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A Ficção Karlheinz Stierle Introdução Poiesis e fictio são os conceitos estéticos fundamentais, originários do pensamento grego e romano. Sua valia, na literatura pertencente ao círculo cultural europeu, até hoje permanece inalterável. Que é ficção? Ao fazer do fictício uma categoria básica da compreensão antropológica do homem, a resposta decisiva foi oferecida por Wolfgang Iser, em Das Fiktive und das Imaginäre . Perspektiven literarischer Anthropologie (1991). Contudo, enquanto no entendimento tradicional o fictício era tomado como conceito contrário ao real e a ficção como contrária à realidade, Iser vê o fictício como parceiro do imaginário e a ambos compreende como momentos de transgressão do real. Em Iser, a tríade realidade – fictício – imaginário enuncia que o fictício se torna um conceito de relação entre a realidade e o imaginário. Ao passo que o imaginário - comparável à representação do Ser do existente (Seiend ) em Heidegger - é conceituável apenas em si mesmo e não dispõe dc um fundamento compreensível, de que derivam as concretizações imaginárias, o fictício é uma instância da transformação que dá ao imaginário sua determinação e, deste modo, ao mesmo tempo conduz ao real. O fictício concretiza-se no ato de fingir, que, simultaneamente, provoca a “irrealização do real e a realização (Realwerden ) do imaginário” (Iser, W.: 1991, 1 23 [15]. Mas o próprio ato de fingir resulta das múltiplas atividades de seleção, combinação, relacionamento e “desnudamento”. Se, na teoria tradicional da ficção, o fictício e o imaginário se entrelaçavam, no 1 Wolfgang Iser, Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropolgie (Frankfurt a. M., 1991). [ O número entre colchetes refere-se à paginação da trad. em português: O Fictício e o imaginário . Perspectivas de uma antropologia literária , trad. de Johannes Kretschmer, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996 (N. do Trd.]. 1

Stierle a Ficção

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Stierle, "A ficção"

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A Ficção

Karlheinz Stierle

Introdução

Poiesis e fictio são os conceitos estéticos fundamentais, originários do

pensamento grego e romano. Sua valia, na literatura pertencente ao círculo

cultural europeu, até hoje permanece inalterável.

Que é ficção? Ao fazer do fictício uma categoria básica da compreensão

antropológica do homem, a resposta decisiva foi oferecida por Wolfgang Iser, em

Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropologie (1991).

Contudo, enquanto no entendimento tradicional o fictício era tomado como

conceito contrário ao real e a ficção como contrária à realidade, Iser vê o fictício

como parceiro do imaginário e a ambos compreende como momentos de

transgressão do real. Em Iser, a tríade realidade – fictício – imaginário enuncia

que o fictício se torna um conceito de relação entre a realidade e o imaginário.

Ao passo que o imaginário - comparável à representação do Ser do existente

(Seiend) em Heidegger - é conceituável apenas em si mesmo e não dispõe dc

um fundamento compreensível, de que derivam as concretizações imaginárias, o

fictício é uma instância da transformação que dá ao imaginário sua

determinação e, deste modo, ao mesmo tempo conduz ao real. O fictício

concretiza-se no ato de fingir, que, simultaneamente, provoca a “irrealização do

real e a realização (Realwerden) do imaginário” (Iser, W.: 1991,1 23 [15]. Mas o

próprio ato de fingir resulta das múltiplas atividades de seleção, combinação,

relacionamento e “desnudamento”.

Se, na teoria tradicional da ficção, o fictício e o imaginário se entrelaçavam, no 1 Wolfgang Iser, Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropolgie (Frankfurt a. M., 1991). [ O número entre colchetes refere-se à paginação da trad. em português: O Fictício e o imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária, trad. de Johannes Kretschmer, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996 (N. do Trd.].

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modelo triádico de Iser eles se separam. O fictício organiza-se como texto, mas

nele permanece o lugar por princípio aberto do imaginário que o próprio fictício

nunca consegue fechar. “Na abertura indicada, manifesta-se, pela configuração

verbal do texto, a presença do imaginário” (idem, 51 [33]). A reflexão de Iser

sobre o imaginário procura escapar daquela concretização. O imaginário corre

então o risco de se comparar à “faca sem lâmina” de Lichtenberg, a que “falta o

cabo2. Pois se pode pensar um imaginário subtraído de sua figuração

imaginativa? Já o estupendo chiste de Lichtenberg indica que também o

imaginário, para que se mostre como tal, exige o ato de realização. Para se

tornar experimentável, também o nada precisa de figuração. Mesmo que seja

inconstestável o que assim se ganha em compreensão, torna-se aqui visível o

preço a pagar pela dissociação entre fictício e imaginário Haver uma parceria

entre o imaginário experimentado passivamente, em que submerge a

consciência, e uma ficção ativa, em que o imaginário sofre sua metamorfose, é

uma intuição essencialmente estrutural de um fato antropológico central. No

entanto não se há de antemão recusar que ao imaginário basicamente pertence

sua figuração. “Porquanto a própria aparência é essencial à essência, a verdade

não seria caso não aparecesse e não se revelasse”3 Este axioma da Estética

hegeliana é também válido para o imaginário. Isso queria dizer que o imaginário

só se atualizava no fictício. O fictício não seria uma disposição simbólica, em

que fendas e rupturas apresentariam o imaginário como o outro da ficção, senão

que o fictício e o imaginário não se deixariam dissociar. O fictício se eleva no

imaginário, o imaginário, no fictício. Isso também significa que o imaginário em

vias de atualização é sempre conceitualmente mediado. Nem o fictício se

adianta ao imaginário, nem tampouco o imaginário ao fictício. Originariamente,

ele correm paralelos e são aspectos de uma unidade que se mostra como o

além da oposição. Se isso é correto, então o imaginário alcança sua mais alta

forma e, ao mesmo tempo, sua determinação suprema ao se transformar em

fictício e, em correspondência, se põe sob as condições de uma redução medial.

2 Georg Christoph Lichtenberg, “Verzeichnis einer Sammlung von Gerätschaften (…)”, in Lichtenberg, vol. 3 (Munique, 1972), p. 452.3 Hegel, Ästh, p. 55

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Só na obra o fictício alcança sua concentração mais alta e sua expressividade,

mas deste modo também a aspiração do imaginário encontra sua via e sua

evidência.

Sem dúvida, a história do conceito não pode substituir o esclarecimento

conceitual sistemático e problemas sistemáticos - a exemplo da questão de se o

imaginário é pensável sem determinação - não podem chegar a respostas

definitivas só mediante a indagação histórica. A história do conceito pode,

entretanto, reconstruir historicamente a complexidade dos significados múltiplos

de um conceito e, assim, tornar claro o contexto do problema crescente. Apenas

vislumbramos o que “é” a ficção quando nos damos conta do trabalho sobre o

conceito de fingere. Neste sentido, a história seguinte de fingere, de suas

derivações e atualizações na história da ficção, deve perspectivizar um problema

atual: a questão das relações entre o fictício e o imaginário. Neste caso, mostrar-

se-á que, no conceito da própria ficção, sempre e já se declara o momento do

imaginário.

I. A inocência da ficção

A palavra latina fictio é por vários aspectos semelhante à grega poiesis e, ao

mesmo tempo, dela fundamentalmente distinta. Poiesis significa a produção de

um criador, seja a produção do Criador originário, seja a feita segundo

protótipos. Em Aristóteles, a poiesis só é poiesis estética quando está a serviço

da mímesis, da imitação. A poesia é imitação, mas a própria imitação, do ponto

de vista do que se imita, é algo completamente original. O prazer estético, tanto

do que faz quanto do que recebe, é gerado não pela própria criação mas sim por

sua imitação. Para Aristóteles, uma poesia sem imitação é impensável. Nesta

medida, em suma, o poeta é apenas poeta enquanto se põe sob a lei estética da

produção que imita. Assim o amplo campo da poiesis se estreita pela faculdade

da mímesis como a faculdade de imitação particularmente de homens em

ação4 .4 Cf. Asda Babette Neschke, “ ‘Poiesis’ et ‘mimesis’ dans la Poétique d’Aristote”, in Poetica, 29 (1997), pp., 325-342.

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O que, em grego, se separa como poiesis e mímesis, se reune no conceito

latino de fingere e fictio. Mas fictio não é bem uma síntese de poiesis e mímesis

mas antes uma designação, que tanto pode corresponder, em um sentido

amplo, a poiesis, como, em um sentido estreito, a mímesis, sendo, por fim, uma

superposição de ambos os sentidos, de modo que, a cada momento, um deles

pode-se se atualizar no horizonte do outro. A correspondência grega a fictio não

seria nem poiesis, nem mímesis mas sim plasma. Enquanto tal, ela é usada nos

textos da Antigüidade tardia e bizantinos para a descrição do gênero do

romance5.

Para a história do conceito de fingere e suas derivações o locus classicus é a

obra de Ovídio, especialmente suas Metamoforses, onde não só se encontram

as expressões fingere, fictio, fictus, figura em vários sentidos, mas onde também

sua polivalência se reflete em equivalentes ficcionais6 Nas Metamorfoses, o

contínuo da significação de fingere é poeticamente descrito. Para a formação da

consciência da ficção na literatura moderna, nenhuma outra obra tornou-se tão

importante como as Metamorfoses, que, são em si mesmas como a ficção das

ficções. As cenas originárias da ficção, que até hoje determinam o conceito que

se torna global de ficção, são encenadas pela primeira vez no teatro das

Metamorfoses. Nessa obra, de cujo renome imortal o próprio Ovídio estava

convencido, o autor reúne os gestos mais elementares aos mais complexos do

fingere e os articula a uma ficção estética geral, que representa um equivalente

imaginário do conceito de ficção.

O livro primeiro das Metamorfoses começa com o gesto original do fingere, a

criação do mundo já formado a partir da ausência de forma originária. O criador

do mundo, “Ille opifex rerum, mundi melioris origo” (“Ele, mestre das coisas,

criador do mundo melhor” (Ovídio, Met., I, 79), não cria do nada senão que dá

5 Cf. Bernd Zimmermann, “Liebe und poetische Reflexion. Der Hirtenroman des Longos, in Prometheus. Rivista quadrimestriale di studi classici, 20 (1994), p. 193; Heinz Schlaffer, Poesie und Wissen 9Frankfurt a. M., 1990).6 Em posição contraria, Wolfgang Rösler, “Die Entdeckung der Fiktionalität in der Antike”, in Poetica, 12 (1980), pp. 283-319; Hans Robert Jauss, “Zur historischen Genese der Scheidung von Fiktion und Realität”, in D. Henrich/ W. Iser (eds.), Funktionen des Fiktives (Munique, 1983), pp. 423-431.

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forma ao caos. Ao passo que ao fim de uma longa história do conceito de ficção,

a formulação de Iser estabelece uma ficção que ajuda ao imaginário aberto e

informe, no começo a ficção se mostra como um ato formativo. Só, entretanto, a

criação dos homens é a plenitude da criação. É ela, como o mito relata, a obra

de Prometeu, o filho do Titã Japetus, que mescla o sémen dos deuses com a

água e dela cria o homem, segundo a imagem divina: “Quam satis Iapeto

pluvialibus undis / Finxit in effigiem moderantum cuncta deorum” (“O filho de

Iapetus, misturando a terra com as águas das chuvas / Modelou à imagem dos

deuses, que presidem todas as coisas” (I, 82-3). Fingere aqui significa uma

criação, que, não obstante, pressupõe uma imagem. A terra, ainda quando

informe, converte-se em lugar de formas até agora nela desconhecidas: “Sic,

modo quae fuerat rudis et sine imagine, tellus / Induit ignotas hominum conversa

figuras” (“É assim que a terra, outrora rude e informe, / Se modelou em figuras

novas de seres humanos”) I, 87-8). Também figura, forma ou configuração, é

uma derivação do fingere originário. Semelhantes ao divino são os novos seres

antes de tudo porque seu criador conferiu-lhes o porte vertical, que lhes permite

mirar o céu e erguer o rosto às estrelas: “Os homine sublime dedit, aelumque

tueri / Jussit et erectos ad sidera tollere vultus” (“Deu aos homens um rosto

voltado para o céu, de que propôs a contemplação / convidando-a a dirigir aos

astros seu olhar a eles levantado” (85-6). A terra é uma “ficção” do deus que se

ocupa de um mundo melhor; o homem é uma ficção do semideus Prometeu.

Ficção tem aqui precisamente o uso verbal moderno, contraposto ao que se

extrai de dentro da realidade. Ao mito da origem responde o mito do artista de

Pigmalião, que da pedra esculpe a forma pela qual se incendiara em paixão

desenfreada, conseguindo, por mercê de Vênus, que a estátua se

metamorfoseasse na Galatéia viva. O primeiro ato do fingere é dar forma ao

informe, converter o barro em figura. Esta contudo não deve ser mimética.

Chama-se assim fictile o recipiente extraído do barro, cujo espaço vazio é

adequado para recolher o líquido. “Hans Adam war ein Erdenklos” (“Hans Adam

era um mortal”), diz Goethe no West-östlichen Divans, exatamente neste sentido

(“Erschaffen und Beleben”) e, no “Lied und Gebilde”, mistura a poiesis grega, o

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fingere latino e uma idéia persa-oriental do fluxo livre em uma unidade paradoxal

e poética: “Schöpft des Dichters reine Hand / Wasser wird sich ballen” (“Cria a

pura mão do poeta / A água será plasmada”).

Um segundo grau de ficção sucede quando a forma tridimensional, que pode

ser uma pura formação do informe mas também uma fantasia, um simulacro, se

desfaz da trdimensionalidade na bidimensionalidade da imagem projetada na

superfície. Narciso, que se autodescobre na água, não se defronta, como

Pigmalião, com uma forma tridimensional criada de si mesmo, mas se

experimenta na superfície líquida como uma estranha imagem vinda à vida, cujo

movimento bidimensional nele produz a dupla ilusão da forma real e da forma

real de um outro. A fictio é aqui uma alucinação involuntária, cuja medialidade é

refletida pelo narrador, pelo herói perceptível mas que permanece

desapercebido: “[(…) Corpus putat esse, quod umbra est” (“ (…) Julga ser corpo

o que é sombra”) (III, 417)]. O conceito central, poeticamente realizado da fictio,

aqui permanece esvaziado e, no entanto, seu campo semântico é ocupado por

expressões como “visae correptus imagine formae” (“seduzido pela imagem da

forma contemplada”) (III, 416), “formatum marmore signum” (“estátua feita de

mármore”) (III, 419), “simulacra” (III, 432) e “Spectat inexpleto mendacem lumine

formam” (“Contempla insaciável a mentirosa imagem”) (III, 439). O meio

bidimensional e agitado da superfície líquida produz o movimento ilusório da

forma como eco do voltar-se de Narciso para si mesmo. Mas Narciso possui a si

apenas como eco visual; esta é a pena que pagava por recusar a ninfa Eco, que,

de todo modo, só no eco podia possuir seu amado.

O simulacro da imagem especular produz em Narciso o engano involuntário.

São também simulacro involuntários os sonhos do que dorme, a ele

administrado pelo filho do deus do sono, Morfeu. Também Morfeu é um artista

que sabe criar formas a partir do sono informe: “artificem simulatoremque

figurae” (“artífice e simulador de figuras”) (XI, 634). Assim Juno pede a Somnus

que envie a Alcione um sono que, na alma da adormecida, crie a ilusão de seu

esposo afogado: “Alcyonen adeant simulacraque naufraga fingant” [“

Aproximem-se de Alcione e simulem (os traços do rei) sob o aspecto de um

6

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náufrago”] (XI, 628). Mas, como um simul (simultâneo), uma duplicação

enganosa, o simulacrum pode querer conscientemente se pôr seja em lugar de

um verdadeiro original, seja de um apenas fictício. A força do fingere, como de

uma faculdade de configuração do informe, pode-se pôr conscientemente a

serviço do engano. O simulacrum se põe em lugar de seu outro reduplicado.

Assim Circe, a feiticeira, para se vingar de Picus que a desprezava, cria a

imagem de um javali, que atrai Picus a uma emboscada: “Dixit, et effigiem, nullo

cum corpore, falsi /Finxit apri, praeterque oculos transcurrere regis / Jussit”

(“Disse e modelou uma aparência de javali irreal e sem corpo, e fê-lo atravessar

o caminho diante do rei” (XIV, 358-60). Há também ficção arbitrária quando,

inflamado pela beleza de Filomela, Tereus a imagina em seu quarto e a converte

em objeto imaginário de sua concupiscência: “At rex Odrysius, quamvis secessit,

in illa / Aestuat; et repetens faciem motusque manusque / Qualia vult fingit quae

nondum vidit, et ignes / Ipse suos nutrit (…)” (“Mas o rei dos Odrísios, apesar de

sua separação, arde com o desejo que Filomela lhe inspira; lembrando-se de

seu rosto, de seus gestos, de suas mãos, representa-se, à vontade de sua

imaginação, tudo que dela ainda não vira e se nutre de sua própria chama (…)”

(VI, 490-3).

No começo do Livro II, louva o poeta o palácio do deus Sol, cujas portas de

prata, como o escudo de Aquiles em Homero, são adornadas por Hefaisto com

uma representação do globo terrestre, em baixo relevo: “Materiam superabat

opus” (“A obra superava a matéria”) (II, 5). A arte transcende a matéria e se põe

por assim dizer de modo absoluto. Pigmalião personifica o lado oposto; sua

plena arte se dissipa através de si mesmo e assim cria o pleno simulacro:

“Sculpsit ebur, formanque dedit, qua femina nasci / Nulla potest; operisque sui

concepit amorem. / Virginis est verae facies, quam vivere credas /Et, si non

obstet reverentia, velle moveri: / Ars ardeo latet arte sua. (…)” (“Esculpiu no

mármore com a alvura da neve um corpo que uma mulher / Não pode ter na

natureza; e concebeu amor por sua obra. / Tinha a aparência de uma verdadeira

virgem, que se podia crer viva / E, se o pudor não o impedisse, desejosa de se

mover: / Tanto a arte se dissimula graças à sua arte (…)” (X, 248-252).

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Como obra de arte, a fictio pode muito bem remeter a si mesma; como engano,

não menos se esconder. O duplo sentido da palavra, em sua disposição

significativa, permite a oscilação entre os dois. Isso se torna particularmente

evidente quando o meio da ficção é a linguagem. A linguagem é meio tanto da

arte quanto do engano, assim como, sobre o engano, da arte enaltecedora e, no

entanto, que não apaga o engano. “Ficta loquor” (1, 771) significa que o falante

põe conscientemente a linguagem a serviço do engano. “Quis se Caesaribus

notus non fingit amicum” [“Quem é conhecido de César, não finge ser seu

amigo” (Ovídio, Epistulae ex Ponte, I, 7, 21)], diz o poeta, cheio de amargura.

Mas o discurso enganoso pode ser ao mesmo tempo um belo discurso ou, por

meio de sua beleza, dispor as coisas sob uma luz enganosa. O grande exemplo

disso é o discurso de Ulisses na disputa com Ajax sobre o arco de Aquiles.

Enquanto o guerreiro Ajax pode circular apenas com a arma, Ulisses emprega

contra ele a arma da palavra afiada: “Necque abest facundis gratia dictis” [“E

compreendeu servir-se de suas astutas palavras”) (Met., XIII, 127)]. O engenho

da força da palavra vence a força apenas física. A Ulisses é adjudicada a arma

de Aquiles, Ajax precipita-se exasperado sobre sua espada e, assim, termina

sua própria vida. A fictio, lúdica, consciente, extraverbal e verbal, é, por fim, a

Ars amatoria, por assim dizer uma ars fictionis, na qual o amor se converte na

suprema obra de arte da vida.

Um passo adiante e, no meio tão-só da linguagem, está a ficção autotélica. Ela

é, ao mesmo tempo, a máxima intensificação do imaginário, na medida que o

imaginário, para atingir sua maior descarga, precisa sobretudo de configuração

artística. Mas o uso metalingüístico de fictio e seus derivados não ocorre nas

Metamorfoses. Uma exceção rara se dá em passagem das Tristia em que o

banido Ovídio justifica suas obras, no sentido próprio, como ficções, das quais

não permitia se tirassem conclusões sobre sua própria moral: “Crede mihi,

distant mores a carmini nostri / Vita verecunda est, Musa iocosa mea /

magnaque pars mendax operum est et ficta meorum / plus sibi permisit

compositore suo” (“Creia-me, minha conduta de vida nada tem a ver com minha

poesia: minha vida é honesta, minha musa, solta; grande parte de minha obra é

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inventada e fantasiada e mais permissiva que o autor”).

Embora Ovídio não descreva suas Metamorfoses propriamente como ficções,

seu uso maciço de fingere permite ver sob essa luz o conjunto de sua obra. O

texto é por assim dizer o metatexto do metatexto, nele se reflete a consciência

de um procedimento. Ovídio é o primeiro que permite que suas ficções se

esclareçam a partir de si próprias. Porque nas metamorfoses descritas sempre

se mostra a tensão entre fingere como forma e fingere como um prelúdio

enganador, sendo esta tensão propriamente constitutiva das Metamorfoses. Seu

recontar de mitos lhes dá a máxima plasticidade no sentido de destreza

intelectual, assim como no de maximização do imaginário. O fato de Ovídio

manter com sua própria obra uma relação consciente e reflexiva espelha-se nos

inúmeros mitos de artistas, em que sempre se exprime e por todos os meios a

faculdade produtiva do fingere. Todas as artes são pensadas com mitos

metamórficos próprios: as artes plásticas, a partir do barro e do mármore, a

imagem fugaz (e enganosa), a poesia, o canto, a arte de tecer. É assim que nas

Metamorfoses de Ovídio expõe-se poeticamente pela primeira uma articulação,

um “sistema” das belas artes. A metamorfose, a mudança de forma em forma é

propriamente a forma intuitiva ficcional de Ovídio. Por ela, o mito ao mesmo

tempo é transportado para a ficção. O protótipo do fingere é o deus criador, que

do caos configura as coisas. A ele responde Prometeu, o criador de homens,

que do barro modela a primeira forma humana, como um primeiro Pigmalião. O

deus do mar, Proteu, tem outra força configurativa, que transforma forma em

forma e de certo modo finge a si mesmo em infindas metamorfoses: “ (…) Sunt,

o fortissime, quorum / Forma semel mota est et in hoc renovamine mansit / Sunt,

quibis in plures ius est transire figuras / ut tibi, complexi terram maris incola,

Proteu” [“Há, oh mais corajoso dos homens, aqueles que foram transformados

uma vez e para os quais esta forma nova é definitiva; há aqueles que têm o

privilégio de passar por vários aspectos; é o caso para ti, habitante do mar que

abraça a terra, oh Proteu”( (Met., VIII, 728-731)].

O tema fundamental de Ovídio é a mudança de forma efetivada por força

divina: “In nova fert animus mutatas dicere formas / corpora” [“Formei o desígnio

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de contar as metamorfoses dos seres em formas novas” (Met., 1, 1)]. Antes de

tudo, essa mudança de forma é a passagem da forma viva para a sem vida, da

forma do que se move para o imóvel, da espécie única para a criatura de gênero

em processo. Mas a metamorfose não finda aqui, mas só se plenifica na ficção

do poeta, que dá à passagem de forma em forma sua configuração narrativa

transicional e sua plasticidade verbal. No ato de poetar, como ato próprio do

fingir, se conjugam em unidade mental todas as dimensões da criação estética:

a plástica, a imagem, a artesania, a música, a fala. A passagem de forma a

forma, transposta em fluxo narrativa, converte-se no movimento da fala, ao

mesmo tempo, em permanência. A duração da forma verbal responde à duração

correspondente à metamorfose, que ela, simultaneamente, supera, como

permanência do movimento. Se a camada narrativa da histoire se põe como

signo da ficção elementar, enquanto formatividade do barro informe, a camada

do discours, a realização verbal, se põe como signo do tecer e entretecer. A isso

responde a infeliz Aracne, a hábil tecelã, que ousa superar Palas em combate e

por cuja vingança é transformada em aranha, mas também Filomela, que,

violentada por Tereu, é por ele despojada da língua e, muda, tece o crime numa

tela. Também o poeta é um artista do tecer e entretecer porque, engenhoso,

conjuga as histórias metamórficas em um único e amplo tapete de

metamorfoses, o tapete das ficções. Com a alegoria por Ovídio da escrita como

tecelagem, começa uma história metafórica, que ganhará, particularmente na

história do romance moderno, uma eminente função autoreferencial7.

Acabada a obra, Ovídio evoca o triunfo de suas ficções: “Iamque opus exegi,

quod nec Iovis ira nec ignis / nec poterit ferrum nec edax abolere vetustas” (“E

agora acabei uma obra que nem a cólera de Júpiter, nem o fogo / nem o ferro,

nem o dente do tempo poderá abolir”) (Met., 871-2). Também nos Amores opera

a última palavra, em que se sintetiza a altiva esperança do poeta no exílio. Ao

Deus inominado, que criava a forma do informe, como se apresenta na entrada

do Livro I, responde por fim o poeta como novo criador, cuja bela e harmônica

7 Karkheinz Stierle, “ Die Verwilderung des Romans als Ursprung seiner Möglichkeit”, in H. U. Gumbrecht,(ed.). Literatur in der Gesellschaft des Spätmittelalters (Heidelberg, 1980), pp. 253-313.

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obra em si oculta um novo cosmo de imagens e ficções. A capacidade

operadora do imaginário, que o poeta, por sua fala, libera, lhe é essencial; é esta

a única condição para que o imaginário possa reinvidicar a permanência. A obra

é uma metamorfose de seu material; ela converte em invisível a matéria em que

se realiza, mas, na força de sua evocação, se faz a si mesma também invisível;

no entanto, ambas são a condição para que o imaginário possa se manifestar

em sua forma mental. A ficção é ambas as coisas: a obra como produção da arte

e do imaginário, que só faculta a arte produzida a partir da obra, faz esquecer e,

no entanto, requer o retrospecto reflexivo sobre sua origem material.

Também em Horácio, quando usa a palavra, está sempre em jogo a dupla

natureza do fingere: criar uma obra e por meio da qual o imaginário é liberado.

Na Ars poetica, o protótipo da produção artística é a pedra-de-toque, sobre a

qual a ânfora atinje sua configuração. Redonda e em si fechada como o cântaro,

deve ser a obra de arte: “Denique sit quodvis, simplex duntaxat et unum” [“Em

suma, seja a obra como se queira, apenas há de ser fechada e una” (Ars poet.,

23)]. Para Horácio, a condição essencial para esse fechamento é a consistência

na realização do personagem e de seu discurso. Se o poeta se desvia da

matéria pré-dada, que então ouse fingir, no sentido próprio; assim a consistência

mas também a proximidade com a realidade da experiência são condições

essenciais: “Aut famam sequere, aut sibi convenientia finge” (Ou se segue a

tradição ou se criam caracteres coerentes consigo mesmos”) (Ars Poet., 119).

Assim como Aristóteles restringe o espaço de manobra da poiesis pelo princípio

da mímesis, assim também em Horácio a verossimilhança é uma condição

essencial do prazer estético: “Ficta voluptatis causa sint proxima veris:/ ne

quodcumque volet poscat sibi fabula credi”[“Não se distanciem da realidade as

ficções que visam ao prazer; não pretenda a fábula que se creia tudo quanto ela

invente”(Ars Poet., 338-9)]. Mas também em Horácio fingere significa igualmente

a realização concreta da textura poética. Sarcástico, opõe o respeito à arte das

armas e o esporte ao ocioso, que, incompetente, ousa exercitar-se no

artesanato poético: “Qui nescit versus, tamen audet fingere, quidni?” (“Quem

desconhece o verso, ousa contudo poetar. Por que não?” (Ars poet., 382). Em

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uma carta poética a Augusto, em que Horácio advoga o direito da poesia

contemporânea, mas também de novo censura os limites dos diletantes

poéticos, fala da utilidade do verdadeiro poeta para a comunidade. É neste

contexto que diz: “Os tenerum pueri balbumque poeta figurat, / torquet ab

obscaenis iam nunc sermonibus aurem, / mox etiam pectus praeceptis formart

amicis, / asperitatis et invidiae corrector et irae” [“A boca tenra e balbuciante do

jovem forma o poeta, guia seu ouvido, já agora distante do discurso indecente, já

forma seu espírito com prescrições fraternas, corrige o capricho, a inveja e a

cólera” (Epistulae 2, 1, 126-9)]. Ainda aqui, fingere descreve a conversão em

forma do informe. O poeta educa a boca não adestrada em dar uma forma à fala

e, assim, de certo modo modela a boca ainda informe. Mas o poeta consumado

ou se manifesta em sua maestria formal, ou quando a serviço de um público

rude, que busca no espetáculo apenas a sensação, sendo capaz de ativar a

imaginação do leitor ou do espectador e de transferi-lo de seu próprio mundo

para mundos estranhos: “Ille per extentum funem mihi posse videtur / ire poeta

meum qui pectus inaniter angit. / inritat, mulcet, falsis terroribus implet, / ut

magus, et modo me Thebis, modo ponit Athenis” [“Parece-me que aquele poeta

sabe andar sobre a corda tensa, que só ele, com sua fantasia, inquieta, alarma e

aplaca meu coração, que, como um mago, me preenche com sobressaltos

imaginados, que me lança ora rumo a Tebas, ora rumo a Atenas “(Epistulae, 2,

1, 210-3)].

Eis aqui o poeta, o artista mágico, que graças às suas ficções sabe acionar o

registro anímico de seu leitor, ouvinte ou espectador e, mediante sua arte, se

distancia de seu próprio mundo. Engano e formatividade entram em uma síntese

indissolúvel, em que a ficção, como estrutura de realização estética, sob as

condições de um meio, intensifica a matéria ficcional, como imaginário livre e

ligado.

Na Ode a Píndaro, Horácio compara o poeta grego de hinos, arrebatado pelo

entusiasmo, com a própria e modesta obra, fruto do trabalho paciente,

comparável ao mel que as abelhas produzem das flores aromáticas do tomilho:

“Ego apis Matinae / more modoque, / grata carpentis thyma per laborem /

12

Page 13: Stierle a Ficção

plurimum, circa nemus unidique / Tiburis ripas operosa parvos / carmina fingo”

[“Eu, à semelhança das abelhas matinais, / que, com infindo empenho, fazem a

colheita dos amados tomilhos, formo meu canto, uma discreta criatura, com

esforço, no bosque e às margens do Tibre dos mananciais” (Carmina, 4, 2, 27-

32)]. “Carmina fingo” não significa aqui que o poeta finge cantar, mas sim que dá

uma forma duradoura a seu canto. Contrapõem-se aos modestos poemas os

grandes cantos que Horácio quer cantar em louvor de César Augusto, quando

este retorne vitorioso. Mas o grande gesto poético é ironicamente retomado

quando o poeta pensa na vítima, a que, por essa razão, quer consagrar um

tenro bezerro, que se põe tão simpaticamente diante dos olhos que o gesto

triunfal é aniquilado. O canto “Maiore (…) plectro” [“com teu mais potente

instrumento” (4, 2, 33)] permanece uma promessa vazia.

À diferença de Ovídio e, de certa maneira, também de Horácio, Virgílio mantém

uma distância cética quanto ao valor próprio do fictício. Para Virgílio, a ficção

enganosa é a materialização do Ulisses criminoso, astuto e sem escrúpulos, a

que, na longa série de insultos que lhe dirige, também chama “fandi fictor Ulixes”

[“Ulisses dos discursos enganosos” (En., IX, 602)]. Na Eneida, fingere, fictio são

principalmente ocupados por representações negativas do engano, O valor

próprio do imaginário aqui desempenha um papel apenas subordinado, pois tudo

se apóia em que o cometimento épico, a fundação de Roma, venha a se

cumprir. E, no entanto, Virgílio é um mestre em emprestar ao informe, ao

numinoso, aos movimentos e forças psíquicas, assim como ao ausente

configuração poética e em concretizar o indeterminado em condensações

ficcionais. Assim Fama e as Fúrias, como formas, ganham expressão poética, as

sombras incorpóreas do Hades alcançam a figuração alegórica da conditio

humana, uma figuração fantasmagórica, assim Dido é capaz de ver o distante

Enéias diante de si, como se estivesse presente: “(…) Illum absens absentem

auditque videtque” [Está longe dele e ele, longe dela, e ela o escuta e o vê” (En.,

IV, 83)]. Há outra vez, no entanto, na Georgica, um fingere de maneira quase

elementar. Diz-se das abelhas que fazem o mel e da cera formam os alvéolos:

“Hinc arte recentis / excudunt ceras et mella tenacia fingunt” [“Também fazem a

13

Page 14: Stierle a Ficção

fresca e rica cera e formam o mel viscoso” (Georg., IV, 56-7)]. Enquanto as

abelhas jovens, em uma astuta divisão do trabalho, reunem mel e cera, é da

tarefa das velhas o cuidado com a colméia: “Grandaevis oppida curae / et

munire favos et daedala fingere tecta” [“Às velhas incumbe o cuidado com os

lares, os alvéolos e a construção de casas mais engenhosas” (Geórg., 4, 178-

9)]. Mas a isso se opõe um outro fingere poético quando Virgílio, a seguir, para

explicar Proteu, o deus da ficção da mutação das formas, “formas se vertet in

omnis” [“transmuta-se em todas as formas”(4, 411], o feiticeiro das abelhas, que

deve reparar uma colméia aniquilada por doença, conta a história de Orfeu, que,

pelo poder de seu canto, liberta Eurídice do inferno e, por seu descuido, de novo

a perde.

Cícero parece haver sido o primeiro a conjugar estreitamente pictor e fictor, com

o que se torna expressiva a diminuição imaginária. Em Cícero, assim como em

Varro, fictor, no sentido estrito, se mostra como construtor de vítimas, que, ao

contrário dos animais reais, eram usadas; do mesmo modo, Servius comenta o

verso 634, do livro VIII da Eneida: “Fictores dicuntur qui imagines vel signa ex

aere vel cera faciunt” [“São chamados fictores aqueles que traçam imagens ou

signos sobre o bronze ou a cera”8. Em De natura deorum, Cícero volta-se contra

a idolatria que identifica a imagem bi ou tridimensional da divindade com ela

própria e, em seu lugar, está consciente da mera função de suplemento da

imagem: “Deos ea facie novimus, qua pictores fictoresque voluerunt”

[“Conhecemos (…) as divindades restantes pela aparência que pintores e

escultores querem lhes dar”(Nat: I, 81)]. Pictor e fictor aqui se opõem, em um

parentesco textualmente sublinhado, ao pintor e ao escultor. Na tradição dos

tempos modernos, ao contrário, pictor e factor se tornam cada vez mais

equivalentes e, assim, por fim, também o pintor exige para seu sujeito ter atuado

como factor. Em Cícero, é inimaginável um deus de carne e sangue. Cícero

podia compreender a semelhança entre um corpo a ser imitado e sua imitação,

mas não a semelhança entre corpos terrenos e o “corpo de um deus”: “Hoc

intelligerem quale esset si in ceris fingeretur aut fictibilibus figuris; in deo quid sit 8 Servius, (Comentário de Virgílio à Eneida, 8, 6340, G. Thilo/ H. Hagen (eds.), vol. 2 (Leipzig, 1881).

14

Page 15: Stierle a Ficção

quasi corpus aut quid sit quasi sanguis inteliggere usu possum” [“Poderia captar

o que se entende quando se fala em figuras de cera ou de barro. Mas vai além

de minha compreensão o que se entende por um modo de corpo ou de sangue

de um deus” (Cícero: De natura deorum, 1, 71)].

De antemão, o campo semântico de fingere, fictio, factor, figmentum, figura é

articulado à representação de um ser consciente que planeja e constrói. Nisso,

diferencia-se essencialmente do campo semântico da fantasia, relacionado

sobretudo à faculdade subjetiva do criador de imagens. A representação

construtiva de fingere, relacionada à realização e ao esmero, exprime-se na

retórica romana, como é ela compendiada por Quintiliano. Na Institutio de

Quintiliano, que, em primeiro lugar, tinha em vista uma retórica forense, mas

também incluía o discurso político e as belas-letras, fictio é discutida, por assim

dizer com ingenuidade prática, como um modo particular de uso do discurso.

Fictio e figura convertem-se em conceitos centrais de sua retórica. A narratio ou

narrandi ratio dos advogados deve ter um alvo: a persuasão do juiz. Todos os

procedimentos e ardis subordinam-se a essa meta. Quintiliano mostra-se

particularmente insensível ao escrúpulo moral no caso da exposição do

acontecimento a ser julgado: tanto a exposição não mais corresponde aos fatos,

quanto mais hão de ser empregados os procedimentos retóricos para que se

alcance a impressão de verdade. Pela consistência de sua exposição, o

mentiroso deve assegurar sua verossimilhança, sua discreta sedução estética.

As “falsae expositiones”, entre as quais simples mentiras são expostas ante o

tribunal, se dividem em dois grupos. Há o falso testemunho de outros e, no

sentido estrito, o próprio informe do acusado ou de seu defensor. Na mentira, a

primeira condição é que se observe a verossimilhança: “Sed utrumcumque erit,

prima sit curarum, ut id, quod fingemus, fieri posit (…)”[“Seja como for, a primeira

de nossas preocupações deve ser imaginar uma narração verossímil” (De

Institutione oratoria, IV, II, 89)]. A isso visa a consistência interna da exposição.

É também de ajuda ligar a ficção com circunstâncias incontestavelmente

verdadeiras, devendo antes de tudo a simulação de fatos falsos não ter

contradições. O que minimamente significa que o mentiroso não há de esquecer

15

Page 16: Stierle a Ficção

os detalhes de sua mentira: “Utrobique autem orator meminisse debebit actione

tota, quid finxerit, quoniam solent excidere quae falsa sunt; verumque est illud,

quod vulgo dicitur, mendacem memorem esse oportere” [“Aí, ademais, como no

foro, o orador deve, em todo seu discurso, lembrar-se do que imaginou, pois é

comum que nos esqueçamos do que é falso e nada há de mais exato que

quando se diz que o mentiroso deve ter uma boa memória” (De Institutione, IV,

II, 91)]. Depende do relato retórico que ao que se declara se acrescente eficácia

e força de convencimento. Um argumento crucial em favor da utilidade da

retórica nos tribunais está em que o êxito aí depende tanto da eloqüência,

quanto do conteúdo da exposição. Quem mente precisa, apesar da carência de

fundamentos, triunfar na eloqüência. Mas, pela mesma razão, também o que diz

a verdade diante de um tribunal há de dominar a arte do discurso: “Quare non

minus laborandum est ut iudex quae verer dicimus quam quae fingimus credat”

[Pois é preciso trabalhar-se tanto em fazer com que o juiz creia no verdadeiro

que dissemos quanto no que inventamos” (De Institutione, IV, II, 34)]. Em uma

sociedade em que o discurso retórico se converteu em norma, quem diz a

verdade, para ser acreditado, deve discursar como se quisesse mentir. A

verdade deve ser não só verossímil, mas se conformar às regras da arte para

que possa ser eficaz. Na fronteira entre verdade e mentira, para a intensificação

do efeito, se dispõem, para ser introduzidas, de circunstâncias ou pessoas

fictícias (cf. De Institutione, IV, II, 19). A ficção encontra outro uso na instrução

dos jovens mestres de retórica quando devem se encarregar de papéis em

situações verbais fictícias. Quintiliano chama a atenção para o fato de que isso

já era usual entre os gregos (cf. De Institutione, II, IV, 41). Mas também a escrita

da história serve-se da licença poética e, para intensificação do efeito, suas

exposições se adornam ficticiamente (cf. De Institutione, II, IV, 19). Do mesmo

modo Virgílio e outros tinham louvado qualidades abstratas como a glória, a

voluptuosidade e a virtude: “Sed formas quoque fingimus saepe, ut Famam

Vergilius, ut Voluptatem ac Virtutem (quemadmodum a Xenophonte traditur)

Prodicus, ut Mortem ac Vitam, quas contendentes in satura tradit Ennius” [Mas

também personificamos abstrações, Virgílio, a fama, Prodicus, em relação a

16

Page 17: Stierle a Ficção

Xenofonte, a voluptuosidade e a virtude, Ênio, a morte e a vida, de cuja luta trata

em uma sátira (De Institutione, IX, II, 36)]. O pôr-em-forma e a concretização

imaginária são aqui indissoluvelmente associados. Um caso singular desta viva

representação imaginária é a prosopopéia como diálogo interno fictício, que

introduz o leitor ou o ouvinte na dramaturgia de um processo de decisão.

Às formas do fingir no discurso prático também pertencem as figuras da

linguagem, sejam as figuras do discurso, no sentido estrito, ou as figuras do

pensamento. Figura é uma derivação de fingere, que acentua o momento de

pôr-em-forma, por força de que as figuras da linguagem sempre põem em jogo

um momento do imaginário, que remete à sua origem verbal. Enquanto tais, as

figuras são verossímeis. Quintiliano diferencia entre tropos e figuras e, nestas,

figuras do pensamento e figuras da linguagem. Essas diferenças não são

sempre rigorosas, particularmente a diferença entre tropos e figuras parece

bastante contraditória. No campo da fictio verbal, entram por fim não só as

figuras destacadas do discurso mas, em um plano mais elementar, os modos de

proceder como o uso do plural em vez do singular, o próprio neologismo, que,

como estes, apontam para um ato volitivo da fala.

A Institutio oratoria de Quintiliano mostra de modo impressionante a

consciência estratégica com que se afirmava o adestramento retórico, no espaço

público, do uso da linguagem. Verificam-se assim afinidades surpreendentes

entre os mundos do sentido da poesia e do direito. Para Quintiliano, estas se

assinalam particularmente na arte da descrição e da persuasão, mas também na

aprendizagem do discurso forense, realizada por exemplos fictícios. O que

Quintiliano não reflete é outro momento da ficção no direito romano: que a

própria codificação legislativa necessita, para sua argumentação, da ficção do

direito. A ficção do direito, que já é corrente no direito romano9, receberá, no

direito dos tempos modernos, uma função significativa.

II. A Ficção no banco dos réus

9 Cf. Manfred Fuhrmann, “Die Fiktion im römischen Recht”, in Henrich/Iser (nota 5), pp. 413-415.

17

Page 18: Stierle a Ficção

Na história do conceito de ficção, o surgimento do cristianismo implica uma

mudança paradigmática de significação imprevisível. A rigorosa exigência da

verdade que, na história, fixada nos evangelhos, da humanização do filho de

Deus, Cristo, até sua crucificação e ressurreição, estabelece a diferença entre

verdade e ficção de uma maneira muito mais virulenta do que antes. Para a

concepção do fictício, isso teve um significado decisivo. Em face do novo

postulado de verdade e seriedade, a ficção perde a sua inocência e é posta no

banco dos réus. Só na escrita da história ela mantém seu direito por sua função

retórica. Em seu lugar, entra a alegoria, em que a própria ficção se torna em

momento da verdade, a alegorese que revela a verdade do texto ficcional e, não

por ultimo, como desenvolvimento ulterior da teoria das figuras retóricas, o

conceito hermenêutico de figura, como estrutura temporal do ocultamento e

desvendamento, tornando-se um instrumento particular na consonância entre o

Velho e o Novo Testamento10.

Um dos primeiros embates cristãos com as “ficções” da religião e da poesia

pagãs aparece nas Divinae Institutiones de Lactâncio, dirigidas a um público

pagão erudito. Em vez de estabelecer um fosso entre a verdade (cristã) e a

ficção (pagã), Lactâncio procura trazer à prova que as ficções do poeta são

comparáveis a uma camada colorida que encobre uma verdade ou uma suspeita

de verdade: “Nesciunt enim qui sit poeticae licentiae modus, quousque progredi

fingendo liceat, cum officium poetae in eo sit, ut ea quae uere gesta sunt in alias

species obliquis figurationibus cum decore aliquo conuersa traducat” [ “(Os

homens), em geral, não sabem onde está a peculiaridade da licença poética e

até onde é concedido que vá a descrição; a tarefa do poeta é traduzir, com

ornamentos próprios, o que realmente sucedeu, por meio de formas figurais,

para que, mudado o que sucedeu, ganhe ele um outro aspecto” (Lactâncio:

Divinae Institutiones I, II, 24)]. Lactâncio procurava com isso trazer ou atrair os

(ainda) descrentes ao caminho do cristianismo. O poeta tem a permissão de

trabalhar a verdade nua, colori-la, convertê-la em poética. Esta também é a

tarefa do poeta cristão. Somente quem apenas quer “fingida” a bela aparência é 10 Cf. Erich Auerbach, “Figura” (1939), in Auerbach, Gesammelte Aufsätze zur romanischen Philologie (Berna/Munique, 1967), pp. 55-92.

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Page 19: Stierle a Ficção

incapaz e mentiroso. Para Lactâncio, trata-se antes de tudo da mediação da

nova mensagem cristã, enquanto esta é de natureza completamente diversa.

As Confissões de Agostinho são um testemunho impressionante da crítica

cristã da ficção. Nela, Agostinho vincula a confissão dos pecados e a profissão

da fé com a descrição exemplar de seu caminho para a crença. As Confissões

enfatizam a exigência de retirar-se do mundo mentiroso das ficções e fazer-se

consonante com a verdade, que se atualizou pelo testemunho da página escrita.

São uma antificção, que pretende haver-se desvinculado de todos os ardis da

bela fala e da retórica e que, no entanto, se serve de todos os meios da fictio

retórica para o recrutamento do leitor. Vê-se a retrospectiva quando ele, ainda

quase uma criança, se entregava à sedução poética da Eneida e seguia as

aventuras de Enéias, sem se dar conta dos próprios erros. Depreciativamente,

chama a obra de Virgílio de “poetica illa figmenta” (fabulações do poeta) e

lamenta que se interessasse não por conhecimentos úteis mas pelos teatros

vazios da imaginação: “Iam vero ‘unum et unum duo, duo et duo quattuor’ odiosa

cantio mihi erat et dulcissimum spectaculum vanitatis equus ligneus plenus

armatis et Troiae incendium” [“Repetir ‘um e um, dois; dois e dois, quatro’, era

para mim uma cantilena fastidiosa. E, pelo contrário, encantava-me o vão

espetáculo de um cavalo feito de madeira e cheio de guerreiros e o incêndio de

Tróia” (Conf. I, 13, 22). É exatamente no momento em que a arte mostra sua

habilidade e não só no do engano vazio que, para Agostinho, se dá a

provocação da ficção, pois que libera a presunção humana e afasta o homem de

suas exigências: “Quam innumerabilia variis artibus et opificiis in vestibus,

calciamentis, vasis et cuiuscemodi fabricationibus, picturis etiam diversique

figmentis atque his usum necessarium atque moderatum et piam significationem

longe transgredientibus addiderunt homines ad inlecebras oculorum, foras

sequentes quod faciunt, intus relinquentes a quo facti sunt et exterminantes quod

facti sunt [“Quantas seduções inumeráveis, graças a diversos trabalhos de

artistas e artesãos, nas vestes, nos calçados, nos vasos e nos objetos de toda

espécie que se fabricam e também nas pinturas, nas modelagens variadas e

todas estas coisas que ultrapassam de longe um uso necessário ou moderado e

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Page 20: Stierle a Ficção

uma significação de piedade! Quantas seduções acrescentadas àquelas dos

olhos pelos homens que seguem de fora o que fazem e abandonam de dentro o

que os fez e arruinam o que deles Ele fez” (Conf, X, 34)]. Mas, entre as formas

de “ficção”, a poesia é a primeira entre os réus, porque as outras dela derivam.

Do mesmo modo, dela emana tudo que excita a vista, que se abre ao mundo. A

voluptas oculorum traz o risco de afastar do essencial e de se perder no

multiplicidade do mundo. Seu reflexo é o estímulo do teatro, cujo espetáculo

submete o expectador a ativar falsas paixões. Agostinho vive no horizonte dos

muitos livros, das muitas peças que excitam suas paixões até que encontre a

voz do livro da verdade, que muda o curso de sua vida. No fundo de seu

desespero, escuta a voz infantil que clama um misterioso: “Tolle, lege; tolle,

lege” [“Toma e lê; toma e lê” (Conf. VIII, 12)]. O livro que a invocação o faz abrir

é o Novo Testamento; a página acidentalmente aberta parece falar a si mesmo.

É o convite para que siga Cristo e que o leva a mudar sua vida. O livro da

verdade ocupou o lugar daquela “poetica illa figmenta”, que antes fora o encanto

do jovem leitor. À leitura como dispersão agora responde a leitura como suma

concentração na verdade, a partir da qual fala o livro. A partir de agora e por

séculos, a ficção estará a serviço da verdade.

Em De vera religione, as fantasmagorias, que capacitam o espírito a imaginar,

tornam-se opostos à religião verdadeira: “Non sit nobis religio in phantasmatis

nostris; melius est enim qualecumque verum quam omne quicquid pro arbitrio

fingi potest” [“Nossa religão não é um acervo de imagens fantasiosas. É então

preferível qualquer verdade barata do que tudo que se pode imaginar

arbitrariamente” (De vera religione, 55, 108)]. Entre o Deus representado,

“fingido” e o verdadeiro há o abismo incomensurável que separa o amigo

representado do, na verdade, ausente: “Si unus est ille amicus meus, falsus est

iste quem cogitans fingo; nam ille ubi sit nescio, iste ibi fingitur ubi volo ” [“Se

tenho um determinado amigo, então o que me represento mentalmente é falso.

Pois, se não sei onde aquele está, represento-me este como queira” (De vera

religione, 34, 63)]. “Cogitans fingo” significa a representação interna, sujeita à

vontade, infinitamente maleável porque sem a resistência de um meio. Essa

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Page 21: Stierle a Ficção

ficção interna, oposta ao ser-que-se-encontra da verdade, é ainda mais arbitrária

do que a ficção, que se manifesta em um meio e se converte em arte. “Si una

Roma est (…) falsa est ista quam cogitans fingo” [“Se há apenas uma Roma,

então aquela que me represento mentalmente é falsa” (idem, ibidem)]. Mas

também as configurações, que nunca foram vistas, formam-se facilmente, como

no sonho: “Formae corporum, quas nunquam vidimus, vel cogitando apud nos

vel somniando figurentur” [“Formas corporais, que nunca vimos, (apresentam-se-

nos) diante da alma em pensamento ou em sonho” (Agostinho a Nebridus,

Epistulae 9, 5)]. É fundamental para Agostinho que a representação do fingere

esteja ligada ao embuste. Assim abre a discussão de se, no começo do Gênese,

o texto grego deveria ser traduzido por “Et formavit Deus hominem pulverem de

terra” ou por “finxit”. Segundo Agostinho, “finxit” seria de imediato a tradução

correta, mas, para que se evitasse uma ambigüidade, “formavit” era preferível:

“Sed ambiguitas visa est devitanda eis, qui formavitdicere maluerunt, eo quod in

Latina lingua illud magis obtinuit consuetude, ut hi dicantur fingere, qui aliquid

mendacio simulante componunt” [“Preferimos, no entanto, a palavra ‘formou”,

para evitarmos a ambigüidade evidente em latim. Pois, nesta língua, diz-se

‘fingere’ sobretudo daqueles que querem simular alguma coisa” (Cid. de Deus

13, 24). A Enarratio in psalmum 138 justifica, ao contrário, o velho significado de

fingere: “Non enim quisquam nascitur, nisi quem Deus finxerit in utero matris

suae; aut ulla creatura est cuius non est ille plasmator” [“Pois nada nascerá que

Deus não tenha preformado no útero materno; e, em suma, não há criatura de

que ele não haja sido o criador” (Enarratio in psalmum 138 7, 19-20)]. A

peculiaridade estética da ficção, que ocupava o centro das refrações poéticas

das Metamorfoses de Ovídio, desaparece na oposição unívoca entre verdade e

mentira. Fica fora da oposição a licença ficcional da parábola. Agostinho observa

sobre a parábola do semeador: “Si audis fictum, intellegis significative: fictum est.

Si enim vere homo seminator exiret, et semina, sicut audivimus, per haec diversa

jactaret, non erat fictum, sed nec mendacium. Nondum autem fictum, sed non

mendacium. Quare? Quia significant aliquid, quod fictum est, non te decepit.

Quaerit intellegentem, non facit errantem. Hoc volens commendare Christus,

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Page 22: Stierle a Ficção

poma quasivit, figuratam ibi, non fallacem commendabat fictionem; ac per hoc

laudabilem, non criminosam fictionem; non qua discussa ea in falsitatem, sed

perscrutata invenias veritatem” [“Quando escutas o fictício, compreendes que se

quer dizer alguma coisa e que é fictício. O semeador de fato saiu e semeou em

diversos lugares, como ouvimos, então (seu ato) não seria fictício, nem um

engodo. Mas há aqui fictício, embora não haja engodo. Por que? Porque

significam algo que é fictício e não te engana. Exige inteligência e não leva ao

erro. Porque se tratava de Cristo quando reunia os frutos; tratava-se de uma

ficção figurativa e não enganadora e, desta maneira, de uma ficção louvável e

não repreensível; uma ficção cujo exame não te leva ao erro mas sim, pela

inspeção correta, à verdade” (Sermones, 89, 6)]. Em uma imagem admirável,

Agostinho descreve seu discurso, atrevendo-se a pôr a pergunta mais profunda

acerca do tempo e da eternidade, como “manus oris mei” [“mão de minha boca”

(Conf XI, XI, 13)]. Mas então, em particular o próprio discurso concebido como

escrito, já não é sempre e fundamentalmente fictio? Agostinho pensa a

possibilidade de uma ficção que se abstivesse do imaginário e se originasse do

espírito da verdade. Mas somente o próprio Deus ainda seria o autor de tal

ficção absoluta.

Também na Consolatio philosophiae de Boécio, a obra da Antigüidade tardia

que devia exercer a maior influência na literatura medieval, a arte e a poesia

eram rechaçadas como falso consolo. Ante a iminência de sua morte, o eu

desesperado da Consolatio philosophiae – o do próprio Boécio, que, no cárcere,

aguardando a pena capital, recupera a serenidade pela expressão e objetivação

verbais – assume confiança pelo espetáculo de toda a ordem cósmica. A

Consolatio se entrega à liberação interna da iminência da situação opressora até

ao ponto em que é alcançada a serenidade filosófica, fundada na confiança no

todo. No começo da Consolatio, apresenta-se um poema de queixa e dor, em

que o eu busca amparo nas musas, cujo consolo embusteiro apenas aumenta a

dor. Ao que se acha prostrado em seu catre, apresenta-se, no meio de suas

queixas poéticas, a forma majestosa da philosophia, que afugenta as musas que

circundam o leito do desditoso: “Quis, inquit, has scaenicas meretriculas ad hunc

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Page 23: Stierle a Ficção

aegrum permisit accedere, quae dolores eius non modo nullis foverent remediis

verum dulcibus insuper alerent venenis? Hae sunt enim, quae infructuosis

affectuum spinis, uberem, fructibus rationis segetem necant hominumque mentes

assuefaciunt morbo, non liberant [“ Eu, que antes compus cantos com todo o

fervor, ai de mim, como o destino me impõe melodias tão tristes. E então as

musas, surpresas, diante da dor profunda, me determinam e lágrimas do maior

sofrimento banharam o rosto delas. Pois o horror logrou vencê-las;

companheiras, as únicas que seguiram minha trilha”(Consolatio philosophiae,

4)]. A despedida das musas pela filosofia por assim dizer repete sua despedida

por Agostinho, mas, como neste, também em Boécio, à ficção, sob a guia da

filosofia, se concede um certo direito, talvez ainda mais oculto. Que a filosofia

expulse as musas do afeto, cuja imaginação revolve mais profundamente a

desgraça do eu, não significa que, no curso do tempo, a filosofia recuse a ajuda

da poesia. Esta se torna, por assim dizer, o prêmio sedutor no caminho da

compreensão e da serenidade filosóficas. Constantemente, a filosofia se serve

da poesia, chega mesmo a se apropriar da linguagem poética para fazer com

que o eu enfraquecido prossiga no caminho da filosofia. No nono poema do livro

3, Deus, como em Ovídio, se converte em criador: “Quem non externae

pepulerunt fingere causae /Materiae fluitantis opus” [“Nenhum poder externo te

impulsiona a formar da massa que flutua tua criação” (Consolatio philosophiae,

128)]. À própria matéria a filosofia pede sua ajuda para que o espírito se alce

sobre as dificuldades terrenas. Quando assim Boécio toma a poesia a serviço da

filosofia parece, por outro lado, que a poesia é o lugar em que a sublimidade da

fictio divina pode ser figurada no universo, o que nenhuma linguagem filosófica é

capaz de exprimir. Só através da poesia, além da filosofia, o eu pode se livrar

dos artifícios das doces sereias, que nele introduziram a poesia do desconsolo.

É estranho que essa poesia que se afirma contra a filosofia seja, ao mesmo

tempo, o lugar em que os mitos tradicionais mantenham sua função como

representações, embora não mais se organizem como criações fictícias

autônomas.

23

Page 24: Stierle a Ficção

III. Etapas na reabilitação da ficção

Agostinho e Boécio são testemunhas poderosas do começo do que se chamou

“o cativeiro da mitologia na Idade Média”11 e do que com maior razão se poderia

chamar o cativeiro da ficção. A alegoria e a alegorese são os lugares em que a

ficção, como figura da verdade, conserva um relativo direito próprio. A alegoria,

mais do que a praxis interpretativa da compreensão figural, podia ao mesmo

tempo tornar-se o lugar em que a ficção recuperava sua peculiaridade. O

renascimento da ficção, a partir do espírito da alegoria, preludia, contudo, um

outro e surpreendente modo de configuração ficcional. Ele ganha, nos tempos

modernos, uma significação imprevisível e que mais a mais se tornará o próprio

paradigma da ficção: o romance.

A princípio, romance – no francês antigo, “romanz” – e ficção não são

sinônimos. O substantivo romanz, derivado do adjetivo de mesmo nome, que

remete ao latino romanice (loqui), descreve de início traduções do latim na

linguagem vulgar (francesa) e logo depois também textos, dirigidos à leitura, que

não mais seguiam o modelo latino. Nos primeiros tempos, romanz parece se

encontrar como substantivo no anglo-normando, especialmente na corte

londrina, onde o francês, a língua do conquistador normando, se convertera na

língua da camada superior e dominante. Como romanz já vêm a ser descritas as

redações em língua vulgar da Historia regum Britanniae, de Geoffrey de

Monmouth, em cujo centro se encontra a saga do rei Artur. Neste contexto, as

redações poéticas de Waces, sobretudo, levaram a designação romanz ao plano

de um gênero autônomo. Mas, na metade do século XII, como romanz também

se compreendem as redações originadas de antigas épicas ou de matérias

dramáticas, o Roman de Troie, o Roman de Thèbes, assim como o Aeneas, do

francês antigo, que apenas vagamente podem ser entendidos como romances,

no sentido do significado tardio da palavra. O verdadeiro descobridor do

romance, no sentido moderno, é Chrétien de Troyes, que, a partir da história do

11 Cf. H. R. Jauss, “Allegorese, Remythisierung und neuer Mythos. Bemerkungen zur christlichen Gefangenschaft der Mythologie im Mittelalter”, in M. Fuhrmann (ed.), Terror und Spiel. Probleme der Mythenrezeption (Munique, 1971), pp. 187-209.

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Page 25: Stierle a Ficção

legendário rei Artur, como é atestada por Geoffrey e Wace, que concebe um

imaginário mundo de Artur, na qual, entretanto, não só o próprio rei Artur mas os

cavaleiros de sua távola redonda ocupam a posição central12. Ao passo que a

chanson de geste do francês antigo converte os heróis na corporificação ideal de

interesses coletivos e, como poesia oralmente exposta, se volta para um público

que se identifica com tais interesses, os cavaleiros de Chrétien são muitas vezes

aturdidos pela singularidade que os restitui a seu próprio destino, que os

provoca a precisas aventuras, em um mundo sujeito a prodígios e ao

imprevisível. Os romances de Chrétien, que se processam na interioridade,

parecem dar a entender que se sobrepõem ao interdito da ficção, que levantara

a teologia cristã da Antigüidade tardia e da Idade Média. Só em seu ultimo

romance, Perceval, aparece no horizonte do mundo cavaleiresco o mundo da

devoção cristã.

É fascinante ver como em Chrétien se modifica o conteúdo do romanz, utilizado

auto-referencialmente, e como seu significado cada vez mais se aproxima do

conceito de uma ficção de novo legitimada. Ao passo que o romanz a princípio

assinala a tradução por completo tradicional em língua vulgar, mais

precisamente em francês ou a tradução fictícia do latim – parece como se o

romanz só alcança sua validez quando já não diferencia entre as línguas e

dialetos românicos – o texto que Chrétien descreve como romanz torna-se cada

vez mais consciente de sua própria forma e de sua genérica potencialidade

como paradigma de um novo gênero literário. Não parece acidental que a nova

consciência de ficção por Chrétien, cristalizada no novo conteúdo do romanz,

encontre seu ponto de partida em Ovídio. Em Cligès, escrito depois de Eric et

Enide, Chrétien a princípio se põe como autor e, a seguir, como tradutor da Ars

amatoria, de Ovídio: “Cil qui fist d’Erec et d’Enide, / et les comandemanz d’Ovide

/ et l’art d’amors an romans mist” [“Aquele que fez Erec et Énide e os

12 Cf. Brigitte Burrichter, “Wahrheit und Fiktion. Der Status der Fiktionalitär in der Artusliteratur des 12. Jahrhunderts”, in Beihefte zur Poetica, 21 (Munique, 1996); Volker Martens/Friedrich Wolfzetel (eds.), Fiktionalität im Artusroman (Tübingen, 1993); Alastair J. Minnis (ed.), Medieval literary theory and criticism c. 1100-c. 1375 (Oxford, 1988), pp. 113-164

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Page 26: Stierle a Ficção

Commandements13 de Ovídio, que pôs em romance L’Art d’amour” (Troyes, C.

de: Cligès, vv. 1-3)}.

Acrescente-se que Chrétien também traduziu dois episódios das

Metamorfoses. Já em seu primeiro romance, como antes o fizera Ovídio,

reivindica haver criado uma obra válida para o mundo inteiro: “Des or

comancerai l’estoire / Qui toz jorz mes iert an mimoire / Tant con durra

crestiantez:/ de ce s’est Crestiens vantez” [“Começo aqui meu relato. Chrétien se

gaba de que a lembrança desta composição durará tanto quanto a cristandade”

(Troyes, C. de: Eric et Énide, vv .23-6)].

Chrétien crê que a razão desta validade está em haver conseguido o que ele

próprio chama uma “bele conjointure”, uma sutil conexão interna do enredo, com

que acredita haver se diferenciado qualitativamente dos jograis que declamavam

suas histórias na corte e as preparavam para a necessidade correspondente,

enquanto ele oferecia uma forma escrita duradoura. De fato, a descoberta genial

de Chrétien não depende simplesmente da escrituralidade de um texto por si

bastante vivo, mas sim de uma complexidade narrativa, sem dúvida conseguida

graças ao meio da escrita, cujo potencial imaginário encontra seu ponto de

partida na situação de comunicação da leitura. A formula “lire romanz”, em

oposição a escutar a canção de gesta, é sempre essencial para o romanz, mas

em Chrétien esta forma se torna a única comunicação mediata para o dispositivo

de recepção adequado para a admissão dos complexos processos internos de

lembrança e memória, de perda e encontro de identidade: (cf. Stierle, K.: 1993,

117-59)14. Somente Chrétien converte a leitura em uma forma estética específica

de recepção, que se distingue de todas as outras formas de uma leitura

alegórica da ficção. O leitor isolado se ligla à consciência isolada dos heróis e o

prazer estético daquele tem novas perspectivas internas. Mas ao mesmo tempo

o leitor estará obrigado a ter presente, pela ironia da ficção, o fictício da ficção.

13 Segundo Daniel Poirion, editor dos romances de Chrétien, trata-se provavelmente de obra intitulada Remédios do amor, que se perdeu (cf. Poirion, D., notas à edição das Oeuvres completes de Chrétien de Troyes, Pléiade, Paris, 1994 (N. do Tr.)14 Cf. Stierle, nota 7; Stierle, “Die Unverfügbarkeit der Erinnerung und das Gedächtnis der Schrift. Über den Ursprung des Romans bei Chrétien de troyes, in A. Haverkamp/R. Lachmann (eds.), Vergessen und Erinnern (Munique, 1993), 117-159.

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Page 27: Stierle a Ficção

Há no romance de Chrétien uma contradição entre histoire e discours, pela qual

o discurso ilumina cada vez mais o fictício da ficção. Com Erec et Énide,

Chrétien ao mesmo tempo abre um novo mundo narrativo, que,

fundamentalmente, que ultrapassa sua ligação com a histoire isolada. Os

romances seguintes são sempre novas explorações deste espaço narrativo.

Depois de Chrétien, este se amplia de maneira imprevisível quando o mundo de

Artur se abre a novos mundos narrativos e as soluções da prosa de Lancelot, de

Perceval, de Tristan se reunem a poderosos complexos narrativos, pelos quais o

movimento próprio da ficção dinâmica e em ampliação por fim faz ressaltar um

autor concreto. Mas já em Chrétien é específico para o romance, como nova

forma de ficção, a tendência de pluralização multidimensional, que, a partir de

então, será o traço marcante da grande forma do romance, em relação às

formas de narrativa simples.

Com o Roman de la rose, de Guillaume de Lorris, comeca um novo capítulo na

história da reabilitação do conceito de ficção, posto desde a Antigüidade tardia

no banco dos réus. Seria entretanto falso dispor este texto, que se descreve a si

próprio explicitamente como romanz (“E se nus ne nule demande / comment je

vueil que li romanz / soit apelez que je comenz, / ce est li Romanz de la Rose, /

ou l’Art d’Amors est toute enclose [“E, se alguém pergunta como o romance que

começo deverá ser chamado, (respondo-lhe que) é o romance da rosa, em que

está contida toda a arte do amor” (Le Roman de la rose, vv. 34-8), como

pertencente ao mesmo gênero que Chrétien tinha fundado. O Roman de la rose

é romanz em um sentido antigo, pois se dispõe como alegoria para ser lido. Pois

a alegoria como forma de apresentação procede da alegorese, que é sempre

uma práxis de exposição de textos escritos. Mas, enquanto na primeira fase de

sua conjuntura cristã, a alegoria serve a uma praxis literária de afastamento do

mundo, a apresentação alegórica de Guillaume leva a cabo, pela primeira vez,

uma nova praxis de laicização do mundo, o recuo da esfera conceitual na esfera

da contemplação sensível. Pois o Roman de la rose é uma celebração da beleza

e do amor em um mundo só pertencente a estes, ainda que sempre ameaçado

por forças contrárias. A alegoria como uma poesia dos conceitos tem um

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Page 28: Stierle a Ficção

fundamento conceitual-sistemático. Aqui está a ars amatoria de Ovídio, que não

obstante vai além das estratégias de sedução sensível de Ovídio, pois abriga em

si a doutrina do amor cortês. Mas este saber sistemático do amor e das forças

favoráveis e antagônicas a ele é trazido por Guillaume à perspectiva subjetiva da

experiência15 .Antes ainda de haver seu amor encontrado o objeto de seu

desejo, sonha Amant que deixa a cidade em um belo dia de primavera, penetra

no campo aberto e ali descobre o império do amor. Ele é cercado por uma

muralha, em cuja parte externo estão fixadas as imagens daquelas forças

alegóricas que destroem a plena consumação do amor. Introduzido por Oiseuse,

Amant encontra a Rose, a quem cortejará e que, como promesse de bonheur,

aponta para a Dame, que tem o seu afeto e que (ainda?) não retribui a seu

amor. O perspectivismo subjetivo da alegoria do amor de Guillaume implica uma

mudança importante na consideração da ficção. Ao passo que a antiga ficção

fundamentalmente assinalava o território de sua produção e esta mesma se

convertia em objeto primeiro da atenção do leitor – por exemplo, quando em

Ovídio se trata de Narciso, Pigmalião ou das bela portas do Sol, construídas por

Hefaisto –, é o olhar que incide nas alegorias de entrada da muralha e do

império de Amors, um olhar subjetivo que dá vida ao mero esquema

apresentado, o resultado do trabalho artístico.

Assim como Chrétien, também Guillaume se intimida em voltar a conceder seu

direito à ficção. Esse direito ainda era bastante afetado por sua aparência de

puro engodo. O songe alegórico é, na verdade, ficção, mas permanece uma

ficção inconsciente ou ficção que ainda não ousa exprimir-se como ficção. Como

já em Chrétien, em Guillaume, bem como em seu continuador Jean de Meung,

Ovídio é o ponto de partida para a renovação da ficção. Amant, no momento que

é alcançado pela seta de Amors, ao se inclinar sobre a água do poço, tornou-se

o Narciso que antigamente se arruinara. Na segunda parte do Roman de la rose,

é Pigmalião que depois arde de desejo em se apropriar em vida da forma criada

por ele. Deste modo Pigmalião corresponde ao Narciso da primeira parte, que

15 Cf. Jauss, “Form und Auffassung der Allegorie in der Tradition der Psychomachia”, in H. R. Jauss:/D. Schaller (eds.), Medium aevum vivum. Festschrift für Walter Bulst (Heidelberg, 1960), pp. 202-206.

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Page 29: Stierle a Ficção

aspira à imagem ideal, involuntariamente criada por ele mesmo.

Também a Divina commedia (1321), de Dante, que tinha todo o direito de

chamar-se ficção, no sentido antigo da palavra, evita cuidadosamente o

conceito. Ou ele encontra aplicação onde se trata da criação divina, ou onde se

trata da própria obra. A obra do poeta não é uma ficção racional, mas sim

inspiração e o Deus que criou como sua obra de arte absoluta, no Canto X do

Purgatório, o baixo-relevo dos humilhados, é igualmente compreendido não

como um senhor do fingere, mas sim como produtor de uma obra de arte, por

cuja virtualidade penetra instantaneamente na atualidade estética [ “Colui che

mai non vide cosa nova / produsse este visibile parlare” (vv. 94-5) (“Aquele que

desconhece novidade / produziu este visível falar”) ] ou seja, na ficção suprema.

Esta, no entanto, é atualizada, como a alegoria do Roman de la rose, não no ato

de produção, mas apresentada pelas perspectivas subjetivas e vivificantes,

engendradas no observador de Dante pela obra de arte absoluta.

Também na Commedia de Dante se renova o Ovídio onipresente das

Metamorfoses. E, como este Ovídio, também Dante converte sua Commedia no

lugar de um sistema das belas-artes16.

Com Boccaccio, sucede a reabilitação da ficção em sua última e decisiva fase,

em que o conceito de ficção ganha outra vez um significado próprio. Em

prosseguimento direto de Ovídio, Boccaccio concede à ficção um novo direito,

além da alternativa tornada improdutiva entre verdade e mentira. Além do mais,

especialmente o jovem Boccaccio, experimenta várias formas e possibilidades.

Prosseguir Ovídio sob novas condições, mas também tornar disponível o

romance e a alegoria do amor do Roman de la rose e, assim, experimentar

novas formas de um bricolage híbrido de mitos.

Seu Filocolo, um animado romance em prosa de aventuras e de amor,

conforme ao modelo de Fleure et Blanchefleure do francês antigo, o romance

16 Cf. Stierle, “Das System der schönen Künste im ‘Purgatorio’ von Dantes Commedia”, in Stierle: Ästhetische Rationalität. Kunstwerk und Werkbegriff (Munique, 1997), pp. 389-416; Stierle, “La Table du monde et le système des beaux-arts: Ovide, Dante, Proust”, in Rassegna europea di letteratura italiana, 12 (1998), pp. 9-35; Richard Hamilton Green, “Dante’s ‘allegory of poet’’and the medieval theory of poetic fiction”, in Comparative literature, 9 (1957), pp, 118-128.

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Page 30: Stierle a Ficção

sentimental do amor infantil entre o filho do rei pagão espanhol e a menina

cristã, que leva a uma história de amor fabulosa e perfeita, é uma ficção no

espírito do novo romance e da ficção de Ovídio. A história da criação e a

sagrada história cristã são aí traduzidas na linguagem das mitologias antigas.

Em um qüiproquó atrevido, o Deus cristão se converte no summo Jiove, que

forma seu filho Prometeu com as próprias mãos, antes que criasse Adão e Eva,

segundo o modelo divino. Com a conversão do herói Florio ao cristianismo, a

ficção, por assim dizer, por fim se reconverte em um mundo cristão normativo. O

antigo céu dos deuses, de novo submetido, se unifica para que se torne a razão

de uma legibilidade anagógica, i.e., cristã. O Filocolo é o experimento ousado de

amalgamar uma camada narrativa cristã-medieval com uma pagã-antiga.

Enquanto a Ninfale fiesolano, como já antes a Comedia delle ninfe fiorentine,

constrói um mundo onírico arcaizante e fictício na concreta paisagem toscana, a

Amorosa visione é um sonho alegórico, que, na seqüência do Roman de la rose,

se abre, à maneira da Commedia de Dante, a uma galeria de formas pagãs,

judaicas e modernas dispostas em distintas regiões do mundo. Conduzido por

uma “donna gentil”, o eu chega a uma ampla porta, onde, contra o conselho da

donna, se dirige, à maneira de Giotto, às formas pintadas na parede, que, em

marcha triunfal, parecem desfilar à sua frente. Apesar dos esforços da nobre

dama, o eu se decide a não se separar das formas mundanas. A transformação

do amor mundano em mais alto amor fracassa, mesmo se o narrador afirme sua

conversão definitiva. Renova-se aqui o olhar subjetivo, que dá vida às formas,

ao passo que outra vez se dissipa o aspecto de produção. Na “elegia” Fiametta -

em que Fiametta, como o Amant do Roman de la rose, se envolve em uma

história de amor manifesta, conta seu triste destino às amigas, que, pelos

informes contraditórios vindos de Florença, o lugar em vive o amado, parece de

todo impossível -, o Ovídio da carta de Phyllis a Demofon é mais uma vez o

modelo evidente (cf. Ovídio: Heroides 2). Em todas essas obras, Boccaccio

realiza, na tradição da alegoria do amor do romance do francês antigo e de

Dante, uma nova idéia articulada de ficção, ao mesmo tempo consciente dos

antigos, que antes de tudo se inspira em Ovídio. Mas só na Genealogie deorum

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Page 31: Stierle a Ficção

gentilium - a apologia de Boccaccio da poesia pagã e, em suma, da poesia

ficcional – o próprio conceito de ficção recupera sua função e significado.

O Livro XIV da Genealogie (começado entre 1360 e 1365), ponto alto na

grande pesquisa de compor ou fingir um grande todo a partir de fragmentos de

mitos dos antigos, oferece a defesa da poesia contra seu desprezo cristão.

Assim, a ficção de novo se libera do ódio à mentira, e a poesia e a ficção

estabelecem uma aliança indissolúvel. O poeta é um produtor de ficções e, na

verdade, em um duplo sentido. Cria uma bela obra verbal, mas, ao mesmo

tempo, também a ilusão de um mundo em que o leitor pode ingressar. Mas,

como ficção, a poesia não é um engodo. Ela começa a participação em um

mundo que, do contrário, deveria permanecer fechado, sem que deste modo já

houvesse sido decidida a cunhagem específica de um gênero. A épica, o

romance, a narrativa curta ou a lírica são poesia, em igual medida. A faculdade

do poetar é igualmente doada pelo deus pagão e por Cristo. Por isso é justo que

também a poesia dos antigos pagãos tenha o direito de ser lida. “Amplissima

quidem fingendi est area, et pleno semper fictionum cornu poesis incedit; non

ergo deficiebant quibuscunque sensibus honestissima tegumenta” [“Amplo é o

campo do invento poético e sempre a poesia vem acompanhada por um clarim

cheio de ficção. Assim não lhe faltam abrigos respeitáveis e pertinentes para

cada sentido profundo” (Boccaccio, G.: Genealogie deorum gentilium 14, 14)].

Nunca a amplidão e a diversidade da ficção foi tão exaltadamente apreciada

como em Boccaccio. O poeta se apresenta em competição com a própria

natureza: “Quicquid eius opera ratione operantur perpetua, poeta celebri conatur

describere carmine. Quod si intueri velint isti, videbut formas, mores, sermones

et actus quorumcunque animantium, celi syderumque meatus, ventorum fragores

et impetus, flammarum crepitus, sonorous undarum rumores, montium

celsitudines et nemorum umbras atque discursus fluminum adeo apte descriptos,

ut ea ipsa parcis in licterulis carminum inesse arbitrentur” (“Pois o poeta procura

por todos os meios, em exxcelentes versos, narrar tudo que a própria natureza

alcança na organização incessante de suas obras. Se os adversários quiserem

refletir a respeito, encontrarão formas, costumes, conversas e ações de todos os

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Page 32: Stierle a Ficção

animais, os movimentos do céu e das estrelas, o bramido dos ventos, o crepitar

das chamas, o fragor sonoro das ondas, a elevada altura das montanhas, a

sombra dos bosques e o curso dos rios tão detalhadamente descritos que se

poderia crer que estivessem contidas nas letras do poema” (Genealogie 14, 17).

Mas os poetas não são apenas imitadores da natureza, na plenitude de seus

fenômenos concretos. Em suas obras, são idênticos aos filósofos, aos profetas e

aos teólogos. Têm, no entanto, seu entendimento original e um modo específico

de traduzi-lo na linguagem. Os poetas estão submetidos ou à filosofia ou à

teologia. Suas ficções não são um jogo vazio da linguagem, mas sim uma tela,

atrás da qual se oculta um sentido mais profundo. A própria ficção é apenas a

bela superfície, sob a qual o sentido se desvela. Entretanto este não apenas

sucede aos entendimentos da religião, da teologia e da filosofia, senão que os

pressupõe. E não por acaso os arautos de religião propagam com freqüência

uma linguagem, que é a linguagem da poesia. Para Boccaccio, a poesia é de

relevância antropológica, mas nela, ao mesmo tempo, se manifesta uma

compreensão originária, pré-religiosa, na experiência do divino. Boccaccio fala

aqui a partir do espírito de Dante, que se via ao mesmo tempo como filósofo e

teólogo e que, no entanto, como poeta, na visão complexa, imaginada,

impulsionada por metáforas, superava seus conceitos filosóficos e teológicos.

Seria, secretamente, a poesia mais filosófica do que a filosofia, mais teológica do

que a teologia? Boccaccio não vai tão longe e nem poderia ir. Contudo este

parece ser o ponto de vista não explicitado de sua defesa da poesia contra seus

detratores. Boccacio demonstra por um exemplo o quanto o argumento poético e

ficcional se distingue da argumentação discursiva do filósofo. Quando Virgílio

quer mostrar a ruína que a paixão causa ao homem, não define o que é a

paixão, mas descobre um equivalente imaginário do conceito que lhe permite

formulá-lo, ao mesmo tempo, em sua universalidade conceitual e nos múltiplos

matizes e sombreados. Mesmo por isso, a poesia se opõe sobretudo à retórica,

de que entretanto necessita para se exercitar na flexibilidade da palavra, para o

desdobramento de seu registro emotivo.

Francesco Petrarca tem com o conceito de ficção uma relação muito mais

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Page 33: Stierle a Ficção

descontínua do que Boccaccio, seu amigo mais jovem e que se considerava seu

discípulo. Nas poesias de seus Rerum vulgarium fragmenta, mostra-se manter

uma relação tensa e conflitiva que envolve Ovídio e Agostinho. Petrarca é por

certo o primeiro que reconheceu que os mitos da arte de Ovídio são

essencialmente mitos ou ficções sobre as artes, sua origem e natureza. Mitos de

arte como os de Apolo e Dafne, Aracne, Narciso e Pigmalião desempenham no

Canzoniere um papel decisivo. Estes, entretanto, agora se tornam em momentos

de uma ruminação reflexiva da autodiscórdia, que oscilam entre a fascinação do

mundo e sua recusa, com que Agostinho e sua negação do mundo formam o

pólo oposto do deleite dos sentidos de Ovídio. As ficções objetivas de Ovídio

tornam-se em Petrarca projeções subjetivas da consciência que em si mesma se

arruina. Na chamada “Canção das metamorfoses” (nº 23), é citada toda uma

série de mitos de metamorfose de Ovídio, para atualizar o estado interno do

amante frustrado e sua metamorfose na concretude das imagens do poema17. O

caminhante na estranha paisagem crê que a imagem da lembrança da amada

vem em sua direção18. Em ambos os sonetos ao pintor Simone Martini, que

fizera para Petrarca um desenho (ideal?) de Laura (cf. Petrarca, F.: Canzoniere,

números 77, 78), a imagem se torna em ficção viva aos olhos do observador. A

presença da imagem da Laura ausente torna-se tão intensa que o poeta crê

converter-se em um novo Pigmalião. Mas não é a própria Laura, a amada, que

sustenta o nome da fama ambicionada pelo poeta, uma ficção poética? Esta é a

hipótese que o amigo de estudos de Petrarca, Giacomo Colonna, bispo de

Lombez, parece ter manifestado e a que Petrarca responde em uma carta de 21

de dezembro de 1331. Numa indignação imediata contra a censura, “manufacta

esse omnia, ficta carmina, simulata suspiria” (“tudo é fabricado: as canções são

fingidas, simulados os suspiros”), termina com o pedido: “Hoc saltem oro, ne

finxisse me fingas” (“Ao menos esta, te peço, não me impinjas que eu haja

17 Cf. Stierle, “Metamorphosen des Mythos. Petracas Cansone ‘Nel dolce tempo’ “, in W. Haug/B. Wachinger (eds.), Traditionswandel und Traditionsverhalten (Tübingen, 1991), pp. 24-45.18 Cf. Francesco Petrarca, Canzoniere, nº 127,129l Rino Caputo, Cogitans fingo. Petrarca tra ‘Secretum’ e ‘Cansoniere’ (Roma, 1987), pp. 77-116.

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Page 34: Stierle a Ficção

fingido”)19. Fica, no entanto, a questão se a própria carta não é ficcional, e se

Petrarca, engenhosamente, aqui não pratica uma mistificação.

No Secretum, o colóquio imaginário com Agostinho, este censura Petrarca por

idolatria, que tem Laura, cujo retrato ele leva por todas as partes, por objeto,

bem como por sua fuga no isolamento, que a tal ponto excita seus sentidos que

a ausente parece se lhe mostrar. A fictio se converte em “infame privilegium”

(Secretum, 146), a que Agostinho se opõe com palavras que Virgílio empregara

a propósito da ruína do amor de Dido: “Illum absens absentem auditque

videtque” [“Está longe dele e ele, dela e ela o escuta e o vê (Aeneis, IV, 83)].

Agostinho converte a passagem em “Illam absentem absens audies et videbis”.

Virgílio está precisamente na contrafce do poeta, a quem Agostinho está

propenso a conceder que a sua Eneida não é simples mentira, mas sim que

formula uma compreensão psicológica relevante sob as vestes da ficção. Isso

vale de igual para a apresentação do assombro [“obstipuit” (Aen. I, 613)] que

sente Dido ao primeiro olhar de Enéias: “Que quamvis, ut nosti optime, fabulosa

narratio tota sit, ad nature tamen ordinem respexit ille, dum fingeret” [“Embora,

como bem o sabes, o relato seja inventado, o poeta, enquanto o imaginava,

respeitou a ordem da natureza” (Secretum, III, 132)]. Contra a objeção de que

Virgílio dava demasiado espaço às ficções, Petrarca, em sua carta a Federico

Aretino, se esmera na justificação bastante tradicional de que sob as ficções se

ocultam esplêndidas verdades alegóricas (Seniles, 4, 5).

Ao invés, no começo do tratado De vita solitaria (começado em 1346 e

ampliado até 1371), a fictio outra vez é posta em oposição unidimensional à

verdade. Em uma formulação elegante, são elas contrapostas pelo aspecto

temporal: “Ut enim immortalis est veritas, sic fictio et mendacium non durant”

[“Para que a verdade seja imortal, a ficção e a mentira hão de ser fugazes” (De

vita solitaria, 262)]. Para que, entretanto, a pura ficção signifique a consumpção

no tempo, é preciso que o aspecto que adere à obra e à sua própria duração

seja posto entre parênteses. A ficção não é aqui mais uma terceira via, mas o

que se opõe à verdade, em um encaminhamento bem diverso da formulação

19 Petraca a Giacomo Colonna (21.12.1336), in Epistotae familiars, 2, 9

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Page 35: Stierle a Ficção

que Petrarca apresentava em sua grande carta a seu irmão Gherardo, em que

vai tão longe a ponto de, como Boccaccio, fazer com que quase coincidam a

teologia e a poesia: “Parum abest quim dicam theologiam poeticam esse de deo”

[“Pouco temo falhar quando descrevo a teologia como a poesia proveniente de

Deus (Epistolae familiares 10, 4)]. Petrarca leva então especialmente em conta o

seu Bucolicum carmen, um poema bucólico que se funda na decifração

alegórica do sentido oculto. Antes mesmo de Boccaccio, Petrarca recorre à

justificação da poesia por Lactâncio, devendo ter estimulado bastante Boccaccio

a escrever a sua Genealogie deorum gentilium. Em seu discurso de

agradecimento na festa de sua coroação como poeta, em 1341 em Roma, cita

expressamente Lactâncio, ao afirmar o direito próprio do officium poetae (cf.

Collatio laureationis, 1270). Em sua polêmica contra o médico que caçoava de

sua poesia, Lactâncio renovava o testemunho em defesa da ficção poética,

desta vez, contudo, contra a concepção averroísta, de uma ciência da natureza

(cf. Petrarca: Invective contra medicum: 842).

IV. ficção liberada

O próximo passo na história da significação da “ficção” está estreitamente ligada

à história do romance entre a Idade Média e o Renascimento. Depois de

Chétien, abre-se ao novo gênero uma poderosa potenciação estrutural, que se

acompanha de uma nova exigência ficcional de verdade, que se conecta a uma

gênero que se exprime em prosa. Os romances em prosa depois de Chrétien, o

Lancelot, o Tristan em prosa e, acima de tudo, o ciclo em prosa de Artur são

compilações vigorosas de autores anônimos, que, por assim dizer, procuram ir

imaginariamente além do mundo de Artur, aberto por Chrétien. O romance o

consegue por um movimento narrativo fundamentalmente interminável. Para

isso, os diferentes mundos do relato se impulsionam uns aos outros, de maneira

que o leitor é levado de um ao outro. Com tal fim, estes romances empregam um

procedimento narrativo, que já desempenhava um papel progressivo em

Chrétien, o chamado entrelacement, o enredamento de fios narrativos

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Page 36: Stierle a Ficção

diferentes, que fazia o leitor experimentar uma graduação imprevisível de

mundos, de heróis e seus destinos. O narrador, que dispõe livremente e como

com toda a arbitrariedade, requer do leitor a consciência de uma copresença

extraordinária de formas, destinos e espaços, que se impunha a seu espaço de

representação e o conduzia às mais extremas fronteiras de sua própria e porosa

experiência do ser-no-mundo, até ao maravilhoso e ao outro. Desprendido das

coações formais e das leis de economia de Chrétien, o romance se torna o lugar

de uma dinâmica, que o converte na obra de arte ficcional da pluralização.

Mas a estas novas tendências também se combinam as misturas híbridas da

identidade oral e heróica nascida com a chanson de geste e do romanz voltado

para a leitura, com seu mundo da experiência subjetiva do cavaleiro, em

demanda de sua identidade isolada e de seu próprio destino. Por essa mistura,

as orientações formalmente constitutivas da chanson de geste e do romance

cortês são postas de lado. O mundo épico, como em Huon de Bordeaux, abre-se

para o maravilhoso e fantástico, ao mesmo tempo que a terra de ninguém do

romance abre-se para o horizonte do mundo real. Com suas fronteiras e suas

próprias leis, põem-se lado a lado os mundos cristão e pagão, mas agora

também se abrem imaginariamente, de tal modo que o herói cristão no mundo

pagão e o herói pagão no mundo cristão podem buscar sua identificação.

Também aqui o entrelacement muitas vezes desempenha um papel decisivo,

não mais porém como arbítrio do narrador que aceita a pluralidade dos “destinos

cruzados”20 ou como objetividade épica do ofuscamento recíproco de mundos

antagônicos, mas sim como superposição de ambas as formas em uma

apresentação complexa do mundo21.

A desterritorialização do romance em sua fase pós-Chrétien, como se

desenvolve, em dinâmica crescente, nos séculos XIII e XIV franceses, é o

pressuposto para que, na Itália do século XV, uma nova forma pudesse surgir,

que se compreendia essencialmente tendo em conta a ficção e a relação livre e

irônica com o material narrativo premoldado na França. Essa forma nova era o

romance. Se a princípio, romanzo é apenas a designação italiana do romanz 20 Cf. Italo Calvino, Il Castelo dei destini incrociati IMilão, 1973).21 Cf. Stierle, nota 7

36

Page 37: Stierle a Ficção

francês, logo, na segunda metade do século XV, o gênero expressa a própria

perspectiva italiana do gênero. Seu ponto culminante é alcançado nas primeiras

décadas do século XVI, com o Orlando furioso (1516), de Ariosto. É essencial

para a estrutura do romanzo a mistura de temas do romance arturiano com

outros da chanson de geste e sua refração irônica por um narrador que relaciona

e comenta, pela descoberta de situações cômicas, pela criação de sempre

outras desilusões do leitor e, sobretudo, pela dominância temática do amor, em

todos seus matizes. A isso se acrescenta a rica ordenação formal do relato na

forma da oitava rima, a estrofe endessilábica de oito linhas com versos em rimas

cruzadas e uma acentuada rima emparelhada final. Um anônimo Orlando,

hipoteticamente originado no início do século XV, forma talvez a origem do

gênero. Mas o gênero só alcança a plenitude de suas possibilidades com

Morgante (1478), de Luigi Pulci e com o inacabado Orlando innamorato, de

Matteo Maria Boiardo, aos quais, como continuação e superação, encerra a obra

inexcedível do gênero, o Orlando furioso, de Ariosto.

O mundo de Orlando furioso é um mundo de ficções, do engano da bela

aparência, do que parece, da ilusão, do feitiço e do contrafeitiço, em que a

oposição entre o verdadeiro e o falso se dissolve em ambigüidades

inextrincáveis e sibilinas. Fingere é, em Ariosto, um obstinado tema recorrente.

O mundo não é mais como aparece para os heróis e para o leitor, mas, sob a

aparência, abre-se o abismo de máximas incertezas. Angelica, encarnação da

beleza real e da sedução, medita já no Canto primeiro em como poderá dobrar

Sacripante, um de seus cultores, sem cumprir sua vontade: “Ma alcuna finzione,

alcuno inganno, / di tenerlo in speranza ordisce e trama” [“Urde e trama entreter

sua esperança / por alguma ficção, algum engano” (Orlando furioso I, 51, 5-6)].

O infame Brunello é “tutto simulato e tutto finto” [“por completo simulado e

fingido” (IV, 2, 7) e “di finzioni padre” [“pai de todas as mentiras” (IV, 3, 2)].

Piscando os olhos, diz o narrador a propósito de Hipogrifo, o cavalo mágico:

“Non è finto il destrier, ma naturale” [“O corcel não pertencia às coisas mágicas”

(IV, 18, 1). Diz-se ao contrário de seu possuidor, o mágico Atlante: “Del mago

ogn’altra cosa era figmento” [“Do mago tudo mais era mentira” (IV, 20, 1)].

37

Page 38: Stierle a Ficção

Quando o poeta diz da bela e encantadora fada Alcina, a dona da ilha ditosa,

que tira o herói Ruggiero de seu desterro: “Di persona era tanta ben formata /

quanto n’finger san pittori industri” [“A beleza de seu retrato vai além / do que o

industrioso pintor jamais encontrou” (VII, 11, 1-2), refere-se ele, na verdade, à

arte do pintor, mas, ao mesmo tempo, é dado indiretamente ao leitor um sinal de

que a beleza de Alcina poderia ser “finta”, mágica ou enganadora. A feiticeira é

necessária neste mundo para que o mundo se veja a si mesmo livre do engano,

mas isso mesmo não seria um engodo? (cf. Orlando furioso, VIII, 2)].O duplo

sentido, herdado do latim, de fingere – produção de uma forma estética e efeito

de um engodo – é engenhosamente encenado, quando se diz da atraente

Angelica, desnuda na ilha deserta: “Creduto avria che fosse statua finta / o

d’alabastro o d’altri marmi illustri” [“(Ruggiero) teria acreditado que fosse / uma

inventada estátua de alabastro ou de mármore” (X, 96, 1-2)].

A statua finta é, ao mesmo tempo, uma finta statua, ou seja, uma criatura viva.

Em um momento em que o narrador supostamente se assusta em ter de contar

o que “a história” o obriga, dirige-se a seu leitor, sobretudo à sua leitora, com a

proposta de que salte os três ou quatro próximos capítulos ou que os leia

ceticamente, como se fossem apenas ficção ou fábula, para que,

engenhosamente, se levante uma pretensão à verdade, que, no entanto, apenas

afirma a própria ficção como ficção: “Passi, chi vuol, tre carte o quattro, senza /

leggerne verso, e chi pur legger vuole, / gli dia quella medesima credenza / che

si suol dare a finzioni e a fole” [“Passem, se assim quiserem, três ou quatro

páginas sem / ler nenhuma linha e quem queira lê-las / deve lhes dar a mesma

crença / que se costuma outorgar a ficções e a loucuras” (XXVIII, 3, 1-4)].

O mundo fictício de Ariosto, que se abre, em profundidade imprevisível, para

enredamentos narrativos e graduações perspectivísticas, é um mundo do

fingere; por ele, ações e formulações verbais enganosas provocam o engano

dos sentidos e da capacidade de julgar, mas é também um mundo de embustes

óticos, de metamorfoses mágicas, de que são vítimas os personagens burlados

e o leitor. Neste mundo, também as coisas - que na chanson de geste e no

romanz estavam atadas em uma hierarquia de relevância narrativo-ideológica

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Page 39: Stierle a Ficção

fixa - ganham, por princípio, imprevisibilidade, uma imprevisível vida própria.

Elas se tornam quase sujeitos, que freqüentemente fazem dos heróis cômicas

vítimas da traição dos objetos. Pois há neste mundo, no qual cada certeza do

fenômeno se desmancha como ilusão, um novo modo de certeza e evidência

originada da própria aparência, a evidência do belo, não passível de ser negada

pela consciência do engano. Quando Ruggiero se aproxima do castelo da fada

Alcina, vê uma muralha que lhe parece de ouro, mas, ao passo que outros

poderiam supor a presença de um feitiço (alchimia), o narrador afirma: “A me par

oro, pois che sì risplende” [“A mim parece de ouro, porquanto brilha” (6, 59, 8)].

E, quando Ruggiero se põe diante da porta, cravejada de diamantes, do palácio,

mantém-se, em uma formulação memorável da bela aparência na história, a

autonomia e a realidade do belo, além da verdade e da falsidade: “O vero o falso

ch’all’occhio risponda, / non è cosa più bella o più gioconda” [“Seja verdade ou

engano dos olhos, / não há coisa mais bela ou mais jubilosa” (VI, 71, 7-8)].

Também a beleza originada do engano se exime [como ela?] e entra em uma

ordem do ser. Dispõe-se em uma oculta conexão com este lugar quando a

beleza de Alcina é comparada com o ouro resplandecente: “Oro non è che più

risplenda e lustri” [ “(Os cabelos louros) / Vencem a própria luz esplêndida do

ouro” (VII, 11, 4)]. Mesmo depois que ela, despojada de seu feitiço, se mostra

como uma velha odiosa, a beleza de sua aparência anterior não é apagada (cf.

IV, 6)22.

A forma de Hipogrifo, o cavalo mágico, de que se diz: “Volando, talor s’alza ne

le stelle, / e poi quasi talor la terra rade” [“Eleva-se agora às estrelas, / Agora

roça o chão” (IV, 6, 1-2)], é um emblema da liberdade e imprevisibilidade com

que se move o narrador no meio do imaginário. Se, no plano dos

acontecimentos, finzione significa a fraude generalizada, no plano da produção

literária significa o enlace artístico de um múltiplo narrativo. O romance como

tela (Gewebe) atualiza um dos dois gestos fundamentais do fingere, que já em

Ovídio era fundamental para a compreensão da ficção. A arte da tecelagem é,

22 Cf. Stierle, “Der Schein der Schönheit und die Schönhei des Scheins in Ariosts Orlando furioso”, in Klaus W. Hempfer (ed.), Ritterepik der Renaissance (Stuttgart, 1989), p. 277-298.

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Page 40: Stierle a Ficção

em, Ariosto, antes de tudo uma alta arte do entrelacement, que obriga o leitor a

ampliar sua experiência imaginária do mundo ao imprevisível. Como uma tela

que remete a si mesma, a grande obra narrativa de Ariosto ganha sua auto-

referência, que, como as muralhas de ouro de Alcina e como a própria Alcina,

deixa como supérfluas a questão da verdade e da fasidade. Às dimensões

múltiplas da ficção também pertence que o autor abandone sua história a uma

instância narrativa plural, que transforma o narrador que conta em um cantor

imaginário da chanson de geste que canta na praça aberta do mercado e se

entrega à autoridade narrativa de Turpin. O leitor se torna, por outro lado,

necessário para desempenhar imaginariamente o papel do ouvinte que escuta o

cantor. Quanto mais o narrador insiste na verdade de seu relato, que, não

obstante, se desfaz em uma seqüência de rupturas narrativas, tanto mais esta

se torna objeto de uma ironia ficcional que se autorevela. A divisa de Ovídio era

ainda “arte celare artem”; assim, a descoberta da ficção na ironia ficcional é um

procedimento novo da narratividade complexa, que desde então permanece

ligada à história do conceito de ficção. Mas a ironia ficcional, de que se origina,

com Friedrich Schlegel, a ironia romântica, desfaz tanto menos a ficção quanto a

desilusão da beleza pode apagá-la. Persiste o próprio espaço da poesia, cuja

beleza como ficção, cuja presença sensível na ordenação da sempre

surpreendente e engenhosamente acentuada ottava rima se libera do engano e

do autoquestionamento irônico.

V. A ficção domesticada

A dinâmica narrativa, liberada pela destruição do etos da forma da chanson de

geste e do romance cortês, alcançou no Orlando furioso de Ariosto por assim

dizer o ponto de um “furioso” do imaginário ligado à ficção. Com a

(re)descoberta da Poética aristotélica, sua edição, tradução e comentário ao

longo do século XVI, põe-se com urgência para a nova teoria italiana do poético

e da literatura a pergunta pela legitimidade estética da ficção que se

desencadeara e encontrara seu surpreendente ponto culminante no romance de

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Page 41: Stierle a Ficção

Ariosto. Em todas as posições divergentes ante a questão, mostra-se a

tendência constante de, digamos assim, sujeitar aristotelicamente a ficção de

Ariosto. Com isso, dois aspectos se destacam: trata-se de pôr o romance de

Ariosto sob o controle da compreensão aristotélica, em que, em princípio, na

épica, a unidade da narração tem de dominar à sua diversidade e em que,

apesar da grande variedade admitida, a épica deve permanecer estruturalmente

sob as mesmas condições de um mito que se move entre o começo e o fim,

como sucede na tragédia. Por outro lado, a ficção há de, como, depois de

Aristóteles, exigira Horácio, estar sob o princípio da verossimilhança e, deste

modo, ao mesmo tempo corresponder ao sentido geral formado a partir da

experiência. A querela sobre Ariosto23, que começa em 1549 com a Sposizione

sopre l’Orlando furioso de Simone Fornari, um defensor de Ariosto contra seus

críticos, é uma luta pela direção a ser tomada pela continuação e entendimento

da poesia italiana, em que também se trata da questão da continuidade entre

Idade Média e Renascimento ou da descontinuidade das épocas e do

renascimento da poesia, a partir do espírito dos antigos. Ao mesmo tempo,

origina-se nessa contenda os contornos de uma primeira teoria do romance, em

que se apresenta o romance como a forma legítima da ficção dos tempos

modernos, contra a concepção aristotélica da épica. Em 1554, Giovanni Battista

Pigna, em I Romanzi, e Giambattista Giraldi Cintio, nos Discorsi intorno al

comporre di romanzi justificam o romanzo e, particularmente, o de Ariosto.

Ambos partem fundamentalmente da poética aristotélica e, a partir dela,

procuram tornar Ariosto aceitável. Argumentam com a diferença dos tempos,

que, em cada momento, exige outras formas de composição narrativa. Assim a

nova ficção de Ariosto é explicada, em função das expectativas de seu leitor,

como uma modificação necessária da poética aristotélica. Ao contrário, De arte

poetica (1564), de Antonio Sebastiano Minturno agarra-se estritamente a

Aristóteles e vê no romance tão-só um desvio ilegítimo da única norma válida da

épica, tal como exposta por Aristóteles. A Minturno o sentido histórico é

estranho; para ele, a ficção só pode ser poética quando se mantém sob os 23 Cf. Bernard Weinberg, A Hisotry of literary criticism in the Italian renaissance (Chicago, 1963), cap. 19, 954ss.

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Page 42: Stierle a Ficção

postulados aristotélicos da unidade e do verossímil. Em posição oposta,

Giuseppe Malatesta é, em seu tratado Della nuova poesia ovvero della difesa del

Furioso (1589), um moderno radical, assim como Minturno era a voz dos

antigos. Malatesta é um ardente partidário da poesia moderna, cuja mais alta

realização via no Orlando furioso. A nova poesia é essencialmente “poesia

romanzesca” e, como tal, segue as expectativas de seu tempo, assim como

Homero e Virgílio responderam antes ao seu. A lógica poética intemporal de um

Aristóteles não pode prescrever suas leis ao poeta moderno, mas apenas a

“usanza” contemporânea. Assim o romance se torna a forma épica dominante do

mundo moderno, do mesmo modo como a épica foi outrora a forma narrativa

característica do mundo antigo. A teoria do romanzo como teoria do romance e,

desta maneira, ao mesmo tempo, como paradigma da ficção, no século XVI, não

é defendida por ninguém com tanta firmeza como pela poética de Malatesta.

Entre as posições de Minturno, com seu reconhecimento incondicional da valia

da poética de Aristóteles, e a de Malatesta, com seu reconhecimento não menos

incondicional de Ariosto como consumação da poesia moderna, move-se,

procurando diferenciações e sínteses, Torquato Tasso, que, como criador da

Gerusalemme liberata (1581), reflete, com freqüência, sobre os fundamentos de

sua obra. A Gerusalemme de Tasso é uma épica romântica, cuja estrutura se

submete à exigência aristotélica da unidade do mito entre princípio e fim, que, no

entanto, concede direito às divagações, confusões e riscos romanescos da

identidade heróica24 .Tasso segue a exigência aristotélica da verossimilhança e,

não obstante, concede ao maravilhoso como maravilhoso cristão seu direito

próprio, subjetivamente perspectivizado. As declarações teóricas de Tasso,

particularmente sua “Apologia del Signor Torquato Tasso in difesa della sua

Gerusalemme Liberata” (1585), seus “Discorsi dell’arte poetica” (1587, talvez já

escritos em 1565) e seus “Discorsi del poema eroico” (1594), mostram o quanto

refletiu teoricamente sobre sua produção poética. Se neles se mantém fiel aos

fundamentos de Aristóteles e Horácio, no entanto é também ineludível a

24 Cf. Stierle, “Erschütterte und bewahrte Identität. Zur Nebegründung der epischen Form in Tassos Gerasulamme liberata”, in S. Knaller?E. Mara (eds.), Das Epos in der Romania. Festchrift für Dieter Kremers zum 65. Geburstag (Tübingen, 1986), pp, 383-414.

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Page 43: Stierle a Ficção

diferença temporal da experiência dos antigos e dos modernos. Por isso advoga

por uma nova diversidade da épica “romântica” moderna e propõe uma

comparação estrutural com a história universal” “Ma fra l’istorie universali, che

s’assomigliano a’ poemi di molte azioni, quelle meritano maggior lode, le quali

contengono maggior notizia di cose e maggior copia d’avvenimenti: dunque nei

poemi, nei quali si riceve la moltitudine, si deve lodar la copia” [“Mas, entre as

histórias universais, que se assemelham a poemas de muitas ações, merecem

maior louvor aquelas que contêm maior informação de coisas e maior

quantidade de acontecimentos: portanto nos poemas, em que se recebe o

múltiplo, deve-se louvar a abundância” (“Apologia”, 419)]. A comparação

estrutural com a história universal – Friedrich Schlegel dela se lembrará em sua

definição da poesia romântica como “poesia universal progressiva” – remete ao

fundamento da afinidade: o aumento do espaço de experiência histórica, que

fará a história cada vez mais complexa.

Nos “Discorsi dell’arte poetica” (1587) se dedica à questão de que margem de

liberdade dispõe a ficção e que limites lhe são impostos pela verossimilhança e

pela história. Por um lado, as ações inferiores da comédia são objeto da ficção,

por outro, o são todo o novo que ainda não encontrou uma forma fixa. A história

não permite nenhuma ficção à medida que trata de fatos ainda recentes; quanto

mais, entretanto, ela recua, tanto mais oferece ao poeta matéria para sua ficção,

pois os conhecimentos transmitidos são tão vagos que o poeta pode ativá-los.

No segundo Discorso, Tasso chega à compreensão de que o romance,

essencialmente, é ficção, ao contrário da épica, que deriva da história, mas

vacila em aceitar uma separação tão rigorosa, pois, desta maneira, os diversos

casos entre os dois pólos seriam excluídos. Com tudo isso, em Tasso nunca se

concede à ficção um valor próprio.

Em seu último ensaio, “Discorsi del poema eroico”, escrito pouco antes de sua

morte, aguça-se o ceticismo de Tasso ante a ficção, acompanhado de

escrúpulos religiosos crescentes, que o levam à dissociação entre poesia e

ficção: “E ciò si potrebbe confermare con l’autorità d’Aristotele, perché, se i poeti

sono imitatori, conviene che siano imitatori del vero, perché il falso non è; e cual

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Page 44: Stierle a Ficção

che non è, non si può imitare; però quelli che scrivono cose in tutto false, se non

sono imitatori, non sono poeti, e i suoi componimenti non sono poesie, ma

finzioni più tosto; laonde non meritano il nome di poeta, o non tanto” [“E isso se

poderia confirmar com a autoridade de Aristóteles, porque, se os poetas são

imitadores, convém que sejam imitadores do verdadeiro, pois o falso não é; e o

que não é, não pode ser imitado; mas aqueles que escrevem coisas de todo

falsas, se não são imitadores, não são poetas e seus componentes não são

poesia mas antes ficção; donde não merecem o nome de poeta ou não tanto”

(“Discorsi”, 522)]. O poeta tem tanta maior liberdade na ficção quanto mais o que

expõe se subtrai da experiência e do conhecimento do leitor pressuposto: “Dee

dunque il poeta schivar gli argomenti finti, massimamente se finge esser

avvenuta alcuna cosa in paese vicino e conosciuto e fra nazione amica, perché

fra popoli lontani e ne’ paesi incogniti possiamo finger molte cose di leggeri,

senza toglier autorità a la favola” [“Por conseguinte, o poeta deve evitar os

argumentos fingidos, sobretudo se finge haver sucedido alguma coisa em país

vizinho e conhecido e entre nações amigas, porque entre povos distantes e nos

países desconhecidos podem fingir muitas coisas levemente, sem tirar a

autoridade da fábula” (“Discorsi”, 552)]. Por fim, também o Tasso tardio mantém

o direito da ficção como bela refundição da matéria. O poeta deve evitar o que

resiste bastante à liberdade poética de refundição, mas sempre a ficção

conserva uma licença, estritamente mantida sob controle: “Ecco, illustrissimo

signore, le condizioni che giudizioso poeta dee nella materia ricercare: le quali

[…] sono queste: l’autorità dell’istoria, la verità della religione, la licenza del

fingere, la qualità dei tempi accomodati e la grandezza de gli avvenimenti” [“ Eis,

ilustríssimo senhor, as condições que o judicioso poeta deve seguir na matéria:

a autoridade da história, a verdade da religião, a licença do fingir, a

conformidade dos tempos e a grandeza dos acontecimentos’ (“Discorsi”, 557)].

Em suas reflexões teóricas, Tasso examinava as possibilidades de uma épica

moderna, levantadas pelo estímulo positivo do romance, mas que, ao mesmo

tempo, devia ser o lugar em que, sob condições essencialmente modernas, se

realizassem as exigências aristotélicas sobre a épica. Isso vale especialmente

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Page 45: Stierle a Ficção

para a articulação da consciência subjetiva e “romanesca” dos heróis, que se

tornará o centro da decisão épica.

À “nova épica” de Tasso, posta sob o signo de uma ficção estreitamente

controlada, se opõe o novo romance de Cervantes, que deriva e, ao mesmo

tempo, se opõe ao sedimento de Ariosto e da teoria do romance aberta por seu

paradigma. Também no Don Quijote (1605-1615), a ficção é, de um modo

próprio, submetida às condições aristotélicas. Na configuração do empobrecido

Quixote, arruinado por suas leituras, o grau zero de uma ficção que se torna

mecânica, a girar em torno de si mesma, se converte em um acontecimento

cômico. Ante o leitor solitário do romance, dissolvem-se as fronteiras entre a

realidade miserável do Quixote e os mundos imaginários de seus livros de

cavalaria. O fantástico do romanzo perde seu status objetivo e se mostra como a

mera fantasia de uma mente extraviada. [O leitor entra em uma dupla

perspectiva: com o Quixote, ele comprova a inundação de realidade por um

imaginário que apenas reproduz, com que ele mesmo se vê de fora como o

narrador estilizado do historiador, que encara a realidade, transformada em

fantástica pela mente transtornada do protagonista. Enquanto o Quixote, que se

crê um cavaleiro, corre de aventura em aventura, a realidade se afirma em sua

sóbria, (quase) monótona cotidianeidade. Que Cervantes divida o romance do

Quixote em episódios, como um romance picaresco, já é formalmente um índice

da predominância da perspectiva externa. A ficção se passa apenas na cabeça

do protagonista, mas como estranha ficção que foi dele tomada. Assim a sua

verdadeira faculdade ficcional não está no fantástico de sua mente, mas sim em

que lhe permite tornar invisível a sua própria ficção, em uma metaficção. O

engenho do Don Quijote consiste em interpretar de tal maneira a realidade que

ela entra sem descontinuidade no contexto da ficção e em se enganar a si

mesmo em uma imediatidade não reflexiva, enquanto seu parceiro de jogo, o

narrador, retraduz essa realidade transformada e apropriada. Com Don Quijote,

o fictício da ficção se converte pela primeira vez em tema. O romance, como

forma narrativa dirigida para a leitura, se transforma em horizonte da própria

vida. Com isso, porém, a mistura de ficção e vida pode-se tornar em tema de

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Page 46: Stierle a Ficção

uma ficção de segundo grau, que faz do lugar da ficção na própria vida objeto de

uma ficção. O espelhamento da ficção em si mesma é deste modo tão

intensificado que Cervantes, assim como Ariosto, joga com a multiplicidade das

instâncias narrativas, as quais, em vez de garantir o relato, fazem com que este

se eclipse na incerteza de sua origem. A versão textual definitiva mostra-se por

fim como a sedimentação de camadas narrativas sempre hipotéticas. Assim o

autor Cervantes concede a palavra a um narrador, que se refere à tradução de

uma acadêmico, que traduz o texto arábico original de Sidi Hamid Ben Geli, por

efeito de que remete à incerteza as instâncias narrativas confundidas. A ficção

se torna multificção e, assim, supera o romance de Ariosto, à medida que ainda

a antificção faz parte da ficção.

Na primeira conversa, entre o cura da aldeia e o barbeiro sobre as

conseqüências funestas da leitura de romances, depois da primeira louca

escapada do Quixote, poucas obras da biblioteca do protagonista escapam das

chamas; entre estas, além do Amadis e do Orlando innamorato, de Boiardo, está

o Orlando furioso, de Ariosto. Em sua descrição, Cervantes emprega a metáfora

da tela, que Ariosto usara pela primeira vez a propósito de sua engenhosa

ficção: “Mateo Boyardo, de donde también tejió su tela el cristiano poeta

Ludovico Ariosto”. No segundo diálogo sobre o romance, entre o cura e o

cônego, enquanto acompanham o infeliz Quixote à casa, põe-se de novo em

questão a legitimidade do romance. Depois que o cura contou ao cônego,

enquanto cavalgam, toda a história do infeliz Quixote, a conversa se volta para

os romances, que são a causa da desgraça do protagonista. O cônego, que,

ainda no tempo da impressão de livros, sucumbe ao vício da leitura de

romances, explica porque, não obstante sua mania, não consegue lê-los do

começo ao fim: “Todos ellos son una misma cosa”. As partes do romance tanto

se assemelham que os romances, no todo, são permutáveis. As maravilhas

mecânicas do romance se assemelham às fábulas milésicas: “Y según a mí me

parece, este género de escritura y composición cae debajo de aquel de las

fábulas que llaman milesias”. Sua arbitrariedade interna parece promover uma

forma ilegítima e anárquica de prazer na leitura, que tanto contradizia a fórmula

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Page 47: Stierle a Ficção

horaciana do prodesse et delectare, quanto contrariava a estética classicista do

conjunto uno, que será a seguir desenvolvida, com cerrado apoio em Aristóteles.

O excesso do maravilhoso que os romances, sem se preocuparem com as

necessidades composicionais, impulsionam, justificava-se intencionalmente

como camadas conscientes de mentiras. O cônego, porém, objeta com

seriedade que as mentiras são tanto mais dominantes quanto mais se mostram

verossímeis. A história inventada deve corresponder às expectativas racionais

do leitor de modo a manter sua surpresa em suspenso, mas não em excesso,

assim ligando a surpresa com o prazer identificatório. Isso, no entanto, só é

possível pela articulação dos dois princípios aristotélicos da imitação e da

verossimilhança: “No he visto ningún libro de caballerías que haga un cuerpo de

fábula entero con todos sus miembros, de manera que el medio corresponda al

principio, y el fin al principio y al medio; sino que los componen con tantos

miembros, que más parece que llevan intención a formar una quimera o un

monstruo que a hacer una figura proporcionada”. A essa busca de pôr o

romance sob o controle aristotélico de uma perspectiva estético-recepcional, o

cônego porém acrescenta, depois de uma curta intervenção do cura, uma outra

perspectiva: quanto mais dificultosa é a leitura do romance, tanto mais

prazenteira é a sua produção. A liberdade de quem escreve, consciente da pura

ficcionalidade e que dela dispõe, cria o prazer da liberação produtiva do

imaginário. O romancista dispõe no imaginário de um mundo a que outorga uma

forma escrita e configurações. Na perspectiva da produção, a estreita ligação

com Aristóteles é relativizada. O romancista como sujeito da ficção toma a

liberdade de dispor de um mundo em vista da variedade e, ao mesmo tempo, de

mudar seus papéis: “Ya puede mostrarse astrólogo, ya cosmógrafo excelente, ya

músico, ya inteligente en las materias de estado, y tal vez le vendrá ocasión de

mostrarse nigromante, si quisiere”. Nasce deste modo a visão de um tipo de

romance filiado ao espírito de Ariosto, que pouco tem em comum com

Aristóteles, mas que sim antecipa o programa do romance como paradigma de

uma “poesia universal progressiva” e romântica, no sentido de Friedrich

Schlegel: “Y siendo esto hecho con apacibilidad de estilo y con ingeniosa

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Page 48: Stierle a Ficção

invención, que tire lo más que fuere a la verdad, sin duda compondrá una tela de

varios y hermosos lazos tejida, que después de acabada, tal perfeción y

hermosura muestre, que consiga el fin mejor que se pretende en los escritos,

que es enseñar y deleitar juntamente, como ya tengo dicho. Porque la escritura

desatada destos libros da lugar a que el autor pueda mostrarse épico, lírico,

cómico, con todas aquellas partes que encierran en sí las dulcísimas y

agradables ciencias de la poesía y de la oratoria; que la épica también puede

escribirse en prosa como en verso”. Como em Ariosto, mostra-se aqui, de novo,

o romance sob a imagem da tela. Só no capítulo seguinte, o cônego manifesta

que fala da própria experiência. Já escrevera centenas de folhas de um novo

romance, mas não fora adiante porque temia que o leitor comum devorasse seu

romance como um dos triviais romances de cavalaria e o número dos leitores

capazes de apreciar a obra de arte da ficção decrescesse.

Só o próprio Cervantes consegue com seu Don Quijote cativar igualmente o

leitor comum e o perito, mas não ensinar o leitor dos romances de cavalaria,

industrialmente fabricados, para que, ao menos conjunturalmente, o convertesse

em um novo leitor esclarecido, que não perdesse de vista a ficcionalidade da

ficção.

O romance novo de Cervantes transmitiu ao século XVII o conceito de uma

ficção que se infiltra pela vida, que devia se tornar em tema do romance, como

em L’Anti-roman (1633), de Charles Sorel ou no Roman bourgeois (1666), de

Antoine Furetière. O “romanesque”, particularmente no padrão de conduta

enaltecido pelo romance heróico-galante, se converte, ao entrar na vida

corrente, em uma experiência conflitiva, que pode outra vez se tornar tema do

romance ou do anti-romance. “J’écris romanesquement sur le bord de la rivière

où est située notre hôtelerie” [“Escrevo romanescamente à margem do rio em

que se situa nossa hospedaria]”25, escreve Madame de Sévigné à sua amiga

Françoise-Marguerite de Grignan. Também da França procede o tratado mais

erudito e diferenciado sobre o romance no século XVII, o Traité de l’origine des

romans (1670), do bispo de Avranches, Pierre Daniel Huet. Em Huet, o romance 25 Madame de sévigné a Françoise-Marguerite de Grignan (9.5.1680), in de Sévigné: Lettres, G. Gailly (ed.), vol. 2 (Paris, 1960), p. 695.

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Page 49: Stierle a Ficção

é explicitamente equiparado à ficção: “Ce qu’on appelle proprement Romans

sont des fictions d’aventures amoureuses, écrites en Prose avec art, pour le

plaisir et instruction des Lecteurs. Je dis des fictions, pour les distinguer des

Histoires véritables”26.Por outro lado, o romance agora se opõe à épica, em sua

forma clássica. No romance, domina a livre descoberta, ao passo que na épica o

fictício permanece submetido ao elemento histórico. Como forma, o romance

satisfaz uma tendência antropológica: “Cette inclination aux fables, qui est

commune à tous les hommes, ne leur vient pas par raisonnement, par imitation

ou par coustume: elle leur est naturelle, et à son amorce dans la disposition

meme de leur esprit, et de leur ame”27 [“Esta inclinação para as fábulas, que é

comum a todos os homens, não lhes vem por raciocínio, por imitação ou pelo

costume: lhes é natural e à sua atração na própria disposição de seu espírito e

de sua alma”]. Apesar do que, no sistema de gêneros do século clássico, o

romance tem uma significação secundária. Na Ars poétique (1674), de Boileau,

que se tornou o manifesto poetológico da época clássica, o romance não

merecia nenhuma atenção. Boileau fala do “art confus de nos vieux Romanciers” 28 e o opõe à nova arte poética de Villon. O romance heróico-galante, ainda

moderno na França, é apenas criticamente apontado e rechaçada sua influência

no teatro moderno. Enquanto o romance tem a liberdade de continuar a se

mover, sem regras, em todas as direções – “Dans un roman frivole aisément tout

s’excuse. / C’est assez qu’un moment la fiction s’amuse29 [“Em uma romance

frívolo tudo se desculpa / É suficiente que por um momento a ficção divirta]”– a

tragédia, o paradigma do clássico francês, tem sua construção submetida a uma

estrita economia: “Mais la scène demande une exacte raison” [“Mas a cena exige

uma razão exata” (idem)]. Para Boileau, partidário dos antigos, a épica é o

paradigma próprio da “noble fiction”: “La poésie épique, / Dans le vaste récit

d’une longue action, / Se soutient par la fable, et vit de fiction” (ibidem)]. À

diferença do romance, a épica é definida, segundo a Poética de Aristóteles, por 26 Pierre Daniel Huet, Traité de l’origine des romans (1670)27 Jean de la Fontaine, Fables (1688), in La Fontaine, Oeuvres completes, J.-P. Collinet (ed.), vol. 1 (Paris, 1991), p. 105.28 Nicolas Boileau, Art poétique (1674), J.-P. Collinet (ed.), (Paris, 1985), p. 230.29 Cf.Boileau, Dialoque des héros de roman (1688), in Boileau, op. cit., pp. 441-489.

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Page 50: Stierle a Ficção

uma ação una, que se desdobra artisticamente, a que se chama fable. Como

estrutura narrativa artística, a fábula, comparável à conjointure de Chrétien,

sustenta a continuação dos acontecimentos nunca isolados. A fiction aqui

descreve, ao contrário, a totalidade do meio, que dá ao abstrato a imediatidade

da contemplação, antes de tudo, porém, ao aparato mitológico, já vivificado pela

épica antiga. O épico deve não só narrar por uma construção cuidadosa mas

ainda orná-la, elevá-la retoricamente, ilustrá-la e intensificar a tonalidade do que

apresenta: “Ainsi dans cet amas de nobles fictions / Le poète s’egaye en mille

inventions [“Assim neste acúmulo de nobres ficções / O poeta se diverte em mil

invenções” (ib.)]. Expressamente, a épica cristã inaugurada por Tasso é

excluída, pois traz o perigo de estetizar a verdade da crença: “Et de vos fictions

le mélange coupable / Même à ses vérités donne l’air de la fable” [“E a mistura

culpada de vossas ficções / Dá um ar de fábula mesmo às suas verdades” (ib.)].

Que a fábula da épica, deva ser, apesar de sua unidade, diversa – “De figures

sans nombre égayez votre ouvrage” [“Alegrai vossa obra de inúmeras figuras”

(ib.)] – leva, com certa surpresa, de volta a Ariosto: “J’aime mieux Arioste, et ses

fables comiques, / Que ces auteurs toujours froids et mélancoliques” [Prefiro

Ariosto e suas fábulas cômicas, / Do que estes autores sempre frios e

melancólicos” (ib.)]. Homero permanece, no entanto, o mestre inexcedível da

épica, que ou se vota a divagações ou segue um longo “ordre méthodique” (ib.).

Boileau recusa o romance como forma legítima de ficção. Mas sua vontade de

uma nova épica, a partir do espírito da antiga, não se cumpre. Sua esperança no

renascimento da épica contra o romance termina em um beco sem saída. Poeta

algum achou-se capaz de fazer aquilo a que o próprio Boileau não se sentia

convocado: festejar numa épica os feitos heróicos de Luís XIV.

Enquanto a teoria da ficção de Boileau leva o controle do imaginário ao ponto

de não restar à produtividade do imaginário nenhum espaço mais, um outro

defensor dos antigos, o fabulista Jean de la Fontaine, na fábula programática de

introdução ao Livro 3 de suas Fables (1668), contrapõe àquela a concepção de

uma ficção da fábula, mantida em limites fixados, em que se conserva a primazia

dos antigos e que, no entanto, abre um campo imprevisível de produtividade

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Page 51: Stierle a Ficção

própria: “L’invention des arts étant un droit d’aînesse, / Nous devons l’apologue à

l’ancienne Grèce. / Mais ce champ ne se peut tellement moissoner / Que les

derniers venus n’y trouvent à glaner. / La feinte est un pays pleins de terres

désertes: / Tous les jours nos auteurs y font des découvertes [“Sendo a invenção

das artes um direito de primogenitura, / Devemos louvar a Grécia antiga. / Mas

não se pode segar este campo ? Que os pósteros aí não encontrem o que

recolher. / O fictício é um país cheio de terras desertas: / Todos os dias nossos

autores aí fazem descobertas” (La Fontaine, J. de: Fables, 1668)].

Assim como La Rochefoucauld [Réflexions ou sentences et maximes morales

(1665)], fizera do amor próprio o próprio princípio secreto da inquietude, que

opera incessantemente na bela tela de seus próprios enganos, de modo que o

moralista se revela como descobridor das “terres inconnues” que se projetam

nas figuras da bela aparência – “Quelque découverte que l’on faite dans le pays

de l’amour-propre, il y reste encore bien des terres inconnues” (Maximes, nº 3)] -,

assim também La Fontaine recorre à imagem atual das terrae incognitae para

dar à ficção um novo espaço para suas descobertas. Na verdade, o fabulista

procura neste espaço apenas a justificação para a sua nova forma da fábula

poética. No entanto, por detrás aparece todo um horizonte de possibilidades de

uma dinâmica da ficção.

De outro modo, o conceito de ficção ganha uma nova relevância no contexto do

discurso filosófico. O trabalho da vida de Descartes se dirige ao alcance de um

novo fundamento para uma filosofia certa, a que não mais atingisse o ceticismo

de Montaigne, e cuja objetividade não obstante se erigisse sobre o fundamento

inarredável da autoconsciência, do “je pense donc je suis” [Discours de la

méthode (1637)]. Descartes é obsedado pela suspeita dos equívocos em nosso

caminho pelo mundo. As “fictions de mon esprit” não são, para Descartes,

realizações produtivas da consciência humana, que vão além do dado, mas sim

fantasmas vazios de uma razão ociosa, cujas emanações não podem requerer

algum direito próprio. Na dúvida radical, Descartes opõe sua negação às

“fictions de mon esprit”: “Je suppose donc que toutes les choses que je vois sont

fausses; je me persuade que rien n’a jamais été de tout ce que ma mémoire

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Page 52: Stierle a Ficção

remplie de mensonges me représente; je pense n’avoir aucun sens, je crois que

le corps, la figure, l’étendue, le mouvement et le lieu ne sont que des fictions de

mon esprit”30 [“Suponho portanto que todas as coisas que vejo são falsas;

persuado-me de que nada jamais foi do que minha memória repleta de mentiras

me representa; penso não ter sentido algum, creio que o corpo, a figura, a

extensão, o movimento e o lugar não passam de ficções de meu espírito”]. Mais

opressora ainda é a representação; o próprio mundo poderia ser concebido

como obra de um mauvais génie, de modo que o ofuscamento geral seria dele

inseparável. O genius malignus, cuja essência poderia ser vista no Júpiter do

Amphitryo de Plauto, seria um deus da ficção, mas, ao mesmo tempo, um deus

cujas realizações só fomentam em uma contracriação fictícia, que deveria sofrer

de uma invalidade radical. Só a refutação do deus malignus como princípio

negativo da criatividade de fato criadora, realiza a pressuposto de uma

sobriedade epistemológica, que opõe irremediavelmente a verdade à mentira, só

a ficção deixando-se fundar na maquinação combinatória vazia da mentira.

A filosofia de G. W. Leibniz aplica e converte o deus benignum de Descartes

em criador do “melhor de todos os mundos”, que deveria atrair a burla

involuntária de Voltaire. “Il suit de la Perfection Supreme de Dieu, qu’en

produisant l’Univers il y choisi le meilleur Plan possible où il y ait la plus grande

variété avec le plus grand ordre” [“Ele decorre da Perfeição Suprema de Deus

que, produzindo o universo, aí escolheu o melhor plano possível, em que há a

maior variedade com a maior ordem” (Leibniz, G. W.: Principes de la nature et de

la grace fondés en Raison, 1714)]. Leibniz, no entanto, não só dá um realce

enfático à compreensão cartesiana de Deus como busca remediar o abismo

hiante entre res extensa e res cogitans de Descartes, à medida que, em uma

especulação metafísica ousada, reconcilia espírito e matéria, à própria matéria

correspondendo uma consciência, que permite as graduações infinitas e, nas

unidades concretas, deixa que se atualize o pressentimento do todo infinito.

Como Descartes, embora por razão diferente, Leibniz não concede ao fim último

da arte e da ficção um lugar sistemático. O melhor de todos os mundos é, como 30 René Descartes, Méditations (1641), in Descartes, Oeuvres philosophiques, F. Alquié (ed.), vol. 2 (Paris, 1967), p. 415.

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Page 53: Stierle a Ficção

tal, também esteticamente perfeito e não tem espaço para a concorrência

estética. Leibniz podia entretanto preparar um lugar vazio da arte possível. Pois

não só sua idéia do melhor de todos os mundos dá uma idéia concreta do que a

obra, segundo sua concepção estética, deveria ser, como abre a possibilidade

da arte “como silhueta do infinito”31, comporte o acesso àquela estrutura de uma

totalidade em si infinitamente escalonada e refletida, de que a consciência

humana pode ter uma imagem na ficção.

VI. A pluralidade das ficções

O século XVIII, em que se originou o conceito de estética, é também o século

em que se desenvolveu o conceito de ficção, presente desde os antigos. A

história do conceito de ficção conhece na época do Iluminismo um impulso

reflexivo, que, ao mesmo tempo, provoca a diversificação dos conceitos de

ficção coexistentes. Ressaltam deste modo as três raízes do antigo conceito de

ficção: a ficção como forma criada, a ficção que oculta seu trabalho produtivo e

se converte em engano, a ficção, que reune em si forma e imagem de engodo e,

além da alternativa entre verdadeiro e falso, se afirma em seu direito próprio.

Como fictor, como criador de mundos, o deus desconhecido, que deu sua

forma ao caos, é festejado, no Livro I das Metamorfoses. Na Oratio de hominis

dignitate (1486), Pico della Mirandola faz com que o “summus pater archictetus

Deus” dirija-se ao próprio homem. Como produto tardio da criação, o homem

chega a um mundo em que os dons divinos já foram distribuídos. Mesmo por

isso lhe é concedido fazer da falta um benefício infinito. “Nec te caelestem neque

terrenum, neque mortalem neque immortalem fecimus, ut tui ipsius quasi

arbitrarius honorariusque plastes et fictor, in quam malueris tute formam effigas”

[“Fizemos-te nem celestial, nem terreno, nem mortal nem imortal, de modo que,

com liberdade de escolha e honra, como se criador e modelador de ti mesmo,

possas te traçar a ti mesmo, na forma que prefiras” (Oratio, # 3)]. Criado por

Deus, o homem é posto como modelador de sua própria ilimitada nobreza. 31 Gotthold Ephraim Lessing,Hamburgische Dramaturgie (1767-1768(, parte 79ª, in Lessing (Göpfert), vol. 4 (1973), p. 598.

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Page 54: Stierle a Ficção

Historicamente, o tipo de tal autocriação é materializado por Francesco Petrarca,

que deveria ser nomeado como o primeiro “fictor et plastes sui ipsius” e que

Pico, com certeza, tinha em mente. Mas antes dele, em mais longa distância,

aparece a forma do Ulisses de Dante, que, com ânimo audaz, converte em

autodeterminação o projeto inaudito de sua vida. Também Erasmo sustenta

essa concepção: “Homines non nascuntur sed finguntur”32. Mas a modelagem

aqui significa ainda a disposição pedagógica, que primeiro converte os homens

em humanos. Em Pico, a automodelagem do homem, sua partida para o

encontro de suas possibilidades, está no centro. Em sua “Apologie de Raimond

Sebond”, Montaigne refere que o fingere não é apenas uma liberdade mas

possa ser uma carga: “Qu’y a-t-il de plus malhereux que l’homme esclave de ses

fictions?” (Essais, II, XII). Também se mostra uma forma negativa da auto-

revelação quando, em La Rochefoucauld, o amour propre se converte no artista

inconsciente da ficção do eu descobridor.

O argumento de Pico alcança uma nova qualidade na Scienza nuova (1725,

1730, ed. revista em 1744) de Giambattista Vico. Já Bernard de Fontenelle, em

seu ensaio “De l’origine des fables” (1724), não mais via o erro humano

simplesmente em sua negatividade como desvio da verdade, mas sim como

tendo aberto uma perspectiva historicamente dinâmica. Os mitos do início e

ainda os mitos dos gregos são, na verdade, por um lado, na visão de Fontenelle,

expressão da ignorância bárbara. Mesmo se aquele que um dia descobriu os

mitos tenha escondido um grão de verdade, este se perdeu por completo pela

transmissão boca a boca. No entanto, para Fontenelle o mais espantoso é que,

com as fábulas, também tenha nascido o espírito da filosofia. De fato, as fábulas

são respostas insensatas, mas respostas a perguntas inteligentes, em que pela

primeira vez se acende a curiosidade da filosofia e da ciência. “Il est assez

curieux de voir comment l’imagination humaine a enfanté de fausses Divinités [“É

muito curioso ver como a imaginação humana concebeu falsas divindades” (“De

l’origine des fables”, 1724]. A imaginação pariu o assombro diante do mundo e

32 Erasmus, Opera omnia, vol. 1 (Leiden, 1703), p. 493s; cf. Winfried Wehle, “Der Tod, das Leben und dieKunst”, in A. Borst/G. v. Graevenitz/A. Patschovsky/K. Stierle (eds.), Tod im Mittelalter (Konstanz, 1993), p. 243.

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Page 55: Stierle a Ficção

as fábulas, em que sempre podemos surpreender os primeiros espantos diante

do mundo. Com a descoberta da escrita, foi simetricamente posto o fundamento

para a ampliação geral das fábulas, assim como para a sua superação crítica,

em um processo bastante lento mas irreversível.

Vico põe a compreensão das fábulas e dos mitos e, desta maneira, ao mesmo

tempo a compreensão das primeiras culturas humanas em uma posição de

base, à medida que, contra Descartes e em concordância apenas parcial com

Fontenelle, radicaliza o ponto de vista da historicidade da cultura humana. Em

seu primeiro livro, De antiquissima Italorum sapientia ex linguae latina originibus

eruenda (1710), encontra-se o enunciado fundamental da “inversão de todos os

valores”: “Latinis verum et factum reciprocantur, seu, ut scholarum vulgus

loquitur, convertuntur”33 [“Em latim, o verdadeiro e o sucedido são recíprocos

entre si ou, como continuamente dizem os eruditos, são convertíveis”]. A partir

dessa determinação a princípio estabelecida por uma suposição apenas

etimológica se conformam as conseqüências extensas para a compreensão dos

“fatos” especificamente humanos. Tudo que é produzido pelo espírito humano

tem primazia para a compreensão do espírito humano, porque este, por assim

dizer, aí se apresenta a si próprio. Indo adiante de sua justeza etimológica, a

frase verum et factum convertuntur servia de fundamento para outra

equivalência, que poderia ser assim expressa: “factum et fictum convertuntur”.

Que Vico não tenha formulado essa conseqüência fundamental, que é

igualmente evidente pela história da língua, pode-se relacionar com as

conseqüências da suspeita que cerca a ficção, no contexto da compreensão

cristã de mundo, renovadas pela concepção cartesiana das “fictions de mon

esprit”. A Scienza nuova, de novo, desenvolve o enunciado de De antiquissima

Italorum sapientia em uma grande antropologia das primeiras culturas humanas,

em que a fantasia e a ficção alcançam, pela primeira vez, seu direito positivo e

sem restrições. Também aqui é a curiosidade humana que põe em marcha o

33 Giambattista Vico, De antiquissima Italorum sapientia ex linguae latinae originibus eruenda libre tres (1710), in Vico, Opere, vol. 1 (Neapoles, 1858), p. 71; cf. Ferdinand Fellmann, Das Vico-Axiom. Der Mensch macht die Geschichte (Freiburg/Munique, 1976).

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Page 56: Stierle a Ficção

jogo da fantasia, que, de sua parte, traz o espírito para a via da racionalidade.

Lê-se no 39º princípio da Seconda scienza nuova: “La Curiosità, proprietà

conaturale dell’uomo, figliola della ignoranza, che partorisce la Scienza all’aprire

che fa della nostra mente la Maraviglia, porta questo costume, ch’ove osserva

straordinario effeto in natura, come cometa, parelio o stella di mezzodì, subito

domanda, che tal cosa voglia dire o significare [“A curiosidade, aquela

propriedade inata do homem, filha da ignorância, que pare a ciência, ao abrir

nossa mente para a maravilha, tem o hábito, onde quem que veja algum

fenômeno extraordinário da natureza, como um cometa, um parélio ou uma

estrela do meio-dia, de perguntar-se de imediato o que tal coisa pode querer

dizer” (Principii di Scienza nuova, I, II, XXXIX)]. Isso parece bastante próximo de

Fontenelle, mas com uma diferença decisiva: ao passo que em Fontenelle a

pergunta racional é respondida irrazoavelmente pelo mito, porque ele indaga a

partir de um fenômeno surpreendente e para isso conta uma história, em Vico a

pergunta se dirige ao significado e à referência sígnica. No horizonte do saber

dos primeiros tempos, o mundo se mostra numa forma poética, ou seja, humana.

Ao mesmo tempo, porém, a própria forma humana é trabalhada e intensificada

poeticamente. O galardão dos heróis das primeiras lembranças coletivas, a sua

dignità, provoca seu realce fabular, que, no entanto, se articula à sua verdade:

“Questa Degnità a proposito delle Favole si conferma dal costume ch’ha il Volgo,

il quale degli uomini nell’una o nell’altra parte famosi, posti in tali o tali

circonstanza per ciò che loro tale stato conviene, ne finge acconce favole, le

quali sono verità d’idea in conformità del merito di coloro de’ quali il volgo le

finge; e in tanto sono false talor in fatti, in quanto al merito di quelli non sia dato

ciò che essi son degni: talchè, se bene si rifletta, il Vero Poetico è un livro

Metafisico, a petto del quale il Vero Fisico, che non vi si conforma, dee tenersi a

luogo di Falso” [“Este axioma, aplicado às fábulas, é confirmado pelo costume

que tem o povo comum ao criar fábulas de homens famosos por isso ou aquilo e

postos nestas ou naquelas circunstâncias em fazer a fábula ajustar o caráter e a

condição. Essas fábulas são verdades segundo a idéia, adequadas ao mérito

daqueles em quem o povo comum as encontra; e, enquanto são falsas como

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Page 57: Stierle a Ficção

fatos, são falsas apenas na medida em que não é reconhecido o mérito

daqueles que o têm. De modo que, se consideramos bem a matéria, a verdade

poética é verdade metafísica e a verdade física que a ela não se conforma, deve

ser considerada falsa”] (Principii, I, II, XLVII). Nunca antes fora ousada

semelhante dialética, que converte o fictum no solo do verum e o verum remete

ao falsum. Do fundamento deste princípio, Vico chega à intuição genial de que o

grande poeta da Grécia, Homero, o grande inventor da fábula na Grécia, era

uma invenção fabular coletiva, em que a Grécia dos primeiros tempos se via a si

mesma, poeticamente: “ (…) Un’ Idea o vero un Carattere Eroico d’uomini greci,

in quanto essi narravano cantando le loro storie [“(Que este Homero) fosse uma

idéia ou um caráter heróico dos homens gregos, pois esses narravam, cantando,

as suas histórias” (Principii, III, II)]. Homero é, ao mesmo tempo, a essência de

toda a ciência poética, de todas as instituições, da linguagem ao direito, em que

os homens apontam para si mesmos e se liberam, em suas ficções ou facções,

de sua origem natural.

Também a teoria da cultura de Rousseau se origina de uma pergunta

penetrante e tormentosa pela articulação estrutural das formas do espírito

objetivo, implantou no mundo natural um mundo humano. Assim como para Pico

e, depois dele, para Vico, também para Rousseau o homem é um“plastes et

fictor sui ipsius”, que compensa a falta de seu aparato instintivo por sua ação

livre da execução instintiva. O segundo discurso de Rousseau Sur l’origine de

l’inégalité (1755) concebe a diferença originária mínima entre o homem e o

animal por uma negatividade, que se converte no momento impulsor da

diferença irreversível e crescente entre natureza e cultura. O homem inventa

suplementos para a falta e, deste modo, supera infinitamente a própria carência.

A linguagem se converte em possibilidade de dar realidade ao não-real. A

própria linguagem é ficção, condiciona novas ficções objetivas. Entre estas, à

propriedade corresponde uma significação central. Rousseau imagina o primeiro

homem, que traça um círculo simbólico em torno de um pedaço de terra e cria

verbalmente uma nova realidade: “Ceci est à moi” (Sur l’origine et les

fondements de l’inégalité parmi les hommes (1755)]. A frase primariamente há

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de ser lida em sua negatividade originária: “Ceci n’est pas à vous” (“Isso não é

seu”). A propriedade é uma quimera objetiva, que, no entanto, como Rousseau

demonstra no Émile (1762), se transforma no fundamento da sociedade

burguesa. Ser irreversível a ruptura entre natureza e cultura significa que a

dinâmica da cultura aumenta irreparavelmente a diferença. Como, entretanto, o

homem concreto nunca deixa de ser homme naturel, experimenta ele o conflito

entre homme naturel e citoyen, que lhe empresta a identidade quebrada do

sujeito como consciência infeliz. Como uma produção desta consciência, o

imaginário ligado na ficção atinge uma nova qualidade. O romance é o lugar em

que esta experiência fundamentalmente se exprime. Na condição de ficção, o

romance é um mito da consciência moderna, que, simultaneamente, expõe a

ambigüidade, entre ganho e perda, do valor da cultura. Pois a liberdade, que a

saída da natureza concede ao homem, está sempre em risco de se tornar em

coerção social, que converte o avanço em impropriedade e, principalmente, o

ganho da autonomia cultural é sempre uma perda na confiança e na segurança

do mundo natural. Enquanto que, para Vico, a compreensão poética de mundo

pertence às primeiras culturas e é superada na época da plena racionalidade,

para Rousseau, a modernidade, com seu centro em Paris, é o lugar de um

imaginário, em que se origina a contradição entre cultura e natureza. A

experiência do negativo aqui retorna, a partir de um novo plano de reflexão. No

entanto só a divisão no sujeito é a condição do estímulo à consciência, que

impulsiona o imaginário a formas de máxima intensidade. A tese, apoditicamente

aguçada de Jacques Derrida a propósito da teoria da escrita contida na obra de

Rousseau: “Il n’y a pas de hors-texte”34, se perde no vazio porque tal tese

desconhece a combinação entre a linguagem como ficção e a ação verbal como

postulado de uma ficção social verbalmente mediada, que, ao mesmo tempo, é

uma nova realidade social. Que a língua não possa fundar uma “presença

natural” não significa que não possa instituir a presença social. A desconstrução

chega atrasada quando quer desmascarar uma ficção verbal que, mesmo

enquanto ficção, apenas contivesse sua realidade.

34 Jacques Derrida, De la grammatologie (Paris, 1967), p. 227

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Page 59: Stierle a Ficção

A Nouvelle Héloïse (1761), de Rousseau, é o romance da conciência

romanesca, originado da contradição no sujeito entre a pressão da ordem

burguesa e a espontaneidade “natural” da sensibilidade. Nos dois prefácios,

romance e ficção entram em uma ligação tão estreita que o romance de fato se

mostra como a ficção da consciência moderna, que, em sua desunião,

necessariamente há de ser uma consciência romanesca, mesmo se busca

desvincular-se de sua assinatura histórica. “Il faut des spectacles dans les

grandes villes, et des Romans aux peuples corrompus” (“As grandes cidades

precisam de espetáculos e os povos corrompidos, de romances”). A própria

Nouvelle Héloïse é uma ficção que serve à consciência falsa ou procura

converter essa consciência falsa em objeto de uma metaficção ou de um anti-

romance? Rousseau joga com o qüiproquó do romance e sua encenação anti-

romanesca: “Ai-je fait le tout, la correspondance entière est-elle une fiction?

Gens du monde, que vous importe? C’est sûrtout une fiction pour vous” (Fiz

tudo, toda a correspondência é uma ficção? Pessoas do mundo, que lhes

importa? Para vocês, é sobretudo uma ficção”). Rousseau pretende que o

“editor” apresente verossimilmente as condições do espírito romanesco. Seus

jovens correspondentes são “presque des enfants qui, dans leur imagination

romanesque, prennent pour de la philosophie les honnêtes délires de leur

cerveau” (“quase crianças que, em sua imaginação romanesca, tomam por

filosofia os honestos delírios de seu cérebro”). Mas não é o mundo que se opõe

à sua imaginação subjetiva, não é ele próprio o resultado de ficções

sedimentadas? Pode-se evadir da lei estrutural do sujeito, posta entre homme

naturel e citoyen? Julie antes se descarta das tensões insuportáveis de sua vida,

a correr entre a paixão e o dever, e confessa, em sua última carta a Saint-Preux:

“Le pays des chimères est en ce monde le seul digne d’être habité, et tel est le

néant des choses humaines, que hors l’Etre existant par lui-même, il n’y a rien de

beau que ce qui n’est pas” [“O país das quimeras é, neste mundo, o único digno

de ser habitado e tal é o nada das coisas humanas que, fora do Ser existente

por si mesmo, nada há de belo senão o que não é” (La Nouvelle Héloïse, sexta

parte, VIII, carta VIII, 687)]. No entanto, não é a ficção, desde o começo, a única

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realidade que pode pôr a salvo o homem emancipado da natureza? Acrescente-

se apenas que, no realce do imaginário, a ficção ganha uma intensidade que

seria impensável sem a estrutura da consciência moderna. Para Vico, o

imaginário e sua ficção estão no começo do desenvolvimento das culturas dos

novos tempos. Para Rousseau, a ficção, como uma disposição universal

progressiva do homem, está no fim, onde se origina a forma mais intensiva do

fictício, a partir do espírito de alienação.

Rousseau se apresentara, em suas Confessions (publicação póstuma: 1781-

1788), como um leitor obstinado de romances, que caiu no vício do suplemento

imaginário já no início da juventude e a que permaneceu fiel em sua vida. Já a

criança, que perdera cedo a mãe, lia com o pai, da biblioteca que ela deixara,

um romance atrás do outro. As paixões despertadas pela leitura “me donnèrent

de la vie humaine des notions bizarres et romanesques, dont l’expérience et la

réflexion n’ont jamais bien pu me guérir” [“me deram da vida humana noções

bizarras e romanescas, de que a experiência e a reflexão jamais puderam me

curar” (Les Confessions: 1781-1788, I, 8]. A intensidade das emoções e dos

desejos de sorte não mais admitem nenhuma pacificação na realidade e

impulsiona ao mundo das “douces chimères”. Também a grande autobiografia

de Rousseau é dominada por um espírito romanesco, que reproduz a principal

negatividade do aparato humano e sua compensação sob novos pressupostos

subjetivos. As Confessions como auto-apresentação, [impregnadas na “Dichtung

und Wahrheit” (“poesia e vida”) goethiana], são como este momento de um

projeto de vida “fictício”, em que se objetiva um novo “plastes et fictor sui ipsius”.

Pode assim Rousseau, nos Rêveries d’un promeneur solitaire (póstumo: 1782),

lembrar-se de sua última auto-reflexão, oscilante entre o desespero e a

felicidade, com os olhos postos na ilha de Pedro, onde ficção e realidade se

fundiam em uma nova realidade: “laissant errer mes yeux au loin sur les

romanesques rivages qui bordoient une vaste étendue d’eau claire et cristalline,

j’assimilois à mes fictions tous ces aimables objets et me trouvant enfin ramené

par degrés à moi-même et à ce qui m’entourait, je ne pouvais marquer le point

de séparation des fictions aux réalités” [“deixando meus olhos errar ao longe,

60

Page 61: Stierle a Ficção

sobre as margens romanescas que orlavam uma vasta extensão de água clara e

cristalina, assimilava às minhas ficções todos esses amáveis objetos e me

encontrando por fim reconduzido por graus a mim mesmo e ao que me envolvia,

não podia marcar a separação entre as ficções e as realidades” (Rêveries d’un

promeneur solitaire: 1782, cinquième promenade, 1048)].

A autocriação como fictio é, em Rousseau, sempre e ao mesmo tempo

autoperda e autoganho, a saída do homem da natureza é, simultaneamente,

liberdade e opressão. Está aí a ambigüidade radical da teoria da cultura em

Rousseau, que se recusa a qualquer univocidade. A máxima intensificação

dessa ambigüidade radical e insolúvel é o eu, que, ao sair da sociedade, chega

a si mesmo e cuja autoperda e autoganho como unidade do état romanesque

significa o auge da autocriação original do homem. No “Prometheus” (escrito em

1774), de Goethe, o eu em pedaços de Rousseau se transforma no semideus,

que, em gesto triunfal, festeja a si próprio e que, como fictor et plastes sui ipsius,

criará o homem segundo sua imagem e negocia com a liberdade em se formar a

si próprio ou em fingir: “Hier sitz’ ich, forme Menschen / Nach meinem Bilde, / Ein

Geschlecht, das mir gleich sei” [“Aqui me sento, formo o homem / Segundo

minha imagem, / Que logo é meu igual” (in Frühe Gedichte)].

Quando Nietzsche renova o mundo como fábula ou o descobre como ficção,

põe-se na seqüência de Vico e Rousseau, cujos nomes desconhece.

A teoria de Leibniz do melhor de todos os mundos, que, em princípio, supera

qualquer ficção do mundo, é o ponto de partida de um caminho especificamente

alemão para uma teoria da ficção e é a base do que será chamado por

Baumgarten de “Estética”.

A facultas fingendi converter-se-á pela primeira vez em tema de um tratamento

filosófico regrado na Psychologia empirica (1732), de Christian Wolff, que

antecipa a consideração da imaginatio como vis imaginationis (força da

imaginação). Não parece improcedente que Wolff tenha para isso se inspirado

na primeira grande reabilitação da imaginação, em Della perfetta poesia (1706),

de Muratori. Em seu livro, Muratori opunha ao rigorismo dos classicistas

franceses, especialmente de Bouhours, o direito poético próprio da imaginação

61

Page 62: Stierle a Ficção

e, assim, simultaneamente, caracterizava uma tradição poética especificamente

italiana35. As idéias de Wolff sobre a imaginação e a ficção concernem à

faculdade de conhecimento inferior, ou seja sensível, que recebia, através de

Leibniz, um novo status teórico. A alma é capaz de reproduzir uma impressão

sensível também da ausência do objeto que provoca aquela impressão. A

imagem atual do ausente é um phantasma. Se imaginatio significa a faculdade

de manter presente uma imagem de coisas ausentes, então fictio é a

capacidade de combinar tais imagens em um complexo imagético. “Facultas

producendi perceptiones rerum sensibilium absentium Facultas imaginandi seu

imaginatio appellatur” [“A faculdade de produzir percepções de objetos dos

sentidos ausentes é chamada a faculdade da imaginação (Wolff, C.: Psychologia

empirica: 1732, # 92)]. No # 145, a facultas fingendi é determinada face aos

phantasmata como uma ocupação ativa e consciente: “Habet igitur anima

facultatem phantasmatum divisione ac compositione producendi phantasma rei

sensu antea nondum perceptae” (“A alma dispõe assim da capacidade, por

divisão e composição, de gerar fantasmas, a representação de uma coisa, cujo

sentido antes não tinha percebido”). A fictio ou facultas fingendi é uma

capacidade de recomposição de elementos sensivelmente dados, em novas

unidades imaginárias. A pergunta por sua qualidade estética específica ainda

quase não se põe. Como, porém, a compreensão combinatória reune os

elementos em novas figuras e ficções, estas estão, em princípio, no horizonte do

melhor de todos os mundos de Leibniz, que não tinha de temer nenhuma

concorrência estética.

A valorização do conhecimento sensível e do sensível em figuras de signos

combinatórios aperfeiçoa-se na Aesthetica (1750-1758), de Alexander Gottlieb

Baumgarten. É sabido que o próprio Baumgarten foi o primeiro a cunhar o

conceito de estética e por ele compreendia uma ciência da faculdade de

conhecer o “inferior”, a que a nova estética queria conceder, pela primeira vez,

sua própria dignidade. Como seu professor Wolff, também Baumgarten se põe

sob as premissas da metafísica de Leibniz do “melhor de todos os mundos”. 35 Cf. Alfred Baeumler, Das Irrationalismusproblem in der Ästhetik und Logik des 18. Jahrhunderts bis zur Kritik der Urteilskraft (1923; Darmstadt, 1967), p. 142s.

62

Page 63: Stierle a Ficção

“Aesthetica (theoria liberalium artium, gnoseologia inferior, ars pulcre cogitandi,

ars analogi rationis) est scientia cognitionis sensitivae”36 [“A estética, a teoria das

artes livres, gnoseologia inferior, arte da bela reflexão, arte da analogia da razão,

é a ciência do conhecimento sensível], declara a monumental frase introdutória

da Aesthetica. A estética de Baumgarten é comparável ao esprit de finesse de

Pascal, uma faculdade de conhecimento de direito próprio. Se o conhecimento

sensível se dedica a encontrar uma entrada própria para a harmonia, então a

ficção é uma maneira de otimizar essa entrada, de intensificar a consciência ou

de abrir, pelo contraste ou pela alienação, uma via profunda para a harmonia do

mundo. Em um mundo leibniziano, a ficção não pode ter a tarefa de

simplesmente idealizar o mundo real ou de lhe opor um mundo ideal; ela só

pode se justificar pela intensificação da faculdade de conhecer sensível37,.

Baumgartem distingue entre a fictio historica, que se põe sob as condições de

nosso mundo, a fictio heterocosmica, que conduz a outro mundo e, por fim, a

fictio utopica, que, por assim dizer, permanece sem mundo e, daí, não pode

ganhar nenhuma função estética ou poética (Aesthetica, ## 507, 511, 514). A

elas se acrescenta, como classe própria de fictiones, as figuras retóricas, as

fábulas e os exemplos. Ambas, a fictio historica e a fictio heterocosmica podem-

nos dar, como invenções, em analogia com a perfeição do mundo, uma visão do

todo inexplicável do mundo e sua ordem.

Georg Friedrich Meier, um discípulo de Baumgarten, em seu Anfangsgründen

aller schönen Wissenschaften [Fundamentos iniciais de todas as belas ciências

(1748-1750)), popularizou o pensamento de Baumgarten sobre a estética e lhe

deu uma forma corrente. Com ele, pela primeira vez, a facultas fingendi se torna

unívoca à poeticidade. Seus objetos (figmenta e fictiones) querem dizer, em

sentido amplo, numa terminologia concisa, “Invenções”. Ao lado das invenções

históricas e das invenções de um outro mundo, bem como as poesias utópicas,

Meier agora põe as invenções poéticas, nas quais o poeta como “inventor ele

mesmo, cria um novo mundo”. A verossimilhança engendra este novo mundo

36 Baumgarten, vol. 1 (1750), p. 137 Cf. Friedrich Solms, Disciplina aesthetica. Zur Frühgeschichte der ästhetischen Theorie bei Baumgarten und Herder (Stuttgart, 1980), p. 69ss.

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Page 64: Stierle a Ficção

antes de tudo pela coerência interna, por força de seu engenho criador. Nisso, a

invenção poética é uma analogia para a própria criação e um exercício em sua

unidade e multiplicidade infinitas. Lessing se dispõe nesta linha quando exige do

drama que deva ser, como unidade na diversidade, uma “silhueta do infinito”.

O século XVIII deu à ficção uma nova dignidade, seja no sentido da auto-

realização como em Vico ou Rousseau, seja como analogia do melhor de todos

os mundos, no sentido de Leibniz. Mas também pôs a ficção como ficção sob a

luz da crítica iluminista. O Iluminismo como desmitificação significa, em primeiro

lugar, que o mito seja examinado como “pura ficção” ou fábula. Assim,

Fontenelle, em sua “Histoire des oracles” (1687), mostra a inconsistência do

oráculo e seu caráter fabricado e fictício. O entendimento ilumina as

obscuridades e a nebulosidade de uma fantasia ainda incompleta ou sua fraude

consciente. “Employons un peu notre raison, et ces fantômes disparaissent”

[Usemos um pouco de nossa razão e estas fantasmas desaparecem”

(Fontenelle: “Histoires des oracles”, 1687)]. Esta frase da reflexão de Fontenelle

sobre “Du bonheur”, poderia ser o axioma da filosofia iluminista do autor. Em “De

l’origine des fables” (1724), a origem dos mitos é vista nas ficções, que não

passam de metáforas das perguntas ainda movidas por um entendimento

infantil. Ao mesmo tempo, porém, as primeiras ficções são modelos de uma

fabricação das ficções, fabricação que impulsiona sempre formas espantosas e

absurdas. Se, no entanto, a ficção se converte em mito e o mito se solidifica em

religião, é um privilégio dos gregos estetizar a sua religião e apresentar em

ficções o novo modo da imaginação como um belo jogo. Em sua versão do

Oedipe (1718), Voltaire faz da própria crença cega no oráculo a base da

fatalidade de que Édipo teria escapado não houvesse crido no oráculo. No

Esquisse d’un tableau historique du progrès de l’esprit humain (1795), Condorcet

desmascarará a religião, o mito como manobra da classe sacerdotal, que,

conscientemente, se serve do efeito da ficção para o extravio do povo ignorante.

Mas, por outro lado, o século XVIII é a época da compreensão da

inevitabilidade da ficção quando trata de perguntar pelas origens, que são

logicamente conseqüentes e entretanto, suprimidas por toda a tradição escrita.

64

Page 65: Stierle a Ficção

No ensaio “Mythen des Anfangs. Eine geheime Sehnsucht der Aufklärung”, Hans

Robert Jauß constatou no interesse pela “pergunta pelos começos da história da

humanidade” um “processo contrário à crítica oficial dos mitos pelo Iluminismo” e

a relacionou com uma nova “nostalgia pelos começos” (Jauss, H. R.: 1989, 23). 38O que Jauß descreve como “mito do começo” é, entretanto, talvez a ficção

consciente do começo, como hipótese da origem necessariamente teórica.

Assim, no princípio do Discours sur l’origine de l’inégalité, Rousseau, ao

questionar a visão da primeira diferença entre o animal e o homem, pode dizer,

numa rejeição provocadora de qualquer construção empírico-hipotética:

“Commençons donc par écarter tous les faits, car ils ne touchent point à la

question” (“Comecemos pois por afastar todos os fatos, pois não tocam de modo

algum na questão”). Sua história da origem da humanidade é uma ficção

hipotética, que escapa “des raisonnements hypothétiques et conditionnnels” (Sur

l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes). Não se trata aqui de

exorcismo mítico da origem, mas sim de uma construção teoricamente refletida,

sob a forma de um modelo temporal fictício. Também a visão dos homens

reunidos no poço, cujo encontro suscitaria o impulso da linguagem, no Essai sur

l’origine des langues (começado em 1755, publicado em 1781), é uma hipótese

poeticamente ressaltada, e não o conjuro de uma origem mítica.

A história da origem como forma da hipótese da origem tornou-se em uma nova

modalidade da forma de ver do Iluminismo. A seu lado, apresenta-se como outra

ficção necessária a ficção do direito, que já tivera sua origem na Antigüidade

romana (cf. Furhmann, M.: 1983, art. Cit.) e se desenvolvera no século XVIII,

especialmente na Inglaterra. A fictio iuris permite solucionar com elegância

casos jurídicos, de modo que um caso é fictiamente acrescentado a uma classe

de casos, que recebe um certo tratamento jurídico. Que também a matemática e

a ciência da natureza necessitem de grandezas fictícias é ressaltado

expressamente por Kant. Os conceitos de entendimento, pois não envolvem

“objeto algum em qualquer experiência” não são senão “ficções heurísticas” ou

princípios reguladores. O entendimento emprega a ficção, para, com sua ajuda, 38 Jauss, “Mythen des Anfangs. Eine geheime Sehnsucht der Aufklärung”, in Jauss: Studien zum Epochenwandel der ästhetischen Moderne (Frankfurt a. M., 1989), p. 23.

65

Page 66: Stierle a Ficção

vir ao entendimento. O começo de tal compreensão, que o seeculo XVIII

desenvolveu, atingiu sua culminância na Kritik der reinen Vernunft (1781): “Os

conceitos de entendimento são, como se disse, simples idéias e, seguramente,

não têm objeto algum em qualquer experiência, mas, por isso, não designam

objetos inventados que seriam ao mesmo tempo admitidos como possíveis. São

pensados apenas problematicamente, a fim de fundarem, em relação a eles

(como ficções heurísticas) princípios reguladores do uso sistemático do

entendimento, no campo da experiência” (B 799). Mais de um século depois,

essa abordagem foi sistematizada por Hans Vaihinger, em sua grande síntese,

Die Philosophie das Als ob. System der theoretischen, praktischen und religiösen

Fiktionen der Menschheit aufgrund eines idealistischen Positivismus (A Filosofia

do como se. Sistema das ficções teóricas, práticas e religiosas da humanidade,

na base de um positivismo idealista) (1911). O postulado puro, livre de toda

necessidade empírica, que não pode substituir coisa alguma, aqui se converte

na ficção prática por excelência, que se opõe à ficção estética como uma ficção

de direito próprio.

Também na época da filosofia se verifica um prosseguimento de reflexões

literárias específicas sobre a ficção, sobre suas formas literárias e

possibilidades. Um conceito classicista domesticado de ficção se encontra no

artigo “Fiction” nos Eléments de littérature (1787), de Marmontel, uma coleção

de suas contribuições teórico-literárias à Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert,

que reune como que a suma da compreensão do classicismo iluminista na

França. Para Marmontel, a tarefa própria da ficção é a imitação idealizante das

coisas reais, no sentido de uma beauté idéale, provocada por seleção e

estilização e entendida como símbolo da perfeição. “La fiction qui tend au parfait,

ou la fiction en beau, est l’assemblage régulier des plus belles parties dont un

composé naturel est susceptible, & dans ce sens étendu, la fiction est essentielle

à tous les arts d’imitation”39 (“A ficção que tende ao perfeito ou a ficção no belo é

a reunião regular das partes mais belas de que é suscetível um composto

natural e, neste sentido extenso, a ficção é essencial a todas as artes de

39 Jean-François Marmontel, “Fiction”, in Diderot (Encyclopédie), vol. 6, p. 679.

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Page 67: Stierle a Ficção

imitação”). O poeta ou o pintor dá continuidade à natureza no ideal, para tanto

empenhando-se em fazer acessível aos receptores um máximo de efeito Aos

olhos de Marmontel, são menos exitosas a “fiction d’exagération”, que quer

impressionar antes de tudo por uma intensificação quantitativa, a “fiction des

monstrueux”, que procura compatibilizar o incompatível e, por fim, a forma do

“fantastique”, que só é inteligível como “dérèglement de l’imagination”. Resta

portanto a “fiction qui se dirige au parfait, ou la fiction en beau” (a ficção que se

dirige ao perfeito ou a ficção como belo”), a única que pode se endereçar ao

gosto e ao entendimento e que é digna do trabalho do artista.

Contra o conceito classicista de literatura, exposto por Marmontel, que não

dava espaço algum ao romance e concedia fronteiras estreitas à ficção,

apresenta-se a reflexão de Diderot sobre as possibilidades da imaginação

narrativa, que, nele, com certeza, não se concretiza em uma teoria da ficção.

Diderot desenvolve um conceito do interessante como conceito experimental,

para abrir novos espaços para o estético. Seu Jacques le fataliste (ed. póstuma:

1796) é, neste sentido, um romance interessante, que questiona o contrato

ficcional entre o autor e o leitor de romances e, em cumplicidade com o leitor,

converte o próprio arbitrário dos postulados romanescos em tema. Assim a

ficcionalidade da ficção, em todos seus momentos, é sempre trazida à

consciência do leitor. Também pertence às estratégias do próprio

questionamento do romance que nele o relato pseudo-oral se afirme contra a

voz do narrador romanesco, em sua autonomia. Em um adendo ao relato “Les

Deux amis de Bourbonne” (1773), Diderot distingue entre o conte merveilleux, o

conte plaisant e o conte historique e se indaga por seu denominador comum.

Para Diderot, ele está, por um lado, em uma certa situação narrativa

“descontraída”40, por outro, em uma arte de pequenos detalhes, que também

empresta ao conto um efeito de realidade quando ele se aventura a entrar nos

“espaces imaginaires”: “Séduisez-moi par les détails; que le charme de la forme

me dérobe toujours l’invraisemblance du fond” [“Seduza-me pelos detalhes; que

o encanto da forma sempre me subtraia o inverossímil do fundo”]41. Diderot aqui 40 Harald Weinrich, Tempus. Besprochene und erzählte Welt (Stuttgart, 1964).41 A propósito, cf. Herbert Dieckmann, “Die Wandlung des Nachahmungsbegriffes in der

67

Page 68: Stierle a Ficção

recorre a Quintiliano, que já havia descrito a arte da mentira como uma arte de

detalhes.

Diderot leva o romance à experiência de um cotidiano cortado em pedaços. Aí

pode estar a razão por que, para ele, a descrição se esquiva da ficção. No

“Eloge de Richardson” (1762), a nova forma do romance realista-burguês de

Richardson é estreitamente conectada com a nova forma de drama, como um

gênero entre a comédia e a tragédia. Enquanto o romance tradicional como

ficção não passa de um “tissu d’événements chimériques et frivoles”, Richardson

é apresentado como autor de um romance que merece pertencer a um gênero

bem diferente, distinto mesmo do drama que se dirige diretamente a seus

receptores e os afasta de suas ilusões. O romance de Richardson é, de certo

modo, a síntese de uma variedade de situações dramáticas, que o drama

encenado nunca teria concedido. O mundo de nossa experiência cotidiana se

transforma no palco do mundo, em que todos os personagens e todas as

camadas sociais desempenham seus papéis. Para que, no entanto, a ilusão da

partilha na realidade imaginária possa surgir, também aqui os detalhes são

necessários: “C’est à cette multitude de petites choses que tient l’illusion” (A

ilusão depende dessa multidão de pequenas coisas”). Pela arte do detalhe,

nasce um mundo vivo, em que se revelam dramas de “trinta ou quarenta

pessoas”, que, no palco efetivo, não seriam representadas e para o que o novo

romance oferece um palco imaginário.

O “Essai sur les fictions” (1795), de Mme de Staël, já na entrada do século XIX,

pergunta-se outra vez pelas possibilidades da ficção e as comprova com a

afirmação de “que les romans qui prendraient la vie telle qu’elle est, avec

finesse, éloquence, profondeur et moralité, seraient les plus utiles de tous les

genres de fiction” (“os romances que tomem a vida como ela é, com fineza,

eloqüência, profundeza e moralidade, seriam os mais úteis de todos os gêneros

de ficção”). Desta maneira o romance é renovado como paradigma próprio da

ficção, mas agora, a exemplo de Diderot, como forma da “vida como ela é”. Só

os “romans modernes” são apropriados para o tema de que a ficção deve agora

französischen Ästhetik des 18. Jahrhunderts”, in H. R. Jauss (ed.), Nachahmung und Illusion (Munique, 1964), espec. 53s.

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Page 69: Stierle a Ficção

de preferência servir, como dirá Mme de Staël, a “la peinture de nos sentiments

habituels”42.

VII. A ficção a partir do espírito da língua. Mallarmé e a modernidade

A teoria da literatura do século XIX não foi particularmente afligida pelo problema

da ficção. Isso poderia se explicar por uma concepção de literatura que a

racionalidade construtiva e a lógica retórica da ficção tornou questionável. No

programa de uma nova literatura romântica ou pós-romântica, que se

compreendia como produto do gênio ou como exposição da realidade social, o

conceito de ficção não tinha lugar de proeminência. No entanto, do ponto de

vista de uma história da significação do fingere, é de particular interesse o

filólogo-poeta Giacomo Leopardi, cuja poesia lírica parte da teoria de Rousseau

sobre a consciência alienada para uma consciência das camadas de significado

do italiano até suas origens latinas. No canto “Alla primavera”, encontram-se os

versos: “ (…) Quelle due varie note / Dolor non forma” (“Aquelas duas notas /

não são pela dor formadas”). O poeta o diz em uma apóstrofe ao rouxinol, que

sauda a primavera e cuja queixa não concerne ao destino humano. Na primeira

versão do poema, de 1824, em lugar de forma, ainda aparece finge. Leopardi

acrescentara uma anotação, em que lembra as duas significações originais de

fingere. Refere-se aqui ao fato de que fingere, em latim, primariamente significa

dar forma, que o próprio Leopardi, na passagem citada, quer recuperar. Mas, por

fim, para evitar uma falsa interpretação, o retira, como antes dele já o fizera

Agostinho e, depois, Petrarca, para empregar o unívoco formare. Ao contrário,

nos dois cantos “L’Infinito” e “Le Ricordanze”, Leopardi procura conscientemente

o vago, o efeito poético da oscilação, à medida que deixa que se engrenem o

momento construtivo e o momento do efeito. Assim se lê em “L’Infinito”: “Ma

sedendo e mirando, interminati / Spazi di là da quella, e sovraumani / Silenzi, e

profndissima quiete / Io nel pensier mi fingo” (“Mas sentando e mirando,

intermináveis / Espaços além daquela, e sobre-humanos / Silêncios, 42 Mme. De Staël, “Essai sur les fictions” (1795), in de Staël, Oeuvres completes, vol. 1 (Paris, 1836), p. 63.

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Page 70: Stierle a Ficção

profundíssima quietude, / Eu em pensar me finjo”).

O reflexivo io me fingo aqui significa que o eu dá uma forma subjetiva ao

informe e ilimitado e, ao mesmo tempo, se mantém consciente deste ato de

ficção. O eu, na fronteira entre a formatividade e o informe, da realidade

absoluta e da apropriação imaginária, experimenta o sublime, em que na

conguração se atraem o demasiado poderoso e o informe. Mas aí não está a

realidade própria do fingere; é o próprio poema que converte o naufrágio da

consciência na consumação poética: “E naufragar m’è dolce in questo mare”.

Em “Le Ricordanze”, em que o eu tardio recorda a felicidade imaginária do

primeiro dirigir-se ao mundo, se diz: “Il garzoncel, come inesperato amante, / La

sua vita ingannevole vagheggia, / E celeste beltà fingendo ammira” (“O menino,

como inesperado amante, / Corteja sua vida traiçoeira, / E celeste beleza

fingindo admira”).

Também aqui o objeto da reflexão poética é a indissolúvel unidade da ilusão,

da atividade que engendra a ilusão e a postulação poética. A celeste beltà,

metáfora da fascinação erótica anterior do moço entusiasta, é a obra do

imaginário, que, de sua parte, como em “L’Infinito”, pode-se tornar objeto de

outra trabalhada elaboração imaginária. Ao fingere da felicidade de antes,

ilusionista e inestável, agora se opõe o fingere poético sem ilusões, de que o

poema deriva.

Na terra da lingua romana, permaneceu viva a consciência da variedade

significativa original da palavra fingere. Nunca aqui se esqueceu por completo a

sua variedade original de significações, a metamorfose do conceito de ficção,

que o impulsiona a formas sempre novas. Também Giuseppe Ungaretti ainda

está na linha latina do fingere: “Quando erano giovani i tempi, quando si diceva

‘fingere’ alla latina, le illusioni si ‘foggiavano’, avevano materia per essere

‘foggiati’ e consistere, e si poteva credere vera la felicità” [“Quando os tempos

eram jovens, quando se dizia ‘fingere’ à maneira latina, as ilusões se ‘formavam’,

tinha matéria para ser ‘formadas’ e ter consistência, e se podia crer verdadeira a

felicidade]”43.43 Giuseppe Ungaretti, “Secondo discorso su Leopardi” (1944), in Per conoscere Ungaretti, L. Piccioni (ed.), (Milão, 1993), p. 424.

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Page 71: Stierle a Ficção

Só na teoria da literatura e da poesia elitista de Mallarmé, antagônica à fábrica

literária de seu tempo, o conceito de ficção assume um novo significado, que se

lança para o futuro, para a vanguarda literária do século XX. A poesia da

negação de Mallarmé explicita uma filosofia da linguagem. À diferença da poesia

de Hugo, conduzida pela exuberância do referencial jubilatório, a poesia de

Mallarmé, em um sentido radical, auto-referencial, tem em sua auto-

referencialidade o fundamento da ficção poética. Para Mallarmé, há um conflito

agudo entre a ficção na época de sua reprodutibilidade técnica e do consumo de

massa e um novo modo de ficção, cujo foco deixa de ser um contexto referencial

decorrente de si, mas sim que remete a si mesma. Em “Crise du vers” ((1886), a

resposta de Mallarmé ao fenômeno da imprensa de massa, oferece uma

expressão programática a seu novo conceito de ficção: “Au contraire d’une

fonction de numéraire facile et représentatif, comme le traite d’abord la foule, le

dire, avant tout, rêve et chant, retrouve chez le Poëte, par nécessité constitutive

d’un art consacré aux fictions, sa virtualité (“Ao contrário de uma função de

numerário fácil e representativo, como desde logo o trata a multidão, o dizer,

antes de tudo sonho e canto, encontra no poeta, por necessidade de uma arte

consagrada às ficções, sua virtualidade”). Esta é a base de uma nova poética,

que busca outra vez o conceito de ficção em seu domínio mais estreito. A poesia

não quer florescer como ilusão, ela se mantém na virtualidade do ilusório e a

converte no lugar da ficção. A ficção aqui recupera seu velho sentido concreto

de formação poética, como se formulava no carmina fingo de Horácio. Mas que

quer dizer ficção ou poesia como “virtualidade”? A virtualidade é o lugar do que,

em uma reflexão precedente, chamava de “notion pure”: “À quoi bon la merveille

de transposer un fait de nature en sa presque disparition vibratoire selon le jeu

de la parole, cependant; si ce n’est pour qu’en émane, sans la gêne d’un proche

ou concret rappel, la notion pure” (“Para que, entretanto, a maravilha de transpor

um fato da natureza em sua quase desaparição vibratória; se não é para que

dele emane, sem o embaraço de um chamado próximo ou concreto, a noção

pura”). O livro converte-se no lugar em que a notion pure ocorre, mas o livro é,

ao mesmo tempo, em todas suas dimensões, a ficção que remete a si mesma, o

71

Page 72: Stierle a Ficção

fictício-real absoluto, em que, simultanemente, a concretude da fala, em sua

sonoridade, é uma dimensão própria do poético. Nela, a poesia encontra sua

meta ao se manter em si mesma e resistir à ilusão referencial do universel

reportage. Asssim a flor, a flor da poesia, se torna puro acontecimento: “Je dis:

une fleur! Et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que

quelque chose d’autre que les calices sus, musicalement se lève, idée même et

suave, l’absente de tous les bouquets” (“Digo: uma flor! E, fora do esquecimento

em que minha voz relega qualquer contorno, enquanto algo de outro que os

cálices sabidos, musicalmente se eleva, idéia mesma e suave, a ausente de

todos os buquês”). Tal acontecimento desreferencializado, em que Mallarmé vê

a culminância de sua ficção poética, só é possível no interior da negação, que

traz o negado livre de toda relação afirmativa com o acontecimento. A poesia de

Mallarmé da notion pure é uma poesia da negação, em que a linguagem

desdobra sua virtualidade. A intuição genial de Mallarmé está em compactar-se

na negação a produção própria da linguagem, em dar uma configuração ao

ausente ou em remover o presente num ausente44 . Rousseau tinha descoberto

no não-ser da falta no aparato instintivo a pulsionalidade, necessária ao homem

para erigir, no mundo, seu mundo fictício. Já em Rousseau é a linguagem como

ficção e meio de produção da ficção uma meta do homem no caminho para si

mesmo. Nesta linha, Mallarmé vê a negação como produção culminante da

linguagem, busca uma idéia da ficção poética, na qual a negação se mostra em

seu próprio espelhamento como fonte de um novo imaginário, cuja realidade

sintática, não obstante, está ligada à realidade da sonorização e da remoção do

sonoro na escrita.

Mallarmé chegou à sua concepção autoreferencial da poesia como ficção no

meio da negação, a seu antecipado linguistic turn, através de longos estudos e

especulações sobre a filosofia da linguagem, com os quais elaborara alguns

fragmentos. Em suas Notes, de 1869, em que se antepõe criticamente ao

Discours de la méthode, de Descartes, ficção e método, que Descartes queria

ter absolutamente separado, se aproximam até à identificação. Deste modo, ao 44 Cf. Stierle, “Position and negation in Mallarmé’s ‘prose pour des Esseintes’ “, in Yale frech studies, 54 (1977), [número temático sobre Mallarmé],pp. 96-117,

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Page 73: Stierle a Ficção

Descartes apoético por assim dizer se opõe um Descartes poético:”Toute

méthode est une fiction, et bonne pour la démonstration”. A linguagem e a ficção

demonstram sua íntima afinidade e condicionam o linguistic turn da poesia

lançada para o futuro de Mallarmé: “Le langage lui est apparu l’instrument de la

fiction: il suivra la méthode du langage (la déterminer). Le langage se

réfléchissant. Enfin la fiction lui semble être le procédé même de l’esprit humain”

(“A linguagem lhe apareceu como o instrumento da ficção; seguirá o método da

linguagem (determiná-la). A linguagem refletindo-se. Enfim, a ficção lhe parece

ser o procedimento mesmo do espírito humano”). Na refração da negação, a

linguagem remete para si mesma: “Le moment de la Notion d’un objet est donc

le moment de la réflexion de son présent pur en lui-même ou sa pureté présente”

(“O momento da noção de um objeto é, portanto, o momento da reflexão de seu

presente puro em si mesmo ou de sua pureza presente”). A negação como fonte

da ficção torna particularmente claro o papel preciso da conceitualidade para o

fictício (notion pure). Mallarmé, que, da ficção absoluta, sonhava com o livro

total, tinha podido realizar seu sonho apenas na forma do poema lírico centrado

em si, em que o acaso da linguagem se convertera no triunfo da superação do

acaso pelo próprio acaso. Não obstante seus pensamentos sobre a ficção como

negação da ilusão referencial pela própria ficção se tornava um poderoso

desafio que assim atingia a ficção por excelência, o romance. O romance

moderno do século XX é moderno na medida que se abre ao paradigma da lírica

como “antidiscurso” e, assim, se encontra com formas de uma construção

fictícia, no sentido radical, que não mais se conecta a referenciais. Exemplos

passados disso são À la recherche de temps perdu (1913-1927), de Proust, em

que a lírica de Baudelaire do palimpsesto da lembrança se transforma no

“escrever sem fim”45, em um palimpsesto da lembrança verdadeiramente

imenso, e a nova técnica de relato do mise en abyme de Gide, em que a

narração reiterativa e especular, que, como récit spéculaire, se tornaria no

grande paradigma do nouveau roman francês46 (cf. Dällenbach, L.: 1977). O

45 Rainer Warning (ed.), Marcel Proust.Schreine ohne Ende (Frankfurt a. M./Leipzig, 1994).46 Cf. Lucien Dallenbach, Le Récit spéculaire. Essaisur la myse en abyme (Paris, 1997)

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Page 74: Stierle a Ficção

nouveau roman se volta para as premissas originadas de si próprio, não mais

premissas narrativas e construtivas, segundo a elegante formulação de Jean

Ricardou, a lei do romance, ser “l’écriture d’une aventure”, converte-se em

“l’aventure d’une écriture”47Recorde-se a esse propósito o excêntrico Raymond

Roussel, que, na passagem do século conseguira seus fantásticos relatos de

viagem a partir do jogo com o acaso e a ambigüidade da linguagem48.

Não é acidental que a radicalização das tendências auto-referenciais no

nouveau roman do fim da década de 1960 tenha insuflado uma nova atualidade

ao conceito de ficção. Se antes o romance resultou da reabilitação da ficção,

agora o romance, que assume a consciência de sua natureza verbal, se

concebe como ficção. Com a linguistic turn dos anos sessenta, que, na França,

produzia, sobretudo no círculo da revista de vanguarda Tel Quel, uma nova

literatura estrutural, a seguir gerativa e, por fim, desconstrutiva, o romance se

transforma em virtualidade de suas estruturas verbais, textualmente originadas e

se descobre como ficção. Como ficção, no entanto, não mais segue uma ilusão

referencial, mas sim se compreende como écriture ou, mais universalmente,

como texto, no sentido do modelo de ficção elementar da textura, do tecer e

destecer, pela primeira vez poeticamente refletido por Ovídio. Assim, nas

reflexões de Jean Ricardou sobre as dimensões de um novo romance radical, o

conceito de ficção alcança uma significação central49. O próprio Ricardou

procurara consumar exemplarmente, em seu “romance” La Prise de

Constantinople (1965), a autogênese de uma ficção radical, a partir daqui

seguidora de suas próprias leis50. Também Claude Simon, em seu ensaio “La

Fiction mot à mot” (in Ricardou, J.: 1972, II 73-97) chama a atenção, por certo

sob a influência de Ricardou, sobre o processo de nascimento verbal-imanente

de suas ficções, muito além da ligação referencial do romance. Mostra-se com

47 Jean Ricardou (ed.), Nouveau roman: hier, aujourd’hui, vol. 1 (Paris, 1972), p. 403.48 Cf. Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres (Paris, 1963); Ricardou, LActivité rousselienne, in Ricardou, Pour une théorie du nouveau roman (Paris, 1971); Michel Foucault, Raymond Roussel (Paris, 1963). 49 Cf. Ricardou, Pour une théorie du nouveau roman (Paris, 1971); Ricardou, Nouveaux problèmes du roman (Paris, 1978); Ricardou, Le Nouveau roman (Paris, 1973).50 Ricardou, cf. nota 47, vol. 2 (Paris, 1972).

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Page 75: Stierle a Ficção

isso, de modo novo, a conexão não mais apenas etimológica, entre ficção e

figura. O novo romancista afasta-se por completo de seguir os passos de um

simples relato, liga, em sua ficção, figuras mot à mot, que são ao mesmo tempo

figuras de linguagem, figuras de pensamento e figuras de uma experiência

possível, à disposição da atenção possível. Os romances de Claude Simon, La

Bataille de Farsaille (1969) e Les Corps conducteurs (1971), são exemplos

destacados disso.

Culminância posterior do romance auto-reflexivo que expõe sua ficcionalidade,

e, ao mesmo tempo, de sua superação é La Vie. Mode d’emploi (1978), com o

subtítulo irônico de “romances”, de George Perec. Perec leva a cabo neste

romance de Paris um jogo irônico com as formas ficcionais de construção do

puzzle e, simultaneamente, sujeita a estrutura ficcional ao equilíbrio entre as

várias realidades imaginário-referenciais da cidade, de tal modo que se

compensam a estrutura ficíticia, auto-referencial e centrípeta e o mundo

referencial e centrífugo das estórias na cidade. O herói do romance e imagem de

seu autor é o milionário Barthlebooth, obsecado por puzzles. Em suas viagens,

pinta 500 aquarelas marinhas, que são desfeitas pelo pintor Gaspard Winckler, e

a cada vez51 recortadas em 750 peças de puzzle, as quais, décadas mais tarde,

são de novo reunidas, para que sejam dissolvidas na água do lugar em que

foram feitas. Assim, no ciclo do nada para o nada, se configura uma obra irônica.

No momento de sua morte, Barthlebooth põe sua última peça de puzzle, com o

que, simultaneamente, o autor encerra seu último elemento narrativo.

VIII. A ficção do mundo como horizonte das ficções

Terá sido a busca do novo nouveau roman de reconduzir a ficção a si mesma e

de abri-la a novas dimensões de sua virtualidade talvez apenas o episódio

heróico de um modo de escrita que não levava em conta o leitor? As ficções

então criadas, no entusiasmo de uma nova consciência da estrutura verbal e

51 “A cada vez” (jeweils) pois o pintor Winckler tem de recobrir as peças de afinal quinhentos puzzles (cf. Perec, G.La Vie. Mode d’emploi (Paris, 1987), trad. bras. De Ivo Barroso, A Vida. Modo de usar, (São Paulo, 1991) (N. do Tr.).

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Page 76: Stierle a Ficção

textual, serão talvez apenas ruínas de um projeto frustrado? Não mais se fala na

aventura extraordinária de uma ficção desligada das pressões da ilusão

referencial emudeceu. Outra vez domina o romance cujo protótipo ainda pode

ser encontrado no romance de Chrétien de Troyes52.

“Só um horizonte circundado por mitos remata toda uma cultura em

movimento”, observava Nietzsche na consideração do mito grego, em seu

ensaio sobre Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik53. Numa

variação livre da frase de Nietzsche, podia-se dizer: “Só um horizonte circundado

de ficções remata o movimento da cultura moderna”. No âmbito verbal anglo-

saxônico, ficção cada vez mais significa a totalidade da produção romanesca,

com inclusão de formas narrativas mais curtas, com o que, em oposição ao setor

que, nas grandes livrarias, se denomina “literature”, fiction é sempre uma parte

essencial do imaginário referencialmente mediado. Assim, o Oxford English

Dictionary, anota no verbete “fiction”: “The species of literature which is

concerned with a narration of imaginary events and the portraiture of imaginary

characters; fictitious composition. Now usually, prose novels and stories

collectively; the composition of works of this class” (OED, vol. 4, 1933, 187).

Como fundamento de um conceito de ficção especificamente inglês, poder-se-

ia considerar o modelo complexo de interação entre autor e leitor, como o

descreve Samuel Taylor Coleridge. Coleridge dava uma nova dimensão

subjetiva ao conceito de verossimilhança, que leva em conta o papel próprio do

leitor pelo poeta. O poeta deve-se esforçar em “to transfer from our inward

nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these

shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which

constitutes poetic faith” [“transferir de nossa natureza interna um interesse

humano e uma semelhança bastante para propiciar a estas sombras da

imaginação aquela suspensão amorosa da descrença para o momento, que

constitui a fé poética”]54.52 Cf. Ulrich Schulz-Buschhaus/Stierle (eds.),Projekte des Romans nach der Moderne (Munique, 1997).53 Friedrich Nietzsche, Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (1872), in Nietzsche (Schlechta, ed.), vol. 1, (Munique, 1954), p. 125.54 Samuel Taylor Coleridge, Biographia literaria or biographical sketches of my literary

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Page 77: Stierle a Ficção

Só na época da imprensa o romance se tornou o paradigma da ficção, mas

também paradigma do que poderia chamar a inquietude da ficção. Com a

impressão tipográfica, a mania do romance ganhou o mundo. Cada romance

lega a nostalgia irrealizada e irrealizável pelo imaginário além do imaginário que

enfrenta o leitor numa variedade infinita de formas. A fidelidade a essa nostalgia

nunca satisfeita, que parece pertencer ao aparato antropológico do homo

modernus, fornece o pão de cada dia aos que trabalham no romance

internacional, na ficção internacional, como o horizonte das ficções que reorienta

nosso mundo. A partir de infinitas ficções, à ficção internacional corresponde um

mercado internacional da ficção. Que o romance como ficção conceda, apesar

de toda a diferença de suas estratégias discursivas, a dominância ao imaginário

referencial é o pressuposto de sua traduzibilidade e esta, de sua presença além

das fronteiras das línguas. No entanto, a lingua franca da ficção internacional é o

inglês e o anglo-americano, não só porque há aqui, manifestamente, uma

conexão ideal entre língua e “fiction”, mas sim também porque o inglês, como

lingua franca, é, simultaneamente, o lugar da comunicação internacional, em

que se reunem as imaginações do mundo55. Isso tanto vale para a América com

seu multiculturalismo étnico, de que o poder da lingual se apoderou, assim como

para o mundo pós-colonial da antiga comunidade britânica, só restou a herança

do inglês corrente. Salman Rushdie, em seu livro Imaginary homelands. Essays

and criticism (1981-1991) (1991), testemunhou que aguda consciência um

romancista moderno há de ter para se pôr no contexto do romance internacional.

Isso já valia para as obras anteriores de Milan Kundera, L’Art du roman (1986)

ou de Mario Vargas Llosa, La Verdad de las mentiras (1990). O romancista,

onde quer que levante sua voz, seja no lugar mais remoto do mundo, tem a

oportunidade de ingressar no romance internacional e de participar no mercado

internacional da ficção.

O gênero da chamada science-fiction, que desde a década de 1920 se impôs

como uma forma própria de ficção, pode mais uma vez iluminar indiretamente a

life (1817; Londres, 1971), cap. 14, p. 168s. 55 Aleida Assman, Die Legitimität der Fiktion. Ein Beitrag zur Geschichte der literarischen Kommunikation (munique, 1980), pp. 108-155.

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Page 78: Stierle a Ficção

ficção anglo-americana. Ela esclarece particularmente que a referencialidade

aventuresca, o imaginário de densidade referencial pertence essencialmente à

ficção, mas também indiretamente aponta para o que não é ficção. O romance

policial é a science-fiction tematicamente firmada e, na verdade, em duplo

sentido: como prenúncio do futuro ainda aberto e pela tese de que o futuro

essencialmente deve ser um futuro técnico, pelo qual almeja tornar plausível o

ainda impensável em termos técnicos ou melhor, pseudotécnicos. Ao contrário

disso, cabe à liberdade do romance como ficção ampliar a experiência

contemporânea no imaginário e encontrar, para isso, uma forma narrativa.

O fato de o romance referencial, que já se dizia morto, tenha sobrevivido à a-

referencialidade permite pensar que seu potencial antropológico ainda não está

esgotado, que, ao contrário, este ainda parece crescer pela produtividade

imaginária do romance. Pois é justamente a perduração do mundo das ficções

que permite que este mesmo se converta em objeto de uma ficção de segundo

grau. Essa é a premissa que subjaz à metaficção de Jorge Luis Borges. Em suas

Ficciones (1944), estão os livros imaginários que o narrador cria. Por isso a

realidade cotidiana tão estreitamente confina com os mundos da ficção e do

imaginário que ambos parecem lançar-se, além da fronteira da diferença

categorial, noutra dimensão: o fantástico se torna real, o real se torna fantástico.

A confusão entre realidade e ficção atinge seu cume na história de Louis

Ménard, que concebe o plano fantástico de inventar outra vez Don Quijote, de

modo que agora o Don Quijote de Cervantes e o de Ménard sejam

indiferenciados e a realidade da ficção de Cervantes perca seu solo e se funda

com a “realidade” imaginária de Ménard. A metaficção parece produzir um

equilíbrio instável entre fiction e ficção auto-referencial. Justamente por isso

parece, como terceira via, poder fundar uma nova dimensão do fictício. Italo

Calvino, particularmente, entrou por esse caminho. Seu romance Se una notte

d’inverno (1979), impregnado de referências a Borges, é, ao mesmo tempo, uma

demonstração da impossibilidade do romance, assim como, por assim dizer em

suas costas, sua afirmação irônica. Do mesmo modo Le Città invisibili (1972) é

uma combinatória de ficções da cidade, que tem seu ponto de partida no relato

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Page 79: Stierle a Ficção

de viagem Il Milione, de Marco Polo e que, de fantasma em fantasma, cada vez

mais ganha contornos aventurescos, que ultrapassam o imaginável.

Em 1984, Calvino preparava uma série de conferências para a Norton Poetry

Lectures, na Harvard University, para a qual dera o título provisório de Six

memos for the next milenium. Foram escritas cinco conferências sobre os temas

“leveza”, “rapidez”, “exatidão”, “visibilidade”, “multiplicidade”, mas a sexta, sobre

a “consistência”, ficou inacabada. Assim estas “lezioni americane” se tornaram o

legado de Calvino para o próximo século – uma defesa da ficção leve, rápida,

exata e variada, para as quais se valia da lembrança de uma ficção

internacional, em que o romance e a poesia se encontram. Na conferência sobre

“multiplicidade”, Calvino projeta a idéia de um hiper-romance, que devia ser uma

rede de virtualidades, “una rete crescente e vertiginosa di tempi divergenti,

convergenti e paraleli”56, que, como em “El Jardín de los senderos que se

bifurcan”, nas Ficciones, de Borges – “una red creciente y vertiginosa de tiempos

divergentes, convergentes y paralelos” – havia de ser imaginada com uma rede

de possibilidades em uma variedade infinita de universos coexistentes. As

Ficciones, de Borges, são o modelo do hiper-romance. Neste ponto, porém, as

Metamorfoses, de Ovídio, o protótipo de todas as ficções, se mostram como a

meta da ficção que não só recupera mas leva adiante. No fim de sua “apologia

del romanzo come grande rete”, põe-se a pergunta com que Calvino encerra o

texto: “Non era forse questo il punto d’arrivo cui tendeva Ovidio nel raccontare la

continuità delle forme, il punto d’arrivo cui tendeva Lucrezio nell’identificarsi con

la natura commune a tutte le cose?” [Não era este talvez o ponto de chegada a

que aspirava Ovídio em narrar a continuidade das formas, o ponto de chegada

que Lucrécio tinha em vista ao se identificar com a natureza comum a todas as

coisas?” (Calvino, I.: 1988, 120)].

Ovídio, o verdadeiro iniciador do conceito europeu de ficção, que tornaria a

força impulsora de uma ficção internacional, retorna por fim como herói de uma

metaficção dedicada a ele próprio. Em Die letzte Welt (1988), de Christoph

Ransmayer, a dissolução anacrônica do exilado Ovídio no Mar Negro converte-

56 Italo Calvino, Lezioni americane. Sei proposte per il prossimo milellio (Milão, 1988).

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Page 80: Stierle a Ficção

se, com as visões do “mundo derradeiro”, em fundamento de uma ficção como

síntese imaginária entre biografia, obra e a contemporaneidade moderna, aberta

para um futuro indeterminado. Ovídio deste modo se torna o fundador do

primeiro mundo fictício que, de certo modo, recolhe em si o último mundo mítico,

no herói mítico de um último mundo fictício, que Ransmeyer quer que seja

compreendido como o derradeiro mundo pós-moderno da ficção. Mesmo que o

autor talvez não tenha desenvolvido esse grande tema na concretude de sua

ficção, de qualquer modo marca um lugar que, para a história do conceito de

ficção, é de novo de significação fundamental.

Em suas Norton Lectures de 1992-1993, dedicadas à memória de Italo Calvino,

Six Walks in the ficcional woods – que também tratavam, em primeiro lugar, da

língua internacional da ficção – Umberto Eco, ele próprio um virtuose da

metaficção, projeta sua imagem do horizonte das ficções. Também aqui, nessa

meditação sobre a ficção internacional, soa, como diria “Le Cygne”, de

Baudelaire, uma velha lembrança. A lembrança daquela muralha em que, pela

primeira vez em Chrétien, o cavaleiro irrompe, para nela se perder e de novo se

achar (cf. Eco, U.: 199457).

IX. A teoria da literatura e a teoria da ficção

Nas filologias nascentes no século XIX, o conceito de ficção não tem significado.

Também na ciência da literatura alemã, emancipada da filologia, o conceito

quase não tem uso. Nem em Das literarische Kunstawerk (1931), de Roman

Ingarden, nem depois, nos fundamentos da hermenêutica de Gadamer, em seu

livro Wahrheit und Methode (1960), o conceito de ficção desempenha um papel.

O título do livro (publicado a partir de seu espólio) de Carl Einstein, Die

Fabrikation der Fiktionen (escrito em seu exílio parisiense, entre 1935 e 1937),

refere-se de modo ainda bastante crítico-ideológico, ao empreendimento

artístico e literário dos anos de vinte e trinta58 .

No começo de uma nova theory of fiction, que devia se tornar, sobretudo nos 57 Cf. Umberto Eco, Six walks in the fictional woods (Cambridge, Mass., 1994).58 Cf. Carl Einstein, Die Fabrikation der Fiktionen, S. Penkert (ed.), (Hamburgo, 1973).

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Page 81: Stierle a Ficção

Estados Unidos, parte essencial da theory of literature acadêmica, aponta o

ensaio de um romancista que reflete sobre sua própria atividade, The Art of

fiction, do anglo-americano Henry James, publicado pela primeira vez em 1888.

James sabe ter um compromisso particular, em suas próprias reflexões, com os

romancistas franceses, pois: “the French, who have brought the theory of fiction

to remarkable completeness” .59. Ao passo porém que, na França, a reflexão

teórica dirigia-se exclusivamente à forma do romance, James, em suas

observações sobre “the art of fiction”, ainda incluía os relatos mais curtos, com a

exclusão categórica da lírica e do drama. O livro de Percy Lubbock, The Craft of

fiction (1921), se associa diretamente ao de Henry James. Se agora crítica

literária e teoria da literatura, seguindo o uso comercial, se apropriam cada vez

mais do conceito de “fiction”, em seu sentido limitado, então a teoria da ficção se

converte em uma linha de pesquisa dominante na teoria da literatura, recém-

estabelecida nas universidades norte-americanas, depois de 194560 . Essa linha

encontrou em The Rhetoric of fiction (1961), de Wayne Booth, sua primeira

grande síntese. The Sense of an ending. Studies in the theory of fiction, de Frank

Kermode, resultado de conferência proferida, em 1965, no Bryn Mawr College,

é, ao contrário, uma penetrante especulação filosófica sobre a natureza

necessariamente fictícia de qualquer forma narrativa e de sua mais profunda

tendência apocalíptica. Nenhum outro livro sobre teoria da ficção alcançou

desde então a intensidade de seu questionamento das formas do fictício.

Na Alemanha, a teoria da ficção, desenvolvida na academia, encontra seu

ponto de partida em Die Logik der Dichtung (1957), de Käte Hamburger. Nele,

pela primeira vez, perguntava-se pela “relação da poesia com o sistema geral da

língua” e, em direção contrária à Philosophie des Als ob, de Vaihinger, explorava

a diferença entre “gênero ficcional ou mimético” e o sistema proposicional da

língua61. O conceito de gênero ficcional ou da ficção literária aqui alcança seu

perfil singular para a pesquisa, o campo da ficção, tomando-o como um sistema 59 Henry James, The Art of fiction (1888), in James, The Future of the novel, L. Edel (ed.), (New York, 1956), p. 17.60 Cf. Sclaffer, Poesie und Wissen. Die Entstehung des ästhetischen Bewußtseins und der phiolologischen Erkenntnis (Frankfurt a. M., 1990), pp. 142-155.61 Käte Hamburger, Die Logik der Dichtung (1957; Stuttgart, 1968), p. 56.

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Page 82: Stierle a Ficção

próprio de uso da língua, que se opõe, categoricamente, à lírica, pelo uso da

articulação poética do “sistema da realidade” (idem, 49) e por o tempo do

pretérito, em função ficcional, mostrar-se como tempo da efemeridade ou melhor

de um agora imaginário. Essa tese tão penetrante como problemática (o

passado narrativo, à medida que se distende em um antes e um depois, não se

distingue, em princípio, do puro passado?) deu à teoria da ficção, desenvolvida

na universidade alemã, um impulso essencial e se tornou frutífero pela tradução

do livro também na França (talvez por Gérard Genette).

Desde a década de 1960, o conceito de ficção encontra sempre mais entrada

na discussão universitária alemã, para o que também a recepção da teoria da

ficção norte-americana tem uma parte fundamental. Especialmente, Wolfgang

Iser, em seu livro Das Fiktive und das Imaginäre, lançou uma ponte entre a

configuração das teoria alemã e anglo-saxônica. Nele, se põe a questão

fundamental dos pressupostos antropológicos de nossa disposição para o fictício

e o imaginário. Assim como Kermode, também Iser leva a teoria da ficção além

do campo da ficção romanesca e se indaga por seu potencial antropológico. Iser

é ainda, junto com o filósofo Dieter Henrich, o editor do número X da série Poetik

und Hermeneutik, intitulado Funktionen des Fiktives (1983), em que a questão

da ficcionalidade é discutida em seu amplo espectro.

Também na França, só a recepção da “theory of fiction” concedeu ao conceito

de ficção dignidade acadêmica, enquanto antes ele se restringia ao círculo de

uma poética de vanguarda. Assim o livro Fiction et diction (1991), de Gérard

Genette recorre ao uso inglês da palavra (mas também a seu emprego por Käte

Hamburger) para assim caracterizar uma “forma fundamental” literária. Ao

contrário, o volume organizado por Jean Bessière, Hybrides romanesques.

Fiction (1960-1985) (1988) se mantém estreitamente ligado ao conceito de

ficção da vanguarda literária francesa e mostra como justamente as formas

híbridas do romance pós-moderno realizam um novo conceito de ficção, não

mais imeditamente mimético. Em seu livro Enigmaticité de la littérature. Pour une

anatomie de la fiction au 20e siècle (1993) o conceito de ficção se relaciona ao

conceito de écriture, que era a própria expressão da crise da reprodutibilidade

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Page 83: Stierle a Ficção

do mundo moderno. No sentido de Bessière, a ineludível identidade da ficção

está em sua insolubilidade e enigmaticidade.

Também um novo campo abre, no século XX, a questão lançada desde

Wittgenstein sobre o estatuto lógico da ficção. As frases ficcionais são

simplesmente sem sentido ou têm elas um valor de verdade próprio? Que jogo

de linguagem joga a ficção? Com base no How to do things with words (1962),

de John L. Austin, em uma investigação analítico-verbal especialmente sobre

frases não-afirmativas e, deste modo, não acessíveis à lógica tradicional, e nas

Philosophischen Untersuchungen (publ. póstuma: 1953), de Wittgenstein, que,

pela primeira vez, procurara esclarecer a “práxis do uso da linguagem”, à

medida que essa é definida como “jogo da linguagem”, indaga-se John Searle,

em um ensaio que se tornou famoso, pelo “logical status of fictional discourse”62.

Apenas para os lógicos, é uma convicção razoável que, de fato, através do

esclarecimento do estatuto lógico dos textos ficcionais, pode ser explicada a

natureza da ficção literária. Searle distingue entre “fictional and serious

utterances” (“enunciados ficcionais e sérios”) e daí supõe que o “fictional

speech” (“a fala ficcional”) não passa da soma de frases pseudo-assertóricas,

porquanto apenas frases ou melhor proposições encadeadas em frases podem

ser logicamente analisadas. Mas exatamente com isso se perde o que converte

uma ficção em ficção: a configuração de uma articulação específica de frases63.

Porque a discussão analítica do estatuto lógico da ficção não leva em conta a

história do conceito de ficção, escapa-lhe que a verdade da ficção é a sua forma

e não o fato de serem sérios ou “não sérios” seus enunciados. Não se trata na

ficção do valor de verdade das frases ficcionais, mas sim de figuras apelativas

complexas e de atualizar o apelo que estas produzem. Que o imaginário e sua

forma sejam indissociáveis cria aquela compactude que a decomposição

analítica entre frases ficcionais e asserções, em princípio, suprime. Mas não

menos problemática é a pesquisa, com que o discurso ficcional ganharia uma

62 John Searle, “”The Logical status of fictional discourse”, in Searle, Expression and meaning. Studies in the theory of speech acts (Cambridge, 1979), pp. 58-75.63 Cf. Gottfried Gabriel, Fiktion und Wahrheit. Eine semantische Theorie der Literatur (Stuttgart e Bad Cannstat), 1975).

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nova dignidade, segundo a qual cada discurso ficcional é subordinado a “outro

mundo” coerente em si 64. Pois a própria linguagem é o horizonte insuprimível de

“nosso mundo”, que põe em perspectiva todos os outros e possíveis mundos.

A lógica da ficção, ao se perguntar pelas frases ficcionais isoladas, que é uma

dimensão do fingere, perde de vista a formatividade. A formatividade, no entanto

retorna de maneira surpreendente em uma nova teoria da escrita da história.

Hayden White enriqueceu a teoria da historiografia com a tese provocante de

que ela não pode se cumprir sem a ficção. No Meta-history. The Historical

imagination in nineteenth-century Europe (1973), tomando como exemplo a

historiografia do século XIX, mostra que cada texto historiográfico está ligado a

posições fundamentais de apresentação, por ele descritas como root-metaphors,

expressão tomada de empréstimo de Stephen Pepper65. Sem que o saiba, White

aqui segue as reflexões fundamentais de Georg Simmel sobre a

indispensabilidade da “configuração histórica”66. A escrita da história é ficção,

não no sentido de informação enganosa, acriticamente modelada, mas sim no

outro sentido do fingere como configuração necessária, mais ou menos feliz e

objetiva, porém nunca inerente ao próprio objeto. Em muitos ensaios reunidos

por White sob o título de Tropics of discourse (1978), o autor aprofunda sua

concepção da “imaginação figurativa” como condição necessária de toda a

historiografia e acentua a conexão interna entre o romance histórico e a escrita

da história: “Vistas puramente como artefatos verbais, as obras de história e os

romances são indistinguíveis”67. Se a postulação é equívoca, contém contudo a

64 Cf. Nelson Goodman, Ways of worldmaking (Hassocks, 1978); Stierle, “Die Fiktion als Vorstellung, als Werk and als Schema – eine Problemskizze”, in Henrich/Iser, op. cit., pp.173-182.65 Cf. Stephen Pepper, World hypotheses. A study in evidence (Berkeley/LosAngeles, 1966).66 Georg Simmel, “Die historische Formung”, in Simmel, Fragmente und Aufsätze aus dem Nachlaß und Veröffentlichungen der letzten Jahre (Munique, 1923), pp. 147-209; cf. Simmel, “Das Problem der historischen Zeit” (1916), in Simmel, Brücke und Tür, M. Landmann/M. Susman (eds.)Stuttgart, 1957), pp. 43-58; Stierle, “Erfahrung und narrative Form. Bemerkungen zu ihrem Zusammenhang in Fiktion und Historiographie”, in J. Kocka/T. Nipperley (eds.), Theorie und Erzählung in der Geschichte (Munique, 1979).67 Hayden White, “The Fictions of factual representation”, republ. In Tropics of discourse. Essays in cultural criticism, (Baltimore/Londres), p. 122 (N. do Tr.).

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questão extra de que, do ponto de vista da imperecibilidade da “configuração

histórica”, o romance histórico e a escrita da história estão estruturalmente sob

condições comparáveis.

As mais avançadas teoria da ficção permanecem relacionadas à

complementariedade de significação do latim fingere e as concretizações

históricas fomentadas desde suas origens romanas.

Tradução de Luiz Costa Lima

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“Die Fiktion”apareceu originalmente, em 2001, no segundo volume (pp. 380-428), do dicionário enciclopédico Ästhetische Grundbegriffe (2000-2005), publicado sob a direção do doutor Karkheinz Barck, pela J. B. Metzler Verlag, Stuttgart-Weimar, e compreendendo sete tomos.

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