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    CARTA ENCCLICASPE SALVI

    DO SUMO PONTFICEBENTO XVIAOS BISPOS

    AOS PRESBTEROS E AOS DICONOSS PESSOAS CONSAGRADASE A TODOS OS FIIS LEIGOS

    SOBRE A ESPERANA CRIST

    Introduo

    1. SPE SALVI facti sumus na esperana que fomos salvos: diz So Paulo aos Romanos ea ns tambm (Rm 8,24). A redeno , a salvao, segundo a f crist, no um simples dadode facto. A redeno -nos oferecida no sentido que nos foi dada a esperana, uma esperanafidedigna, graas qual podemos enfrentar o nosso tempo presente: o presente, ainda que custoso,pode ser vivido e aceite, se levar a uma meta e se pudermos estar seguros desta meta, se esta metafor to grande que justifique a canseira do caminho. E imediatamente se levanta a questo: mas deque gnero uma tal esperana para poder justificar a afirmao segundo a qual a partir dela, esimplesmente porque ela existe, ns fomos redimidos? E de que tipo de certeza se trata?

    A f esperana

    2. Antes de nos debruarmos sobre estas questes, hoje particularmente sentidas, devemos escutarcom um pouco mais de ateno o testemunho da Bblia sobre a esperana. Esta , de facto, umapalavra central da f bblica, a ponto de, em vrias passagens, ser possvel intercambiar os termos f e esperana . Assim, a Carta aos Hebreus liga estreitamente a plenitude da f (10,22)com a imutvel profisso da esperana (10,23). De igual modo, quando a Primeira Carta dePedro exorta os cristos a estarem sempre prontos a responder a propsito do logos o sentido ea razo da sua esperana (3,15), esperana equivale a f . Quo determinante se revelassepara a conscincia dos primeiros cristos o facto de terem recebido o dom de uma esperanafidedigna, manifesta-se tambm nos textos onde se compara a existncia crist com a vida anterior f ou com a situao dos adeptos de outras religies. Paulo lembra aos Efsios que, antes do seuencontro com Cristo, estavam sem esperana e sem Deus no mundo (Ef 2,12). Naturalmente,ele sabe que eles tinham seguido deuses, que tiveram uma religio, mas os seus deuses revelaram-se discutveis e, dos seus mitos contraditrios, no emanava qualquer esperana. Apesar de teremdeuses, estavam sem Deus e, consequentemente, achavam-se num mundo tenebroso, peranteum futuro obscuro. In nihil ab nihilo quam cito recidimus (No nada, do nada, quo cedorecamos) [1] diz um epitfio daquela poca; palavras nas quais aparece, sem rodeios, aquilo a quePaulo alude. Ao mesmo tempo, diz aos Tessalonicenses: no deveis entristecer-vos como osoutros que no tm esperana (1 Ts 4,13). Aparece aqui tambm como elemento distintivo doscristos o facto de estes terem um futuro: no que conheam em detalhe o que os espera, massabem em termos gerais que a sua vida no acaba no vazio. Somente quando o futuro certocomo realidade positiva, que se torna vivvel tambm o presente. Sendo assim, podemos agoradizer: o cristianismo no era apenas uma boa nova , ou seja, uma comunicao de contedos atento ignorados. Em linguagem actual, dir-se-ia: a mensagem crist no era s informativa , mas performativa . Significa isto que o Evangelho no apenas uma comunicao de realidades quese podem saber, mas uma comunicao que gera factos e muda a vida. A porta tenebrosa dotempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperana, vive diversamente; foi-lhe dada

  • uma vida nova.

    3. Porm, agora coloca-se a questo: em que consiste esta esperana que, enquanto esperana, redeno ? Pois bem, o ncleo da resposta encontra-se no trecho da Carta aos Efsios j citado:os Efsios, antes do encontro com Cristo, estavam sem esperana, porque estavam sem Deus nomundo . Chegar a conhecer Deus, o verdadeiro Deus: isto significa receber esperana. A ns, quedesde sempre convivemos com o conceito cristo de Deus e a ele nos habituamos, a posse dumatal esperana que provm do encontro real com este Deus quase nos passa despercebida. Oexemplo de uma santa da nossa poca pode, de certo modo, ajudar-nos a entender o que significaencontrar pela primeira vez e realmente este Deus. Refiro-me a Josefina Bakhita, uma africanacanonizada pelo Papa Joo Paulo II. Nascera por volta de 1869 ela mesma no sabia a dataprecisa no Darfur, Sudo. Aos nove anos de idade foi raptada pelos traficantes de escravos,espancada barbaramente e vendida cinco vezes nos mercados do Sudo. Por ltimo, acabouescrava ao servio da me e da esposa de um general, onde era diariamente seviciada at aosangue; resultado disso mesmo foram as 144 cicatrizes que lhe ficaram para toda a vida.Finalmente, em 1882, foi comprada por um comerciante italiano para o cnsul Callisto Legnanique, ante a avanada dos mahdistas, voltou para a Itlia. Aqui, depois de patres to terrveisque a tiveram como sua propriedade at agora, Bakhita acabou por conhecer um patro totalmente diferente no dialecto veneziano que agora tinha aprendido, chamava paron aoDeus vivo, ao Deus de Jesus Cristo. At ento s tinha conhecido patres que a desprezavam emaltratavam ou, na melhor das hipteses, a consideravam uma escrava til. Mas agora ouvia dizerque existe um paron acima de todos os patres, o Senhor de todos os senhores, e que esteSenhor bom, a bondade em pessoa. Soube que este Senhor tambm a conhecia, tinha-a criado;mais ainda, amava-a. Tambm ela era amada, e precisamente pelo Paron supremo, diante doqual todos os outros patres no passam de miserveis servos. Ela era conhecida, amada eesperada; mais ainda, este Patro tinha enfrentado pessoalmente o destino de ser flagelado e agoraestava espera dela direita de Deus Pai . Agora ela tinha esperana ; j no aquelapequena esperana de achar patres menos cruis, mas a grande esperana: eu sou definitivamenteamada e acontea o que acontecer, eu sou esperada por este Amor. Assim a minha vida boa.Mediante o conhecimento desta esperana, ela estava redimida , j no se sentia escrava, masuma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efsios que,antes, estavam sem esperana e sem Deus no mundo: sem esperana porque sem Deus. Por isso,quando quiseram lev-la de novo para o Sudo, Bakhita negou-se; no estava disposta a deixar-seseparar novamente do seu Paron . A 9 de Janeiro de 1890, foi baptizada e crismada e recebeua Sagrada Comunho das mos do Patriarca de Veneza. A 8 de Dezembro de 1896, em Verona,pronunciou os votos na Congregao das Irms Canossianas e desde ento, a par dos servios nasacristia e na portaria do convento, em vrias viagens pela Itlia procurou sobretudo incitar misso: a libertao recebida atravs do encontro com o Deus de Jesus Cristo, sentia que deviaestend-la, tinha de ser dada tambm a outros, ao maior nmero possvel de pessoas. A esperana,que nascera para ela e a redimira , no podia guard-la para si; esta esperana devia chegar amuitos, chegar a todos.

    O conceito de esperana baseada sobre a f no Novo Testamento e na Igreja primitiva

    4. Antes de enfrentar a questo de saber se tambm para ns o encontro com aquele Deus que, emCristo, nos mostrou a sua Face e abriu o seu Corao poder ser performativo e no somente informativo , ou seja, se poder transformar a nossa vida a ponto de nos fazer sentir redimidosatravs da esperana que o mesmo exprime, voltemos de novo Igreja primitiva. No difcilnotar como a experincia da humilde escrava africana Bakhita foi tambm a experincia de muitaspessoas maltratadas e condenadas escravido no tempo do cristianismo nascente. O cristianismono tinha trazido uma mensagem scio-revolucionria semelhante de Esprtaco que tinhafracassado aps lutas cruentas. Jesus no era Esprtaco, no era um guerreiro em luta por umalibertao poltica, como Barrabs ou Bar-Kochba. Aquilo que Jesus Ele mesmo morto na cruz tinha trazido era algo de totalmente distinto: o encontro com o Senhor de todos os senhores, oencontro com o Deus vivo e, deste modo, o encontro com uma esperana que era mais forte do

  • que os sofrimentos da escravatura e, por isso mesmo, transformava a partir de dentro a vida e omundo. A novidade do que tinha acontecido revela-se, com a mxima evidncia, na Carta de SoPaulo a Filmon. Trata-se de uma carta, muito pessoal, que Paulo escreve no crcere e entrega aoescravo fugitivo Onsimo para o seu patro precisamente Filmon. verdade, Paulo envia denovo o escravo para o seu patro, de quem tinha fugido, e f-lo no impondo, mas suplicando: Venho pedir-te por Onsimo, meu filho, que gerei na priso [...]. De novo to enviei e tu torna areceb-lo, como s minhas entranhas [...]. Talvez ele se tenha apartado de ti por algum tempo, paraque tu o recobrasses para sempre, no j como escravo, mas, em vez de escravo, como irmomuito amado (Flm 10-16). Os homens que, segundo o prprio estado civil, se relacionam entresi como patres e escravos, quando se tornaram membros da nica Igreja passaram as ser entre siirmos e irms assim se tratavam os cristos mutuamente. Em virtude do Baptismo, tinham sidoregenerados, tinham bebido do mesmo Esprito e recebiam conjuntamente, um ao lado do outro, oCorpo do Senhor. Apesar de as estruturas externas permanecerem as mesmas, isto transformava asociedade a partir de dentro. Se a Carta aos Hebreus diz que os cristos no tm aqui nestemundo uma morada permanente, mas procuram a futura (cf. Heb 11, 13-14; Fil 3,20), isto nosignifica de modo algum adiar para uma perspectiva futura: a sociedade presente reconhecidapelos cristos como uma sociedade imprpria; eles pertencem a uma sociedade nova, rumo qualcaminham e que, na sua peregrinao, antecipada.

    5. Devemos acrescentar ainda um outro ponto de vista. A Primeira Carta aos Corntios (1,18-31) mostra-nos que uma grande parte dos primeiros cristos pertencia s classes baixas dasociedade e, por isso mesmo, se sentia livre para a experincia da nova esperana, comoconstatmos no exemplo de Bakhita. Porm, j desde os comeos, havia tambm converses nasclasses aristocrticas e cultas, visto que tambm estas viviam sem esperana e sem Deus nomundo . O mito tinha perdido a sua credibilidade; a religio romana de Estado tinha-seesclerosado em mero cerimonial, que se realizava escrupulosamente, mas reduzido j simplesmentea uma religio poltica . O racionalismo filosfico tinha relegado os deuses para o campo doirreal. O Divino era visto de variados modos nas foras csmicas, mas um Deus a Quem se podiarezar no existia. Paulo ilustra, de forma absolutamente apropriada, a problemtica essencial dareligio de ento, quando contrape vida segundo Cristo uma vida sob o domnio dos elementos do mundo (Col 2,8). Nesta perspectiva, pode ser esclarecedor um texto de SoGregrio Nazianzeno. Diz ele que, no momento em que os magos guiados pela estrela adoraramCristo, o novo rei, deu-se por encerrada a astrologia, pois agora as estrelas giram segundo a rbitadeterminada por Cristo [2] De facto, nesta cena fica invertida a concepo do mundo de ento,que hoje, de um modo distinto, aparece de novo florescente. No so os elementos do cosmo, asleis da matria que, no fim das contas, governam o mundo e o homem, mas um Deus pessoal quegoverna as estrelas, ou seja, o universo; as leis da matria e da evoluo no so a ltima instncia,mas razo, vontade, amor: uma Pessoa. E se conhecemos esta Pessoa e Ela nos conhece, entoverdadeiramente o poder inexorvel dos elementos materiais deixa de ser a ltima instncia;deixmos de ser escravos do universo e das suas leis, ento somos livres. Tal conscincia impeliuna antiguidade os nimos sinceros a indagar. O cu no est vazio. A vida no um simplesproduto das leis e da casualidade da matria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudoh uma vontade pessoal, h um Esprito que em Jesus Se revelou como Amor.[3]

    6. Os sarcfagos dos primrdios do cristianismo ilustram visivelmente esta concepo (com amorte diante dos olhos a questo do significado da vida torna-se inevitvel). A figura de Cristo interpretada, nos antigos sarcfagos, sobretudo atravs de duas imagens: a do filsofo e a dopastor. Em geral, por filosofia no se entendia ento uma difcil disciplina acadmica, tal como elase apresenta hoje. O filsofo era antes aquele que sabia ensinar a arte essencial: a arte de serrectamente homem, a arte de viver e de morrer. Certamente, j h muito tempo que os homens setinham apercebido de que boa parte dos que circulavam como filsofos, como mestres de vida,no passavam de charlates que com suas palavras granjeavam dinheiro, enquanto sobre averdadeira vida nada tinham a dizer. Isto era mais uma razo para se procurar o verdadeiro filsofoque soubesse realmente indicar o itinerrio da vida. Quase ao fim do sculo terceiro, encontramos

  • pela primeira vez em Roma, no sarcfago de um menino e no contexto da ressurreio de Lzaro,a figura de Cristo como o verdadeiro filsofo que, numa mo, segura o Evangelho e, na outra, obasto do viandante, prprio do filsofo. Com este basto, Ele vence a morte; o Evangelho traz averdade que os filsofos peregrinos tinham buscado em vo. Nesta imagem, que sucessivamentepor um longo perodo havia de perdurar na arte dos sarcfagos, torna-se evidente aquilo que tantoas pessoas cultas como as simples encontravam em Cristo: Ele diz-nos quem na realidade ohomem e o que ele deve fazer para ser verdadeiramente homem. Ele indica-nos o caminho, e estecaminho a verdade. Ele mesmo simultaneamente um e outra, sendo por isso tambm a vida deque todos ns andamos procura. Ele indica ainda o caminho para alm da morte; s quem tem apossibilidade de fazer isto um verdadeiro mestre de vida. O mesmo se torna visvel na imagem dopastor. Tal como sucedia com a representao do filsofo, assim tambm na figura do pastor aIgreja primitiva podia apelar-se a modelos existentes da arte romana. Nesta, o pastor era, em geral,expresso do sonho de uma vida serena e simples de que as pessoas, na confuso da grandecidade, sentiam saudade. Agora a imagem era lida no mbito de um novo cenrio que lhe conferiaum contedo mais profundo: O Senhor meu pastor, nada me falta [...] Mesmo que atravessevales sombrios, nenhum mal temerei, porque estais comigo (Sal 23[22], 1.4). O verdadeiropastor Aquele que conhece tambm o caminho que passa pelo vale da morte; Aquele que,mesmo na estrada da derradeira solido, onde ningum me pode acompanhar, caminha comigoservindo-me de guia ao atravess-la: Ele mesmo percorreu esta estrada, desceu ao reino da morte,venceu-a e voltou para nos acompanhar a ns agora e nos dar a certeza de que, juntamente comEle, acha-se uma passagem. A certeza de que existe Aquele que, mesmo na morte, me acompanhae com o seu basto e o seu cajado me conforta , de modo que no devo temer nenhum mal (cf. Sal 23[22],4): esta era a nova esperana que surgia na vida dos crentes.

    7. Devemos voltar, uma vez mais, ao Novo Testamento. No dcimo primeiro captulo da Cartaaos Hebreus (v. 1), encontra-se, por assim dizer, uma certa definio da f que entrelaaestreitamente esta virtude com a esperana. volta da palavra central desta frase comeou agerar-se desde a Reforma, uma discusso entre os exegetas, mas que parece hoje encaminhar-separa uma interpretao comum. Por enquanto, deixo o termo em questo sem traduzir. A frase soa,pois, assim: A f hypostasis das coisas que se esperam; prova das coisas que no se vem .Para os Padres e para os telogos da Idade Mdia era claro que a palavra grega hypostasis deviaser traduzida em latim pelo termo substantia. De facto, a traduo latina do texto, feita na Igrejaantiga, diz: Est autem fides sperandarum substantia rerum, argumentum non apparentium a f a substncia das coisas que se esperam; a prova das coisas que no se vem . Toms deAquino,[4] servindo-se da terminologia da tradio filosfica em que se encontra, explica: a f um habitus , ou seja, uma predisposio constante do esprito, em virtude do qual a vida eterna temincio em ns e a razo levada a consentir naquilo que no v. Deste modo, o conceito de substncia modificado para significar que pela f, de forma incoativa poderamos dizer emgrmen e portanto segundo a substncia j esto presentes em ns as coisas que seesperam: a totalidade, a vida verdadeira. E precisamente porque a coisa em si j est presente, estapresena daquilo que h-de vir cria tambm certeza: esta coisa que deve vir ainda no visvelno mundo externo (no aparece ), mas pelo facto de a trazermos, como realidade incoativa edinmica dentro de ns, surge j agora uma certa percepo dela. Para Lutero, que no nutriamuita simpatia pela Carta aos Hebreus em si prpria, o conceito de substncia , no contexto dasua viso da f, nada significava. Por isso, interpretou o termo hipstase/substncia no nosentido objectivo (de realidade presente em ns), mas no subjectivo, isto , como expresso deuma atitude interior e, consequentemente, teve naturalmente de entender tambm o termoargumentum como uma disposio do sujeito. No sculo XX, esta interpretao imps-setambm na exegese catlica pelo menos na Alemanha de modo que a traduo ecumnica emalemo do Novo Testamento, aprovada pelos Bispos diz: Glaube aber ist: Feststehen in dem,was man erhofft, berzeugtsein von dem, was man nicht sieht (f : permanecer firmesnaquilo que se espera, estar convencidos daquilo que no se v). Em si mesmo, isto no esterrado; mas no o sentido do texto, porque o termo grego usado (elenchos) no tem o valorsubjectivo de convico , mas o valor objectivo de prova . Com razo, pois, a recente

  • exegese protestante chegou a uma convico diversa: Agora, porm, j no restam dvidas deque esta interpretao protestante, tida como clssica, insustentvel .[5] A f no s umainclinao da pessoa para realidades que ho-de vir, mas esto ainda totalmente ausentes; ela d-nos algo. D-nos j agora algo da realidade esperada, e esta realidade presente constitui para nsuma prova das coisas que ainda no se vem. Ela atrai o futuro para dentro do presente, demodo que aquele j no o puro ainda-no . O facto de este futuro existir, muda o presente; opresente tocado pela realidade futura, e assim as coisas futuras derramam-se naquelas presentese as presentes nas futuras.

    8. Esta explicao fica ainda mais reforada e aplicada vida concreta, se considerarmos oversculo 34 do dcimo captulo da Carta aos Hebreus que, sob o aspecto da lngua e docontedo, tem a ver com esta definio de uma f perpassada de esperana e prepara-a. No texto,o autor fala aos crentes que viveram a experincia da perseguio, dizendo-lhes: No s voscompadecestes dos encarcerados, mas aceitastes com alegria a confiscao dos vossos bens(hyparchonton Vg: bonorum), sabendo que possus uma riqueza melhor (hyparxin Vg:substantiam) e imperecvel . Hyparchonta so as propriedades, aquilo que na vida terrenaconstitui a sustentao, precisamente a base, a substncia da qual se necessita para viver. Esta substncia , a segurana normal para a vida, foi tirada aos cristos durante a perseguio. Elessuportaram-no, porque em todo o caso consideravam transcurvel esta substncia material.Podiam prescindir dela, porque tinham achado uma base melhor para a sua existncia umabase que permanece e que ningum lhes pode tirar. No possvel deixar de ver a ligao existenteentre estas duas espcies de substncia , entre a sustentao ou base material e a afirmao daf como base , como substncia que permanece. A f confere vida uma nova base, umnovo fundamento, sobre o qual o homem se pode apoiar, e consequentemente, o fundamentohabitual, ou seja a confiana na riqueza material, relativiza-se. Cria-se uma nova liberdade diantedeste fundamento da vida que s aparentemente capaz de sustentar, embora o seu significadonormal no seja certamente negado com isso. Esta nova liberdade, a conscincia da nova substncia que nos foi dada, ficou patente no martrio, quando as pessoas se opuseram prepotncia da ideologia e dos seus rgos polticos e, com a sua morte, renovaram o mundo. Masno s no martrio... Aquela manifestou-se sobretudo nas grandes renncias a comear dosmonges da antiguidade at Francisco de Assis e s pessoas do nosso tempo que, nos Institutos eMovimentos religiosos actuais, deixaram tudo para levar aos homens a f e o amor de Cristo, paraajudar as pessoas que sofrem no corpo e na alma. Aqui a nova substncia confirmou-serealmente como substncia : da esperana destas pessoas tocadas por Cristo brotou esperanapara outros que viviam na escurido e sem esperana. Ficou demonstrado que esta nova vidapossui realmente substncia e substncia que suscita vida para os outros. Para ns, quevemos tais figuras, este seu actuar e viver , de facto, uma prova de que as coisas futuras, ouseja, a promessa de Cristo no uma realidade apenas esperada, mas uma verdadeira presena:Ele realmente o filsofo e o pastor que nos indica o que seja e onde est a vida.

    9. Para compreender mais profundamente esta reflexo sobre as duas espcies de substncias -hypostasis e hyparchonta e sobre as duas maneiras de viver que com elas se exprimem,devemos reflectir ainda brevemente sobre duas palavras referentes ao assunto, que se encontramno dcimo captulo da Carta aos Hebreus. Trata-se das palavras hypomone (10,36) e hypostole(10,39). Hypomone traduz-se normalmente por pacincia , perseverana, constncia. Estesaber esperar, suportando pacientemente as provas, necessrio para o crente poder obter ascoisas prometidas (cf. 10,36). Na religiosidade do antigo judasmo, esta palavra era usadaexpressamente para a espera de Deus, caracterstica de Israel, para este perseverar na fidelidade aDeus, na base da certeza da Aliana, num mundo que contradiz a Deus. Sendo assim, a palavraindica uma esperana vivida, uma vida baseada na certeza da esperana. No Novo Testamento,esta espera de Deus, este estar da parte de Deus assume um novo significado: que em Cristo,Deus manifestou-Se. Comunicou-nos j a substncia das coisas futuras, e assim a espera deDeus adquire uma nova certeza. espera das coisas futuras a partir de um dom j presente. espera na presena de Cristo, isto , com Cristo presente que se completa no seu Corpo, na

  • perspectiva da sua vinda definitiva. Diversamente com hypostole, exprime-se o esquivar-se dealgum que no ousa dizer, abertamente e com franqueza, a verdade talvez perigosa. Estedissimular por esprito de temor diante dos homens, conduz perdio (Heb 10,39). Pois, Deus no nos deu um esprito de timidez, mas de fortaleza, amor e sabedoria , l-se na SegundaCarta a Timteo (1,7) caracterizando assim, com uma bela expresso, a atitude fundamental docristo.

    A vida eterna o que ?

    10. At agora estivemos a falar da f e da esperana no Novo Testamento e nos incios docristianismo, mas deixando sempre claro que no se tratava apenas do passado; toda a reflexofeita tem a ver com a vida e a morte do homem em geral e, portanto, interessa-nos tambm a ns,aqui e agora. Chegou o momento, porm, de nos colocarmos explicitamente a questo: para ns,hoje a f crist tambm uma esperana que transforma e sustenta a nossa vida? Para ns aquela performativa uma mensagem que plasma de modo novo a mesma vida ou simplesmente informao que, entretanto, pusemos de lado porque nos parece superada por informaes maisrecentes? Na busca de uma resposta, desejo partir da forma clssica do dilogo, usado no rito doBaptismo, para exprimir o acolhimento do recm-nascido na comunidade dos crentes e o seurenascimento em Cristo. O sacerdote perguntava, antes de mais nada, qual era o nome que os paistinham escolhido para a criana, e prosseguia: O que que pedis Igreja? . Resposta: A f . E o que que vos d a f? . A vida eterna . Como vemos por este dilogo, os pais pediampara a criana o acesso f, a comunho com os crentes, porque viam na f a chave para a vidaeterna . Com efeito hoje, como sempre, disto que se trata no Baptismo, quando nos tornamoscristos: no somente um acto de socializao no mbito da comunidade, nem simplesmente deacolhimento na Igreja. Os pais esperam algo mais para o baptizando: esperam que a f de que fazparte a corporeidade da Igreja e dos seus sacramentos lhe d a vida, a vida eterna. F substncia da esperana. Aqui, porm, surge a pergunta: Queremos ns realmente isto: vivereternamente? Hoje, muitas pessoas rejeitam a f, talvez simplesmente porque a vida eterna no lhesparece uma coisa desejvel. No querem de modo algum a vida eterna, mas a presente; antes, a fna vida eterna parece, para tal fim, um obstculo. Continuar a viver eternamente sem fim parecemais uma condenao do que um dom. Certamente a morte queria-se adi-la o mais possvel. Mas,viver sempre, sem um termo, acabaria por ser fastidioso e, em ltima anlise, insuportvel. istoprecisamente que diz, por exemplo, o Padre da Igreja Ambrsio na sua elegia pelo irmo defuntoStiro: Sem dvida, a morte no fazia parte da natureza, mas tornou-se natural; porque Deus noinstituiu a morte ao princpio, mas deu-a como remdio. Condenada pelo pecado a um trabalhocontnuo e a lamentaes insuportveis, a vida dos homens comeou a ser miservel. Deus teve depr fim a estes males, para que a morte restitusse o que a vida tinha perdido. Com efeito, aimortalidade seria mais penosa que benfica, se no fosse promovida pela graa .[6] Antes,Ambrsio tinha dito: No devemos chorar a morte, que a causa de salvao universal [7].

    11. Independentemente do que Santo Ambrsio quisesse dizer precisamente com estas palavras, certo que a eliminao da morte ou mesmo o seu adiamento quase ilimitado, deixaria a terra e ahumanidade numa condio impossvel e nem mesmo prestaria um benefcio ao indivduo.Obviamente h uma contradio na nossa atitude, que evoca um conflito interior da nossa mesmaexistncia. Por um lado, no queremos morrer; sobretudo quem nos ama no quer que morramos.Mas, por outro, tambm no desejamos continuar a existir ilimitadamente, nem a terra foi criadacom esta perspectiva. Ento, o que que queremos na realidade? Este paradoxo da nossa prpriaconduta suscita uma questo mais profunda: o que , na verdade, a vida ? E o que significarealmente eternidade ? H momentos em que de repente temos a sua percepo: sim, isto seriaprecisamente a vida verdadeira, assim deveria ser. Em comparao, aquilo que no dia-a-diachamamos vida , na verdade no o . Agostinho, na sua extensa carta sobre a orao, dirigida aProba uma viva romana rica e me de trs cnsules , escreve: no fundo, queremos uma scoisa, a vida bem-aventurada , a vida que simplesmente vida, pura felicidade . No fim decontas, nada mais pedimos na orao. S para ela caminhamos; s disto se trata. Porm, depoisAgostinho diz tambm: se considerarmos melhor, no fundo no sabemos realmente o que

  • desejamos, o que propriamente queremos. No conhecemos de modo algum esta realidade;mesmo naqueles momentos em que pensamos toc-la, no a alcanamos realmente. Nosabemos o que convm pedir confessa ele citando So Paulo (Rm 8,26). Sabemos apenas queno isto. Porm, no facto de no saber sabemos que esta realidade deve existir. H em ns,por assim dizer, uma douta ignorncia (docta ignorantia) escreve ele. No sabemos realmenteo que queremos; no conhecemos esta vida verdadeira ; e, no entanto, sabemos que deve existiralgo que no conhecemos e para isso nos sentimos impelidos.[8]

    12. Penso que Agostinho descreve aqui, de modo muito preciso e sempre vlido, a situaoessencial do homem, uma situao donde provm todas as suas contradies e as suas esperanas.De certo modo, desejamos a prpria vida, a vida verdadeira, que depois no seja tocada sequerpela morte; mas, ao mesmo tempo, no conhecemos aquilo para que nos sentimos impelidos. Nopodemos deixar de tender para isto e, no entanto, sabemos que tudo quanto podemosexperimentar ou realizar no aquilo por que anelamos. Esta coisa desconhecida a verdadeira esperana que nos impele e o facto de nos ser desconhecida , ao mesmo tempo, a causa detodas as ansiedades como tambm de todos os mpetos positivos ou destruidores para o mundoautntico e o homem verdadeiro. A palavra vida eterna procura dar um nome a estadesconhecida realidade conhecida. Necessariamente uma expresso insuficiente, que criaconfuso. Com efeito, eterno suscita em ns a ideia do interminvel, e isto nos amedronta; vida , faz-nos pensar na existncia por ns conhecida, que amamos e no queremos perder, masque, frequentemente, nos reserva mais canseiras que satisfaes, de tal maneira que se por um ladoa desejamos, por outro no a queremos. A nica possibilidade que temos procurar sair, com opensamento, da temporalidade de que somos prisioneiros e, de alguma forma, conjecturar que aeternidade no seja uma sucesso contnua de dias do calendrio, mas algo parecido com oinstante repleto de satisfao, onde a totalidade nos abraa e ns abraamos a totalidade. Seria oinstante de mergulhar no oceano do amor infinito, no qual o tempo o antes e o depois j noexiste. Podemos somente procurar pensar que este instante a vida em sentido pleno, umincessante mergulhar na vastido do ser, ao mesmo tempo que ficamos simplesmente inundadospela alegria. Assim o exprime Jesus, no Evangelho de Joo: Eu hei-de ver-vos de novo; e o vossocorao alegrar-se- e ningum vos poder tirar a vossa alegria (16,22). Devemos olhar nestesentido, se quisermos entender o que visa a esperana crist, o que esperamos da f, do nossoestar com Cristo.[9]

    A esperana crist individualista?

    13. Ao longo da sua histria, os cristos procuraram traduzir este saber, que desconhece, emfiguras ilustrativas, explanando imagens do cu que ficam sempre aqum daquilo queconhecemos precisamente s por negao, atravs de um no-conhecimento. Todas estastentativas de representao da esperana deram a muitos, no decorrer dos sculos, a coragem deviverem segundo a f e, assim, abandonarem inclusivamente os seus hyparchonta , os bensmateriais para a sua existncia. O autor da Carta aos Hebreus, no dcimo primeiro captulo,traou, por assim dizer, uma histria daqueles que vivem na esperana e da sua condio decaminhantes, uma histria que desde Abel chega at sua poca. Contra este tipo de esperanaacendeu-se, na idade moderna, uma crtica sempre mais dura: tratar-se-ia de puro individualismo,que teria abandonado o mundo sua misria indo refugiar-se numa salvao eterna puramenteprivada. Henry de Lubac, na introduo sua obra fundamental Catholicisme. Aspects sociauxdu dogme , recolheu algumas vozes caractersticas deste tipo, uma das quais merece ser citada: Ser que encontrei a alegria? No... Encontrei a minha alegria. O que algo terrivelmentediferente... A alegria de Jesus pode ser individual. Pode pertencer a uma s pessoa, e esta estsalva. Est em paz... agora e para sempre, mas ela s. Esta solido na alegria no a perturba. Pelocontrrio: ela sente-se precisamente a eleita! Na sua bem-aventurana, atravessa as batalhas comuma rosa na mo .[10]

    14. A este respeito, Henry de Lubac, baseando-se na teologia dos Padres em toda a sua amplido,pde demonstrar que a salvao foi sempre considerada como uma realidade comunitria. A

  • mesma Carta aos Hebreus fala de uma cidade (cf. 11,10.16; 12,22; 13,14) e, portanto, deuma salvao comunitria. Coerentemente, o pecado entendido pelos Padres como destruio daunidade do gnero humano, como fragmentao e diviso. Babel, o lugar da confuso das lnguas eda separao, apresenta-se como expresso daquilo que radicalmente o pecado. Deste modo, a redeno aparece precisamente como a restaurao da unidade, onde nos encontramosnovamente juntos numa unio que se delnea na comunidade mundial dos crentes. No necessrioocuparmo-nos aqui de todos os textos, onde transparece o carcter comunitrio da esperana.Retomemos a Carta a Proba em que Agostinho tenta ilustrar um pouco esta desconhecidarealidade conhecida de que andamos procura. O seu ponto de partida simplesmente aexpresso vida bem-aventurada [feliz] . Em seguida cita o Salmo 144 (143), 15: Feliz o povocujo Deus o Senhor . E continua: Para poder formar parte deste povo e [...] viver eternamentecom Ele, recordemos que o fim dos mandamentos promover a caridade, que procede de umcorao puro, de uma conscincia recta e de uma f sincera (1 Tm 1,5) .[11] Esta vidaverdadeira, para a qual sempre tendemos, depende do facto de se estar na unio existencial comum povo e pode realizar-se para cada pessoa somente no mbito deste ns . Aquelapressupe, precisamente, o xodo da priso do prprio eu , pois s na abertura deste sujeitouniversal que se abre tambm o olhar para a fonte da alegria, para o amor em pessoa, para Deus.

    15. Esta viso da vida bem-aventurada orientada para a comunidade visa, certamente, algo queest para alm do mundo presente, mas precisamente deste modo que ela tem a ver tambm coma edificao do mundo segundo formas muito distintas, conforme o contexto histrico e aspossibilidades por ele oferecidas ou excludas. No tempo de Agostinho, quando a irrupo denovos povos ameaava aquela coeso do mundo que dava uma certa garantia de direito e de vidanuma comunidade jurdica, tratava-se de fortalecer os fundamentos realmente basilares destacomunidade de vida e de paz, para poder sobreviver no meio da transformao do mundo.Deixando de lado outros casos, procuremos lanar um olhar sobre um momento da Idade Mdia,emblemtico sob determinados aspectos. Na conscincia comum, os mosteiros eram vistos comoos lugares da fuga do mundo ( contemptus mundi ) e do subtrair-se responsabilidade pelomundo na procura da salvao privada. Bernardo de Claraval, que, com a sua Ordem reformada,trouxe uma multido de jovens para os mosteiros, tinha a este respeito uma viso muito distinta. Nasua opinio, os monges desempenham uma tarefa para bem de toda a Igreja e, por conseguinte,tambm de todo o mundo. Com muitas imagens, ele ilustra a responsabilidade dos monges peloorganismo inteiro da Igreja, antes, pela humanidade; aplica a eles esta frase do Pseudo-Rufino: Ognero humano vive graas a poucos; se estes no existissem, o mundo pereceria... .[12] Oscontemplativos (contemplantes) devem tornar-se trabalhadores agrcolas (laborantes) diz ele. Anobreza do trabalho, que o cristianismo herdou do judasmo, estava patente nas regras monsticasde Agostinho e de Bento. Bernardo retoma este conceito. Os jovens nobres que afluam aos seusmosteiros deviam submeter-se ao trabalho manual. verdade que Bernardo diz explicitamente quenem mesmo o mosteiro pode restabelecer o Paraso; mas defende que aquele deve, como lugar deamanho manual e espiritual, preparar o novo Paraso. O terreno bravio de um bosque torna-sefrtil, precisamente quando, ao mesmo tempo, se deitam abaixo as rvores da soberba, se extirpa oque de bravio cresce nas almas e se prepara assim o terreno onde possa prosperar po para ocorpo e para a alma.[13] Por acaso, olhando precisamente a histria actual, no se constatanovamente que nenhuma estruturao positiva do mundo possvel nos lugares onde as almas sebrutalizam?

    A transformao da f-esperana crist no tempo moderno

    16. Como pde desenvolver-se a ideia de que a mensagem de Jesus estritamente individualista evisa apenas o indivduo? Como que se chegou a interpretar a salvao da alma como fuga daresponsabilidade geral e, consequentemente, a considerar o programa do cristianismo como buscaegosta da salvao que se recusa a servir os outros? Para encontrar uma resposta questo,devemos lanar um olhar sobre as componentes fundamentais do tempo moderno. Estas aparecem,com particular clareza, em Francisco Bacon. Que uma nova poca tenha surgido graas descoberta da Amrica e s novas conquistas tcnicas que permitiram este desenvolvimento um

  • dado fora de discusso. Mas, sobre o que que se baseia esta mudana epocal? a novacorrelao de experincia e mtodo que coloca o homem em condies de chegar a umainterpretao da natureza conforme s suas leis e, deste modo, conseguir finalmente a vitria daarte sobre a natureza (victoria cursus artis super naturam).[14] A novidade conforme aviso de Bacon est numa nova correlao entre cincia e prtica. Isto foi depois aplicadotambm teologicamente: esta nova correlao entre cincia e prtica significaria que o domniosobre a criao, dado ao homem por Deus e perdido no pecado original, ficaria restabelecido.[15]

    17. Quem l estas afirmaes e nelas reflecte com ateno, reconhece uma transiodesconcertante: at ento a recuperao daquilo que o homem, expulso do paraso terrestre, tinhaperdido esperava-se da f em Jesus Cristo, e nisto se via a redeno . Agora, esta redeno ,a restaurao do paraso perdido, j no se espera da f, mas da ligao recm-descobertaentre cincia e prtica. Com isto, no que se negue simplesmente a f; mas, esta acaba deslocadapara outro nvel o das coisas somente privadas e ultraterrestres e, simultaneamente, torna-se dealgum modo irrelevante para o mundo. Esta viso programtica determinou o caminho dos temposmodernos, e influencia inclusive a actual crise da f que, concretamente, sobretudo uma crise daesperana crist. Assim tambm a esperana, segundo Bacon, ganha uma nova forma. Agorachama-se f no progresso. Com efeito, para Bacon, resulta claro que os descobrimentos e asrecentes invenes so apenas um comeo e que, graas sinergia entre cincia e prtica, seguir-se-o descobertas completamente novas, surgir um mundo totalmente novo, o reino do homem.[16] Nesta linha, apresentou um panorama das invenes previsveis, chegando ao avio e aosubmarino. Ao longo do sucessivo desenvolvimento da ideologia do progresso, a alegria pelosavanos palpveis das potencialidades humanas permanece uma confirmao constante da f noprogresso enquanto tal.

    18. Simultaneamente, h duas categorias que penetram sempre mais no centro da ideia deprogresso: razo e liberdade. Aquele sobretudo um progresso no crescente domnio da razo,sendo esta considerada obviamente um poder do bem e para o bem. O progresso a superaode todas as dependncias; avano para a liberdade perfeita. Tambm a liberdade vista s comopromessa, na qual o homem se realiza rumo plenitude. Em ambos os conceitos liberdade erazo est presente um aspecto poltico. O reino da razo, de facto, aguardado como a novacondio da humanidade feita totalmente livre. Todavia, as condies polticas deste reino da razoe da liberdade aparecem, primeira vista, pouco definidas. Razo e liberdade parecem garantir porsi mesmas, em virtude da sua intrnseca bondade, uma nova comunidade humana perfeita. Nos doisconceitos-chave de razo e liberdade , tacitamente o pensamento coloca-se sempre emcontraste com os vnculos da f e da Igreja, como tambm com os vnculos dos ordenamentosestatais de ento. Por isso, ambos os conceitos trazem em si um potencial revolucionrio deenorme fora explosiva.

    19. Temos de lanar brevemente um olhar sobre duas etapas essenciais da concretizao polticadesta esperana, porque so de grande importncia para o caminho da esperana crist, para a suacompreenso e persistncia. H, antes de mais nada, a Revoluo francesa como tentativa deinstaurar o domnio da razo e da liberdade agora tambm de modo politicamente real.Inicialmente, a Europa do Iluminismo contemplou fascinada estes acontecimentos, mas depois, vista da sua evoluo, teve de reflectir de modo novo sobre razo e liberdade. Significativos destasduas fases de recepo do que acontecera em Frana so dois escritos de Emanuel Kant, nosquais ele reflecte sobre os acontecimentos. Em 1792, escreve a obra Der Sieg des gutenPrinzips ber das bse und die Grndung eines Reichs Gottes auf Erden (A vitria doprincpio bom sobre o princpio mau e a constituio de um reino de Deus sobre a terra). Nelaafirma: A passagem gradual da f eclesistica ao domnio exclusivo da pura f religiosa constitui aaproximao do reino de Deus .[17] Diz tambm que as revolues podem apressar os temposdesta passagem da f eclesistica f racional. O reino de Deus , de que falara Jesus, recebeuaqui uma nova definio e assumiu tambm uma nova presena; existe, por assim dizer, uma nova expectativa imediata : o reino de Deus chega onde a f eclesistica superada e substitudapela f religiosa , ou seja, pela mera f racional. Em 1794, no livro Das Ende aller Dinge

  • (O fim de todas as coisas), aparece uma imagem diferente. Agora, Kant toma em considerao apossibilidade de que, a par do fim natural de todas as coisas, se verifique tambm um fim contrrio natureza, perverso. Escreve a tal respeito: Se acontecesse um dia chegar o cristianismo a noser mais digno de amor, ento o pensamento dominante dos homens deveria tomar a forma derejeio e de oposio contra ele; e o anticristo [...] inauguraria o seu regime, mesmo que breve,(baseado presumivelmente sobre o medo e o egosmo). Em seguida, porm, visto que ocristianismo, embora destinado a ser a religio universal, de facto no teria sido ajudado pelodestino a s-lo, poderia verificar-se, sob o aspecto moral, o fim (perverso) de todas as coisas.[18]

    20. O sculo XIX no perdeu a sua f no progresso como nova forma da esperana humana econtinuou a considerar razo e liberdade como as estrelas-guia a seguir no caminho da esperana.Todavia a evoluo sempre mais rpida do progresso tcnico e a industrializao com elerelacionada criaram, bem depressa, uma situao social completamente nova: formou-se a classedos trabalhadores da indstria e o chamado proletariado industrial , cujas terrveis condies devida foram ilustradas de modo impressionante por Frederico Engels, em 1845. Ao leitor, deviaresultar claro que isto no pode continuar; necessria uma mudana. Mas a mudana haveria deabalar e derrubar toda a estrutura da sociedade burguesa. Depois da revoluo burguesa de 1789,tinha chegado a hora para uma nova revoluo: a proletria. O progresso no podia limitar-se aavanar de forma linear e com pequenos passos. Urgia o salto revolucionrio. Karl Marx recolheueste apelo do momento e, com vigor de linguagem e de pensamento, procurou iniciar este novopasso grande e, como supunha, definitivo da histria rumo salvao, rumo quilo que Kant tinhaqualificado como o reino de Deus . Tendo-se diluda a verdade do alm, tratar-se-ia agora deestabelecer a verdade de aqum. A crtica do cu transforma-se na crtica da terra, a crtica dateologia na crtica da poltica. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom,j no vem simplesmente da cincia, mas da poltica de uma poltica pensada cientificamente, quesabe reconhecer a estrutura da histria e da sociedade, indicando assim a estrada da revoluo, damudana de todas as coisas. Com pontual preciso, embora de forma unilateralmente parcial, Marxdescreveu a situao do seu tempo e ilustrou, com grande capacidade analtica, as vias para arevoluo. E no s teoricamente, pois com o partido comunista, nascido do manifesto comunistade 1848, tambm a iniciou concretamente. A sua promessa, graas agudeza das anlises e claraindicao dos instrumentos para a mudana radical, fascinou e no cessa de fascinar ainda hoje. Ea revoluo deu-se, depois, na forma mais radical na Rssia.

    21. Com a sua vitria, porm, tornou-se evidente tambm o erro fundamental de Marx. Ele indicoucom exactido o modo como realizar o derrubamento. Mas, no nos disse, como as coisasdeveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriao da classedominante, a queda do poder poltico e a socializao dos meios de produo, ter-se-ia realizado aNova Jerusalm. Com efeito, ento ficariam anuladas todas as contradies; o homem e o mundohaveriam finalmente de ver claro em si prprios. Ento tudo poderia proceder espontaneamentepelo recto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para ooutro. Assim, depois de cumprida a revoluo, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre,no se achava qualquer indicao sobre o modo como proceder. verdade que ele tinha falado dafase intermdia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porm, num segundomomento ela mesma se demonstraria caduca. Esta fase intermdia conhecemo-la muito bem esabemos tambm como depois evoluiu, no dando luz o mundo sadio, mas deixando atrs de siuma destruio desoladora. Marx no falhou s ao deixar de idealizar os ordenamentos necessriospara o mundo novo; com efeito, j no deveria haver mais necessidade deles. O facto de no dizernada sobre isso lgica consequncia da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidademaior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sualiberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensavaque, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro omaterialismo: de facto, o homem no s o produto de condies econmicas nem se pode cur-lo apenas do exterior criando condies econmicas favorveis.

  • 22. Encontramo-nos assim novamente diante da questo: o que que podemos esperar? necessria uma autocrtica da idade moderna feita em dilogo com o cristianismo e com a suaconcepo da esperana. Neste dilogo, tambm os cristos devem aprender de novo, nocontexto dos seus conhecimentos e experincias, em que consiste verdadeiramente a suaesperana, o que que temos para oferecer ao mundo e, ao contrrio, o que que no podemosoferecer. preciso que, na autocrtica da idade moderna, conflua tambm uma autocrtica docristianismo moderno, que deve aprender sempre de novo a compreender-se a si mesmo a partirdas prprias razes. A este respeito, pode-se aqui mencionar somente alguns indcios. Antes demais, devemos perguntar-nos: o que que significa verdadeiramente progresso ; o que que elepromete e o que que no promete? No sculo XIX, j existia uma crtica f no progresso. Nosculo XX, Teodoro W. Adorno formulou, de modo drstico, a problematicidade da f noprogresso: este, visto de perto, seria o progresso da funda megabomba. Certamente, este umlado do progresso que no se deve encobrir. Dito de outro modo: torna-se evidente a ambiguidadedo progresso. No h dvida que este oferece novas potencialidades para o bem, mas abretambm possibilidades abissais de mal possibilidades que antes no existiam. Todos fomostestemunhas de como o progresso em mos erradas possa tornar-se, e tornou-se realmente, umprogresso terrvel no mal. Se ao progresso tcnico no corresponde um progresso na formaotica do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2 Cor 4,16), ento aquele no um progresso, mas uma ameaa para o homem e para o mundo.

    23. No que diz respeito aos dois grandes temas razo e liberdade , aqui possvel apenasacenar s questes relacionadas com eles. Sem dvida, a razo o grande dom de Deus aohomem, e a vitria da razo sobre a irracionalidade tambm um objectivo da f crist. Mas,quando que a razo domina verdadeiramente? Quando se separou de Deus? Quando ficou cegaa Deus? A razo inteira reduz-se razo do poder e do fazer? Se o progresso, para ser dignodeste nome necessita do crescimento moral da humanidade, ento a razo do poder e do fazerdeve de igual modo urgentemente ser integrada mediante a abertura da razo s foras salvficas daf, ao discernimento entre o bem e o mal. Somente assim que se torna uma razoverdadeiramente humana. Torna-se humana apenas se for capaz de indicar o caminho vontade, es capaz disso se olhar para alm de si prpria. Caso contrrio, a situao do homem, devido discrepncia entre a capacidade material e a falta de juzo do corao, torna-se uma ameaa paraele e para a criao. Por isso, falando de liberdade, preciso recordar que a liberdade humanarequer sempre um concurso de vrias liberdades. Este concurso, porm, no se pode efectuar seno for determinado por um critrio intrnseco comum de ponderao, que fundamento e meta danossa liberdade. Digamos isto de uma forma mais simples: o homem tem necessidade de Deus; decontrrio, fica privado de esperana. Consideradas as mudanas da era moderna, a afirmao deS. Paulo, citada ao princpio (Ef 2,12), revela-se muito realista e inteiramente verdadeira. Portanto,no h dvida de que um reino de Deus realizado sem Deus e por conseguinte um reinosomente do homem resolve-se inevitavelmente no fim perverso de todas as coisas, descritopor Kant: j o vimos e vemo-lo sempre de novo. De igual modo, tambm no h dvida de que,para Deus entrar verdadeiramente nas realidades humanas, no basta ser pensado por ns, requer-se que Ele mesmo venha ao nosso encontro e nos fale. Por isso, a razo necessita da f parachegar a ser totalmente ela prpria: razo e f precisam uma da outra para realizar a sua verdadeiranatureza e misso.

    A verdadeira fisionomia da esperana crist

    24. Retomemos agora a questo: o que que podemos esperar? E o que que no podemosesperar? Antes de mais, devemos constatar que um progresso por adio s possvel no campomaterial. Aqui, no conhecimento crescente das estruturas da matria e correlativas invenes cadavez mais avanadas, verifica-se claramente uma continuidade do progresso rumo a um domniosempre maior da natureza. Mas, no mbito da conscincia tica e da deciso moral, no h talpossibilidade de adio, simplesmente porque a liberdade do homem sempre nova e deve semprede novo tomar as suas decises. Nunca aparecem simplesmente j tomadas em nossa vez poroutros neste caso, de facto, deixaramos de ser livres. A liberdade pressupe que, nas decises

  • fundamentais, cada homem, cada gerao seja um novo incio. Certamente as novas geraes, talcomo podem construir sobre os conhecimentos e as experincias daqueles que as precederam,podem haurir do tesouro moral da humanidade inteira. Mas podem tambm recus-lo, pois esteno pode ter a mesma evidncia das invenes materiais. O tesouro moral da humanidade no estpresente como o esto os instrumentos que se usam; aquele existe como convite liberdade ecomo sua possibilidade. Isto, porm, significa que:

    a) O recto estado das coisas humanas, o bem-estar moral do mundo no pode jamais ser garantidosimplesmente mediante as estruturas, por mais vlidas que estas sejam. Tais estruturas so no simportantes, mas necessrias; todavia, no podem nem devem impedir a liberdade do homem.Inclusive, as melhores estruturas s funcionam se numa comunidade subsistem convices quesejam capazes de motivar os homens para uma livre adeso ao ordenamento comunitrio. Aliberdade necessita de uma convico; esta no existe por si mesma, mas deve ser semprenovamente conquistada comunitariamente.

    b) Visto que o homem permanece sempre livre e dado que a sua liberdade tambm sempre frgil,no existir jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado. Quem prometesse omundo melhor que duraria irrevocavelmente para sempre, faria uma promessa falsa; ignora aliberdade humana. A liberdade deve ser incessantemente conquistada para o bem. A livre adesoao bem nunca acontece simplesmente por si mesma. Se houvesse estruturas que fixassem de modoirrevogvel uma determinada boa condio do mundo, ficaria negada a liberdade do homem e,por este motivo, no seriam de modo algum, em definitivo, boas estruturas.

    25. Consequncia de tudo isto que a busca sempre nova e trabalhosa de rectos ordenamentospara as realidades humanas tarefa de cada gerao: nunca uma tarefa que se possasimplesmente dar por concluda. Mas, cada gerao deve dar a prpria contribuio paraestabelecer razoveis ordenamentos de liberdade e de bem, que ajudem a gerao seguinte na suaorientao para o recto uso da liberdade humana, dando assim sempre dentro dos limiteshumanos uma certa garantia para o futuro tambm. Por outras palavras: as boas estruturasajudam, mas por si s no bastam. O homem no poder jamais ser redimido simplesmente a partirde fora. Equivocaram-se Francisco Bacon e os adeptos da corrente de pensamento da idademoderna nele inspirada, ao considerar que o homem teria sido redimido atravs da cincia. Comuma tal expectativa, est-se a pedir demasiado cincia; esta espcie de esperana falaz. Acincia pode contribuir muito para a humanizao do mundo e dos povos. Mas, pode tambmpode destruir o homem e o mundo, se no for orientada por foras que se encontram fora dela.Alm disso, devemos constatar tambm que o cristianismo moderno, diante dos sucessos dacincia na progressiva estruturao do mundo, tinha-se concentrado em grande parte somentesobre o indivduo e a sua salvao. Deste modo, restringiu o horizonte da sua esperana e noreconheceu suficientemente sequer a grandeza da sua tarefa apesar de ser grande o quecontinuou a fazer na formao do homem e no cuidado dos fracos e dos que sofrem.

    26. No a cincia que redime o homem. O homem redimido pelo amor. Isto vale j no mbitodeste mundo. Quando algum experimenta na sua vida um grande amor, conhece um momento de redeno que d um sentido novo sua vida. Mas, rapidamente se dar conta tambm de queo amor que lhe foi dado no resolve, por si s, o problema da sua vida. um amor que permanecefrgil. Pode ser destrudo pela morte. O ser humano necessita do amor incondicionado. Precisadaquela certeza que o faz exclamar: Nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados,nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem qualqueroutra criatura poder separar-nos do amor de Deus, que est em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rom 8,38-39). Se existe este amor absoluto com a sua certeza absoluta, ento e somente ento o homem est redimido , independentemente do que lhe possa acontecer naquelacircunstncia. isto o que se entende, quando afirmamos: Jesus Cristo redimiu-nos . Atravsd'Ele tornamo-nos seguros de Deus de um Deus que no constitui uma remota causa primeira do mundo, porque o seu Filho unignito fez-Se homem e d'Ele pode cada um dizer: Vivo na f doFilho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim (Gal 2,20).

  • 27. Neste sentido, verdade que quem no conhece Deus, mesmo podendo ter muitas esperanas,no fundo est sem esperana, sem a grande esperana que sustenta toda a vida (cf. Ef 2,12). Averdadeira e grande esperana do homem, que resiste apesar de todas as desiluses, s pode serDeus o Deus que nos amou, e ama ainda agora at ao fim , at plena consumao (cf. Jo13,1 e 19,30). Quem atingido pelo amor comea a intuir em que consistiria propriamente a vida. Comea a intuir o significado da palavra de esperana que encontramos no rito do Baptismo: daf espero a vida eterna a vida verdadeira que, inteiramente e sem ameaas, em toda a suaplenitude simplesmente vida. Jesus, que disse de Si mesmo ter vindo ao mundo para quetenhamos a vida e a tenhamos em plenitude, em abundncia (cf. Jo 10,10), tambm nos explicou oque significa vida : A vida eterna consiste nisto: Que Te conheam a Ti, por nico Deusverdadeiro, e a Jesus Cristo, a Quem enviaste (Jo 17,3). A vida, no verdadeiro sentido, no apossui cada um em si prprio sozinho, nem mesmo por si s: aquela uma relao. E a vida na suatotalidade relao com Aquele que a fonte da vida. Se estivermos em relao com Aquele queno morre, que a prpria Vida e o prprio Amor, ento estamos na vida. Ento vivemos .

    28. Surge agora, porm, a questo: no ser que, desta maneira, camos de novo no individualismoda salvao? Na esperana s para mim, que alis no uma esperana verdadeira porqueesquece e descuida os outros? No. A relao com Deus estabelece-se atravs da comunho comJesus sozinhos e apenas com as nossas possibilidades no o conseguimos. Mas, a relao comJesus uma relao com Aquele que Se entregou a Si prprio em resgate por todos ns (cf. 1 Tim2,6). O facto de estarmos em comunho com Jesus Cristo envolve-nos no seu ser para todos ,fazendo disso o nosso modo de ser. Ele compromete-nos a ser para os outros, mas s nacomunho com Ele que se torna possvel sermos verdadeiramente para os outros, para acomunidade. Neste contexto, queria citar o grande doutor grego da Igreja, S. Mximo o Confessor( 662), o qual comea por exortar a no antepor nada ao conhecimento e ao amor de Deus, masdepois passa imediatamente a aplicaes muito prticas: Quem ama Deus no pode reservar odinheiro para si prprio. Distribui-o de modo divino [...] do mesmo modo segundo a medida dajustia .[19] Do amor para com Deus consegue a participao na justia e na bondade de Deuspara com os outros; amar a Deus requer a liberdade interior diante de cada bem possudo e detodas as coisas materiais: o amor de Deus revela-se na responsabilidade pelo outro.[20] A mesmaconexo entre amor de Deus e responsabilidade pelos homens podemos observ-la com comoona vida de S. Agostinho. Depois da sua converso f crist, ele, juntamente com alguns amigospossudos pelos mesmos ideais, queria levar uma vida dedicada totalmente palavra de Deus e srealidades eternas. Pretendia realizar com valores cristos o ideal da vida contemplativa expressapela grande filosofia grega, escolhendo deste modo a melhor parte (cf. Lc 10,42). Mas ascoisas foram de outro modo. Participava ele na Missa dominical, na cidade porturia de Hipona,quando foi chamado pelo Bispo do meio da multido e instado a deixar-se ordenar para exercer oministrio sacerdotal naquela cidade. Olhando retrospectivamente para aquela hora, escreve nassuas Confisses : Aterrorizado com os meus pecados e com o peso da minha misria, tinharesolvido e meditado em meu corao, o projecto de fugir para o ermo. Mas Vs mo impedistes eme fortalecestes dizendo: Cristo morreu por todos, para que os viventes no vivam para si, maspara Aquele que morreu por todos (cf. 2 Cor 5,15) .[21] Cristo morreu por todos. Viver paraEle significa deixar-se envolver no seu ser para .

    29. Para Agostinho, isto significou uma vida totalmente nova. Assim descreveu ele uma vez o seudia-a-dia: Corrigir os indisciplinados, confortar os pusilnimes, amparar os fracos, refutar osopositores, precaver-se dos maliciosos, instruir os ignorantes, estimular os negligentes, frear osprovocadores, moderar os ambiciosos, encorajar os desanimados, pacificar os litigiosos, ajudar osnecessitados, libertar os oprimidos, demonstrar aprovao aos bons, tolerar o maus e [ai de mim!]amar a todos .[22] o Evangelho que me assusta [23] aquele susto salutar que nos impedede viver para ns mesmos e que nos impele a transmitir a nossa esperana comum. De facto, eraesta precisamente a inteno de Agostinho: na difcil situao do imprio romano, que ameaavatambm a frica romana e no final da vida de Agostinho at a destruiu, transmite esperana, aesperana que lhe vinha da f e que, contrariamente ao seu temperamento introvertido, o tornou

  • capaz de participar decididamente e com todas as foras na edificao da cidade. No mesmocaptulo das Confisses, onde acabmos de ver o motivo decisivo do seu empenhamento portodos , diz ele: Cristo intercede por ns. Doutro modo desesperaria, pois so muitas e grandesas minhas fraquezas! Sim, so muito pesadas, mas maior o poder da vossa medicina. Poderamospensar que a vossa Palavra Se tinha afastado da unio com o homem e desesperado de nos salvar,se no se tivesse feito homem e habitado entre ns .[24] Em virtude da sua esperana, Agostinhoprodigalizou-se pelas pessoas simples e pela sua cidade renunciou sua nobreza espiritual epregou e agiu de modo simples para a gente simples.

    30. Faamos um resumo daquilo que emergiu no desenrolar das nossas reflexes. O homem, nasucesso dos dias, tem muitas esperanas menores ou maiores distintas nos diversos perodosda sua vida. s vezes pode parecer que uma destas esperanas o satisfaa totalmente, sem ternecessidade de outras. Na juventude, pode ser a esperana do grande e fagueiro amor; aesperana de uma certa posio na profisso, deste ou daquele sucesso determinante para o restoda vida. Mas quando estas esperanas se realizam, resulta com clareza que na realidade, isso noera a totalidade. Torna-se evidente que o homem necessita de uma esperana que v mais alm.V-se que s algo de infinito lhe pode bastar, algo que ser sempre mais do que aquilo que elealguma vez possa alcanar. Neste sentido, a poca moderna desenvolveu a esperana dainstaurao de um mundo perfeito que, graas aos conhecimentos da cincia e a uma polticacientificamente fundada, parecia tornar-se realizvel. Assim, a esperana bblica do reino de Deusfoi substituda pela esperana do reino do homem, pela esperana de um mundo melhor que seria overdadeiro reino de Deus . Esta parecia finalmente a esperana grande e realista de que ohomem necessita. Estava em condies de mobilizar por um certo tempo todas as energias dohomem; o grande objectivo parecia merecedor de todo o esforo. Mas, com o passar do tempofica claro que esta esperana escapa sempre para mais longe. Primeiro deram-se conta de que estaera talvez uma esperana para os homens de amanh, mas no uma esperana para mim. E,embora o elemento para todos faa parte da grande esperana com efeito, no posso ser felizcontra e sem os demais o certo que uma esperana que no me diga respeito a mimpessoalmente no sequer uma verdadeira esperana. E tornou-se evidente que esta era umaesperana contra a liberdade, porque a situao das realidades humanas depende em cada geraonovamente da livre deciso dos homens que dela fazem parte. Se esta liberdade, por causa dascondies e das estruturas, lhes fosse tirada, o mundo, em ltima anlise, no seria bom, porque ummundo sem liberdade no de forma alguma um mundo bom. Deste modo, apesar de sernecessrio um contnuo esforo pelo melhoramento do mundo, o mundo melhor de amanh nopode ser o contedo prprio e suficiente da nossa esperana. E, sempre a este respeito, pergunta-se: Quando melhor o mundo? O que que o torna bom? Com qual critrio se pode avaliar oseu ser bom? E por quais caminhos se pode alcanar esta bondade ?

    31. Mais ainda: precisamos das esperanas menores ou maiores que, dia aps dia, nos mantma caminho. Mas, sem a grande esperana que deve superar tudo o resto, aquelas no bastam. Estagrande esperana s pode ser Deus, que abraa o universo e nos pode propor e dar aquilo que,sozinhos, no podemos conseguir. Precisamente o ser gratificado com um dom faz parte daesperana. Deus o fundamento da esperana no um deus qualquer, mas aquele Deus quepossui um rosto humano e que nos amou at ao fim: cada indivduo e a humanidade no seuconjunto. O seu reino no um alm imaginrio, colocado num futuro que nunca mais chega; o seureino est presente onde Ele amado e onde o seu amor nos alcana. Somente o seu amor nos da possibilidade de perseverar com toda a sobriedade dia aps dia, sem perder o ardor daesperana, num mundo que, por sua natureza, imperfeito. E, ao mesmo tempo, o seu amor parans a garantia de que existe aquilo que intumos s vagamente e, contudo, no ntimo esperamos: avida que verdadeiramente vida. Procuremos concretizar ainda mais esta ideia na ltima parte,dirigindo a nossa ateno para alguns lugares de aprendizagem prtica e de exerccio daesperana.

    Lugares de aprendizagem e de exerccio da esperana

  • I. A orao como escola da esperana

    32. Primeiro e essencial lugar de aprendizagem da esperana a orao. Quando j ningum meescuta, Deus ainda me ouve. Quando j no posso falar com ningum, nem invocar mais ningum, aDeus sempre posso falar. Se no h mais ningum que me possa ajudar por tratar-se de umanecessidade ou de uma expectativa que supera a capacidade humana de esperar Ele podeajudar-me.[25] Se me encontro confinado numa extrema solido...o orante jamais est totalmentes. Dos seus 13 anos de priso, 9 dos quais em isolamento, o inesquecvel Cardeal Nguyen VanThuan deixou-nos um livrinho precioso: Oraes de esperana. Durante 13 anos de priso, numasituao de desespero aparentemente total, a escuta de Deus, o poder falar-Lhe, tornou-se paraele uma fora crescente de esperana, que, depois da sua libertao, lhe permitiu ser para oshomens em todo o mundo uma testemunha da esperana, daquela grande esperana que nodeclina, mesmo nas noites da solido.

    33. De forma muito bela Agostinho ilustrou a relao ntima entre orao e esperana, numa homiliasobre a Primeira Carta de Joo. Ele define a orao como um exerccio do desejo. O homem foicriado para uma realidade grande ou seja, para o prprio Deus, para ser preenchido por Ele. Mas,o seu corao demasiado estreito para a grande realidade que lhe est destinada. Tem de serdilatado. Assim procede Deus: diferindo a sua promessa, faz aumentar o desejo; e com o desejo,dilata a alma, tornando-a mais apta a receber os seus dons . Aqui Agostinho pensa em S. Pauloque, de si mesmo, afirma viver inclinado para as coisas que ho-de vir (Fil 3,13). Depois usa umaimagem muito bela para descrever este processo de dilatao e preparao do corao humano. Supe que Deus queira encher-te de mel (smbolo da ternura de Deus e da sua bondade). Se tu,porm, ests cheio de vinagre, onde vais pr o mel? O vaso, ou seja o corao, deve primeiroser dilatado e depois limpo: livre do vinagre e do seu sabor. Isto requer trabalho, faz sofrer, mas sassim se realiza o ajustamento quilo para que somos destinados.[26] Apesar de Agostinho falardirectamente s da receptividade para Deus, resulta claro, no entanto, que o homem neste esforo,com que se livra do vinagre e do seu sabor amargo, no se torna livre s para Deus, mas abre-setambm para os outros. De facto, s tornando-nos filhos de Deus que podemos estar com onosso Pai comum. Orar no significa sair da histria e retirar-se para o canto privado da prpriafelicidade. O modo correcto de rezar um processo de purificao interior que nos torna aptospara Deus e, precisamente desta forma, aptos tambm para os homens. Na orao, o homem deveaprender o que verdadeiramente pode pedir a Deus, o que digno de Deus. Deve aprender queno pode rezar contra o outro. Deve aprender que no pode pedir as coisas superficiais e cmodasque de momento deseja a pequena esperana equivocada que o leva para longe de Deus. Devepurificar os seus desejos e as suas esperanas. Deve livrar-se das mentiras secretas com que seengana a si prprio: Deus perscruta-as, e o contacto com Deus obriga o homem a reconhec-lastambm. Quem poder discernir todos os erros? Purificai-me das faltas escondidas , reza oSalmista (19/18,13). O no reconhecimento da culpa, a iluso de inocncia no me justifica nemme salva, porque o entorpecimento da conscincia, a incapacidade de reconhecer em mim o malenquanto tal culpa minha. Se Deus no existe, talvez me deva refugiar em tais mentiras, porqueno h ningum que me possa perdoar, ningum que seja a medida verdadeira. Pelo contrrio, oencontro com Deus desperta a minha conscincia, para que deixe de fornecer-me umaautojustificao, cesse de ser um reflexo de mim mesmo e dos contemporneos que mecondicionam, mas se torne capacidade de escuta do mesmo Bem.

    34. Para que a orao desenvolva esta fora purificadora, deve, por um lado, ser muito pessoal,um confronto do meu eu com Deus, com o Deus vivo; mas, por outro, deve ser incessantementeguiada e iluminada pelas grandes oraes da Igreja e dos santos, pela orao litrgica, na qual oSenhor nos ensina continuamente a rezar de modo justo. O Cardeal Nyugen Van Thuan, contou noseu livro de Exerccios Espirituais, como na sua vida tinha havido longos perodos de incapacidadepara rezar, e como ele se tinha agarrado s palavras de orao da Igreja: ao Pai Nosso, AveMaria e s oraes da Liturgia.[27] Na orao, deve haver sempre este entrelaamento de oraopblica e orao pessoal. Assim podemos falar a Deus, assim Deus fala a ns. Deste modo,realizam-se em ns as purificaes, mediante as quais nos tornamos capazes de Deus e idneos ao

  • servio dos homens. Assim tornamo-nos capazes da grande esperana e ministros da esperanapara os outros: a esperana em sentido cristo sempre esperana tambm para os outros. E esperana activa, que nos faz lutar para que as coisas no caminhem para o fim perverso . esperana activa precisamente tambm no sentido de mantermos o mundo aberto a Deus. Somenteassim, ela permanece tambm uma esperana verdadeiramente humana.

    II. Agir e sofrer como lugares de aprendizagem da esperana

    35. Toda a aco sria e recta do homem esperana em acto. -o antes de tudo no sentido deque assim procuramos concretizar as nossas esperanas menores ou maiores: resolver este ouaquele assunto que importante, para prosseguir na caminhada da vida; com o nosso empenhocontribuir a fim de que o mundo se torne um pouco mais luminoso e humano, e assim se abramtambm as portas para o futuro. Mas o esforo quotidiano pela continuao da nossa vida e pelofuturo da comunidade cansa-nos ou transforma-se em fanatismo, se no nos ilumina a luz daquelagrande esperana que no pode ser destruda sequer pelos pequenos fracassos e pela falncia emvicissitudes de alcance histrico. Se no podemos esperar mais do que realmente alcanvel decada vez e de quanto nos seja possvel oferecerem as autoridades polticas e econmicas, a nossavida arrisca-se a ficar bem depressa sem esperana. importante saber: eu posso semprecontinuar a esperar, ainda que pela minha vida ou pelo momento histrico que estou a viveraparentemente no tenha mais qualquer motivo para esperar. S a grande esperana-certeza deque, no obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal e a histria no seu conjunto estoconservadas no poder indestrutvel do Amor e, graas a isso e por isso, possuem sentido eimportncia, s uma tal esperana pode, naquele caso, dar ainda a coragem de agir e de continuar.Certamente, no podemos construir o reino de Deus com as nossas foras; o que construmospermanece sempre reino do homem com todos os limites prprios da natureza humana. O reino deDeus um dom, e por isso mesmo grande e belo, constituindo a resposta esperana. Nempodemos para usar a terminologia clssica merecer o cu com as nossas obras. Este sempre mais do que aquilo que merecemos, tal como o ser amados nunca algo merecido , masum dom. Porm, com toda a nossa conscincia da mais valia do cu, permanece igualmenteverdade que o nosso agir no indiferente diante de Deus e, portanto, tambm no o para odesenrolar da histria. Podemos abrir-nos ns mesmos e o mundo ao ingresso de Deus: daverdade, do amor e do bem. o que fizeram os santos que, como colaboradores de Deus contriburam para a salvao do mundo (cf. 1 Cor 3,9; 1 Tes 3,2). Temos a possibilidade de livrara nossa vida e o mundo dos venenos e contaminaes que poderiam destruir o presente e o futuro.Podemos descobrir e manter limpas as fontes da criao e assim, juntamente com a criao quenos precede como dom recebido, fazer o que justo conforme as suas intrnsecas exigncias e asua finalidade. Isto conserva um sentido, mesmo quando, aparentemente, no temos sucesso ouparecemos impotentes face hegemonia de foras hostis. Assim, por um lado, da nossa aconasce esperana para ns e para os outros; mas, ao mesmo tempo, a grande esperana apoiadanas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos d coragem e orientao nosso agir.

    36. Tal como o agir, tambm o sofrimento faz parte da existncia humana. Este deriva, por umlado, da nossa finitude e, por outro, do volume de culpa que se acumulou ao longo da histria e,mesmo actualmente, cresce de modo irreprimvel. Certamente preciso fazer tudo o possvel paradiminuir o sofrimento: impedir, na medida do possvel, o sofrimento dos inocentes; amenizar asdores; ajudar a superar os sofrimentos psquicos. Todos estes so deveres tanto da justia comoda caridade, que se inserem nas exigncias fundamentais da existncia crist e de cada vidaverdadeiramente humana. Na luta contra a dor fsica conseguiu-se realizar grandes progressos; maso sofrimento dos inocentes e inclusive os sofrimentos psquicos aumentaram durante os ltimosdecnios. Devemos verdade fazer tudo por superar o sofrimento, mas elimin-locompletamente do mundo no entra nas nossas possibilidades, simplesmente porque no podemosdesfazer-nos da nossa finitude e porque nenhum de ns capaz de eliminar o poder do mal, daculpa que como constatmos fonte contnua de sofrimento. Isto s Deus o poderia fazer: sum Deus que pessoalmente entra na histria fazendo-Se homem e sofre nela. Ns sabemos que

  • este Deus existe e que por isso este poder que tira os pecados do mundo (Jo 1,29) estpresente no mundo. Com a f na existncia deste poder, surgiu na histria a esperana da cura domundo. Mas, trata-se precisamente de esperana, e no ainda de cumprimento; esperana que nosd a coragem de nos colocarmos da parte do bem, inclusive onde a realidade parece semesperana, cientes de que, olhando o desenrolar da histria tal como nos aparece exteriormente, opoder da culpa vai continuar uma presena terrvel ainda no futuro.

    37. Voltemos ao nosso tema. Podemos procurar limitar o sofrimento e lutar contra ele, mas nopodemos elimin-lo. Precisamente onde os homens, na tentativa de evitar qualquer sofrimento,procuram esquivar-se de tudo o que poderia significar padecimento, onde querem evitar a canseirae o sofrimento por causa da verdade, do amor, do bem, descambam numa vida vazia, na qualprovavelmente j quase no existe a dor, mas experimenta-se muito mais a obscura sensao dafalta de sentido e da solido. No o evitar o sofrimento, a fuga diante da dor, que cura o homem,mas a capacidade de aceitar a tribulao e nela amadurecer, de encontrar o seu sentido atravs daunio com Cristo, que sofreu com infinito amor. Neste contexto, desejo citar algumas frases de umacarta do mrtir vietnamita Paulo Le-Bao-Thin ( 1857), onde clara esta transformao dosofrimento mediante a fora da esperana que provm da f. Eu, Paulo, prisioneiro pelo nome deCristo, quero falar-vos das tribulaes que suporto cada dia, para que, inflamados no amor deDeus, comigo louveis o Senhor, porque eterna a sua misericrdia (Sal 136/135). Este crcere realmente a imagem do inferno eterno: alm de suplcios de todo o gnero, tais como algemas,grilhes, cadeias de ferro, tenho de suportar o dio, as agresses, calnias, palavras indecorosas,repreenses, maldades, juramentos falsos, e, alm disso, as angstias e a tristeza. Mas Deus, queoutrora libertou os trs jovens da fornalha ardente, est sempre comigo e libertou-me destastribulaes, convertendo-as em suave doura, porque eterna a sua misericrdia. Imerso nestestormentos, que costumam aterrorizar os outros, pela graa de Deus sinto-me alegre e contente,porque no estou s, mas estou com Cristo. [...] Como posso eu suportar este espectculo, ao vertodos os dias os imperadores, mandarins e seus guardas blasfemar o vosso santo nome, Senhor,que estais sentado sobre os Querubins (cf. Sal 80/79, 2) e os Serafins? Vede como a vossas cruz calcada aos ps dos pagos! Onde est a vossa glria? Ao ver tudo isto, sinto inflamar-se o meucorao no vosso amor e prefiro ser dilacerado e morrer em testemunho da vossa infinita bondade.Mostrai, Senhor, o vosso poder, salvai-me e amparai-me, para que na minha fraqueza se manifestea vossa fora e seja glorificada diante dos gentios [...] Ouvindo tudo isto, carssimos irmos, tendecoragem e alegrai-vos, dai graas eternamente a Deus, de quem procedem todos os bens, bendizeicomigo ao Senhor, porque eterna a sua misericrdia [...] Escrevo todas estas coisas, para queestejam unidas a vossa e a minha f. No meio da tempestade, lano a ncora que me permitirsubir at ao trono de Deus: a esperana viva que est no meu corao .[28] Esta uma carta do inferno . Nela se mostra todo o horror de um campo de concentrao, onde aos tormentosinfligidos pelos tiranos se vem juntar o desencadeamento do mal nas mesmas vtimas que, destemodo, se tornam novos instrumentos da crueldade dos algozes. uma carta do inferno, mas nelatem cumprimento a palavra do Salmo: Se subir aos cus, l Vos encontro, se descer aos infernos,igualmente. [...] Se eu disser: ao menos as trevas me cobriro, [...] nem sequer as trevas serobastante escuras para Vs, e a noite ser clara como o dia, tanto faz a luz como as trevas (Sl139/138, 8-12; cf. tambm Sal 23//22, 4). Cristo desceu aos infernos ficando assim perto dequem nele lanado, transformando para ele as trevas em luz. O sofrimento, os tormentoscontinuam terrveis e quase insuportveis. Surgiu, porm, a estrela da esperana, a ncora docorao chega at o trono de Deus. No se desencadeia o mal no homem, mas vence a luz: osofrimento sem deixar de o ser torna-se, apesar de tudo, canto de louvor.

    38. A grandeza da humanidade determina-se essencialmente na relao com o sofrimento e comquem sofre. Isto vale tanto para o indivduo como para a sociedade. Uma sociedade que noconsegue aceitar os que sofrem e no capaz de contribuir, mediante a com-paixo, para fazercom que o sofrimento seja compartilhado e assumido mesmo interiormente uma sociedade cruel edesumana. A sociedade, porm, no pode aceitar os que sofrem e apoi-los no seu sofrimento, seos prprios indivduos no so capazes disso mesmo; e, por outro lado, o indivduo no pode

  • aceitar o sofrimento do outro, se ele pessoalmente no consegue encontrar no sofrimento umsentido, um caminho de purificao e de amadurecimento, um caminho de esperana. Aceitar ooutro que sofre significa, de facto, assumir de alguma forma o seu sofrimento, de tal modo que estese torna tambm meu. Mas, precisamente porque agora se tornou sofrimento compartilhado, noqual h a presena do outro, este sofrimento penetrado pela luz do amor. A palavra latina con-solatio, consolao, exprime isto mesmo de forma muito bela sugerindo um estar-com na solido,que ento deixa der ser solido. Mas, a capacidade de aceitar o sofrimento por amor do bem, daverdade e da justia tambm constitutiva da grandeza da humanidade, porque se, em definitiva, omeu bem-estar, a minha incolumidade mais importante do que a verdade e a justia, ento vigorao domnio do mais forte; ento reinam a violncia e a mentira. A verdade e a justia devem estaracima da minha comodidade e incolumidade fsica, seno a minha prpria vida torna-se umamentira. E, por fim, tambm o sim ao amor fonte de sofrimento, porque o amor exige sempreexpropriaes do meu eu, nas quais me deixo podar e ferir. O amor no pode de modo algumexistir sem esta renncia mesmo dolorosa a mim mesmo, seno torna-se puro egosmo, anulando-se deste modo a si prprio enquanto tal.

    39. Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor da verdade e da justia; sofrer por causa doamor e para se tornar uma pessoa que ama verdadeiramente: estes so elementos fundamentais dehumanidade, o seu abandono destruiria o mesmo homem. Entretanto levanta-se uma vez mais aquesto: somos capazes disto? O outro suficientemente importante, para que por ele eu me torneuma pessoa que sofre? Para mim, a verdade to importante que compensa o sofrimento? Apromessa do amor assim to grande que justifique o dom de mim mesmo? Na histria dahumanidade, cabe f crist precisamente o mrito de ter suscitado no homem, de maneira nova ea uma nova profundidade, a capacidade dos referidos modos de sofrer que so decisivos para asua humanidade. A f crist mostrou-nos que verdade, justia, amor no so simplesmente ideais,mas realidades de imensa densidade. Com efeito, mostrou-nos que Deus a Verdade e o Amorem pessoa quis sofrer por ns e connosco. Bernardo de Claraval cunhou esta frase maravilhosa:Impassibilis est Deus, sed non incompassibilis [29] Deus no pode padecer, mas pode-secompadecer. O homem tem para Deus um valor to grande que Ele mesmo Se fez homem parapoder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue, como nos demonstradona narrao da Paixo de Jesus. A partir de l entrou em todo o sofrimento humano algum quepartilha o sofrimento e a sua suportao; a partir de l se propaga em todo o sofrimento a con-solatio, a consolao do amor solidrio de Deus, surgindo assim a estrela da esperana.Certamente, nos nossos inmeros sofrimentos e provas sempre temos necessidade tambm dasnossas pequenas ou grandes esperanas de uma visita amiga, da cura das feridas internas eexternas, da soluo positiva de uma crise, etc. Nas provaes menores, estes tipos de esperanapodem mesmo ser suficientes. Mas, nas provaes verdadeiramente graves, quando tenho deassumir a deciso definitiva de antepor a verdade ao bem-estar, carreira e propriedade, acerteza da verdadeira grande esperana, de que falmos, faz-se necessria. Para isto, precisamostambm de testemunhas, de mrtires, que se entregaram totalmente, para que no-lo manifestem, diaaps dia. Temos necessidade deles para preferirmos, mesmo nas pequenas alternativas do dia-a-dia, o bem comodidade, sabendo que precisamente assim vivemos a vida de verdade. Digamo-louma vez mais: a capacidade de sofrer por amor da verdade medida de humanidade. No entanto,esta capacidade de sofrer depende do gnero e da grandeza da esperana que trazemos dentro dens e sobre a qual construmos. Os santos puderam percorrer o grande caminho do ser-homem nomodo como Cristo o percorreu antes de ns, porque estavam repletos da grande esperana.

    40. Gostaria de acrescentar ainda uma pequena observao, no sem importncia para osacontecimentos de todos os dias. Fazia parte duma forma de devoo talvez menos praticadahoje, mas no vai ainda h muito tempo que era bastante difundida a ideia de poder oferecer as pequenas canseiras da vida quotidiana, que nos ferem com frequncia como alfinetadas mais oumenos incmodas, dando-lhes assim um sentido. Nesta devoo, houve sem dvida coisasexageradas e talvez mesmo estranhas, mas preciso interrogar-se se no havia de algum modocontido nela algo de essencial que poderia servir de ajuda. O que significa oferecer ? Estas

  • pessoas estavam convencidas de poderem inserir no grande com-padecer de Cristo as suaspequenas canseiras, que entravam assim, de algum modo, a fazer parte do tesouro de compaixode que o gnero humano necessita. Deste modo, tambm as mesmas pequenas molstias do dia-a-dia poderiam adquirir um sentido e contribuir para a economia do bem, do amor entre os homens.Deveramos talvez interrogar-nos se verdadeiramente isto no poderia voltar a ser uma perspectivasensata tambm para ns.

    III. O Juzo como lugar de aprendizagem e de exerccio da esperana

    41. No grande Credo da Igreja, a parte central que trata do mistrio de Cristo a partir da suagerao eterna no Pai e do nascimento temporal da Virgem Maria, passando pela cruz e aressurreio at ao seu retorno conclui com as palavras: ... de novo h-de vir em sua glria,para julgar os vivos e os mortos . J desde os primeiros tempos, a perspectiva do Juzo influenciouos cristos at na sua prpria vida quotidiana enquanto critrio segundo o qual ordenar a vidapresente, enquanto apelo sua conscincia e, ao mesmo tempo, enquanto esperana na justia deDeus. A f em Cristo nunca se limitou a olhar s para trs nem s para o alto, mas olhou sempretambm para a frente para a hora da justia que o Senhor repetidas vezes preanunciara. Este olharpara diante conferiu ao cristianismo a sua importncia para o presente. Na configurao dosedifcios sacros cristos, que queriam tornar visvel a vastido histrica e csmica da f em Cristo,tornou-se habitual representar, no lado oriental, o Senhor que volta como rei a imagem daesperana , e no lado ocidental, o Juzo final como imagem da responsabilidade pela nossa vida,uma representao que apontava e acompanhava precisamente os fiis na sua caminhada diria. Naevoluo da iconografia, porm, foise dando cada vez mais relevo ao aspecto ameaador e lgubredo Juzo, que obviamente fascinava os artistas mais do que o esplendor da esperana que acabava,com frequncia, excessivamente escondido por debaixo da ameaa.

    42. Na poca moderna, o pensamento do Juzo final diluiu-se: a f crist caracterizada eorientada sobretudo para a salvao pessoal da alma; ao contrrio, a reflexo sobre a histriauniversal est em grande parte dominada pela ideia do progresso. Todavia, o contedo fundamentalda expectativa do Juzo no desapareceu pura e simplesmente. Agora, porm, assume uma formatotalmente distinta. O atesmo dos sculos XIX e XX , de acordo com as suas razes e finalidade,um moralismo: um protesto contra as injustias do mundo e da histria universal. Um mundo, ondeexista uma tal dimenso de injustia, de sofrimento dos inocentes e de cinismo do poder, no podeser a obra de um Deus bom. O Deus que tivesse a responsabilidade de um mundo assim, no seriaum Deus justo e menos ainda um Deus bom. em nome da moral que preciso contestar esteDeus. Visto que no h um Deus que cria justia, parece que o prprio homem seja agorachamado a estabelecer a justia. Se diante do sofrimento deste mundo o protesto contra Deus compreensvel, a pretenso de a humanidade poder e dever fazer aquilo que nenhum Deus faz nem capaz de fazer, presunosa e intrinsecamente no verdadeira. No por acaso que destapremissa tenham resultado as maiores crueldades e violaes da justia, mas funda-se na falsidadeintrnseca desta pretenso. Um mundo que deve criar a justia por sua conta, um mundo semesperana. Nada e ningum responde pelo sofrimento dos sculos. Nada e ningum garante que ocinismo do poder independentemente do revestimento ideolgico sedutor com que se apresente no continue a imperar no mundo. Foi assim que os grandes pensadores da escola de Francoforte,Max Horkheimer e Teodoro W. Adorno, criticaram tanto o atesmo como o tesmo. Horkheimerexcluiu radicalmente que se possa encontrar qualquer substitutivo imanente para Deus, rejeitandoporm, ao mesmo tempo, a imagem do Deus bom e justo. Numa radicalizao extrema daproibio das imagens no Antigo Testamento, ele fala da nostalgia do totalmente Outro quepermanece inacessvel um grito do desejo dirigido histria universal. Adorno tambm se atevedecididamente a esta renncia de toda a imagem que exclui, precisamente, tambm a imagem do Deus que ama. Mas ele sempre sublinhou esta dialtica negativa , afirmando que a justia,uma verdadeira justia, requereria um mundo onde no s fosse anulado o sofrimento presente,mas tambm revogado o que passou irrevogavelmente. .[30] Isto, porm, significaria expressoem smbolos positivos e, portanto, para ele inadequados que no pode haver justia semressurreio dos mortos e, concretamente, sem a sua ressurreio corporal. Todavia uma tal

  • perspectiva, comportaria a ressurreio da carne, um dado que para o idealismo, para o reino doesprito absoluto, totalmente estranho .[31]

    43. Da rigorosa renncia a qualquer imagem, que faz parte do primeiro Mandamento de Deus (cf.Ex 20,4), tambm o cristo pode e deve aprender sempre de novo. A verdade da teologianegativa foi evidenciada pelo IV Conclio de Latro, ao declarar explicitamente que, por grandeque seja a semelhana verificada entre o Criador e a criatura, sempre maior a diferena entreambos.[32] Para o crente, no entanto, a renncia a qualquer imagem no pode ir at ao ponto emque se devia deter, como gostariam Horkheimer e Adorno, no no a ambas as teses: ao tesmoe ao atesmo. O mesmo Deus fez-Se uma imagem : em Cristo que Se fez homem. N'Ele, oCrucificado, a negao de imagens erradas de Deus levada ao extremo. Agora, Deus revela a suaFace precisamente na figura do servo sofredor que partilha a condio do homem abandonado porDeus, tomando-a sobre si. Este sofredor inocente tornou-se esperana-certeza: Deus existe, eDeus sabe criar a justia de um modo que ns no somos capazes de conceber mas que, pela f,podemos intuir. Sim, existe a ressurreio da carne.[33] Existe uma justia.[34] Existe a revogao do sofrimento passado, a reparao que restabelece o direito. Por isso, a f no Juzofinal , primariamente, e sobretudo esperana aquela esperana, cuja necessidade se tornouevidente justamente nas convulses dos ltimos sculos. Estou convencido de que a questo dajustia constitui o argumento essencial em todo o caso o argumento mais forte a favor da f navida eterna. A necessidade meramente individual de uma satisfao que nos negada nesta vida da imortalidade do amor que anelamos, certamente um motivo importante para crer que ohomem seja feito para a eternidade; mas s em conexo com a impossibilidade de a injustia dahistria ser a ltima palavra, que se torna plenamente convincente a necessidade do retorno deCristo e da nova vida.

    44. O protesto contra Deus em nome da justia no basta. Um mundo sem Deus um mundo semesperana (cf. Ef 2,12). S Deus pode criar justia. E a f d-nos a certeza: Ele f-lo. A imagemdo Juzo final no primariamente uma imagem aterradora, mas de esperana; a nosso ver, talvezmesmo a imagem decisiva da esperana. Mas no porventura tambm uma imagem assustadora?Eu diria: uma imagem que apela responsabilidade. Portanto, uma imagem daquele susto acercado qual, como diz Santo Hilrio que todo o nosso medo tem lugar no amor.[35] Deus justia ecria justia. Tal a nossa consolao e a nossa esperana. Mas, na sua justia, Ele conjuntamente tambm graa. Isto podemos sab-lo fixando o olhar em Cristo crucificado eressuscitado. Ambas justia e graa devem ser vistas na sua justa ligao interior. A graa noexclui a justia. No muda a injustia em direito. No uma esponja que apaga tudo, de modo quetudo quanto se fez na terra termine por ter o mesmo valor. Contra um cu e uma graa deste tipoprotestou com razo, por exemplo, Dostovskij no seu romance Os irmos Karamazov . Nofim, no banquete, eterno, no se sentaro mesa indistintamente os malvados junto com as vtimas,como se nada tivesse acontecido. Aqui gostaria de citar um texto de Plato que exprime umpressentimento do justo juzo que, em boa parte, permanece verdadeiro e salutar tambm para ocristo. Embora com imagens mitolgicas mas que apresentam com uma evidncia inequvoca averdade, ele diz que, no fim, as almas estaro nuas diante do juz. Agora j no importa o que eramoutrora na histria, mas s aquilo que so de verdade. Agora [o juiz] tem diante de si talvez aalma de um [...] rei ou dominador, e nada v de so nela. Encontra-a flagelada e cheia de cicatrizesresultantes de perjrio e injustia [...] e est tudo torto, cheio de mentira e orgulho, e nada estdireito, porque ela cresceu sem verdade. E ele v como a alma, por causa do arbtrio, exagero,arrogncia e leviandade no agir, se encheu de emproamento e infmia. Diante de um talespectculo, ele envia-a imediatamente para a priso, onde padecer os castigos merecidos [...].s vezes, porm, ele v diante de si uma alma diferente, uma alma que levou uma vida piedosa esincera [...], compraz-se com ela e manda-a sem dvida para as ilhas dos bem-aventurados .[36]Jesus, na parbola do rico epulo e do pobre Lzaro (cf. Lc 16,19-31), apresentou, para nossaadvertncia, a imagem de uma tal alma devastada pela arrogncia e opulncia, que criou, elamesma, um fosso intransponvel entre si e o pobre: o fosso do encerramento dentro dos prazeresmateriais; o fosso do esquecimento do outro, da incapacidade de amar, que se trans