SOCIALISMO - Um Projecto de Sociedade

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O presente texto visa contribuir:- Para o entendimento do momento actual, no longo percurso de evolução das sociedades humanas;- Para o esclarecimento do que poderá ser, na prática, o Socialismo, sobre o qual têm existido as mais variadas concepções teóricas e exercícios de aplicação;- Para lançar pistas sobre as vias de superação da actual crise sistémica do capitalismo, a qual parece configurar o fim de um sistema e o início de uma nova era para a humanidade.

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SOCIALISMO Um Projecto de Sociedade

Miguel Judas Maro de 2011

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ndicePropsito 5

QUESTO PRVIAPorqu Socialismo? 7

PARTE I BREVE ENQUADRAMENTO HISTRICOCAPTULO 1 - Da fase dispersiva fuso das sociedades humanas a) A Comunidade Primitiva b) Revoluo Agrcola, Diviso das Sociedades em Classes Sociais e Sistema econmico Tributrio As Religies como instrumento ideolgico Estratificao Social e Poder Poltico c) Economia Mercantil d) Revolues Burguesas. Revoluo Industrial. Integrao Econmica Mundial As revolues burguesas A emergncia e desenvolvimento do Capitalismo As lutas dos trabalhadores e dos povos Reestruturao Capitalista Revoluo Tecnolgica A Terceira Onda de Integrao Mundial e o Imprio Norteamericano Derrota Estratgica do Proletariado Do Imprio ao Mundo Multipolar e) Capitalismo: o fim da sua Misso histrica f) Situao Geral e Perspectivas CAPTULO 2 - As Fontes de Legitimao do Poder e o Socialismo 10 10 11 11 12 13 14 14 15 17 18 19 20 24 26 26 27 31

PARTE II ALGUMAS QUESTES POLMICASCAPTULO 3 - Porqu no Anti-Capitalista? CAPTULO 4 - Porqu no Anti-Globalizao? CAPTULO 5 - O Proletariado continua a ser classe revolucionria que promover a transio para o Socialismo? Unidade e Fragmentao do Proletariado Povo e Revolues Populares CAPTULO 6 - A revoluo Socialista poder ser realizada num s pas? CAPTULO 7 - Ditadura da Burguesia e Ditadura do Proletariado CAPTULO 8 - Socialismo Poltico e Socialismo Econmico Confuses CAPTULO 9 A Questo do Estado e o Neo-Liberalismo 36 41 44 45 50 53 56 62 67 71

PARTE III SOCIALISMO - UM PROJECTO DE SOCIEDADECAPTULO 10 - Socialismo: Dimenso Poltica 79

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a) Democracia Integral b) Alguns passos necessrios para a implantao da uma Democracia Integral Na esfera poltica Democracia radical Na esfera econmica Subordinao efectiva do Poder Econmico ao Poder Poltico No domnio do Estado Uma nova Institucionalidade No domnio da salvaguarda da independncia e da Soberania Mobilizao e Alianas Na esfera internacional e mundial por uma ordem mundial democrtica Na esfera da Cultura Desprivatizao e Acesso geral CAPTULO 11 - Socialismo: Dimenso Econmica a) Mxima Produtividade do Trabalho Social Foras Produtivas a) Quanto ao Homem, enquanto fora produtiva principal b) Quanto aos Meios de Produo Materiais e Financeiros Organizao e Gesto da produo No Capitalismo No Socialismo b) Optimizao da Distribuio dos Resultados da Produo Material e dos Servios O Consumo Socialista: ptimo e Responsvel CAPTULO 12 - Socialismo: Dimenso Social - Liberdade,

79 83 83 86 92 93 94 94 96 96 98 98 104 104 106 107 110 119 122 124 125 128 128 130 133 135 138 140 143 143 144 146 150 152 153 155 156 156 158 159 160

Responsabilidade, Comunidade e Felicidade

a) A dimenso social no Capitalismo b) Algumas questes sociais no Socialismo O Indivduo e a Comunidade A Famlia Socialista Complexos de Economia Familiar As Comunidades Socialistas A Sociedade Socialista A Sociedade Humana Global CAPTULO 13 - Socialismo: Dimenso Cultural - Desalienao

(ou Reintegrao)

a) A Cultura e os seus domnios b) Cultura e Ideologia c) Duas Culturas em confronto aberto d) Organizao da luta na esfera cultural A nova Cultura Socialista, as mes e a Famlia A nova Escola Socialista As Foras Armadas e os servios de Proteco Civil como Escolas Socialistas As Comunidades Socio-Territoriais e a Cultura As Comunidades e Grupos por Motivos de Interesse A nova Cultura e as Comunidades Socio-Produtivas A Cultura e as Artes Comunicao Social, o Conhecimento, a Informao e a Cultura

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CAPTULO

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a) O Capitalismo, o Territrio e o Ambiente Natural b) O Socialismo, o Territrio e o Ambiente Natural O Ordenamento do Territrio e a Questo das Cidades CAPTULO 15 - Socialismo: a reintegrao de todas

Socialismo: Dimenso Territorial e Ambiental /Natural-Harmonia com a Natureza

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dimenses

as

Conquista e Consolidao do Poder Poltico Democracia Radical A Economia ao servio da sociedade Democracia Integral Reestruturao geral da esfera produtiva e do consumo, Revoluo Social e Cultural Sociedade Cultural e Integrada no Ambiente Natural CAPTULO 16 O Partido do Povo e da Revoluo Socialista a) O Partido da Burguesia b) O Partido do Povo e da Revoluo Socialista O Micro e o Macro A Luta pelas Verdades As Tarefas da Revoluo e os Modos de Organizao Partidria c) Por Um Novo Partido do Povo e da Revoluo Socialista

CONCLUSOSocialismo: a unificao do pensamento humanista e a nica e urgente alternativa EplogoCRTICAS, SUGESTES E OUTRAS OBSERVAES 205

209 210

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A crise do capitalismo histrico frequentemente descrita como uma transio do capitalismo para o socialismo. Concordo com a frmula, mas ela no nos diz muita coisa. No sabemos ainda como ir funcionar uma ordem socialista, que seja capaz de reduzir radicalmente as discrepncias de bem-estar material e de poder real entre todas as pessoas. Estados ou movimentos que se autoproclamam socialistas oferecem pouca orientao para o futuro. So fenmenos do presente, isto , do sistemamundo do capitalismo histrico, e devem ser avaliados dentro deste enquadramento. Immanuel Wallerstein O Capitalismo Histrico

PropsitoO presente texto visa contribuir: - Para o entendimento do momento actual, no longo percurso de evoluo das sociedades humanas; - Para o esclarecimento do que poder ser, na prtica, o Socialismo, sobre o qual tm existido as mais variadas concepes tericas e exerccios de aplicao; - Para lanar pistas sobre as vias de superao da actual crise sistmica do capitalismo, a qual parece configurar o fim de um sistema e o incio de uma nova era para a humanidade.

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QUESTO PRVIA

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Porqu Socialismo?No mundo de hoje quase no h tempo para a filosofia. Tudo assume um carcter prtico e imediato. Vivemos num tempo dos post-it, das marcas, das imagens, da realidade virtual. As tcnicas publicitrias e de condicionamento encontram-se num elevado patamar de desenvolvimento. A revoluo simblica ocorrida nas ltimas dcadas desconstruiu os conceitos e colou em cada um deles uma marca, uma imagem que provoca nos indivduos reaces emotivas de adeso ou rejeio. A atomizao e estandardizao dos cidados segundo um modelo simplificado coloca, cada vez mais, problemas de identidade remetendoos para um processo de retribalizao segundo uma marca, um produto, que pode ser um clube desportivo ou de fs, uma moda de vesturio, um partido poltico, um estilo de vida ou uma rede social na internet. Os Conceitos, que ainda no h muitos anos estavam carregados de significado foram sendo esvaziados e substitudos por mensagens cada vez mais telegrficas: o grande decisor s pretende ler, no mximo, uma pgina A4 com um quadro de nmeros; nos telemveis escreve-se lol. Neste contexto em que a poltica se tornou hegemonicamente uma variedade de espectculo e as palavras de ordem foram substitudas por slogans publicitrios, no ser de admirar que a escolha das palavras tenha de ser muito cuidadosa, tanto mais que algumas delas como socialismo, comunismo, proletariado, revoluo, etc., por via da propaganda burguesa, ficaram agarradas a emoes negativas, a tudo o que se possa considerar ineficincia ou atropelos aos direitos humanos. Foi por esta razo que, especialmente depois da derrota estratgica do Socialismo, muitos partidos polticos mudaram de nome e de linguagem, preferindo adoptar palavras mais soft, tais como democracia avanada, mudana, activistas, alternativa contra-hegemnica, etc., at aos limites difusos do aceitvel pelos consumidores, tais como esquerda e participao ... Neste jogo de mscaras, as guerras imperialistas de conquista, ocupao e roubo de recursos naturais transformaram-se em operaes antiterroristas, de reposio da democracia ou mesmo humanitrias; at o nazismo mudou de nome para tea party!! Colocando-se alinhado com a tendncia geral, o autor poderia ter escolhido outro nome para o territrio que deseja percorrer: em vez de

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Socialismo, que parece hoje ser um conceito pouco preciso e de carga publicitria negativa, poderia ter optado por Sociedade Alternativa ou, ainda mais atraente e precisa, por Sociedade do Viver Bem. Contudo, o tempo histrico no se confunde com o tempo de umas geraes e, passado o perodo efmero e alienante dos post-it e das marcas, a Humanidade, confrontada com srios e urgentes problemas, ser impelida a resgatar de novo os Conceitos que configuram eventuais solues e as discusses mais ou menos filosficas sobre os respectivos contedos. O conceito de Socialismo, apesar de todas as suas ambiguidades e imprecises, ainda hoje objecto de acesa discusso entre todo o tipo de revolucionrios e progressistas, e de ter sido diabolizado pela grande burguesia dominante e os seus meios de propaganda ideolgica, continua a constituir o referencial ideolgico fundamental dos movimentos libertadores e progressivos da actualidade. Por essa razo, correndo embora o risco de alguns poderem supor que aqui se ir falar de algo que falhou e que, por isso, pertence ao passado, este texto procura evidenciar que o Socialismo diz respeito, essencialmente, ao Futuro.

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PARTE I BREVE ENQUADRAMENTO HISTRICO

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CAPTULO 1 Da fase dispersiva fuso das sociedades humanasAs sociedades capitalistas actuais so o resultado de um longo processo histrico durante o qual a Humanidade conseguiu superar a sua extrema dependncia das foras naturais e alcanar uma grande expanso demogrfica.

a) A Comunidade Primitiva:H cerca de 80.000 anos, um grupo de umas poucas centenas de humanos como ns, talvez uma nica tribo, atravessaram, provavelmente pelo Estreito de Grief, de frica para o actual Imen. Durante 70.000 anos, esses humanos e suas descendncias dispersaram-se e, em busca de recursos naturais de sobrevivncia, ocuparam quase todos os nichos ecolgicos do planeta onde a vida humana se pudesse desenvolver. A sua organizao social manteve-se quase inalterada sob a forma da comunidade primitiva, caracterizada pela cooperao e por uma extrema interdependncia entre todos os seus membros. A existncia individual s era vivel se totalmente integrada no organismo comunitrio primordial ligado por laos de parentesco: o bando ou cl ou, por desdobramento deste, a tribo. Se bem que dotados de lideranas sociais, essas comunidades eram governadas pelo mtodo do Consenso Comunitrio; o seu Projecto Social, isto , a sua Ideologia, coincidia com uma existncia em harmonia com as dinmicas da Me-Natureza ou Me-Terra. O seu modo de produo era a caa e recoleco e a diviso do trabalho era muito incipiente, resultante essencialmente, das funes de maternidade da mulher. Durante a fase dispersiva da Humanidade, na medida em que havia novos territrios disponveis com recursos suficientes, as disputas por estes resolviam-se preferencialmente pelo deslocamento territorial dos grupos menos numerosos. Ocupado globalmente o territrio planetrio, iniciou-se um perodo de competio pela defesa ou alargamento dos nichos ecolgicos de que dependia a subsistncia de cada um dos organismos comunitrios. Como resultado, houve organismos que puderam crescer e outros que foram eliminados ou parcialmente integrados nos organismos vencedores.

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Mesmo depois da domesticao de animais, os assentamentos comunitrios no eram fixos, deslocando-se em conformidade com os ciclos naturais de maturao de recursos alimentares para os humanos e os seus animais. Ainda hoje existem muitos povos que continuam a praticar essa economia natural.

b) Revoluo Agrcola, Diviso das Sociedades em Classes Sociais e Sistema Econmico TributrioCom o surgimento da agricultura em diversos lugares do mundo, as comunidades sedentarizaram-se e desenvolveram tecnologias que elevaram extraordinariamente a produtividade do trabalho social. Essas condies permitiram a criao de excedentes alimentares que, para alm de um progressivo aumento demogrfico, conferiram s comunidades agrcolas outras significativas vantagens sobre as demais. O parcelamento das terras agricultveis pelos diversos grupos familiares e a correspondente diferenciao na apropriao dos excedentes veio a introduzir factores de diferenciao social dentro da comunidade, assim como novas formas de diviso do trabalho. Como resultado, as comunidades comearam a estratificar-se internamente. O poder gerado pela acumulao primria de excedentes incentivou o alargamento da base social de explorao, tendo levado incorporao, pacfica ou forada, de cada vez mais comunidades na produo agrcola e pecuria. Essa incorporao tomou formas diferenciadas, desde a escravizao de indivduos ao estabelecimento de laos de dependncia e de tributao de outras comunidades mais fracas. Iniciou-se assim um processo extensivo de domnio de territrios e de submisso de comunidades de modo a aumentar sucessivamente a base de recolha de tributos e, consequentemente, de acumulao. Foi nesse quadro que, ao longo de muitos sculos, praticamente at emergncia da burguesia, o sistema de produo tributrio, assente na explorao agrcola e nas suas actividades acessrias (artesanato e trocas), se desenvolveu extensivamente por todo o globo terrestre e deu origem, com avanos e recuos, a um longo processo de fuso de comunidades atravs da formao de unidades poltico-territoriais cada vez mais extensas, os domnios, estados e imprios.

As Religies como instrumento ideolgicoEssa fuso de povos, realizada normalmente de modo impositivo e tendo como motivao a mxima extenso da base de recolha de

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tributos, suportou-se ideologicamente nas religies, entretanto institucionalizadas a partir das antigas crenas sobrenaturais. Para alm de justificarem a transferncia da riqueza para a cleptocracia, as religies constituram elementos de identificao e de pacificao entre indivduos, comunidades e povos independentemente dos seus laos de parentesco, o que permitia a constituio de unidades populacionais progressivamente maiores, mais complexas e militarmente mais poderosas. Ao afirmarem uma origem divina do Poder, as religies justificaram a existncia de uma autoridade central e o seu carcter hereditrio, reforando desse modo a coeso das diferentes unidades polticoterritoriais.

Estratificao social e poder polticoToda a histria antiga e medieval, apesar da sua aparente complexidade relativa s mais diversas situaes verificadas em diferentes regies e ao longo do tempo quanto extenso territorial, recursos naturais, demografia e cultura, se resume progressiva constituio de unidades poltico-territoriais cada vez mais extensas sob o domnio de uma cleptocracia estratificada e hierarquizada. A cleptocracia era constituda pelos membros do poder poltico-militar e pelas classes a ele agregadas (religiosos e funcionrios), as quais no desenvolviam directamente quaisquer actividades produtivas; viviam do saque e dos tributos aplicados s classes e comunidades trabalhadoras, livres ou dependentes, e da explorao do trabalho escravo e servil. A riqueza acumulada e a escassez de cidados livres para as guerras de dominao levaram, frequentemente, adopo do mercenariato nas funes militares. Houve momentos em que, no seio de uma comunidade/sociedade dominante, vigorou o modelo poltico da repblica e a democracia representativa, como em Atenas e Roma; porm, o modelo dominante em todo o perodo foi a monarquia hereditria. Depois do Imprio Romano e em consequncia das invases brbaras, a generalidade da Europa mergulhou em mais de mil anos de obscurantismo religioso e numa extraordinria fragmentao poltica que correspondia aos interesses da estruturao social dos mais diversos cls, tribos e domnios dos invasores. Conforme Engels refere no Anti-Duhring,toda a ideia de igualdade foi varrida por sculos, levantando-se, pouco a pouco, uma hierarquia social e poltica to complicada como at ento no se conhecera; ergueu-se tambm, pela primeira vez na histria, um sistema de Estados predominantemente nacionais, que se influenciavam

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e se contrapunham uns aos outros. Foi desse modo que se preparou o terreno para, tempos mais tarde, (sob o impulso da burguesia), ser possvel falar-se da igualdade humana e dos direitos do homem.

Em consequncia, o prprio processo de criao de Estados nacionais centralizados, isto , de um aparelho do Estado com finanas e um exrcito unificados, foi um processo muito lento, s acelerado na fase final do perodo, por necessidade de assegurar as condies de desenvolvimento da economia mercantil, no quadro da constituio dos estados-nao. Apesar de as sociedades se terem tornado gradualmente mais complexas e centralizadas, praticamente todos os assuntos relacionados com a vida quotidiana das populaes continuavam a ser tratados directa e autonomamente por estas, com base na posse dos seus prprios meios de produo, nas suas tradies e nas relaes comunitrias. Estas relaes, provindas das antigas relaes primordiais, foram sofrendo sucessivas adaptaes ao longo dos sculos, tanto em funo das modificaes ocorridas nos sistemas produtivos e dos novos papis neles desempenhados pelos indivduos como, especialmente, pelas imposies religiosas e ideolgicas dominantes.

c) Economia MercantilCom o desenvolvimento da economia agrcola e artesanal, o crescimento das cidades e da riqueza das classes dirigentes, desenvolveram-se igualmente as actividades comerciais, tanto no plano interno de cada formao poltica como o comrcio a longa distncia. Despontou assim do seio do povo uma nova classe, a burguesia comercial, que j em 1383-85 influenciou uma revoluo poltica em Portugal. O Renascimento e as descobertas europeias dos sculos XV e XVI traduzem a gradual ascenso burguesa no seio da sociedade medieval e uma rpida acelerao das actividades produtivas e comerciais no quadro da economia mercantil, caracterizada pela produo intencional de mercadorias para a troca. Inicialmente mais centrados no comrcio a longa distncia, cujas vantagens compartilhavam com a aristocracia e onde praticavam de modo generalizado o saque e a escravatura de povos subjugados, os mercadores estimularam tambm a organizao da produo artesanal em manufacturas e o seu desenvolvimento mediante o fornecimento de matrias-primas e instrumentos de trabalho e pela comercializao dos respectivos produtos. Com a economia mercantil iniciou-se progressivamente, no mbito dos pases centrais que a adoptaram, o processo de domnio das actividades

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produtivas e de troca pelo Capital, atravs da propriedade dos meios de produo e da explorao do trabalho assalariado. Desenvolveu-se a inovao tcnica e a diviso do trabalho no quadro das manufacturas e da gesto comercial e financeira, conferindo burguesia um crescente carcter empreendedor na esfera da produo manufactureira. Com o modo de produo mercantil iniciou-se uma fase nova da histria da Humanidade: o da intensificao produtiva e da primeira onda da integrao mundial, a criao de um sistema-mundo.

d) Revolues burguesas. Revoluo Industrial. Capitalismo. Integrao econmica mundialAs revolues burguesasA burguesia comercial e manufactureira tornou-se uma classe economicamente muito poderosa cujos interesses se contrapunham a todo o tipo de restries da sociedade aristocrtico-medieval livre iniciativa e circulao de mercadorias e factores de produo. O processo da sua irrupo como classe dominante foi muito irregular nos diversos pases europeus, acompanhando o desenvolvimento da Revoluo Industrial e a implantao do modo de produo capitalista, orientado para a obteno de lucro e a acumulao de capital. A Revoluo Americana de 1776 foi feita por homens livres, que proclamaram a sua Independncia e redigiram a sua Constituio sem qualquer preconceito ou atadura medievalista, sem brases, reis, duques ou condes, sem preconceitos religiosos retrgrados ou religies dominantes; esse sentido libertrio no impediu, porm, a continuidade da explorao escravocrata no sul e a expanso para Oeste ter sido realizada custa da expropriao e genocdio das populaes ndias. O mesmo sentido libertador percorreu, logo no incio do sculo XIX, toda a Amrica Latina, sob o impulso de Bolvar e outros revolucionrios progressistas, sem contudo atingirem plenamente os seus objectivos, dado o peso das velhas classes aristocrticas coloniais e a influncia dominante de uma igreja catlica retrgrada. Em Frana, s emerge com a Grande Revoluo de 1789-1793, tendo sido necessrias mais trs revolues, em 1830, 1848 e 1871, para que os seus objectivos fossem alcanados. Na Inglaterra, o poder da burguesia s se v consolidado com a reforma de 1832, 200 anos aps a revoluo de Cromwell, em 1649, e 50 anos depois da gloriosa revoluo de 1688-1689. Na Alemanha houve duas revolues democrticas burguesas (1848 e 1918) e, entre estas, as reformas drsticas dos anos de 1860 que Bismarck realizou atravs de ferro e sangue.

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Na pennsula ibrica, s ao longo dos sculos XIX e XX as burguesias de Portugal e de Espanha se tornam dominantes, se bem que sempre carregando os fardos culturais e dos interesses das velhas classes aristocrticas. Na Rssia, depois da revoluo gorada de 1905, o domnio poltico da frgil burguesia s se efectivou episodicamente entre Fevereiro e Outubro de 1917, tendo nesta data o poder transitado para uma aliana do proletariado com o campesinato. S em 1991 esse domnio foi formalmente restabelecido e alargado a todo o vasto conjunto de pases antes integrados na URSS. As revolues burguesas romperam com o ordenamento social e econmico anteriores, afirmaram os princpios da Liberdade e da Igualdade perante a lei; recuperaram parcialmente, atravs da democracia parlamentar, o princpio do Consenso Comunitrio enquanto instrumento de legitimao do Poder e libertaram as grandes massas populares das relaes de servido, abrindo os espaos, em cada pas, para a livre mobilidade territorial das pessoas, mercadorias e capitais. Esta libertao dos homens da sua relao com a terra e com os seus senhores, permitiu o rpido desenvolvimento das actividades manufactureiras, tanto nos campos como nas cidades e, com a extino das alfandegas internas, o livre comrcio de mercadorias por todo o territrio de cada pas. Nos novos pases ultramarinos que ficaram isentos das influncias aristocrticas medievais e das religies mais retrgradas, criaram-se comunidades livres que deram continuidade tradio de auto-governo social e que construram o Estado a partir do zero, medida que as instituies se tornavam necessrias. Sempre que aquelas influncias medievais e religiosas persistiram, como na Europa e na Amrica Latina, os Estados, mesmo que globalmente ao servio da burguesia, continuaram a impor-se s sociedades e a inibirem as iniciativas de auto-organizao social, preferindo, quando necessrio e da convenincia do sistema, organizar eles prprios, sem a participao popular, algumas das funes necessrias reproduo da vida social.

A emergncia e desenvolvimento do CapitalismoCom a inveno da mquina a vapor e a subsequente possibilidade de concentrar a produo junto de uma fonte de energia centralizada, aquela mecanizou-se, o xodo rural intensificou-se e as cidades sofreram um enorme crescimento demogrfico e territorial. Acompanhada por sucessivos melhoramentos tecnolgicos, a Revoluo Industrial estava em marcha dissolvendo, com ela, as antigas relaes comunitrias e sociais.

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A manufactura deu lugar maquinofactura; esta tornou obsoletos e inteis para a produo em larga escala as ferramentas e meios de trabalho que, ao longo das geraes, as classes trabalhadoras haviam possudo e utilizado na produo; os trabalhadores perderam o controlo dos processos produtivos tendo passado a trabalhar, como proletrios assalariados, para patres que eram possuidores das matrias-primas, dos meios de produo e dos produtos finais e, consequentemente, dos lucros.O que distingue o sistema social histrico a que chamamos capitalismo o facto de, neste sistema, o capital passar a ser usado (investido) de forma muito especial. Passou a ser utilizado com o objectivo primrio de auto-expanso. Neste sistema, as acumulaes anteriores apenas so "capital" na medida em que so usadas com vista obteno de acumulaes ainda maiores. (Immanuel Wallerstein O Capitalismo Histrico)

O Capital encontrara uma maneira de se reproduzir e acumular interminavelmente; ganhara cdigo gentico e, ao mesmo tempo que libertava a Humanidade das anteriores servides, submet-la-ia ao seu domnio nos sculos seguintes. Nascera o Capitalismo. A par do papel interno de manuteno da ordem no interior de cada pas, os Estados, j predominantemente burgueses, tratavam de assegurar as melhores condies externas de desenvolvimento das respectivas burguesias nacionais concorrentes entre si. A regulao do comrcio internacional, o acesso a fontes de matrias-primas e a mercados de consumo, por via diplomtica ou militar, passou a constituir uma das funes essenciais desses estados nacionais. O Capitalismo, tendo intensificado a produo no quadro dos pases onde a burguesia se tornou dominante, tendeu a alargar os seus territrios de interveno. Por isso, a lgica de domnio territorial e de explorao social do antigo regime tributrio manteve-se e, com ela, as guerras e a criao de laos de dependncia de outros povos, designadamente atravs do colonialismo. Foi assim que, durante o sculo XIX, todos os povos que no tinham suficiente poder prprio, se viram submetidos a relaes coloniais ou de dependncia relativamente s principais potncias capitalistas. O Colonialismo constituiu a segunda onda do processo de integrao mundial. As potncias europeias, com a Inglaterra como primeira potncia mundial, dominavam colonialmente quase todo o mundo; os EUA dominavam, de facto, a Amrica Latina, seu ptio traseiro. O Capitalismo tornou-se imperialista, tendo dado lugar a duas Guerras Mundiais pela supremacia poltico-militar e econmica mundial, pelo controlo dos mercados, das fontes de matrias-primas e dos recursos energticos, em consequncia das quais a anterior hegemonia inglesa no

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plano internacional, provinda do seu prolongado domnio dos mares e das principais rotas comerciais, foi substituda pela hegemonia norteamericana.

As lutas dos trabalhadores e dos povosNa segunda metade do sculo XIX, o Capitalismo comeou a revelar de forma notria a sua incapacidade para cumprir as promessas de desenvolvimento social proclamadas na fase progressista da burguesia, quando esta no era mais do que o sector mais avanado do Povo. A Liberdade e a Igualdade tinham ficado reduzidas, do lado das classes trabalhadoras, liberdade de vender a sua fora de trabalho no mbito de um contrato jurdico entre iguais. O livre assalariamento substitua, assim, as anteriores relaes servis. No plo oposto imensa acumulao de meios de produo e de riquezas pela burguesia industrial e comercial, agrupava-se uma massa cada vez mais numerosa de proletrios desprovidos de quaisquer meios de produo a viver e a trabalhar em condies sub-humanas. Emergiu ento na histria uma nova classe social, o proletariado, cada vez mais consciente de que a Liberdade burguesa era a sua submisso e que a Igualdade era uma impossibilidade sem a apropriao colectiva, por toda a sociedade, dos meios de produo. A sua libertao do assalariamento e da explorao capitalista s seria possvel no quadro de uma luta universal pela construo de uma sociedade sem classes nem explorao do homem pelo homem, o Socialismo. Marx e Engels elaboraram a primeira e sistemtica anlise cientfica ao modo de produo capitalista, determinaram o seu carcter histrico e prognosticaram as condies para a sua futura substituio por um novo modo de organizao social e de produo que resolveria todas as contradies antagnicas prprias das sociedades divididas em classes. As grandes concentraes operrias nas fbricas e nos bairros urbanos que lhes eram destinados, permitiram ao proletariado, especialmente industrial, aos operrios, recriar autonomamente, ento numa nova base cultural, os laos e estruturas associativas e comunitrias que lhes permitiriam assegurar no s uma base de vida solidria, atravs de mltiplas associaes de toda a ordem (culturais, educativas, desportivas, editoriais e de comunicao, cooperativas de produo e de consumo, mutualidades, etc.), como enfrentar o inimigo de classe quer nas empresas, atravs de sindicatos e comisses de trabalhadores, quer, atravs dos seus emergentes partidos polticos, nas lutas pela democracia. Foi a partir dessa plataforma de auto-organizao social e poltica que, em cada pas e em solidariedade internacional, o proletariado se lanou, em aliana com outras camadas populares trabalhadoras, conquista do

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poder poltico como primeiro e necessrio passo para a ulterior transformao geral da sociedade. Desde o final do sculo XIX e durante todo o sculo XX, em todo o mundo, o proletariado e os trabalhadores levantaram as suas bandeiras libertadoras, pondo em causa o Capitalismo e o Imperialismo. Um longo e frutuoso caminho foi percorrido nessa direco desde a primeira tentativa de criar um mundo novo, a Comuna de Paris, em 1871, passando pela Revoluo Russa e Sovitica, a extenso do campo socialista a uma srie de pases da Europa Oriental na sequncia da II Grande Guerra, as Revolues Chinesa, Vietnamita, Coreana e Cubana e, tambm pelas lutas de libertao nacional que desmoronaram os antigos imprios coloniais. A existncia de um campo socialista suficientemente forte e as lutas dos trabalhadores no campo capitalista obrigaram as burguesias dos pases mais desenvolvidos a ceder a um conjunto de reivindicaes econmicas e sociais do proletariado e a instituir vastos servios pblicos de apoio, nos domnios da sade, da educao, dos sistemas de previdncia social, etc. no quadro do que se chamou de Estado-social. Face s lutas dos trabalhadores, as oligarquias capitalistas do Ocidente eram obrigadas a fazer concesses, a conceder um mnimo de proteco social e de liberdade sindical, a proceder negociao salarial e ao controle democrtico da economia, pois era preciso a todo o custo evitar o voto comunista no Ocidente. Os partidos sociais-democratas ocidentais e as suas centrais sindicais, por seu turno, agiram como outrora os alquimistas da Idade Mdia que, com chumbo, tentavam fazer ouro. Transformaram em vantagens sociais para os clientes o medo dos capitalistas perante a expanso comunista. (Jean Ziegler, Os Novos Senhores do Mundo)

O desmoronar dos imprios coloniais e a adopo de polticas nacionalistas e progressistas em numerosos pases do ento chamado terceiro mundo vieram no s reforar o espao de aco econmica e poltica do bloco socialista como tornar mais difceis e gravosas as condies de explorao da periferia sub-desenvolvida pelos centros capitalistas.

Reestruturao CapitalistaA prolongada crise de acumulao do capital que percorreu toda a dcada de 1970, resultante da derrocada do sistema de dominao colonial directa e das conquistas dos trabalhadores nos pases centrais, obteve a sua resposta atravs de uma profunda reorganizao do sistema produtivo capitalista escala mundial, no sentido de fragmentar os grandes grupos empresariais integrados verticalmente (chamados da fase industrialista) em empresas autnomas por reas de negcio e na criao de numerosssimas pequenas e mdias empresas satlites de fabricao ou de prestaes de servios em outsourcing, mantendo nos

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grupos-me somente um reduzido e altamente qualificado ncleo central de integrao (assemblagem final, controlo de qualidade, contratao e controlo dos processos relativos produo e comercializao, servios financeiros, etc.) e de concepo de processos de alto valor acrescentado, frequentemente de mbito multinacional. Deste modo, os principais grupos empresariais capitalistas libertaram-se dos encargos da grande parte dos trabalhadores, provocaram a sua fragmentao e disseminao pelas empresas dependentes das suas encomendas, conseguindo uma substancial reduo de custos e a externalizao para a sociedade e para os Estados de grande parte dos custos das flutuaes cclicas do processo capitalista.

A Revoluo TecnolgicaA revoluo tecnolgica que progressivamente se foi desenvolvendo, designadamente ao nvel dos sistemas cibernticos e da informtica, permitiu a incorporao de cada vez mais conhecimento nos equipamentos de produo, tornando possvel a sua utilizao por operadores tecnicamente menos habilitados aos quais passaram a ser cometidas operaes simples ao nvel do interface homem-mquina. Exemplificando esse fenmeno, que se generalizou a todos os ramos da produo, poder-se- invocar, entre inmeros outros casos, a passagem do sistema operativo DOS, o qual exigia amplos conhecimentos de linguagem informtica pelos respectivos operadores, para o sistema operativo Windows, no qual a maior parte dos comandos operacionais se passaram a processar atravs do apontar e clicar num rato. Porm, no foi s nos domnios da produo e dos sistemas logsticos que se conseguiram assinalveis xitos na construo de mquinas inteligentes como mquinas-ferramentas programveis, autmatos e robots de todo o tipo aplicados directamente produo material e na gesto dos respectivos processos; as actividades administrativas e de gesto foram igualmente objecto de uma intensa automao e integrao atravs de sistemas informticos de recolha e processamento de dados. No domnio dos mais diversos ramos da engenharia e das cincias naturais e sociais foram desenvolvidos inmeros modelos de simulao que passaram a ser amplamente utilizados nas funes de projecto e de planeamento estratgico. As telecomunicaes, de curto e mdio raio de aco permitiram a integrao de sistemas operativos e administrativos a partir dos quais se tornou possvel desagregar espacialmente as diversas actividades produtivas, logsticas e administrativas concorrentes para um mesmo fim que, antes, exigiam a respectiva concentrao espacial.

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O desenvolvimento das telecomunicaes a partir da rede de satlites artificiais e a extenso geogrfica das redes de comunicaes da internet, veio permitir gerir processos produtivos, logsticos, administrativos, de projecto, planeamento, econmico-financeiros e culturais em tempo real e escala global e a deslocalizao da produo para pases e zonas do globo onde j existiam lotes de trabalhadores com habilitaes operativas suficientes e muito mais baratos. No fundamental, a revoluo tecnolgica tem consistido na apropriao privada do Conhecimento e na sua incorporao nos meios de produo, permitindo uma acelerada elevao da produtividade e a integrao dos sistemas de gesto de processos complexos. Como resultado, os trabalhadores que permanecem ligados ao sistema capitalista tendem a ser divididos em dois grupos fundamentais: os qualificados, que se dedicam, na dependncia directa do grande capital, concepo e desenvolvimento das novas tecnologias e processos e, por outro lado, uma massa imensa de no qualificados unicamente dedicados a actividades de operao e explorao de meios de produo de que no conhecem os princpios e a arquitectura de funcionamento.

A Terceira Onda de Integrao Mundial e o Imprio NorteamericanoO novo modelo fragmentrio de organizao da produo e as novas possibilidades tecnolgicas permitiram intensificar a concorrncia escala global (a Globalizao Capitalista) entre as PME dependentes, atravs de contratos de fabricao ou de servios cada vez mais baratos realizados em qualquer pas, provocando sucessivamente uma baixa de salrios nos pases mais centrais, o encerramento de empresas e a deslocalizao das actividades para regies e pases mais competitivos. Esta competitividade resume-se, nos pases anfitries desta nova industrializao, especialmente pases do Oriente, restaurao extensiva dos mtodos de produo ao domiclio prprios da fase manufactureira do capitalismo, das oficinas e fbricas tpicas do sculo XIX na Europa, laborando em condies sub-humanas, nos baixos salrios dos trabalhadores e na concesso, pelos respectivos governos, de facilidades fiscais e de infraestruturas para a captao de investimento externo. Este fenmeno reproduz, agora a uma escala global, planetria, um mecanismo similar ao do trabalho ao domiclio utilizado pelos mercadores nas fases iniciais de desenvolvimento do capitalismo, evitando o investimento em instalaes centralizadas e contornando as exigncias dos artesos das cidades (dos actuais pases centrais) ao

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mesmo tempo que usufruam das condies (instalaes, ferramentas e aptides) proporcionadas pelos trabalhadores dos campos (os chamados pases perifricos). Com a intensificao da precarizao do trabalho da grande massa dos trabalhadores menos qualificados (diga-se operrios) dos pases centrais, reduziu-se substancialmente a unidade dos trabalhadores e a capacidade reivindicativa dos sindicatos, com reflexos negativos na sua aco poltica. O debilitamento interno e a posterior derrocada da Unio Sovitica constituram a oportunidade para uma grande contra-ofensiva do capitalismo e do imperialismo escala mundial, conduzida pelos crculos dirigentes dos EUA, sob a designao de Consenso de Washington. O extraordinrio desenvolvimento das redes logsticas e de transportes por todo o mundo, sustentada em baixos preos do petrleo, veio reforar a tendncia para a reorganizao e optimizao, na perspectiva capitalista, das redes produtivas, de abastecimento de matrias-primas e de distribuio escala global, dominadas por grandes corporaes trans e multinacionais. Reforou-se assim o sistema-mundo capitalista, conduzindo a uma grande interdependncia de todos os seus componentes. Na ausncia de instncias internacionais de governo democrtico desse imenso trfico, controlado exclusivamente pelas trans e multinacionais e pelo capital financeiro internacional, reduziu-se extraordinariamente a capacidade de interveno dos Estados nacionais perdendo estes, de facto, a anterior capacidade de interveno econmica. O Capitalismo, que antes se desenvolvera numa base industrial e apoiado por sucessivas inovaes tecnolgicas, e por eficientes mtodos de gesto empresarial, evoluiu no sentido da submisso da produo industrial aos interesses dos sectores financeiros (a chamada financeirizao da economia), tal como antes havia submetido a agricultura aos interesses industriais. Vrios filmes norte-americanos mostram o processo de desintegrao do antigo grupo dos grandes empresrios industriais, cujo Capital estava corporizado em meios de produo, em empresas industriais, e a emergncia de um novo tipo de capitalistas financeiros que adquiriam os grupos industriais, os fragmentavam e revendiam em peas, transformando as empresas e os seus meios de produo em meros activos financeiros de conjuntura. A financeirizao da economia no se ficou, porm, no mbito das unidades industriais; as matrias-primas, os bens alimentares, as habitaes, os territrios, o conhecimento, as infraestruturas e

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equipamentos e o ambiente tambm se transformaram em produtos financeiros sujeitos a toda a espcie de apostas especulativas. Assim como o grande capital na sua fase industrial procurou esmagar os preos agrcolas tanto para a obteno de matrias-primas baratas como para que os cidados das cidades pudessem tornar-se compradores de produtos da indstria, hoje o grande capital financeiro procura esmagar os preos dos produtos industriais para que todos os excedentes dos rendimentos possam ser absorvidos pelos juros e amortizaes de dvidas. O esmagamento dos preos dos produtos industriais realizado atravs do abaixamento geral dos salrios dos trabalhadores e da progressiva externalizao de custos para os Estados nacionais atravs de concesses fiscais, encargos de flexibilizao do trabalho, construo de infraestruturas, tarifas preferenciais, etc. O capital financeiro desterritorializou-se e criou instrumentos de livre e instantnea movimentao por todo o mundo, designadamente atravs da desregulamentao financeira e das off-shore, evadindo-se soberania dos Estados e ao controlo democrtico dos povos. Como corolrio dessa desvinculao democrtica, a classe da grande burguesia internacionalizada desvinculou-se igualmente do destino dos povos do mundo e da sua simblica responsabilidade social, deixando de assumir directamente funes de gesto e passando a contratar para o efeito um corpo de mercenrios da gesto empresarial/financeira altamente remunerados a chamada classe de gestores profissionais que, sem quaisquer escrpulos morais ou sociais, lhes maximizam os lucros (a remunerao dos accionistas). Sob este modelo de gesto agudizaram-se fortemente as perverses intrnsecas ao sistema capitalista (anarquia da produo e crises peridicas, desenvolvimento desigual e polarizado escala do mundo e em de cada pas, irresponsabilidade social, devastao ecolgica e ambiental), tornando-se o Capital, agora financeirizado, essencialmente especulativo, parasitrio e gerador de crises de consequncias cada vez mais sistmicas e graves. Por essa razo, os EUA, centro estratgico do capital financeiro internacional, se especializa cada vez mais nas tecnologias blicas mais avanadas e na actividade da guerra e recorre, de modo crescente, ao mercenariato (sob a designao moderna de outsourcing) e utilizao de tropas indgenas dos Estados avassalados para assegurar o seu domnio mundial. A globalizao econmica e financeira Capitalista foi acompanhada, a coberto da luta contra o terrorismo, de uma extensa e profunda operao estatal de integrao dos sistemas de segurana e defesa de

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todo o chamado mundo ocidental sob a direco norte-americana, consolidando assim o potencial do sistema-mundo centrado nos EUA. A actual crise financeira e econmica global, contrariamente propalada inteno de regulao do sistema financeiro global, est a resultar, de facto, numa grande operao de submisso dos Estados dependentes e das suas populaes pelo capital financeiro internacionalizado, usando para o efeito as dvidas financeiras que, antes, lhes foram fomentadas. De modo semelhante ao que j antes acontecera no mbito das revolues burguesas, nas quais o Capitalismo superou os espartilhos medievais que entravavam a criao de espaos econmicos (mercados) mais amplos, o Capitalismo da era da actual onda globalizadora no s superou os limites dos actuais estados-nao e criou um espao econmico nico, escala mundial, e se libertou da obrigao de lhes pagar tributos (impostos) como, simultaneamente, ludibriou os mecanismos de controlo democrtico que os povos haviam conquistado no mbito dos respectivos Estados nacionais. Assim, o sistema-mundo acima referido caracterizado pela criao de uma nova ordem mundial dirigida pelo grande capital privado e executada, no plano poltico, pelos governos das maiores potncias, caracterizada por dependncias polticas, militares e financeiras em cascata, a qual configura, pela nova distribuio de papeis ao nvel global, a antiga ordem feudal na qual os antigos tributos parasitrios so agora substitudos pelas dvidas e encargos financeiros dos cidados, das instituies sociais, dos sistemas produtivos nacionais e dos Estados. medida que os governos, as economias e os cidados dos pases que vo sendo captados na armadilha das dvidas, so empurrados para o progressivo aniquilamento dos mecanismos do Estado-social (educao, sade, emprego, segurana social) e forados rpida privatizao de recursos naturais, de servios, empresas e infraestruturas pblicas, para poderem aceder a algum fluxo de recursos financeiros internacionais. Representando os Estados, em condies de democracia poltica, uma expresso da vontade dos respectivos povos, a drstica reduo das capacidades econmica e financeira dos Estados corresponde a uma massiva expropriao colectiva e sonegao da capacidade dos povos de exercerem a sua auto-determinao fora da dependncia do grande capital privado internacional.

A soberania republicana dos povos, proclamada no mbito das revolues burguesas, v-se, assim, revertida e

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privatizada, em favor de uma nova oligarquia internacional hereditria de carcter neo-feudal. Derrota Estratgica do ProletariadoO movimento proletrio e dos povos oprimidos, inspirado nas ideias do Socialismo, manteve uma ofensiva estratgica bem conseguida at meados da dcada de 1970, materializada no amplo e vitorioso movimento descolonizador e de libertao nacional, no movimento dos pases no-alinhados, na derrota norte-americana no Vietname, Laos e Cambodja, na implantao de um governo popular no Chile e na queda das ditaduras europeias em Portugal, Espanha e Grcia. Porm, a partir dessa poca, j eram notrias as perverses do socialismo real centrado na URSS, com reflexos nos ritmos de desenvolvimento econmico e em atitudes internacionais de tipo imperialista, acendendo uma luta ideolgica intensa tanto sobre a essncia do Socialismo como sobre as estratgias, tcticas e mtodos de aco poltica, com reflexos muito negativos no movimento internacional do proletariado. Por outro lado, a reorganizao e fragmentao empresarial capitalista escala mundial no foi acompanhada por novas e adequadas estratgias de aco e formas de organizao pelos sindicatos e partidos proletrios tradicionais, da resultando uma forte diminuio da sua capacidade de luta reivindicativa e poltica, problemas que, ainda hoje, no se encontram resolvidos. Com a derrocada da URSS assistiu-se no s a uma desorientao ideolgica generalizada e uma significativa debandada para posies polticas acomodadas nova hegemonia imperialista, como tambm rendio ao grande capital de largos sectores representativos dos trabalhadores e das classes populares, designadamente os mais influenciados pela social-democracia. Por essa razo, a ofensiva global do grande capital internacional e dos seus suportes poltico-militares e mediticos no contou com uma oposio concertada dos povos e dos trabalhadores escala global no sentido de defender as suas conquistas democrticas e socioeconmicas e impedir as consequncias mais nocivas do modelo de globalizao prosseguido, tanto por inexistncia das necessrias estruturas de concertao internacional como pela desorientao e oportunismo poltico e ideolgico dos partidos e sindicatos tradicionais, os quais ou se renderam ou continuaram a proceder como se nada se tivesse passado. A nica iniciativa nesse sentido com alguma notoriedade global partiu de grupos e sectores de cidados que se organizaram e mobilizaram

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margem das estruturas partidrias e sindicais tradicionais em manifestaes anti-globalizao de impacto meditico, ou de movimentos sociais autnomos, no mbito de Fruns Sociais Mundiais e Regionais mas, para alm do seu impacto inicial ao nvel do despertar de conscincias para os graves problemas verificados e de alguma articulao internacional que possibilitaram, parece terem perdido algum vigor. O movimento sindical dos trabalhadores, apesar de contar com algumas estruturas de articulao internacional e mundial, mantm-se, globalmente, passivo, como reflexo tanto da fragmentao partidria do proletariado e dos bloqueios unidade que da decorrem, como da sua burocratizao e desligamento relativamente aos cidados no activos, cuja percentagem em relao aos activos tender a continuar a crescer. S nos ltimos anos a reaco das massas populares aos efeitos sociais e polticos mais gravosos da globalizao Capitalista se fez sentir de modo prtico e consequente mediante a reconquista, pelas grandes massas oprimidas, do poder poltico escala nacional, mediante a eleio de personalidades e governos delas representativas, como foi o caso de alguns pases da Amrica Latina, um dos ptios traseiros do imperialismo. Este fenmeno evidencia tanto o falhano geral dos partidos tradicionais do proletariado, cada vez mais desligados da realidade dinmica das grandes massas, como a validade de uma aco poltica contundente e unitria escala nacional, no sentido da retomada da soberania poltica e econmica e da implantao de modelos democrticos superiores mera democracia representativa. A reconquista do Poder Poltico ao nvel dos Estados nacionais pelos respectivos povos (massas populares, trabalhadores e sectores burgueses patriticos), atravs de movimentos de democracia participativa e radical e a sua assumpo como Estados/Sindicatos nacionais que se opem ao imperialismo e chantagem do capital financeiro internacional, parece ser uma das vias mais consequentes para, directamente e em solidariedade com outros povos, se poder influenciar a marcha do mundo e modelar democraticamente a integrao mundial. Este instrumento ter ainda a vantagem de se apoiar em processos de participao democrtica j conhecidos pelos povos e, tambm, de assentar numa base institucional eficiente que, em vez de submetida e depauperada pelo imperialismo, se poderia voltar a fortalecer. Daqui a importncia que continua e continuar a ter no futuro a referncia nacional para a melhor gesto dos processos globais, a nvel mundial.

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Todos estas questes tm suscitado, especialmente nos ltimos 20 anos, um grande debate entre os revolucionrios socialistas quanto s razes dos insucessos verificados nas tentativas de abrir a perspectiva socialista para o desenvolvimento mundial, capacidade de adaptao do Capitalismo a diferentes conjunturas, s estratgias e tcticas da conquista do poder pelos trabalhadores, s alianas sociais e polticas e prpria configurao do Socialismo. No entanto, enquanto no for possvel construir um conjunto adequado de mecanismos de articulao democrtica de mbito global, os povos e os trabalhadores continuaro inaptos a responder actual globalizao capitalista e a afirmar a globalizao necessria.

Do Imprio ao Mundo MultipolarNo entanto, a integrao capitalista prosseguida nos ltimos 25 anos trouxe resultados contraditrios relativamente s expectativas de dominao mundial pelos EUA. Assim, na busca de taxas de lucro mais elevadas, os capitais afluram aos pases possuidores de mo-de-obra mais barata, qualificada e disciplinada, fazendo deslocalizar a produo industrial mundial dos centros produtivos norte-americanos e europeus para aquelas novas regies, designadamente do oriente. A redistribuio global da produo industrial e dos fluxos comerciais fizeram emergir novas potncias econmicas e alianas regionais e estratgicas que configuram uma decadncia gradual dos anteriores centros capitalistas norte-americanos e europeus e que j impuseram alguma retraco ao unilateralismo internacional dos EUA.

e) Capitalismo: o fim da sua Misso histricaTendo embora constitudo um factor de grande desenvolvimento global da Humanidade, o Capitalismo, cada vez mais desvinculado das necessidades reais dos povos, anuncia o final da sua misso histrica que foi, em suma, ter integrado economicamente todo o mundo e ter desenvolvido mtodos altamente eficientes de organizao da produo que constituem a base de edificao da nova sociedade Socialista...., todas as etapas histricas que se sucedem nada mais so que outras tantas fases transitrias no processo de desenvolvimento infinito da sociedade humana, do inferior para o superior. Todas as fases so necessrias, e, portanto, legtimas para a poca e as condies que as originam; uma vez, porm, que surgem condies novas e superiores, amadurecidas pouco a pouco no seu prprio seio, elas caducam e perdem a sua razo de ser e devem ceder o lugar a uma etapa mais alta, a qual, por sua vez, tambm ter um dia de envelhecer e perecer. (Friedrich Engels,

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Ludwig Feuerbach e o fim da Filosofia Clssica Alem", 1886)

Ao mesmo tempo que, a nvel global, o Capitalismo reconstitui hoje, com diferentes roupagens, a antiga ordem medieval privada, hereditria e tributria, perdeu a sua capacidade de promover o desenvolvimento de muitos povos e pases que no passaram por revolues burguesas e de unificao nacional, onde continuam a subsistir os traos dominantes de ordens sociais e polticas anteriores, como o tribalismo e o despotismo, tendo, ao contrrio, passado a proteger as oligarquias locais que a ele se subordinam. Tendo atingido h muito o apogeu da sua capacidade civilizadora, o Capitalismo, como sistema-mundo e estrutura socioeconmica hegemnica, entrou em processo de decadncia e degenerao, perdeu a legitimidade perante os povos, tornando necessria e urgente a sua substituio.

f) Situao geral e Perspectivas:Sob o capitalismo, a sociedade humana chegou a trs limites fsicos intransponveis: o expectvel esgotamento das fontes de energia fssil, designadamente do petrleo, o qual constitui a base energtica fundamental do actual modo de produo e trocas,

- a profunda degradao das condies ecolgicas e ambientais resultantes do uso intensivo dos combustveis fsseis, do desmesurado consumo de recursos naturais e da ganncia pelo lucro, e - a incapacidade do sistema socioeconmico capitalista em satisfazer as condies mnimas de existncia da biosfera terrestre, especialmente a actual populao humana, criando uma situao potencialmente catastrfica para grande parte da humanidade. Estas trs questes poderiam ser administradas de modo coerente se existisse alguma forma de governana mundial democrtica. Mas tal no acontece e, por isso, elas esto j a criar e iro, num futuro prximo, fazer aumentar extraordinariamente a presso nas caldeiras poltica e social, j hoje sujeitas a elevadas temperaturas. Bastar atentar-se na forma como a crise do sistema financeiro tem sido tratada pelas grandes potncias, tendo comeado por sonantes declaraes quanto necessidade de regulao pblica desse sistema mas, de facto, tendo prosseguido numa fuga para a frente, no sentido da progressiva falncia de Estados, empresas produtivas e de cidados por todo o mundo. Parafraseando Barack Obama durante a sua campanha

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eleitoral, Wall Street aprofundou ainda mais o seu domnio sobre a main street. Uma situao equivalente ocorre quanto s conversaes sobre as alteraes climticas e sobre todas as questes de interesse geral da Humanidade, tais como os Objectivos do Milnio, a alterao do paradigma energtico, da produo de alimentos, etc., onde os interesses de cada um dois grupos imperialistas se sobrepem aos interesses gerais da populao planetria. Tal como no passado, os vrios grupos procuram alinhamentos estratgicos tendo em vista as suas confrontaes no futuro: os EUA procuram cercar a China atravs dos seus aliados na zona, da captao da ndia e da sia Central e da neutralizao da Rssia; Esta, procura emparceirar com a Europa, autonomizando-a dos EUA e associando-a explorao e defesa da Sibria e do seu extremo-oriente; a organizao de Shangai associa a China e a Rssia para a defesa dos respectivos interesses na zona da sia Central; A Amrica Latina busca a sua segunda independncia, agora relativamente aos EUA, e procura associar-se com a frica; os pases islmicos, ainda submetidos a vrios tipos de dominao e opresso, procuraro a sua segunda independncia e a criao de um bloco prprio de interesses; a Europa, ferreamente controlada pelos EUA atravs da NATO, perde importncia global e ter de decidir-se quanto ao seu futuro; a China estende a sua influncia econmica e financeira por todo o mundo possvel, procurando assegurar o acesso a matrias-primas e energia de que necessita para o seu desenvolvimento. Todos estes jogos de entendimento e equilbrio, caracterizados por tcticas de posies e enfrentamentos no blicos (ideolgicos, comerciais, etc.) procurando fragilizar o inimigo e potenciar a capacidade prpria, s sero possveis enquanto o sistema estiver, de algum modo, a dar para todos, podendo, perante certas circunstncias, evoluir para confrontos blicos de grandes dimenses. Para dirimir eventuais conflitos e desenvolver alianas vo sendo criadas novas instncias de concertao, os G20, os BRIC, etc., ao mesmo tempo que se desenvolvem variadssimas organizaes econmicas e polticas regionais. Contudo, o que se vier a passar entre os vrios grupos imperialistas de interesses escala global, depender, em larga medida, da disposio dos principais protagonistas da Histria, os povos, aqueles que no esto representados ou que at ignoram o que se passa no ambiente resguardado dos entendimentos de topo.

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E estes sentem que o sistema se encontra decadente e a falhar em tudo o que mais importante para o seu dia a dia e para o futuro dos descendentes. Os povos tm cada dia mais conscincia da crise sistmica do Capitalismo, a qual se reflecte em todos os domnios da vida das sociedades: - no mbito econmico e financeiro, que torna mais longnqua a possibilidade de prover todos os seres humanos com as condies materiais mnimas para uma vida digna, - no mbito ambiental e do rpido esgotamento de recursos naturais, - no mbito social, provocando a atomizao dos indivduos e o exponencial aumento das desigualdades e da pobreza, - no mbito das capacidades funcionais dos Estados-nao, despojados de qualquer capacidade de direco dos processos econmicos e financeiros mundiais e servindo, dentro das respectivas fronteiras, de instrumentos de legitimao das polticas de privatizao e explorao, securitrias e belicistas decididas em instncias internacionais no democrticas; - no mbito poltico, decorrente do esgotamento dos actuais modelos democrticos representativos ao nvel dos estados nacionais, cujos governos se assumem cada vez mais como agentes executivos da oligarquia dos mercados internacionais e cada vez menos como representantes das aspiraes dos respectivos povos; - no mbito cultural e dos Valores fundamentais da convivncia humana. Quanto maior for o protagonismo popular, menos possibilidades haver de os antagonismos de interesses entre os diversos blocos que se configuram escala global poderem evoluir no sentido de uma guerra catastrfica para toda a humanidade, conforme tem sido a tradio de todas as sociedades fundadas na competio e na explorao. Enquanto o Capitalismo for hegemnico escala global esse perigo persistir. A este propsito, cumpre salientar que o nico travo efectivo a uma ofensiva de domnio militar mundial global pelos crculos imperialistas mais belicistas norte-americanos reside no potencial nuclear da Rssia, o qual, mesmo apesar do fim da guerra-fria e do desmantelamento da URSS, continua a servir o princpio preventivo da destruio mtua assegurada. Por isso, os EUA no desistem, atravs da corrida a novos armamentos e meios de defesa antimssil, de procurar vantagens para o desencadeamento de um primeiro e demolidor golpe que lhes permita a subjugao continuada de todo o mundo. este um ltimo servio que a

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to vilipendiada Unio Sovitica presta, mesmo depois de morta, luta democrtica e progressista de todos os povos do mundo. No obstante, perante os fracassos sociais e as crises econmicas da ltima onda de integrao mundial, os povos e os trabalhadores de todo o mundo resistem e procuram alternativas. Crescem por todo o mundo a conscincia e os movimentos antisistmicos. A evoluo progressista em quase toda a Amrica Latina e o recente despertar democrtico dos povos rabes, constituem sinais de travagem da contra-ofensiva global do Imperialismo Capitalista centrado nos EUA e anunciam o final do longo perodo de existncia dos ptios traseiros, isto , da conservao intencional de numerosos povos e pases como reservas social e economicamente atrasadas, sujeitas espoliao imperialista dos respectivos recursos naturais. No entanto, a salvaguarda da Paz, o estabelecimento de uma ordem mundial democrtica, a erradicao da pobreza e o desenvolvimento equilibrado de todos os povos, a mxima preservao dos recursos naturais no renovveis, a segurana alimentar e energtica e o respeito pelas condies ecolgicas e ambientais gerais s sero possveis mediante a reconquista do poder poltico e da soberania popular no quadro de cada Estado, com o aprofundamento da Democracia e a progressiva adopo do caminho do Socialismo por cada vez mais povos e o fim da hegemonia capitalista e imperialista escala global.

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CAPTULO 2 As Fontes de Legitimao do Poder e o SocialismoPara caracterizar o momento actual e perspectivar os caminhos a seguir pela Revoluo Socialista haver que ter uma perspectiva muito genrica da totalidade da viagem feita pela sociedade humana, na perspectiva das fontes de legitimao do Poder. As fontes histricas de legitimao do Poder tm sido: - O Consenso Comunitrio - que actualmente se chama, quando restrito, Repblica Democrtica Representativa (na qual a Burguesia representa o Povo) e, quando amplo, Soberania Popular ou Repblica Popular, Democrtica, Participativa e Protagnica (assente no exerccio da Democracia Radical e Integral exposta mais adiante, no Captulo 9); - A Capacidade de Imposio, de tomar decises (dar ordens, legislar) e de as fazer cumprir, sempre que necessrio atravs do exerccio da violncia; - A Ideologia (a Me-Terra, o Projecto Religioso, o Projecto Humanista de Sociedade, o Projecto Capitalista Espoliador e, por ltimo, o Projecto de Sociedade Livre, Justa e Sustentada - Socialista) - A Cultura (incrustada dos elementos ideolgicos burgueses), o Direito (consagrando a Hereditariedade, a Propriedade privada dos meios de produo e a Represso burguesa) e o Poder Econmico, como mscaras da Ideologia e da Imposio, destinadas a gerar um consenso comunitrio mnimo que assegure a continuidade destas fontes primrias de legitimao. Todas essas fontes de legitimao do Poder surgiram no decurso da evoluo da Humanidade e, historicamente, combinaram-se de diversas maneiras em cada local e diferentes perodos. Ainda se encontram presentes em todas as sociedades actuais, em variadas propores e mbitos. Nas comunidades humanas primitivas predominava o Consenso Comunitrio. No plano ideolgico, o Projecto social coincidia com o modelo natural, da Me-Terra. As fases seguintes das sociedades humanas excluram globalmente o Consenso Comunitrio e impuseram como fontes primrias de legitimao do Poder a Imposio, atravs do exerccio indiscriminado da violncia, e as Ideologias religiosas hierrquicas que justificavam o reino

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de deus. Uma Cultura de Domnio e Submisso e o princpio da Hereditariedade, contribuam para assegurar o Poder dos grupos dominantes. As comunidades, antes livres mas pecadoras, infiis ou devedoras, foram sujeitas escravido, servido, obedincia. As revolues burguesas apoiaram-se no Consenso Comunitrio (no Povo), numa Ideologia Humanista (no divina) e numa Cultura de Liberdade e Igualdade para conquistarem o Poder Poltico. Rejeitaram a origem divina do Poder e a Hereditariedade e substituram-nos, respectivamente pelo Consenso Comunitrio Restrito, a Republica Democrtica Representativa baseada no Direito - Propriedade privada dos meios de produo e dos correspondentes produtos e, como reminiscncia da antiga Hereditariedade, o Direito de Herana (o qual, em rigor, veio a substituir o Mrito, muito mais democrtico, e que era perfilhado pela burguesia na sua fase progressista).E se fosse suprimido o direito de herana? A proposta defendida por homens como o milionrio Warren Buffet, que defende que no se pode levar s olimpadas os filhos dos campees olmpicos, da mesma maneira no devem gerir as empresas os filhos dos proprietrios. (???)

A partir de um consenso comunitrio restrito, a burguesia tornada classe dominante estabeleceu, com base no (seu) Direito, novos instrumentos de Imposio, entre os quais o uso regulado da violncia, atravs das (suas) foras armadas e de segurana, dos (seus) tribunais e, muito especialmente, atravs do Poder Econmico resultante da propriedade privada dos meios de produo, a qual dita a sua soberania plenipotenciria no quadro da produo social. Tendo embora institudo formalmente as liberdades de pensamento e de expresso, dotou-se, quase em exclusividade, com base no seu Poder Econmico, dos instrumentos prticos da sua difuso e de defesa da sua Ideologia, como so os sistemas de educao e os principais rgos de comunicao de massas (o novo Poder Meditico), estabelecendo para o efeito, complementarmente, uma aliana estratgica com as principais organizaes religiosas. Tendo-se apropriado do Poder, a burguesia conservou para si uma Cultura de Liberdade (de apropriao e de explorao dos homens e da natureza) e fomentou uma Cultura de Submisso junto do resto da sociedade. Nas sociedades burguesas, a antiga servido foi substituda pelo trabalho assalariado, a forma moderna de sujeio e explorao. A Revoluo Socialista corresponde conquista do Poder Poltico pela totalidade dos Cidados (o Povo), imposio da Soberania Popular

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sobre todos as esferas da actividade da sociedade (Democracia Integral) e difuso ideolgica do Projecto de Sociedade Livre e Sustentada, o Socialismo. Em consequncia, atravs do exerccio da democracia Participativa e Protagnica, promove a extenso mxima da Cultura de Liberdade e a erradicao da Cultura de Submisso, e submete todas as anteriores fontes de Poder das minorias exploradoras ao domnio da Soberania Popular. Da o carcter profundamente Libertrio, Democrtico, Pacifista e Pluralista da Revoluo Socialista. Na Revoluo Socialista, a Imposio (com todos os seus instrumentos coercivos), tender, como fonte de legitimao, a extinguir-se e a transmutar-se em Poder Moral, isto , em Mrito e Responsabilidade Universalista (Humana, Social, Ptria, Internacional e pela Me Terra) como nicos critrios para o exerccio de qualquer mandato social (sempre e a cada momento revogvel). O Direito enquanto instrumento da defesa dos interessas da minoria exploradora e, como tal, governando a Justia, ser, finalmente socializado; a Justia governar o Direito.Nota: O que a Ptria? Ou ser Patriota? Deixam-se algumas definies possveis: Uma ptria o espao telrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre humana e civicamente. (Miguel Torga, poeta portugus) Se me perguntarem o que a minha ptria direi: No sei. De facto, no sei Como, por qu e quando a minha ptria Mas sei que a minha ptria a luz, o sal e a gua Que elaboram e liquefazem a minha mgoa Em longas lgrimas amargas. (Vinicius de Moraes, poeta brasileiro) Ser Patriota participar com a sua comunidade em tudo o que pode melhorar a qualidade de vida dos cidados. (Silvio Campos http://www.achetudoeregiao.net/atr/patriota.htm) Ser Patriota a razo social do bicho homem viver bem com todos os seus irmos sejam eles animais irracionais ou racionais, ignorando a aparncia externa, valorizando o conhecimento de cada um, priorizando a alma. (Silvio Campos http://www.achetudoeregiao.net/atr/patriota.htm)

Serve este esquema muito sucinto para enquadrar na Histria as tarefas que hoje se colocam Revoluo Socialista no seu caminho at libertao completa de toda a sociedade e de cada cidado de qualquer forma de coaco ou imposio. Por isso, a Revoluo Socialista ser, tambm, o reino da Liberdade.

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Na transio para o Socialismo, os modelos hierrquicos de organizao social sero progressivamente substitudos por redes de cidados livres que se associam voluntariamente e cooperam entre si para a satisfao de todo o tipo de necessidades sociais. No caminho para o Socialismo, o trabalho assalariado vai sendo substitudo pela associao livre dos cidados produtores, simultaneamente trabalhadores e gerentes; a Natureza deixa de ser um mero recurso explorvel, subjugada ao domnio pelas sociedades humanas, e reconhecida, no seu equilbrio global, como a condio para a prpria existncia da Vida; a segurana e a defesa da Ptria passaro a ser asseguradas pela auto-defesa popular generalizada; deixar de existir a justia social e emergir uma Sociedade Justa. A cultura capitalista de apropriao, fragmentao e competio ser substituda pela cultura socialista de Viver Bem, caracterizada pela integrao, cooperao, a solidariedade e a responsabilidade social e ambiental, pela utilizao em comum dos meios de produo, pelo consumo responsvel e pela paz e segurana colectiva, num quadro de sustentabilidade geral. A transio para o Socialismo um processo complexo e prolongado, especfico em cada pas, em funo do seu trajecto histrico e base cultural; aproveitando embora o Conhecimento e as experincias libertadoras que constituem patrimnio da humanidade, dever ser realizada por inveno, no rejeitando o princpio da tentativa e erro.

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PARTE II ALGUMAS QUESTES POLMICAS

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CAPTULO 3 Porqu no Anti-Capitalista?O Capitalismo constitui um modelo histrico de sociedade humana assente no modo de produo capitalista.na produo social da sua vida, os homens estabelecem determinadas relaes necessrias e independentes da sua vontade, relaes de produo que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas foras produtivas materiais. O conjunto dessas relaes de produo forma a estrutura econmica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue a superestrutura jurdica e poltica e qual correspondem determinadas formas de conscincia social. O modo de produo da vida material condiciona o processo da vida social, poltica e espiritual em geral. (Karl Marx, "Prefcio Contribuio Crtica da Economia Poltica", 1859)

Tendo nascido como um modo de produo com caractersticas e potencialidades superiores aos modos de produo anteriores, o Capitalismo veio a constituir-se, mediante a hegemonia poltica e cultural burguesa, num modelo de sociedade o qual, ele prprio, foi metamorfoseando algumas das suas caractersticas em funo do processo de desenvolvimento tecnolgico-produtivo, da sua expanso socio-territorial e do nvel de poder impositivo que foi tendo de empregar para submeter as populaes que resistem dominao e explorao. Assim, de um sistema originariamente libertador, evoluiu, medida que a burguesia se foi separando das massas trabalhadoras, se tornou fora social dominante e ficou cada vez mais desvinculada das reais necessidades sociais, num sistema progressivamente opressivo, parasitrio e reaccionrio ao desenvolvimento, gerador de um crescente esprito de revolta em todos os povos do mundo. Esse esprito de revolta tem-se materializado historicamente de mltiplas formas, desde a espontnea e primitiva destruio de mquinas e produtos e variadas aces de rebeldia popular, at s lutas reivindicativas de massas por uma menos injusta repartio dos resultados da produo e, finalmente, s lutas revolucionrias de libertao nacional e de substituio do capitalismo por um modelo de sociedade mais avanado, o Socialismo. Todas essas formas de luta que, pelo simples facto de serem conduzidas contra um opositor, podero parecer revelar um carcter anti, na realidade so lutas por objectivos mais ou menos bem definidos. A proclamao do anti-capitalismo como palavra de ordem poder ser compreendida enquanto desabafo moral momentneo, como uma manifestao de revolta, mas que no corresponde a qualquer

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objectivo positivo do interesse real das massas trabalhadoras nem indica a alternativa que estas necessitam para se poderem mobilizar de forma consequente. Se bem que a Moral seja um elemento importante para a definio do posicionamento de cada um perante os problemas sociais e um factor relevante na formao das condies subjectivas para/e da Revoluo, abordar esta a partir de uma posio predominantemente moralista conduz, inevitavelmente, tomada de decises gravosas para a sociedade e, consequentemente, ao fracasso. O anti-capitalismo constitui uma dessas atitudes moralistas que, tendo a sua justificao no sentido de averso a todas as perverses humanas, sociais e ambientais geradas pelo modelo de sociedade capitalista, especialmente na sua fase decadente, no reconhece o que o Capitalismo hegemnico representou enquanto avano histrico da sociedade humana, do mesmo modo como no reconhece que o modo de produo capitalista, quando deixar de ser o modelo hegemnico, ainda vai ter de representar no futuro, em maior ou menor escala, consoante os sectores de actividade produtiva e o estado de desenvolvimento de cada sociedade nacional, um papel positivo no avano das sociedades humanas. O anti-capitalismo nega o fluxo dialctico da histria, no entende que na mesma poca histrica e na mesma sociedade possam coexistir vrios modelos de produo, desde os mais antigos aos mais futuristas, como Marx no seu tempo revelou e como se comprova na actualidade, em todas as sociedades humanas existentes. O Capitalismo constituiu o maior salto civilizacional e humanista que a Humanidade j deu em toda a sua histria at ao presente. S quem no conhea a histria das civilizaes mais antigas e dos modos de produo anteriores ao Capitalismo que poder, erradamente, caracterizar o Capitalismo como algo retrgrado. No foi por acaso que Marx e Engels denominavam como brbaros os sistemas sociais antigos, como reflecte o artigo de Marx de 1853 sobre A Dominao Britnica na ndia:Decorridos tempos imemoriais, no existiam na sia seno trs departamentos administrativos: o das Finanas, ou pilhagem do interior; o da Guerra, ou pilhagem do exterior; e, enfim, o departamento dos Trabalhos Pblicos... Ora, os Ingleses nas ndias Orientais aceitaram dos seus precedentes os departamentos das Finanas e da Guerra, mas eles negligenciaram inteiramente o dos Trabalhos Pblicos. Da a deteriorao de uma agricultura incapaz de se desenvolver segundo o princpio britnico da livre concorrncia, do laissez faire, laissez aller...

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Ora, por mais triste que seja do ponto de vista dos sentimentos humanos ver essas mirades de organizaes sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas dissolverem-se, desagregarem-se nos seus elementos constitutivos e serem reduzidas misria, e os seus membros perderem ao mesmo tempo a sua antiga forma de civilizao e os seus meios de subsistncia tradicionais, no devemos esquecer que essas comunidades villageoisies idlicas, malgrado o seu aspecto inofensivo, foram sempre uma fundao slida do despotismo oriental, que elas retm a razo humana num quadro extremamente estreito, fazendo dela um instrumento dcil da superstio e a escrava de regras admitidas, esvaziando-a de toda a grandeza e de toda a fora histrica. No devemos esquecer os brbaros que, apegados egoisticamente ao seu miservel lote de terra, observam com calma a runa dos imprios, as crueldades sem nome, o massacre da populao das grandes cidades, no lhes dedicando mais ateno do que aos fenmenos naturais, sendo eles mesmos vtimas de todo o agressor que se dignasse a not-los. No devemos esquecer que a vida vegetativa, estagnante, indigna, que esse gnero de existncia passiva desencadeia, por outra parte e como contragolpe, foras de destruio cegas e selvagens, fazendo da morte um rito religioso no Hindusto. No devemos esquecer que essas pequenas comunidades carregavam a marca infame das castas e da escravido, que elas submetiam o homem a circunstncias exteriores em lugar de faz-lo rei das circunstncias, que elas faziam de um estado social em desenvolvimento espontneo uma fatalidade toda poderosa, origem de um culto grosseiro da natureza cujo carcter degradante se traduzia no facto de que o homem, mestre da natureza, caia de joelhos e adorava Hanumn, o macaco, e Sabbala, a vaca. verdade que a Inglaterra, ao provocar uma revoluo social no Hindusto, era guiada pelos interesses mais abjectos e agia de uma maneira estpida para atingir os seus objectivos. Mas a questo no essa. Trata-se de saber se a humanidade pode cumprir o seu destino sem uma revoluo fundamental na situao social da sia. Seno, quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra, ela foi um instrumento da Histria ao provocar esta revoluo.

Para alm dos extraordinrios avanos na cincia e na tecnologia, da instituio jurdica dos direitos humanos antes arbitrria, violenta e sistematicamente negados e nas condies materiais de vida, a poca do Capitalismo traduziu-se num estrondoso xito biolgico da espcie humana, a qual, sob o impulso da Revoluo Agrcola, havia passado de somente 50 milhes no ano 1000 AC para 425 milhes em 1500 DC e que, desde o incio da Revoluo Industrial, em meados do sculo XVIII, at ao presente, passou de 791 milhes para os cerca 6.900 milhes actuais, com expectativas de vida muito mais longas que nos perodos anteriores.A burguesia, durante o seu domnio de classe, apenas secular, criou foras produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as geraes passadas em conjunto. A subjugao das foras da natureza, as mquinas; a aplicao da qumica indstria e agricultura, a

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navegao a vapor, os caminhos de ferro, o telgrafo elctrico, a explorao de continentes inteiros, a canalizao dos rios, populaes inteiras brotando na terra como por encanto - que sculo anterior teria suspeitado que semelhantes foras produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social? (Karl Marx Manifesto Comunista 1848)

Este xito, porm, no foi isento de custos, como alis aconteceu em outras fases anteriores do desenvolvimento da Humanidade. No necessrio record-los no mbito deste trabalho, pois eles esto presentes na realidade fsica e psicolgica dos muitos milhes de seres humanos que sofrem diariamente a pobreza, a explorao, a humilhao e a insegurana perante o dia seguinte, e que tambm se encontram presentes em todos aqueles que, tendo embora relativamente assegurado o seu po dirio, sentem a sua dignidade humana e a sua segurana afectada pela condio dos primeiros. Esta posio Moral de Revolta e de Solidariedade tanto mais justificada quanto se conhecem tanto o beco sem sada em que o actual sistema socioeconmico est a colocar a Humanidade, como os potenciais de Conhecimento, Tecnolgicos, Organizacionais e de Inteligncias e Vontades de que esta dispe para superar positivamente a actual e perigosa situao. Por essa razo uma parte cada vez mais significativa da Humanidade considera que o Capitalismo deixou de constituir um sistema socioeconmico que possibilita o desenvolvimento geral da sociedade humana para se constituir num factor de condicionamento e entrave a esse desenvolvimento, e luta hoje por um novo sistema social mais adequado s necessidades do nosso tempo. Apesar do Capitalismo, enquanto modelo de sociedade humana (econmico, poltico, social e cultural) dar mostras de se encontrar hoje a caminho do esgotamento enquanto sistema hegemnico escala mundial, criando mais e mais graves problemas sociais e ambientais do que aqueles que resolve e estando a encaminhar a Humanidade para situaes potencialmente catastrficas, o modo de produo baseado no estmulo individual pelo lucro e numa ordem hierrquica rigorosa no plano empresarial continua vlido e como melhor opo em muitos domnios da produo material e dos servios, tanto em pases desenvolvidos como, especialmente, em muitos pases menos desenvolvidos. O exemplo de Cuba, onde foi implantado um modelo Socialista profundamente humanista, democrtico e igualitrio, mostra bem que, independentemente do bloqueio econmico norte-americano e da presso subversiva a que tem sido continuadamente submetido, esses factores positivos no foram suficientes para mobilizar os cidados para o ptimo aproveitamento dos recursos naturais do pas nem para a

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obteno das mais elevadas produtividades do trabalho social. Por isso, o respectivo governo procura agora proceder a reformas no sistema, no sentido da restaurao parcial das relaes capitalistas de produo, que permitam mobilizar os cidados, atravs da restaurao do estmulo individual pelo lucro e da auto-responsabilizao pelos seus padres materiais de vida. Muitos outros pases subdesenvolvidos, apesar de terem conquistado a sua independncia poltica dos antigos imprios coloniais, mantm-se hoje numa situao de to grande dependncia poltica do imperialismo e de atraso econmico e social que s revolues libertadoras democrticas que favoream o rpido desenvolvimento das foras produtivas podero superar. Mesmo que essas revolues libertadoras sejam desencadeadas com consignas socialistas de justia social e sejam promovidas por revolucionrios socialistas, acabaro por ter de desenvolver um poderoso e hegemnico sector capitalista e a correspondente burguesia nacional para vencer os seus atrasos seculares. Por isso, a luta pelo Socialismo (ou pela Sociedade do Viver Bem) no dever adoptar o anti-capitalismo como palavra de ordem, pelas mesmas razes porque no dever adoptar o anti-caa e recoleco, o anti-religio ou qualquer outro anti relativamente a qualquer aspecto da vida social dos povos a que estes reconheam validade na resoluo das suas necessidades materiais ou espirituais.

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CAPTULO 4 Porqu no Anti-Globalizao?Do mesmo modo, no faz qualquer sentido uma luta centrada na antiglobalizao.Pela explorao do mercado mundial, a burguesia imprime um carcter cosmopolita produo e ao consumo em todos os pases. Para desespero dos reaccionrios, ela retirou indstria a sua base nacional. As velhas indstrias nacionais foram destrudas e continuam a s-lo diariamente. So suplantadas por novas indstrias, cuja introduo se torna uma questo vital para todas as naes civilizadas, indstrias que no empregam mais matrias-primas autctones, mas sim matriasprimas vindas das regies mais distantes, cujos produtos se consomem no somente no prprio pais mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, nascem novas necessidades que reclamam para sua satisfao os produtos das regies mais longnquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento de regies e naes que se bastavam a si prprias, desenvolve-se um intercmbio universal, uma universal interdependncia das naes. E isto se refere tanto produo material quanto produo intelectual. As criaes intelectuais de uma nao tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossveis; das inmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal. Devido ao rpido aperfeioamento dos instrumentos de produo e ao constante progresso dos meios de comunicao, a burguesia arrasta para a torrente de civilizao mesmo as naes mais brbaras. Os baixos preos dos seus produtos so a artilharia pesada que destri todas as muralhas da China e obriga a capitularem os brbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as naes a adoptarem o modo burgus de produo, constrangeas a abraar o que ela chama civilizao, isto , a tornarem-se burguesas. Numa palavra, cria um mundo sua imagem e semelhana. (Karl Marx Manifesto Comunista 1848)

Como se poder verificar pelo texto acima transcrito, a globalizao no um fenmeno novo ou perverso do Capitalismo, surgido na sua fase designada como neoliberal, mas sim uma lei intrnseca ao mesmo sistema, no sentido da realizao da sua misso histrica de criar a base objectiva, econmica, de unificao do mundo. O fenmeno a que hoje se chama Globalizao constitui a terceira onda de um longo processo de integrao escala planetria das sociedades humanas numa nica Sociedade Humana Global, a qual se seguiu primeira onda verificada no perodo das descobertas europeias a partir

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dos sculos XV e XVI, e segunda onda, verificada no sculo XIX, de partilha do mundo em imprios coloniais. Como Fidel Castro ter afirmado em 1998 em Genebra, "Gritar Abaixo a globalizao! como gritar Abaixo a lei da gravidade! " A novidade do processo de globalizao que ocorreu nos ltimos vinte anos consiste em, nesse perodo, se ter verificado a financeirizao e desterritorializao do capital, se ter verificado a implantao de uma nova ordem mundial caracterizada pela hegemonia global do grande capital internacional e do poder poltico-militar dos EUA, e ter ocorrido uma extraordinria revoluo tecnolgica na informtica e nas telecomunicaes, que permitiu a integrao das suas operaes escala mundial e tornou o fenmeno mais evidente aos olhos dos cidados. luz dos interesses dos povos e do proletariado, o aspecto mais gravoso da actual onda globalizadora no foi econmico mas sim poltico: a perda de controlo democrtico sobre os processos econmicos globais e nacionais. No plano meramente econmico, esta fase de globalizao permitiu uma maior distribuio das actividades econmicas pelo planeta e integrou na economia mundial muitos milhes de seres humanos em vrios continentes, especialmente na sia. Se bem que essa redistribuio de actividades pelo mundo tenha suscitado uma maior concorrncia mundial e produzido um abaixamento geral dos salrios nos pases mais desenvolvidos, muitos dos factores que conduziram forte reduo dos padres de vida dos trabalhadores e ao aumento das desigualdades foram de natureza poltica, resultantes da radical alterao da correlao de foras mundiais a favor do imperialismo em consequncia da derrocada da URSS. Na sequncia dessa derrocada, salvo a China (e a Coreia do Norte dela dependente), o Vietname e Cuba, quase todos os outros pases do mundo, mais ou menos centrais ou perifricos, tiveram de aceitar as novas condies que lhes foram impostas pelo grande capital internacional e as potncias imperialistas, perdendo, de facto, as suas soberanias poltica e econmica, os espaos de manobra e capacidade reivindicativa que a anterior ordem mundial, baseada na existncia de vrios mundos e na ONU, lhe garantiam. A nova ordem mundial da decorrente, dirigida de facto pelo grande capital internacional e executada pelos governos do cartel dos G7/8, fez reduzir substancialmente os contedos decisrios dos Estados nacionais em cujo quadro os povos e os trabalhadores haviam obtido numerosas conquistas democrticas e sociais, tornando essas conquistas inconsequentes nos domnios fundamentais (possibilidade de polticas independentes, desenvolvimento econmico, polticas sociais, etc.)

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A onda neo-colonizadora que se abateu sobre o mundo a partir dessa nova ordem internacional e que abrangeu tanto pases j desenvolvidos, como os em desenvolvimento e sub-desenvolvidos, foi acompanhada com a instalao e o suporte a governos dependentes, retirando assim a estes pases a possibilidade de um desenvolvimento independente do grande capital internacional e das grandes potncias imperialistas, colocando os seus recursos naturais, humanos e infraestruturas disposio e na dependncia da economia mundializada. Perante as consequncias sociais dessa onda neo-colonizadora e o esvaziamento de competncias e de recursos de grande parte dos Estados nacionais, ser justo que os povos e os trabalhadores se oponham a muitos traos da actual fase de integrao mundial, que reivindiquem a sua re-libertao nacional e uma ordem democrtica mundial, que se oponham pauperizao, privatizao e servilismo dos seus Estados nacionais face ao grande capital, no sentido de que a integrao mundial se processe a favor do desenvolvimento harmonioso de todos os povos. Os socialistas no tm, portanto, de se opor Globalizao enquanto processo integrador de todos os povos do mundo, mas sim contrapor Globalizao Capitalista, espoliadora das conquistas democrticas dos povos e polarizadora da riqueza e das sociedades, o seu prprio projecto integrador, Democrtico, Cooperativo, Solidrio e Sustentvel.

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CAPTULO 5 O Proletariado continua a ser a classe revolucionria que promover a transio para o Socialismo?Haver que recordar a seguinte definio de Engels:o proletariado a classe da sociedade que retira a sua subsistncia unicamente da venda do seu trabalho e no do lucro de um capital qualquer; a classe cujo bem-estar, cuja vida e cuja morte, cuja existncia toda depende da existncia de emprego, quer dizer, da alternncia de bons e maus perodos de negcios, das flutuaes de uma concorrncia desenfreada. O proletariado ou a classe dos proletrios , numa palavra, a classe trabalhadora do capitalismo do sc. XIX.

Com base na anlise dos processos do seu tempo, Marx e Engels, prognosticaram uma rpida e quase completa proletarizao das sociedades capitalistas de que resultaria a sua polarizao num muito minoritrio plo burgus e num bloco largamente maioritrio, proletrio. Esta simplicidade sociolgica, que moldou em muitos aspectos o projecto social na URSS, no se verificou durante o processo de desenvolvimento do capitalismo, nem escala nacional nem escala global. As sociedades capitalistas desenvolvidas so, hoje, muito complexas e diversificadas do que seria imaginvel por Marx. Vrias razes contriburam para esse efeito, entre as quais: - O facto de ao capitalismo, por motivos de acumulao, no interessarem sociedades fortemente proletarizadas, preferindo, em seu lugar, explorar semi-proletrios com aptides similares e outras fontes de rendimento, para alm do salrio proletrio, que permitam a reproduo dos agregados familiares; O processo de deslocalizao inter-continental das unidades produtivas a que hoje se assiste corresponde, escala planetria, aos processos similares j anteriormente verificados nos mbitos intra-continental e nacional com finalidade idntica; - O constante desenvolvimento tecnolgico, o qual tende a fazer diminuir relativamente o contingente do proletariado aplicado directamente na produo e altera substancialmente a sua tipologia e estrutura interna; - O facto de se ter mantido, a par das grandes corporaes capitalistas, um significativo numero de pequenos e mdios proprietrios, camponeses, empresrios, profissionais liberais e trabalhadores independentes que cumprem funes na dependncia do grande capital ou em sectores socialmente teis mas mantidos fora das prioridades de explorao pela grande burguesia; mais

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- O facto de tender a crescer substancialmente o nmero de cidados excludos dos processos de produo e gesto social, considerados inactivos, onde se englobam os reformados, os desempregados e dependentes, bem como a imensa massa de jovens estudantes que, por efeito do aumento do tempo de escolaridade, prolongam esta condio j pela sua vida adulta. - Cresce, por outro lado, em consequncia da mobilidade profissional e da precariedade laboral, o nmero de proletrios que alternam ao longo da vida esta condio com outras actividades no proletrias, com reflexos na respectiva conscincia social. - Numerosos proletrios mais qualificados so possuidores de aces em empresas e beneficiam de aplicaes financeiras pessoais ou atravs de fundos de penses, como resultado de medidas de capitalismo popular. - Verificou-se um crescimento significativo e complexificao dos aparelhos do Estado burgus em muitos pases centrais, designadamente no perodo do Estado-social, tendo aumentado bastante o nmero de trabalhadores e funcionrios pblicos, os quais, sendo embora globalmente proletrios, exercem uma funo dual na sociedade, de servio cidadania e de servio s cla