transpor
um fato da natureza em sua quase desaparição vibratória; se não é para que
dele emane, sem o embaraço de um chamado próximo ou concreto, a noção
pura”). O livro converte-se no lugar em que a notion pure ocorre, mas o livro é,
ao mesmo tempo, em todas suas dimensões, a ficção que remete a si mesma, o
71
fictício-real absoluto, em que, simultanemente, a concretude da fala, em sua
sonoridade, é uma dimensão própria do poético. Nela, a poesia encontra sua
meta ao se manter em si mesma e resistir à ilusão referencial do universel
reportage. Asssim a flor, a flor da poesia, se torna puro acontecimento: “Je dis:
une fleur! Et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que
quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et
suave, l’absente de tous les bouquets” (“Digo: uma flor! E, fora do esquecimento
em que minha voz relega qualquer contorno, enquanto algo de outro que os
cálices sabidos, musicalmente se eleva, idéia mesma e suave, a ausente de
todos os buquês”). Tal acontecimento desreferencializado, em que Mallarmé vê
a culminância de sua ficção poética, só é possível no interior da negação, que
traz o negado livre de toda relação afirmativa com o acontecimento. A poesia de
Mallarmé da notion pure é uma poesia da negação, em que a linguagem
desdobra sua virtualidade. A intuição genial de Mallarmé está em compactar-se
na negação a produção própria da linguagem, em dar uma configuração ao
ausente ou em remover o presente num ausente44 . Rousseau tinha descoberto
no não-ser da falta no aparato instintivo a pulsionalidade, necessária ao homem
para erigir, no mundo, seu mundo fictício. Já em Rousseau é a linguagem como
ficção e meio de produção da ficção uma meta do homem no caminho para si
mesmo. Nesta linha, Mallarmé vê a negação como produção culminante da
linguagem, busca uma idéia da ficção poética, na qual a negação se mostra em
seu próprio espelhamento como fonte de um novo imaginário, cuja realidade
sintática, não obstante, está ligada à realidade da sonorização e da remoção do
sonoro na escrita.
Mallarmé chegou à sua concepção autoreferencial da poesia como ficção no
meio da negação, a seu antecipado linguistic turn, através de longos estudos e
especulações sobre a filosofia da linguagem, com os quais elaborara alguns
fragmentos. Em suas Notes, de 1869, em que se antepõe criticamente ao
Discours de la méthode, de Descartes, ficção e método, que Descartes queria
ter absolutamente separado, se aproximam até à identificação. Deste modo, ao 44 Cf. Stierle, “Position and negation in Mallarmé’s ‘prose pour des Esseintes’ “, in Yale frech studies, 54 (1977), [número temático sobre Mallarmé],pp. 96-117,
72
Descartes apoético por assim dizer se opõe um Descartes poético:”Toute
méthode est une fiction, et bonne pour la démonstration”. A linguagem e a ficção
demonstram sua íntima afinidade e condicionam o linguistic turn da poesia
lançada para o futuro de Mallarmé: “Le langage lui est apparu l’instrument de la
fiction: il suivra la méthode du langage (la déterminer). Le langage se
réfléchissant. Enfin la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit humain”
(“A linguagem lhe apareceu como o instrumento da ficção; seguirá o método da
linguagem (determiná-la). A linguagem refletindo-se. Enfim, a ficção lhe parece
ser o procedimento mesmo do espírito humano”). Na refração da negação, a
linguagem remete para si mesma: “Le moment de la Notion d’un objet est donc
le moment de la réflexion de son présent pur en lui-même ou sa pureté présente”
(“O momento da noção de um objeto é, portanto, o momento da reflexão de seu
presente puro em si mesmo ou de sua pureza presente”). A negação como fonte
da ficção torna particularmente claro o papel preciso da conceitualidade para o
fictício (notion pure). Mallarmé, que, da ficção absoluta, sonhava com o livro
total, tinha podido realizar seu sonho apenas na forma do poema lírico centrado
em si, em que o acaso da linguagem se convertera no triunfo da superação do
acaso pelo próprio acaso. Não obstante seus pensamentos sobre a ficção como
negação da ilusão referencial pela própria ficção se tornava um poderoso
desafio que assim atingia a ficção por excelência, o romance. O romance
moderno do século XX é moderno na medida que se abre ao paradigma da lírica
como “antidiscurso” e, assim, se encontra com formas de uma construção
fictícia, no sentido radical, que não mais se conecta a referenciais. Exemplos
passados disso são À la recherche de temps perdu (1913-1927), de Proust, em
que a lírica de Baudelaire do palimpsesto da lembrança se transforma no
“escrever sem fim”45, em um palimpsesto da lembrança verdadeiramente
imenso, e a nova técnica de relato do mise en abyme de Gide, em que a
narração reiterativa e especular, que, como récit spéculaire, se tornaria no
grande paradigma do nouveau roman francês46 (cf. Dällenbach, L.: 1977). O
45 Rainer Warning (ed.), Marcel Proust.Schreine ohne Ende (Frankfurt a. M./Leipzig, 1994).46 Cf. Lucien Dallenbach, Le Récit spéculaire. Essaisur la myse en abyme (Paris, 1997)
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nouveau roman se volta para as premissas originadas de si próprio, não mais
premissas narrativas e construtivas, segundo a elegante formulação de Jean
Ricardou, a lei do romance, ser “l’écriture d’une aventure”, converte-se em
“l’aventure d’une écriture”47Recorde-se a esse propósito o excêntrico Raymond
Roussel, que, na passagem do século conseguira seus fantásticos relatos de
viagem a partir do jogo com o acaso e a ambigüidade da linguagem48.
Não é acidental que a radicalização das tendências auto-referenciais no
nouveau roman do fim da década de 1960 tenha insuflado uma nova atualidade
ao conceito de ficção. Se antes o romance resultou da reabilitação da ficção,
agora o romance, que assume a consciência de sua natureza verbal, se
concebe como ficção. Com a linguistic turn dos anos sessenta, que, na França,
produzia, sobretudo no círculo da revista de vanguarda Tel Quel, uma nova
literatura estrutural, a seguir gerativa e, por fim, desconstrutiva, o romance se
transforma em virtualidade de suas estruturas verbais, textualmente originadas e
se descobre como ficção. Como ficção, no entanto, não mais segue uma ilusão
referencial, mas sim se compreende como écriture ou, mais universalmente,
como texto, no sentido do modelo de ficção elementar da textura, do tecer e
destecer, pela primeira vez poeticamente refletido por Ovídio. Assim, nas
reflexões de Jean Ricardou sobre as dimensões de um novo romance radical, o
conceito de ficção alcança uma significação central49. O próprio Ricardou
procurara consumar exemplarmente, em seu “romance” La Prise de
Constantinople (1965), a autogênese de uma ficção radical, a partir daqui
seguidora de suas próprias leis50. Também Claude Simon, em seu ensaio “La
Fiction mot à mot” (in Ricardou, J.: 1972, II 73-97) chama a atenção, por certo
sob a influência de Ricardou, sobre o processo de nascimento verbal-imanente
de suas ficções, muito além da ligação referencial do romance. Mostra-se com
47 Jean Ricardou (ed.), Nouveau roman: hier, aujourd’hui, vol. 1 (Paris, 1972), p. 403.48 Cf. Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres (Paris, 1963); Ricardou, LActivité rousselienne, in Ricardou, Pour une théorie du nouveau roman (Paris, 1971); Michel Foucault, Raymond Roussel (Paris, 1963). 49 Cf. Ricardou, Pour une théorie du nouveau roman (Paris, 1971); Ricardou, Nouveaux problèmes du roman (Paris, 1978); Ricardou, Le Nouveau roman (Paris, 1973).50 Ricardou, cf. nota 47, vol. 2 (Paris, 1972).
74
isso, de modo novo, a conexão não mais apenas etimológica, entre ficção e
figura. O novo romancista afasta-se por completo de seguir os passos de um
simples relato, liga, em sua ficção, figuras mot à mot, que são ao mesmo tempo
figuras de linguagem, figuras de pensamento e figuras de uma experiência
possível, à disposição da atenção possível. Os romances de Claude Simon, La
Bataille de Farsaille (1969) e Les Corps conducteurs (1971), são exemplos
destacados disso.
Culminância posterior do romance auto-reflexivo que expõe sua ficcionalidade,
e, ao mesmo tempo, de sua superação é La Vie. Mode d’emploi (1978), com o
subtítulo irônico de “romances”, de George Perec. Perec leva a cabo neste
romance de Paris um jogo irônico com as formas ficcionais de construção do
puzzle e, simultaneamente, sujeita a estrutura ficcional ao equilíbrio entre as
várias realidades imaginário-referenciais da cidade, de tal modo que se
compensam a estrutura ficíticia, auto-referencial e centrípeta e o mundo
referencial e centrífugo das estórias na cidade. O herói do romance e imagem de
seu autor é o milionário Barthlebooth, obsecado por puzzles. Em suas viagens,
pinta 500 aquarelas marinhas, que são desfeitas pelo pintor Gaspard Winckler, e
a cada vez51 recortadas em 750 peças de puzzle, as quais, décadas mais tarde,
são de novo reunidas, para que sejam dissolvidas na água do lugar em que
foram feitas. Assim, no ciclo do nada para o nada, se configura uma obra irônica.
No momento de sua morte, Barthlebooth põe sua última peça de puzzle, com o
que, simultaneamente, o autor encerra seu último elemento narrativo.
VIII. A ficção do mundo como horizonte das ficções
Terá sido a busca do novo nouveau roman de reconduzir a ficção a si mesma e
de abri-la a novas dimensões de sua virtualidade talvez apenas o episódio
heróico de um modo de escrita que não levava em conta o leitor? As ficções
então criadas, no entusiasmo de uma nova consciência da estrutura verbal e
51 “A cada vez” (jeweils) pois o pintor Winckler tem de recobrir as peças de afinal quinhentos puzzles (cf. Perec, G.La Vie. Mode d’emploi (Paris, 1987), trad. bras. De Ivo Barroso, A Vida. Modo de usar, (São Paulo, 1991) (N. do Tr.).
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textual, serão talvez apenas ruínas de um projeto frustrado? Não mais se fala na
aventura extraordinária de uma ficção desligada das pressões da ilusão
referencial emudeceu. Outra vez domina o romance cujo protótipo ainda pode
ser encontrado no romance de Chrétien de Troyes52.
“Só um horizonte circundado por mitos remata toda uma cultura em
movimento”, observava Nietzsche na consideração do mito grego, em seu
ensaio sobre Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik53. Numa
variação livre da frase de Nietzsche, podia-se dizer: “Só um horizonte circundado
de ficções remata o movimento da cultura moderna”. No âmbito verbal anglo-
saxônico, ficção cada vez mais significa a totalidade da produção romanesca,
com inclusão de formas narrativas mais curtas, com o que, em oposição ao setor
que, nas grandes livrarias, se denomina “literature”, fiction é sempre uma parte
essencial do imaginário referencialmente mediado. Assim, o Oxford English
Dictionary, anota no verbete “fiction”: “The species of literature which is
concerned with a narration of imaginary events and the portraiture of imaginary
characters; fictitious composition. Now usually, prose novels and stories
collectively; the composition of works of this class” (OED, vol. 4, 1933, 187).
Como fundamento de um conceito de ficção especificamente inglês, poder-se-
ia considerar o modelo complexo de interação entre autor e leitor, como o
descreve Samuel Taylor Coleridge. Coleridge dava uma nova dimensão
subjetiva ao conceito de verossimilhança, que leva em conta o papel próprio do
leitor pelo poeta. O poeta deve-se esforçar em “to transfer from our inward
nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these
shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which
constitutes poetic faith” [“transferir de nossa natureza interna um interesse
humano e uma semelhança bastante para propiciar a estas sombras da
imaginação aquela suspensão amorosa da descrença para o momento, que
constitui a fé poética”]54.52 Cf. Ulrich Schulz-Buschhaus/Stierle (eds.),Projekte des Romans nach der Moderne (Munique, 1997).53 Friedrich Nietzsche, Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (1872), in Nietzsche (Schlechta, ed.), vol. 1, (Munique, 1954), p. 125.54 Samuel Taylor Coleridge, Biographia literaria or biographical sketches of my literary
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Só na época da imprensa o romance se tornou o paradigma da ficção, mas
também paradigma do que poderia chamar a inquietude da ficção. Com a
impressão tipográfica, a mania do romance ganhou o mundo. Cada romance
lega a nostalgia irrealizada e irrealizável pelo imaginário além do imaginário que
enfrenta o leitor numa variedade infinita de formas. A fidelidade a essa nostalgia
nunca satisfeita, que parece pertencer ao aparato antropológico do homo
modernus, fornece o pão de cada dia aos que trabalham no romance
internacional, na ficção internacional, como o horizonte das ficções que reorienta
nosso mundo. A partir de infinitas ficções, à ficção internacional corresponde um
mercado internacional da ficção. Que o romance como ficção conceda, apesar
de toda a diferença de suas estratégias discursivas, a dominância ao imaginário
referencial é o pressuposto de sua traduzibilidade e esta, de sua presença além
das fronteiras das línguas. No entanto, a lingua franca da ficção internacional é o
inglês e o anglo-americano, não só porque há aqui, manifestamente, uma
conexão ideal entre língua e “fiction”, mas sim também porque o inglês, como
lingua franca, é, simultaneamente, o lugar da comunicação internacional, em
que se reunem as imaginações do mundo55. Isso tanto vale para a América com
seu multiculturalismo étnico, de que o poder da lingual se apoderou, assim como
para o mundo pós-colonial da antiga comunidade britânica, só restou a herança
do inglês corrente. Salman Rushdie, em seu livro Imaginary homelands. Essays
and criticism (1981-1991) (1991), testemunhou que aguda consciência um
romancista moderno há de ter para se pôr no contexto do romance internacional.
Isso já valia para as obras anteriores de Milan Kundera, L’Art du roman (1986)
ou de Mario Vargas Llosa, La Verdad de las mentiras (1990). O romancista,
onde quer que levante sua voz, seja no lugar mais remoto do mundo, tem a
oportunidade de ingressar no romance internacional e de participar no mercado
internacional da ficção.
O gênero da chamada science-fiction, que desde a década de 1920 se impôs
como uma forma própria de ficção, pode mais uma vez iluminar indiretamente a
life (1817; Londres, 1971), cap. 14, p. 168s. 55 Aleida Assman, Die Legitimität der Fiktion. Ein Beitrag zur Geschichte der literarischen Kommunikation (munique, 1980), pp. 108-155.
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ficção anglo-americana. Ela esclarece particularmente que a referencialidade
aventuresca, o imaginário de densidade referencial pertence essencialmente à
ficção, mas também indiretamente aponta para o que não é ficção. O romance
policial é a science-fiction tematicamente firmada e, na verdade, em duplo
sentido: como prenúncio do futuro ainda aberto e pela tese de que o futuro
essencialmente deve ser um futuro técnico, pelo qual almeja tornar plausível o
ainda impensável em termos técnicos ou melhor, pseudotécnicos. Ao contrário
disso, cabe à liberdade do romance como ficção ampliar a experiência
contemporânea no imaginário e encontrar, para isso, uma forma narrativa.
O fato de o romance referencial, que já se dizia morto, tenha sobrevivido à a-
referencialidade permite pensar que seu potencial antropológico ainda não está
esgotado, que, ao contrário, este ainda parece crescer pela produtividade
imaginária do romance. Pois é justamente a perduração do mundo das ficções
que permite que este mesmo se converta em objeto de uma ficção de segundo
grau. Essa é a premissa que subjaz à metaficção de Jorge Luis Borges. Em suas
Ficciones (1944), estão os livros imaginários que o narrador cria. Por isso a
realidade cotidiana tão estreitamente confina com os mundos da ficção e do
imaginário que ambos parecem lançar-se, além da fronteira da diferença
categorial, noutra dimensão: o fantástico se torna real, o real se torna fantástico.
A confusão entre realidade e ficção atinge seu cume na história de Louis
Ménard, que concebe o plano fantástico de inventar outra vez Don Quijote, de
modo que agora o Don Quijote de Cervantes e o de Ménard sejam
indiferenciados e a realidade da ficção de Cervantes perca seu solo e se funda
com a “realidade” imaginária de Ménard. A metaficção parece produzir um
equilíbrio instável entre fiction e ficção auto-referencial. Justamente por isso
parece, como terceira via, poder fundar uma nova dimensão do fictício. Italo
Calvino, particularmente, entrou por esse caminho. Seu romance Se una notte
d’inverno (1979), impregnado de referências a Borges, é, ao mesmo tempo, uma
demonstração da impossibilidade do romance, assim como, por assim dizer em
suas costas, sua afirmação irônica. Do mesmo modo Le Città invisibili (1972) é
uma combinatória de ficções da cidade, que tem seu ponto de partida no relato
78
de viagem Il Milione, de Marco Polo e que, de fantasma em fantasma, cada vez
mais ganha contornos aventurescos, que ultrapassam o imaginável.
Em 1984, Calvino preparava uma série de conferências para a Norton Poetry
Lectures, na Harvard University, para a qual dera o título provisório de Six
memos for the next milenium. Foram escritas cinco conferências sobre os temas
“leveza”, “rapidez”, “exatidão”, “visibilidade”, “multiplicidade”, mas a sexta, sobre
a “consistência”, ficou inacabada. Assim estas “lezioni americane” se tornaram o
legado de Calvino para o próximo século – uma defesa da ficção leve, rápida,
exata e variada, para as quais se valia da lembrança de uma ficção
internacional, em que o romance e a poesia se encontram. Na conferência sobre
“multiplicidade”, Calvino projeta a idéia de um hiper-romance, que devia ser uma
rede de virtualidades, “una rete crescente e vertiginosa di tempi divergenti,
convergenti e paraleli”56, que, como em “El Jardín de los senderos que se
bifurcan”, nas Ficciones, de Borges – “una red creciente y vertiginosa de tiempos
divergentes, convergentes y paralelos” – havia de ser imaginada com uma rede
de possibilidades em uma variedade infinita de universos coexistentes. As
Ficciones, de Borges, são o modelo do hiper-romance. Neste ponto, porém, as
Metamorfoses, de Ovídio, o protótipo de todas as ficções, se mostram como a
meta da ficção que não só recupera mas leva adiante. No fim de sua “apologia
del romanzo come grande rete”, põe-se a pergunta com que Calvino encerra o
texto: “Non era forse questo il punto d’arrivo cui tendeva Ovidio nel raccontare la
continuità delle forme, il punto d’arrivo cui tendeva Lucrezio nell’identificarsi con
la natura commune a tutte le cose?” [Não era este talvez o ponto de chegada a
que aspirava Ovídio em narrar a continuidade das formas, o ponto de chegada
que Lucrécio tinha em vista ao se identificar com a natureza comum a todas as
coisas?” (Calvino, I.: 1988, 120)].
Ovídio, o verdadeiro iniciador do conceito europeu de ficção, que tornaria a
força impulsora de uma ficção internacional, retorna por fim como herói de uma
metaficção dedicada a ele próprio. Em Die letzte Welt (1988), de Christoph
Ransmayer, a dissolução anacrônica do exilado Ovídio no Mar Negro converte-
56 Italo Calvino, Lezioni americane. Sei proposte per il prossimo milellio (Milão, 1988).
79
se, com as visões do “mundo derradeiro”, em fundamento de uma ficção como
síntese imaginária entre biografia, obra e a contemporaneidade moderna, aberta
para um futuro indeterminado. Ovídio deste modo se torna o fundador do
primeiro mundo fictício que, de certo modo, recolhe em si o último mundo mítico,
no herói mítico de um último mundo fictício, que Ransmeyer quer que seja
compreendido como o derradeiro mundo pós-moderno da ficção. Mesmo que o
autor talvez não tenha desenvolvido esse grande tema na concretude de sua
ficção, de qualquer modo marca um lugar que, para a história do conceito de
ficção, é de novo de significação fundamental.
Em suas Norton Lectures de 1992-1993, dedicadas à memória de Italo Calvino,
Six Walks in the ficcional woods – que também tratavam, em primeiro lugar, da
língua internacional da ficção – Umberto Eco, ele próprio um virtuose da
metaficção, projeta sua imagem do horizonte das ficções. Também aqui, nessa
meditação sobre a ficção internacional, soa, como diria “Le Cygne”, de
Baudelaire, uma velha lembrança. A lembrança daquela muralha em que, pela
primeira vez em Chrétien, o cavaleiro irrompe, para nela se perder e de novo se
achar (cf. Eco, U.: 199457).
IX. A teoria da literatura e a teoria da ficção
Nas filologias nascentes no século XIX, o conceito de ficção não tem significado.
Também na ciência da literatura alemã, emancipada da filologia, o conceito
quase não tem uso. Nem em Das literarische Kunstawerk (1931), de Roman
Ingarden, nem depois, nos fundamentos da hermenêutica de Gadamer, em seu
livro Wahrheit und Methode (1960), o conceito de ficção desempenha um papel.
O título do livro (publicado a partir de seu espólio) de Carl Einstein, Die
Fabrikation der Fiktionen (escrito em seu exílio parisiense, entre 1935 e 1937),
refere-se de modo ainda bastante crítico-ideológico, ao empreendimento
artístico e literário dos anos de vinte e trinta58 .
No começo de uma nova theory of fiction, que devia se tornar, sobretudo nos 57 Cf. Umberto Eco, Six walks in the fictional woods (Cambridge, Mass., 1994).58 Cf. Carl Einstein, Die Fabrikation der Fiktionen, S. Penkert (ed.), (Hamburgo, 1973).
80
Estados Unidos, parte essencial da theory of literature acadêmica, aponta o
ensaio de um romancista que reflete sobre sua própria atividade, The Art of
fiction, do anglo-americano Henry James, publicado pela primeira vez em 1888.
James sabe ter um compromisso particular, em suas próprias reflexões, com os
romancistas franceses, pois: “the French, who have brought the theory of fiction
to remarkable completeness” .59. Ao passo porém que, na França, a reflexão
teórica dirigia-se exclusivamente à forma do romance, James, em suas
observações sobre “the art of fiction”, ainda incluía os relatos mais curtos, com a
exclusão categórica da lírica e do drama. O livro de Percy Lubbock, The Craft of
fiction (1921), se associa diretamente ao de Henry James. Se agora crítica
literária e teoria da literatura, seguindo o uso comercial, se apropriam cada vez
mais do conceito de “fiction”, em seu sentido limitado, então a teoria da ficção se
converte em uma linha de pesquisa dominante na teoria da literatura, recém-
estabelecida nas universidades norte-americanas, depois de 194560 . Essa linha
encontrou em The Rhetoric of fiction (1961), de Wayne Booth, sua primeira
grande síntese. The Sense of an ending. Studies in the theory of fiction, de Frank
Kermode, resultado de conferência proferida, em 1965, no Bryn Mawr College,
é, ao contrário, uma penetrante especulação filosófica sobre a natureza
necessariamente fictícia de qualquer forma narrativa e de sua mais profunda
tendência apocalíptica. Nenhum outro livro sobre teoria da ficção alcançou
desde então a intensidade de seu questionamento das formas do fictício.
Na Alemanha, a teoria da ficção, desenvolvida na academia, encontra seu
ponto de partida em Die Logik der Dichtung (1957), de Käte Hamburger. Nele,
pela primeira vez, perguntava-se pela “relação da poesia com o sistema geral da
língua” e, em direção contrária à Philosophie des Als ob, de Vaihinger, explorava
a diferença entre “gênero ficcional ou mimético” e o sistema proposicional da
língua61. O conceito de gênero ficcional ou da ficção literária aqui alcança seu
perfil singular para a pesquisa, o campo da ficção, tomando-o como um sistema 59 Henry James, The Art of fiction (1888), in James, The Future of the novel, L. Edel (ed.), (New York, 1956), p. 17.60 Cf. Sclaffer, Poesie und Wissen. Die Entstehung des ästhetischen Bewußtseins und der phiolologischen Erkenntnis (Frankfurt a. M., 1990), pp. 142-155.61 Käte Hamburger, Die Logik der Dichtung (1957; Stuttgart, 1968), p. 56.
81
próprio de uso da língua, que se opõe, categoricamente, à lírica, pelo uso da
articulação poética do “sistema da realidade” (idem, 49) e por o tempo do
pretérito, em função ficcional, mostrar-se como tempo da efemeridade ou melhor
de um agora imaginário. Essa tese tão penetrante como problemática (o
passado narrativo, à medida que se distende em um antes e um depois, não se
distingue, em princípio, do puro passado?) deu à teoria da ficção, desenvolvida
na universidade alemã, um impulso essencial e se tornou frutífero pela tradução
do livro também na França (talvez por Gérard Genette).
Desde a década de 1960, o conceito de ficção encontra sempre mais entrada
na discussão universitária alemã, para o que também a recepção da teoria da
ficção norte-americana tem uma parte fundamental. Especialmente, Wolfgang
Iser, em seu livro Das Fiktive und das Imaginäre, lançou uma ponte entre a
configuração das teoria alemã e anglo-saxônica. Nele, se põe a questão
fundamental dos pressupostos antropológicos de nossa disposição para o fictício
e o imaginário. Assim como Kermode, também Iser leva a teoria da ficção além
do campo da ficção romanesca e se indaga por seu potencial antropológico. Iser
é ainda, junto com o filósofo Dieter Henrich, o editor do número X da série Poetik
und Hermeneutik, intitulado Funktionen des Fiktives (1983), em que a questão
da ficcionalidade é discutida em seu amplo espectro.
Também na França, só a recepção da “theory of fiction” concedeu ao conceito
de ficção dignidade acadêmica, enquanto antes ele se restringia ao círculo de
uma poética de vanguarda. Assim o livro Fiction et diction (1991), de Gérard
Genette recorre ao uso inglês da palavra (mas também a seu emprego por Käte
Hamburger) para assim caracterizar uma “forma fundamental” literária. Ao
contrário, o volume organizado por Jean Bessière, Hybrides romanesques.
Fiction (1960-1985) (1988) se mantém estreitamente ligado ao conceito de
ficção da vanguarda literária francesa e mostra como justamente as formas
híbridas do romance pós-moderno realizam um novo conceito de ficção, não
mais imeditamente mimético. Em seu livro Enigmaticité de la littérature. Pour une
anatomie de la fiction au 20e siècle (1993) o conceito de ficção se relaciona ao
conceito de écriture, que era a própria expressão da crise da reprodutibilidade
82
do mundo moderno. No sentido de Bessière, a ineludível identidade da ficção
está em sua insolubilidade e enigmaticidade.
Também um novo campo abre, no século XX, a questão lançada desde
Wittgenstein sobre o estatuto lógico da ficção. As frases ficcionais são
simplesmente sem sentido ou têm elas um valor de verdade próprio? Que jogo
de linguagem joga a ficção? Com base no How to do things with words (1962),
de John L. Austin, em uma investigação analítico-verbal especialmente sobre
frases não-afirmativas e, deste modo, não acessíveis à lógica tradicional, e nas
Philosophischen Untersuchungen (publ. póstuma: 1953), de Wittgenstein, que,
pela primeira vez, procurara esclarecer a “práxis do uso da linguagem”, à
medida que essa é definida como “jogo da linguagem”, indaga-se John Searle,
em um ensaio que se tornou famoso, pelo “logical status of fictional discourse”62.
Apenas para os lógicos, é uma convicção razoável que, de fato, através do
esclarecimento do estatuto lógico dos textos ficcionais, pode ser explicada a
natureza da ficção literária. Searle distingue entre “fictional and serious
utterances” (“enunciados ficcionais e sérios”) e daí supõe que o “fictional
speech” (“a fala ficcional”) não passa da soma de frases pseudo-assertóricas,
porquanto apenas frases ou melhor proposições encadeadas em frases podem
ser logicamente analisadas. Mas exatamente com isso se perde o que converte
uma ficção em ficção: a configuração de uma articulação específica de frases63.
Porque a discussão analítica do estatuto lógico da ficção não leva em conta a
história do conceito de ficção, escapa-lhe que a verdade da ficção é a sua forma
e não o fato de serem sérios ou “não sérios” seus enunciados. Não se trata na
ficção do valor de verdade das frases ficcionais, mas sim de figuras apelativas
complexas e de atualizar o apelo que estas produzem. Que o imaginário e sua
forma sejam indissociáveis cria aquela compactude que a decomposição
analítica entre frases ficcionais e asserções, em princípio, suprime. Mas não
menos problemática é a pesquisa, com que o discurso ficcional ganharia uma
62 John Searle, “”The Logical status of fictional discourse”, in Searle, Expression and meaning. Studies in the theory of speech acts (Cambridge, 1979), pp. 58-75.63 Cf. Gottfried Gabriel, Fiktion und Wahrheit. Eine semantische Theorie der Literatur (Stuttgart e Bad Cannstat), 1975).
83
nova dignidade, segundo a qual cada discurso ficcional é subordinado a “outro
mundo” coerente em si 64. Pois a própria linguagem é o horizonte insuprimível de
“nosso mundo”, que põe em perspectiva todos os outros e possíveis mundos.
A lógica da ficção, ao se perguntar pelas frases ficcionais isoladas, que é uma
dimensão do fingere, perde de vista a formatividade. A formatividade, no entanto
retorna de maneira surpreendente em uma nova teoria da escrita da história.
Hayden White enriqueceu a teoria da historiografia com a tese provocante de
que ela não pode se cumprir sem a ficção. No Meta-history. The Historical
imagination in nineteenth-century Europe (1973), tomando como exemplo a
historiografia do século XIX, mostra que cada texto historiográfico está ligado a
posições fundamentais de apresentação, por ele descritas como root-metaphors,
expressão tomada de empréstimo de Stephen Pepper65. Sem que o saiba, White
aqui segue as reflexões fundamentais de Georg Simmel sobre a
indispensabilidade da “configuração histórica”66. A escrita da história é ficção,
não no sentido de informação enganosa, acriticamente modelada, mas sim no
outro sentido do fingere como configuração necessária, mais ou menos feliz e
objetiva, porém nunca inerente ao próprio objeto. Em muitos ensaios reunidos
por White sob o título de Tropics of discourse (1978), o autor aprofunda sua
concepção da “imaginação figurativa” como condição necessária de toda a
historiografia e acentua a conexão interna entre o romance histórico e a escrita
da história: “Vistas puramente como artefatos verbais, as obras de história e os
romances são indistinguíveis”67. Se a postulação é equívoca, contém contudo a
64 Cf. Nelson Goodman, Ways of worldmaking (Hassocks, 1978); Stierle, “Die Fiktion als Vorstellung, als Werk and als Schema – eine Problemskizze”, in Henrich/Iser, op. cit., pp.173-182.65 Cf. Stephen Pepper, World hypotheses. A study in evidence (Berkeley/LosAngeles, 1966).66 Georg Simmel, “Die historische Formung”, in Simmel, Fragmente und Aufsätze aus dem Nachlaß und Veröffentlichungen der letzten Jahre (Munique, 1923), pp. 147-209; cf. Simmel, “Das Problem der historischen Zeit” (1916), in Simmel, Brücke und Tür, M. Landmann/M. Susman (eds.)Stuttgart, 1957), pp. 43-58; Stierle, “Erfahrung und narrative Form. Bemerkungen zu ihrem Zusammenhang in Fiktion und Historiographie”, in J. Kocka/T. Nipperley (eds.), Theorie und Erzählung in der Geschichte (Munique, 1979).67 Hayden White, “The Fictions of factual representation”, republ. In Tropics of discourse. Essays in cultural criticism, (Baltimore/Londres), p. 122 (N. do Tr.).
84
questão extra de que, do ponto de vista da imperecibilidade da “configuração
histórica”, o romance histórico e a escrita da história estão estruturalmente sob
condições comparáveis.
As mais avançadas teoria da ficção permanecem relacionadas à
complementariedade de significação do latim fingere e as concretizações
históricas fomentadas desde suas origens romanas.
Tradução de Luiz Costa Lima
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“Die Fiktion”apareceu originalmente, em 2001, no segundo volume (pp. 380-428), do dicionário enciclopédico Ästhetische Grundbegriffe (2000-2005), publicado sob a direção do doutor Karkheinz Barck, pela J. B. Metzler Verlag, Stuttgart-Weimar, e compreendendo sete tomos.
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