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 1 Retirado de: http://adorno.planetaclix.pt/sohn-rethel.htm (27/10/2010) Alfred SOH-RETHEL Trabalho espiritual e corporal Para a epistemologia da história ocidental Tradução Cesare Giuseppe Galvan SOH-RETHEL, Alfred. Geistige und körperliche Arbeit. Zur Epistemologie der abendländischen Geschichte. (Trabalho espiritual e corporal. Para a epistemologia da história ocidental). Rev. u. erg. Neuauflage. Weinheim, VCH, Acta Humaniora, 1989. Há edição inglesa de uma versão anterior (1950). Prefácio O trabalho intelectual de minha vida até o nonagésimo aniversário serviu para esclarecer ou decifrar uma visão meio intuitiva, que me coube elaborar em 1921 em meu estudo na Universidade de Heidelberg: o descobrimento do sujeito transcendental na forma mercadoria, um axioma condutor do materialismo histórico. Um esclarecimento satisfatório desse axioma pode ser alcançado somente como resultado final de ataques sempre novos, titulados Exposés (Exposição). Distingo sete de tais ataques: 1921: Postulado: a forma mercadoria compreende em si o sujeito transcendental (este conhecimento resultava de uma análise palavra por palavra da análise marxiana da mercadoria nos capítulos iniciais de "O Capital" em combinação com um seminário sobre os Prolegomena de Kant ministrado por Ernst Cassirer em Berlim, em 1920). 1936: Minuta para uma teoria sociológica do conhecimento. Esta foi a primeira tentativa de uma exposição geral. O termo "sociológica" (em vez de: "marxista") servia para despiste perante os nazistas. O "Exposé" de Lucerna 1937: Liquidação crítica do apriorismo. Em Paris sob o influxo de Th. Adorno e de Walter Benjamin. "Exposé" de Paris. 1950: Intellectual and Manual Labour (Trabalho Intelectual e Manual). Escrito em Birmingham, não publicado. O "Exposé" inglês.

Sohn Rethel 1

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    Retirado de: http://adorno.planetaclix.pt/sohn-rethel.htm (27/10/2010)

    Alfred SOH-RETHEL

    Trabalho espiritual e corporal

    Para a epistemologia da histria ocidental

    Traduo

    Cesare Giuseppe Galvan

    SOH-RETHEL, Alfred. Geistige und krperliche Arbeit. Zur Epistemologie der abendlndischen Geschichte. (Trabalho espiritual e corporal. Para a epistemologia da histria ocidental). Rev. u. erg. Neuauflage. Weinheim, VCH, Acta Humaniora, 1989. H edio inglesa de uma verso anterior (1950).

    Prefcio

    O trabalho intelectual de minha vida at o nonagsimo aniversrio serviu para esclarecer ou decifrar uma viso meio intuitiva, que me coube elaborar em 1921 em meu estudo na Universidade de Heidelberg: o descobrimento do sujeito transcendental na forma mercadoria, um axioma condutor do materialismo histrico. Um esclarecimento satisfatrio desse axioma pode ser alcanado somente como resultado final de ataques sempre novos, titulados Exposs (Exposio). Distingo sete de tais ataques:

    1921: Postulado: a forma mercadoria compreende em si o sujeito transcendental (este conhecimento resultava de uma anlise palavra por palavra da anlise marxiana da mercadoria nos captulos iniciais de "O Capital" em combinao com um seminrio sobre os Prolegomena de Kant ministrado por Ernst Cassirer em Berlim, em 1920).

    1936: Minuta para uma teoria sociolgica do conhecimento. Esta foi a primeira tentativa de uma exposio geral. O termo "sociolgica" (em vez de: "marxista") servia para despiste perante os nazistas. O "Expos" de Lucerna

    1937: Liquidao crtica do apriorismo. Em Paris sob o influxo de Th. Adorno e de Walter Benjamin. "Expos" de Paris.

    1950: Intellectual and Manual Labour (Trabalho Intelectual e Manual). Escrito em Birmingham, no publicado. O "Expos" ingls.

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    1961: Warenform und Denkform (Forma Mercadoria e Forma de Pensamento), tentativa de uma explicao social da origem da razo pura. Publicado na Revista da Academia da Universidade Humboldt, Berlim (DDR). "Expos" de Berlim.

    1970: Geistige und krperliche Arbeit (Trabalho espiritual e corporal).

    1976: Das Geld, die bare Mnze des Apriori (O dinheiro, a moeda lquida do a priori). O "Expos" de Bremen.

    1989: Geistige und Krperliche Arbeit. Epistemologie der abendlndischen Geschichte (Trabalho espiritual e corporal. Epistemologia da histria ocidental). Nova edio, revista e completada, de "Trabalho espiritual e corporal".

    Tambm esta verso, aqui apresentada, deixa em aberto muitas questes. Mas minhas pesquisas levadas adiante ao longo de 68 anos tornaram possvel uma tese resumo:

    Decifrar o estado de coisas (fechado) da sntese funcional de nossa sociedade ocidental possibilita ao mesmo tempo a reconceptualizao da filosofia ocidental.

    Adorno formulou a grandiosa proposio: o materialismo histrico a anamnese da gnese; que este entendimento - que destri o platonismo - chegue elegncia do prprio platonismo, atesta o esprito de Adorno.

    Na pesquisa aqui apresentada trata-se portanto da alternativa entre epistemologia idealista ou materialista. Enquanto a idealista (algo assim como na exposio de Kant) se apresenta como nexo de invenes, a materialista s pode repousar sobre um nexo de descobertas.

    Marx no fundou nenhuma interpretao materialista do conhecimento cientfico, mas pagou seu tributo quela dominante a seu tempo, fundada por Kant e Hegel. A anlise marxiana no comeo de "O Capital" analisa a economia poltica, mas no se questiona sobre a possibilidade de sntese social em sociedades, que repousam no princpio da propriedade privada. Diante disso, meus estudos dirigem-se exatamente pesquisa do nexo social - por essa mudana de temtica o questionamento poltico-econmico torna-se sociolgico.

    Contudo, eu quereria salientar, que a passagem de economia sociologia no foi de nenhuma maneira o ponto de partida., que me moveu remodelao da anlise marxiana da mercadoria. S por ocasio de uma palestra sobre "Forma mercadoria e forma do pensamento" Universidade Humboldt em 1958, eu reconheci, que Marx tinha descuidado de seguir nesse ponto sua primeira Tese sobre Feuerbach, onde se trata da pesquisa do nexo violento que formam as sociedades ocidentais.

    As teoria idealistas do conhecimento, as quais esbarram no obstculo de no poder elas mesmas explicar o poder das snteses espirituais, tm sua verdade aparente no fato de

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    que a eficcia scio-sinttica dos sujeitos individuais permanece totalmente escondida para eles mesmos: essa eficcia hipostasiada pelas teorias idealistas do conhecimento como "sujeito transcendental". Se ns, ao contrrio, seguirmos o fio da meada da praxis social real, deveria ser possvel fundar uma teoria materialista do conhecimento, a qual s pode ser histrica.

    Bremen, Agosto 1989

    Alfred Sohn-Rethel

    Quereria agradecer meus colaboradores Karim Akerma e Udo Casper, que tornaram possvel esta edio com o apoio da Stiftung fr Philosophie (Fundao para a Filosofia), de Mnchengladbach, e da Universidade de Bremen.

    I Parte:

    "Forma-mercadoria e forma de pensamento - Crtica da teoria do conhecimento"

    1. Partir criticamente de Kant ou de Hegel?

    O desenvolvimento do pensamento e a nfase recebem nova luz e se deslocam se o caminho da filosofia de Kant a Hegel for submetido a uma considerao sob o ponto de vista do trabalho espiritual e corporal, sua relao e sua separao radical no capitalismo. Com isso, a apreciao da filosofia sai dos enredamentos conceituais internos e do reino dos especialistas do pensamento filosfico, para o campo visual histrico e deveria, entre outras coisas, tornar-se compreensvel at aos trabalhadores manuais. As especulaes de Kant sobre a "coisa em si", por exemplo, tornam-se pelo menos em parte perfeitamente evidentes. Se considerarmos to somente a obra sobre a razo terica, como o caso da Crtica da razo pura, se a anlise se ocupar exclusivamente com as formas conceituais do trabalho intelectual na "matemtica pura" e na "cincia pura da natureza", com a medio de seus limites de validade, sobretudo com sua "pura possibilidade" bem como com seu mtodo, ento est claro, que algo fica fora, ou seja o trabalho manual. O trabalho manual leva a cabo as coisas, das quais a razo teortica considera somente a "aparncia", e tem um carter de realidade diferente daquele que possa jamais competir ao objeto do conhecimento. No decurso de nossa pesquisa mostrar-se- que o prprio trabalho (e somente como tal) se subtrai a todos os conceitos de sociedades produtoras de mercadorias, sendo a eles "transcendente", pois esses conceitos derivam em seu conjunto da conexo de apropriao, formada por essas sociedades. Certo, encobre-se tal situao ao pensamento de Kant, cujo esforo fundamental dirigiu-se a provar a autonomia autofundante do trabalho intelectual, precisamente do trabalho cientfico, bem como de todos os demais interesses da classe burguesa, "formada". Nisso reluz a "coisa em si" em variadas significaes, antes de

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    tudo na tica, onde ao indivduo moral se assegura, que a "coisa em si" leva, em si mesma, sobretudo ao apoio de sua liberdade.

    Mas o dualismo, que fica para Kant em todo seu esforo do comeo ao fim, um reflexo da realidade capitalista sem comparao mais fiel verdade que os esforos de seus seguidores, que se livram do dualismo na medida em que neles tudo puxado para dentro da "imanncia do esprito". J Fichte chama Kant de "cabea de trs quartos", porque ele no teria extrado, ele mesmo, toda a conseqncia de sua filosofia. No entanto, bem tinha acontecido a Revoluo Francesa, na qual a burguesia parecia ter-se apropriado completamente de toda a realidade, sem deixar nenhuma realidade oposta. Pode-se tambm dizer, que aps a Revoluo Francesa a sociedade toda se tornara pasto do capital. Mas sob este aspecto, ao tempo de Hegel e para um esprito com sua viso, ainda nada se podia reconhecer. Ele tomou a Revoluo no sentido no qual ela tinha sido entendida, leu com seus amigos Hlderlin e Schelling todos os eventos, cada notcia, que o jornal anunciava, como acontecer filosfico, olhou a Napoleo em sua entrada em Iena como ao "Esprito do Mundo", que ele "viu chegar a cavalo". Essa era a "soberania do pensamento", mas tambm a descolagem do terreno histrico, culminao suprema, que se prevalecia das implicaes correspondentes realizao da liberdade e as entendia sistematicamente, independentemente de se as ruas de Paris e seus pores ofereciam abrigo a isso ou no. Para Hegel no bastava tomar a liberdade puramente como a exigncia e o ideal, como ele tinha sido para Kant, cuja filosofia Marx denomina "a filosofia da revoluo francesa", a filosofia no estgio da revoluo. Para Hegel, ela se tornou lei fundamental, pela qual se move a realidade. Pensar e ser esto para ele no mais em relao como opostos, eles tornaram-se uno, e o mesmo valia correspondentemente para todas as antteses e dicotomias da reflexo filosfica. Essa unidade aquilo que, desde sempre, tinha sido entendido com pensar e ser, ideal e realidade, essncia e aparncia, forma e matria, etc.; sua unidade era aquilo que elas significavam, era sua verdade. Assim, da lgica veio a dialtica. As determinaes realizaram-se, mas em sua realizao mudaram as condies de sua realizao, de modo que cada determinao, para realizar-se, desenvolver-se, para ser ela mesma, devia tornar-se algo outro de si. A verdade tornou-se processo gerador do tempo, que devia estar certo (o que sempre ocorria) com aquilo que se encontrava no tempo e nele se realizava. O ato de nascimento (a origem burguesa do pensamento) mostra-se claramente no fato que ele era s pensamento, a dialtica pura lgica, a realizao nada seno filosofia, a concretizao no ocorria nenhures seno na "Imanncia do Esprito". O Ser, com o qual o pensar era uno, no era o ser espao-temporal das coisas e das relaes da histria factual e dos fatos histricos, e sim o Ser, que Hegel puxou ao ponto de fundao da lgica, da cpula do "eu sou eu", portanto no era nada seno o ser do pensar mesmo, o ser, com o qual o pensar se confunde pensando, e, falando materialistamente, o auto-espelhamento da plena hegemonia burguesa de classe. De todas as filosofias, que "s interpretam o mundo de vrias maneiras", sem "mud-lo", a de Hegel a mais crassa, mesmo porque ela dissipa a forma da mudana do ser, a prpria dialtica, em nada seno "na idia". E para valer, para Marx a dialtica devia de fato ser "entornada", melhor: ser revirada e revirada. Ela devia sobretudo deixar de ser

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    lgica1 .Na luta de classes para a mudana da realidade h certamente a necessidade de pensar dialeticamente, e para aprender isso pode-se ir escola de Hegel, talvez at seguindo a sugesto de Lenin de fundar "uma sociedade para a cura da dialtica hegeliana". Mas no marxismo temos a dialtica no por causa de Hegel. A dialtica marxista vale no sentido do ser scia, pois o marxismo visa a tornar esse ser uma realidade, na qual o real tenha sentido e o sentido se torne realidade, onde portanto a sociedade humana sai de sua "pr-histria", na qual a humanidade bola de jogo das necessidades naturais. A servio dessa finalidade, a histria humana deve ser entendida em seu conjunto sob um postulado metodolgico, pelo qual a possibilidade dessa finalidade, a possibilidade real de sua realizao, concebida j como o propriamente determinante, a lei natural dominando completamente a histria humana, portanto como a verdade que est por toda parte j por baixo de seu acontecer. Esse postulado metodolgico o materialismo histrico. Com tal expresso, "materialismo histrico", entende-se que a histria humana parte da histria natural, ou seja dominada em ltima instncia por necessidades naturais. Estas necessidades naturais tornam-se humanas, ou seja a natureza experimenta sua continuao na forma de histria humana l onde comea o trabalho. Que os homens no vivem em um pas das delcias, ou seja que no vivem de graa, mas nem so nutridos cegamente pela natureza como os animais, e sim vivem na medida de seu trabalho, portanto em fora da sua produo, por eles mesmos gerada, empreendida e levada a termo, aqui est a base natural dos homens e o "materialismo" da histria humana. "Na produo de sua vida...", assim soam as primeiras palavras, com as quais Marx comea sua exposio dos axiomas do enfoque materialista da histria. Poder-se-ia tambm dizer que a lei fundamental do materialismo histrico a lei do valor. Mas a lei do valor comea seu caminho s quando o produto do trabalho humano ultrapassa a pura necessidade natural e se torna "valor" inter-humano: e esse o limiar onde comeam a troca de mercadorias e a explorao, portanto onde, dito de modo no marxista, comea o "pecado original" ou, dito marxisticamente, onde se introduzem a "reificao" e a "autoalienao" dos homens, sua perverso ou danao, seu deslumbramento ou cegamento, a causalidade natural historicamente gerada da "economia" e a dominao de uma naturalidade, que deixado aos homens superar, quando o tempo chegar. A lei do valor torna-se, em outras palavras, lei fundamental do materialismo histrico no decurso das pocas da dominao da sociedade de classe. Como, portanto, pertence a dialtica s instncias marxsticas: materialismo histrico, lei do valor, sociedade de classes, economia, autolibertao dos homens de sua pr-histria? De acordo com o enfoque aqui defendido, a dialtica est no pensamento marxista tal como a dialtica hegeliana na lgica de Hegel. Ela est, porm, tambm no na histria como parte de sua facticidade. Se algum for positivista, e portanto registra a "verdade" como pedra e pedras, fato e fatos, a ele nunca a dialtica daria sequer uma ensinadela. Contudo a dialtica encontra-se na histria, mas ela se mostra s quele que considera a histria sob o postulado metodolgico do materialismo histrico. A ele ela se mostra porque a dialtica aquilo, que dela Hegel desenvolveu, unidade de pensar e de ser, de sentido e de realidade, e porque essa unidade, entendida materialisticamente, desde o comeo forma a essncia

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    da histria humana, mesmo para aquele que no sabe de nada melhor que das aparncias e no costuma sequer comear a entender qualquer coisa dessa essncia.

    Quem foi ento que batizou Marx: Hegel ou Kant? A resposta menos simples que comumente se supe. Em toda a concepo, regada a dialtica, do materialismo histrico, domina uma perigosa tentao de ignorar o problema do conhecimento em vista da natureza. A natureza aparece por meio do trabalho, de sua matria, foras, instrumentos, mquinas aparecem j como fator dado introduzido na histria humana e dominado. Ela no exerce sua causalidade sobre a histria como constante, e sim atravs do grau de desenvolvimento das foras produtivas; por isso, bem ocorrem perdas, mas no essencial as pocas se seguem uma sobre as costas das outras, porquanto as consequncias possam atuar sem progresso de acordo com as significaes nas relaes sociais de produo. A natureza aparece portanto como uma matria contida na histria, sempre digerida atravs da prxis da produo. O conhecimento e a cincia da natureza exigido com isso tratado por Marx, correspondentemente, com uma aparente naturalidade, na medida em que h algum aceno especial a ele. Parece portanto no oferecer-se nenhuma oportunidade de fazer disso um problema do conhecimento conforme a maneira kantiana. Contudo tal problema se pe.

    Obviamente ele no se coloca no fundamento da filosofia como em Kant, como questo a-histrica "do conhecimento como tal" nem sequer da "possibilidade da experincia". Ele se pe como fenmeno histrico especfico pela separao entre trabalho espiritual e manual, que cresce no terreno da diviso de classes na produo mercantil desenvolvida, e de maneira completamente desenvolvida pela primeira vez entre os antigos clssicos e depois por sua vez sobretudo na poca moderna europia. Aqui coloca-se um problema terico do conhecimento pelo fato histrico de que as formas do conhecimento da natureza se separam da produo manual, se autonomizam perante ela e, portanto, fluem abertamente de outras fontes que aquelas das quais flui o trabalho manual. Quais fontes possam ser essas, isso no por sua vez nada evidente, mesmo que se partilhe a crena da teoria tradicional do conhecimento em uma capacidade humana inata de "entendimento". O fenmeno em si, pelo menos em sua forma moderna europia, aquele mesmo, para o qual valem as questes de Kant: como possvel a pura matemtica? Como possvel a pura cincia da natureza? A teoria, com a qual ele respondeu apoiava-se em anlises, desenvolvidas por mais de dez anos, do mtodo galileano e da fsica newtoniana, complementadas e comprovadas por trabalhos prprios em cincia natural, e em partes essenciais a teoria se constitua de concluses dos resultados, que ele tinha alcanado. Que a "pura cincia natural" possvel, disso no h dvida, pois ela um dado de fato; conseqentemente deve-se poder indagar como ela possvel. Esta era a forma de argumentao de Kant, e a mesma argumentao se torna necessria para o histrico-materialista, se ele se der bastante conta de quo essencial e inseparavelmente, por exemplo, a separao do trabalho espiritual da cincia natural em relao com o trabalho manual proletrio est relacionada com a hegemonia econmica do capital sobre a produo. A hegemonia econmica no poderia ser exercida pelo capital, se a tecnologia fossa coisa dos

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    trabalhadores. Portanto, o problema do conhecimento na formulao kantiana se coloca no terreno do materialismo histrico induzido por Hegel; no, por assim dizer, Kant ou Hegel, e sim Kant na moldura de Hegel. Na verdade no se trata nem de um nem de outro, e sim das formas de aparecimento do trabalho espiritual e de sua separao do trabalho manual, como problema parcial histrico-materialista.

    Sublinhe-se que o problema parcial de uma significao, que para ns no momento atual cresce enormemente. Quem no dia de hoje falar em revolucionar a sociedade, em transformar o capitalismo em socialismo e porventura na possibilidade de uma ordem comunista, sem saber como a cincia e a tcnica cientfica se inserem na sociedade, de onde elas provem, de que natureza e origem sua forma conceptual, como portanto a sociedade deve dominar o desenvolvimento da cincia em vez de ser por ele dominada e subjugada, ele se expe censura da absurdidade. Nas teorias existentes do conhecimento porm as formas dos conceitos do trabalho espiritual cientfico e filosfico no se concebem de maneira nenhuma como fenmeno histrico. Ao contrrio. A forma conceptual do modo de pensar das cincias da natureza assinala-se em geral pela a-temporalidade histrica de seu contedo. Nas teorias do conhecimento aceita-se essa a-historicidade como fundamento dado. Uma explicao histrica da origem declarada como impossvel ou sem mais nem sequer se menciona. Certo, nas teorias do conhecimento o pensamento das cincias naturais de uma ou outra poca no avaliado como fenmeno do trabalho espiritual, o qual deve estar em uma relao social determinada de separao do trabalho manual de dado tipo. Tais parmetros de pensamento pertencem ao materialismo histrico, mas at o momento no foram explorados para a crtica da teoria do conhecimento, para a qual eles possuem capacidade. Isso deve ser empreendido nesta pesquisa, no convencimento que uma teoria fundamental da histria do trabalho intelectual e do trabalho manual contribuiria para o complemento essencial e a continuao dos conhecimentos marxistas.

    O modo como temos que proceder, portanto a metodologia da coisa, bem devia pertencer a este ponto preliminar. De fato, porm, ela sempre primeiro se aplica e pressupe que j se chegou a resultados crveis. Primeiro, torna-se evidente aquilo de que ela deve prescindir. Propor ao leitor uma metodologia ab ovo abusar de sua pacincia. Isso no deve significar que no se d valor metodologia. Ao contrrio, deve-se dar-lhe valor to grande, que ela se deixe avaliar adequadamente s com um pleno conhecimento da pesquisa. Portanto, ela ser aqui colocada em apndice pesquisa. Naturalmente cada qual est livre de inverter a sequncia, se lhe aprouver.

    2. Abstrao conceptual ou real?

    Forma do esprito ou forma da sociedade tm em comum que so "formas". O modo de pensar marxiano caracteriza-se por uma concepo das formas, na qual ele se afasta de todos os outros modos de pensar. Ele se guia a partir de Hegel, mas to somente para tambm afastar-se de Hegel logo a seguir. Forma para Marx algo temporalmente condicionado. Ela surge, passa e transforma-se no tempo. Entender forma como ligada

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    ao tempo sinal de pensamento dialtico e deriva de Hegel. Mas em Hegel o processo de origem e mudana das formas, conforme exposto acima, originariamente processo mental. Ele constitui a lgica. Mudanas de formas de outro tipo, como na natureza ou na histria, em Hegel so sempre inteligveis s pela relao lgica e em analogia com ela. A concepo hegeliana da dialtica atua ento de tal modo que no somente autoriza o primado do esprito sobre a matria, mas o empossa em soberania nica.

    Para Marx, ao contrrio, o tempo, que domina a gnese e a mudana das formas, entende-se de antemo como histrico, tempo da histria natural ou humana 2. Por isso no se pode descobrir tambm nada de antemo sobre as formas. Uma Prima Philosophia est excluda em qualquer feio no marxismo. O que se deve afirmar, deve primeiro ser encontrado pelas pesquisas. O materialismo histrico , como dissemos, s o nome para um postulado metodolgico, e mesmo isso para Marx tinha primeiramente "resultado de seus estudos".

    Assim, na constituio de formas histricas de conscincia no se pode deixar de fazer caso de processos de abstrao, que l se exercem. A abstrao iguala-se oficina da formao dos conceitos, e se o discurso sobre a determinao social do ser da conscincia deve possuir um sentido que satisfaa forma, ento deve-se poder colocar no fundamento dela uma concepo materialista da natureza do processo de abstrao. Uma formao da conscincia a partir do ser social pressupe um processo de abstrao. que parte do ser social. S um tal fato pode tornar inteligvel o que se entende com a afirmao de que "o ser social dos homens determina sua conscincia". Mas com uma tal concepo, o materialista histrico est em contradio inconcilivel com toda a filosofia teortica tradicional. Para a tradio de pensamento, globalmente, est certo que a abstrao a atividade prpria e o privilgio exclusivo do pensamento. Falar em abstrao em um sentido distinto da abstrao do pensamento passa por inadmissvel, mesmo em se empregando a palavra s em sentido metafrico. Mas com base em tal concepo, o postulado do materialismo histrico no pode ser levado adiante. Se o processo de formao da conscincia, ou seja a abstrao, for assunto exclusivo da prpria conscincia, ento permanece um abismo entre a forma da conscincia por um lado, e sua suposta determinao pelo ser, por outro lado, abismo que o materialista histrico desmente em princpio, mas de cuja ultrapassagem ele concretamente no pode dar conta satisfatoriamente.

    Com certeza deve-se pensar que a prpria tradio teortica um produto da separao entre trabalho da cabea e das mos e foi desde seu comeo com Pitgoras, Herclito e Parmnides uma tradio de trabalhadores intelectuais para trabalhadores intelectuais, e nisso pouco mudou at hoje. O testemunho desta tradio, mesmo se representado em unanimidade ininterrupta, no tem portanto nenhum valor incontestvel para um ponto de vista intelectual, que se situa na outra margem. E ns atribumos anlise marxiana da mercadoria no comeo de O capital e j no texto Para a crtica da economia poltica de 1859 uma significao sem par para o pensamento materialista, baseados em que o

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    discurso sobre uma abstrao em um sentido distinto daquele de abstrao do pensamento.

    3. A abstrao mercadoria (p.11-16)

    No contexto de sua anlise da forma mercadoria, Marx fala em "abstrao mercadoria" e em "abstrao valor". A forma mercadoria (Warenform) abstrata, e a abstrao domina em todo o seu circuito. Em primeiro lugar, o prprio valor de troca ele mesmo valor abstrato, em contraposio ao valor de uso das mercadorias. Somente o valor de troca passvel de diferenciao quantitativa, e a quantificao que aqui se apresenta , por sua vez, de natureza abstrata em comparao com a determinao quantitativa de valores de uso. O prprio trabalho, como Marx sublinha com particular nfase, torna-se fundamento da determinao da grandeza do valor e substncia do valor somente enquanto "trabalho humano abstrato", trabalho humano como tal tout court. A forma em que aparece sensivelmente o valor da mercadoria, ou seja o dinheiro (quer como moeda, quer como bilhete) riqueza abstrata, qual j no se colocam mais limites. Como possuidor de tal riqueza o prprio homem torna-se homem abstrato, sua individualidade torna-se a essncia abstrata do proprietrio privado. Enfim, uma sociedade, na qual a circulao de mercadorias forma o nexo das coisas, uma conexo puramente abstrata, na qual todo concreto se encontra em mos privadas.

    Mas a natureza da abstrao mercadoria consiste em que ela no um produto mental, nem tem sua origem no pensamento do homem, e sim em seu agir. Contudo, isso no confere a seu conceito uma significao puramente metafrica. Ela abstrao no sentido literal rigoroso. O conceito econmico de valor, que da resulta, caracteriza-se por total falta de qualidade e por uma diferenciabilidade puramente quantitativa e por se poder utilizar para qualquer tipo de mercadorias e prestaes de servios, que possam apresentar-se em um mercado. Com estas propriedades, a abstrao econmica do valor possui semelhanas externas marcantes com categorias bsicas do conhecimento da natureza, sem que se manifeste a mnima relao interna entre esses dois planos totalmente heterlogos. Enquanto os conceitos do conhecimento da natureza so abstraes mentais, o conceito econmico de valor uma abstrao real. Embora ele no exista em nenhum lugar seno no pensamento humano, ele no surge do pensar. Ele imediatamente de natureza social, tem sua origem na esfera temporal e espacial do intercmbio entre homens. No so as pessoas que geram esta abstrao, mas seus feitos, seus negcios recprocos o fazem. "No o sabem, mas o fazem".

    Para entender adequadamente o empreendimento marxiano da Crtica da economia poltica, deve-se reconhecer que o fenmeno da abstrao mercadoria, ou abstrao valor, descoberto na anlise da mercadoria, tem a caracterstica saliente de abstrao real. isso que julgamos indispensvel. Do contrrio, a descoberta marxiana da abstrao mercadoria (assim entendida) encontrar-se-ia em contradio incompatvel com o conjunto da tradio de pensamento terico, e tal contradio deve ser levada a um ajuste crtico3. Por ajuste crtico entendo aqui um procedimento, no qual nenhuma

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    das duas teses reciprocamente contraditrias se supe como verdadeira, e sim deve-se descobrir por critrios crticos qual delas seja verdadeira. Marx no levou um tal ajuste at seu completo desenvolvimento, e eu estou inclinado a concordar com Louis Althusser bem como com Jrgen Habermas, de que nos fundamentos tericos do Capital est em questo algo mais, e de maior profundidade, que aquilo que se expressa na avaliao econmica. Louis Althusser do parecer que o Capital se deva ler como resposta a uma pergunta subentendida mas no formulada por Marx4. Jrgen Habermas vai mais longe e acusa Marx de ter ignorado as implicaes teorticas de seu ponto de vista. Eu concordo at mesmo com Habermas de que, se tais implicaes se assumirem e se perseguirem de maneira consequente, a prpria teoria do conhecimento experimentaria uma transformao radical, ou seja completaria sua metamorfose em teoria da sociedade 5. Porm, creio que s podemos desembaraar-nos mais eficientemente da tradio epistemolgica e idealista, se no falarmos mais em "teoria do conhecimento", mas na separao entre trabalho espiritual e trabalho manual. Pois aqui toda a colocao do problema alcana o denominador de sua significao prtica.

    Se no submetermos a um ajuste crtico a contradio entre a abstrao real em Marx e a abstrao mental na teoria do conhecimento, estaramos com isso satisfeitos com a falta de relacionamento entre a forma de pensamento das cincias naturais e o processo histrico social. Fica-se com a separao de trabalho da cabea e das mos. Mas isso significa sobretudo que se admite a dominao social de classes, mesmo se esta assumir as formas de dominao socialista de burocratas. A omisso da teoria do conhecimento por parte de Marx expressa-se em erros de uma teoria da relao do trabalho mental com o trabalho manual, ou seja como descuido teortico de uma precondio para a socializao sem classes, precondio reconhecida pelo prprio Marx como essencial 6. A chamada significao prtica do problema no deve diminuir seu valor terico. Este valor no se situa somente em uma concepo coesa em si, mas em uma concepo consistentemente crtica do pensamento marxista, motivada pela finalidade da sociedade sem classes, sua possibilidade e as condies de sua realizao, de forma anloga primazia da razo prtica sobre a razo terica em Kant. A semelhana vai to longe, que a possibilidade da liberdade de uma sociedade sem classes depende da concepo consistentemente crtica de nosso pensamento marxista.

    s condies de uma sociedade sem classes ns acrescentamos (em consonncia com Marx) a unidade do trabalho espiritual e manual ou, como ele diz, o desaparecimento de sua separao. E vamos to longe que dizemos, que no se pode dar sequer uma olhada suficiente nas possibilidades reais e nas condies formais de uma sociedade sem classes, se faltar uma viso satisfatria da diviso do trabalho espiritual e manual e das condies precisas de seu surgimento. Tal viso prende-se aos supostos, de que as formas conceituais de conhecimento - objeto especfico da teoria do conhecimento inclusive da filosofia terica dos Gregos - formalmente podem ser deduzidas do mesmo plano ao qual pertence tambm o trabalho manual, ou seja o plano da existncia social. Ser este o caso? Esta a questo, que aqui se pesquisa. A pesquisa prende-se portanto

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    metodicamente linha, sobre a qual em uma sociedade futura poder-se- estabelecer a unidade entre cabea e mo.

    A tarefa a comprovao crtica da abstrao mercadoria. Isso a mesma coisa que aquilo que acima denominamos de "ajuste crtico". Deve-se primeiramente comprovar o fato formal da abstrao em um sentido da palavra reconhecido de um ponto de vista da teoria do conhecimento; e sem segundo lugar seu carter real de modo que no possa ser contestado pelos argumentos da teoria do conhecimento. A comprovao da abstrao mercadoria deve portanto trazer consigo a crtica concludente da teoria do conhecimento no entendimento tradicional. O critrio deste entendimento tradicional que a teoria do conhecimento implica a impossibilidade formal de uma unidade entre trabalho manual e o trabalho espiritual das cincias da natureza. Um conceito mais preciso desta unidade pode-se esperar sem dvida como resultado da pesquisa sobre a separao dos dois e os fundamentos de seu surgimento.

    comprovao crtica da abstrao mercadoria deve-se antepor primeiro uma determinao do prprio fenmeno.

    4. Descrio fenomenolgica da abstrao mercadoria

    O conceito marxiano de abstrao mercadoria refere-se rigorosamente ao trabalho incorporado nas mercadorias e determinando a grandeza de seu valor. O trabalho criador de valor determinado como "trabalho humano abstrato" em contraposio ao trabalho til e concreto, criador de valor de uso. Ora, nem o trabalho abstrato por natureza, nem sua abstrao para "trabalho humano abstrato" seu prprio produto. O trabalho no se abstrai a si mesmo. O lugar da abstrao est fora do trabalho, na forma social de relacionamento prpria da relao de troca. bem verdade que, de acordo com a concepo marxiana, vale que tambm a relao de troca no se abstrai a si mesma. Ela abstrai (ou, digamos, abstratifica) o trabalho. O resultado dessa relao o valor das mercadorias. O valor das mercadorias tem como forma a relao de troca abstraidora e como substncia o trabalho abstratificado. Nesta determinao abstrata da "forma valor" o trabalho como "substncia do valor" torna-se o fundamento puramente quantitativo da "grandeza do valor". Na anlise da mercadoria do primeiro livro do Capital, o objeto da pesquisa a natureza da grandeza do valor no menos que a natureza da forma valor somente segundo sua essncia; as relaes quantitativas de troca das mercadorias, como "aparecem" historicamente de fato, sero explicadas primeiramente muito mais adiante, no volume terceiro. (Para uma compreenso adequada da dialtica interna e da sistemtica da obra principal de Marx, mencionemos aqui os estudos excelentes de Rosdolski e de Reichelt.) Mas como tambm a relao essencial entre a forma de relacionamento social da troca, por um lado, e o trabalho, pelo outro, apresentada de maneira rigorosa por Marx, sobre isso deveriam tomar lugar discusses analticas e crticas: elas iriam atrasar e complicar o presente desenvolvimento de idias, tanto que as remetemos para um anexo separado. O que aqui nos interessa no o relacionamento em seu conjunto, mas s um aspecto parcial do mesmo, ou seja o poder de abstrao

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    que se deve troca de mercadorias, no ao trabalho: "O processo de troca confere mercadoria que ele transforma em dinheiro no seu valor, mas sua forma especfica de valor." (MARX, O Capital, MEW, 23, p.105). Falamos portanto a seguir em abstrao da troca, no em abstrao mercadoria. Como que a abstrao da troca se deixa descrever isoladamente como puro fenmeno?

    A troca das mercadorias abstrata porque est no somente distinta, mas at temporalmente separada de seu uso. A ao da troca e a ao do uso excluem-se reciprocamente no tempo. Enquanto mercadorias so objetos de aes de troca (portanto se encontram no mercado) no podem ser utilizadas nem pelos vendedores nem pelos clientes. S depois de completada a transao, portanto aps sua passagem esfera privada dos seus compradores, as mercadorias tornam-se disponveis para o uso dos ltimos. No mercado, nas lojas, nas vitrinas etc., as mercadorias esto quietas, prontas para um s tipo de manuseio, sua troca. Uma mercadoria assinalada por um preo definitivo, por exemplo, est sujeita fico de perfeita imutabilidade material, e isso no somente por parte de mos de homens. Supe-se at mesmo da natureza, que ela suspende sua respirao no corpo das mercadorias, enquanto o preo deve permanecer o mesmo. O fundamento que s o negcio da troca muda o status social das mercadorias, seu status como propriedade de seu possuidor, e, para poder levar adiante essa mudana social ordenadamente e segundo suas normas prprias, as mercadorias devem permanecer excludas de todas as mudanas fsicas simultneas ou ento que se possa providenciar, que elas permaneam materialmente imutadas. Portanto a troca abstrata no tempo, a que ela recorre. E "abstrato" significa aqui que se evitam todos os indcios de possvel uso das mercadorias. "Uso" entende-se aqui como produtivo tanto quanto consuntivo, e como sinnimo com todo o reino do relacionamento material do homem com a natureza, no sentido de Marx. "Em contraposio direta rude objetividade sensvel dos corpos das mercadorias, nenhum tomo de matria natural entra em sua objetividade de valor". (O capital, MEW, p.62). Onde o nexus rerum social reduzido a troca de mercadorias, deve-se produzir um vcuo em todas as atividades vitais fsicas e espirituais dos homens, para que nesse vcuo tome lugar sua conexo com a sociedade. Troca de mercadorias socializao pura enquanto tal, atravs de um ato que possui somente esse nico contedo, separado de todos os outros. Contudo isso vale somente para os atos da troca, os atos recprocos da entrega da propriedade, mas no vale para a conscincia daqueles que trocam.

    Pois enquanto o uso das mercadorias excludo de tal modo das aes dos interessados durante o tempo das tratativas da troca, ele no excludo em absoluto de seus pensamentos. Ao contrrio. O uso e a utilidade das mercadorias que esto no mercado para a troca ocupa os pensamentos dos clientes com toda vitalidade. E tambm esse interesse no se limita a conjectura. Os clientes tm o direito de assegurar-se do valor de uso das mercadorias. Podem tomar as mercadorias para observar, eventualmente toc-las, prov-las, experiment-las, fazer-se exibir o uso delas, e o tratamento do uso apresentado deveria ser idntico com aquele, para o qual as mercadorias devem ser adquiridas. Contudo a demonstrao das mercadorias no mercado serve to somente

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    para a instruo conceptual e a formao do juzo dos clientes, portanto permanece restrita ao puro valor do conhecimento e separada com absoluta preciso da prxis do prprio uso, mesmo que os dois sejam empiricamente de todo indistinguveis reciprocamente. A praxis do uso banida da esfera pblica do mercado e pertence exclusivamente esfera privada dos possuidores de mercadorias. No mercado o uso das coisas permanece "pura demonstrao" para os interessados. Com a formao da essncia do mercado, a imaginao dos homens separa-se do fazer e individualiza-se mais e mais como conscincia privada. Esse fenmeno toma sua origem exatamente no da esfera privada do "uso", e sim daquela pblica do mercado.

    Portanto, no a conscincia dos atores mercantis que abstrata. S seu negcio o . Ambos so necessrios: a abstrao do negcio e a falta de abstrao na conscincia que o acompanha; por isso os agentes mercantis no se conscientizam da abstrao de sua ao. A abstrao subtrai-se conscincia deles. Com isso, a falta de conscincia dos homens perante a abstrao de suas relaes de troca no nem fundamento nem condio para esta abstrao.

    J esta pura fenomenologia da abstrao da troca sugere que o sentido nela utilizado da palavra "abstrato" corresponde formalmente com seu uso na teoria do conhecimento. Denominamos "abstrato" aquilo que no emprico, e o uso que se exclui da ao de troca corresponde com o conceito da empiria dentro de seus limites prticos, no mbito de representao que lhe pertence. O que ultrapassa esses limites (ou seja propriedades das mercadorias irrelevantes para seu uso) subtrai-se empiria do uso, mas com isso no se acrescenta nada ao da troca. Esta abstrata no sentido do no emprico, independentemente de quanto ampla ou estreitamente se estenderam os limites do uso das mercadorias nas vrias pocas. Alis o que est em questo aqui em ambos os campos (no da abstrao da troca e no da teoria do conhecimento) a homogeneidade da abstrao.

    Aqui deve ser apontada outra ulterior contradio da abstrao mercadoria (respectivamente: da troca). A ao da troca exige prescindir por completo do uso (e das propriedades empricas dos objetos trocados). Ela exerce assim a negao radical da realidade fsica do uso. Apesar disso, ela mesma contudo uma ao fsica: ela arranca a mercadoria trocada da propriedade do vendedor e a desloca para a propriedade do comprador e movimenta o dinheiro do pagamento na direo oposta. Eu denomino isso de fisicalidade da ao de troca 7. Evidentemente, a ao da troca deve-se distinguir do transporte, o qual - por difcil e complicado que seja - tem s que providenciar que sua carga chegue intacta ao cliente.

    Ser necessrio dizer uma palavra sobre uma nova concepo da essncia da abstrao. Eu considero a pura abstrao em sua forma gentica como uma propriedade do ser social. Ela parte imprescindvel da sntese da sociedade funcional, que caracteriza a histria ocidental. De um ponto de vista burgus todos os conceitos puros, desprovidos de realidade perceptvel, apresentam-se como criaes do pensamento. Na prtica, para

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    a formao de tais conceitos no se pode encontrar na constituio corporal da pessoa nenhum fundamento, ao qual tais imagens correspondam. Hegel, no ponto mais elevado do pensamento burgus, serve-se da filosofia do esprito para fundamentar a posio do idealismo absoluto. De um ponto de vista materialista, ao contrrio, o pensamento puro representa a socializao do pensamento. Ela deve-se ao influxo da abstrao social real da ao de troca. Eu sustento portanto a tese da origem social da razo pura. Esta tese pode-se apoiar em sua demonstrao deduzindo do ser social os conceitos puros da razo, mais precisamente: deduzindo-os da fisicalidade abstrata da ao de troca. Esta deduo oferece a contrapartida difcil "deduo transcendental dos conceitos da razo pura" praticada por Kant, que foi reconhecida por Hegel como "puro idealismo".8

    O carter real da abstrao da troca pode ser tanto menos colocado em dvida. A abstrao da ao de troca o efeito direto de uma causalidade por manipulao e no se apresenta imediatamente de forma nenhuma no conceito. Ela surge como resultado do fato de no acontecerem operaes de uso durante o tempo e no lugar onde ocorre a troca. Ordinariamente esto em vigor leis ou pelo menos ordens de mercado, para garantir tal condicionamento da troca de mercadorias. Mas o que a abstrao realiza no a lei em si, nem a proibio punindo violaes das condies fundamentais. A abstrao um processo espao-temporal; ela acontece por trs das costas dos atores participantes. Aquilo que a torna to dificilmente descobrvel o carter negativo de sua constelao, ou seja: ela se funda na pura ausncia de um acontecer. O que aqui "enche" o espao e o tempo o no acontecer do uso no mbito da troca, o vazio em uso e a esterilidade, que se estende pelo lugar e pelo tempo que a transao exige. Por isso cada ao de troca que acontece abstrata no de maneira puramente acidental, mas em sua essncia, porque de outro modo (ou seja sem situao abstraente) ela nem teria podido acontecer.

    5. Economia e conhecimento

    Diferentemente da ao da troca entendemos aqui o "uso" das mercadorias quer no sentido produtivo quer no do consumo e, numa produo mercantil completamente desenvolvida, como sinnimo daquele conjunto que Marx compreende sob o processo de troca material com a natureza. Enquanto a ao da troca supe a separao do uso (mais precisamente: de aes de uso), ela postula portanto o mercado como um vcuo medido temporal e localmente, um vcuo no processo humano de metabolismo com a natureza. No meio desse vcuo a troca de mercadorias desenvolve a socializao como tal, puramente em si, in abstrato. Nossa questo (como possvel a socializao nas formas da troca de mercadorias?) poderia deixar-se formular tambm como questo sobre a possibilidade da socializao solta do processo humano de metabolismo com a natureza. Aquilo que capacita a troca de mercadorias para sua funo socializadora (ou, conforme prefiro dizer, sua funo socialmente sinttica) o fato de ser abstrata. Nossa questo inicial poderia portanto tambm soar assim: como possvel uma socializao

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    pura? - segundo os mesmos critrios de "pureza", que esto na base da "cincia pura da natureza" em Kant. O ponto de partida de nossa pesquisa implica com isso a tese, que h uma questo a respeito do contedo: como possvel uma socializao pura? Ela contm a chave para responder de forma espao-temporal questo kantiana sobre as condies de possibilidade de uma cincia pura da natureza. Esta questo, que Kant entendia em sentido idealista, pode-se traduzir em sentido marxiano: como possvel um conhecimento fidedigno da natureza de outras fontes que o trabalho manual? Colocada desta forma, a questo tem em vista o ponto de origem da separao entre trabalho intelectual e corporal como condio socialmente necessria do modo de produo capitalista. - Os corolrios colocao da questo devem elucidar a conexo sistemtica, pela qual a anlise ampliada das formas da abstrao mercadoria (aqui empreendida) serve crtica histrico-materialista da teoria do conhecimento - em complementado crtica marxiana da economia poltica. Expliquemos isso mais em detalhe.

    Na troca de mercadorias, ao e conscincia, fazer e pensar dos atores da troca separam-se e percorrem caminhos distintos. S a ao da troca abstrata do uso, enquanto a conscincia do ator no o . Sua prpria abstrao confere a todas as aes de troca (independentemente do contedo, do tempo, do lugar onde se executam) uma uniformidade formal rigorosa, em fora da qual elas formam a partir de si mesmas uma concatenao, de maneira que cada transao exerce inumerveis repercusses sobre a concluso de outras transaes por parte de possuidores desconhecidos de mercadorias. De tal maneira, resulta um entrelaamento dos homens "por trs de suas costas" para uma conexo existencial que se regula segundo funes da unidade - conexo na qual tambm a produo e o consumo ocorrem de acordo com as normas das mercadorias. Mas no so os homens que realizam isso, no so eles que do origem a esta conexo, e sim suas aes o fazem, enquanto eles vo selecionando uma mercadoria das outras como o portador e o "cristal" de sua abstrao e se referem a esse como ao idntico comum denominador de seus "valores". " primeiramente dentro da troca que os produtos do trabalho recebem uma objetividade de uso separada, distinta fisicamente deles, uma objetividade de valor socialmente igual." (O Capital. L. I, p.87 [da ed. alem Dietz]). "A ao social de todas as outras mercadorias exclui portanto uma mercadoria determinada, na qual elas representam seus valores universalmente. [...] Ser equivalente geral torna-se pelo processo social funo social especfica da mercadoria excluda. Assim ela se torna - dinheiro." (Ibid., p.101) "O processo de troca d s mercadorias, que ele transforma em dinheiro, no seu valor, e sim a forma especfica de valor." (Ibid., p.105) "A necessidade de representar externamente esta oposio entre valor de uso e valor para a troca, impele a uma forma autnoma do valor das mercadorias e no repousa nem descansa, at que ela est definitivamente alcanada pela duplicao da mercadoria em mercadoria e dinheiro." (Ibid., 102) "O cristal do dinheiro um produto necessrio do processo de troca, no qual diferentes produtos do trabalho so colocados como realmente equivalentes uns aos outros e portanto de fato so transformados em mercadorias." (Ibid., p.101) "A graa da sociedade burguesa est exatamente em que a priori no h nenhuma regulao consciente, social da produo. O que razovel e

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    necessrio impe-se somente como mdia que atua cegamente." (Carta a Kugelmann de 11 de julho de 1868) Isso caracteriza com bastante clareza o processo de constituio da economia sobre base capitalista como causalidade inconsciente de aes humanas, das aes na troca de mercadorias.

    Mas o discurso sobre a falta de conscincia do processo no nega naturalmente a conscincia individual dos possuidores de mercadoria. Eles so e permanecem os atores no jogo. "As mercadorias no podem ir por si mesmas ao mercado, nem podem trocar-se entre si mesmas. Devemos portanto procurar seus guardas, os proprietrios."(O Capital, L. I, p.99 [ed. alem cit.]) Os proprietrios de mercadorias na troca esto bem atentos coisa, ansiosos que nada lhes escape. Mas de onde tomam eles os conceitos, que esto disposio deles? No os tomam do tesouro de sua prpria conscincia; mesmo tendo-a, no meio da anarquia de uma sociedade de mercadorias, de nada ela lhes serviria para a obteno at mesmo da necessidade mais premente. Sobretudo eles no sabem sobretudo por si, como eles devem comportar-se aqui, eles devem deixar que as mercadorias lhes digam. Devem prestar ateno aos preos das mercadorias, compar-los com outros, perseguir suas oscilaes. Primeiramente com esta linguagem das mercadorias na conscincia os possuidores de mercadorias tornam-se seres racionais, que dominam seu agir e conseguem o que querem. Sem esta linguagem os homens estariam perdidos em sua prpria sociedade mercantil como em uma selva enfeitiada. Esta transferncia da conscincia humana s mercadorias e o equipamento do crebro humano com conceitos mercantis, estas "relaes humanas das coisas e relaes materiais dos homens" so aquilo que Marx denomina de coisificao (reificao). Aqui no so os produtos que obedecem aos seus produtores, e sim ao contrrio, os produtores agem conforme a ordem dos produtos, to logo estes estejam disposio em forma de mercadorias. A forma mercadoria a abstrao real, que no tem seu lugar e sua origem seno na troca mesma, de onde ela se estende atravs de toda a amplido e profundidade da produo mercantil desenvolvida, alcanando assim tambm o trabalho e at o pensamento.

    O pensamento no atingido diretamente pela abstrao da troca, e sim primeiro quando seus resultados se defrontam com ele em forma acabada, portanto primeiro post festum da evoluo das coisas. Depois sem dvida as diferentes feies da abstrao se facilitam ao pensamento sem qualquer sinal de sua origem. "O movimento de mediao desaparece em seu prprio resultado e no deixa atrs de si nenhum rastro."(O Capital., cit., p.107) Como isso acontece, ser assunto que nos ocupar mais de perto em seu lugar. Aqui devia-se somente assinalar de forma mais geral a conexo funcional bem como a essencial separao do mundo do agir humano e do mundo do pensar humano em sociedades de produo mercantil desenvolvida. Isso tinha sido omitido na primeira edio deste livro.

    Acrescentem-se um ou dois pontos adicionais de significao essencial para a compreenso do conjunto. O efeito fundamental da conexo da abstrao da troca sobre a sociedade burguesa consiste em que nela se chega a operar uma comensurao do

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    trabalho "morto" usado nas mercadorias e nelas objetivado. Como base de determinao da grandeza do valor (ou como "substncia do valor"), o prprio trabalho abstrato, "trabalho humano abstrato" ou trabalho de carter formal imediatamente social. Esta comensurao do trabalho possibilita de forma geral a coeso das "membra disiecta" da sociedade burguesa em uma economia. Esta a significao vital da abstrao real efectuada na troca para o processo de produo e reproduo da sociedade burguesa, portanto deveras "o ponto de partida ao redor do qual gira o entendimento da economia poltica" (O Capital, cit., p.56). "Enquanto os homens nivelam seus distintos produtos uns aos outros na troca como valores, eles igualam seus distintos trabalhos, como trabalho humano. Eles no o sabem, mas eles o fazem."(Ibid., p.88). O efeito desse nivelamento ou a comensurao dos trabalhos a determinao do tamanho das relaes de troca. " preciso ter uma produo desenvolvida de mercadorias, antes que da prpria experincia brote a seguinte intuio cientfica: os trabalhos privados realizados independentemente (em todos os sentidos) uns dos outros, mas como membros naturais da diviso social do trabalho so continuamente reduzidos a sua medida social proporcional, porque nas relaes de troca, casuais e continuamente oscilantes, de seus produtos o tempo de trabalho socialmente necessrio sua produo impe-se como uma norma da natureza, quase como a lei da gravidade, quando a casa desmorona. A determinao da grandeza do valor pelo tempo de trabalho portanto um mistrio escondido sob as movimentaes aparentes dos valores relativos das mercadorias." (Ibid., p.89). Enquanto o trabalho na produo das mercadorias se realiza na forma de trabalhos privados levados adiante independentemente, a funcionalidade da sociedade incnscia depende da comensurao do trabalho objetivado segundo normas da macroeconomia. S quando esta forma bsica do trabalho que produz mercadorias substituda por uma outra forma, s ento entra em jogo tambm outra forma de economia, independentemente de se os homens se tornam conscientes disso ou no. Na terceira parte deste escrito voltaremos a esta observao.

    Deve-se atribuir importncia ao fato de que, como aqui a determinao da grandeza do valor das mercadorias apresentada por Marx como resultado de uma causalidade puramente funcional que opera cegamente, tambm a constituio da forma valor mostra-se como um processo real no tempo e no espao, puramente funcional e igualmente inconsciente. E eu sustento a necessidade de que minha deduo faa justia a essa exigncia. A determinao formal abstrata do ato da troca surge atravs de uma impossibilidade causal de se chegar a um contrato de troca, se fosse necessrio supor que os objetos da troca durante as negociaes e na transferncia de posse se encontram em processo de mudana fsica. Somente se o estado social das mercadorias - ou seja a questo de sua posse - se puder separar claramente de seu estado fsico e de seu uso, s ento a troca de mercadorias pode funcionar como instituio social regular e uma transao pode referir-se a uma outra. Que isso confira um carter abstrato s aes de troca, no pertence finalidade da separao e de sua institucionalizao jurdica; mas ela sua consequncia inevitvel, sobretudo quando as transaes se realizam na prtica e sua execuo se torna fato. A execuo do ato da troca coloca em vigor a abstrao, prescindindo totalmente da conscincia que os atores das trocas possam ter desse efeito.

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    Independentemente de quais traos dessa abstrao se possam encontrar no pensamento dos homens, deve valer como certo que a abstrao real da troca social se encontra em sua base como fonte primria.

    O que se deve estabelecer na anlise da forma a seguir, so os critrios pelos quais se possa decidir quais dentre as abstraes que vivem na conscincia remontam abstrao real da troca e quais no. A partir do fato de que, no processo de troca, o fazer e o pensar por parte de quem troca se separam, uma verificao imediata da interrelao impossvel. Os homens no sabem de onde as formas de seu pensamento provm e como eles possam ter chegado posse de tais formas. Seu pensamento est cortado de sua base. Mas mesmo com uma identificao formal da abstrao de pensamento e da abstrao real, no se assegura ainda uma clara explicao da origem da primeira a partir da segunda. Exatamente por causa da dualidade de fazer e pensar, que reina aqui, a identificao formal somente indicaria um paralelismo entre os dois planos, o que poderia ser indcio tanto de uma pura relao de analogia quanto de uma conexo de fundamentao. Para provar a conexo de fundamentao deve-se poder indicar de que modo a abstrao real torna-se pensamento, qual papel ela joga no pensar e qual tarefa socialmente necessria lhe cabe.

    6. Anlise da abstrao da troca

    a. Colocao do problema

    A significao e necessidade histrica da abstrao da troca em sua realidade espao-temporal consiste em que, em sociedades produtoras de mercadorias, ela a portadora da socializao. Na conexo da diviso do trabalho da produo de mercadorias, nenhum procedimento de uso, de consumo ou de produo, no qual se desenrola a vida dos indivduos, pode realizar-se sem que seja mediado pela troca de mercadorias. Cada crise econmica ensina-nos que produo e uso - na medida de sua extenso e durao - so embargados, enquanto o sistema social da troca estiver quebrado. Abstemo-nos propositalmente de aprofundar as interdependncias econmicas, pois aqui no temos a ver com a economia. Baste assegurar-nos do registro de que a sntese das sociedades produtoras de mercadorias se deve buscar na troca de mercadorias, mais precisamente na prpria abstrao da troca. Correspondentemente, empreendemos a anlise formal da abstrao da troca em resposta questo: Como possvel uma sntese social nas formas da troca de mercadorias?

    Mesmo nesta forma inicial e simples, esta formulao da questo lembra mais Kant que Marx. Mas com isso um bom caso marxiano. A comparao implcita (como foi dito) no entre Kant e Marx, e sim entre Kant e Adam Smith ou, melhor, entre a teoria do conhecimento e a economia poltica, das quais os nomes mencionados podem constar como os fundadores sistemticos conhecidos. A riqueza das naes de Adam Smith, de 1776, e a Crtica da razo pura de Kant, de 1781 (primeira edio), so as duas obras em que, antes de todas as outras, se persegue a mesma finalidade com perfeita

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    independncia sistemtica em campos conceitualmente desligados: a comprovao da natureza ordenada da sociedade burguesa.

    Com base na pressuposio de que na natureza do trabalho humano est de produzir seus produtos como valores, Adam Smith prova que s h um curso timo que a sociedade possa assumir: ou seja, dar a cada possessor de mercadorias ilimitada liberdade de dispor de sua propriedade privada. Isso para a sociedade o caminho justo normativo fundamentado na essncia da prpria sociedade - que seja para seu bem, como estava convenido Adam Smith, ou para sua desgraa, como Ricardo comeou a desconfiar. Sabemos que a anlise da mercadoria da Marx serve a demolir at mesmo este suposio bsica da economia poltica em seu conjunto e, a partir da, a abrir os olhos para a verdadeira dialtica da sociedade burguesa. Esse o assunto da marxiana Crtica da economia poltica.

    A obra de Kant no tem por suposio (mas chega concluso) de que est na natureza do esprito humano de fazer seu trabalho separado e independente do trabalho corporal. Certo, em Kant s raramente h meno do trabalho manual e das "mos trabalhadoras", embora seu papel social indispensvel nunca esteja em dvida. Esse papel, porm, no se estende nem possibilidade de um conhecimento exato da natureza. A teoria da "matemtica pura" e da "cincia pura da natureza" triunfa no fato de que nela no h necessidade nenhuma sequer de mencionar o trabalho corporal. Ela conhecimento em base puramente espiritual e a prpria possibilidade disso a tarefa explicativa de sua teoria. Para Kant, as vises empiristas de Hume eram um escndalo, porque nelas se abalava a qualidade apodctica de juzo dos conceitos puros da razo, e esta qualidade justifica a separao entre princpios a priori e princpios a posteriori do conhecimento, portanto o isolamento de uma parte de nosso ser no deduzvel da natureza corporal e sensvel, uma parte que ao mesmo tempo fundamenta a autonomia da pessoa espiritual com a possibilidade do conhecimento teortico da natureza. De acordo com esta autonomia, para assegurar a ordem social no so necessrios nem privilgios externos, nem restries artificiais da "maioridade", por outro lado. Quanto mais vem assegurado aos homens um "uso desimpedido de sua razo", tanto melhor se serve s necessidades sociais, ou seja moral, ao direito e ao progresso espiritual.9 o nico caminho fundamentado na natureza de nosso prprio poder espiritual, portanto caminho justo, aquele no qual sociedade pode caber a ordem conforme a ela. Que esta ordem traga em si a separao de classes perante as categorias trabalhadoras, isso se dissimulou a Kant tal como aos outros filsofos do iluminismo burgus. "A filosofia da revoluo francesa" - assim denominou Marx a kantiana: esta iluso no era o ltimo motivo para isso. Mas a separao entre as classes "formadas" e as "trabalhadoras", esse era o conceito sob o qual na Alemanha economicamente subdesenvolvida a sociedade burguesa tomou forma mais e mais, distino dos conceitos de capital e trabalho no ocidente, onde a economia poltica dominava o pensamento burgus. - Ora, onde est aqui a questo da "crtica da teoria do conhecimento" que visamos realizar?

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    As suposies da teoria kantiana do conhecimento so corretas na medida em que as cincias exatas so de fato tarefa do trabalho espiritual, que se realiza em completa independncia do trabalho manual nas fbricas. Isso foi mencionado acima. A separao entre trabalho da cabea e das mos - especificamente, sobretudo a propsito cincia da natureza e tecnologia - tem significao igualmente imprescindvel para a dominao burguesa de classe, quanto a propriedade privada dos meios de produo. Do desenvolvimento de certos dos atuais pases socialistas pode-se ler hoje a verdade, de que se pode desfazer a propriedade capitalista e no entanto a oposio de classes no se dissolve. Entre a oposio de classes de capital e trabalho, por um lado, e a separao de trabalho de cabea e mos, por outro lado, subsiste um nexo com razes profundas. Mas o nexo s causal e histrico. Conceitualmente eles so totalmente disparatados, ou seja entre eles no h (quer no todo, quer nos pormenores) nenhuma ligaes transversais, que permitam deduzir um do outro. Por isso se deve empreender a crtica da teoria do conhecimento em independncia completa sistemtica da crtica da economia poltica.

    A questo inicial poderia naturalmente ser formulada de forma mais simples: como possvel a socializao atravs da troca de mercadorias? O uso da palavra "sntese" oferece porm trs vantagens. Primeiro, pode-se falar facilmente de funes socialmente sintticas da troca mercantil. Segundo, a expresso "sociedade sinttica" coloca a produo de mercadorias em contraposio ordem natural de comunidades originais comunistas ou, de qualquer modo, primitivas de modo correspondente - assim como se fala em borracha sinttica em comparao com o caucho como produto natural. De fato, na objetividade-valor das mercadorias (da qual depende o efeito socializador da troca) no entra "nenhum tomo de matria natural". A socializao, aqui, puro feito humano, separado da relao material do homem com a natureza, e h boa base para suspeitar, que aqui est afinal escondida tambm a condio transcendental histrica da possibilidade de toda a atual produo sinttica. Eu uso, portanto, a expresso "sociedade sinttica" em um sentido diferente e com outra abrangncia conceptual que a expresso "sntese social". A primeira refere-se ao a sociedades mercantis, a ltima se emprega como condio comum do modo de existncia humano, sem restrio histrica. Neste ltimo sentido, a expresso consegue seu terceira significao, ou seja a de um aguilho polmico de meu questionamento contra a hipostatizao kantiana de uma sntese a priori da espontaneidade do esprito, paga portanto com a mesma moeda o idealismo transcendental.

    Nenhum dos trs sentidos da sntese indispensvel para os fins desta pesquisa. A derivao da razo pura da abstrao da troca pode-se expor tambm sem todos os emprstimos anti-idealistas. Mas a referncia polmica oferece a vantagem que com isso o caracter essencialmente crtico do mtodo marxiano mantm seu tom devido. E isso perante a atual dogmatizao do marxismo fundada em autoridade no vantagem desprezvel. S pela revitalizao de sua essncia crtica o marxismo pode ser salvo do entorpecimento, no qual dele se abusa sob sinal trocado para legitimar relaes de dominao inconfessadas.

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    Por trs de nossa oposio crtico-polmica a Kant est uma concordncia como medida de comparao. Estamos de acordo com Kant, que os princpios bsicos de conhecimento das cincias naturais quantitativas no se podem deduzir do poder fsico e fisiolgico (alias manual) do indivduo. As cincias exactas naturais pertencem aos recursos de uma produo, que abandonou os limites individuais da produo isolada de observncia precapitalista. A composio dualstica do conhecimento em Kant (de princpios a posteriori e princpios a priori) corresponde contribuio dos sentidos individuais, que sempre alcanam somente to longe quanto um par de olhos, de ouvidos, etc., e a contribuio de contedo imediatamente universal, que prestam os conceitos ligados matemtica. Na praxis do mtodo experimental a contribuio da funo individual de significao "leitura" dos dados reduzida a instrumentos de medida cientificamente construdos. A evidncia cientfica tem certeza s para a pessoa que l na hora, para as outras no tem seno credibilidade. Quando no for eliminavel tout court, ela reduzida a um mnimo, e esse mnimo o que fica do trabalhador manual no experimento, pois mesmo sua pessoa constitui o fator "subjectivo", a cujo desligamento se desliga a objetividade cientfica. Necessidade lgica mora somente na hiptese formulada matematicamente e nas consequncias de seu mago. Esta dualidade das fontes de conhecimento vale para ns como fato indiscutvel. O que est em questo a origem histrica, espao-temporal do poder lgico das hipteses, mais precisamente a origem dos elementos formais sobre os quais tal poder se funda. Mas nem Kant nem qualquer outro pensador burgus pode levar at o resultado essa questo da origem, nem sequer mant-la como questo. Nas primeiras linhas da Introduo segunda edio da Crtica a questo colocada, mas a seguir esgota-se. Kant concentra as formas conceituais incertas em um princpio ltimo bsico, da "unidade originalmente-sinttica da appercepo", mas mesmo para este princpio no tem ele nenhuma explicao outra, seno que ele existe em fora de sua prpria "espontaneidade transcendental". A explicao dispersa-se no fetichismo daquilo que se devia explicar. A partir da, vale insistir na afirmao de que simplesmente no pode haver uma explicao gentica, ou seja espao-temporal, da origem da "pura potncia da razo". A questo selada por um dos tabus mais santificados da tradio filosfica de pensamento. O escrnio de Nietzsche - de que Kant pergunta "como so possveis juzos sintticos a priori" e responde, "por uma capacidade" - perfeitamente fundamentado. S que Nietsche mesmo no sabe nada melhor. O tabu significa que a separao existente entre trabalho da cabea e das mos no possui nenhum fundamento espao-temporal, e sim de acordo com sua natureza atemporal, de maneira que tambm a ordem burguesa vai manter sua justeza normativa at o fim dos tempos.

    Ora, em contraste com a questo kantiana, coloquemos a nossa: Como possvel a socializao atravs da troca de mercadorias? Esta questo situa-se fora de todo o crculo conceptual da teoria do conhecimento e no est portanto de forma nenhuma j implicada em qualquer pressuposto terico-cognitivo corrente. Se no tivssemos a ver com o paralelismo com a formulao kantiana, poderamos igualmente escolher a seguinte formulao: De onde se gerou a abstrao do dinheiro? Ambas as colocaes da questo mantm-se no campo espao-temporal do pensamento histrico materialista

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    e so igualmente dirigidas a abstraes formais, que no campo econmico so homogneas com aquelas dos "puros" princpios do conhecimento. Parece excludo que nenhuma pura ligao entre ambas deveria ser descoberta, se formos adiante com base na primeira.

    b. Solipsismo prtico

    primeira vista no nada evidente como a troca de mercadorias deva possibilitar a sntese social entre indivduos, que possuem as mercadorias em propriedade privada, portanto separada. Pois a troca de mercadorias com absoluta preciso aquela relao entre possuidores de mercadorias, que se regula totalmente segundo princpios da propriedade privada - e nenhum outro. "Coisas so em e por si externas aos homens e portanto alienveis. Para que esta alienao seja recproca, os homens precisam s encontrar-se implicitamente como possuidores privados daquelas coisas alienveis e mesmo por isso como pessoas reciprocamente independentes. Tal relao de recproca estranheza no existe porm para os membros de uma comunidade natural..."10 Ela existe sobre a base da produo de mercadorias. Sobre seu terreno todo uso dar mercadorias - quer para consumo quer para produo - procede somente no campo privado dos possuidores de mercadorias. O processo da socializao, ao contrrio, considerado formalmente por si, acontece s na troca das mercadorias por parte de seus possuidores, portanto em tratativas que decorrem sem mesclar-se com o uso das mercadorias e em separao temporal precisa dele. Portanto o formalismo da abstrao das mercadorias e da sntese social, qual ele serve, deve-se encontrar dentro da relao de troca no espao assim precisamente medido.

    Correspondentemente a sua ancoragem na propriedade privada, como forma de relacionamento de acordo com as regras da propriedade privada, a troca de mercadoria est sujeita em todo e qualquer caso individual ao princpio da oposio privada11 de ambos os campos de propriedade. Meu - portanto no teu; teu - portanto no meu: o princpio, que domina a lgica da relao. Esse princpio abarca qualquer particularidade na medida em que ela ganhe relevncia para a transao. Ele opera tambm a relao de cada contraente aos objetos envolvidos na troca. Que seu interesse nos mesmos seja seu interesse e no dos outros, sua representao tambm seja a sua, que as necessidades, sensaes, pensamentos, que esto em jogo, sejam polarizados sobre aquilo a que se referem, isso o que conta, enquanto os contedos tornam-se realidades monadolgicas ou solipssticamente incomparveis para os parceiros da troca uns perante os outros. O solipsismo, de acordo com o qual entre todos cada um por si o nico (solus ipse) que existe e consequentemente mais adiante todos os dados, enquanto possurem objetividade, so seus dados privados, 12 - o solipsismo a descrio exacta do ponto de vista sobre o qual os interessados esto uns perante os outros na troca. Mais precisamente, sua relao recproca objectiva na troca solipsismo prtico, no importa o que pensem eles mesmos sobre si e seu comportamento.13 Expressado na conceitualizao dos economistas, os possuidores de mercadorias encontram-se reciprocamente na troca exatamente como se cada um fosse

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    um Robinson em sua ilha privada de propriedade, ou seja de tal forma que as mudanas no estado da propriedade, das quais eles tratam, deixem inalterados seus campos de propriedade. A isso providencia a reciprocidade, que manda pesar cada mudana por uma outra. A reciprocidade no algo que compense pela excluso de uma propriedade atravs de princpio contraposto, e sim ela - ao contrrio - universaliza-o. Como os contraentes se reconhecem reciprocamente como possuidores privados, aquela excluso da propriedade, que ocorre em uma direco, correspondida por uma igual na outra direco. O fundamento para a reciprocidade mesmo a excluso privada de propriedade em vigor entre os proprietrios, a qual permanece intocada pela transao como "troca". O que a aquiescncia troca traz expresso o reconhecimento que a mudana de propriedade negociada deixa inalterados os campos de propriedade que se encontram um perante o outro. Com isso, a troca de mercadorias articulada como uma forma de relacionamento social entre campos no misturveis e separados de propriedade.

    Expressa laconicamente o quanto possvel - esta uma descrio da recproca relao de proprietrios de mercadorias na troca, descrio que temos como exacta na medida em que ela se dispe a qualquer aprofundamento na casustica quase infinita desse campo, que se poderia empreender, mas da qual poupamos aqui o leitor. Em outras palavras, esta descrio d o estado objectivo do relacionamento que ocorre na troca entre possuidores de mercadorias. Que seja necessria uma anlise mais circunstanciada, para trazer luz este estado de coisas, pois ele nos circunda diariamente, isso se explica pela mesma lgica pela qual o cheiro do ar que respiramos se tornou imperceptvel a ns. A circulao costumeira das mercadorias entrou tanto na rotina de seus trilhos institucionais e nos casos onde ela se prende em duras lutas de interesses to pouco o lugar para filosofar, que nesse lugar impossvel uma conscincia da estrutura que serve de base. S no afastamento do mercado sua estrutura chega reflexo abstrata, ma a sistematizao que ela ento experimenta torna-se o fundamento, que torna incognoscvel sua origem histrica.

    c. A forma na qual as mercadorias se podem trocar

    A elaborao precisa das condies da excluso recproca da propriedade e do solipsismo prtico (sob as quais se situa a relao de troca) necessria para colocar em base correcta a questo da possibilidade da socializao pela troca de mercadorias. O primeiro passo na anlise das mercadorias ou da troca apronta a dificuldade maior, porque a abstrao penetra mais fundo que se possa suspeitar e estar preparados para aceitar primeira vista. Deve-se colocar a questo sobre como as mercadorias sejam de todo permutveis entre os mundos solipssticos que negociam ao redor delas, segundo qual propriedade ou forma, e como portanto a prpria troca seja possvel. Onde se encontram os Robinsons uns aos outros, baseados em suas ilhas de propriedade, privadas e reciprocamente privativas? qual o ponto de comunicao de seus negcios entre elas?

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    Evidentemente este o ponto que faz com que uma pretenso de ambas as partes propriedade de uma e a mesma coisa leve contradio privada. O princpio: meu - portanto no teu; teu - portanto no meu, pressupe uma unidade perante a qual o "meu" e o "teu" tornam-se primeiramente reciprocamente privativos. Trata-se de saber como definir correctamente essa unidade, pois ela evidentemente a possibilidade de troca das mercadorias e a primeira condio fundamental de uma sntese social no caminho da excluso privativa da propriedade entre possuidores de mercadorias.

    A unidade precria das mercadorias no evidentemente sua indivisibilidade material. Que se esteja trocando uma tonelada ou cinquenta quilos de ferro, no faz diferena nenhuma para a essncia da coisa. Poder-se-ia reduzir o material at seus tomos indivisveis, e o problema se colocaria da mesma maneira para cada um deles, se se chegasse ao ponto que eles estivessem sendo trocados. Nem se pode tratar da unicidade e insubstituibilidade das mercadorias, pois em geral as mercadorias so artigos de massa, contando que um exemplar possa substituir o outro. Mas qualquer que possa ser o exemplar individual, cada vez deve ser uma coisa que esteja pronta para a troca, e essa tem ento aquela unidade tal que, ao mesmo tempo, no possa pertencer a um proprietrio e ao outro, e sim somente a um ou ao outro, em propriedade separada. Supondo agora que esta unidade "descascvel" pertena ao trigo, vamos descobrir que no h absolutamente nenhuma unidade da coisa-mercadoria em sua natureza corporal, em sua matria ou natureza. A unidade que faz com que uma determinada mercadoria no possa pertencer simultaneamente a dois possuidores como propriedade separada, mas que entre eles ela deve ser "trocada" contra uma outra mercadoria - essa unidade na verdade a unidade de seu ser, ou seja o dado de fato que cada mercadoria tem um ser indivisvel e nico. A unicidade do ser de cada coisa a razo pela qual essa coisa no pode pertencer separadamente ao mesmo tempo a diversos proprietrios privados, porque a apropriao privada tem o sentido que o interessado faz da coisa parte de seu prprio ser.14 Chegamos com isso ao resultado de que a forma de trocabilidade das mercadorias a unicidade de sua existncia.

    Podemos lidar com a coisa tambm de outro aspecto. Dissemos acima que a troca como forma de relacionamento daqueles que trocam necessita de um solipsismo prtico recproco. Mas enquanto cada qual coloca seu ser com todo o mundo de seus dados privados (ou percepes) em confronto com qualquer outro e o mundo dele, cada vez que eles se encontram na troca de suas mercadorias, o mundo contudo, mesmo em sua realidade, somente um entre eles. A que se reduz porm essa unidade do mundo em sua realidade entre os mercantes? Tudo o que se pode perceber no mundo e nas coisas dividido monadologicamente entre eles como sua propriedade privada. O mundo portanto possui unidade entre eles somente prescindindo da natureza deles. E no somente as percepes das coisas so trocadas entre os possuidores, mas as coisas mesmas, enquanto as percepes delas continuam a ser individuais. Segundo o ser puro como tal, portanto, as mercadorias se movem entre os possessores, prescindindo de tudo aquilo que forma as percepes privadas dos possuidores. S em sua realidade o mundo um entre os possessores que dele participam, enquanto o modo da participao exerce

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    a negao subjectiva da unidade do mundo e obedece necessidade da troca s como a constrio externa das coisas objectivas. A troca mesma providencia sua prpria cegueira como relacionamento social sinttico. A troca ocorre s devido ao solipsismo prtico dos trocantes, que subtrai a socializao que eles praticam possibilidade de seu conhecimento. Mas o que que constitui a unidade do mundo em contraposio com o solipsismo dos trocantes? De novo, ela no se constitui da indivisibilidade material do mundo ou de seus componentes ou das coisas; nem tambm da unicidade e insubstituibilidade dos exemplares individuais, de acordo com seu ser.15 Muito mais, to s a unicidade do ser de cada parte o que torna o mundo uno, por longe que se queira esticar o reino do "Mundo". O resultado portanto o mesmo que antes: a forma de trocabilidade das mercadorias a unicidade do ser de cada uma; essa mesma unicidade do ser in abstrato, ou seja "independentemente" de tudo aquilo que pertence percepo das coisas mercadorias e desagua no solipsismo prtico dos trocantes uns com os outros.

    Falta perguntar o que que esta natureza da forma de trocabilidade das mercadorias confere socializao pela troca. Ela confere sntese social pela troca de mercadorias sua unidade. Se a circulao mercantil alcana o grau de desenvolvimento, no qual ela se torna o nexus rerum decisivo, a "duplicao da mercadoria em dinheiro e mercadoria" deve ter-se realizado; possivelmente tambm, pelo contrrio, esta duplicao (que na histria ocorreu pela primeira vez em torno do ano 700 a.C. na periferia inica do mundo grego) leva a que a troca de mercadorias bem cedo se torne um meio determinante de socializao. O dinheiro ento o portador material da forma de trocabilidade das mercadorias, atua como forma equivalente geral das mesmas e forma de trocabilidade. A essncia da mesma como unicidade do ser das mercadorias opera o efeito de que o dinheiro, de acordo com sua essncia funcional, uno: em outras palavras, s pode haver um dinheiro.16 Naturalmente existem um grande nmero de divisas; mas enquanto cada uma delas exerce de fato as funes de dinheiro em seu mbito de circulao vale entre elas o postulado, que elas devem poder-se calcular reciprocamente a um curso de cmbio claro, portanto devem comunicar funcionalmente com um e s um sistema monetrio universal. A isso corresponde a unidade funcional de todas as sociedades mercantis comunicantes. Um curso das trocas, que se formou em diversos lugares do mundo em isolamento geogrfico, torna-se necessariamente com a constituio de contacto desimpedido, mais cedo ou mais tarde, um nexo de interdependncia, cego mas indivisvel, entre os valores das mercadorias em seu conjunto. Esta unidade essencial intercomunicativa de todas as divisas em um sistema monetrio, bem como a unidade da sntese social pela troca de mercadorias, que por isso mediada, formalmente e geneticamente (portanto, digamos, formgenticamente) a mesma que a unidade de ser do mundo. A unidade abstratificada do mundo circula como dinheiro entre os homens e possibilita a eles uma conexo inconsciente a uma sociedade.

    Para termos clareza da anlise feita at aqui, seja repetido: a forma de trocabilidade prpria das mercadorias; isso vale independentemente de sua condio material, ou seja

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    prescindindo daquilo que entra na percepo e no prtico solipsismo dos indivduos trocantes. A forma abstrao da trocabilidade portanto produto da atividade interhumana desse solipsismo, respectivamente do carter privado da propriedade das mercadorias. A abstrao surge da relao de circulao entre os homens; ela no surge no mbito nico, nem no mbito da percepo de um indivduo por si. Ela surge de uma maneira, que se subtrai complemente ao empirismo, o qual se refora com base no ponto de vista da percepo do indivduo. Pois no so os indivduos que operam sua sntese social: seus negcios o fazem. Os negcios operam uma socializao, da qual os negociadores nada sabem no instante em que ela acontece. Apesar disso, a troca de mercadorias um relacionamento, no qual os atores mantm seus olhos bem abertos, um relacionamento no qual a natureza fica parada, portanto um relacionamento em que absolutamente nada no humano se imiscui, um relacionamento, enfim, que se reduz a um puro formalismo, um formalismo de "pura" abstrao, mas de realidade espao - temporal. Esse formalismo assume feio especial concreta no dinheiro. O dinheiro coisa abstrata, um paradoxo em si, e tal coisa exerce sua ao social sinttica sem nenhum entendimento humano daquilo que ele . Apesar disso, o sentido do dinheiro no acessvel a nenhum animal, mas somente a homens. Temos agora que descrever ulteriormente este formalismo.17

    d. Quantidade abstrata

    De fato, na gerao deste formalismo jogam dois processos de abstrao um dentro do outro. O primeiro a abstrao, que est na base de toda transao mercantil na forma de seu isolamento e separao temporal dos atos de uso. O segundo se joga dentro da transao na feio da segregao da forma de trocabilidade das mercadorias e efeito do solipsismo privativo recproco dos indivduos que trocam. Esta segunda abstrao prende-se execuo do ato da troca. A separao da forma de trocabilidade com isso imediatamente conectada equao da troca. A equao da troca, como nivelamento das correspondncias de mercadorias pelo processo de troca, um postulado imanente troca em sua propriedade de forma de relacionamento social entre os homens. No subjectivamente que valem como equivalentes as colocaes de mercadorias trocadas para os possuidores de mercadorias que efectuam trocas, e sim objectivamente entre eles. A equao encontra-se implcita no reconhecimento recproco da transao como "troca", ou seja como uma mudana de posse, a qual deixa imutada a situao de propriedade de cada um. Eu falo de situao de propriedade em vez de direito de propriedade, para com isso deixar claro, que a forma jurdica da relao no traz nada para sua explicao. A formulao jurdica supe a equao da troca, no ao contrrio.

    Repito: a equao da troca postulado relacional da troca como movimento social. O postulado de origem social e tem valor puramente objectivo, social. As mercadorias no so iguais, a troca pe-nas iguais. Esta colocao executa uma abstrao ulterior, a abstrao das quantidades de mercadorias que esto disposio para a troca em quantidades abstratas exclusivamente como tais. As mercadorias so trazidas ao mercado em quantidades determinadas de acordo com o uso, conforme seu peso ou

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    nmero de peas ou unidades quantitativas, em volumes, grandezas, etc. A equao da troca apaga estas determinaes quantitativas que pertencem ao valor de uso e no so equiparveis entre umas s outras. Ela substitui estas quantidades mencionadas por uma no mencionada, que nada mais seno pura quantidade, independentemente de qualquer tipo de qualidade. Esta quantidade em si ou em abstrato de natureza relacional tal como a equao da troca, da qual ela surge, e prende-se tambm tal como a equao da troca ao ato da execuo da troca. Se a execuo da troca no chega a realizar-se, pelo fato de que entre as duas colocaes domina um "demais ou maior" (>) ou um "de menos ou menor" (

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    das mercadorias nenhuma relao inerente ao trabalho. Aqui no nos encontramos absolutamente em discrepncia de Marx. A forma valor nega e encobre a relao quantitativa do valor com o trabalho atravs da "aparncia objectiva" do valor das mercadorias. "No est portanto escrito na testa do valor o que ele ." A abstrao da troca a trama da qual se tece a aparncia, pois ela s surge do fato de que produo e consumo no tm lugar na troca. O trabalho onde se produzem as mercadorias, bem como os atos nos quais elas so usadas, so as mudanas fundamentais fsicas, das quais a troca de mercadorias deve ser isolada para poder ter lugar. A troca de mercadorias em si no seno um relacionamento recproco de apropriao. O fato decisivo presente na produo de mercadorias que sobre sua base a socializao no se enraza no caracter social do processo de trabalho nem na mais ou menos abrangente colectividade do modo de produo (algo assim como no comunismo primitivo), mas em um sistema da apropriao formalizado e generalizado como circulao da troca. Em sua base est a ciso da produo originariamente colectiva em um sistema de produo individual com diviso do trabalho. "Somente produtos de trabalhos privados autnomos, independentes uns dos outros, podem enfrentar-se reciprocamente como mercadorias.21 Naturalmente o mecanismo da apropriao privada nas formas da troca deve realizar, no resultado final, uma interrelao dos trabalhos privados independentes mais ou menos conforme com as necessidades sociais, a fim de que a sociedade de produo de mercadorias seja vivel. "E a forma, pela qual se dissemina esta diviso proporcional do trabalho em uma sociedade, na qual a interdependncia do trabalho social se faz valer como troca privada dos produtos individuais do trabalho, essa forma mesmo o valor de troca desses produtos."22 Todos os conceitos dominantes nas sociedades produtoras de mercadorias, conceitos orientadores do operar dos indivduos, surgem do mecanismo da troca e da aparncia objectiva, pela qual essa sociedade inconsciente se torna de todo possvel. Assim como este mecanismo no consta seno dos atos recprocos de apropriao na troca dos produtos do trabalho como valores, assim tambm esses conceitos so cunhados pelas relaes de apropriao, que lhes emprestam significao social. Sua relao com a substncia social real, ou seja o trabalho, pelo qual primeiro algo que se possa trocar vem a existir, no geral somente uma relao indireta. Somente a crtica gentica da forma desses conceitos encobridores pode trazer vista sua relao com o trabalho. Devido reciprocidade como troca, a apropriao assume a forma do mecanismo autoregulador, que a capacita a tornar-se portadora da sntese social; isso em contraposio apropriao unilateral, tributria, nas "relaes diretas de domnio e servido", as quais predominam nas civilizaes orientais antigas e no feudalismo.23 Por outro lado, a troca no produz seus objetos, mas pressupe a produo e o trabalho. No se pode em geral trocar mais do que aquilo que se produz. A soma de todos os preos (preos de apropriao) deve ser essencialmente igual a todos os valores (valores trabalho), e tambm dentro desta equao global a relao entre apropriao e produo pertence necessidade econmica causal e automtica. Mas a forma valor das mercadorias, ou seja a abstrao das mercadorias, no est em nenhuma conexo com o trabalho necessrio para a produo das mercadorias. No conexo, e sim separao caracteriza esta relao. Em outras palavras, a abstrao das mercadorias abstrao da troca, no abstrao do trabalho. A abstrao do trabalho, que se encontra na produo

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    capitalista das mercadorias, tem - como veremos mais adiante, na parte 3 deste escrito - tem seu lugar no processo de produo, no no processo de troca.

    A economia das robinsonadas da teoria subjectiva do valor no tem olhos para o postulado da equivalncia. Nesta disciplina terica o aspecto social da troca, sua caracterstica como forma social de relacionamento e portador da sntese social, conceitualmente extinto. Que essa extino, falando sistematicamente, seja errnea, aparece do fato que a teoria subjectiva do valor no pode dar conta nenhuma da quantificao dos valores, aos quais ela se refere, ou seja a determinao de valores numricos para as mercadorias, respectivamente os "bens"; a quantificao nessa teoria alcana algo s pelo caminho da captao lgica. Mas a consequncia metodolgica a criao da assim chamada "economia pura", que depois por sua vez deu azo criao metodolgica de uma cincia da sociedade separada da economia. Esta separao daqueles que se pertencem reciprocamente, que aproximadamente to velha quanto o capitalismo monopolista, leva a que ambas as disciplinas - a "economia pura" e a sociologia emprica - perdem o contacto com o processo histrico; pois o processo histrico dominado pela pertena recproca de economia e socializao. Isso no exclui anlises penetrantes de fenmenos individuais. Mas sobre o terreno dessa separao no se podem alcanar as categorias sem as quais a conexo dos fenmenos individuais no processo histrico (respectivamente com o processo histrico) no se torna compreensvel. Sobre aquilo que acontece propriamente com a sociedade desde o comeo do capitalismo monopolista, no se pode esperar esclarecimento nem da "economia pura" nem da sociologia emprica; e isso no s por causa da falta de interesse por um tal esclarecimento por parte da maioria dos economistas e socilogos, mas mesmo com base na impossibilidade metodolgica de sua disciplina.

    O papel do postulado da equivalncia para a sntese social pela troca de mercadorias to evidente, que no precisa ser sublinhado. A equao da troca serve realidade casual, puramente contingente do acontecer nas conexes da lgica da troca. As mercadorias so jogadas no mercado, arrancadas de suas conexes de origem, arrancadas, por exemplo, das ordens de comunidades naturais atravs de comrcio pirata. No mercado elas encontram outras mercadorias de presena semelhantemente casual. Tal casualidade no precisa predominar, mas ela pode predominar. Se e at que ponto ela predomina, depende ao fim das contas do grau de desenvolvimento das foras produtivas materiais. Pressupondo que seus possuidores tm livre domnio sobre as mercadorias, e que reconhecem tal domnio reciprocamente, a forma homologa da equao da troca oferece, com sua completa abstrao, os termos de uma "lngua das mercadorias", como diz Marx, a qual com a devida ampliao do mercado possibilita uma conexo existencial de homens como de puros possessores de mercadorias, mesmo que todas as ordens distintas entre os homens sejam dilaceradas - e pela ampliao do mercado de fato devem ser dilaceradas. A rede que produz as formas da abstrao da troca (ou seja a lgica da "forma valor") no mercado das mercadorias, possui a necessria funcionalidade,24 para forar a conexo formal interdependente do mercado sobre a base da existncia das mercadorias, portanto da produo e consumo de

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    mercadorias. Este ordenamento e seu carter de necessidade econmica no tm, em ltima instncia, nada mais solto como raiz seno a unidade de ser das coisas, que pelas consequncias da trocabilidade das mercadorias fora os homens, a encaixar-se na unidade do mesm