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SOCIABILIDADES em ônibus urbano JOSÉ ALCÂNTARA JR SÃO PAULO - 2010

SOCIABILIDADES em ônibus urbano - gepfs.ufma.br · Departamento de Sociologia e Antropologia quando da liberação para o Doutorado na ... ligando a Avenida Paulista o bairro de

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SOCIABILIDADES em ônibus urbano

J OSÉ ALCÂNTARA J R

SÃO PAULO - 2010

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ÍNDICE

PREFÁCIO...................................................................................................................

INTRODUÇÃO............................................................................................................

PRIMEIRO CAPÍTULO

OBSERVAÇÕES E INDICADORES SOCIAIS DOS PASSAGEIROS DE ÔNIBUS

1.1. INTRODUÇÃO...............................................................................................

1.2. INTRODUÇÃO CONCEITUAL DA MOBILIDADE URBANA.................

1.3. PERCURSO HISTÓRICO DOS PASSAGEIROS URBANOS...........................

SEGUNDO CAPÍTULO

ELEMENTOS MICROSSOCIOLÓGICOS DA VIAGEM DE ÔNIBUS URBANO

2.1. INTRODUÇÃO....................................................................................................

2.1.1. DESCRIÇÃO DA LINHA DE ÔNIBUS....................................................

2.1.2. DESCRIÇÃO DOS PONTOS DE ÔNIBUS......................................................

2.1.3. DESCRIÇÃO EXTERIOR E INTERIOR DO ÔNIBUS...................................

2.1.3.1. INSCRIÇÕES SOCIAIS URBANAS.................................................

2.1.3.2. CENAS SOCIAIS NO ÔNIBUS.................................................

2.1.4. DESCRIÇÃO DOS PASSAGEIROS DE ÔNIBUS.........................................

2.1.5. DESCRIÇÃO DOS MOMENTOS SOCIAIS NO PERCURSO........................

2.2.1. DESCRIÇÃO DOS TRABALHADORES DE ÔNIBUS..................................

TERCEIRO CAPÍTULO

SOCIABILIDADE DOS PASSAGEIROS DE ÔNIBUS 3.1. INTRODUÇÃO

3.2. SOCIABILIDADE E SOLIDARIEDADE......................................................

3.3. SOCIABILIDADE, CONVERSAS E OLHARES.............................................

3.4. SOCIABILIDADES E LICENCIOSIDADE........................................................

3.5. SOCIABILIDADE E CONFLITOS.....................................................................

3. CONCLUSÃO...................................................................................................................

4. REFERÊNCIAS................................................................................................................

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In Memoriam

Maria Lucivalda Pinto Alcântara (1927-2007) e

Marcia Regina da Costa (194?-2007)

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PREFÁCIO O presente livro trata da questão da sociabilidade dos passageiros de ônibus na

cidade de São Paulo, SP. Ele é fruto de uma tese doutoral defendido em outubro de 2001,

junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Marcia Regina da Costa. O objeto de

estudo centrou-se nas formas e nas expressões de sociabilidades nesse equipamento de

consumo coletivo e, assim, uma reflexão sobre as condições de convivências nesse

equipamento coletivo: o ônibus urbano de uma cidade brasileira. As referências empíricas foram colhidas nos anos noventa e nos primeiros anos

dessa década. Mas, quando dessa revisão verifiquei a desativação da referida linha de

ônibus no município de São Paulo. Mesmo assim, mantive o tempo verbal da escrita do

trabalho no presente. Na presente publicação fiz uma série de reparos e emendas no texto

original e, colaborações apresentadas por alguns dos membros da banca. Talvez, o meu

retorno à São Paulo, tenha contribuído com a revisão desse trabalho que, se torna. A

maturação do tempo possibilitou transformar essa colaboração para a reflexão e um resgate

da própria realidade fragmenta e desterritorializada que o transporte coletivo representa.

Esse livro foi projeto acalentado há muitos anos e, a sua realização deve-se a

amparos pessoais e institucionais, sustentáculos de vital importância para tal empreitada.

No lado formal agradeceria à Universidade Federal do Maranhão, especialmente, ao

Departamento de Sociologia e Antropologia quando da liberação para o Doutorado na

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no período de 1997-2001, com auxílio

financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior–CAPES -,

um momento impar e, quando da liberação para o Estágio Pós-Doutoral, nesse ano de

2010, quando tive uma excelente acolhida na Universidade de São Paulo, com o apoio da

Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico do Estado do

Maranhão - FAPEMA. Foram dois momentos intelectuais vitais para o pesquisador.

Esse trabalho é dedicado à minha mãe e à minha orientadora: mulheres de alta

sensibilidade. Gostaria de agradecer aos professores da PUCSP que, direta e indiretamente

auxiliaram-me na fase do doutoramento. Aos membros da banca, em especial, a Profa. Dra

Dorothea Voegeli Passeti e César Barreira.

Quando da fase do Pós-Doc, momento de revisão, sou grato aos professores do

Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, em especial, ao colega e

supervisor Leopoldo Waizbort que, sempre foi um estimulador do meu trabalho.

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Agradeceria aos amigos, colegas e familiares, em especial, Laura Tey, Fernando

Magalhães, ao Josiel, ao Francisco José e Cibele, Francisco Frazão, Tânia Costa, Ed e

Sérgio Mamberti, Ieda, às colegas e amigas Sandra Nascimento – a madrinha do livro -, e

Irlys Barreira pela força material e espiritual, ao meu irmão Paulo Pinto pelas palavras de

incentivo.

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INTRODUÇÃO

O presente livro faz uma reflexão sobre as expressões de sociabilidade1

A investigação fez um recorte de um microespaço público – o pequeno universo

social moldado espacialmente nesse equipamento móvel urbano –, no qual se assenta o

pressuposto básico da reflexão. Nesses microespaços públicos se reproduziriam traços

sociais médios oriundos das dimensões macrossociais: nas viagens de ônibus, os padrões

socialmente constituídos ecoariam nos passageiros, construindo vínculos sociais urbanos.

dos

passageiros de ônibus na Capital do Estado de São Paulo. Desse equipamento coletivo

usado para a mobilidade intraurbana foram extraídos os quadros sociais considerados nesta

análise social.

O universo averiguado – o ônibus urbano – é parte do Sistema de Transporte

Coletivo (STC) do município de São Paulo/SP. As referências empíricas trabalhadas – nos

capítulos específicos – foram encontradas nos momentos dos passageiros em pontos de

paradas e nas viagens de ônibus da mesma cidade. Sobre os microquadros sociais dos

passageiros de ônibus – humildes cenas compulsórias –, lancei olhar microssociológico

para descrever e analisar os seus momentos rotineiros e ordinários.

A metodologia da investigação se compôs de um conjunto de procedimentos. O

primeiro foi ter-me constituído enquanto passageiro de ônibus da cidade paulista, durante o

período para a realização do programa de doutorado transcorrido entre os anos de 1997 a

2001. Durante a estada na cidade de São Paulo fiz o trabalho de observação participante.

Cotidianamente acompanhava na imprensa escrita as reportagens sobre as condições dos

serviços de transportes coletivos oferecidas à população. Posteriormente, levantei

informações, dados e estatísticas sobre o Sistema de Transportes Coletivos (STC) da

capital paulista junto à São Paulo Transportes – SPTrans, órgão subordinado à Secretaria

Municipal de Transportes do Município de São Paulo. Com esses elementos sistematizei

inferências sobre a realidade da mobilidade nos ônibus urbanos sob a ótica do passageiro

dessa cidade.

Inicialmente, a pesquisa estava planejada para se realizar na cidade de São Luís, a

capital maranhense. Mas, por diversas restrições operacionais, fui obrigado a realizá-la na

cidade de São Paulo. Esse fato veio constituir-se em um desafio profissional para mim, na

medida em que teria de conhecer outra realidade citadina, no caso a paulistana, para fazer a

1 O conceito sociabilidade receberá tratamento no Capítulo Terceiro. Em princípio é uma dimensão referente à convivência social, o estar com os outros, contra os outros ou a favor deles.

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investigação; limitação superada quando parti para o trabalho de pesquisa do objeto de

estudo.

O ônibus urbano é um dos meios de locomoção mais utilizados e preponderantes do

sistema de transporte coletivo público em São Paulo. Assim, enquanto seu usuário, eu

mirava muitas pessoas: crianças, jovens, adultos e idosos, nos momentos circulatórios nas

viagens nesses veículos movidos a óleo diesel. A condição de usuário de ônibus urbano me

permitiu penetrar nesse cotidiano e identificar as questões sobre os passageiros; então,

desenvolvi o projeto de pesquisa com a descrição do cotidiano2

Os procedimentos do trabalho de campo foram estruturados em duas fases. A

primeira compreendeu o trabalho de observação livre em várias linhas de ônibus de São

Paulo. A segunda foi o trabalho de observação sistemático da linha investigada. Para

operacionalizar a primeira fase (livre), selecionei os principais corredores de tráfego da

cidade, os quais foram visitados em viagens para dimensionar o futuro trabalho de

observação sistemático de uma linha. Mensalmente comprei bilhetes de passagens em seus

pontos de venda. Observei os principais pontos e terminais de ônibus, tais como: Princesa

Isabel, Parque Dom Pedro II, Bandeira, Jabaquara, Cachoeirinha. Conheci e verifiquei

diversos percursos urbanos através das linhas de ônibus nas principais regiões da cidade.

As mesmas foram selecionadas de acordo com a localização geográfica, os critérios

adotados para conhecê-las foram os pontos cardeais – zonas norte, sul, leste e oeste – da

cidade, a fim de familiarizar-me com o conjunto do sistema de ônibus. Para tanto, comecei

a tomar ônibus nos principais corredores dessas zonas.

dos seus usuários.

O trabalho de observação livre em campo cobriu 8 (oito) linhas de um total de mais

de 800 (oitocentas), portanto observei aproximadamene 1% (um por cento), no município

de São Paulo.

Nas primeiras viagens gravava as observações. Procedimento muito chamativo – as

pessoas olhavam e perguntavam o objetivo da investigação –, foi logo descartado. Devido

a isso, passei a registrar as observações num Caderno de Memória dos ônibus. Com esse

instrumento, destacava as inferências dos passageiros e das viagens e logo as reescrevia em

um Diário de Campo. A adoção desse procedimento embasou-se em orientações teóricas

clássicas sobre trabalho de campo, o qual possui grande cabedal na tradição das Ciências

Sociais. Do clássico livro Argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski,

2 Aqui os termos cotidiano, rotina e dia-a-dia serão utilizados à luz da concepção desenvolvida por Ágnes Heller: “La vida cotidiana es el conjunto de actividades que caracterizan la reproducción de los hombres particulares, los cuales, a su vez, crean la posibilidad de la reproducción social”. (Heller, 1987: 19).

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apreendi os procedimentos fundamentais para desenvolver o trabalho de observação em

campo, os quais foram adequados à linha de ônibus do meio urbano. Dele levei em

consideração os seguintes aspectos metodológicos:

(...) Os resultados da pesquisa científica, em qualquer ramo do conhecimento humano, devem ser apresentados de maneira clara e absolutamente honesta. Ninguém sonharia em fazer uma contribuição às ciências físicas ou químicas sem apresentar um relato detalhado de todos os arranjos experimentais, uma descrição exata dos aparelhos utilizados, a maneira pela qual se conduziram as observações, o número de observações, o tempo a elas devotado e, finalmente, o grau de aproximação com que se realizou cada uma das medidas (grifos do autor).3

Dessa forma, adequei o recurso metodológico ao trabalho de campo urbano a partir

das características dinâmicas das linhas de ônibus. No trabalho de observação, na maioria

das vezes, entregava um cartão de apresentação da pesquisa, com a minha identificação e o

endereço da página eletrônica, aos motoristas, aos cobradores e aos passageiros que

contatava. Entretanto, os resultados foram pífios.

A escolha da linha de ônibus investigada levou em consideração a necessidade de

realizar diversas viagens e em diferentes horários, a fim de conhecer em profundidade o

universo a ser investigado na cidade de São Paulo. Os critérios metodológicos formulados

por Yves Winkin foram decisivos para proceder ao recorte empírico. Ele alerta quanto ao

critério das observações, as quais devem ser feitas de maneira constante. O teórico chama a

atenção para a escolha da própria amostra, nos seguintes aspectos:

(...) A cidade não é isso, não peguem os aspectos lúgubres, complicados, perigosos, há muito mais para se ver em outros lugares. (...) Quero que vocês utilizem lugares simples, comuns, porque eles vão revelar-se à análise terrivelmente complexos. Portanto, bares, restaurantes, estações, piscinas, igrejas, parques, tudo o que quiserem, contanto que se trate de lugares facilmente acessíveis, contanto, que vocês possam voltar ali tantas vezes quantas quiserem (Winkin, 1998: 133-134, grifos do autor).

Inicialmente, aventei a possibilidade de realizar o trabalho de campo numa linha

ligando a Avenida Paulista ao bairro de Brasilândia. A intenção era obter um quadro das

desigualdades sociais, já que este bairro se localiza na periferia noroeste de São Paulo e a

pesquisa observaria uma realidade contrastada entre o movimento dos trabalhadores de um

bairro periférico e a opulência edificada da zona sede do capital financeiro na cidade. Tal

seleção foi descartada.

3 Malinowski, 1978: 18.

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No Caderno de Memória do ônibus eu anotava as observações, impressões,

conversas captadas nos pontos de paradas e nas viagens em ônibus. Procedimento para um

registro discreto sobre as viagens e, logo mais, transcrito no Diário de Campo.

Sempre definia um objetivo às sessões de observação das linhas de ônibus. Quando

embarcava nos veículos, procurava uma boa localização no interior dos autos e nos pontos

de parada para realizar as anotações instantâneas. A boa localização deveria permitir

observar embarque, desembarque, o interior do veículo etc. Em alguns momentos tive que

driblar a trepidação do veículo, um dos empecilhos às boas anotações. Os contatos verbais

com os passageiros e os trabalhadores foram os meios empregados nas sessões de

observação. Sempre reservava tempo, antes das partidas dos veículos, para dialogar com

trabalhadores e passageiros. Não identifiquei nenhum dos entrevistados, nem passageiros

nem trabalhadores, fossem motoristas, cobradores ou fiscais. A solicitação era feita pelos

próprios informantes; um dos trabalhadores me pediu que seu nome não fosse mencionado:

“– Não põe o meu nome no relatório já que isto pode me prejudicar!”.

Respondi-lhe que o segredo seria mantido, por dever ético do ofício de coletor de

opiniões junto à população. Dessa forma, os nomes não foram mencionados. Alguns desses

trabalhadores atribuíam a realização da pesquisa ao ano eleitoral.

O Diário de Campo ocupou a função de um prontuário. Ele se constituiu em

instrumento dos registros dos diversos ritmos dos momentos dos passageiros e das viagens

de ônibus. Bronislaw Malinowski atribui ao Diário de Campo a seguinte avaliação,

recomendando a utilização do mesmo:

(...) O diário etnográfico, feito sistematicamente no curso dos trabalhos num distrito, é o instrumento ideal para este tipo de estudo. E se, paralelamente ao registro de fatos normais e típicos, fizermos também o registro dos fatos que representam ligeiros ou acentuados desvios da norma, estaremos perfeitamente habilitados a determinar os dois extremos da escala da normalidade (Malinowski, 1978: 31, grifo do autor).

O habitual e o excepcional desses momentos transitivos foram anotados e descritos

nas páginas do Diário de Campo. O sociólogo Charles Wright Mills (1975: 211-243) é

outro a atribuir importância para a adoção desse instrumento de registros, imprescindível à

vida do pesquisador profissional. Nele foram transcritas as principais observações,

impressões, inferências, procedimentos e ações colhidas no calor das viagens e nos pontos

de ônibus. As mais de quatro dezenas de viagens na linha pesquisada foram anotadas –

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procedimento fornecedor dos elementos da microssociologia ou etnográficos do objeto de

estudo.

Nas primeiras observações, nesses momentos urbanos, senti a impressão destacada

por Winkin: “A primeira dificuldade que surge no trabalho de campo é a constatação: ‘Mas

não estou vendo nada!’” (Winkin, 1999: 141). Porém, paulatinamente, essa limitação foi

superada com as constantes leituras do Diário de Campo – procedimento a se constituir no

próprio processo de reflexão sistemático da realidade investigada. Essa técnica veio abrir a

possibilidade para visualizar o ambiente da viagem de um passageiro de ônibus como parte

de um microcosmo social. Na caixa metálica do ônibus reproduz-se um eco social: ressoam

nesse espaço público as características sociais institucionais; ele espelharia traços da

macrorrealidade da sociedade. Dessas características destaquei os seus pequenos traços

sociais. O olhar microscópico lançado e circunscrito sobre o seu interior revelou-nos

alguns componentes do todo social, naqueles momentos regulares dos moradores de uma

cidade em sua condição de passageiros de ônibus. E, assim, veio a se transformar em uma

base “documental” a respeito desses momentos gestados nos movimentos no interior desse

equipamento técnico e circunvizinhos a ele; ao garantir a reunião dos fatos garimpados e

material necessário ao estudo desta realidade circulante. Os passageiros de ônibus foram

observados nos instantes das suas movimentações, depois garimpei as impressões dos

microfatos sociais das suas viagens intraurbanas, depreendendo e descrevendo os traços

sociais configurados nessa realidade. “A segunda função do diário é empírica. Nele vocês

anotarão tudo o que chamar a sua atenção durante as sessões de observação.” (Winkin,

1998: 138). Dessa forma, o diário possibilitou colecionar e configurar os fatos destacados

nas sessões de observação nessa realidade.

A terceira função do diário é reflexiva e analítica. (...) Aos poucos, verão surgirem regularidades, que os americanos chamam de patternes e nós tentamos traduzir por configurações. São recorrências comportamentais que nos levam a falar em termos de regras, quando não em termos de códigos. Na verdade, trata-se de impressões de regularidades, às claras ou em filigrana (coisas que não aparecem são talvez tão importantes quanto as que aparecem). Quando escreverem seu relatório final, retomarão esses surgimentos de “regras” para propor enunciados de natureza generalizante (Winkin, 1998: 139).

A análise do relatório do Diário de Campo revelou as principais configurações e

regularidades sobre os passageiros e a linha de ônibus. Constituiu uma base material para a

reflexão sobre os acontecimentos da realidade investigados, um meio instrumental para a

sistematização dessas regularidades de trânsito. Dotado desses procedimentos

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metodológicos, parti para as primeiras viagens nas linhas de ônibus, ainda que

consideradas como a fase de observação livre.

A primeira observação livre para reconhecimento foi na linha de ônibus Cidade

Tiradentes – Terminal Parque Dom Pedro II4

Num trajeto urbano a observação sobre a qualidade da tipologia das habitações da

cidade pode ser avaliada. Em viagem da zona central da cidade à zona leste, forma-se um

gradiente sobre a tipologia das edificações. Na zona central prevalece a robustez das

construções, mas, quando nos aproximamos dos bairros periféricos, a simplicidade na

qualidade das habitações se configura numa sequência decrescente.

ou 3538, no veículo nº 10.513, fabricado pela

Volvo, modelo Caio/Alpha, da Empresa VCT, na zona leste. O destaque foi a “fila” de

passageiros do ônibus. Essa forma de organização social é legitimada pelo viés da

racionalidade e adotada como procedimento de acesso ao interior dos veículos. Ela é

formada pelo perfilar dos passageiros localizados na proximidade do local de embarque do

Terminal. Ao observá-los, poderíamos estratificá-los a partir das suas roupas simples e

leves. Os vestuários se revelam traços identificadores das diferenciações sociais dessas

pessoas circulantes. Observei os passageiros e os seus pertences: eles carregam consigo

sacolas, sacos plásticos, bolsas, pastas, caixas e pacotes. Situação bastante inconveniente

para sua acomodação no interior do ônibus: nas mãos estão os objetos transportados, e nos

movimentos entre o emaranhado de pessoas acentuam-se as dificuldades de se

acomodarem. Os problemas ergonômicos são verificados, tanto dos que viajam sentados

como nos que estão em pé. Há constrangimentos corporais nas condições de acomodação:

pés sobre pés, cotoveladas, aspiração de maus odores das axilas e de flatulências.

Entretanto, essa situação é remediada pelas pequenas manifestações de solidariedade,

como, por exemplo, dos passageiros sentados que, às vezes, se dispõem a conduzir no seu

colo os pertences daqueles viajantes em pé. Nessas primeiras observações livres, verifiquei

o sofrimento de passageiros idosos e de crianças. Outra observação preliminar foi a

confirmação de haver passageiros sonolentos, situação postural muito comum em outras

linhas de ônibus dessa cidade. O sono é desafiado pelo alto ruído dos motores dos veículos

e pelos demais circunvizinhos, contudo a atmosfera ambiental sonora desconfortável não

impede tal situação. Alguns passageiros tentam conversar assuntos diversificados, mas há

grande dificuldade na audição das falas e nas conversas transcorridas no interior do

veículo.

4 Trajeto não transcrito.

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A segunda linha visitada foi Jaçanã – Butantã/USP5 ou 701U, na zona norte. Nessa

viagem havia um motivo nostálgico: visitar a famosa Estação de trem localizada no bairro,

mencionada na música de Adoniran Barbosa. Para minha decepção, ela já havia sido

demolida. Nesse trajeto uma dimensão se sobrepôs: a fadiga produzida pela própria

viagem. Os veículos em viagens aos bairros distantes do Centro fazem grande quantidade

de manobras, tornando-as bastante cansativas. A terceira observação livre foi em uma

viagem matinal. Na viagem realizada no início da manhã na linha de ônibus Parque da

Lapa – Terminal Parque Dom Pedro II6

Na quarta viagem, efetuei observações livres na linha do bairro Cidade Ademar, na

zona sul, no ônibus Cidade Ademar – Largo do São Francisco

ou 8615, para a zona oeste, novamente encontrei

passageiros sonolentos. Regularmente se observam rostos de muitos passageiros

expressando o desejo de dormirem. Também durante as viagens pode-se assistir a

manifestações preconceituosas: no caso, reporto-me ao ato de repugnância manifestado

pelo cobrador e por alguns passageiros. Práticas antiprofissionais por parte dos

trabalhadores e preconceitos de passageiros.

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5 Trajeto não transcrito.

ou 513. Nela colhi

depoimentos dos cobradores e dos motoristas, dando conta da ocorrência de grande

quantidade de assaltos diários nessa linha. Esse é um fato social com grande repercussão

na sociabilidade dos passageiros – dimensão reportada no item específico sobre conflitos.

Nessa viagem constatei a desatualização dos roteiros das linhas: o letreiro do ônibus não

coincidia com o trajeto efetuado; devido a isso, fui parar na região denominada Vila

Filomena.

6 O seu funcionamento é, nos dias úteis, das 04h24 às 03h40; aos sábados, das 04h40 às 03h51; aos domingos e feriados, das 03h40 às 02h 29. O trajeto da linha é formado pelas seguintes vias de acesso na ida: Rua Kabul / Rua Arauto / Rua Teerã / Avenida Imperatriz Leopoldina / Rua Schilling / Rua Passo da Pátria / Rua Cordilheiras / Rua Racine / Rua Barão da Passagem / Rua Brig. Gavião Peixoto / Rua Barão de Jundiaí / Praça José Azevedo Antunes / Rua Clélia / Avenida Francisco Matarazzo / Avenida Gen. Olímpio da Silveira / Praça Mal. Deodoro / Avenida. São João / Largo do Arouche / Avenida. Dr. Vieira de Carvalho / Praça da República / Avenida São Luís / Rua Cel. Xavier de Toledo / Viaduto do Chá / Rua Libero Badaró / Largo São Francisco / Rua Benjamim Constant / Praça da Sé / Praça Dr. João Mendes / Rua Tabatinguera / Viaduto Trinta e Um de Março / Rua da Figueira / Viaduto Diário Popular / Terminal Parque D. Pedro II. Volta: Terminal Parque Dom Pedro II / Avenida Rangel Pestana / Rua Roberto Simonsen / Rua Venceslau Brás / Praça da Sé / Pátio do Colégio / Viaduto Boa Vista / Rua Boa Vista / Largo de São Bento / Rua Libero Badaró / Viaduto do Chá / Praça Ramos de Azevedo / R. Cons. Crispiniano / Largo do Paissandu / Avenida São João / Praça Mal. Deodoro / Avenida Gen. Olímpio da Silveira / Avenida Francisco Matarazzo / Rua Carlos Vicari / Praça Dos Inconfidentes / Rua Guaicurus / Praça Melvin Jones / Rua John Harrison / Rua D. João V / Rua Gago Coutinho / Avenida Mercedes / Rua Brig. Gavião Peixoto / Rua Belmonte / Rua Barão da Passagem / Rua Visconde de Pelotas / Rua Cordilheiras / Rua Schilling / Avenida Imperatriz Leopoldina / Rua Teerã / Rua Ibuguaçu / Rua Liceu / Rua Kabul. 7 Trajeto não transcrito.

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Na quinta viagem livre, observei a linha Brasilândia – Paraíso, 975A8

Na sexta observação livre, percorri o corredor Leste e Oeste. Fui da Penha à Lapa.

Para tanto, tomei o Penha – Lapa ou 208 A

, que serve os

bairros Brasilândia, na zona noroeste, e Paraíso, nas cercanias da Avenida Paulista. Ela

desloca, do bairro periférico ao polo financeiro, grande contingente de passageiros

trabalhadores do setor de serviços e de comerciários, que labutam no espigão da Paulista.

Essa linha foi a cogitada para ser a amostra do trabalho de campo, mas tal ideia, como já

dito, foi desmontada, pois exigiria uma infraestrutura de escritório. Na medida em que era

quase inacessível e inviabilizada em termos financeiros, e também por causa da atmosfera

de violência verificada no período, o trabalho se mostrava impossível em tal linha;

portanto, ela desestimulava a operação de campo.

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A sétima linha de ônibus selecionada foi no sentido norte-sul, o Pedra Branca-

Butantã-USP ou 117P, que parte das imediações da Serra da Cantareira até o Campus 01

da Universidade de São Paulo, no bairro do Butantã. Mais uma vez, constatei o quanto é

fatigante um trajeto de grande proporção.

, uma das linhas mais antigas de São Paulo. É

muito utilizada para cruzar a zona Central e, mais uma vez, constata-se a fadiga nas

viagens de ônibus.

O trabalho de observação livre encerrou-se com a linha Patriarca-Hospital das

Clínicas–8261, logo depois selecionada para o trabalho de observação sistemático. Ela será

apresentada com detalhes no capítulo específico, já que constituiu o universo da própria

investigação. Foi observada sistematicamente durante os meses de maio, junho, julho,

agosto e setembro de 2000. Nesses 4 (quatro) meses realizei 40 (quarenta) viagens nos

ônibus dessa linha. As sessões foram realizadas entre os primeiros e últimos horários de 8 O trajeto é definido pelo conjunto de vias assim especificado. Ida: Rua Eurides Bueno/Rua Parapuã / Rua Teixeira de Macedo / Rua São Feliciano / Rua Alberto Andalo / Avenida João Paulo I / Avenida Santa Marina / Avenida Nossa Senhora do Ó / Avenida Prof. Celestino Bourrou / Avenida Casa Verde / Rua D. Amaral Mousinho / Pça. Del. Amoroso Neto / Avenida Ordem e Progresso / Pte. do Limão / Avenida Ordem e Progresso / Pça. Luís Carlos Mesquita / Avenida Marquês de São Vicente / Avenida Abraão Ribeiro / Vd. Pacaembu / Avenida Pacaembu / Rua Cândido Espinheira / Rua Cardoso de Almeida / Rua Tácito de Almeida / Avenida Dr. Arnaldo / Vd. Okuhara Koel / Avenida Paulista / Pça. Osvaldo Cruz / Avenida Bernardino de Campos / Vd. Santa Generosa / Rua Correia Dias / Vd. Eng.º Antônio de Carvalho Aguiar / Rua Tomás Carvalho. Volta: Rua Tomás de Carvalho / Rua Des. Eliseu de Guilherme / Rua Afonso de Freitas / Avenida Bernardino de Campos / Pça. Osvaldo Cruz / Avenida Paulista / Complexo Viário / Avenida Dr. Arnaldo / Rua Cardoso de Almeida / Rua Turiaçu / Rua Traipu / Avenida Gen. Olímpio da Silveira / Rua Tupi / Rua Dr. Cândido Espinheiro / Avenida Pacaembu / Avenida Dr. Abraão Ribeiro / Rua Pe. Luís Alves de Siqueira / Rua James Holand / Avenida Marquês de São Vicente / Pça. Luís Carlos Mesquita / Avenida Ordem e Progresso / Pte. do Limão / acesso / Avenida Otaviano Alves de Lima / Avenida Prof. Celestino Bourrou / Avenida Nossa Senhora do Ó / Rua Bartolomeu do Canto / Avenida Inajá de Sousa / Rua Ribeiro de Morais / Rua Pascoal da Costa / Avenida Miguel Conejo / Avenida João Paulo I / Rua Alberto Andaio / Rua São Feliciano / Rua Teixeira de Macedo / Rua Parapuã / Rua Dr. Diogo Canteras Garcia / Pça. João Kaiser / Rua Euridice Bueno. 9 Trajeto não transcrito.

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funcionamento nos diversos períodos do dia e da noite, para abranger os trajetos no sentido

bairro-Centro e depois Centro-bairro. No capítulo específico descreverei as regularidades e

as configurações médias recolhidas durante o trabalho de campo sistemático.

Outro procedimento metodológico empregado foi o cotejamento de matérias

jornalísticas em um periódico local, no caso a Folha de S. Paulo. Desse jornal selecionei e

colecionei clippings com matérias das situações e momentos sobre os passageiros nos anos

de 1998, 1999 e 2000. Esse material auxiliar me forneceria critérios para a definição dos

roteiros a observar. Concomitantemente, selecionei trechos de textos literários de ficção e

letras de músicas que retratassem passageiros de ônibus: as figuras e seus momentos.

O presente livro foi subdividido em três capítulos. No primeiro, estão as primeiras

observações e referências sobre os passageiros de ônibus, e uma revisão referente aos

conceitos de troca, circulação e mobilidade urbana na Sociologia. No segundo capítulo, fiz

a descrição de uma linha, dos passageiros e dos trabalhadores de ônibus urbano da cidade

de São Paulo. No último capítulo, apresento uma reflexão sobre a sociabilidade, a partir da

identificação dos conflitos, da solidariedade, existentes nessa realidade móvel, e, por

último, discuto os critérios para a utilização dos fragmentos literários colecionados, com os

retratos escritos dos momentos de licenciosidade entre os passageiros.

Assim, um microcosmo social é apresentado e tipificado por meio da presente

análise das formas de sociabilidade prevalecentes nessa realidade cotidiana atual. Cumpre

buscar-se a compreensão das dificuldades e das limitações de um dos últimos espaços

públicos contemporâneos. Desse modo, essa discussão provoca uma reflexão necessária

sobre a naturalização dessas formas de convivências coletivas. Está em questão um

contexto social da realidade da população e de importância ímpar, havendo amplos

contingentes envolvidos sob as condições dos transportes. Portanto, busquei a perspectiva

sociológica como colaboração para o entendimento dessa dimensão assentada na vida

contemporânea.

Enfim, uma referência sobre uma dimensão invisível produzida pela rotina – uma

couraça da lógica da sociedade capitalista – é descrita a partir do dia-a-dia dos passageiros

de ônibus da cidade de São Paulo no fim do século passado, e quiçá ainda prevalecente

neste início de século.

Dessa maneira, a problemática sobre os transportes coletivos foi descrita e

analisada indo dos impactos ideológicos das tecnologias até às dimensões produzidas nas

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formas de sociabilidade encontradas nesse espaço público. Ao estudar essa condição de

importância social, verificamos a grande interferência sobre as condições de vida nos

meios coletivos das populações, quando da efetivação das suas interações sociais. As

contribuições de Georg Simmel foram de vital importância para a estruturação dos

princípios teóricos sociais. Ele foi o arcabouço do marco explicativo conceitual nesses

processos interativos – entre os indivíduos e a mobilidade urbana de uma cidade –, ao se

analisarem a cadência, a densidade e a qualidade de vida no ritmo metropolitano. É o que

se verá, logo mais, neste trabalho.

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PRIMEIRO CAPÍTULO OBSERVAÇÕES E INDICADORES SOCIAIS SOBRE PASSAGEIROS DE

ÔNIBUS 1.1. INTRODUÇÃO

Este é o capítulo de introdução geral da questão tratada ao longo de todo este

trabalho. Iniciarei com a apresentação do objeto desde o seu surgimento e as fases

seguintes do seu amadurecimento. Logo depois, faço uma reflexão de cunho teórico sobre

o passageiro e, por último, discorro sobre a trajetória dele na história da cidade de São

Paulo.

A investigação sobre passageiros de ônibus teve longa trajetória até se transformar

nesta análise social; eles foram observados em diversas fases pessoais: da infância à vida

profissional e, portanto, sua gênese se deu a partir de observações pessoais. Devido a esse

condicionante, apresentarei uma ponderação de Marc Augé (1998) sobre os significados

sociais que podem ser destacados nas viagens em transportes coletivos, e como essas

lembranças e impressões sociais se constituem em referenciais analíticos sobre os seus

usuários.

Segundo o teórico francês, as recordações sociais forjadas ao longo da vida social

são decorrentes e marcas que os moradores absorvem ao percorrerem cotidianamente o

ambiente urbano e, assim, elas seriam produtos e referências sociais. As convivências nos

pontos e nas viagens de ônibus imprimem marcas sociais sobre os moradores de uma

cidade. Isto é fecundado quando na condição de passageiro, ao se vivenciarem, nesse

equipamento público móvel, instantes de deslocamentos urbanos. Os passageiros de

transportes coletivos urbanos são transeuntes em vias públicas, os quais absorvem as

paisagens citadinas e as transformam em lembranças; o trafegar por entre ruas de uma

cidade permite-lhes descortinar e passar em revista a urbe, traçando “percursos sociais”

vislumbrados nesses trajetos; a cidade se transforma numa grande vitrine a céu aberto, a

qual é perfilada por olhares em constantes absorções visuais dos deslocamentos. Nessa

perspectiva, Marc Augé (1998) acrescenta alguns aspectos:

Si reflexiono un poco, ese territorio no es la simple suma de mis divagaciones y de mis recuerdos personales: es un recorrido social más bien, en gran medida determinado al principio por la voluntad de mis padres que procedia ella misma de outra historia, la de ellos, si puedo decirlo asi, pues es también un poco la mía y, por lo demás, se escapaba bastante a las decisiones que mis padres se esforzaban por tomar libremente; historia, como siempre, llegada de otra parte, marcada por sucesos que se llaman

19

históricos (porque quienes los viven están seguros de no ser los amos de ellos), y cuyo sabor sin embargo parece a cada uno de nosotros irremediablemente singular, a pesar de la trivialidad de las palabras con que se la cuenta, de las situaciones en que se enraiza y de los dramas que constituyen su trama, los cuales sin cesar amenazan con deshacerla (asi es la vida.). En suma, siempre hubo estaciones de metro en mi vida escolar, profesional y familiar; puedo dar cuenta de este “estado civil” con palabras precisas, un poco desencarnadas, de esas que se utilizan en un curriculum vitae10

.

As primeiras observações sobre os passageiros foram frutos das minhas vivências

nos transportes coletivos na cidade de Fortaleza, Ceará. Os percursos sociais dos

passageiros de ônibus foram resgatados através das lembranças da infância na minha

cidade natal até a fase adulta. As primeiras observações livres existenciais sobre eles foram

marcas sociais.

Nasci às cinco horas e meia de uma tarde de setembro, e, devido a esse horário,

talvez tenha inalado os primeiros ares com os gases carbônicos exalados pelos

escapamentos dos motores dos ônibus no tráfego em frente à minha casa na Rua Liberato

Barroso, no bairro Jacarecanga, em Fortaleza.

Na infância, nos anos sessenta, acompanhava minha mãe às compras no Centro

Comercial daquela cidade. Dessas viagens são minhas lembranças das condições

envolvendo uma viagem em ônibus. Nessas viagens na linha Jacarecanga, as crianças

sempre cediam lugar aos passageiros mais velhos que estivessem viajando em pé. Com

esse procedimento elas estavam credenciadas à gratuidade da passagem de ônibus. Dessa

mesma fase, recordo-me das conversas cotidianas dos vizinhos da minha casa com

comentários sobre as condições das viagens de ônibus; como também assisti apreensivo

aos movimentos de protestos dos estudantes secundaristas do Colégio Liceu do Ceará, em

1968. A minha Rua ficava nas proximidades do Liceu, como também do Corpo de

Bombeiros e, quando ocorriam manifestações contra os aumentos no preço das passagens

de ônibus, essas, muitas vezes, redundavam em espancamentos dos estudantes em fardas

de cor cáqui, por parte das forças policiais do Estado do Ceará.

Na juventude tomava ônibus ao dirigir-me ao meu colégio, e, assim, o assunto

continuava pauta familiar. No horário das refeições, alguém de casa sempre fazia

comentários sobre algum fato ocorrido na viagem de ônibus realizada naquele dia. Havia

menção a encontros pessoais ou apreciação sobre medidas administrativas que afetavam os

10 Augé, 1998: 14.

20

serviços de ônibus: majorações de preços das passagens ou outras medidas daquelas

empresas. Dessas longas viagens, rememoro as boas conversas no trajeto do bairro aos

locais educacionais. O ônibus era espaço social de trocas de ideias, de momentos, sinônimo

de interação social; e também de viagens juvenis nas quais verificávamos a existência de

momentos conflituosos entre os estudantes e os trabalhadores desse setor. Sofríamos com

constantes constrangimentos, quer pela falta de troco quando do pagamento das passagens

– retenção por parte do cobrador de fração monetária –, quer pela falta de atendimento ao

pedido de parada, ou atritos entre passageiros, dentre outros. Nos horários de pico, nas

viagens com ônibus lotados, verificava-se a falta de espaço para nos acomodarmos de

forma decente no interior daquelas carrocerias.

Cheguei a sofrer detenção policial. Numa viagem à noite verifiquei o acidente de um

jovem, que havia sofrido uma queda, ao tentar embarcar em nosso ônibus, e sangrava no

meio-fio de uma grande avenida de Fortaleza. Havia acabado de ser testemunha ocular de

tal acidente, portanto me manifestei contra a imprudência da manobra do nosso motorista

ao não esperar o embarque completo pela porta traseira e a falta de socorro ao cidadão.

Desse espaço público comecei a constatar o poder policial desses trabalhadores sobre os

passageiros: eles poderiam até viabilizar uma detenção policial.

A preocupação com o passageiro de ônibus foi responsabilidade profissional quando

estive na função de Assessor Comunitário junto à Superintendência Municipal de Obras e

Viação – SUMOV, instituição da Prefeitura Municipal de Fortaleza, entre os anos de 1986

até 1988. A problemática do transporte coletivo era grande parte das demandas cotidianas

das diversas entidades comunitárias junto à Assessoria Comunitária daquela Secretaria

Municipal. Os moradores dos bairros de Fortaleza se ressentiam dos péssimos serviços

prestados pelas empresas de ônibus. Eram calamitosas as condições de mobilidade urbana

para a maioria dos moradores da periferia da cidade. As obras civis necessárias nos

logradouros públicos constituíam as principais reivindicações dos moradores. Parte dessa

experiência profissional serviu para me introduzir e desenvolver uma reflexão quando se

transformou em pesquisa sociológica acadêmica11

11 Alcântara Jr., José. O conflito sobre rodas, dissertação (Programa de Pós-Graduação em Sociologia), Universidade Federal do Ceará, 1991. Orientadora: Irlys Alencar Firmo Barreto.

. A questão do ônibus urbano de

Fortaleza foi descrita e analisada sob os impactos dos vetores sociais advindos das forças

empresariais, trabalhistas, governamentais e dos passageiros. Um quadrilátero de forças

sociais, em conflito, produzia no cotidiano arranjos institucionais com consequências sobre

os serviços urbanos e na cidade como um todo. O ator social passageiro de ônibus é uma

21

categoria reflexiva muito incipiente no campo sociológico, mesmo em detrimento da sua

abrangência, já que a questão é socialmente relevante, ainda uma exclusividade da

engenharia de transporte. Dessa forma, o passageiro e viagem em ônibus necessitavam de

uma reflexão social; a produção bibliográfica sobre mobilidade urbana é preocupação de

alguns centros avançados de pesquisa do Brasil e no mundo. A investigação sistemática

sobre esse aspecto da vida urbana é um aspecto mais à frente tratado.

Nessa investigação, a categoria social de passageiro de ônibus foi destacada por

diversos aspectos. A sua condição é resultado de uma série de intervenções e, assim, um

complexo. Essa categoria social é produto de uma totalidade de fatores que lhe permitem

existir como ator social no meio urbano. Esse contexto social é matizado por diversas

ordens, responsáveis pelos inúmeros padrões de sociabilidade existentes em sua condição

social. Ao considerar esses pré-requisitos para a sua existência, apresentarei alguns desses

elementos aferidores de uma complexidade social.

Para os fluxos de pessoas na condição de passageiro de ônibus, fazem-se

necessárias uma série de operações regulares, constituídas por uma somatória de aspectos

sociais, econômicos, políticos, tecnológicos, legais, empresariais, administrativos etc.

Dessa forma, o conceito ‘fato social total’, de Marcel Mauss, pode ser um encaixe de sua

conceituação enquanto uma categoria analítica e um ator social. Conceitualmente, o

passageiro de ônibus urbano é um “indivíduo médio”, fruto de uma conjugação e

intervenção de fatores. Observemos o que nos traz o conceito de Mauss:

(...) Nesses fenômenos sociais “totais”, como nos propomos chamá-los, exprime-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas políticas e familiais ao mesmo tempo; econômicas – supondo formas particulares de produção e de consumo, ou antes, de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que manifestam essas instituições12

.

A contribuição conceitual de Marcel Mauss pode ser aplicada ao passageiro de

ônibus, quando contextualizado em algumas dimensões. Esse sujeito histórico se encontra

em um ambiente produzido pela técnica. As suas ações sociais são delimitadas pelo próprio

aparato tecnológico. Ele realiza suas operações nesse receptáculo técnico (o ônibus), e o

aspecto social – morador-transeunte-passageiro – se dá sob essa condição. Esse invólucro

tecnológico não é uma resultante técnica neutra; há uma série de intervenções de diversas

12 Mauss, 1974: 41.

22

concepções na natureza desse objeto. Nesse momento, vamos focar algumas interfaces

específicas para efeito de contextualizá-lo neste estudo.

Para tanto, relacionarei alguns desses contextos com referências empíricas de

microfatos sociais de sua constituição e realidade, as quais variam no tempo e no espaço

social em que esteja inserido. Uma delas é o valor de despesas financeiras com transporte

coletivo, grande peso no orçamento familiar. Consumir em média 1,51 salários mínimos

por mês – a referência é o ano de 1996 – do orçamento familiar na cidade de São Paulo13

Para dar nuances dessa condição, irei valer-me de uma descrição contida num

fragmento literário

é

fator financeiro interveniente nessa condição. Esse condicionante possibilita trafegar em

uma cidade.

14

É de noite, meu Deus, é de noite!

, o qual retrataria essa situação de limitação no deslocamento de uma

moradora. O estrato seguinte ilustra as estratégias e instantes ambíguos de apropriação

territorial em uma cidade, razão primeira para ser passageiro. A falta de dinheiro para

adquirir passagem é condição impeditiva de deslocamento espacial, fator econômico

percebido pela personagem como limitador. O macroeconômico entranha-se nas

preocupações da moradora fascinada com a paisagem deslumbrante da Cidade

Maravilhosa. Vejamos a narração do conto:

Puxa que aproveitei bem esta beleza de rua! Não se espanta de vê-la sumir engolfada na escuridão e no silêncio: a Avenida agora é sua, sua na carne, no sangue, nas retinas, na respiração – a Avenida indelével dentro de si.

Taí, tô no Rio – repete e a frase agora implica responsabilidades, providências, atitudes. Dalva-dos-Santos-sua-criada: adulta e capaz. Abre a bolsinha de couro preto esbranquiçado nas dobras, apanha o papel com o endereço da patroa, apalpa seu rico dinheirinho (não chega para a passagem de ônibus até o Leblon mas isso ela não sabe) e procura um guarda para pedir informações. Gloriosa, levitando apesar dos toscos sapatões de salto baixo – ilhazinha de felicidade na quietude noturna da Avenida deserta15

.

A narrativa emoldura a situação da personagem em sua restrição financeira, um

fator negativo para sua constituição enquanto passageira. A cidadã ansiosa não pode

desfrutar da cidade, nem chegar à casa destino sem o dinheiro na bolsa. Um percurso é

negado no seu destino.

13 http://www.ibge.gov. br/estatisticas/população/condiçãodevida/pof/tabla.htm. Pesquisa de Orçamento Familiar, p. 1/1. 14 Silva, 1965. 15 Silva, op. cit.: 52, 53 .

23

Outra referência empírica de cunho religioso pode ser relatada: a situação de

passageiros de ônibus em um país do Oriente Médio. As representações sociais decorrentes

de credos religiosos moldam esse pequeno espaço público. Neles conformam-se diversos

fatores e traços sociais de uma dada sociedade. Sua figura social é diretamente

condicionante. Tomar um ônibus ou embarcar nele requer procedimentos condicionados

por determinados contextos sociais específicos, como poderemos exemplificar:

As patrulhas agora estão menos ativas, mas isso não significa que há um clima de liberou geral. Casais continuam impedidos de sentar-se lado a lado nos ônibus, que são divididos em duas partes, de acordo com o sexo dos passageiros, como nas piscinas e nas praias, os parques e os restaurantes16

.

Em Teerã, capital do Irã, no interior desse móvel há uma seleção de gênero, e um

hábito social decorrente dos conceitos religiosos de uma dada sociedade. Um simples fato

de sentar num ônibus está sob a influência de determinada sociedade, o fato social é uma

precondição de uma nação muçulmana para poder permanecer nesse espaço público. Uma

demarcação de preceito socialmente construído, e norma socialmente sancionada nessa

sociedade. O ser passageiro pressupõe preceitos religiosos socialmente estabelecidos.

Nos Estados Unidos da América do Norte encontra-se uma referência sobre os

critérios comportamentais para determinados grupos de passageiros de ônibus. No início da

segunda metade do século XX, preconceitos raciais classificavam determinados usuários

de ônibus quando imposições raciais estratificavam as formas de apropriação nesse

veículo. Fato social cotidiano que serviu de estopim para ampliar as lutas

antissegregacionistas daquele país. No caso, refiro-me à microatitude empreendida por

uma das principais militantes contra o preconceito racial, no caso, Rosa Parks.

Num fim de tarde de dezembro, Rosa Parks tomou o ônibus para voltar para casa depois de um dia de trabalho exaustivo. Seus pés doíam. Era 1955, na cidade de Montgomery, Alabama. Quando o ônibus lotou, mandaram que ela, uma mulher negra, cedesse seu lugar a um passageiro branco. Mas ela permaneceu sentada. Essa simples decisão culminou com o fim da segregação institucionalizada no sul dos Estados Unidos, antecipando uma nova era do movimento pelos direitos civis.

As leis segregacionistas de Montgomery eram complexas: os negros precisavam pagar a passagem ao motorista, descer do ônibus e retornar pela porta traseira. Algumas vezes, o ônibus partia sem esperar que eles embarcassem. Caso os assentos destinados aos brancos estivessem tomados e mais um passageiro branco subisse, os negros deveriam ceder um lugar e deslocar-se

16 Barros, 1999: 69.

24

para a traseira do ônibus. Esse tipo de humilhação era ainda pior porque dois terços dos passageiros de ônibus de Montgomery eram negros17

.

Como descrito acima, recaía sobre os passageiros afrodescendentes uma

discriminação quando da utilização dos ônibus. Nesse quadro social a postura de segregar

definia uma micro-ordem social nesse tipo de transporte. O estilo de vida segregacionista

era um padrão social na convivência em um espaço público norte-americano.

Exemplos de discriminação baseados em critérios de desigualdades sociais foram

localizados na França, quando prefeitos de cidades que vivem do turismo tentaram proibir

a mendicância, e em Los Angeles procurou-se projetar bancos das paradas de ônibus de tal

forma que impedissem os “sem-teto” de neles dormirem durante a noite18

A categoria social passageiro de ônibus sofre os impactos dos condicionadores

sociais quando nas situações e interações momentâneas no tráfego urbano – uma dimensão

social representativa

.

19

Como já mencionado, nesse equipamento de consumo coletivo público,

desenvolvem-se pequenas formas de ações e relações sociais. Essas maneiras revelariam

características básicas empregadas nesse ambiente de sociabilidade

, a exigir uma compreensão social. É, ao mesmo tempo, uma amostra

representativa recheada e carregada de conteúdos sociais necessitando de elucidação

social. A sua compreensão sociológica, um fato social, requer destacá-lo a partir das

regularidades nos instantes sociais constitutivos quando nas locomoções em uma cidade, e

aqui os procedimentos microssociológicos descreveram esses modos sociais dos

passageiros nesses momentos cotidianos.

20

(...) A noção de equipamento coletivo ultrapassa, com efeito, a esfera unicamente do consumo, na medida em que designa um conjunto de valores de uso onde encontramos, ao mesmo tempo, meios de produção, ou suporte da circulação e da troca, e meios de consumo. Esta distinção é, no entanto fundamentalmente, do ponto de vista econômico e sociológico, pois se é verdade que os equipamentos coletivos vinculados à produção e à circulação participam do movimento geral de socialização, eles devem ser analisados dentro da esfera onde produzem seus efeitos concretos.

; microfacetas de

pequenos acontecimentos sociais condicionadores das convivências enquanto usuários; e

um palco a apresentar peculiaridade derivada dessa convivência comum. Eduardo

Preteicelle apresenta uma dimensão sociológica a respeito dos espaços coletivos de

consumo, e que o ônibus também representaria essa condição social:

17 Revista Time, de 10 de junho de 1999, nº 23, p. 14. 18 Costa, 1999: 238. 19 Augé, 1994: 18. 20 O conceito sociabilidade será tratado de forma aprofundada no capítulo terceiro deste livro.

25

E, embora produção e consumo estejam vinculados, seria, evidentemente, cair numa total confusão não se distinguir processo de produção e processo de consumo, meios sociais de produção e meios sociais de consumo21

.

Os passageiros conjuntamente, no interior do ônibus, reproduzem expressões

qualitativas nas formas de adequações sociais nesse espaço coletivo. Os modos de se

proceder no interior do veículo revelam maneiras qualitativas de apropriação do mesmo.

Quando as pessoas ficam juntas ao mesmo tempo no ônibus, esse espaço público limita os

seus procedimentos, expressos nas sociabilidades das formas de interação e relações

sociais nesse invólucro técnico-cultural. Os traços sociológicos nessas formas de

agrupamento social permitem-nos uma leitura das suas regularidades reproduzidas nessa

forma coletiva e social.

Em Paris, França, existe uma frase-resumo do cotidiano dos seus habitantes:

“Dormir, trabalhar e metrô”. A partir dessa assertiva, pode-se afirmar ser situação ordinária

o momento de um habitante no transporte. Para Augé, o momento no transporte é parte

componente da vida social das urbes. Vejamos: “Metro, trabajo, sueño: sólo una ironía un

poco perezosa podría tomar esta secuencia como un símbolo de la alienación moderna”22

A título de comparação, diria ser o passageiro ou o transeunte no tráfego urbano um

átomo da mobilidade urbana; para a sua localização analítica, veio a microssociologia

como procedimento revelador dessas formas sociais. O universo relacional do passageiro

se encontra na questão da mobilidade urbana

.

Parte do dia é consumida pelos passageiros nos ônibus: das vinte e quatro horas, dividindo-

as em oito horas para o sono, oito para o trabalho e oito para o lazer, verificaremos serem

os momentos em transportes uma fração significativa nessa sequência social. Ocupam um

tempo bastante significativo na rotina dos habitantes de uma cidade.

23

21 Preteicelle, 1983: 42.

, a qual requererá interpretação social sobre

as dimensões emolduradas nessas convivências sociais, na medida em que a situação dele é

construída por uma série de pequenas formas de condutas, e uma questão social explosiva

nas grandes cidades do Brasil. Descrevo o ângulo interior desse equipamento de consumo

público para situar e salientar as limitações dos momentos desses indivíduos sociais

médios.

22 Augé, 1998: 115. 23 Aqui, a definição de Mobilidade Urbana – formulada pelo Ministério das Cidades – é incorporada: “(...) a interação dos deslocamentos de pessoas e bens com a cidade. Os transportes urbanos definidos como meios e serviços utilizados para o deslocamento de pessoas e bens na cidade. (...) O Sistema de Mobilidade Urbana é definido como o conjunto organizado e coordenado, física e operacionalmente, dos meios, serviços e infraestruturas, que garante os deslocamentos de pessoas e bens na cidade”. (Brasil, 2006: 16).

26

Entretanto, esse pequeno quadro social localiza-se espacialmente na realidade da

circulação urbana. A trajetória vivida pelo passageiro é um acontecimento sob a cadência

do trânsito de uma cidade. Os transportes estão em constantes movimentações

proporcionadas pela velocidade. Para Paul Virilio, a mobilidade urbana é uma das

caricaturas definidoras do nosso cotidiano moderno; ele apresenta o conceito referente à

dromocracia:

A cidade é apenas uma paragem, ponto sobre a via sinóptica de uma trajetória, antigo talude de fortificação militar, plataforma de vigilância, fronteira ou margem, onde se associam instrumentalmente o olhar e a velocidade de locomoção dos veículos. Como já disse em outra oportunidade, existe apenas a circulação habitável, e esta é particularmente evidente hoje, por exemplo, no Japão, naquelas imensas batalhas revolucionárias que se reduzem à mera colisão, à provocação do choque com o serviço de manutenção da ordem urbana, onde a massa supertreinada de militantes está armada com aparelhos audiovisuais, câmeras, gravadores, etc24

.

As variáveis das condições de trajetos nos veículos são pontos estruturantes dos

próprios instantes intraurbanos efetuados pela população que, quando precisa efetuar as

suas mobilidades para concretizar a sua existência social, tece expressões regulares nessa

realidade que envolve o conjunto da população.

Dessa maneira, as características sociais do passageiro de ônibus são como um

topótipo da vida social da cidade moderna. Se pretendemos entender sua rotina, faz-se

necessário esmiuçar as substâncias e a natureza dos seus deslocamentos ordinários na vida

citadina; principalmente por se concretizar em uma natureza pública e coletiva. Esse

detalhamento permitiu entender e qualificar suas configurações, uma reflexão sobre as

condições ‘usufruídas’ nesse tipo coletivo, a óbvia condição dilapidada dessa realidade é

uma dimensão camuflada nas condições dessas convivências.

Alguns estudiosos da questão dos transportes, dentre eles Forneck (1994) e Neves

(1995), atribuem a sua institucionalização, a partir da década de setenta, à pressão exercida

pela crise do petróleo, iniciada em 1973.

Em termos institucionais, a realidade do passageiro de ônibus é parte do Sistema de

Transportes Coletivos - STC25

24 Virilio, 1996: 21.

, o qual é formado pelo conjunto de diversos meios de

locomoção de natureza pública em trechos pré-definidos, tais como barcos, bonde, trens,

metrôs e ônibus, utilizados pelos moradores para efetuar as mobilidades intraurbanas. Esse

25 As iniciais STC serão doravante utilizadas para designar o Sistema de Transporte Coletivo.

27

direito é matéria destacada nos 95 pontos da Carta de Atenas26, a qual define essa

operação: “A circulação moderna é uma operação das mais complexas. As vias destinadas

a múltiplos usos devem permitir, (...) aos ônibus e bondes, percorrer itinerários

prescritos”27

A maioria dos passageiros é transportada por veículos movidos a diesel, eles rasgam

o silêncio quando circulam nas artérias urbanas, o barulho do seu motor é uma das suas

identidades. Esses veículos também podem ser identificados pela grotesca tecnologia

empregada à sua confecção. Comparando um veículo para transporte coletivo com o

individual, pode-se verificar a diferenciação na qualidade das tecnologias empregadas em

ambos os tipos de transportes. Charles Wright (1988) faz um resumo sobre o veículo

utilizado pelos passageiros. As suas condições tecnológicas foram descritas nos seguintes

termos e especificadas:

. Na Constituição brasileira de 1988, nos capítulos II, “Da União”, e IV, “Dos

municípios”, encontramos os princípios constitucionais dos transportes coletivos. No

capítulo II, indica-se à União o dever quanto à questão dos transportes coletivos na

perspectiva do desenvolvimento urbano nacional. No capítulo IV, enfatizam-se as

atribuições do STC, ao considerar essa atividade de caráter essencial e regulamentada pelo

poder público, o qual detém a prerrogativa de autorizar permissão e concessão à sua

operação e exploração (Brasil, 1998: 22). No plano municipal, a organização dos

transportes coletivos é institucionalizada por Leis Orgânicas de cada município. No caso

do município de São Paulo, a Lei Orgânica (Assembleia Municipal Constituinte, de 4 de

abril de 1990) dedica dois capítulos a essa questão: o IV e o V. No capítulo IV, “Do

Transporte Urbano”, especificam-se em linhas gerais as responsabilidades do transporte

público de passageiros como fruto das políticas públicas do município. O capítulo V trata

da gratuidade dos transportes. (Brasil, 1990, 49, 50 e 60).

São muito significativas as variações de tipos de veículos e sistemas de operação dentro da categoria de ônibus. No Brasil, o ônibus urbano “convencional” tem capacidade para 84 pessoas (a maioria em pé). (...) Os ônibus podem operar no trânsito “misto”, ou seja, no meio do tráfego de automóveis e caminhões, ou em canaletas de uso exclusivo, onde trafegam em “ondas” ou “pelotões” e atingem capacidade de transporte semelhante à de operações ferroviárias. (...) O ônibus urbano “convencional” é uma carroceria de má qualidade montada em cima de um chassi de caminhão. A suspensão dura, os degraus altos, as portas estreitas e a roleta mal posicionada são fatores que incomodam os passageiros

26 A carta de Atenas (1993), como foi proposta por Le Corbusier, 1993. 27 Le Corbusier, Op. cit.: 56.

28

e dificultam seu acesso e egresso. Esse veículo recebe péssimas notas com relação a conforto, ambiente, psicossocial e ruído28

.

Os passageiros estão dentro desse equipamento móvel, uma cercadura a delimitar as

próprias ações e relações sociais transcorridas no seu interior quando das situações

enfrentadas e observadas.

Quem são os passageiros de ônibus? Em princípio, pode ser qualquer morador ou

moradora de uma cidade que necessita locomover-se e utiliza um veículo como meio de

deslocamento. Sobre o passageiro podemos observar duas dimensões: uma enquanto

substância e a outra na qualidade de um adjetivo social. O passageiro de ônibus será

descrito mais à frente neste trabalho.

Em São Paulo, o Sistema de Transporte Coletivo por Ônibus – STCO – é operado

por uma frota de mais de 10 mil veículos, administrada por um conjunto de 53 empresas

privadas. Os santos católicos denominam em torno de 10% (dez por cento) essas empresas.

A quantidade de pessoas transportadas por ônibus veio decrescendo na última década de

noventa. Em 1990 chegou-se a transportar 2.023.602.389 passageiros, já em 1999 a cifra

alcançada foi de 1.115.978.004 passageiros, portanto uma redução bastante significativa

nesse setor.

Talvez recaia sobre o Sistema de Transportes Coletivos uma marca cultural

expressa pelo desleixo. Munford (1998), ao tratar da cidade comercial europeia, diz:

A cidade comercial era um agente para fazer dinheiro e - o interesse do lucro – a decadência, a desordem e a ineficiência estrutural foram toleradas ou mesmo encorajadas como meio de reduzir as despesas29

.

Essa apreciação é um norte avaliativo sobre esse veículo urbano brasileiro, e, por

ser a única alternativa para os movimentos urbanos, apresentaria esse epitáfio social sobre

as suas representações. Essa ideologia define a sua existência no meio da população que

necessita encaixar-se tanto na dimensão da produção quanto na reprodução da sociedade

capitalista, e os passageiros são as suas principais vítimas.

28 Wright, 1988: 36. 29 Munford, 1998: 456.

29

1.2. INTRODUÇÃO CONCEITUAL DA MOBILIDADE URBANA

A categoria passageiro de ônibus requer localização existencial e os fatores para as

interpretações sobre as suas condições sociais ao longo da história.

É atribuída como passo para o surgimento do veículo para transporte, inicialmente,

a domesticação dos animais e, logo mais, a incorporação da roda na construção do futuro

equipamento de mobilidade espacial. Os primeiros veículos foram construídos e utilizados

para as cerimônias fúnebres, para os serviços de colheita agrícola e para as batalhas das

guerras. Os primeiros protótipos foram construídos e utilizados nas civilizações cretense –

2.000 a. C., egípcia – 1.600 a. C. e chinesa – 1.300 a. C.30. Os transportes são um produto

dos avanços da engenharia mundial. E essa trata de seus principais elementos constitutivos:

os veículos, as vias, os corredores e o seu controle31

Os primeiros veículos destinados ao transporte de pessoas foram encontrados na

história de duas grandes culturas ocidentais: a grega e a romana. O pleno desenvolvimento

desse equipamento observou-se somente na Roma antiga – a Via Apia é uma referência.

Quanto à estrutura denominada “carroceria”, estrutura espacial de abrigo dos indivíduos,

teve origem na pré-história grega, quando se desenvolveu um equipamento que

comportasse pessoas sentadas no interior desse espaço móvel, para a efetivação de seus

deslocamentos. Para Vergniaud Calazans (1976), a utilização desse tipo de equipamento –

as carrocerias – consolidou-se devido à dinâmica do próprio império romano, quando do

grande fluxo de pessoas em deslocamentos nas redes de estradas da antiguidade romana.

Os primeiros protótipos dos veículos coletivos com tração animal aparecem entre os

séculos XVI e XIX.

. Portanto, neste estudo, pretende-se dar

um enfoque à figura social do usuário de ônibus, ou seja, o passageiro de transportes

urbanos.

O surgimento do nome do ônibus pode ser apontado pela seguinte explicação:

In 1825 a coach builder named George Shillibeer was commissioned to build specially designed coaches with large seating capacity for use in Paris. The vehicle was called an omnibus, a name coined by a Frenchman named Baudry for a coach he ran in the town of Nantes.32

30 Gualda, 1993: passim. 31 Gualda, 1993: idem. 32 Black, 1995: 14. Tradução livre: “Em 1825, um treinador chamado George Shillibeer foi contratado especialmente para conceber um carro com grande capacidade de assentos para uso em Paris. O veículo foi chamado de omnibus, um nome inventado por um francês chamado Baudry, um treinador que havia corrido na cidade de Nantes.”

30

O ônibus combinava as funções de dois tipos tradicionais de transporte público: a

carruagem de aluguel, antiga versão do táxi, deslocando os passageiros para onde eles

desejavam, e a diligência, que operava em longas distâncias com horários certos

(Gonçalves, 1976: 9). Ele teve importância e se destacou em algumas cidades, enquanto

veículo utilizado para o transporte de pessoas de forma coletiva.

No século XX o ônibus teve destaque em três grandes cidades ocidentais: Londres,

Nova York e Paris. Londres teve seus primeiros veículos em 1825. Friedrich Engels (1820-

1895) destaca a sua presença quando cita L. M. Hayes33

Além desta cintura habitam a média burguesia e a alta burguesia: a média burguesia em ruas regulares, próximas do bairro operário, sobretudo em Chorlton e nas regiões de Cheetam Hill situadas mais abaixo; a alta burguesia em vivendas com jardins, mais afastadas, em Chorlton e Ardwick, ou então sobre as alturas arejadas de Cheetam Hill, Broughton e Pendleton, em pleno ar puro do campo, em habitações esplêndidas e confortáveis, servidas de meia em meia hora ou de quarto em quarto de horas por ônibus que conduzem à cidade (Engels, 1985: 57, grifos do autor).

, que fez a descrição e destacou a

importância da questão dos transportes coletivos para a movimentação de seus moradores

na capital britânica. Percebe-se nesse relato a disponibilidade dos meios de transporte

como condição universalizada para a cidade. O equipamento não era uma solução para

alguns, mas um modo de locomoção acessível a todos os estratos sociais londrinos.

Vejamos:

Outra cidade pioneira na utilização dos transportes coletivos tipo ônibus foi Nova

York, no final do século XIX.

The omnibus was introduced in New York City in 1831 by John Stephenson, who became the largest manufacturer of transit vehicles in the 19th century. It was successful and completion appeared; by 1835 more than a hundred omnibuses were running in New York.34

Paris é outra cidade pioneira na incorporação dos ônibus. A sua presença foi

viabilizada logo após a abertura dos seus Boulevars, como descreve Ortiz (1994):

Pouco depois, em 1855, cria-se a primeira companhia geral de ônibus. As reformas do Barão Haussmann vão inaugurar a modernidade urbana na cidade. (...) Racionalizar significa colocar em ordem um universo “caótico”, quebrando a rigidez das

33 Engels, 1985: 51. Nesse livro, Engels se refere à obra de L. M. Hayes Reminiscences of Manchester and some of its local surroudings from the year 1840”, 1905. 34 Black, 1995: 14. Tradução livre: O ônibus foi introduzido em Nova York em 1831 por John Stephenson, que se tornou o maior fabricante de veículos de trânsito no século XIX. Ele foi bem-sucedido e a conclusão apareceu; em 1835 mais de cem ônibus estavam trafegando em Nova York.

31

unidades celulares que existiam na cidade. Enfim, ‘A modernidade é sinônimo de circulação.’35

.

Fotografia 01 – Ônibus trafegando em Boulevard de Paris

Os primeiros resgates conceituais formulados sobre a temática da mobilidade

urbana nas Ciências Sociais podem ser atribuídos a Karl Marx (1818-1883). Este abordou a

questão observando a relação existente entre a evolução histórica da sociedade e o

desenvolvimento tecnológico; por exemplo, o aprimoramento da máquina a vapor

proporcionou nova forma de deslocamentos; sua aplicação junto aos meios de

deslocamentos mecânicos passou a ocupar papel importante para as trocas de valores,

impulsionou novos fluxos mercantis na sociedade. Ao longo do século XIX transcorreu a

evolução dos meios técnicos de locomoção, os quais inovavam e ampliavam a capacidade

de circulação social. Marx resgata e enfatiza o papel dos transportes sob o prisma evolutivo

da relação entre a humanidade e a técnica (Marx, 1980: 45). Para ele, a superação do

isolamento reinante teria assumido o papel responsável pela própria mudança no modo de

produção anterior ao capitalismo. Isto é, a falta de circulação impossibilitava a realização

do capital (Marx, 1980: 64). Os contatos sociais com as novas praças mercantis ampliariam

novas interações sociais e fortaleciam as relações entre si (Marx, 1980: 66). Nesse sentido,

os transportes constituíam-se num elemento instrumental técnico para organizar, difundir e

propagar o surgimento do mercado mundial. Na sua obra O capitali

35 Ortiz,1994: s/p.

, o teórico oferece uma

interpretação de como os valores são submetidos à circulação. A própria ação de

transportar revaloriza as mercadorias; a circulação é uma dimensão a imprimir grande

impacto sobre as mesmas, pois o próprio ato de transportar será o responsável por aferir

um novo valor sobre o bem, haverá uma nova importância sobre o que é transportado. A

mobilidade vai oferecer nova dimensão ao agregar e incorporar uma nova qualidade sobre

o valor. Este valor é atribuído ao próprio movimento desempenhado, pelo fato de o bem

ser transportado, em razão do efeito concreto da mudança de lugar no espaço territorial. O

ato de transportar realiza uma metamorfose sobre os bens ao lhes transferir novas

mensurações. Porém, Marx considera tão somente o transporte de valores, os produtos

inanimados: os produzidos e os negociados – produção e consumo. Os problemas do

transporte de pessoas, dos trabalhadores, dos moradores de uma cidade – os acionadores

das operações de produção, os reprodutores – ainda não eram nem estavam

32

conceitualmente incluídos em sua análise. Ele enfatiza o papel dos transportes na dimensão

relativa à produção. Vale ressaltar: não poderia ser o contrário.

Outro clássico a apontar a questão da circulação é Max Weber (1864-1920). Para

ele, os transportes seriam um dos primeiros responsáveis pela formação da cidade

moderna, na medida em que viabilizavam as trocas comerciais. Os membros sociais

incorporam novo instrumento à locomoção, que possibilitava ir alhures. A noção cognitiva

da sociedade moderna estaria ligada à ideia de movimento, expressa pelas mobilidades

requeridas pelo capitalismo (Weber, 1979: 75; 1997: 944). Para esse teórico, os transportes

viabilizariam a exploração de outras praças. A questão do transporte destacava-se em razão

e em função das movimentações definidas pela expansão das transações comerciais, de um

fator determinante para o surgimento do mercado moderno: a cidade. O transporte

mecanizado permitiu ir além das circunvizinhanças em que se davam as pequenas e iniciais

trocas materiais. O transporte sobre rodas, um meio material social ampliador das redes de

contatos e trocas sociais, foi o instrumento a alavancar os primeiros trilhos da própria

expansão do mercado. Portanto, desencadeou a formação da cidade tipo ocidental.

Na sequência histórica, encontramos a obra de Émile Durkheim (1858-1917) e em

particular sua tese de doutoramento, A divisão do trabalho social (1893), em que ele já

discutia a questão da circulação – os transportes – em rápidas pinceladas. Desta obra

destaca-se a seguinte dimensão a respeito do transporte:

há o número e a rapidez das vias de comunicação e transmissão. Ao suprirem e diminuírem os vazios que separam os segmentos sociais, aquelas fazem aumentar a densidade da sociedade. (...) é porque ela multiplica as relações intrassociais (Durkheim, 1991: 39).

O novo contexto da modernidade trouxe essa nova realidade, a qual produziria

efeitos na capacidade de mobilidade humana e, consequentemente, na circulação intra e

interurbana, em virtude da dinâmica advinda dos conhecimentos da Física, no capítulo da

Mecânica; foram disponibilizados novos meios de aceleração para a mobilidade das

pessoas, dos bens e dos serviços. Neles está implantada a nova dimensão da velocidade.

Com isso, a experiência do transportar-se era ampliada. Para a sociedade moderna, essa

potencialidade possuía nova extensão, pois ela iria atingir escalas nunca antes alcançadas.

Há uma nova condição para ir além do lugar em repouso. Agora, a mobilidade é

multiplicada pelo potencial da máquina a vapor na evolução enquanto motor à combustão.

Na visão durkheimiana, isso possibilitaria a superação das situações de isolamento. Dessa

forma, a efetivação das relações sociais diretas se intensificaria. Isto é, a nova velocidade

33

seria um elemento facilitador das operações constitutivas dos laços integradores da

sociedade. Os transportes permitiriam a superação dos interstícios sociais desconexos entre

si. Durkheim destacava como a questão da circulação alterou e intensificou a capacidade

de locomoção, ao dilatar as relações sociais, ao possibilitar as “coalescências”, ao aglutinar

e desenvolver diversos tipos de contatos sociais, e, assim, a modernidade se configurava. A

humanidade assistia à popularização do potencial da máquina, na sua versão adaptada à

mobilidade humana. O ciclo da velocidade se iniciava e expandia. Naquela altura, já se

poderiam alcançar velocidades maiores do que a das pernas dos animais. Os translados

teriam a sua capacidade ampliada e, hoje, em escala cada vez maior. Estava longe uma

crítica acerca da condição e capacidade dos meios de deslocamentos. Era o início do

tráfego moderno, caracterizado pela ampliação da capacidade da variação correspondente

do tempo na mobilidade urbana. Os transportes intensificaram e imprimiram rapidez às

relações sociais.

Na década de 70 do século XX, Manuel Castells (1983: 236-255), em seus estudos

urbanos, destacaria o item trocas e fluxos, ao observar os elementos do sistema circulatório

dos citadinos. Ele destacou essa questão “tão importante socialmente quanto relegada pela

análise sociológica” (1983: 236/255). Portanto, a necessidade do estudo da questão da

troca intraurbana – translados constantes produzidos – num campo sociológico deveria

buscar identificá-los em termos paradigmáticos da mobilidade urbana. Em uma cidade

esses movimentos geram regularidade em seus fluxos intraurbanos, quando das trocas

efetuadas, às ações e relações sociais.

Mormente, Castells analisou os elementos existentes nas trocas – e aqui, os

transportes –, dignos de um estudo sociológico. Tal procedimento deveria ater-se às suas

observações nos elementos substantivos. Vejamos:

Com efeito, a análise da circulação urbana deve ser entendida como uma especificação de uma teoria mais geral da troca entre os componentes do sistema urbano, o que quer dizer, concretamente, devemos estabelecer o conteúdo circulante para poder explicar o tipo de circulação. O conteúdo difere conforme o tipo de transferência, quer dizer, segundo os elementos da estrutura urbana entre os quais ela ocorre e segundo a direção, a intensidade, a conjuntura que a caracterizam. Em outras palavras, uma análise da circulação (e, a partir daí, uma análise dos transportes, definidos como meios de circulação) coloca em questão as relações entre o conjunto dos elementos da estrutura urbana (Castells, 1983: 237).

34

A análise propõe a compreensão acerca de quem e do que é transportado, como o

movimento é operado; como essas permutas sociais são efetuadas em dada sociedade.

Busca identificar as diversas maneiras de realização dessas transferências. Como se dão as

condições gerais dos modos de transporte de dada sociedade? Como as formas qualitativas

de trocas poderiam ser aferidas nesses tipos de movimentação? No caso específico, como

são as condições e as formas assumidas pelos habitantes transportados em uma sociedade?

A sociologia refletirá sobre os impactos sociais provocados por essas trocas intraurbanas

no conjunto dos seus habitantes. Assim, oferecerá um aporte teórico e metodológico para

identificar os traços sociais regulares encontrados nesses fluxos intraurbanos, indo além

das abordagens tecnicistas. Uma sociologia sobre as condições de transporte de passageiro

urbano irá contribuir para a descrição e análise das condições de transporte dentro de dada

conjuntura histórica, considerando a natureza e a razão das trocas, dos conteúdos e dos

procedimentos implementados às operações de circulação. Como essas condições são

disponibilizadas aos moradores de uma cidade?

Outro sociólogo a fazer uma reflexão sobre a questão dos transportes foi Jean

Lojkine, ao apontar aspectos macrossociais dos transportes coletivos na

contemporaneidade. Para tanto, a análise dele sublinha a contradição como um dos seus

signos:

O que queremos sublinhar é o contraste entre a

complementariedade tecnológica das diversas condições gerais do

processo de trabalho (meio de consumo coletivos, meios de

transporte) e sua divisão, sua oposição, desde que vistos da

perspectiva do processo de produção, da relação social

capital/trabalho (Lojkine, 1981:135/136).

Outra contribuição teórica importante sobre a abordagem da questão dos transportes

é apresentada pela socióloga portuguesa Emilia Rodrigues Araújo (2004: passim). Para ela,

a questão deveria ser incorporada à Sociologia como um dos seus campos de

especialização. E propõe “projecto de criação de um paradigma para a mobilidade”, uma

abordagem da mobilidade urbana como um dos objetos da sociologia. Para Araújo,

“actualmente, não existindo enquanto pessoas se não existirmos com os objectos e a

tecnologia, (...) há a necessidade de se entender este discurso andante”, o transitivo,

enquanto uma das maneiras para a construção das relações sociais. O pedestre é o reles; e o

35

condutor de máquinas simboliza o topo das classes sociais aquinhoadas. E propõe a criação

da Sociologia da Mobilidade Urbana.

Uma referência conceitual brasileira foi elaborada pelo sociólogo pernambucano

Gilberto Freyre (1900-1987). Ele já identificava o cotidiano dos passageiros de bondes da

cidade do Rio de Janeiro com passível de reflexão. Gilberto Freyre, em seu artigo “A

sociologia do bonde”36

A sociologia brasileira produziu estudos e investigações sobre a questão dos

transportes no referente às demandas sociais. As pesquisas sobre os movimentos por

melhorias dos meios de locomoção de Moisés (1978) e Affonso (1987) são clássicas. O

clássico texto do sociólogo José Álvaro Moisés, “A revolta dos suburbanos ou Patrão, o

trem atrasou”, teve grande impacto teórico e político em décadas passadas do século XX,

quando formulou explicações e as razões motivacionais acerca das revoltas suburbanas

ocorridas nos anos setenta no eixo Rio-São Paulo. Segundo o autor, essas revoltas se

constituíram, mesmo sem ser uma ação organizada, num movimento de contestação ao

Estado autoritário brasileiro até então vigente. A reflexão do trabalho ainda continuaria

atual, na medida em que verificamos a existência de conflitos envolvendo esse meio de

transporte – os incêndios, os assaltos e brigas de gangues –, ocorridos recentemente em

São Paulo e em outras cidades brasileiras (Moisés, 1978: passim), o que torna esse estudo

um clássico.

, já apontava os componentes sociais cogestados das interações

fugazes processadas naquele transporte coletivo – no caso específico, os bondes do Rio de

Janeiro. Esse artigo de 1959 apontava, como um objeto de estudo, os meandros das

convivências sociais como acionadores sociais. O sociólogo considerava os contatos entre

os passageiros elementos da vida social a serem analisados. Os contatos, interativos nos

bondes, rápidos e fortuitos, teriam força sobre a opinião pública. Isso ocorreria devido ao

desenvolvimento de formas de interações sociais integrativas dispersivas, e que por si só

adquiriam exterioridade coercitiva, como algo a ser considerado pelos demais passageiros

e pedestres de uma cidade. O transporte coletivo é um ambiente de convivência social que,

mesmo ao aglutinar pessoas em deslocamentos, propicia contatos fugazes e instantâneos, e

que criam redes de difusão aleatórias. Essas conversas são portadoras de fortuitos

diagnósticos sociais. As formulações sociais se dispersam no tecido social da cidade; esses

ecos sociais formulados pelos passageiros adquirem elasticidade devido à própria

circulação urbana. A transitoriedade é o esteio difusor sobre e dentro do tecido social,

somente possível devido ao transporte público (Benjamim, 1991: 67).

36 Freyre, 1959 IN: Stiel, 1984: 62/63.

36

Outra contribuição à análise dos movimentos reivindicatórios de transportes

coletivos na região metropolitana de São Paulo entre os anos de 1979 e 1983, quando do

acirramento das explosões contra as péssimas condições de transporte no espaço urbano,

foi o estudo de Stanislau Affonso (1987: passim). Nesse estudo a questão do transporte

coletivo se tornou objeto de estudo. Nessa perspectiva, ganharam o território nacional

análises em diversos estados brasileiros. Destacaria os estudos elaborados por Espiler

Colito (1987) em Londrina e Neves (1995) em Curitiba, no Estado do Paraná; e, em

Fortaleza, Ceará, o meu trabalho (1991).

Ana Doimo (1995) aponta os movimentos reivindicatórios por transportes, entre os

anos de 1975-1999, como elementos galvanizadores dos movimentos sociais brasileiros.

Todos esses estudos consideram os movimentos sociais e reivindicatórios como um dos

pontos centrais em suas análises para compreensão das questões sociais envolvendo os

transportes coletivos e o processo de redemocratização do país.

Na maioria das capitais brasileiras, a circulação de ônibus se dá em corredores

radiais. Esse traço regular é necessário, devido à inter-relação segregacionista entre

Centro-Periferia. Os percursos se dão por cruzamento de grande faixa territorial, devido à

necessidade de atingir os espaços segregados das cidades brasileiras, os quais são

exemplos “mores”, e a nos distinguir no cenário ocidental mundial. Bolivar Lamounier e

Leôncio Martins Rodrigues estudaram os fluxos de pessoas, principalmente ao se deterem

na análise das conexões formadas entre o centro das cidades e as suas periferias37

A questão da administração dos ônibus urbanos dominada por empresas

particulares foi uma das análises formuladas por Brasileiro e outros (2000), ao refletirem

sobre os alcances e os limites desse tipo de gestão dos transportes coletivos. As reflexões

se inscrevem sobre as correlações possíveis entre a qualidade desse serviço e a forma de

gestão empresarial. Investigam esse serviço público quando sob administração das

empresas privadas.

. Para

eles, a questão dos transportes se coloca como primordial àqueles moradores das zonas

distantes: as periferias.

Os passageiros de ônibus na cidade de São Paulo foram estudados e investigados

numa sistemática incipiente dos aspectos macros da questão. A socióloga Márcia Barone

faz um alerta: “o conteúdo conceitual de ‘usuário de ônibus’ teve a sua origem na 37 “Consequentemente, as populações de baixa renda das regiões metropolitanas periféricas ‘trocam’ o tempo disponibilizado em transporte... (...) Neste intercâmbio pioram o percurso casa-trabalho-casa (quer dizer, aumenta o tempo gasto nos transportes coletivos) e, via de regra, a qualidade dos veículos utilizados” (Lamounier e Martins Rodrigues, 1982: 17).

37

engenharia, a qual define o passageiro de transporte coletivo pela noção exclusiva de uma

‘demanda”. Uma conceituação bastante limitada e reveladora da falta de uma visão

multidisciplinar sobre o passageiro de transporte coletivo, e produtos analíticos

unidimensionais sobre a questão dos passageiros. A constatação foi possível a partir de um

mapeamento sobre os estudos dos transportes coletivos até então produzidos. Nele

encontramos as principais abrangências das pesquisas realizadas nas áreas das ciências

sociais. Vejamos:

produção de conhecimento social em transporte se refere a estudos que se utilizam de referenciais teóricos e perspectiva das ciências sociais – (...) – para enfocar as relações entre o setor de transportes e os múltiplos setores da vida social, buscando entender sua inserção no contexto das cidades, sua configuração enquanto um serviço urbano, as práticas sociais do setor, os modos de regulação dessas práticas38

.

O levantamento mostrou que os estudos, até então, foram empreendidos nos

principais centros de pesquisa no Estado de São Paulo: estão catalogadas 44 teses e

dissertações, dentre elas 08 trabalhos acadêmicos versando sobre o equipamento ônibus; e

destacavam as seguintes temáticas: “transporte urbano; transporte e economia; transporte

enquanto políticas; e apropriação do transporte pela população (Pinheiro, 1994: 96). Não

são encontrados trabalhos sociológicos de natureza comparativa. O passageiro de ônibus é,

ainda, tratado de forma incipiente na sociologia.

Uma contribuição teórica que considera aspectos sociais se encontra na obra de

Eduardo Alcântara Vasconcellos (1996, 1999, passim). Ele propõe a criação de uma

Sociologia da Circulação a fim de refletir sobre a dimensão do transporte como uma

questão bem mais complexa. Para esse teórico, é necessário analisar o que ocorre na

circulação urbana, desde os conflitos existentes no trânsito, ou ao considerar “o usuário

cativo de transportes públicos e proprietários de automóveis, o morador e motorista,

proprietários de estabelecimentos, motoristas e passageiros de ônibus, e ao considerar o

sistema de transporte como um meio coletivo de consumo” (Vasconcellos, 1999, pág.

37/64). A criação de uma sociologia buscaria compreender os processos envolvidos na

circulação urbana e deveria nortear as investigações dos critérios de equidade social,

envolvendo os diversos meios de transportes, e estas como investigações sobre as

38 Pinheiro, 1994: 94.

38

desigualdades sociais que estão espelhadas nas formas de acesso a esses mesmos meios de

transporte existentes em uma cidade39

Esse trabalho, ao cunhar um recorte epistemológico sobre as formas de

sociabilidade dos passageiros dos transportes coletivos, descreve como esses são entraves

sociais na questão da mobilidade. Estudar os conflitos – de passageiros e trabalhadores –,

existentes no interior dos ônibus e ao seu redor, é uma investida em busca de compreensão

e de alternativas para o conjunto social. E aqui o estudo deu destaque à dimensão

microscópica da mobilidade urbana. No caso, as situações condicionantes sobre os

passageiros de transportes coletivos.

.

1.3. PERCURSO HISTÓRICO DOS PASSAGEIROS DE ÔNIBUS

A gênese e o desenvolvimento dessa categoria social, o passageiro de ônibus

urbano, tiveram uma evolução. Sobre essa trajetória faz-se necessária uma retrospectiva da

sua existência na cidade de São Paulo. Dessa forma, apresentarei algumas ponderações

sobre a trajetória histórica dessa figura social urbana.

Os primeiros transeuntes da cidade de São Paulo realizavam translados para

efetuarem as interligações com cargas de provimentos entre a capital e as demais regiões

do Estado.

Até o final do século XVIII, o movimento maior e mais constante era o das tropas de burro, indo e vindo ao porto de Santos. As tropas chegavam também de sítios próximos da capital e mesmo de mais longe, interior do Estado.40

No tráfego urbano e para os deslocamentos às regiões rurais existiram os primeiros

veículos construídos sem rodas, tais como: redes e serpentinas, liteiras, cadeirinhas de

arruar, cadeirinhas serpentinas e os banguês. Esses móveis realizavam os movimentos de

objetos e pessoas no perímetro urbano e no transporte rumo às aglomerações urbanas

existentes na fase colonial. Todos esses equipamentos de mobilidade eram movidos por

tração animal ou pela força física dos braços humanos. Destacando-se um desses veículos

urbanos, as cadeirinhas de arruar, ao circularem na capital paulistana, atendiam e

apresentavam as seguintes características:

39 Vasconcellos, 1996A: passim. 40 São Paulo1, 198(?): 3.

39

Os senhores aristocratas usavam cadeirinhas (de arruar) carregadas por dois ou quatro escravos, vestidos com certo luxo, ou banguês para as viagens puxadas por duas bestas ricamente ornamentais. Em 1781, o governador Lorena teve que estabelecer os pontos em que tais veículos deviam estacionar, para se evitar que continuassem a atravessar a cidade à vontade.41

FOTOGRAFIA 02 – Cadeirinha de arruar

Esses primeiros veículos urbanos42

Os primeiros veículos com rodas, na cidade de São Paulo, foram os tílburis,

antecessores dos demais veículos urbanos com o emprego de rodas e força animal. Uma

das primeiras medidas administrativas para a implantação desse sistema de transportes

público ocorreu na segunda metade do século XIX, na década de sessenta, e foi o primeiro

serviço para deslocamentos prestado de forma organizada e com o emprego da força

animal.

tinham em suas laterais externas a aplicação de

pinturas artísticas, o que se tornou forma de identificação, ao distingui-las dos demais

proprietários de veículos da cidade. Esse tipo de movimentação mereceu atenção

administrativa devido ao impacto no ordenamento do perímetro urbano.

Os primeiros registros da organização dos transportes públicos em São Paulo datam de 1865, quando foram regulamentados os serviços de tílburis, veículos de duas rodas puxados por um cavalo, ou de quatro, tracionados por uma parelha. (...) Em 1867 as leis municipais regulamentam a profissão de cocheiro43

.

Devido a sua repercussão social, foi instituída a primeira figura profissional ligada

a esse serviço de transporte público.

Ainda no século XIX, na década de 70, foram implantados os primeiros transportes

públicos coletivos, os bondes puxados a tração animal, especificamente por parelhas de

burros e foi oportunidade para a instalação da primeira empresa a explorar os serviços de

transportes coletivos na cidade, a Companhia Carris de São Paulo, fundada em 1871. Esse

empreendimento teve atuação entre os anos de 1872 a 1907.

É importante ressaltar a cosmovisão prevalecente entre as autoridades paulistanas

sobre esse tipo de serviço público. Elas não sentiam necessidade deste, nem lhe atribuíam

importância, por estarem estabelecidas na zona central da cidade. As classes dirigentes não

41 São Paulo1, 198(?): 3. 42 Barbuy, 1996: passim. 43 São Paulo, 1985: 3.

40

tinham uma avaliação favorável à sua ampliação, e aí está uma provável gênese da falta de

prioridade desses serviços por parte das elites dirigentes. A avaliação destacava:

A elite paulistana, residente no triângulo formado pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento, fazia questão de não dar importância aos transportes coletivos, achando-os desnecessários para os seus deslocamentos diários. O próprio presidente da província, João Theodoro Xavier, dizia em seu relatório anual de 1871 estranhar a falta de visão dos habitantes no que se refere aos transportes.44

Com essa constatação podem-se verificar a trajetória perniciosa e a visão restritiva

sobre os serviços de transporte para o público, fator limitante à sua afirmação enquanto

meio racional importante no desenvolvimento das movimentações requeridas pela própria

mobilidade que a cidade viria a necessitar no futuro.

Apesar dessa visão política, a cidade apresentaria através desse serviço uma grande

ressonância sobre o conjunto dos citadinos. Isso ocorreu em 1890, quando da implantação

dos serviços da Companhia Carris e do sistema de bilhetagem. Tal medida teve grande

impacto e repercussão sobre as transações econômicas efetuadas na cidade, os passes

ganharam valor monetário: Impressos pelo American Bank Note Company, os passes

eram muito bonitos e encontravam-se à venda nos pontos de bonde e alguns outros lugares. Seu uso tornou-se tão disseminado que esses bilhetes passaram a ser usados como troco.45

Os serviços de transportes coletivos fora dos trilhos somente ocorreram no início do

século XX. Segundo Waldemar Correa Stiel (1978: 18), o serviço de transporte por ônibus

começou por iniciativas particulares. Os primeiros ônibus começaram a ser implantados e

eram dirigidos pelos próprios proprietários dos auto-ônibus. Mas o serviço de transporte

por ônibus de grande impacto na cidade de São Paulo no século XX se deu entre os anos de

1926 até 1932, quando da organização do Sistema de Transportes Coletivos em São Paulo

pela iniciativa privada internacional. No caso, trata-se da The Company Light & Power

CO, a Light. O empreendimento iria incorporar veículos tipo ônibus, os “Yellow Coach”,

importados pela Light e que circularam nessas duas décadas.

O projeto apresentado em 1926 pela Light à Prefeitura previa as seguintes melhorias:

– Aquisição imediata de mais 50 ônibus e a construção das respectivas garagens. Este item, que não dependia de autorização da Prefeitura, foi executado: a Light adquiriu ônibus “Yellow

44 São Paulo, 1985: 3. 45 São Paulo, 1985: 06.

41

Coach”, com motor Daimler de 90HP, pintado na cor cinza esverdeado, o que lhes valeu o apelido de Jacarés. Era o que havia de mais luxuoso no mundo. A tarifa era cobrada exclusivamente por passes, que o usuário depositava ao descer do ônibus em caixa coletora. As linhas escolhidas inicialmente atendiam os bairros “chiques”, onde a população possuía carro próprio. Esses veículos trafegaram até 1932, quando a sua operação foi suspensa pela falta de gasolina, e nunca mais voltaram a trafegar.46

Esse tipo de veículo tinha uma peculiaridade ergonômica salutar, considerando-se

sua estrutura: era ajustado aos parâmetros do corpo humano. Talvez, devido a isso, os

antigos passageiros desse equipamento tenham saudades deles: indícios nostálgicos e

conservadores sobre tais máquinas. Porém, o período da Segunda Grande Guerra, 1939-45,

interferiu sobremaneira na reposição de suas peças importadas47

Na década de 40, a questão dos transportes coletivos por ônibus sofreu uma salutar

discussão junto às autoridades e à população, no que diz respeito à conveniência quanto à

forma de permissão e concessão para a exploração desse serviço público.

.

Primeiro momento, situado na década de 40, se caracteriza pela reformulação do serviço de transporte, tendo como ponto de partida a ideia do seu caráter social e, com ela, a inconveniência de que fosse operada por particulares. Nesse sentido, foi criada a Companhia Municipal de Transporte Coletivo, encarregada de controlar e operar diretamente todo o serviço de transporte da cidade (grifo do autor)48

.

Em decorrência dessa discussão, foi criada a Companhia Municipal de Transporte

Coletivo – CMTC – , fruto das indicações técnicas da Comissão de Estudos de Transportes

Coletivos do Município de São Paulo – CETC, instituída em 1939, pelo prefeito Prestes

Maia (1938/1945). A CMTC foi criada em 1946; instituição sucedânea, adquiriu todo o

espólio das demais empresas de ônibus da cidade49. Destaque-se, também, que a nova

Companhia experimentou, em meados de 1947, revolta da população – através de quebra-

quebra – quando da majoração dos preços das suas tarifas50

46 São Paulo, 1985: 10/11.

. Um aspecto sobre as formas

de sociabilidade existentes, nesse período de predominância da iniciativa estatal, poderia

ser resgatado entre as formas de relacionamentos encontradas entre os passageiros e os

trabalhadores das empresas públicas. No caso, eu recordaria uma cena registrada em uma

47 Stiel, 1978: 33. 48 Cheibud, 1985: 49 Stiel, op. cit.: 192,193. 50 Stile, op. cit.: 194.

42

fotografia, “O cobrador de ônibus” (1940), de Hildelgard Rosenthal51

Fotografia 04 – O cobrador de ônibus

: na imagem

destacam-se os modos de convivência entre um passageiro e um trabalhador desse setor.

Na referida fotografia pode-se observar a expressão amistosa do rosto do cobrador com um

sorriso – a expressão facial é o indício da postura simpática dele no momento de cobrança:

percebe-se seu procedimento de cobrança, indo até a cadeira do passageiro e efetuando-a

de maneira gentil. Assim, as formas amistosas existentes entre o cobrador e o passageiro

do transporte público eram de outra qualidade, e com repercussão sobre as formas de

sociabilidade em São Paulo na década de 1940. Até então, constata-se pela mesma

fotografia a ausência das catracas – roletas de passagem – nos ônibus.

Nas décadas 50 e 60, encontramos a total penetração da iniciativa privada nos

serviços de transportes coletivos da cidade de São Paulo:

O segundo momento, que abrange as décadas de 50 e 60, é o de penetração da iniciativa privada na prestação do serviço de ônibus da cidade. Neste período, ocorreu um processo de desagregação do sistema de transporte, inicialmente concebido para ser operado com exclusividade pela CMTC.52

Em 1958 a CMTC começa a autorizar a permissão da operação das empresas

particulares53

A década de setenta é marcada pela presença preponderante da iniciativa privada na

operação de todo o sistema de transportes coletivos por ônibus.

.

O terceiro momento situa-se na década de 70, quando a Prefeitura de São Paulo implementou uma política de reorganização da forma de prestação do serviço de ônibus por empresas privadas.54

Em 1973 foi criada a Região Metropolitana de São Paulo, esse fato requereu maior

presença dos ônibus: a rápida expansão da cidade era o discurso justificador para o

estabelecimento das empresas. Em 1977, o tempo de acesso ao ônibus era de 12,8 min55. O

tempo médio de viagem, a macroacessibilidade, era 59 min56

O primeiro sinal claro desta mudança diz respeito à “institucionalização” dos pedidos do público, antes mediatizados

. Segundo Vasconcellos

(1999: 161), em 1973, a presença dos passageiros começaria a ser detectada:

51 Rosenthal, 1998: 62. 52 Cheibub, 1985: 50/51. 53 Stiel, op. cit.: 33. 54 Cheibub, 1985: 50/51. 55 Vasconcellos, 1996a: 137. 56 Vasconcellos, op. cit. 137.

43

pela imprensa: no DSV [Departamento de Operações do Sistema Viário], é organizado um serviço de atendimento ao público, que recebe solicitações e lhes dá respostas.

Nos anos 80, a penúltima década considerada nessa descrição, destacam-se alguns

indicadores sobre a situação dos passageiros. Em 1987 o tempo médio de acesso ao ônibus

era de 13,2 min57, e o tempo médio de viagem, a macroacessibilidade, era de 55 min58

Pode-se observar que a porcentagem de passageiros viajando em condições inaceitáveis na hora de pico variava de um mínimo de 32% até um máximo de 84%. No outro extremo, a porcentagem de passageiros viajando em boas condições variava de um mínimo de 10% a um máximo de 39% (Vasconcellos, 1996ª: 139).

. E as

condições usufruídas pelos passageiros poderiam ser destacadas pela mesma forma como

se dava a ocupação dos ônibus nos horários de pico. Em São Paulo, em 1984, essa situação

foi descrita da seguinte forma por Vasconcellos:

A década de noventa distingue-se pela penetração dos chamados transportes

alternativos. Contexto derivado das políticas neoliberais implantadas naqueles anos pelos

governos estaduais e federal. No final dos anos noventa do século XX, ainda encontramos

na cidade de São Paulo alguns procedimentos, por exemplo, o modo de solicitação de

parada para desembarque. Os procedimentos ainda encontrados nos atuais ônibus de São

Paulo, em pleno final de milênio, eram feitos por um cordão confeccionado de matéria

plástica – nylon – estendido sob o teto, para acionar a campainha elétrica do sinal sonoro

para o motorista. Esse mesmo procedimento era encontrado nos primeiros ônibus dos

EUA. Um sinal para solicitar parada do ônibus era feito com um puxão de uma correia

presa na perna do cocheiro (Chudacoff, 1977: 95,96). Com esse exemplo faço um paralelo

entre o procedimento daquela época e o atualmente prevalecente na cidade de São Paulo.

A questão do transporte é um ponto nevrálgico dessa cidade, bastante sentido pela

população. Então, uma ilustração onírica da relevância desse problema junto aos seus

habitantes poderia ser apresentada pela escolha da “Canção com a cara de São Paulo”, um

concurso promovido pela Rede Globo de Televisão59

57 Vasconcellos, 1996ª: 137.

. O primeiro lugar foi a música “Trem

das Onze”, de Adoniran Barbosa – relembrando a música vitoriosa: “Não posso ficar; Nem

mais um minuto com você; Sinto muito, amor; Mas não pode ser; Moro em Jaçanã; Se eu

perder este trem, que sai agora às onze horas; Só amanhã de manhã; E além disso,

58 Vasconcellos, 1996ª: 138. 59 Telejornal SPTV, edição de 25 de janeiro de 2000, São Paulo, SP.

44

mulher, Tem outra coisa: Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar; Sou filho único,

tenho minha casa para olhar; E eu não posso ficar.”. Obteve 35% (trinta e cinco por

cento) dos votos do certame. O segundo lugar foi para “Sampa”, canção de Caetano

Veloso. A referência permitiria afirmar as raízes históricas da questão dos transportes na

capital bandeirante. A partir da letra de “Trem das Onze”, pode-se depreender que o

transporte – no caso o trem – é um elemento inibidor na efetivação das relações sociais, no

caso, do prolongamento do idílio amoroso. O amante justifica a sua partida em razão de

temer a perda do seu transporte, que o conduziria para seu bairro distante. Portanto, a

dificuldade de deslocamento entre os espaços segregados limitaria a vida dos moradores de

uma das maiores cidade do mundo.

Atualmente, o Sistema de Transporte Coletivo da cidade de São Paulo é

administrado pela São Paulo Transporte S. A.– SPTrans. Ela é a empresa sucessora da

antiga Companhia Municipal de Transportes Coletivos, a CMTC. A responsabilidade civil

da SPTrans é realizar o planejamento e o gerenciamento dos transportes coletivos,

principalmente o ônibus urbano.

Em 2000 São Paulo tinha 10.405.867 habitantes, distribuídos sobre um território de

1.522,00 Km2, e perfazendo uma densidade demográfica de 6.823,68 habitantes por km260.

O quadro de deslocamentos dos seus habitantes apresentava, em 1997, um total de

19.615.000 viagens. Esses deslocamentos estavam classificados dentre os seguintes modos

de locomoção: deslocar-se a pé perfaz 6.158.000 viagens, representando 31,39 % do total.

Em segundo lugar vem o “automóvel”, com 6.134.000 viagens ou 31,27 % do total. O

ônibus ocupava o total de 5.035.000 viagens diárias ou 25,66 % do total. Em quarto lugar,

o metrô com 1.533.000 viagens diárias ou 7,81% dos deslocamentos. Na quinta posição o

trem, responsável por 322.000 ou 1,64% das locomoções61

O total de viagens realizadas revela a grande dinâmica da população. Vale repetir a

frase bastante conhecida: “São Paulo não pode parar”. Entretanto, os dois modos

predominantes revelariam uma grande contradição do contexto geral da mobilidade

urbana. Quase um terço das viagens se dá “a pé”, e o automóvel também atinge idêntico

percentual. Outros modos de transportes coletivos não conseguem atingir um terço das

viagens realizadas na cidade. Portanto, a regularidade prevalecente nos deslocamentos é o

modo caminhante, em contraposição ao modo solitário regular dos automóveis.

.

60 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, página eletrônica: http://www.ibge.gov.br/ estatística/população/censo2000sinopse. 61 Os dados foram extraídos da página eletrônica da Fundação SEADE: http://www.seade.gov.br/metrô/viagensd.html.

45

Nas análises comparativas dos deslocamentos, a partir dos resultados obtidos em

duas Pesquisas Origem e Destino realizadas, nas décadas de 70 e 80, observaram-se as

seguintes tendências:

Analisando a evolução dos deslocamentos diários na RMSP, através das Pesquisas de Origem e Destino de 1977 e 1987, chama a atenção o crescimento do número de viagens realizadas a pé, em detrimento das viagens motorizadas. Estas últimas diminuíram sua participação de 75% em 1977 para 64% em 1987, embora o total de viagens da Região Metropolitana de São Paulo tenha sofrido um acréscimo de 30% no mesmo período. Importante, ainda, é que as viagens a pé vêm aumentando significativamente nos últimos anos. Entre 1977 e 1987, este tipo de deslocamento praticamente dobrou, passando de 800 mil para 1,4 milhão de viagens diárias em 1987, enquanto o total de viagens da Região cresceu apenas 35% no mesmo período (Metrô/PML 1990)62

.

Os transportes coletivos se caracterizam pela ausência de passageiros, como

também se verifica uma tendência de declínio.

Uma avaliação das políticas públicas municipais para a categoria passageiro de

ônibus permite a conclusão de haver uma visão assistencialista. Isso se constata ante as

medidas administrativas para o acesso ao ônibus de alguns segmentos da população. As

políticas públicas materializadas pelas leis e decretos municipais visam a atender de forma

isolada alguns segmentos sociais. Os únicos beneficiários são os chamados passageiros

especiais, os quais recebem benefícios para acesso ou gratuidade das passagens. Esses

segmentos sociais são os deficientes físicos, isentos de pagamento de tarifa, conforme a

Lei Nº 11.250, de 1 de outubro de 1992. As mulheres grávidas, a partir do 5º mês, são

dispensadas de passar pela catraca do ônibus, conforme a Lei 11.216, de 20 de maio de

1992. Aos obesos é permitido o desembarque pela porta dianteira, conforme a Lei 11.840,

de 28 de junho de 1995. As pessoas idosas, estratificadas de acordo com o gênero e a

idade, homens de 65 anos e mulheres maiores de 60, estão isentas do pagamento, conforme

Lei municipal Nº 11.381, de 17 de junho de 1993.

Junto a essas categorias de passageiros especiais verificam-se formas de

relacionamentos diferenciados por parte dos trabalhadores desse setor. Observam-se

comunicações verbais diretas entre cobradores e motoristas. Quanto aos deficientes físicos,

destacam-se atitudes de simpatia de seus acompanhantes em relação ao motorista. As

mulheres grávidas se avistam mais com os cobradores, quando efetuam o pagamento das

passagens. Para o grupo de passageiros idosos, um clima de animosidade é revelado pelas

62 Forneck, 1994: 35.

46

posturas covardes dos motoristas, os quais, na direção do veículo, nem sempre atendem aos

pedidos de parada feitos por esses cidadãos.

A categoria dos estudantes é a mais significativa dentre os passageiros de ônibus.

No início do ano verificam-se aumentos de passageiros nos meses de início dos semestres

letivos de cada ano civil (ver Tabela 02). Para os estudantes, há o abatimento de cinquenta

por cento no valor da passagem, o que torna o “Bilhete Escolar” um elemento de grande

importância e volume dentro do sistema de passagens no Município de São Paulo. Para ter

acesso às cotas de Bilhete Escolar, é preciso apresentar a Carteira Nacional de

Identificação Estudantil, renovada anualmente com o pagamento de uma taxa de 15 tarifas

vigentes63

O total de linhas de ônibus urbanos no município de São Paulo é registrado na

Tabela 01 seguinte, já anteriormente considerada em nossa análise. De uma avaliação

sobre a perenidade das linhas de ônibus depreende-se a seguinte análise: há uma variação

na disponibilidade de linhas à população.

. Adquirem-se esses bilhetes em 63 (sessenta e três) postos de venda de ‘passe

estudantil e vale transporte’ em São Paulo, os quais estão distribuídos em diversas zonas da

cidade. No Centro, 6 (seis) postos; na zona leste, 13 (treze) postos; na zona norte, 7 (sete)

postos; na zona oeste, 10 (dez) postos, e na zona sul 27 (vinte e sete) postos. A compra é

em moeda viva nos postos da SPTRANS, restrita ao horário comercial.

A seguir, apresentarei alguns dados estatísticos sobre os transportes coletivos por

ônibus da cidade de São Paulo. Essas estatísticas nos darão as inferências quantitativas

acerca da abrangência do serviço junto à população de São Paulo. Essas informações

quantitativas foram colhidas junto a SPTrans. Sobre os números referentes à quantidade de

passageiros devemos alertar que uma mesma pessoa pode realizar mais de uma viagem.

Portanto, esse número precisaria ser relativizado.

Em média a cidade contaria com 828 linhas. Mas podemos observar uma pequena

alteração na oferta das mesmas, para mais – 833 – ou para menos – 824. Fato a interferir na

perenidade da rotina dos seus moradores, os quais não podem contar com a regularidade

dessas linhas. Cada veículo transporta diariamente uma média de 410 passageiros.

TABELA 01 – NÚMERO DE LINHAS DA CIDADE DE SÃO PAULO - 1998

63 Fonte: SPTrans: http://www.sptrans.com.br/ser-dir08.htm.

Janeiro 828

Fevereiro 826

47

Fonte: SPTrans S. A.

A Tabela 02 apresenta o volume de passageiros transportados mensalmente nos

dias úteis – de segundas às sextas-feiras – no ano de 1998. A média mensal de passageiros

transportados nesses dias está por volta de 4.462.260. A análise revela uma regularidade

desse contingente transportado nos ônibus em São Paulo: a de ter uma sazonalidade. Isto

pode ser aferido quando se verifica um crescente contingente de passageiros transportados

no início do primeiro semestre e, logo depois, no segundo semestre, se verifica uma

movimentação decrescente. Se considerássemos o fenômeno da evasão escolar,

poderíamos atribuir tal esvaziamento a essa regularidade escolar. As dinâmicas das

atividades produtivas de uma cidade arregimentariam esses contingentes de passageiros

para os ônibus.

TABELA 02 Média Passageiros Transportados/Dia Útil – 1998

Janeiro 4.646.178

Fevereiro 5.047.691

Março 5.167.552

Abril 5.116.242

Maio 5.087.618

Junho 4.962.001

Julho 4.528.969

Agosto 4.906.711

Setembro 4.814.097

Outubro 4.623.731

Março 825

Abril 828

Maio 828

Junho 827

Julho 827

Agosto 825

Setembro 833

Outubro 833

Novembro 832

Dezembro 824

Média de Linhas

828

48

Novembro 4.646.331

Dezembro 4.249.384

Média 4.462.260,

Fonte: SPTrans S.A

A Tabela 03 registra a média de passageiros transportados nos dias de sábado do

ano de 1998. Esse dia da semana apresenta uma redução de aproximadamente 50%

(cinquenta por cento) no volume de passageiros transportados. Tal declínio pode ser

atribuído ao arrefecimento das atividades ligadas ao sistema de produção da cidade.

TABELA 03

Média Passageiros Transportados/Sábado – 1998 Janeiro 2.709.667

Fevereiro 2.941.326 Março 3.096.846 Abril 2.985.515 Maio 3.037.423

Junho 2.916.635 Julho 2.635.551

Agosto 2.777.265 Setembro 2.752.408 Outubro 2.629.023

Novembro 2.786.982 Dezembro 2.654.001

Média 2.605.720 Fonte: SPTrans S.A

A Tabela 04, seguinte, contabiliza a quantidade de passageiros transportados nos

dias de domingo em 1998. A média de passageiros transportados é de 1.592.384 nesse dia

de descanso; comparando-os à média dos passageiros transportados nos dias úteis, verifica-

se que nos domingos há uma redução de aproximadamente um quarto no volume de

passageiros. Esses dias apresentam ao longo dos meses do ano uma oscilação para mais e

para menos em relação à média geral do ano. Esse dado permite aferir que essa dinâmica é

marcada pela redução drástica no contingente de passageiros transportados, uma

importante constatação. Assim, infere-se uma regularidade dos deslocamentos: eles

ocorrem preponderantemente nos dias em que há atividades produtivas. Se a média de

passageiros transportados aos domingos é menor, pode-se concluir que esse serviço não se

volta às movimentações dirigidas à @reprodução social. As viagens para o lazer não têm

nenhum destaque nos trajetos efetuados pelo Sistema de Transporte Coletivo; pelo

contrário, constata-se um volumoso uso nos chamados “dias úteis”, ou seja, de segunda à

sexta-feira. Em decorrência da redução da frota de veículos nos finais de semana,

49

verificam-se veículos apinhados de pessoas, provocando a superlotação desses. E isso gera

situações de desconforto aos seus usuários. Os deslocamentos visando a lazer, passeios e

outras atividades de entretenimento não são suficientes nem incentivados. De tal evidência

pode-se deduzir que um grande contingente da população fica imobilizado devido à

ausência de transportes.

TABELA 04

Média Passageiros Transportados/Domingo – 1998

Janeiro 1.713.075

Fevereio 1.871.083

Março 1.904.895

Abril 1.847.858

Maio 1.835.555

Junho 1.700.257

Julho 1.636.205

Agosto 1.683.071

Setembro 1.638.822

Outubro 1.610.244

Novembro 1.667.542

Dezembro 1.640.811

Média 1.592.384

Fonte: SPTrans S. A.

Essa redução logística se assemelharia a um grande muro invisível, erguido àqueles

que têm como única alternativa de transportes esse tipo de veículo urbano. Desse modo,

ficam sem acesso à cidade pela falta de meios para os deslocamentos necessários a sua

@reprodução social.

Concluindo este capítulo com a apresentação dessas estatísticas, verifica-se o quão

complexa é a questão dos transportes na vida dos citadinos. Desse contexto complexo,

partiremos para a exposição, em detalhes, dessa realidade fugidia do nosso cotidiano

envolvendo tal operação urbana a partir do universo da pesquisa: a linha de ônibus

Hospital das Clínicas – Patriarca ou 8261.

50

SEGUNDO CAPITULO

ELEMENTOS MICROSSOCIOLÓGICOS DA VIAGEM DE ÔNIBUS URBANO

2.1. INTRODUÇÃO

Neste segundo capítulo, classificarei os elementos constitutivos da linha de ônibus

Hospital das Clínicas–Patriarca, 8692. A descrição contém aspectos médios dos instantes

sociais captados nas viagens de ônibus nessa linha urbana. As pequenas unidades técnicas

e sociais foram objeto das observações sistematizadas feitas nesse espaço público urbano e

junto ao seu entorno. Os passageiros foram delimitados nas suas situações de sociabilidade

nesses momentos da circulação urbana64

A conceituação de microssociologia, apresentada por Gurvich (1977: 243/258) e já

tratada anteriormente, permitiu localizar a inter-relação e a interveniência dos elementos

técnicos dessa linha de ônibus sobre a formação daqueles momentos sociais. A análise

correlacionou os elementos e os impactos sobre a qualidade do tempo e do espaço social

vivido no interior de equipamento dessa natureza. Ousaria afirmar ter confeccionado uma

tecnossociografia

, nos seus deslocamentos no ônibus movido a

diesel, uma referência socialmente representativa por se constituir no meio preponderante à

mobilidade urbana da metrópole brasileira.

65

Os passageiros de ônibus se constituem enquanto agrupamentos sociais e estão

emoldurados nos influxos sociais temporais desse equipamento automotor. Para destacar

, quando a descrição pretende correlacionar os elementos técnicos dessa

realidade e as possíveis interfaces existentes sobre o conjunto dos moradores quando na

condição de pedestres e, logo mais, enquanto passageiros nesse espaço público transitivo

específico, marcado por maneiras singulares e fluídas. A descrição dos passageiros de

ônibus dimensionou socialmente esses microfatos sociais encontrados nos instantes de

translados dessa cidade brasileira.

64 Na Carta de Atenas encontramos a seguinte definição: “A rede atual das vias urbanas é um conjunto de ramificações desenvolvidas em torno das grandes vias de comunicação”. Tal definição se encontra no setor da circulação, no item 51. Portanto, a circulação se dá na malha viária, a qual é formada pelo conjunto edificado de ruas, avenidas e demais logradouros de circulação viária de uma cidade. No mesmo documento encontramos, no item 56, a seguinte definição: “A circulação moderna é uma operação das mais complexas. As vias destinadas a múltiplos usos devem permitir, ao mesmo tempo: (...) aos ônibus e bondes, percorrer itinerários prescritos. (...) Cada uma dessas atividades exigirá uma pista particular, condicionada para satisfazer necessidades claramente caracterizadas.” (Le Corbusier, 1993). 65 Tecnossociografia foi o termo encontrado por mim para designar a descrição detalhada dos elementos materiais desse equipamento tecnológico móvel influenciando as condições de acomodação dos indivíduos. É uma tentativa para ir além da etnografia, já que a carga etimológica do termo etnografia limitaria a compreensão dos componentes materiais da microssociologia em uma inter-relação entre indivíduo e os componentes técnicos.

51

essa dimensão, busquei em Robert Park (1979) um amparo teórico acerca das condições

sobre a existência dos grupos sociais. Apresento logo a seguir um apoio para sua definição:

A concepção de “sociedade primitiva” que devemos formar é a de pequenos grupos espalhados por um território. O tamanho dos grupos é determinado pelas condições da luta pela existência. A organização interna de cada grupo corresponde a seu tamanho. Um grupo de grupos pode ter alguma relação um com o outro (parentesco, vizinhança, aliança connubium e commercium) que os reúne e os diferencia de outros. Assim surge uma diferenciação entre nós mesmos, o grupo “nós”, ou grupo interno, e todo mundo mais, ou os grupos dos outros, ou grupos externos. Os que estão dentro de um grupo “nós” estão numa relação um com o outro de paz, ordem, lei, governo e indústria. Sua relação com todos os forasteiros, ou grupos dos outros, é de guerra e saque, exceto na medida em que os acordos a têm modificado66

.

O contingente de indivíduos, em uma viagem de ônibus urbano, produz formas

sociais derivadas desses mesmos momentos de convivências sociais e que, portanto, são

específicas. Nesse meio social transitivo encontram-se formas peculiares de existência

social reveladas nesse meio urbano. Modo social peculiar e maneiras fortuitas por

distinguirem-se nas singulares interações sociais lá processadas. A lógica e a postura

desses viajantes urbanos nesse equipamento coletivo estão condicionadas socialmente

pelas maneiras de fluir efêmeras nesse sistema institucional de transporte coletivo.

Malinowski (1978) considerou a etnografia como um recurso científico para a

descrição rumo ao conhecimento e análise de categorias da realidade social a explicar.

“(...) O recurso para o etnógrafo é coletar dados concretos sobre todos os fatos observados

e através disso formular as inferências gerais” (Malinowski, 1978: 24).

Entretanto, a categoria social de passageiros de ônibus é socialmente naturalizada.

Então, faz-se necessária a descrição deles e do seu contexto social corriqueiro. A

inexistência desse proceder não permitia observar essa trivialidade e dificultava identificá-

la enquanto produto das configurações socialmente padronizadas no espaço público.

Devido à limitação em observar as regularidades desses momentos sociais. Para tanto, um

olhar sociológico sobre as microformas sociais encontradas permitiu seccioná-las e

destacá-las enquanto maneiras instantâneas regulares de convivências nessa construção

socialmente tecnificada. A partir da descrição desse momento social, a reflexão permitiu

desvendar as formas de convivência social nesse equipamento metálico e móvel do meio

urbano como uma constituição genuinamente social.

66 Park, 1979: 58.

52

As situações representadas pelos passageiros nesse tipo de veículo foram

decompostas e classificadas nos seus elementos substanciais. Ao seccioná-los, foi possível

aferir e avaliar a precariedade, a insuficiência, a deficiência e o desconforto. Pequenos

quadros sociais espoliativos67

Os moradores necessitam dos deslocamentos por uma gama de motivos, para

realizarem diversos sistemas de trocas em suas relações sociais, que requerem uma

ritualística social. E, assim, precisaria retornar a Manuel Castells para especificar esse

sistema de troca social e produtor dos diversos tipos de fluxos em uma cidade, os “fluxos

circulatórios essenciais”. Estes se caracterizariam nos seguintes tipos de deslocamentos:

médios, rotineiros, a intervirem cotidianamente, e que

produzem um grande impacto na qualidade das condições de vida dos passageiros no

interior desses autos.

(...) migrações alternantes, (deslocamentos domicílio-trabalho); deslocamentos relações sociais, deslocamentos para lazeres naturais; transporte de escolares; deslocamentos “lazeres”; deslocamentos de compras; tráfego de mercadorias; tráfego industrial; deslocamentos de negócios (Castells, 1983: 238, 239).

Os moradores passageiros de uma cidade, nos momentos circulatórios, vivenciam

microfluxos: quadros, situações e pequenos fatos sociais identificados e registrados em

micromomentos reprodutores das grandes estruturas macrossociais, e a sua análise

permitiu contribuir para a interpretação desse dado da cultura urbana. Para Geertz (1987), a

etnografia teria a seguinte capacidade de refletir os significados sociais:

(...) Se a etnografia é uma descrição densa e os etnógrafos são aqueles que fazem a descrição, então a questão determinante para qualquer exemplo dado, seja um diário de campo sarcástico ou uma monografia alentada, do tipo Malinowsky, é se ela separa as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das imitadas68

.

Nos transportes coletivos, pequenos momentos sociais ocorrem sob relações face-a-

face, e instantes de convivências, e um fragmento da vida social cotidiana: sua descrição

permitiu-nos compreender, interpretar e explicar como se estruturam esses momentos

sociais prevalecentes nas sociabilidades urbanas transitivas modernas. Uma complexidade

social, reflexo de uma totalidade maior da vida social. E, assim, a reflexão sobre essas

microações nos momentos do transportar-se, locomover-se ou transladar-se dos 67 Alusão ao conceito desenvolvido por Lúcio Kowarick, assim definido: “o somatório de extorsões que se operam através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho (Kowarick, 1979: 59). 68 Geertz, 1987: 27.

53

passageiros foi exumada em torno das seguintes interrogações: A) O que acontece

socialmente com um passageiro quando está utilizando o ônibus como meio coletivo de

transporte em uma cidade brasileira? B) Como as relações face-a-face se processam? C)

Como as situações de proximidade física são resolvidas? D) Como se processam os

próximos e distantes olhares e os não olhares entre os indivíduos passageiros de ônibus?

Para tanto, fez-se necessária a decomposição das partes componentes desses

instantes urbanos.

2. 1. 1. DESCRIÇÃO DA LINHA DE ÔNIBUS

A linha de ônibus Patriarca-Clínicas opera desde 1978. É sucedânea da antiga linha

Patriarca-Angatuba, cujo ponto final se situava em frente à antiga casa da FEBEM, no

bairro do Pacaembu, na rua do mesmo nome. A linha de ônibus percorre os distritos da Sé,

República, Perdizes e Pinheiros na cidade de São Paulo69

A frota de veículos em dia útil, no pico da manhã, é composta por 8 carros que

realizam 92 viagens. Na ida do centro ao bairro o tempo médio gasto é de 42 minutos e na

volta perfaz em 50 minutos. No horário entre pico, a frota é composta por 7 carros que

realizam 108 viagens. O ônibus no trajeto de ida do centro ao bairro faz o percurso em 54

minutos e na volta em igual tempo. No pico da tarde a frota fica composta por 8 carros, que

realizam 135 viagens. Uma viagem nesse período realiza-se nos seguintes tempos: na ida

em 63 minutos e na volta em 72 minutos. Aos sábados no horário da manhã, a frota fica

reduzida a 5 carros para realizarem 35 viagens. No entre-pico a frota fica reduzida a 4

. A primeira parada era próxima

ao Hospital das Clínicas – daí a origem do nome da própria linha; o segundo ponto era na

Rua Oscar Freire, em frente a uma academia de ginástica, que inclusive já havia pleiteado

a saída de lá. O terceiro ponto era na Rua Arruda Alvim, 341, quase em frente à Fábrica de

Chocolates Lacta, e que já estaria com seus dias contados, em virtude da construção de um

prédio. O ponto inicial localiza-se na Praça do Patriarca na calçada da Igreja de Santo

Antônio, entre as ruas de São Bento e Cásper Líbero. A linha já teve três alterações no seu

ponto final no bairro. A empresa possui mais de uma garagem em São Paulo. Os ônibus da

linha estacionam na garagem da Rua Aurélia, 306, Lapa. O atual proprietário é o sr.

Ricardo Gatti. A empresa Viação Gato Preto foi fundada em 1946, pelo imigrante italiano

Luiz Gatti, antigo comerciante de carvão vegetal, na cidade de São Paulo.

69 Utilizei o mapa com a delimitação dos bairros-distritos de São Paulo, elaborado por Taschner e Bógus (1999: 65, mapa 02).

54

veículos, responsáveis por 43 viagens. A linha de ônibus é operada por veículo modelo

Caio – Companhia Americana de Ônibus – Vitória. A empresa operadora é a Viação Gato

Preto, a qual possui a concessão para efetuar os serviços de exploração da linha. Esta

obedece, em média, a um intervalo de 12 minutos entre cada veículo. E a mesma empresa

tem uma frota de 100 veículos operando em Foz do Iguaçu.

Os principais pontos da linha se localizam nos seguintes logradouros: Rua Cardoso

de Almeida; Rua Turiaçu; Avenida General Olímpio da Silveira; Avenida São João;

Viaduto do Chá. Excluindo-se o ponto final da Rua Arruda Alvim, a primeira parada fica

na Rua Oscar Freire, altura do número 1967, entre as Ruas Cardeal Arcoverde e Teodoro

Sampaio; a segunda parada – Rua Teodoro Sampaio, altura do número 355, ponto

circunvizinho da região denominada “quarteirão da saúde”. Trata-se do quadrilátero onde

estão estabelecidos os Hospitais das Clínicas, Emílio Ribas, as Faculdades de Medicina e

Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Um ponto de ônibus com grande fluxo de

pessoas oriundas desses locais da área de saúde ou com destino a eles. Este ponto fica nas

imediações da estação Metrô Clínicas. É linha de integração com o metrô.70

70 Os dados apresentados foram coletados junto ao Departamento de Planejamento da São Paulo Transporte, no dia 05 de setembro de 2000.

A terceira

parada fica na calçada do Cemitério do Araçá, na Av. Dr. Arnaldo, altura do número 1200,

quase esquina com a Rua Cardoso de Almeida; a quarta parada localiza-se na calçada do

Cemitério Araçá, lado da Rua Cardoso de Almeida. A quinta, a sexta, a sétima e a oitava

paradas localizam-se, respectivamente, na Rua Cardoso de Almeida, altura dos números

1877, 1487, 1215, 929, a nona parada é na mesma rua quase esquina com a Rua Bocaina, e

a décima na altura do número 299 na mesma artéria; a décima primeira parada é na Rua

Traipu, altura do número 17; a décima segunda parada na Av. General Olímpio da Silveira,

sobre o Viaduto do Pacaembu no bairro de Santa Cecília; a décima terceira na mesma

Avenida altura do número 175; a décima quarta parada é na Estação Metrô Deodoro; a

décima quinta e a décima sexta paradas localizam-se na Rua das Palmeiras, altura dos

números 473 e 261, respectivamente. A décima sétima parada no Largo de Santa Cecília,

altura do número 245 da Rua Sebastião Pereira. A décima oitava e a décima nona paradas

localizam-se no Largo do Arouche. A vigésima parada é na Praça da República altura do

número 401; a vigésima primeira parada é na Rua Consolação em frente à Biblioteca

Mário de Andrade; a vigésima segunda parada é na Rua Xavier de Toledo, esquina com o

Viaduto do Chá, local onde o cobrador troca o letreiro do ônibus. A vigésima terceira

parada, na Praça do Patriarca em frente à Igreja de Santo Antônio, quando descem os

55

últimos passageiros. A localização dos pontos no sentido Bairro-Centro também coincide

com os pontos de ônibus no sentido contrário, portanto é desnecessário descrevê-los no

sentido Centro-Bairro, já que se encontram, geralmente, no outro lado das calçadas dos

mesmos logradouros. A extensão da linha é de aproximadamente 8 km, medição

coincidente com a informação obtida na SPTrans. A velocidade média do veículo no

trajeto é 15 km/h, variando de acordo com o horário, tanto na ida quanto na volta da linha.

Isto ocorre muito, devido aos engarrafamentos e congestionamentos regulares na cidade de

São Paulo.

“Nesta linha existem dois pontos de engarrafamento: na Rua Teodoro Sampaio

altura do IML, e outro ponto de engarrafamento é na Rua Sebastião Pereira em frente ao

(Banco) Bradesco, no bairro de Santa Cecília”. (Informação prestada por motoristas que

anunciavam o conhecimento do fluxo do tráfego ao longo dessa linha de ônibus).

2.1.2. DESCRIÇÃO DOS PONTOS DE ÔNIBUS

Em São Paulo localizar e identificar o Sistema de Transporte Coletivo não é

procedimento fácil às pessoas não “habitués” a ele. E essa dificuldade verificou-se quando

precisei dirigir-me à zona norte para trabalho de campo; quando me dirigi ao Terminal

Parque Dom Pedro na esperança de tomar ônibus para a zona norte. Já no terminal, obtive

a informação de um fiscal de tráfego, que me indicou o Terminal Princesa Isabel, e para lá

me desloquei. Nesse terminal, obtive outra informação: o ônibus para Jaçanã passava pelo

Largo do Paissandu. E para o Largo me dirigi. Já nesse logradouro procurei me informar

com um ajudante de lotação. Esse me disse que o ponto era no outro lado da praça. Mas,

infelizmente, fiquei ciente de que o ônibus 701U Butantã-USP/Jaçanã passava no sentido

USP, no PÔ – Ponto de ônibus – da Av. Ipiranga quase esquina com av. São João. Passei

uma tarde procurando uma linha para ir até Jaçanã, em vão.

Em São Paulo, quiçá no Brasil, os abrigos para pontos de parada e terminais de

ônibus se apresentam, em média, de forma bastante peculiar. O preponderante é a falta

desses enquanto mobiliários para abrigar os seus passageiros. E, quando existem,

apresentam grande precariedade. Passageiros manifestam-se contra a troca do antigo ponto

final. O ponto de ônibus ocupa boa parte de um logradouro, a calçada. O remanejamento

do ponto é questão sempre lembrada pelos passageiros. A instalação de pontos de ônibus é

definida em razão do itinerário do serviço de transporte. Um critério que não conta com a

participação direta da população, a principal interessada. Fiz tal constatação sobre a

instalação de alguns pontos de ônibus nos logradouros públicos da cidade, quando observei

56

alteração em alguns deles. Por exemplo, o ponto de ônibus existente na calçada da

residência de número 299 na Rua Cardoso de Almeida foi deslocado para a esquina da

mesma artéria, esquina com a Rua Turiaçu, na calçada da Farmácia Droga Raia; isso

redundou na concentração de transeuntes naquele logradouro, fato inconveniente aos

pedestres e passageiros. Os principais interessados não tiveram nenhuma participação em

tal planejamento.

Os Pontos de Ônibus (PÔs) são encravamentos de ponto fixo sobre o espaço físico

em uma calçada. Esses equipamentos do mobiliário urbano são implantados no ponto

inicial, nos pontos intermediários e no ponto final de um trajeto de uma linha de ônibus

urbano. A característica preponderante é a de ser uma mobília dentre o conjunto de

equipamentos urbanos marcados pela precariedade urbanística. O ponto do ônibus

enquanto equipamento do mobiliário urbano pode ser descrito de forma muito simples: é

ponto demarcado por mastro de madeira quadrangular, de aproximadamente 3 (três)

centímetros de espessura de cada lado, o qual delimita uma circunferência para a

aglutinação das pessoas, que aguardam a passagem do veículo para poderem tomá-lo. É

uma estrutura arquitetônica ergonomicamente desconfortável. Eles são pontos físicos

nevrálgicos de uma cidade, em virtude de aglutinar pessoas. Um equipamento

caracterizado por sua dilapidação; nele assisti a diversas manifestações de desrespeito

enquanto espaço público. Neste instante, podemos mencionar a observação de O’Donnell,

em Microcenas71

71 O’Donnell, 1988 passim.

: o autor reflete sobre o quanto é difícil estabelecer os parâmetros entre a

órbita do público e do privado no espaço urbano em uma cidade. Há uma série de

inconvenientes, e as posturas rígidas das pessoas denunciam este fato, existindo um quadro

de expectativa. Nestes pontos a sensação prevalecente é a de estar ao léu. Ouvem-se

constantes reclamações contra esse equipamento. Ele é um cisto urbanístico. Esses

mobiliários encontram-se em péssimas condições, mal localizados e sem estrutura para

atender às necessidades de embarque e desembarque de passageiros nos ônibus. A sua

implantação se dá nas calçadas das ruas e das avenidas e haveria uma superposição de

usos. Isto decorre de sua própria localização dentro do fluxo contínuo dos transeuntes. Esse

fato se agrava ainda mais em alguns locais e horários do dia. As suas condições de higiene

contrastam com as roupas limpas das pessoas que esperam o ônibus. Por eles passa um

constante fluxo de pessoas, tais como: 1) casais com filhos menores; 2) mães com crianças;

3) homens jovens; 4) mulheres com muitas sacolas. Há um constante fluxo de sobe e desce

e vice-versa de pessoas entre o ponto e os ônibus, e se destacam as movimentações

57

inconvenientes aos passageiros no momento do embarque e desembarque. Isto ocorre

devido à forma de estacionamento do veículo junto ao ponto, quando os seus degraus de

acesso ficam distantes da calçada e ao mesmo tempo são altos, procedimento irregular. Há

casos em que o primeiro degrau fica a uma altura de mais de 50 centímetros do chão.

Os movimentos regulares de embarque e desembarque apresentam dois principais

movimentos no seu ritual. Os passageiros deslocam-se no interior do veículo nas

movimentações que buscam o deslocamento para o embarque, para a acomodação e para o

desembarque. Essa movimentação pode ocorrer de forma fluida ou obstaculizada, variando

de acordo com o horário da viagem. O problema do movimento de embarque e

desembarque para o ônibus é uma questão ergonômica. É um dos problemas verificados, e

mais intensivamente recorrentes, junto aos passageiros idosos, os quais necessitam fazer

um superesforço físico para realizar um embarque, por exemplo. O movimento se

conforma por um lançar do próprio corpo visando a alcançar o interior do veículo. O

mesmo movimento ocorre em sentido contrário, no egresso. Uma das posturas assumidas

pelos passageiros em pontos de ônibus é a de ficarem com o sentido da vista na direção da

vinda dos ônibus. Na espera ficam sentados, nos poucos bancos de assento, ou em pé,

fazendo pequenos círculos, ou acocorados; nesse momento verificam-se raras trocas de

cumprimentos entre as pessoas/pedestres.

Outra característica do ponto de ônibus numa grande Avenida de São Paulo é o

incômodo do barulho gerado pelo intenso tráfego de carros particulares. Da Rua Arruda

Alvim, 341, até a Praça do Patriarca somam 24 pontos de ônibus, apontados e classificados

entre abrigos e pontos de ônibus. Os pontos e abrigos de ônibus apresentam a seguinte

tipologia de condições físicas: 08 pontos de ônibus confeccionados com mastro

quadrangular de madeira na cor verde e já desbotado; 09 pontos de ônibus confeccionados

em coluna triangular de metal na cor azul (são pontos implantados recentemente); 05

abrigos de estrutura e assentos em concreto armado e cobertos com telhas de amianto; 02

abrigos confeccionados em estrutura metálica e material plástico. Essas estruturas são

novas e foram recentemente implantadas em algumas linhas de São Paulo. Esses novos

abrigos são iluminados por um painel com propaganda comercial. Os primeiros abrigos

desse estilo localizam-se na Praça da República; são de estrutura metálica e estão

substituindo as colunas pontos erguidas em concreto armado. O ponto e o abrigo de ônibus

apresentam condições de escasso conforto: são um equipamento coletivo degradado,

constituindo-se um suporte débil para as operações de “racionalização técnica” no espaço

urbano.

58

Na fila do ponto de ônibus em frente à Igreja de Santo Antônio, encontram-se

pessoas à espera do ônibus de volta para o ponto final na Rua Arruda Alvim, no bairro de

Pinheiros. Nesse ponto, há uma disputa por espaço, em razão da ocupação da faixa paralela

ao meio-fio da calçada pelos vendedores ambulantes. Os passageiros ficam espremidos em

uma fila entre a lataria do auto e as bancas dos vendedores ambulantes na calçada da

Igreja. O local do ponto de ônibus é bastante sujo, com restos de papel, muitas pontas de

cigarros espalhadas pelo chão.

“– A praça do Patriarca é toda da (viação) Gato Preto. Lá só param os ônibus dela!

Ninguém mais!” Com isto, um fiscal@ apresentava-me um dado de fácil constatação:

todas as outras linhas de ônibus pertencem à mesma empresa.

A grande quantidade de pessoas forma uma massa em movimento com passos

muito curtos e rápidos. Os pedestres apresentam inúmeros fenótipos, há muitas variações

de rostos, troncos e membros nesse trecho da cidade. É muita gente em andanças

preconcebidas. Uma multíplice e diversificada quantidade de transeuntes.

Nas primeiras viagens da manhã, no sentido centro-bairro, o grupo predominante é

do sexo feminino, que se dispõe em fila, numa linha imaginária paralela ao meio fio na

calçada da Igreja de Santo Antônio. Nesse momento constata-se ser o ônibus utilizado para

o movimento de deslocamento, na sua maioria, das empregadas domésticas e dos

empregados em prédios dos bairros residenciais; elas sempre carregam bolsas e sacolas,

pois são, em grande parte, trabalhadoras no bairro de Perdizes. Essa constatação trouxe

abaixo a visão unilateral de ser a linha utilizada preponderantemente pela classe média. O

percurso do ônibus no sentido bairro-centro tem como público predominante os seus

moradores, e no sentido contrário traz os servidores domésticos do Centro para o bairro. O

ponto de ônibus enquanto um dos elementos componentes do mobiliário urbano não é

próprio para abrigar os passageiros. Sua infraestrutura não é condigna aos moradores de

uma cidade: eles ficam à mercê do frio, da chuva, do sol, enfim, de todas as intempéries

climáticas. Esse é um dos aspectos do desconforto regular desse Sistema de Transporte

Coletivo – STC.

A fila no ponto de ônibus Patriarca-Clínicas sofre a interferência do grande e

frenético fluxo de pedestres existente naquela calçada. A permanência do passageiro, nesse

local, é bastante tumultuada e mal acomodada. Os passageiros especiais solicitam o pedido

de parada diretamente ao motorista. Os idosos raramente utilizam o cordão para fazer sinal

de solicitação de parada.

59

A título de ilustração, lembraria um local bastante soturno da linha: no caso, ele se

apresenta quando trafegamos sob o Minhocão – Viaduto Costa e Silva. É um momento em

que cai sobre o interior do ônibus um manto escuro das sombras provocadas por esse

logradouro, com pequena iluminação interna: uma atmosfera deprimente toma conta do

interior do ônibus.

2.1.3. DESCRIÇÃO EXTERIOR E INTERIOR DO ÔNIBUS

Os traços característicos do veículo tipo ônibus já foram descritos, com base em

Charles Wright (1988: passim), no primeiro capítulo. E não será necessária a repetição

acerca da qualidade distintiva dele. Nesta oportunidade, apresentarei as características

específicas da linha estudada.

Uma das primeiras características exteriores do veículo é o predomínio da cor

branca sobre toda a sua carroceria, a qual é sobreposta ao meio por uma faixa na cor

vermelha de aproximadamente 35 centímetros de largura. Na dianteira superior externa do

veículo encontra-se o letreiro com o nome e o número da linha, com inscrição em letras

brancas sobre um fundo preto, o qual, à noite, com a iluminação incandescente, é difícil de

ler. Na traseira exterior superior do veículo, encontra-se um painel para anúncios

publicitários, espaço vendido para gerar dividendos aos proprietários das empresas de

ônibus. Ainda na traseira inferior, no para-choque, há a advertência de “Mantenha

Distância” e a placa, na cor vermelha, com o registro nacional de automóveis. Ao lado

direito externo do ônibus existe uma pequena placa metálica na cor vermelha com a

relação das principais vias do trajeto da linha.

No interior do ônibus, destaca-se o conjunto dos seus 35 assentos confeccionados

em plástico duro e desconfortável, na cor cinza, e os 05 demais são para passageiros

especiais, os quais oferecem um abominável desconforto. Não são adequados ao corpo do

passageiro. A distância entre os assentos é, muitas vezes, subdimensionada, além de os

passageiros se ressentirem de constantes deslizamentos devido às constantes manobras do

veículo que provocam desequilíbrio do corpo sentado. Sem comodidade são, também, os

assentos individuais do motorista e cobrador.

O espaço localizado antes da catraca, acessado logo após a entrada dos passageiros,

pode provocar um pequeno motim de insatisfações, devido ao grande constrangimento

formado pelos apertos corporais entre os passageiros, aspecto a ser tratado no terceiro

capítulo. Esse motim decorre, também, do fluxo lento dos passageiros quando devem

passar necessariamente pela catraca ou roleta. Esse equipamento de passagem é

60

confeccionado por barras de ferro na forma de uma asa de borboleta. A catraca foi

implantada por volta do começo dos anos sessenta, para efetuar e controlar os

procedimentos de cobrança das passagens; é um equipamento ergonomicamente

inconveniente. Ela se localiza sobre o eixo longitudinal do ônibus, com função de reter e

contabilizar o número de passageiros pagantes no momento de atravessá-la. A catraca

separa os passageiros pagantes dos não pagantes. A separação é complementada pela

divisória confeccionada por balaústres de metal e um painel de vidro. No outro lado fica o

assento do cobrador. E no lado oposto localiza-se um painel utilizado para comunicação e

demais anúncios comerciais. A partir do ano de 1998, foram implantadas nos veículos

dessa linha as catracas eletrônicas.

O teto interior do veículo é revestido com folhas do popular conglomerado de

madeira conhecido por formiplac, revestimento interno complementado por folhas de fibra

sintética nas partes laterais internas do piso do veículo até a altura das janelas de vidro, e os

balaústres dos assentos são cobertos por folhas de alumínio enrugadas.

A iluminação interna à noite é composta por um conjunto de dez lâmpadas

fluorescentes, as quais oferecem desconforto devido a sua fraca iluminação, agravada por

um estranho procedimento: as lâmpadas junto ao motorista são mantidas apagadas e

somente acesas quando há embarque ou no momento do pagamento das passagens.

Quanto ao mecanismo para solicitação de parada, é o acionamento de cordão

confeccionado por fios de nylon, estendidos e afixados no teto de forma paralela até as

imediações da porta traseira do veículo.

Na parte interna superior frontal do veículo encontra-se afixado um grande cartaz

com as seguintes especificações: denominação e endereço da empresa operadora – no caso,

Viação Gato Preto, Rua Aurélia, 292, Lapa, São Paulo – SP. Informa o serviço telefônico

gratuito, 0800173737, oferecido no horário comercial. Também o endereço e telefone –

158 – da São Paulo Transporte. Registro da capacidade e o número de identificação do

veículo – no caso, 37.483. O aviso de: “Fale ao motorista somente o necessário”. Sobre a

porta de embarque encontra-se o apelo dirigido ao motorista: “Respeite o idoso”. Na área

reservada aos passageiros especiais encontra-se o cartaz – 40 x 30 cm – com o anúncio e

identificação dos passageiros que gozam de gratuidade da passagem. Na parede superior

do cobrador visualiza-se um pequeno cartaz – 20 x 15 cm – com o “valor da passagem” à

época, R$ 1,15.

No interior dos veículos constata-se a presença de reclames institucionais de forma

bastante patente. Os principais avisos estão afixados em forma de placas ou em fitas

61

adesivas: 1 – Fale ao motorista somente o necessário; 2 – Não fume; o aviso de “É

proibido fumar” é anunciado – simultaneamente – por uma lei e um decreto do município

de São Paulo. Num cartaz visualiza-se o da lei municipal Nº 3.938 de 8 de setembro de

1950, a qual instituiu a proibição de fumar no interior dos veículos de transporte coletivo.

Noutro cartaz visualiza-se o aviso referente ao decreto municipal Nº 17.451/81, que

também instituiu a proibição de fumar nos diversos meios de transporte coletivo urbano. 3

– Não é permitido o uso de aparelhos eletrônicos de som. “É Proibido o uso de aparelhos

sonoros.” Lei municipal Nº 6.681/65. Essa lei proíbe o uso de aparelhos individuais

sonoros com volume alto. Atualmente prevalecem os aparelhos sonoros com fones de

ouvido.

Outro aviso é parte do Código Penal. Um cartaz adesivo pequeno traz o seguinte

trecho: “Artigo 176 – Tomar refeições em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de

meio de transporte sem dispor de recursos para efetuar o pagamento. Pena: Detenção de 15

dias a 2 meses ou multa”. Essa intimidação é dirigida aos “passageiros fantasmas”. Para

esses existia um anúncio num cartaz de tamanho significativo. A campanha contra os

chamados “passageiros fantasmas” chama-se “Caça Fantasmas”. Uma contraofensiva das

empresas é a implantação e instalação de câmeras de filmagem. No grande adesivo lê-se o

seguinte texto: “Vamos caçar os ‘passageiros fantasmas’! Preserve o seu transporte diário,

denunciando esses fantasmas, pois eles dificultam o investimento na melhoria dos

transportes”. Esse anúncio era parte de uma campanha aos passageiros que insistiam em

tomar o ônibus sem fazer o pagamento da passagem.

Outro cartaz no interior do ônibus faz uma advertência: RESPEITAR O IDOSO

É RESPEITAR A SI MESMO

Na lataria dos veículos podemos ver um anúncio, uma pérola para convencer os

passageiros da atual maneira de acesso ao ônibus: RECEBEMOS VOCÊ

PELA PORTA DA

FRENTE.

Esse anúncio é uma tentativa de sensibilizar os procedimentos de acesso pela porta

dianteira, o qual precisaria ser verificado ergonomicamente como mais confortável. Outro

anúncio à vista na parte superior da porta de desembarque é o número do telefone 158, o

setor de reclamações, ainda com o nome da CMTC, da antiga Companhia Municipal de

62

Transporte Coletivo. Outro aviso no interior do veículo é referente à higiene interna, que

especifica as seguintes recomendações:

Senhor Usuário, esta empresa, preocupada com seu bem-estar, realiza regularmente a desinsetização deste veículo com o objetivo de controlar a proliferação de insetos nocivos à sua saúde. Portanto, pedimos a colaboração não deixando sobras de alimentos no interior do mesmo.

Entretanto, não existe nenhum tipo de recipiente para depósito dos resíduos sólidos

produzidos pelos passageiros em viagem. Essa constatação vai de encontro ao senso

comum dos trabalhadores dos veículos, que não tinham essa compreensão e simplesmente

culpavam os passageiros por tal infortúnio no seu trabalho.

No quadro de comunicação social está afixado o Jornal do ônibus, uma folha

tamanho 40 x 25 cm, com notícias e informações de responsabilidade da São Paulo

Transporte. A edição do Jornal do Ônibus de 25 de julho de 2000 registrava ser o dia do

motorista, destacando o padroeiro da categoria profissional, São Cristóvão, um soldado

romano do século IV, que durante muito tempo se prestou ao serviço de travessia dos

habitantes de uma cidade. No período das observações sistemáticas, o Jornal do Ônibus do

mês de julho de 2000 divulgou notícia dando conta da alteração dos procedimentos de

operação da linha de ônibus:

Conforme o Decreto Nº 39.568 de 30 de junho de 2000, ficava autorizado embarque e desembarque de passageiros fora dos pontos entre 23 h e 5 h sem que haja alteração no itinerário das linhas de ônibus. O objetivo é garantir a segurança do usuário do Sistema de Transporte Coletivo.

O decreto veio flexibilizar o procedimento de descida e subida dos passageiros,

principalmente para os moradores de bairros vítimas de grandes índices de assaltos.

Portanto, foi uma surpresa encontrar um ambiente normatizado por avisos com

advertências, procedimentos, regulamentos, decretos e leis. Ou seja, as forças institucionais

eram a tônica. Lembrei-me de um cartaz com inscrições de poesias nos ônibus da cidade de

Porto Alegre. Comparei esses dois ambientes e procedimentos. Em determinada cidade os

veículos anunciam de forma mais acintosa as suas sanções sociais repressivas. Na capital

do Rio Grande do Sul existia um toque mais requintado. A exposição de um cartaz

contendo uma poesia fazia essa diferença. A preocupação com o conforto do passageiro é

denunciada por este procedimento. Quando do período de verão, o interior do veículo se

ressente da alta temperatura ambiente, item que interfere em suas condições de

acomodação.

63

2.1.3.1 INSCRIÇÕES SOCIAIS NO ÔNIBUS

No interior dos veículos, nas partes traseiras dos encostos dos assentos encontramos

subscritos não oficiais. As inscrições são produzidas – provavelmente – por usuários

jovens, devido a ser esse local ocupado por tal categoria de passageiros, por preferirem

localizar-se no fundo dos veículos, como apontarei no item 2.1.4. Nesses locais encontram-

se grafias, desenhos, um desafio à grafética, tais como: riscos geométricos poligonais, tanto

simétricos como assimétricos (1); registros de nomes próprios (1); registros de nomes de

pares de pessoas – Márcio e Lucy – prováveis namorados? (1); conjunto de letras não

identificáveis (2); nomes de times de futebol (Timão, uma alusão ao Corinthians) (2).

Uma análise para a compreensão acerca das pichações poderia partir da

contribuição de José de Sousa Martins, que apresenta uma das vertentes desse tipo de

manifestação, avaliando tal atitude da seguinte forma:

A pichação indica uma vontade de se apossar da cidade não pelo uso, próprio do cidadão e do integrado, e sim pelo consumo predatório de quem tem uma relação de estranhamento e desamor com a cidade em que vive. Não se trata de construir significados, mas de demoli-los, de desfigurar o cenário e as referências de todos os dias e de todos. A pichação é o retrato da falta de consciência social, da descontinuidade entre o analfabetismo funcional dos pichadores e a cultura do monumento72

.

As pichações precisariam ser entendidas como uma forma primária de se fazer

presente nessa realidade interferindo em um equipamento público da cidade; uma

manifestação e uma tentativa de interlocução estática nesse espaço social.

2.1.3.2. CENAS SOCIAIS NO ÔNIBUS

No interior do ônibus ocorre uma variedade de expressões populares. O interior do

veículo é muito utilizado como palco para diversas manifestações sociais. Elas se dão em

diversos tipos de práticas, tais como: artísticas, pequenos comércios e mendicância. Esse

espaço público é utilizado por haver alta rotatividade de público, o que possibilita o

encontro e o contato com diversas pessoas e potenciais colaboradores para esses

manifestantes culturais e econômicos. As manifestações culturais são apresentadas por

cantores, instrumentistas musicais e performáticos. Os vendedores oferecem bombons,

balas e outros pequenos produtos comerciais. Os mendigos se apresentam de forma oral e

por escrito: um panfleto (resgatado e transcrito logo abaixo) traduz o conteúdo e o

72 Martins, 2000: 45.

64

sentimento desses humildes pedintes. Eles, por exemplo, chegam a confeccionar e

reproduzir pequenos bilhetes escritos mecanicamente ou manuscritos, com conteúdos que

justificam seus pedidos, como o que transcrevemos abaixo:

Senhoras e Senhores Estou aqui presizando de sua ajuda. Estou desempregado.

Tenho 4 filhos menores passando necessidade. A situação esta dificil para nois (nós) todos, mas é melhor pedi doque (do que) roubar. Me ajude como puder aceito vale transporte também vale refeição. Obrigado e Boa viaje (sic.).

Todas essas práticas sociais visam a angariar dinheiro para a sobrevivência. Diante

de tais cenas esse espaço público é ocupado pelo perfilar das necessidades e manifestações

de parte da população carente. Uma situação sui generis enfrentada pelos passageiros que

se encontram no veículo, eles ficam expostos aos apelos dramáticos desses pedintes. Esse

espaço é ocupado por encenações com conteúdos sociais, as quais exercem grande pressão

social sobre os passageiros, já que eles são solicitados a contribuir financeiramente com

esses atores etnossociais. Assim, todos os enredos das mensagens visam a sensibilizar os

passageiros a atenderem essas demandas sociais.

2.1.4. DESCRIÇÃO DOS PASSAGEIROS DE ÔNIBUS Onde se encontra o passageiro de ônibus? Ele pode ser identificado e está enquanto

agrupamento em diversos pontos dos logradouros de uma cidade, nas seguintes situações:

A primeira delas é a situação de “pedestre”. Para a Associação Brasileira de Pedestre –

ABRASPE, pedestre seria definido pelas seguintes condições:

Pedestre somos todos nós que andamos a pé no espaço público. (...) Ser pedestre é uma condição natural do ser humano. Com o objetivo de poupar sua energia muscular e de dispor de maior conforto e mobilidade, especialmente em percursos longos, o homem criou e desenvolveu tipos de veículos e de sistemas de tração. A partir daí surgiram duas novas condições: a de passageiro e a de condutor (grifo do autor)73

A condição de passageiro é antecedida pela condição natural de pedestres. E essa

situação reles é a primeira propriedade, a de ser simplesmente humano. A qualidade de

caminhante é a pré-condição.

.

Ivan Angelo, em seu artigo “Que gente é esta?”, faz a seguinte crônica sobre a

situação de um pedestre:

Viagem em torno de algumas pessoas envolvidas num incidente de rua. O automóvel ultrapassou o ônibus e atropelou um pedestre dentro da faixa de segurança. Um passageiro gritou da

73 ABRSPE, O Pedestre: 1.

65

janela: “O bonitinho invadiu a faixa!” Um transeunte apoiou: “Dá um cacete nesse folgado!” Diante da ameaça, o motorista arrancou o carro e fugiu. O pedestre, meio atordoado, levantou-se, apalpou-se, conferiu os bolsos, olhou as pessoas e seguiu seu caminho, batendo a poeira da roupa.

É essa a história. Mas aqueles repentinos atores de uma cena de rua ficaram na minha cabeça. Que gente é esta, sem nome, que vemos todos os dias, que por um eventual papel num pequeno acontecimento se destaca da multidão? Que há de geral nestas pessoas para as designarmos por um nome genérico que lhes cassa a individualidade, dispensa-lhes o nome próprio e mesmo assim todo mundo sabe de quem estamos falando? 74

O cronista destaca a figura do pedestre pelo seu anonimato, pela falta de

individualidade, por ser parte de uma massa em movimento pela cidade. Ele é um dos

componentes dinâmicos nas trilhas e nos caminhos sociais no trânsito urbano, e destacado

às vezes nos seus acidentes.

Os habitantes de uma cidade, ao tomarem um ônibus por um motivo qualquer, se

encontram em formas individuais ou grupais, em pequeníssimos, pequenos, médios e

grandes aglomerados humanos nos logradouros: nas travessas, ruas, avenidas e praças à

espera desse meio de transporte coletivo. Espacialmente dispersos ou em posições

perfiladas nesses espaços públicos das calçadas, marquises e pontos ou terminais de

ônibus, para embarcarem ou desembarcarem do interior desses veículos, esses habitantes

urbanos distribuem-se fazendo e desfazendo grupos em diversos pontos e instantes do dia-

a-dia da cidade. Essas formações sociais instantâneas localizam-se e podem ser

visualizadas ao longo das plagas citadinas num quadro cadenciado por expectativas

inerentes à rotina da cidade. Movimentos rotineiros condicionados e imprimidos pela

divisão social do trabalho. A materialização dessas apropriações territoriais foi conceituada

por Michel de Certeau (1994), ao se referir ao contexto espacial do lugar na sociedade

contemporânea. Sobre essa dimensão ele faz a seguinte abordagem:

(...) O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação (o speech act) está para a língua ou para os enunciados proferidos. Vendo as coisas no nível mais elementar, ele tem com efeito uma tríplice função “enunciativa”: é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se apropria e assume a língua); é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização sonora da língua); enfim, implicam relações entre posições diferenciadas, ou seja, “contratos” pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é “alocução”, “coloca o outro em face” do locutor e põe em jogo contratos entre colocutores). O ato de

74 Revista Veja São Paulo, de 6 de outubro de 1999, São Paulo, Editora Abril, pág. 126.

66

caminhar parece portanto encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação75

.

O tempo social do passageiro é composto por encadeamentos de intenções e ações

momentâneas e de apropriação, tais como: ter um plano de tráfego, deslocar-se de um

espaço privado ou público para o meio público, usar indumentárias, dispor de recursos

monetários, situar-se em um logradouro – ponto de parada e/ou terminal de ônibus –,

esperar a condução, embarcar em equipamento público coletivo, vivenciar instantes e

atingir outros territórios. Para Certeau, esse procedimento cultural reflete as ações sociais

ordinárias, e essas com uma realidade produzida pelas práticas comuns e compulsórias da

existência social no cotidiano das sociedades capitalistas, e uma prática socialmente

estabelecida nas travessias entre espaços sociais. Já Robert Park (1979) atribui ao

transporte a função instrumental de costurar os segmentos sociais nos grandes aglomerados

humanos; esses deslocamentos diários efetivam e põem em contato os segmentos sociais.

O transporte arremataria o que é socialmente separado, ao fazer as conexões entre espaço

público e privado ou privado para privado ou entre público e público etc..

Não somente o transporte e a comunicação, mas também a segregação da população urbana tendem a facilitar a mobilidade do homem individual. Os processos de segregação estabelecem distâncias morais que fazem da cidade um mosaico de pequenos mundos que se tocam, mas não se interpenetram. Isto possibilita ao indivíduo passar rápida e facilmente de um meio moral a outro, e encoraja a experiência fascinante, mas perigosa, de viver ao mesmo tempo em vários mundos diferentes e contíguos, mas de outras formas amplamente separados76

.

Os passageiros transladados por movimentos dos ônibus visam a cerzir partes

individuais e categorias sociais para confeccionar o tecido social urbano. Esses

movimentos viabilizam a associação das partes individuais, das pequenas, médias e

grandes categorias sociais dissociadas. Como também, no interior desses veículos, no

ínterim dos movimentos há os microângulos sociais face-a-face – já anunciados –,

produtores de situações de proximidade ou de distanciamento nesses momentos de

reconhecimento social ou não. Com isso vai ocorrer uma das maiores contradições sociais:

o indivíduo “próximo fisicamente” é uma pessoa “distante socialmente”. Essa situação

pode ser explicada por Simmel (1979) na análise dessa condição na vida metropolitana

moderna, vejamos: 75 Certeau, 1994: 177. 76 Park, 1979: 62.

67

Uma antipatia latente é o estágio preparatório do antagonismo prático (que) efetua as distâncias e aversões sem as quais esse modo de vida não poderia absolutamente ser mantido. A extensão e composição desse estilo de vida, o ritmo de sua aparição e desaparição, as formas em que é satisfeito tudo isso, com os motivos unificadores no sentido mais estreito, formam o todo inseparável do estilo metropolitano de vida. O que aparece no estilo metropolitano de vida diretamente como dissociação na realidade é apenas uma de suas formas elementares de socialização77

.

Portanto, o distanciamento é experiência cotidiana do passageiro. Nele é fecundada

constantemente essa prática social que reafirma o caráter anticonvivência social com os

semelhantes. O distanciamento é um padrão formal de (des)reconhecimento social. Então,

os passageiros moradores desenvolvem círculos de delimitação socioespacial. Esse óbvio

exemplo no interior do transporte coletivo afirma-se ser procedimento humano e um

condicionador social segregativo. Para embasar a reflexão, ousaria tomar a análise de

Agnes Heller (1994) quando oferece uma explicação sobre a questão das proximidades:

(...) Los sistemas de exigencias sociales aparecen cada vez más mediados por grupos concretos, por unidades en las que imperan las relaciones face-to-face, que son las determinantes, o lo que es lo mismo, por unidades en las que estos sistemas de exigencias están representados inmediatamente por hombres (hombres conocidos) y por relaciones humanas (estruturadas)78

.

Esses efêmeros momentos sociais no espaço público, logo mais destacados no

capítulo terceiro, constituem um quadro marcado por traços de integração social bastante

singular; notam-se vivências expressas por significativas padronizações regulares na

circulação intraurbana e, assim, um tipo médio, imposto na condição das convivências no

interior de um veículo em uma cidade, materializado no isolamento social da maioria dos

passageiros.

Fotografia da Solidão Beth Gotardo.

Além da solitude urbana, esse microespaço público poderá também @liquidificar

impasses microssociais. Para demonstrar essa capacidade, tomarei uma referência

cinematográfica que expressa desavenças sociais. O filme Beautiful people79

77 Simmel, 1979: 18.

apresenta uma

situação hilariante num ônibus de Londres, em que um antigo litígio interpessoal, ocorrido

78 Heller, 1994: 69. 79 Beautiful People79, (1999) Inglaterra. Direção: Jasmin Dizdar; Elenco: Charlotte Coleman, Charles Kay, Rosalind Aires, 102 min., Folha de S. Paulo, de 25.06.00, no caderno especial, pág. 4.

68

durante o conflito civil na ex-Iugoslávia, teve sua resolução fora daquele país. Dois

homens, ao se reencontrarem no interior de um ônibus londrino, se reconhecem e iniciam

uma luta física interpessoal. Essa foi provocada pelas lembranças das desavenças nas lutas

nacionais, e os dois terminam em um hospital para tratarem dos seus ferimentos. A alusão

exemplifica como o interior coletivo do veículo serviu para ajustes de contas pessoais, ao

eclodir nesse recinto um microconflito, provocando interferência nos momentos de

sociabilidade entre os passageiros daquele ônibus britânico. Sobre a questão dos conflitos

no interior dos ônibus trataremos de forma especial no capítulo 3. Portanto, nesse espaço,

as relações de proximidades físicas e distanciamentos sociais se propagam nessa realidade.

“A cada meia-viagem também mudam os passageiros, a quantidade, o tipo de fluxo,

as relações estabelecidas entre os passageiros e entre os passageiros e os operadores”80

Como já considerado, complementaria com outro aspecto sobre os instantes dos

passageiros, os quais oscilam entre momentos de reconhecimentos e de desconhecimento

sociais. Para tanto, utilizei duas perspectivas teóricas para elucidar essas dimensões: a de

Marc Augé

. A

divisão social do trabalho determina o tipo e a intensidade dos fluxos de indivíduos das

linhas de ônibus. Isto decorre de haver uma relação direta entre os fluxos de passageiros e

os espaços territoriais alcançados pelos transportes. No caso da linha estudada destacaria,

agora, as empregadas domésticas e os trabalhadores em serviço que tomam ônibus no

período da manhã no sentido Centro-bairro. Nesse mesmo período do dia na viagem

bairro-Centro identificamos serem os estudantes os passageiros predominantes. No meio

da manhã encontramos os trabalhadores do centro financeiro. No final da manhã o ônibus

tem como público aqueles que estão em serviço na região Central. No final do dia o ônibus

é ocupado pelas duas categorias mencionadas no início deste parágrafo, só que em

movimento inverso. No final da noite o grupo de passageiros é formado pelos executivos

do centro financeiro no retorno ao bairro.

81 e a de José Guilherme C. Magnani”82

80 Forneck, 1994: 60.

. As duas abordagens teóricas

identificam e apresentam dois aspectos diametralmente opostos quanto às formas de

reprodução de convivências encontradas nesses espaços públicos urbanos. Há

alternadamente as duas visões sociais em distintas linhas de ônibus urbanos. Primeiro,

apresento a contribuição do etnólogo francês Marc Augé: ele afirma serem as vivências na

81 Augé, 1994: passim. 82 Magnani, 1996: passim.

69

supermodernidade demarcadas por alterações de escalas e materializadas no contexto

social sob uma nova forma de organização social.

(...) Esta se expressa, (...), nas mudanças de escala, na manipulação das referências energéticas e imaginárias, e nas espetaculares acelerações dos meios de transporte. Ela resulta, concretamente, em consideráveis modificações físicas: concentrações urbanas, transferências de populações e multiplicação daquilo a que chamaremos “não-lugares”, por oposição à noção sociológica de lugar, associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquela de cultura localizada no tempo e no espaço. Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quando os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta 83

.

Desse modo, segundo as referências identificadas por Augé, os passageiros

estariam, durante a circulação urbana, nos momentos definidos como “não lugar”. Há

impessoalidade em alguns pontos de ônibus. Quando se verifica o tipo e momento em seu

uso, vale adiantar que, no ‘trânsito prolongado’, isso é um fato sentido e percebido pelos

passageiros da cidade de São Paulo.

Por outro lado, nas linhas de pequeno percurso verificam-se situações em que há

identificações pessoais junto aos passageiros contumazes. Assim, apelaria à abordagem de

Magnani ao formular uma visão contrária à situação apontada por Augé. A viagem de

ônibus pode oferecer momentos de convivência entre os passageiros e isto ocorre nos

trajetos do público cativo. Vejamos a avaliação dada por Magnani:

O que acontece, porém, em outros pontos do território urbano, como a região central, por exemplo – geralmente caracterizada pelo anonimato, impessoalidade nas relações e percorrida por gente de várias procedências? Como se estabelecem, aí, as redes de sociabilidades, já não marcadas por relações de família e vizinhança ou por práticas compartilhadas no horizonte do dia-a-dia84

.

Para Magnani, a possibilidade de criar vínculos sociais nos espaços urbanos

coletivos, nos “pedaços do espaço urbano”, confirma-se, também, na realidade de algumas

formas de relacionamento nas viagens de ônibus.

Olga Benário, 42, com seu cavaquinho (foto no jornal) costuma tocar nas viagens de ônibus até o trabalho, no Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, em São Paulo. Olga, que também faz apresentações como cover do cantor Tiririca, tem no

83 Augé, 1984: 36/37. 84 Magnani, 1996: 33.

70

repertório músicas como “Carinhoso”, de Pixinguinha e João de Barro, que ela toca para alegrar os passageiros de ônibus85

.

Essa referência exemplifica os possíveis elos existentes no interior dos ônibus e,

portanto, é uma das formas de sociabilidade criadora de laços sociais. O passageiro

contumaz cultiva alguma proximidade. Nessa perspectiva, o momento da viagem em

ônibus é formado por quadros de convivência marcados pelas duas situações antagônicas.

Ainda, eu somaria uma interrogação formulada por Augé, a qual traz a seguinte

ponderação à questão: “A segunda questão tem um alcance totalmente diferente: os fatos,

as instituições, os modos de reagrupamentos (os de trabalho, de lazer, de residência), os

modos de circulação específicos do mundo contemporâneos são passíveis de um olhar

antropológico?”86

Uma das características dos movimentos de passageiros de ônibus é ritmada pelo

constante sobe e desce cadenciado pelos embarques e desembarques nos pontos de parada,

marcados por tensões, confrontos corporais e verbais entre os seus usuários. A

compreensão quanto aos movimentos dos passageiros poderia ser ampliada pela

conceituação de Paul Virilio, que localiza a realidade dos movimentos de transeuntes e

veículos na seguinte perspectiva:

. Dessa interrogação eu intuiria que os momentos do passageiro de ônibus

permitem uma dimensão analítica dos modos existentes nesse tipo de espaço. O mesmo

pode propiciar convivências delimitadas e constituídas por experiências fugazes, jogos

sociais com traços associáveis e/ou dessociáveis.

O espetáculo da rua é a circulação, o pilgrim’s progress, movimento de procissão, simultaneamente viagem e aperfeiçoamento, marcha equiparada ao progresso rumo a alguma coisa melhor, peregrinação que inundou a Idade Média. A rua é como um novo litoral; o domicílio, um porto do transporte de onde se pode medir a importância do fluxo social, prever seus transbordamentos.87

O ator social passageiro é parte dos movimentos de procissão. Nesse aspecto o seu

perfilar é objeto da dromologia, ao se constituir como elemento em circulação por ruas,

avenidas e demais logradouros públicos de uma cidade; se possível dizer, afirmaria que ele

é o átomo da circulação. Muitos trajetos são feitos por conjuntos de passageiros que

querem embarcar e estabelecer-se no interior do ônibus: para ficarem dispostos em

85 Folha de S. Paulo, de 26 de setembro de 1998, pág. 3. 86 Augé, 1994: 16/17. 87 Virilio, 1996: 22.

71

assentos um atrás do outro, ou em pé ao longo do corredor formado entre os assentos –

socialmente isolados ou integrados.

Os passageiros de ônibus solicitam constantemente informações aos trabalhadores

dos veículos, os quais prestam tais informações sobre o STC. Esses mesmos trabalhadores

de ônibus, motoristas e cobradores, sempre estão com olhares de supervisão no interior do

ônibus. O olhar administrativo do cobrador – o auxiliar de operação do motorista – é uma

supervisão zelosa para o controle da ordem interna do conjunto dos passageiros. Esses

trabalhadores exercem grande poder sobre o conjunto dos passageiros a bordo, quando

recai uma ação panóptica (Michel Foucault, 1986). Essas profissões possuem uma

autoavaliação sobre a sua categoria profissional: “– A nossa profissão é mais importante do

que a de médico”, declarou um motorista.

Outra característica identificadora de um passageiro é quanto aos seus trajes:

vestimentas simples. Homens ou mulheres, crianças, jovens, adultos ou idosos, todos

vestem roupas asseadas e novas, mostram-se limpas e até cheirosas. Durante as viagens

dos passageiros é possível observar os seus trajes e os pertences que carregam consigo.

Das observações sistemáticas resultou uma descrição das características médias dos

passageiros e das passageiras contumazes da linha Clínicas-Patriarca88

88 Doravante adotarei as seguintes siglas para designar algumas categorias observadas nas viagens: Po – Passageiro (masculino), Pa – Passageira (feminina) e PÔ – Ponto de ônibus.

. Os cobradores

informam serem as segundas-feiras os dias de maior volume de passageiros. A

cronometragem do tempo médio para embarque ou desembarque indica 3 (três) até 50

(cinquenta) segundos. No PÔ da Rua Oscar Freire, transita preponderantemente uma

população flutuante: é um ponto pouco utilizado. No PÔ da Rua Teodoro Sampaio, 335,

temos grande frequência de funcionários do setor de saúde daquela região, como também

dos moradores à procura desse tipo de prestação de serviço. Os primeiros podem ser

facilmente identificados: mulheres e homens adultos trajam bata branca comprida, sobre

calça, blusa ou camisa em tons escuros de fibras sintéticas, com cabelos presos por uma

fivela ou sempre de cabelos curtos. Expressam fisionomias reflexivas. Destaca-se a

presença de passageiros idosos com cabelos curtos e/ou tingidos; alguns homens idosos

usam boné, calças pretas de tecido sintético, camisa branca de manga curta. Através da

audição de conversas distinguem-se os sotaques. Viajam e conversam sobre resultados de

diagnósticos clínicos, quando retornam do quadrilátero do Hospital das Clínicas. O PÔ da

av. Dr. Arnaldo é muito usado pelos passageiros egressos dos outros ônibus ou da Estação

Clínicas do Metrô, nessa importante artéria de São Paulo. No PÔ da Rua Cardoso de

72

Almeida na calçada do cemitério, sobem passageiros carregando grandes sacos plásticos

nas mãos. As passageiras vestem calças compridas, blusas escuras e portam bolsa de alça a

tiracolo. No PÔ da Rua Cardoso de Almeida, 1487, embarcam passageiras, de modo geral:

portam bolsa de alça tipo tiracolo e vestem calça comprida e suéter em tons escuros. No

PÔ da Rua Cardoso de Almeida, 1215, os passageiros carregam sacos plásticos nas mãos,

todos portam consigo bolsas de alça tipo tiracolo, confeccionadas com material plástico,

levam caixas de alimentos da lanchonete (Habib’s), ou carregam bolsas de alça modelo

tiracolo e levam caixas de papel. Todas vestem calças compridas e blusas de malha em

tons escuros. Alguns passageiros levam livros. Os passageiros trajam camisa tipo suéter;

uns levam pastas tamanho ofício. O PÔ da Rua Cardoso de Almeida, 965, é,

preponderantemente, utilizado pelos estudantes e funcionários da PUC/SP, grandes grupos

de estudantes sobem no ponto de ônibus, quase esquina com a Rua João Ramalho no bairro

Perdizes. Esses seriam identificados pelas seguintes indumentárias: as garotas trajam

calças em tons escuros e blusas de tecidos em fibras de algodão, no inverno usam casacos

para o frio. Carregam nas mãos pastas tipo ofício e bolsas tiracolo, utensílio regular para as

mulheres. Enfim, todas usavam bolsa de alça tipo tiracolo de plástico mais uma pasta. Os

passageiros são identificados por instituições através das logomarcas impressas nas bolsas,

como, por exemplo, PUC/SP. Todos aparentam rostos robustos e sadios. No PÔ da Rua

Cardoso de Almeida esquina com a Rua Bocaína, passageiras embarcam carregando bolsas

de alça tipo tiracolo, e também levam pasta tipo executivo de couro. Passageiros embarcam

com agendas e telefone celular. Todos carregam bolsas. Uns levam ainda revistas e pastas

de couro com alça estilo executivo.

A partir desse ponto, o ônibus já se encontra com todos os assentos ocupados. Nele

embarcam aqueles que se dirigem para a região central da cidade. O último nessa mesma

artéria é na altura do número 299, em Perdizes; é uma pequena faixa da calçada próxima a

uma caixa de lixo depredada. Passageiros idosos de cabelos grisalhos embarcam e levam

consigo bolsas do tipo tiracolo, de tamanho significativo, e pastas tipo executivo; as

passageiras portam bolsa do tipo tiracolo ou pequenas bolsinhas: sempre carregam bolsas.

Há passageiras que, ao sentarem-se, logo começam a dormir. Nesse ponto é frequente a

presença de alunos do colégio Santa Marcelina em animadas conversas. As jovens

estudantes mantêm longas conversas sobre qualquer assunto, um dia estavam discutindo

sobre a aplicação de piercing. Uma delas tinha uma coleção de brincos na orelha direita.

No PÔ da Rua Traipu, 17, quase ninguém sobe nem desce, quase não há parada. No PÔ

sobre o Viaduto Pacaembu embarcam passageiros idosos, vestem casaco e carregam nas

73

mãos sacos plásticos. No PÔ da Av. General Olímpio da Silveira, 175 sobem passageiros

trajando paletós, vestimenta comum ao período de verão ou inverno, e que são sempre em

cores e tons escuros. No PÔ da Estação Metrô Deodoro, passageiros descem para a

conexão com a linha vermelha do Metrô Leste-Oeste. No PÔ da Rua das Palmeiras, 283,

passageiros adultos e idosos desembarcam: os cabelos tingidos são característicos; vestem-

se, geralmente, com calças compridas e portam bolsas de alça de cor escura. No PÔ do

Largo de Santa Cecília, 245, passageiras vestindo calças jeans sobem e também carregam

bolsa de alça. No Largo do Arouche desembarcam passageiros portando pastas. No PÔ da

Praça da República, 401, os primeiros passageiros descem no Centro. Na Avenida São

Luiz não há ponto de parada para essa linha 8261. No PÔ da Rua da Consolação em frente

à Biblioteca Municipal Mário de Andrade, os passageiros com agendas e/ou pastas

desembarcam.

Chegando ao PÔ da Rua Xavier de Toledo, na calçada do Shopping Light, o

cobrador confere o número de passageiros registrados na catraca e efetua a troca do nome

da linha no letreiro, no caso: de Patriarca para Clínicas. O último PÔ é na Praça do

Patriarca, em frente à Igreja de Santo Antônio, quando descem os demais passageiros.

Constata-se o procedimento de alguns passageiros, o de passar um olhar em revista pelos

demais no interior do ônibus. Nos horários diurnos, há presença constante dos passageiros

office-boys, aqueles jovens trabalhadores na prestação de serviço referente à troca de

correspondência entre empresas. Essa pista é resgatada ao se observarem os elementos que

trazem nas mãos: por exemplo, sempre portam envelopes de papel ou plástico, tipo mala

direta, entre outros. Há também aqueles que levam brochuras e agendas nas mãos, vestem-

se com calças frouxas, blusões e geralmente carregam um equipamento de som eletrônico;

também se encontram mulheres portando aparelhos de som individual, o popular walk-

man. Os homens em sua grande maioria portam pasta de couro tipo executivo simples.

Os grupos de crianças passageiras geralmente são acompanhados por uma pessoa

adulta: uma senhora ou um senhor. Com esses pequenos passageiros verificamos um

procedimento físico bastante desgastante e recorrente quando atravessam a catraca: eles se

arrastam sobre o assoalho do veículo. É uma manobra que resulta em mãos e roupas

emporcalhadas com os resíduos do piso do ônibus.

A identificação dos passageiros trabalhadores do setor de serviços e do comércio,

usuários dessa linha, foi possível em virtude das andanças pela região do Centro, quando

pude identificá-los em seus respectivos locais de trabalho, como, por exemplo, os

empregados em livrarias, os funcionários da biblioteca, os empregados em instituições

74

financeiras ou em outros locais de atividade de serviços. Já as empregadas domésticas

eram identificadas quando acessavam os prédios residenciais da região de Perdizes.

Outro tipo de observação realizada junto aos passageiros foi sobre as suas

expressões emocionais; prestei atenção nas expressões fisionômicas dos passageiros. Para

tal empreitada amparei-me conceitualmente em Charles Darwin: “A área do estudo do

comportamento, comumente chamada etologia, pode ser definida resumidamente como a

biologia do comportamento”89

I. O princípio dos hábitos associados úteis. II. O princípio da antítese. III. O princípio das ações é devido à constituição do sistema nervoso, totalmente independentes da vontade e, num certo grau, do hábito.

; e em Georg Simmel. A obra de Darwin correlaciona e

apresenta um estudo para entender as expressões humanas com base na morfologia dos

músculos faciais, tanto nos seres humanos como nos animais. Tais inferências poderiam

ser indicadas a partir de três princípios formulados por Darwin:

90

.

Darwin classifica as expressões e emoções a partir das condições biológicas dos

animais e dos seres humanos: afirma existir uma relação interacional da dimensão

biológica com as condições propiciadas pelo abrigo desses seres. Haveria uma interação

entre o meio e as reações fisiológicas dos seres vivos. À luz dessas conclusões científicas,

organizei os procedimentos para as observações no campo do ônibus. Para tanto, tomei

como referência os seguintes tipos de expressões: desânimo, sofrimento, tristeza. Segundo

Darwin, a anatomia do rosto humano registraria e expressaria as próprias emoções. E para

o serviço de observação adotei dois tipos: o contraído e o descontraído.

Para o rosto contraído tomei como parâmetro a definição dada por Darwin sobre o: Mau humor – Vimos que franzir o semblante é a expressão natural de que alguma dificuldade foi encontrada, ou de que algo desagradável ocorreu, em pensamento ou ação. E aquele cuja mente se deixa facilmente afetar dessa maneira poderá ficar mal-humorado, ou um pouco bravo, ou irritado, e provavelmente irá demonstrá-lo franzindo o cenho91

.

A conceituação de descontraído foi amparada na concepção de:

Bom humor, alegria. – Um homem de bom humor, mesmo que não esteja propriamente sorrindo, normalmente demonstra alguma tendência a retrair os cantos da boca. Pela excitação do prazer, a circulação se acelera; os olhos ficam brilhantes e o rosto corado92

89 Darwin, 2000: 9.

.

90 Darwin, op. cit.: 36/37. 91 Darwin, 2000: 215. 92 Darwin, op. cit.: 198.

75

Dessa forma, adotaram-se duas categorias para observar e acrescentou-se a

contribuição de Simmel (1986), segundo o qual o rosto também pode ser decodificado e

explorado como uma fonte dos sentidos. O rosto representa, assim, um alvo da observação

de uma sociologia dos sentidos, já que ele registra e demonstra impressões que têm um

componente social.

Descendiendo ahora a los diversos órganos sensoriales, los ojos desempeñan una función sociológica particular: el enlace y acción recíproca de los individuos que se miram mutuamente.93

Pero la cara es el lugar geométrico de todos estos conocimientos, el símbolo de todo lo que el individuo há traído como supuesto de su vida.

94

El rostro, que ofrece a la mirada el símbolo más perfecto de la interioridad permanente, la huella de cuando ha ido sepultándose en lo más esencial y duradero de nuestra naturaleza, cede al proprio tiempo a las más variadas situaciones momentáneas. Hay aqui algo completamente único en la esfera de lo humano. La esencia general, supraindividual, del individuo se manifesta en el colorido particular de un estado de ánimo, de un impulso momentáneo; lo más unitário, fijo y lo más flúido, variable de nuestra alma, se presentan como algo absolutamente simultáneo, lo uno en la forma de lo otro

95

.

Portanto, os rostos dos passageiros foram observados, tendo em vista contar aqueles

contraídos e os descontraídos. Ao longo das viagens constatava a alteração das expressões

dos passageiros, as quais poderiam variar no transcorrer do dia e da noite.

Em viagem do bairro ao Centro observei o estado de ânimo dos passageiros; esse

procedimento foi intermediado através da análise das expressões faciais dos passageiros de

ônibus. No momento encontrei 69% (sessenta e nove por cento) de fisionomias

descontraídas. Para tal feito formulei um conjunto de siglas, logo abaixo especificadas.

Com este esquema previamente elaborado, aplicado nas viagens, pude comprovar que em

diversos momentos do dia podemos encontrar diversos tipos de sentimentos ou emoções

junto aos passageiros. As observações colhidas foram extraídas no momento do tráfego.

Para identificar as expressões adotei o critério de olhar os rostos dos próprios passageiros

ao subir ou quando estavam no instante da passagem pela catraca de cobrança. Em uma

viagem foram observadas 33 fisionomias, obtendo-se os seguintes resultados: 01)

Fisionomia Criança Descontraída (FCD) - 1; 02) Fisionomia Criança Contraída (FCC) - 0;

03) Fisionomia Jovem Descontraída (FJD) - 11; 04) Fisionomia Jovem Contraída (FJC) - 93 Simmel, 1986: 677. 94 Simmel, op. cit.: 679. 95 Simmel, op. cit.: 680.

76

2; 05) Fisionomia Adulto Descontraída (FAD) - 12; 06) Fisionomia Adulto Contraída

(FAC) - 7; 07) Fisionomia Idoso Descontraída (FID) - 0; 08) Fisionomia Idoso Contraída

(FIC) - 0; 09) Fisionomia da Cobradora (FC) - descontraída; 10) Fisionomia do Motorista

(FM) - descontraído.

A viagem captou as emoções dos passageiros num horário pouco movimentado.

Sendo assim, o dado aqui apontado serve mais para relativizar o estado das emoções dos

passageiros de ônibus de acordo com o horário referencial.

Uma situação bastante percebida nessa época era o pedido de liberação do

pagamento das passagens de ônibus por algumas pessoas. Senhores esperando ônibus

solicitavam aos motoristas para entrarem pela porta traseira, justificavam-se dizendo não

terem dinheiro para pagar as passagens. Os motoristas tentavam driblar a situação

empurrando a liberação para o fiscal da linha. Esses passageiros apresentavam expressões

fisionômicas de depressão.

Os passageiros no ponto de ônibus em frente à Igreja de Santo Antônio – na época,

com tapumes de proteção dos serviços de conservação – solicitam frequentemente

informações dos itinerários de outras linhas de ônibus. O péssimo serviço de sinalização

para identificação dos pontos de ônibus justifica esse procedimento que provoca interações

entre os trabalhadores e os passageiros.

2.1.5. DESCRIÇÃO DOS MOMENTOS SOCIAIS NO PERCURSO

O ônibus Patriarca-Clínicas trafega por entre os logradouros dos bairros já descritos

no item anterior. O fluxo de passageiros na viagem dessa linha obedece a dois ciclos: um

com maior quantidade de passageiros, que tomam o ônibus ao longo do corredor formado

pela Rua Cardoso de Almeida, e o segundo ciclo é do egresso do veículo quando se

encontra próximo ao Centro, ou quando, no sentido inverso, já próximo ao último ponto no

bairro de Pinheiros.

O trajeto em ônibus urbano provoca constantes movimentos corporais, em razão das

constantes trepidações do veículo. Os passageiros viajando em pé sofrem oscilações e

contorções corporais. Fato esse a criar uma onda interna de constantes confrontos físicos

entre os passageiros e os elementos metálicos de apoio e, por isso, bastante incômodos.

Esse quadro é, ainda, acentuado para os passageiros idosos e gordos. Nesse ambiente em

movimento, o desequilíbrio corporal é constante e bastante desgastante fisicamente aos

passageiros. Deve-se somar aos arranjos de distorção corporal o barulho interno provocado

pelo ruído do motor e dos demais veículos em trânsito.

77

O momento do pagamento, a passagem pela catraca, é um dos nós górdios do

fluxo de passageiros na catraca de cobrança da passagem. Os impactos desconfortáveis

provocados pela inércia do veículo produzem tombos, e se faz necessária a travessia na

roleta metálica, a qual impõe uma série de posições corporais ergonomicamente grosseiras,

quando o passageiro efetua o pagamento da passagem junto ao cobrador. Os movimentos

corporais para pegar e manusear a cédula da bolsa ou simplesmente retirar o dinheiro do

bolso são trágicos – machucam as pessoas – e cômicos – em razão dos trejeitos corporais,

além de ser um momento não muito amistoso de interlocução com o cobrador. O

pagamento da passagem não é uma relação amistosa. O ritmo do fluxo é determinado pela

operação do pagamento, feito em espécie, pois, às vezes, encontrar o dinheiro na bolsa ou

na carteira de cédulas demora. Existe um clima de animosidade entre as figuras do

passageiro e do cobrador, não é um quadro tranquilo. Pela catraca o passageiro tem de

passar. Nessas viagens destacam-se as pessoas sofrendo com os tombos, mais frequentes.

A operação para o pagamento da passagem junto ao cobrador é muito difícil,

principalmente a realizada por meio de dinheiro, em espécie. Há passageiros que já vêm

com o dinheiro certo do preço da passagem, mas há aqueles que não trazem a quantia certa

e, portanto, precisam tirar o dinheiro da carteira. Estes ficam se balançando de um lado

para o outro, devido à trepidação do veículo em movimento. Os outros pagamentos são

efetuados com o bilhete eletrônico ou com a troca de vale transporte por bilhete eletrônico.

As pessoas se locomovem segurando-se nas barras metálicas fixadas no teto e nas laterais

dos assentos. Realizada essa transação, deposita-se o bilhete na caixa receptora dos

bilhetes. Os passageiros, às vezes, têm algum tipo de problema com os seus bilhetes

eletrônicos; o mais comum é o problema da leitura magnética, quando vão depositar nas

caixas das catracas eletrônicas.

Portanto, esse momento é recheado de pequenos constrangimentos. Nesse local

cria-se um gargalo contra o fluxo perene dos passageiros. Todos que embarcam precisam

passar por lá. Como os primeiros assentos são destinados aos passageiros especiais, e esses

antecedem a catraca, então fica uma situação de funil. Nesse pequeno espaço aglomeram-

se todos os passageiros devido ao embarque se efetuar pela porta dianteira. Cria-se um

aglomerado com todas as pessoas que embarcaram, situação regularmente corrente. Sobre

os corpos dos passageiros os movimentos provocados pela velocidade do veículo

provocam empurrões corporais. Ergonomicamente o embarque pela porta traseira é mais

confortável. Quando o ônibus já está bastante cheio visualiza-se na área reservada aos

passageiros especiais um grande encontro de corpos. Essa realidade é um desrespeito aos

78

passageiros idosos que viajam sofrendo com esses constrangimentos físicos. Somem-se aos

mais idosos as desvantagens fisiológicas e morfológicas. Há um espaço insuficiente para

esses passageiros, tornando-se, assim, elemento de grande desconforto no interior do

ônibus.

O movimento de locomoção dos passageiros idosos é feito de forma bastante

dificultosa. Quando precisam realizar os movimentos tanto para embarque e desembarque,

como para acomodação nos assentos, senhores e outros idosos apresentam grandes

dificuldades na locomoção no interior do ônibus. Ocorrem muitos tombos devido à

trepidação do veículo. Os motoristas apresentam uma avaliação sobre essa situação:

“– Olha! Maldade é o que se faz com os passageiros idosos. Há momentos que fica

uma confusão aqui!” (sic).

Uma referência sobre o local destinado aos passageiros especiais. Com eles também

ocorrem conflitos devido à fragilidade dos seus corpos. No ponto da rua Marquês de Itu

entre os números 280 e 294, subiram três passageiros idosos. Com uma delas aconteceu o

seguinte fato: A senhora trajava calça e blusa marrom bem passadas, portava uma sacola

de papel na mão e sobre o ombro carregava uma bolsa de alça. Ao tentar passar arremessou

levemente a sacola sobre a catraca, mas não fez o giro da catraca, enfim, não atravessou a

roleta. Imediatamente o cobrador se posicionou com a seguinte advertência à senhora:

“– A senhora vai ter que pagar outro bilhete!” Ela engoliu o susto daquela

interpelação, ficou meio constrangida com o que lhe havia acontecido. Mas não fez

nenhuma manifestação a respeito. Ela recuou um pouco e novamente abriu a bolsa para

tirar o dinheiro de outra passagem.

O movimento de translados é desigual entre as categorias profissionais. Nos

horários da linha é facilmente constatada a frequência. O destaque observável é que a

maioria dos passageiros portam pastas tipo executivas. A primeira parada fica ao lado do

Teatro Municipal. Nesse ponto é frequente passageiros perderem o ônibus, porque o

motorista não avista o pequeno grupo de passageiros que querem tomá-lo, no sentido da

sua viagem.

Minha investigação localizou as reclamações dos próprios passageiros dessa linha.

As informações sobre tais ocorrências foram encontradas junto ao serviço da Central 158

da SPTrans, o Setor de Reclamações dessa instituição. Esse serviço é conhecido e goza de

certo reconhecimento da população. A Central 158 acolhe as reclamações dos passageiros

de ônibus, tais como:

79

Irregularidades funcionais de motoristas, cobradores e fiscais, superlotação dos coletivos, não atendimento ao ponto de parada, descumprimento do horário de operação da linha, intervalos excessivos, itinerários em desacordo com o programado, má conservação ou falta de limpeza do veículo, má conservação do abrigo etc. devem ser feitas através de ligações telefônicas para a Central 158. Este serviço é tarifado (sic). É importante que o usuário tenha em mãos todas as informações para a reclamação. Em relação aos operadores é preciso o prefixo do veículo, data e horário da ocorrência. Este serviço funciona de segunda a sábado96

.

Esse serviço dispõe em seu quadro de 10 atendentes de telefone, as quais registram

as ocorrências num formulário próprio. Esse setor conta com uma rotina administrativa

para o tratamento das reclamações, entretanto não tive acesso aos resultados obtidos pelas

reclamações. O serviço goza de relativa confiança da população, na medida em que

algumas queixas têm retorno ao reclamante, nem que seja uma satisfação sobre o

encaminhamento feito junto à empresa responsável. As principais reclamações quanto à

linha de ônibus pesquisada apresentaram os índices contidos na Tabela 05, logo a seguir.

Vale destacar o registro das reclamações de passageiros que se dispõem a pagar uma

ligação telefônica. Na tabela estão relacionadas as reclamações de responsabilidade do

operador – o motorista – e as referentes à empresa.

Embora exista como procedimento técnico a exigência de parada em todos os pontos fixados, bem como a exigência de que apenas seja permitido o embarque e desembarque de passageiros nesses mesmos pontos, o motorista pode não fazê-lo, quer porque o ônibus já esteja lotado, quer porque o passageiro sinalizou tardiamente, ou ainda porque o motorista já está atrasado97

.

TABELA 05 RANKING DOS TIPOS DE RECLAMAÇÕES DE USUÁRIOS DA LINHA 8261 – HOSPITAL

DAS CLÍNICAS – PATRIARCA – DE 01.01.2000 A 21.09.2000 Responsabilidade Ordem Tipo de reclamação Qtd. %

Operador 1

2

3

4

Inobservância ao ponto de parada

Excesso de velocidade

Imprudências gerais/freadas

Desrespeito ao público em geral

9

1

1

1

75,00

8,33

8,33

8,33

Empresa 1 Intervalos excessivos 3 100

Fonte: SPTrans Diretoria de controle operacional – Central 158.

96 Fonte: SPTrans:http://www.sptrans.com.br/ser-dir02.htm. 97 Forneck, op. cit.: 56.

80

As inobservâncias de paradas nos pontos se destacam em 75% (setenta e cinco por

cento) das reclamações contra os operadores, e confirmadas pelas observações do trabalho

em campo. Os passageiros se veem sacrificados devido ao desrespeito no cumprimento do

ponto de parada. É grande afronta às movimentações dos passageiros, quando sentem o

corte que pode provocar suspensão ou comprometimento dos compromissos sociais. Ficam

ameaçados em sua rotina, ela é desconsiderada, um fato a pôr muitos passageiros em

situações de constrangimento. Pode-se perceber que existe uma regularidade nesse

procedimento de maus tratos aos passageiros: até identificamos os pontos e procedimentos

sempre recorrentes. No caso da linha estudada, os pontos onde há queima da parada são os

do Teatro Municipal, da Av. Ipiranga e na Praça da República.

Nesse mesmo ponto – próximo ao Teatro Municipal de São Paulo –, verificam-se

passageiras, em geral, trajando calças compridas, carregam consigo bolsa a tiracolo com

alças e também portam sacolas de papel ou sacos plásticos nas mãos. As expressões

fisionômicas médias desses passageiros são de um semblante sisudo, circunspeto, enfim,

fechado. No horário das vinte e uma horas, predominam os passageiros do sexo masculino,

todos trajam paletó.

No ponto de ônibus da Av. Ipiranga, s/n, embarcam os office boys. Tal dedução é

possível devido a alguns detalhes do modo de se vestirem e se portarem. Eles sempre

carregam consigo uma pasta retangular tipo escarcela, sempre estão com uma pasta ou um

envelope nas mãos. Outro elemento de identificação de office boys é que fazem pequenas

viagens. Tomam um ônibus em algum PÔ dentro do raio da região no Centro da cidade.

Não é a regra, mas é comum. No ponto da Praça da República embarcam passageiros

idosos, alguns usam chapéu e óculos de grau; também embarcam pessoas em direção ao

Hospital das Clínicas, a referência identificadora é terem o braço imobilizado por tipoia.

Ao trafegarem nessa Praça, os motoristas preferem contornar os demais ônibus que ali se

encontram, e, com isto, queimam paradas, não param. Esse tipo de manobra dificulta a

identificação do ônibus pelo passageiro, o qual às vezes chega a perder a condução devido

a esse procedimento. Tal reclamação já foi informada pela Tabela 05.

No ponto da Rua Amaral Gurgel próximo ao número 99, embarcaram passageiras e

passageiros adultos, passageiros idosos com alguma forma de curativo ou com membro do

corpo imobilizado. No ponto de ônibus da Avenida São João, 1.742, as passageiras idosas

descem. Lá também sobem passageiras adultas. Na próxima parada na Avenida São João,

2.159, descem passageiros carregando pequenas maletas. No ponto de ônibus da Rua

Lavradio, 74, embarcaram passageiras idosas, de cabelos grisalhos, vestindo agasalhos

81

contra o frio. A primeira parada da Rua Cardoso de Almeida é na altura do número 180,

quando embarcam passageiros portando pasta de couro e jornal para rápidas leituras. No

ponto da Rua Cardoso de Almeida, 414, embarcam passageiros sexagenários e passageiras

portadoras de pequenas bolsas de couro, geralmente, na cor preta. O momento da viagem

pode ser aproveitado para realizar algumas atividades e até cuidados pessoais: rápido

retoque na maquiagem, organização de pequenos materiais, rápidos estudos e leituras,

audição de música, comer confeitos, organizar os pertences nas bolsas ou simplesmente

esparramarem-se sobre os demais assentos.

Entre tantos dissabores do percurso urbano ressalva-se um procedimento de muito

agrado aos passageiros: o momento de postarem-se para apreciar a paisagem urbana.

Alguns preferem observá-la nos seus conjuntos de ruas, avenidas e demais logradouros

públicos. A viagem de ônibus propicia o descortinar das paisagens citadinas, as quais

exercem uma atração sobre eles. Os passageiros em movimento se encontram em

constantes deslocamentos, o próprio trajeto gera uma apropriação da cidade. Ela é passada

em revista pelos moradores nas suas movimentações no ônibus. Ela é perfilada e

apropriada pelo olhar desses moradores em “movimentos pendulares” – os deslocamentos

casa-trabalho-casa, por exemplo. Os moradores em movimento descortinam e observam a

constituição das diversas paisagens da urbe. Ocorre uma apropriação ilusória. Os

moradores sofrem de uma distorção entre o visualizar e o vivenciar as paisagens. A

paisagem fascina. “Se a região a ser percorrida nos é familiar, reconstituímos locais já

visitados anteriormente, prevendo, assim, de antemão o que iremos encontrar”. (Niemeyer,

1998: 12).

Os passageiros, ao realizarem um percurso urbano, são despertados à contemplação

das paisagens urbanas que lhes são apresentadas no transcorrer desse movimento. É

possível indicar uma razão para essas constantes observações:

Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade.98

Há um padrão de comportamento dos passageiros: o olhar atento ao que transcorre

na via pública. Isto foi constatado quando se observa todos os passageiros levantarem-se

dos seus assentos para visualizarem um acontecimento do tráfego, por exemplo, um

atropelamento. No interior do ônibus encontram-se pessoas lendo algum tipo de impresso.

98 Freud, 2010: 249.

82

Mas atitude regular é a postura de olhar a paisagem que se apresenta durante o

trajeto. Os passageiros também gostam de ir vasculhando o interior das suas bolsas. Outro

elemento interferente no interior do ônibus e, consequentemente, junto aos passageiros é a

atmosfera do trânsito. Há também os sinais sonoros dos veículos de emergência: os sons

das ambulâncias, dos bombeiros, da polícia e dos demais autos produzem uma inquietação

manifesta pelos movimentos corporais dos passageiros. Muitos ajustam o corpo com a

finalidade de poderem localizar a procedência dos sons das sirenes desses veículos. Na Rua

Cardoso de Almeida, 414, embarcam mães acompanhadas de crianças.

Na parada da Rua Cardoso de Almeida, 840, o ponto mais próximo para a PUC/SP,

os passageiros adultos descem e passageiros jovens e adultos embarcam. No ponto da Rua

Cardoso de Almeida, 1.548, passageiros(as) estudantes desembarcam e embarcam. Junto

ao grupo de estudantes verifica-se também a passagem por baixo da catraca.

Outra característica é o momento da localização adotada pelo passageiro ao

embarcar no ônibus: a escolha da sua localização. O passageiro após entrar faz uma opção

preferencial por um assento. Essa atitude revela uma seleção, a qual apresenta uma

classificação correlacionada ao tipo de passageiro. As crianças gostam de viajar nos bancos

traseiros. Uma passageira informou que os seus filhos dizem: “É adrenalina pura”. A

adrenalina é uma alusão aos movimentos de sacolejo provocados pela trepidação do

ônibus. Os assentos mais altos, os que ficam sobre os pneus traseiros, são os preferidos

pelas pessoas de pouca estatura física e pelas crianças. Os assentos localizados na parte

dianteira são dispostos da seguinte forma: os primeiros 05 assentos são cativos dos

passageiros especiais. Depois, os assentos posteriores ao cruzamento da catraca são ao todo

35, destinados aos passageiros pagantes. Nessa área temos a seguinte predileção: nos

primeiros assentam-se os passageiros mais maduros. Já os assentos situados sobre o eixo

das rodas traseiras são preferidos pelas crianças e pessoas de baixa estatura, em virtude de

permitirem melhor visualização da paisagem. Quanto aos derradeiros assentos, os situados

no fundo do ônibus, a preferência é dos passageiros mais jovens. Isto se dá, na medida em

que, lá, se obtém mais trepidação devido ao movimento do auto. A atitude involuntária de

permanecer na viagem com um olhar fixo para o exterior do ônibus é uma constante. Elas

carregam vários sacos plásticos de compras – supermercado Pão de Açúcar – nas mãos. No

horário das dezoito horas nota-se que os passageiros estão em francas conversações. Essas

conversas se sobrepõem até mesmo ao barulho provocado pelo motor do ônibus, ecoam

mais alto do que o ronco do motor em funcionamento.

83

“Levantamento feito pelo Datafolha em 20 linhas de ônibus de São Paulo

escolhidas pelo jornal Agora revela que, em apenas 4 delas, o número de viagens

completas respeita o contrato com a prefeitura”99

Assim, o ônibus é um setor específico do grande sistema de transporte coletivo. Os

trabalhadores desenvolvem certos sistemas de percepção do seu trabalho. Eles possuem

determinados tipos de conhecimento os quais possibilitam compreender o próprio ritmo

desse trabalho. Vejamos o que Sato fala sobre essa dimensão da rotina do trabalho.

A primeira meia-viagem em geral é aquela onde o motorista verifica as condições do carro, do mesmo sendo o seu carro de escala, pois, como cada carro é conduzido por pelo menos dois motoristas na linha, é revisado pelo setor de manutenção e pode ser por outros motoristas na garagem e utilizado para transportar operadores durante a madrugada100

.

Devido a isto tive a oportunidade de escutar algumas das suas opiniões sobre o

tráfego de veículos:

“– Se as pessoas que dirigem respeitassem as setas de advertência dos outros carros,

não haveria acidentes de trânsito!” – informou-me o motorista, já meu conhecido.

Uma questão decorrente do tipo de translados é geradora de formas de relação entre

os passageiros e os motoristas de determinada linha de ônibus e se caracteriza em função

do modo como a viagem flui.

Assim, o motorista demonstrava suas apreensões em relação ao complexo tráfego

de São Paulo. Outra questão interferente no trabalho dos motoristas é derivada do ritmo

das atividades de dada localidade. As mudanças de passageiros obedecem ao ritmo das

atividades produtivas da cidade. Então, o público de cada meia-viagem varia de acordo

com a lógica da divisão social do trabalho existente ao longo da rotina da urbe. Há casos de

cumplicidade entre os motoristas e passageiros; no caso, reporto-me às situações em que os

motoristas, por já conhecerem os passageiros, às vezes realizam movimentos de espera

quando verificam um passageiro atrasado num ponto de ônibus. Esse procedimento é

comum nas linhas em que o motorista conhece o passageiro/trabalhador.

“Quando a programação é seguida, os motoristas conhecem os passageiros que

transportam, conhecem o fluxo de passageiros por ponto de parada e também os tipos de

passageiros”.101

99 Jornal Agora São Paulo, pág. 01. Segunda-feira, 12 de junho de 2000.

100 Forneck, Op. cit.: 54. 101 Forneck, Ibid.

84

Por haver algumas atitudes singulares do motorista em relação aos passageiros que

irão tomar a condução, esses muitas vezes os identificam e os reconhecem. Passageiros em

ponto de ônibus conhecem os “seus ônibus” pela fisionomia do motorista da linha que

tomam. No caso, esse é um tipo de recurso utilizado pelos analfabetos para poderem

identificar o seu transporte.

Os motoristas desenvolvem a habilidade para lidar com o passageiro, pois a própria natureza de sua ocupação assim exige. Eles sabem como se portar perante o passageiro de modo a evitar atritos ou de modo a minimizá-los. Os procedimentos recomendam não brigar com os passageiros, cuidar da integridade física dos mesmos e dos pedestres. No entanto, mesmo esses cuidados nem sempre podem ser tomados devido às superlotações e ao comportamento dos próprios passageiros nos ônibus. Como procedimento também existe a regra de impedir que os passageiros desembarquem pela porta traseira, mas se o motorista e o cobrador levarem esses procedimentos ao pé da letra, estarão descumprindo aquele que os proíbe de entrar em conflito com os passageiros. Assim, os operadores, com relação a esse aspecto, estabelecem a relação possível com os passageiros, os quais, por sua vez, apresentam características específicas dependendo da linha102

.

Nesse aspecto poderia destacar a atuação dos órgãos representativos dos

trabalhadores, como, por exemplo, as publicações visando a qualificar melhor o trabalho

dos cobradores, as orientações sobre relações pessoais apresentadas na Cartilha

mencionada no Capítulo Terceiro.

2.2.1. DESCRIÇÃO DOS TRABALHADORES DE ÔNIBUS

A descrição dos trabalhadores de ônibus é importante devido à constante inter-

relação existente entre esses e os passageiros. A descrição ficará restrita aos trabalhadores

envolvidos diretamente com a linha de ônibus, quais sejam: os motoristas, cobradores(as) e

os fiscais. Os trabalhadores da garagem não serão analisados.

Os trabalhadores motoristas e cobradores da linha estudada trajam fardas de cor

azul. A camisa é em tom azul claro e a calça azul escura. Elas são confeccionadas em

tecidos de fibras sintéticas – poliéster. Calçam sapatos de couro na cor preta e limpos. Os

seus cabelos sempre se encontram aparados e com barba feita; alguns usam bigode. Nessa

época os cobradores usavam um acessório a mais, uma bolsa, presa ao cós da calça,

popularmente conhecida por pochete. Esse acessório se fazia necessário devido à

necessidade de guardar o dinheiro recolhido com a venda das passagens. Os cofres para

102 Forneck, op. cit. 55/56.

85

guardar dinheiro estavam sendo retirados devido à implantação da bilhetagem magnética;

esse novo procedimento estava dificultando, ainda mais, o trabalho dos cobradores, que se

tornavam alvos preferidos dos assaltos.

O trabalho do motorista é institucionalizado pela Classificação Brasileira de

Ocupações:

A ocupação do motorista de ônibus urbano caracteriza-se basicamente por transportar passageiros dentro do perímetro urbano, executando, para tanto, uma série de procedimentos técnicos e disciplinares em relação aos colegas, superiores e passageiros, como descrito pela Classificação Brasileira de Ocupações (C.B.O.) 103

.

As responsabilidades desses profissionais dão-se na execução de procedimentos

que permitam transportar os passageiros ao dirigir um veículo. Essas condutas se efetivam

com a vistoria do estado físico e mecânico do veículo ao se certificar, examinar, zelar,

providenciar e solicitar garantias para o pleno funcionamento das ações de dirigir,

manipular, conduzir e recolher o veículo. Essas operações visam a garantir a perfeita

sincronização do veículo junto ao tráfego e aos seus passageiros. O conjunto dessas

operações e procedimentos ressaltaria as responsabilidades dos motoristas.

Ao assumir o comando do carro, o motorista inicia a verificação de uma série de quesitos, mantendo o motor do carro ligado: óleo, água, pneus, freios, embreagem, sinalizadores, acelerador, espelhos, bancos, forro de banco, cortina, limpam o para-brisa, alguns adaptam um prolongamento da alavanca de câmbio, outros colocam o radinho no painel e afixam sua ficha funcional na parede do carro. Todos os objetos instalados no carro são pessoais e trazidos pelo motorista e nem todos procedem da mesma forma.104

Até o ato de cobrar passagem estava sendo implantado em algumas linhas de

ônibus – fato esse já previsto na Classificação de Ocupações – pelos proprietários das

empresas de transporte de São Paulo. Entretanto, essa proposta estava sob

acompanhamento do legislativo federal, o qual verificava a repercussão social de tal

medida. A “Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal examinava a proibição de

catraca eletrônica em ônibus”.

105

A jornada de trabalho do motorista é estruturada por períodos do dia e da noite. A

linha universo da pesquisa tem o horário de funcionamento das 5 horas da manhã até às 23

103 Sato, 1991: 50/51. 104 Sato, 1991: 53/54. 105 Jornal do Senado Federal, de 6 de julho de 2001, Brasília – DF, pág. 2.

86

horas. Nesse período o salário de um motorista para uma jornada de 7 horas e 10 minutos

era de R$ 898,00, e do cobrador, para a mesma jornada, de R$ 516,00.

O ofício do motorista é considerado trabalho penoso. As condições de trabalho

estão circunscritas nas condições e nos parâmetros relativos ao sofrimento corporal e

mental. Essa situação é constantemente mencionada por motoristas. Um deles chegou a

emitir a seguinte opinião, sem dúvida uma autoavaliação sobre o seu trabalho:

“ – Põe aí no teu caderno que o nosso trabalho é muito duro!”

Diante dessa afirmação eu não poderia deixar de mencionar a questão descrita pelos

trabalhadores desse setor.

Os procedimentos de direção são distintos e mais pesados do que o de conduzir um

veículo pequeno. Uma manifestação a esse respeito pode ser medida pelo posicionamento

dos próprios motoristas ao distinguirem aspectos do seu trabalho com esse veículo pesado:

“ – Um ônibus para ser freado é diferente de um automóvel pequeno!” (sic.).

A frase era uma alusão às características do métier do motorista. Ele expunha as

dificuldades para dirigir um ônibus em trânsito bastante denso, e também pretendia

justificar os procedimentos relativos ao desconforto gerado pelas ações de condução com

reflexos sobre os passageiros, um aspecto bastante sentido por eles.

O motorista exerce um trabalho penoso, o qual é definido pela legislação brasileira,

através da lei nº 3.807, capítulo V - Aposentadoria Especial, artigo 31, de 1960. O exame

desse trabalho como penoso necessitou percorrer décadas até o seu reconhecimento como

profissão enquadrada sob as condições das adversidades que a caracterizam enquanto

ofício a exigir sacrifício humano e, portanto, detentora do direito à aposentadoria especial.

Vejamos:

A aposentadoria especial será concedida ao segurado que, contando no mínimo 50 (cinquenta) anos de idade e 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos pelo menos, conforme a atividade profissional, em serviços que, para esse efeito, forem considerados penosos, insalubres ou perigosos, por Decreto do Poder Executivo.

Outras duas leis – nº 5.527 de 8 de novembro de 1968 e n º 5.890 de 8 de junho de 1973 – modificam a primeira eliminando a restrição de idade mínima (50 anos) e reduzindo de 15 para 5 anos o período de contribuição para adquirir o direito à aposentadoria especial.

A regulamentação da lei 3.807 é realizada mediante os decretos nº 53.831 de 25 março de 1964, nº 63.230 de 10 de setembro de 1968 e de nº 72.771 de 6 de setembro de 1973 que são acompanhados de quadros que classificam as atividades, grupos profissionais e agentes nocivos presentes nos ambientes de

87

trabalho, determinando para cada um o tempo de trabalho mínimo (15, 20 ou 25 anos) para gozar o direito à aposentadoria especial.106

Se considerássemos os antecedentes dos profissionais do Guidon, os primeiros

cocheiros – profissão reconhecida em 1867 –, em São Paulo, até o motorista de ônibus,

concluiríamos que a trajetória do reconhecimento do áspero ofício somente aconteceu

quase cem anos depois do surgimento dos primeiros profissionais ligados ao ofício de

condução. O trâmite institucional da lei para reconhecimento de trabalho penoso consumiu

13 anos, até ser totalmente regulamentada, atravessou toda a década de sessenta até o início

dos anos setenta. Os estudos e as análises sobre “trabalho penoso” ainda são um campo

pouco aprofundado pelas Ciências Sociais, sendo mais observados na área da Saúde. As

avaliações sobre desgastes psicossomáticos são campo exclusivo dos estudos clínicos, as

abordagens sociológicas são raras e poucas. Faltaria um aprofundamento desses estudos,

grande lacuna sociológica sobre o sofrimento humano.

A grande quantidade de contribuições em pesquisa sobre “trabalho penoso” concentra-se na área da Fisiologia do Trabalho e da Ergonomia. Para esses estudos, a penosidade está associada, em sua grande parte, às atividades profissionais que exijam esforço físico, tendo como técnicas de avaliação as medidas de frequência cardíaca, consumo de oxigênio, gastos de energia, gasto calórico associadas a fadiga física107

Penoso, enquanto símbolo linguístico, é um adjetivo que imputa a algo a causa de pena, sofrimento, incômodo e dor e lhe confere o caráter de dificuldade e complicação. “Penoso” é aquilo que causa impressão desagradável, que aflige, que atormenta. Aquilo que é “penoso” implica contenção e repressão. Pena é castigo, punição, padecimento, aflição

.

108

.

As operações empreendidas pelo trabalho dos motoristas consistem em um

constante sugar de energias físicas e mentais, quanto aos intensos momentos exigidos para

conduzir o ônibus no intenso tráfego da cidade de São Paulo, e nas operações internas da

condução dos passageiros. Esse trabalho penoso vai minar as próprias relações sociais que

lhe são requeridas nos cuidados para com os seus clientes, os passageiros(as). Isso é um

pressuposto básico, o qual poderá alimentar um clima de animosidade entre motoristas e

passageiros. Forma-se um quadro situacional em que um e outro desconhecem as suas

limitações existenciais. Os trabalhadores de transporte urbano estão envoltos na

complexidade do tráfego e devem ter cuidados para com os passageiros, que podem ser

106 Sato, 1991: 3. 107 Sato, 1991: 7. 108 Sato, op. cit: 10.

88

também trabalhadores agitados por seus compromissos profissionais e existenciais. As

responsabilidades dos motoristas se acentuam quando lhes são exigidos mais

adestramentos em conduções limites. Nesse aspecto, a questão da superlotação interna dos

ônibus é uma dimensão bastante sentida pelos motoristas. E alguns afirmam terem

conduzido mais de 35 passageiros em pé.

“– Assim não dá!” (sic) – manifestou-se um deles contra a superlotação de

passageiros no interior dos ônibus.

O trabalho do motorista requer procedimentos junto a uma série de operações

sincronizadas: abrir e fechar portas para efetuar os movimentos de embarque e

desembarque; estar atento aos sinais sonoros internos e corporais externos, com os quais os

passageiros solicitam paradas; sincronizar a condução do veículo com o planejamento

empresarial; respeitar os sinais de trânsito; suportar as diversas formas de poluição

intervenientes no tráfego etc. Sato (1991), apud Deyl Osório de Oliveira (1971), utilizou o

depoimento de um representante do Sindicato dos Condutores de Veículos Rodoviários e

Anexos de Nova Iguaçu/RJ para corroborar como o trabalho denominado penoso é

desgastante.

O sistema nervoso dos profissionais do volante está sujeito a pressões simultâneas e várias, das quais estão isentos os outros trabalhadores. O elevado valor dos veículos, as vidas sob sua responsabilidade, a vida dos pedestres afoitos, a sinalização muitas vezes defeituosa, o excesso de ruído, muito acima da taxa de decibéis além do suportável pelo organismo humano, o calor que se desprende do motor, o ar viciado dos coletivos, a fumaça dos canos de escapamento, a conformação antianatômica das poltronas dos motoristas são, entre outros, fatores de cansaço e fadiga. (Oliveira, 1971: 312)109

Segundo Sato, a definição de trabalho penoso não gozaria de uma conceituação

clara; para tanto, buscaram-se junto aos próprios trabalhadores os elementos aferidores

dessa condição, e que pudessem elucidar a situação desse sacrifício profissional. Imbuído

desse objetivo, contou com um levantamento colhido a partir das suas próprias avaliações.

E a descrição de trabalho penoso levantou expressões e palavras com a autoavaliação dos

motoristas. As expressões colecionadas, logo abaixo apresentadas, fazem as correlações

possíveis para definirem esse tipo de trabalho.

.

O dicionário de palavras-índice que obtivemos foi composto das seguintes expressões e de suas derivações:

- linha pesada; linha problemática; linha irritante; problema/espinho; trabalho ruim; complicação/complicado; desumano; trabalho muito pesado; trabalhos forçados; duro de

109 Sato, op. cit: 13.

89

aguentar; profissão muito sacrificada; fácil de aguentar; duro de aguentar; profissão muito sacrificada; fácil de trabalhar; dia bom de trabalho; serviço leve; irrita (irrita muito); incomoda/incomoda demais/incomoda muito; desgasta/desgasta demais; cansa/cansa demais; nervoso/nervosismo/sistema nervoso/nervo abalado; tensão; castigo; sofrer; sacrifício; magoar; força muito/força demais; gastar muito; transpassar; esquentar a cabeça; sofrer; ficar tranquilo; trabalhar sossegado; gostoso de trabalhar; trabalhar brincando; contente; raiva; misturar110

.

Foram colecionadas 39 expressões sobre o trabalho do motorista. As palavras-

índice representando avaliações negativas totalizam 82,05% do total. E as expressões

positivas somaram 17,95% desse total. As expressões negativas caracterizam situações de

resistência e geradoras de momentos de sofrimento na realização desse trabalho. As

avaliações positivas fazem referência a aspectos ligados ao contentamento na execução

desse tipo de trabalho.

A prática cotidiana do motorista de ônibus escalado é definida por um FAZER situado em um determinado contexto (social, organizacional e ambiental), caracterizado como as condições e organização do trabalho.

Essa prática desenvolve-se em meio a uma série de condicionantes as quais, identificamos, dizem respeito a três ordens: a primeira refere-se à organização do trabalho; a segunda definida pelas peculiaridades de cada linha e instrumento de trabalho e, finalmente, a terceira, que está relacionada às necessidades e características dos trabalhadores111

.

Os trabalhos envolvidos na operação da linha apresentam uma divisão técnica

organizada por equipes de trabalhadores – motoristas, cobradores e ficais – quando na

execução, acompanhamento e supervisão das viagens de acordo com a racionalização

operacional definida pela Empresa.

A equipe de trabalho na linha é composta pelos fiscais – um no ponto inicial e outro no ponto final – e as várias duplas de operadores (motorista e cobrador). A função do fiscal é adequar ao máximo o andamento real da linha à programação previamente planejada, observando a duração da jornada de trabalho, os locais de início e término da jornada, as pausas entre as meias-viagens e os intervalos para refeição de cada uma das duplas.

Da mesma forma que existe a Programação que prevê a distribuição e fluxo de carros para cada linha, existe para cada dupla de operadores a Tabela, que provê os horários de início e final da jornada, número de viagens, horários de saída e de chegada de cada meia viagem, pausas entre elas e intervalos de refeição.

110 Sato, op. cit: 41/42. 111 Sato, 1991: 52.

90

As condições de normalidade da linha serão avaliadas por dois instrumentos

administrativos aplicados nos procedimentos de condução da linha: a Programação e a

Tabela. Esses dois recursos são maneiras empregadas para a projeção e avaliação das

operações e dos critérios de racionalização definidos pela empresa com a anuência dos

órgãos de administração do Sistema de Transportes Coletivos da cidade. Os dois

instrumentos visam à previsibilidade para os próprios passageiros e ao planejamento

operacional requerido pela lógica empresarial na condução dos serviços oferecidos pela

linha de ônibus. Os imprevistos são fatores de interrupção para a perenidade da linha. Eles

podem ocorrer devido aos engarrafamentos, aos acidentes com os próprios veículos, às

greves da própria categoria, a alterações verificadas no tráfego da cidade e a outros

acontecimentos responsáveis por alterar ou interditar o tráfego dos veículos da linha. Dessa

maneira, a fluidez do trabalho do motorista transcorre segundo critérios correlacionados,

direta e indiretamente, com a rotina existente no tráfego urbano e que têm uma

interferência sobre a cadência do funcionamento da linha de ônibus. Cada linha de ônibus comporta características bastante

peculiares que as distinguem, não apenas pela organização imprimida pela programação de horários, itinerários e tipo de carro e esquema de folgas, mas também pelas particularidades advindas da organização do espaço urbano que determina o tipo de passageiro, quando à sua condição social, cultural e econômica, a rotatividade de passageiros por viagens, a condição de tráfego nas vias, adequação e conforto dos locais para alimentação e pausas, dentre outras112

.

Mas os imprevistos transcorridos na linha de ônibus podem caracterizar-se por uma

grande contradição. Em princípio, uma linha de ônibus deveria atender as expectativas a

que é destinada, porém esse mesmo critério da prestação de serviço de transporte no

atendimento aos deslocamentos da população, às vezes, não ocorre ou se ressente de

solução de continuidade. Vejamos o resultado de um survey sobre tais ocorrências:

O Datafolha – órgão de pesquisa ligado ao jornal Folha de S. Paulo – também verificou que, em 1351 partidas previstas no conjunto das linhas avaliadas, 1202 ônibus saíram do ponto inicial e chegaram ao final. A diferença de 149 viagens não realizadas ou incompletas representa 11% do total previsto do contrato. Ao comentar os resultados da avaliação do Datafolha, o Transurb (sindicato das empresas) afirmou que pequenas transgressões dos contratos servem para viabilizar economicamente as linhas e para

112 Sato, op. cit: 47/48.

91

atender melhor a população. Empresas jogam a culpa nos congestionamentos pelo desrespeito ao número de partidas113

.

Então, pode-se constatar que um total de, aproximadamente, 11% (onze por cento)

das viagens não chega ao destino anunciado pelas próprias linhas de ônibus de São Paulo.

No trabalho de observação sistemático realizado para esta pesquisa, enfrentei situação

semelhante, como anunciei na introdução deste trabalho. Ou seja, nem sempre o morador

da cidade chega ao destino objetivado .

Um dos aspectos informais dos trabalhos realizados pelos empregados nas

empresas de ônibus pode ser observado na conservação dos próprios veículos.

Além disso, alguns lavam o piso do ônibus, tiram o pó do painel e tomam outros cuidados com o carro não previstos como parte de sua atribuição oficial. Em geral, a relação que o motorista mantém com o carro de escala é de zelo. Porém nem sempre é possível trabalhar com carro de escala114

.

No item sobre a descrição do interior e do exterior dos veículos, eu havia anunciado

a questão da sua limpeza interna. Uma das tarefas, segundo informações dos trabalhadores

de ônibus, é a manutenção da limpeza interna deles. As cobradoras realizam os serviços de

varrição dos veículos. No final da linha em Pinheiros, quando estacionados na Rua Arruda

Alvim, aguardando a hora da partida, as cobradoras realizam a varrição. Por outro lado, os

motoristas realizam a vistoria da lataria e a manutenção de alguns dos itens sob sua

responsabilidade. Assim, haveria uma separação de gênero na manutenção dos ônibus ao

reproduzirem tarefas tidas como femininas e aquelas sob cuidados masculinos. Para

algumas trabalhadoras, a grande quantidade de resíduos sólidos existentes no chão dos

ônibus seria de responsabilidade dos anti-higiênicos passageiros. Mas não se verifica no

interior desses autos nenhum equipamento para coletar os resíduos sólidos produzidos

pelos passageiros. Pelo contrário, o interior do ônibus apresenta condições insuficientes de

asseio e higiene. O serviço superficial de varrição é o único procedimento empregado na

conservação de sua limpeza interna. Logo após a varrição, esse único instrumento de

limpeza é guardado no interior do próprio veículo, geralmente na proximidade da poltrona

do motorista ou do(a) cobrador(a). Outro local com grande perigo à saúde coletiva são os

apoios e os balaústres de mãos. Esses equipamentos de apoio e segurança dos passageiros

no interior dos ônibus se mantêm com uma significativa e invisível película de gordura,

113 Jornal Agora São Paulo, de 12 de junho de 2000, pág. D-1, São Paulo. 114 Sato, op. cit. 53/54.

92

somente identificada pelas mãos nas barras metálicas. O piso interno do veículo conta com

uma quantidade de manchas e crostas de resíduos orgânicos escuros.

Uma dimensão bastante rica e parte integrante do sistema de representações no

trabalho dos motoristas são as denominações criadas por eles para algumas das situações

vividas por eles e os passageiros. Seriam qualificações para determinadas posturas

apresentadas pelos membros da própria categoria e ou passageiros.

Entre os operadores os apelidos, os chistes e os códigos de comunicação são bastante utilizados. Muitos deles não se conhecem pelo nome próprio, mas pelo apelido, pelo número do prontuário (ficha funcional) ou pelo número do carro quando este é de escala115

.

A primeira delas seria chapéu de bico (São Paulo), denominação dada aos

operadores de transporte coletivo116

As condições de alimentação dos motoristas são bastante precárias, caracterizando-

se por uma série de procedimentos de improvisação. Decorrências dessa limitação, os seus

momentos e as condições para suas refeições se constituem numa diversidade de

estratégias.

. Uma série de denominações são criadas para

identificarem as mais variadas situações. Por exemplo, os trabalhadores desse setor

designam os passageiros que gostam de viajar nos degraus da porta de embarque com a

alcunha de “passageiro ferrolho” (Fortaleza). Tal denominação se daria por criarem

obstáculos aos demais passageiros quando necessitam desembarcar e, assim, criam

obstáculo para o acesso ao interior do veículo. Quando pretendem intervir na organização

física interna dos passageiros, os motoristas acionam abruptamente os freios dos veículos

e, ao produzirem movimentos nos corpos dos passageiros, estão “arrumando bonecos”

(Fortaleza), ocasionando um reordenamento interno dos próprios passageiros. Outra forma

de denominação para o balaústre anterior à cadeira dos motoristas é “pau das putas”, uma

das ‘namoradas’ dos motoristas.

O intervalo para refeição é de 30 minutos e é preenchido distintamente por cada motorista. Alguns fazem refeição outros não. Alguns tomam lanche, outros trazem marmita, outros utilizam seus tickets-refeição, outros, ainda, como residem próximo ao ponto inicial da linha, vão às suas casas para se alimentar.

Não há um local apropriado para tomar refeição que faça parte da infraestrutura construída pela empresa, assim os operadores dependem daquela existente no bairro. Por isso alguns trazem engenhocas adaptadas para aquecer a marmita e a

115 Forneck, op. cit.:57. 116 Sato, op.cit.: 33.

93

preparação é feita dentro do próprio coletivo, outros comem a alimentação fria e outros trazem marmitas térmicas.

Embora os trabalhadores da empresa tenham direito ao ticket-refeição, para muitos não é a garantia da alimentação adequada durante a jornada de trabalho, pois é preciso que além dele exista, nos pontos iniciais das linhas, infraestrutura que possibilite a sua utilização. Alguns desses são situados em bairros onde tem-se apenas um modesto bar escassamente aparelhado para essa finalidade, com condições higiênicas precárias. Cada fiscal tem um jeito para se comunicar ou definir o trabalho dos operadores. Essa relação pode ser amistosa ou conflituosa, o mesmo ocorrendo entre os outros operadores.

Enfim, esses trabalhadores não recebem uma atenção quanto às suas condições de

trabalho, e essas estão enfronhadas em alternativas pessoais que em nada lhes garantem

nessa hora um momento para reporem, de forma salutar, as suas energias tão dilapidadas

no correr das horas em trânsito.

A rotina desses trabalhadores é encerrada com os seguintes procedimentos:

O horário para finalizar a jornada de trabalho, como também depende do andamento da linha, nem sempre é o mesmo e observamos que, em geral, ela é prolongada. Há motoristas que fazem horas extraordinárias por solicitação do fiscal ou por solicitação própria. Ela pode ser feita na linha de escala do motorista ou em outra, quando há mais de uma cujos pontos finais sejam próximos.

Da mesma forma que ocorre ao início da jornada, o local para terminá-la pode ser na linha, caso haja outro motorista para substituí-lo ou na garagem, quando a linha prescinde daquele carro, determinação prevista na Programação e na Tabela de cada operador.

Ao finalizar o trabalho o motorista recolhe os seus pertences e, se for necessário, comunica ao setor de manutenção a existência de problemas que requerem reparos117

Essa descrição permitiu uma reflexão sobre os condicionantes que podem decorrer

das condições de trabalho dos trabalhadores de transporte e, assim, levantaram-se as

possíveis inter-relações formadas a partir dessas mesmas condições.

.

Eu finalizaria esses pontos que dão conta das formas de exploração dessa categoria

sob o contexto de trabalho penoso. Teríamos os passageiros espoliados em suas condições

de @produção. Desse modo, podemos apontar e demarcar as gêneses das situações de

beligerância das duas categorias sociais e, por ser um espaço público, esse se encontraria

caracterizado por um fértil terreno às animosidades entre passageiros e trabalhadores,

quando em potenciais situações e interações sociais armadas por estopins de tensões

cotidianas devido à realidade social, emoldurada por condicionantes precários sobre esses 117 Forneck, op. cit.: 57.

94

sujeitos. Devido a isso, dedicarei um capítulo à busca de entender essa situação

microssocial de amplas repercussões sociais.

95

TERCEIRO CAPÍTULO SOCIABILIDADE DOS PASSAGEIROS DE ÔNIBUS

3.1. INTRODUÇÃO

Neste último capítulo refletirei sobre a questão da sociabilidade, e essa dimensão

conceitual delineia as situações dos passageiros nos ônibus, permitindo identificar as

maneiras de estar a favor, contra e com os outros. As sociabilidades destacadas são

microformas sociais categorizadas a partir dos quadros sociais de solidariedades,

conversas, conflitos e licenciosidades. Momentos regulares efêmeros encontrados nas

convivências e, portanto, cristalizações sociais nesse espaço público. A análise pressupõe

serem essas configurações sociais instantes transitivos, frutos das induções que a

mecanização exerce sobre as próprias ações sociais nesse microcosmo social existente na

mobilidade urbana118

Dessa forma, o conceito de sociabilidade foi extraído da contribuição teórica de

Georg Simmel (1858–1919), aquele apresentado e tratado no primeiro Congresso da

Associação Alemã de Sociologia, em 1910 (Frisby, 1993: 208), e incorporado neste

trabalho como conceito guia da análise sobre as sociabilidades dos passageiros de ônibus.

Isso porque apresenta dimensões instrumentais elucidativas sobre as formas sociais

recorrentes nesses equipamentos móveis formadores de um espaço público. Para tanto,

destacarei o seguinte trecho referente ao conceito considerado:

, e suas expressões interacionais recorrentes no interior desse palco

circulante.

O motivo deriva de duas proposições: uma delas é que em qualquer sociedade humana pode-se fazer uma distinção entre seu conteúdo e sua forma. A outra proposição é que a própria sociedade em geral se refere à interação entre indivíduos. Essa interação sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos. Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxílio ou instrução, e incontáveis outros, fazem com que o homem viva com outros homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando desse modo, reciprocamente, as suas condições – em resumo, para influenciar os outros e para ser influenciado por eles. A importância dessas interações está no fato de obrigar os indivíduos, que possuem aqueles instintos, interesses, etc., a formarem uma unidade – precisamente, uma sociedade119

(Grifos do autor).

118 O conceito de mobilidade urbana é, aqui, ampliado com a colaboração formulada por Araújo, 2004: “a mobilidade enquanto capacidade de deslocação e de ultrapassagem de fronteiras de vários tipos, que distinguem domínios diferentes no espaço e no tempo, surge hoje em dia, como a ponte definida entre o privado e o público, quaisquer que sejam e onde quer que se situem”. (Araújo, 2004: 03). 119 Simmel, 1983: 166.

96

A situação dos passageiros de ônibus se dá em um ambiente social de confinamento

social temporário; são momentos de interações sociais produtores de pequenas formas

sociais fluídas no interior desses veículos. Esse instante é alimentado por conteúdos sociais

que geram pequenas formas sociais, quando criam plásticas sociais de convivência

características desse espaço público. Trata-se de um fragmento da organização da vida

social e, aqui, visto pelo ângulo da mecanização da vida social. Essas situações formadas

no interior dos veículos são produtos de uma estruturação socialmente imposta ao conjunto

dos moradores de uma cidade. O ponto de vista assumido é o de que esses arranjos sociais

visualizados nas corporeidades físicas dos passageiros são resultantes de uma projeção do

psicossocialmente estabelecido nesse espaço público dinâmico e produtor de uma

morfologia social, um quociente resultante das próprias interações e relações sociais

criadas nessa unidade social móvel. As microscópicas formas sociais regulares conteriam

traços gerais de dada realidade e, no caso, moldados pelos inúmeros jogos sociais gestados

nos instantes dos transcursos efêmeros nesses equipamentos móveis sociais. Simmel

(1983) alerta para o fato de que uma sociação não se constitui necessariamente numa forma

social, quer essa seja uma qualidade referencial do entrelaçamento das interações sociais e

que padronizam formas sociais; a sociedade cria os movimentos nos fluxos interacionais e,

assim, formações produtoras e interferentes sobre as formas de sociabilidades. Quando

criam um cabedal de tatos, de procedimentos, de manhas e outras estratégias sociais

relacionais. E sobre essa dimensão gostaria de considerar a leitura de Simmel:

Aqui, “sociedade” propriamente dita é o estar com um outro, para um outro, contra um outro que, através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberados de todos os laços com os conteúdos; existem por si mesmo e pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços. É isto precisamente o fenômeno a que chamamos sociabilidade120

.

Os diversos indivíduos no interior do transporte coletivo gestam formas sociais

condicionadas por elementos formais desses veículos. Segundo Preteicelle, mencionado no

item 1.1., teriam os arranjos sociais de convivência interferência direta dos condicionantes

tecnológicos. Estes são vetores dos movimentos de socialização de uns com os outros:

interferem e produzem condicionantes nas formas de aglutinação ou separação dos

indivíduos em equipamentos de consumo coletivo. Os arranjos sociais constituídos são

mecanizações nesses instantes transitórios e intervenientes sobre as formas de 120 Simmel, Op. cit.: 168.

97

sociabilidade. Estar próximo de alguém não necessariamente gerará uma sociação. O

verificado nessas situações concretas não é uma associação. Essas circunstâncias dos

passageiros de ônibus urbanos vieram a se constituir em reflexão empírica sobre essas

sociabilidades hodiernas. Os conteúdos das convivências nesse equipamento de consumo

coletivo apontaram a “institucionalização social” de regularidades sociais nas

sociabilidades em decorrência do contexto histórico de cada cidade, quando os passageiros

adotam procedimentos sociais de acordo com o tempo e o espaço social em que estão

situados. Os costumes solidários, os gestos de solidariedade, as semelhanças e

dessemelhanças e conflitos são hábitos sociais regulares praticados em conformidade com

o contexto social. Para demonstrar essa dimensão, retomo Simmel.

(...) Pois a forma é a mútua determinação e interação dos elementos da associação. É através da forma que constituem uma unidade. As verdadeiras motivações da sociação, condicionadas pela vida, não têm importância para a sociabilidade121

.

As formas e modos processados na sociabilidade são expressões artificiais e jogos

derivados de uma padronização social imposta a todos. Os seus conteúdos sociais

existentes nas conversas, nos olhares, nos tatos de abordagem social e outros

procedimentos são formas sociais moldadas nas próprias relações sociáveis. Por diversos

fatores a humanidade criou as suas matrizes “sociais perpétuas”. Daí haver urgência de

novos projetos acenando com novas perspectivas do trato na vida social. Os atuais

escombros de sociabilidade provam essa decadência. As análises das formas sociais

permitiram apontar qualidades reprodutivas prevalecentes nessa realidade social. E, se a

sociabilidade é uma construção social voltada à associação cultural – e representação

concreta da qualidade dessas formas associativas, e um artifício socialmente secularizado,

constantemente gestado e perpetuado por gerações, quando reprime aspectos peculiares e

singulares dos indivíduos visando a formar um todo socialmente prevalecente –, ela,

sociabilidade, estipularia uma média às condutas a serem seguidas e significaria um álibi e

uma maldição social, por garantir um esteio social do “ad perpetuum” das convivências

sociais. A sociedade não permite imprevistos sociais; prevalecem as formas sociais

induzidas às ações sociais como guias, já que são acenos sociais garantidores do fluir

social. Do quadro de sociabilidade analisei boas e estúpidas maneiras da nossa realidade. E

apresentei reflexões sobre maneiras de integração e desintegração social. É significativo

entender o trato existente na vida social nos aspectos coloridos ou em branco e preto.

121 Simmel, Op. cit.: 169.

98

Dos códigos sociais reproduzidos na etiqueta – a ética pequena – no interior do

ônibus, avaliei como as relações socialmente se estabeleciam, por exemplo, ao tomar o

desconforto no interior do ônibus como referência interferente nos vínculos, nos conteúdos

e nas formas de estruturação do coletivo. Não se trata somente de um problema

tecnológico; pelo contrário, considero e deduzo a qualidade disponibilizada por esse

equipamento fator interventor nas formas relacionais nesse espaço público. Se a

sociabilidade é uma construção social das formas associativas concretas e um artifício

socialmente secularizado, perpetua-se nos conteúdos sociais na reprodução das gerações:

(...) A sociabilidade é o jogo no qual se “faz de conta” que são todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular; e “fazer de conta” não é mentira mais do que o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio da realidade122

.

As formas socialmente convencionadas no interior dos veículos são expressões

qualitativas e elas são se reproduzem nas apropriações desse bem coletivo como reflexos

das concepções sociais prevalecentes em dada sociedade. Poderíamos fazer alusão a um

exemplo histórico sobre essa dimensão ao destacar o enredo e uma situação retratados no

filme The long walk home123

. Nessa película há cenas reproduzindo a discriminação contra

os negros nos Estados Unidos, quando os mesmos sofriam severas restrições ao tomarem

um ônibus. As condições para a mobilidade, o direito de ir e vir, reafirmam em que

elementos históricos e sociais está condicionado esse fragmento do cotidiano. Assim, o

interior do ônibus está envolto por uma manta social de expectativas, mesmo sendo um

ambiente público e flutuante.

3.2. SOCIABILIDADES E SOLIDARIEDADES

Trafegar em ônibus permite verificarmos algumas sociabilidades manifestarem-se

em formas solidárias, que são manifestações positivas encontradas nos momentos de estar

uns com os outros no seu interior. Tais manifestações são derivadas dos atos de

solidariedade recorrentes, como, por exemplo, ações e expressões de presteza ao fornecer

uma informação, auxiliar passageiros, carregar objetos dos demais. Assim, há uma

urbanidade caracterizadora dos passageiros e uma postura de identificação entre eles, ainda

122 Simmel, op. cit.: 173. 123 The long walk home (1990). Diretor: Richard Pearce. Elenco: Whoopi Goldberg e Sissy Spacek. O filme retrata a luta racial nos anos cinquenta, no estado do Alabama, nos Estados Unidos da América. Há uma cena em que uma empregada doméstica (Whoopi Goldberg) é impedida de tomar o ônibus, nos EUA. O filme retrata a vida e a luta de Rosa Parks, militante pelos direitos civis norte-americanos.

99

existente só que em baixa frequência em seu cotidiano, devido aos aspectos sociais que

minam essas atitudes em razão de posturas oriundas das dessemelhanças e desigualdades

sociais.

Esses atos de solidariedade, expressos nas posturas de ajuda, de polidez e de

urbanidade são manifestações percebidas e cobradas: a necessidade de se oferecer assento

aos passageiros idosos, questão regulamentada, segundo se lê no interior desses

transportes, vem-se enraizando e se tornando um hábito social, bem como o gesto de

carregar objetos daqueles que viajam em pé. Trata-se de práticas de similitudes entre

aqueles que estão em viagem; formas e ações na convivência entre passageiros

demonstradas por essas atitudes sociais, e sinalizadoras de semelhanças entre essas partes

socialmente constituídas e momentaneamente.

A questão da solidariedade foi reflexão de Emile Durkheim (1989). E, assim,

retomaria suas palavras para precisar e definir a função da solidariedade. “Toda a gente

sabe que gostamos de quem se nos assemelha, de quem pensa e sente como nós”124

Essas atitudes e referências empíricas solidárias captadas nas viagens de ônibus são

lubrificações e práticas sociais que pretendem contornar e garantir as relações entre esses

seres humanos. Nos pontos de ônibus podemos encontrar passageiros comentando com

outros passageiros sobre as suas ações solidárias praticadas naquele dia. Assim, os atos

solidários são enunciados relacionais e interacionais visando à manutenção e conformação

do próprio tecido social. São referências positivas objetivando manter a organicidade

socialmente estabelecida nessas formas sociais, e arremates sociais para o dado contexto

social, quando se transformam em elos sociais para garantir a própria convivência nesse

tipo de espaço social. Como já mencionado anteriormente, os atos solidários geralmente se

manifestam mais em relação aos passageiros mais velhos, às mulheres – principalmente as

. Os atos

solidários são mecanismos de convivência social existentes e reproduzidos como

identificadores sociais no interior dos ônibus, quiçá da sociedade, enquanto forma

organizacional cheia de reciprocidade benéfica e, assim, formas para eliminar potencial

clima de animosidade nesse espaço, em que a tônica é o anonimato. Essas manifestações

de solidariedade são acionadas devido à compreensão acerca dos desconfortos estruturais

da viagem em ônibus urbano, e uma resposta racionalizada daqueles que detêm uma

posição de conforto nele, e forma social de sinalizar uma identificação para com os demais

semelhantes passageiros, que, às vezes, enfrentam situações de grande aflição no interior

dos veículos.

124 Durkheim, 1989: 69.

100

grávidas –, aos deficientes e às crianças. Alguns passageiros, muitas vezes, auxiliam a

subida de um idoso ou deficiente físico. Às mulheres e aos homens mais velhos sempre é

oferecido o assento para viajarem. André Comte-Sponville (1993) diz que “A polidez é

simulacro, de onde provêm as virtudes.”125

Dessa maneira, encontram-se nas viagens em

ônibus essas formas de codificação de posturas entre os seus passageiros, e elementos

formadores de uma igualdade social. Outros exemplos poderiam ser aqui arrolados, mas eu

ficaria circulando analiticamente sobre uma mesma referência.

3.3. SOCIABILIDADES, CONVERSAS E OLHARES Alguns dos momentos das viagens em ônibus se expressam por formas de

sociabilidade através de conversas e entre olhares. Haja vista que essas estruturas de

interações sociais têm sua fluidez por esses dois mecanismos de comunicação social. E,

assim, analisarei as conversas e os olhares como acontecimentos empíricos desses

momentos de interação no interior do ônibus. Para tanto, mais uma vez, amparei-me

conceitualmente em Simmel e adotei uma explicação acerca desse fenômeno: A sociabilidade abstrai essas formas – que giram em torno

de si mesmas – e lhes fornece corpos de sombra. A extensão em que se consegue esse objetivo torna-se evidente, afinal, na conversação, o veículo mais genérico para tudo aquilo que os homens têm em comum. O ponto decisivo pode ser apresentado aqui pelo destaque de uma experiência muito trivial: na seriedade da vida, as pessoas conversam por causa de algum conteúdo que querem comunicar ou sobre o qual querem se entender, enquanto que numa reunião social, conversam por conversar. (...) arte da conversação. (Grifos do autor) (Simmel, 1983: 176).

O termo compreensão é a possibilidade de se fazer entender a si mesmo e ao outro

também. O interior do veículo transforma-se em local para se conversar, e esse meio de

interação cristaliza-se e se torna meio instrumental criador de sociações entre passageiros

ou entre os seus trabalhadores. Entre os trabalhadores desse setor há uma intensa

comunicação interpessoal direta, principalmente quando se encontram em pequenos

grupos, ou quando estão dirigindo os veículos; ao cruzarem com outros veículos nos seus

trajetos nos logradouros da cidade, emitem sinais sonoros – buzinam – ou, à noite,

sinalizam com as luzes dos seus veículos alguma mensagem que queiram repassar.

Já as conversas entre passageiros podem ocorrer por diversas razões, e produzem

formas interacionais entre eles. Essas conversas são manifestações importantes por

125 Comte-Sponville, 1993: 19.

101

deterem grande capacidade de ressonância social. Para tanto, mencionarei fato ocorrido

durante o período eleitoral para prefeito da cidade do Recife/PE, no ano de 2000. Segundo

depoimento de Luiz Inácio Lula da Silva, o Partido dos Trabalhadores em Recife estaria

sofrendo agressões e mentiras:

(...) a decisão foi tomada em razão da constatação feita pelo PT de que existe uma “central de boatos” destinada a “desestabilizar” as candidaturas do partido. “É uma técnica um pouco nazista, e o partido tem que dar uma resposta rápida a isso tudo.”

Para ele, uma das técnicas empregadas por seus adversários desde o primeiro turno é a infiltração de pessoas entre passageiros de ônibus urbanos para “criticar e falar mal” dos candidatos do partido. Isso já aconteceu em Santos, em Campinas e em São Paulo126

.

A análise sobre as conversas no interior dos ônibus merece ter sua compreensão

devido a sua grande elasticidade social. Como já anunciado anteriormente no item XXX,

as conversas no interior do ônibus são regularidade nas linhas de grande percurso. Tal

fenômeno não se verifica nas linhas de pequenos percursos. O sociólogo pernambucano

Gilberto Freyre faz uma referência sobre essa ocorrência no artigo “Sociologia do Bonde”

e, portanto, é pioneiro ao apontar pistas para a análise sociológica das conversas, dos

comentários do dia-a-dia. Para nós, as conversas dos passageiros no interior do ônibus

deteriam a capacidade de produzir um eco social. Essas formas de interações sociais

desenvolvidas nas conversas nesse espaço público foram apontadas nos primeiros meios de

transporte coletivo do Brasil. Gilberto Freyre já apontava as conversas transcorridas no

interior dos bondes da cidade do Rio de Janeiro como um objeto a ser investigado pela

sociologia; ele fez uma proposta metodológica para a investigação acerca das conversas

nas viagens de bonde no fim dos anos cinquenta:

“Era um bonde ‘pontual’ o do Rio de Janeiro naqueles dias; e talvez o mesmo se pudesse dizer do bonde brasileiro em geral; o bonde não falta, não atraiçoa”, destacou Chagas à página 113, daquele seu livro. Nele, uma vez sentado, o passageiro podia dormir a seu gosto; ou ler o seu jornal, admirar a paisagem. E, é claro – não o notou João Chagas mas indica-o a tradição brasileira: havia as conversas, as discussões entre passageiros do bonde; os debates em torno de assuntos do dia; debates de ordinário cordiais (grifo do autor) 127

.

126 Folha de S. Paulo, São Paulo, 18.10.2000, pág. A-14. 127 Freyre, IN: Stile, 1984: 62/63.

102

Esses eventos sociais fortuitos se tornariam cristalizações sociais relâmpagos,

formando-se no desenvolvimento da vida de cada sociedade. As conversas dos passageiros

de ônibus, por exemplo, apresentariam uma grande elasticidade sobre o tecido social. Essa

constatação poderia ser medida em razão de elas se deslocarem nesse espaço público

através dos passageiros que as difundiriam no tempo social da cidade, e, assim, poderiam

adquirir amplitude devido a sua reprodução em cadeia junto aos demais passageiros e

moradores de uma cidade. A gênese desse processo social são as conversas entre os

passageiros.

Há também as conversas motivadas por pedidos de informação sobre o próprio

Sistema de Transportes Coletivos, quando os passageiros, ao embarcarem no veículo,

recorrem ao motorista e, às vezes, ao cobrador ou a outro passageiro solicitando algum tipo

de informação sobre: confirmação de linha, itinerário etc.. Devido a esse contato abrem-se

processos interacionais entre passageiros e trabalhadores desse setor. É uma das

manifestações do jeitinho brasileiro para driblar a precariedade desse serviço público,

estratégias que visam a recompor a precária ordem institucional. O ponto do ônibus serve,

às vezes, como balcão de informações, assiste-se a interações sociais motivadas pela busca

de informações e orientações solicitadas pelos passageiros, as quais são detonadas, muitas

vezes, pela precariedade do STC.

Os momentos de convívio fortuito entre pessoas em trânsito, quando se encontram

em uma viagem de ônibus urbano, reproduzem francas conversas. São instantes sociais da

mobilidade intraurbana propícios ao surgimento de conversas, constituindo, assim, um

momento peculiar de interação social. Essas formas de conversa poderiam ser interpretadas

à luz de José Machado Pais, quando define a sociabilidade pela perspectiva de um:

“conjunto de relações efectivas, vividas, que unem os indivíduos entre si, através de laços

interpessoais e/ou de grupos”.128

A indicação dos momentos das conversas realizadas pelos passageiros no interior

do ônibus são referências advindas do conceito tratado por Simmel e, aqui, adotado como

As conversas seriam partes das sociabilidades

desenvolvidas em ordens sociais propiciadas pelas mesmas e, assim, também como formas

de convivências. Instante social rico pela forma de convívio, uma forma comprometida

com as identidades. O que se fala é fruto de uma impressão sem nenhuma obrigação social.

Os conteúdos transmitidos levitam. Segundo a análise de José de Sousa Martins (2000), as

nossas atuais formas de sociabilidade estariam moldadas sobre a questão da modernidade.

E o ônibus é um dos frutos do progresso da revolução técnico-industrial do Ocidente.

128 Pais, 1996: 171.

103

uma explicação deste mesmo fenômeno. Para Simmel, a sociabilidade é a qualidade

formada pela estrutura das interações sociais, as quais são pertinentes à fluidez produzida

pelo modo como se realiza a conversação. O cotidiano rotinizado dos momentos no ônibus

urbano produz fortes impressões sociais, já consideradas no capítulo primeiro. Alguns

desses momentos de conversa dos viajantes se assemelhariam à antiga função de uma sala

de visita das casas, ou viriam a assumir essa função; as conversas discorrem por assuntos

das vivências em geral e, em alguns casos, elas são partes de idílios amorosos, devido a ser

o tempo curto para os casais que não dispõem de tanto tempo para seus namoros. Outra

forma de conversação sempre é observada entre os passageiros e as passageiras jovens, que

em geral realizam suas viagens em animadas conversas. Os assuntos são os mais

despretensiosos, podendo ser sobre datas de aniversário ou outro assunto qualquer. Mas

sempre em conversas animadas, desenvoltas, sem medo.

Em viagens rápidas e curtas encontramos uma situação oposta. De modo geral, a

situação dos passageiros no interior do ônibus se processa sem nenhuma troca de

cumprimentos ou conversas. Lá dentro não se reconhecem os semelhantes. Pode até ser um

exagero, mas ousaria afirmar essa contradição entre as formas relacionais no interior do

ônibus, oscilando entre o reconhecimento e o desconhecimento. Podem não ocorrer

contatos visuais nem de rápidas falas ou cumprimentos entre os próprios passageiros e os

trabalhadores desse setor. Um corolário cultural se reproduz nesse espaço público, no qual

prevalecem as regras e padrões sociais de cada cidade.

Outra forma interativa verificada nos trajetos urbanos é o olhar. Há constantes

jogos de olhar entre os passageiros e também dos trabalhadores. Essa forma de

comunicação não oral é, somente, visual. Olhares com fins diversos, indo dos já

mencionados de supervisão dos trabalhadores aos olhares entre os próprios passageiros.

Tomarei, como primeira referência aos contatos sociais expressos pelas diversas

formas de olhar, cenas encontradas no conto da escritora Clarice Lispector129

129 Lispector, 1995: 9-11.

(1925-1977),

“Uma tarde plena”. Nele há uma cena descrita a partir do próprio interior do ônibus,

quadro que reproduz a atmosfera social daquele momento. Narra-se um estado social

bastante sentido nos dias atuais, as situações de expectativa devido à impossibilidade social

de comunicação entre os próprios passageiros. Essa atmosfera de um ônibus caracteriza-se

pelo suspense interativo prevalecente. Em alguns momentos a identificação dos seus

utilizadores é suspensa. O anonimato é regularidade entre eles. E esse suspense foi

configurado pela escritora num quadro de acontecimentos girando em torno desses

104

mesmos jogos de expectativa. “As personagens afirmam-se e singularizam-se na relação

que estabelecem, por isso também não é dada ênfase ao nome das personagens. Clarice

Lispector destaca o íntimo em conexão com o público através das ações detectadas e

desencadeadas, quando o íntimo é acionado pelo olhar público. Todo o conto se dá pela

ausência das falas nas interlocuções entre os personagens do conto; o que permite a fluidez

dos seus usuários é o sistema de interação formado pelos diversos tipos de comunicação,

tais como: os posicionamentos, as posturas e as diversas formas de olhar, quando se

entrecruzam no interior do veículo. Acionadores e jogos imaginativos – segundo a

definição já mencionada – são acionados em razão das forças interacionais ‘quase que

mentais’”.

A fala é pouco usada quando se necessita realizar procedimentos para movimentar-

se no interior do veículo. Os constrangimentos recorrentes são o modo médio existente

entre os usuários de ônibus. Considerando esse tipo de situação, apresento o depoimento de

uma usuária de ônibus, E. L., 27 anos, estudante universitária da USP, no qual se encontra

semelhança com a situação marcada pela falta de conversas e um clima social: ela

descreveu uma situação de silêncio vivida por passageiros. O fato teria ocorrido quando o

seu ônibus parou em determinado ponto na Praça do bairro de Higienópolis; um homem

entrou nesse veículo com arma em punho. Todos os que dentro se encontravam ficaram

com o rosto apreensivo e atônito. Depois o fato foi anunciado pelo próprio motorista:

tratava-se de um policial à procura de uma assaltante. Depois do vexame, todos os

passageiros começaram a conversar entre si. O contexto de tensão provocado serviu de

motivo para a troca de impressões sobre a situação vexatória entre os demais passageiros.

Considerando ser o olhar uma das formas de comunicação utilizadas entre os

passageiros, buscarei as suas variações. Para tanto, vou novamente citar escritores para me

auxiliarem nessa especificação. Julio Cortázar produziu um conto sobre esse espaço social,

o Ônibus, no qual situa as diversas maneiras pelas quais ocorrem os vários tipos e formas

representados pelo olhar:

(...) olhar minucioso (...) os olhos de cima (...) olhando para (...) olhou (...) os dois olharam (...) olharam-se (...) olhou de esguelha (...) olhou para ela (...) olhou docemente (...) os olhos de um velho (...) olharam para (...) olhares com um esforço crescente, (...) olhos postos (...) olhares atentos e contínuos (...) olhando (...) olhem (...) um rápido olhar ao interior (...) olhava-a (...) olhavam para (...) os olhos (...) olhando o (...) olhou-o de cima (...) olhou-o rápido (...) devolver o olhar (...) se olhando (...) olhavam por um longo tempo (...) olhavam diretamente (...) seu olhar (...) olhar do cobrador (...) voltada para trás e olhava (...) olhava-a inexpressivamente (...) olhar teimoso (...) olhava de um lado a

105

outro (...) olhos passaram pelo rosto (...) vinham os olhares (...) olhá-los desanimado (...) olhando-a e olhando o passageiro (...) olhando-os entre os (...) se olharam as mãos (...) olhar com uma simples fórmula (...) olhando-os (...) olhava profundamente (...) o olhar (...) os dois olhavam o tenso (...) olhou, olhou sua (...) olhava de cheio (...) Olhavam para mim, (...) cravar os olhos (...) olhá-los (...) olhe (...) olhava a (...) olhar. (Cortázar, s/d: passim).

Foram mais de cinco dezenas de representações sobre a ação envolvendo o olhar, e

essas assumindo séries de nuances recorrentes nesse momento de circulação, ocorridas nos

ônibus. São diversas alusões às formas de ação formatadas nas convivências nesses

momentos de sociabilidade.

As formas de olhar entre passageiros e trabalhadores foram observadas, e reservei

uma das viagens para entender como se dão tais contatos sociais num ônibus. O resultado

está registrado na tabela abaixo:

TABELA 08

Tipo de reação Nº absoluto Percentual %

Passageiros não olharam ou não

falaram com o motorista

18 61,98

Olharam para o motorista 6 20,68

Cumprimentaram o motorista 2 6,89

Falaram com o cobrador 2 6,89

Falou com o motorista 1 3,44

Fonte: observação em campo.

Em princípio há a restrição legal para não se conversar com o motorista, é uma

precaução para manter a concentração dele no tráfego urbano; entretanto esse

procedimento é muitas vezes desrespeitado. O resultado foi de 62% de não contato entre

trabalhadores e passageiros. Porém, verifica-se haver uma cumplicidade entre passageiros

e motoristas, quando os primeiros trazem até presentes para o motorista, e encontram-se

passageiros que oferecem alguma prenda ao motorista.

3.4. SOCIABILIDADE E LICENCIOSIDADES

Neste momento descreverei um aspecto bastante corriqueiro e de grande relevância

para os(as) passageiros(as) de ônibus. No caso, vou reportar-me às situações provocadas

106

pelas compressões corporais que acontecem entre os(as) passageiros(as), quando estão

sentados ou em pé, em viagem no interior dos transportes coletivos e, em especial, no

ônibus urbano. São situações provocadas pela superlotação de indivíduos nos veículos,

ocorrem devido aos contatos corporais entre os(as) passageiros(as) e se manifestam em

diversas ordens. Esses momentos de sociabilidade foram definidos como manifestações

licenciosas; denominação que dá conta das consequências de situações provocadas pelos

encaixes corporais, em momentos oportunos às insinuações de práticas de caráter sexual

entre usuários(as). Os atritos corporais são de ordem voluntária e involuntária entre os

passageiros e as passageiras, oportunidade provocada pela superlotação, quando há

enroscamentos entre os indivíduos. E suas consequências provocam situações de aperto

corporal entre eles. Fato social reconhecido por todos que tomam um ônibus, é fator

inibidor ao reconhecimento desse tipo de transporte como propiciador de conforto para os

que o utilizam; e questão enfrentada pelas administrações públicas dos diversos municípios

brasileiros. Essas cenas são frequentes em viagens com grande número de passageiros, e

também nas linhas de ônibus de grande percurso. Por ser uma manifestação reconhecida

pela população, iniciei a catalogação das denominações de tal abordagem corporal em

algumas cidades brasileiras. Esse tipo de enroscamento corporal assume diversos nomes e

varia de acordo com a cidade em que essa prática ocorre. Em Fortaleza/CE, essa prática

libidinosa assume o nome de “pino”; em Salvador/BA, possui a denominação de “fazer

terra”; em São Luís/MA é “tomar gosto” e em São Paulo é “tirar um sarro”. Tais práticas

ocorrem nos horários de grandes afluxos, quando se torna constante o enleado de pessoas

no interior do ônibus. A fricção corporal é constante entre os diversos passageiros. É um

momento considerado de grande constrangimento, principalmente para as passageiras, as

quais constituem o alvo privilegiado dessas abordagens licenciosas; mas tal prática, às

vezes, se constata entre homens.

Para essas manifestações serem registradas, recorri a um procedimento de certa

isenção quando da descrição. Para tanto, adotei as narrativas literárias como meio

instrumental de tais práticas sociais. Nos fragmentos literários localizei e identifiquei

diversos quadros sociais dessa natureza nesse espaço coletivo público. O critério para a

escolha dos textos foi a própria ocorrência na literatura de ficção – brasileira e latina. E

esses trechos literários foram os registros das formas dessas práticas de sociabilidade entre

passageiros(as). Uma seleção em que se destacariam as próprias situações desse contexto

vividas nos ônibus, e em outros transportes coletivos,.

107

A razão heurística da utilização dos trechos literários para dar conta das descrições

e interpretações das formas sociais na literatura é registrada por Antonio Candido de Mello

e Souza (2000).

Para o sociólogo moderno, ambas as tendências tiveram a virtude de mostrar que a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independente dos graus de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte130

.

Dessa forma, apreendi dos fragmentos literários selecionados a capacidade de

descreverem essa situação íntima no contexto social e de, ao exporem as situações

enfrentadas, especificamente as dos passageiros de ônibus, retratarem as microssituações

sociais; e as narrações apontariam alguns dos motivos desse tipo de acontecimento nesse

equipamento público.

Quer dizer, nos estudos sociológicos da literatura (...) sobre o contexto histórico que as engendrou e que elas ajudaram a definir e a compreender. Nesta perspectiva, tomei as peças literárias como narrativas míticas, como momentos em que a sociedade falava para si mesma131

.

Os fragmentos literários teriam a capacidade de definir e traduzir esse momento do

cotidiano, ao situarem os motivos dos passageiros de ônibus. As observações técnicas

propiciadas pelo trabalho de campo eram insuficientes para localizar temporalmente tais

ocorrências.

Os textos de literatura de ficção já foram utilizados para descrever a presença e as

situações sociais dos transportes coletivos no Brasil por Waldemar Corrêa Stiel, no livro

História do transporte urbano no Brasil: bonde e trólebus132

130 Mello e Souza, 2000: 19.

. Um dos seus méritos foi

propiciar uma catalogação dos textos literários significativos no período dos bondes. Nessa

obra encontramos vasta coletânea de contos, narrações e poesias referentes ao período dos

bondes. E eles contêm as primeiras referências sobre a questão da sociabilidade nos

transportes coletivos no Brasil. A obra de Stiel colecionou mais de duas dezenas de textos

literários, e aqui destacarei alguns. Dentre as contribuições do artigo de Rui Barbosa (Stiel,

1984: XVI), está a menção ao aparecimento do subúrbio. Osvald de Andrade relata o

131 Damatta, 1993: 35. 132 Stiel, 1984: passim.

108

surgimento e a inauguração d’ “O bonde elétrico” e como a modernidade foi recebida na

cidade de São Paulo (Stiel, 1984: 305/306). A narrativa de Raquel de Queiroz faz alusão a

um traço da cultura brasileira, no conto “Viagem de bonde com Rachel”, quando destaca a

capacidade de adequação a certas situações sociais: o jeitinho brasileiro:

Vinha cheio, mas como diz, empurrando sempre encaixa (...), e a alentada senhora que se guindou ao alto estribo e enfrentou a plataforma traseira junto com um bombeiro (...), e isso prova a favor da elasticidade dos corpos, ela consegue se insinuar, ou antes, encaixar (Stiel, 1984: 92).

A cena descreve como foi possível a acomodação de uma passageira, destacando o

gingado de seu corpo, e essa alusão seria uma maneira de representar a capacidade de

driblar as precariedades que teria a população ao enfrentar as dificuldades cotidianas.

Em outra situação, o bonde foi utilizado em momentos de lazer, como se lê no

conto “Sábado de carnaval”, de Sandra Cavalcanti (Stiel, 1984: 237): é a incorporação

desse equipamento às atividades festivas de uma cidade. Considerando esses exemplos,

identificamos que os transportes coletivos poderiam ser benéficos à vida social, tanto para

funções produtivas, ou quando necessários a sua @reprodução ou consumo social na vida

das cidades brasileiras.

O inventário dos textos arrola diversos outros serviços prestados pelo bonde. É a

ficção explicando a realidade dos moradores pela lente apurada dos escritores. E essas

narrações podem constituir-se em tabulações sociais e humanas nesse tipo de realidade.

Nesse sentido, os trechos literários localizaram e destacaram os elementos de uma

cartografia relacional das microssituações nessa realidade dos trajetos urbanos. E,

simultaneamente, aferiram um gabarito desse meio e um espelho sobre as formas de

“reproduções das relações de reprodução social”133

133 Lefebvre, 1973: passim.

. Esses fragmentos literários revelariam

motes, experiências vividas por quem utiliza esse serviço coletivo público. Os recortes

contribuíram à análise das formas pelas quais se dão essas apropriações usuais desse tipo

de equipamento de consumo coletivo (Preteceille, 1983: 42). Ofereceram pistas e ângulos

do tráfego ordinários, identificados na sociedade contemporânea, e referências reflexivas

sobre a qualidade das formas, atualmente, condicionantes nesses espaços modernos de

aglomeração de pessoas em trânsito. Portanto, os escritos plastificaram os conteúdos e os

feitios: a elucidação das formas relacionais em questão. Quando esses quadros literários

apontaram situações regulares e, às vezes, típicas nesse tipo de equipamento, peculiares

109

minúcias foram reveladas pelo viés do imaginário desses escritores de ficção. Conforme

Cornelius Castoriadis:

(...) o sentido corrente do termo imaginário, o qual, por agora, nos bastará: falamos de imaginário quando queremos falar de alguma coisa “inventada” – quer trate de uma invenção “absoluta” (“uma história imaginada em todas as suas partes”), ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações que não suas significações ‘normais’ ou ‘canônicas’ 134

.

Os textos são deslocamentos das alusões dos pequenos traços sociais enfrentados

pelos passageiros, através das impressões e das circunstâncias sorrateiras das abordagens

licenciosas vivenciadas e sofridas por esses andarilhos urbanos. Uma situação contumaz

dos passageiros é revelada pelas descrições literárias, que esmiuçam peculiaridades

habituais nessas abordagens. Antes de apresentar as referências sobre os ônibus, destacarei

um exemplo literário dando conta de uma abordagem sexual em outro tipo de transporte

coletivo. No livro Amores impossíveis, de Ítalo Calvino, há o conto “O soldado”, que narra

uma ação libidinosa, descrevendo como se deu a abordagem de um soldado junto a uma

senhora em viagem de trem sentada no mesmo assento. Talvez devido ao longo tempo de

permanência junto a ela brotou o componente libidinoso, e um acontecimento carregado de

tensões íntimas junto aos dois atores sociais do conto. Vejamos uma das passagens de

Calvino:

O dorso de sua mão apertava agora a anca da senhora de preto; ele sentia o peso dela em cima de cada dedo, cada falange, qualquer movimento de sua mão seria um gesto de extraordinária intimidade para com a viúva. (Calvino, 1992:11).

A partir dessa última referência, eu ficaria com a indagação sobre os motivos que

encorajam tais tipos de postura verificados entre passageiros em transporte coletivo; um

clima propício a esse tipo de empreendimento é garantido pela transitoriedade da situação,

e devido a isso o indivíduo poderia enveredar por essas práticas libidinosas, uma

transgressão sem nenhum tipo de punição.

Para descrever as situações libidinosas, foram selecionados 05 (cinco) trechos

extraídos dos seguintes textos literários: Cinco minutos, de José de Alencar (1829-1877); o

popular “A dama do lotação”, de Nelson Rodrigues (1912–1980); “Tarde plena”, de

134 Castoriadis, 1982: 154.

110

Clarice Lispector (1920-1977); o “Ônibus”, de Julio Cortázar (1914-1984); e Exercícios de

estilo, de Raymond Queneau (1903-1976).

José de Alencar, no romance Cinco minutos135

O canto já estava ocupado por um monte de sedas, que deixou escapar-se em ligeiro farfalhar, conchegando-se para dar-me lugar.

, do final do século XIX, descreve a

abordagem efetivada por um de seus personagens ao escolher um lugar dentro de um

ônibus no Rio de Janeiro, quando ele se insinuou para uma mulher bonita que se

encontrava no mesmo ônibus. O texto detalha a maneira sorrateira como se deu a escolha

do assento para refestelar-se, uma seleção instantânea permitiu a abordagem à passageira:

Sentei-me; prefiro sempre o contato da seda a vizinhanças da casimira ou do pano.

Pouco a pouco fui cedendo àquela atração irresistível e reclinando-me insensivelmente; a pressão tornou-se mais forte; senti o seu ombro tocar de leve o meu peito; e a minha mão impaciente encontrou uma mãozinha delicada e mimosa, que se deixou apertar a medo136

.

A primeira inferência identificaria que tais abordagens são ações de passageiros, no

caso um cavalheiro do século XIX, e que, pela lógica do escritor cearense, o amor

justificaria tais sentimentos. O romance foi publicado em 1856; se considerarmos tal data,

poderemos afirmar que esse tipo de abordagem é uma prática secular na sociedade

brasileira.

Outro texto literário selecionado com registro de práticas libidinosas é “A dama do

lotação”, de Nelson Rodrigues. O conto mostra o espaço do ônibus como local de vazão e

afloramento de fantasias sexuais praticadas por uma mulher. A primeira observação a ser

feita é que a protagonista é uma personagem feminina. O veículo coletivo servia de

locomoção para ela se afastar de casa, pois necessitava dar vazão aos seus devaneios; o

espaço público era meio para empreender os acontecimentos psicossociais e para

desenvolver as suas fantasias, sorrateiras licenciosidades. A esposa recém-casada passou a

adotar práticas de sedução nada convencionais, quando tinha alteração de identidade, e

sentia necessidade de todo dia tomar um ônibus para realizar as suas imaginações. “A

Dama do lotação” descreve uma realidade em que os impulsos sexuais dão a tônica do

enredo narrado. Vejamos:

Ela explicou ainda que todos os dias, quase com hora marcada, precisava escapar de casa, embarcar no primeiro lotação (grifo nosso). O marido a olhava, pasmo de a ver linda,

135 Alencar, 1999: 11/12. 136 Alencar, 1999: 12.

111

intacta, imaculada. Como é possível que certos sentimentos e atos não exalem mau cheiro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada! Não tenho culpa!”. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se entregava e não ela mesma137

.

Um pressuposto a ser levantado poderia ser que o agrupamento de pessoas no

ônibus, ao suspender as identidades sociais, propiciaria a ação da personagem; no ônibus,

os vínculos sociais existentes se dão de maneira fluída. O temporário anonimato poderia

ser incorporado como um disfarçar social em tal situação. Não há o perigo do

reconhecimento dos outros. As identificações não são levadas em conta como traços nos

laços sociais; pelo contrário, eles estariam temporariamente desfeitos no interior do ônibus

quando as semelhanças são evitadas.

Julio Cortázar é outro autor a tomar o interior do ônibus como local para as suas

narrações. No conto “Ônibus” temos mais uma cena de abordagem pessoal que retrata

situações derivadas do alto grau de proximidade física, e propícias às práticas de

abordagens libidinosas e interpessoais. Vejamos a narração de Julio Cortázar que

presentifica situação dessa natureza:

Depois Clara sentiu que o rapaz pousava devagar uma mão na sua, como se estivesse aproveitando que não podiam vê-lo da frente. Era uma mão suave, muito morna, e ela não retirou a sua, mas foi mexendo lentamente até levá-la ao extremo da coxa quase sobre o joelho. Um vento de velocidade envolvia o ônibus em plena marcha (Cortázar, s/d: 48).

Os personagens apresentam cumplicidade entre si; o local permitia uma

aproximação não visualizada pelos demais ocupantes do veículo. O autor considera e situa

os seus personagens em momentos provisórios, experiências anônimas entre passageiros.

Interrogando alguns passageiros sobre essa dimensão, eles afirmam ser uma abordagem

devida à suspensão das distinções sociais. Nesse sentido, os passageiros abordados nesse

tipo de prática social vivenciam momentos de grande constrangimento e impotência e, às

vezes, de consentimentos recíprocos.

Raymond Queneau, na obra Exercícios de estilo, apresenta usuários de ônibus

retratados em diversas situações e movimentos. As cenas se repetem nesse mesmo

ambiente de trânsito, nesse tipo de veículo; as variações são simples detalhes alterados em

adjetivas intimidades compulsórias, em horários idênticos, mas que se tornam surpresas

casuais para a rotina, quando se verificam repetições por diversos ângulos de sutilezas 137 Rodrigues, 1996: 12, 13 e 14.

112

peculiarmente ásperas. Para efeito do aspecto da licenciosidade selecionei o conto

“Surpresas”.

Que aperto na traseira! E aquele fulaninho, iiihh que cara de bobo, e que arzinho mais ridículo! Sabe o que ele fez? Não é que deu de emburrar, só porque – atrevido o senhorito! – lá muito de vez em quando, no lufa-lufa, um cidadão dos mais honestos dava umas encostadinhas! Cacarejou o quanto pôde e depois saiu escafedido para ir-se aboletar num lugar vago, ainda quentinho! Que desplante! Em vez de deixá-lo para uma senhora!

Duas horas depois, adivinhem quem eu vejo defronte à estação?! O próprio! O mocetão! Ouvindo dicas de roupa! De um amigo!

Não dá para acreditar! O amigo era um gato, nem te conto! Entendido em moda como ninguém...138

A rotina é constituída por diversidades tênues de alterações não detectáveis pelas

lentes dos seus protagonistas, são os escritores os detectores dessas pequenas variações139

O problema das abordagens libidinosas já foi preocupação de órgãos da

administração estadual e municipal de São Paulo. Medida objetivando resolver esse tipo de

problema foi a criação de um vagão especial para as mulheres nos trens da CPTM. Mas tal

iniciativa não logrou êxito, em razão de que esses mesmos vagões estavam sendo tomados

pelos passageiros do sexo masculino.

.

3.5. SOCIABILIDADES E CONFLITOS

Nesta última correlação sobre sociabilidades, juntaria aspectos dos conflitos sociais

configurados no momento de ocupação em um ônibus urbano. O conceito sociológico de

conflito social tem grande importância, em razão de encerrar uma gama de matizes das

próprias sociabilidades, e essa é uma dimensão social inerente aos instantes de convivência

carregados por uma atmosfera social de animosidades, agressões, brigas e outros tipos de

microchoques sociais constatados ao longo das descrições dos momentos no ônibus.

Se o conflito açambarca boa parte das facetas da sociabilidade, então precisarei

tratá-lo conceitualmente. O conceito prevalecente de conflito social encontra-se na obra de

Georg Simmel. Der Streit foi traduzido do alemão para o português por “conflito”. Se

fizéssemos uma investigação etimológica entre traduções do português e do espanhol,

talvez encontrássemos uma pista para a contextualização aqui incorporada. Já o mesmo

conceito, quando traduzido para o espanhol, veio a ser lucha, e este quando transposto para 138 Queneau, 1995: 24. 139 Raymond Queneau (1903–1976) em seu livro, Exercício de estilo, descreve uma série de cenas a partir de uma linha de ônibus. Nessa obra destacam-se dimensões reproduzidas pelos movimentos habituais de um passageiro de ônibus. (Queneau, 1996: passim).

113

o português é luta. Portanto, pode-se aferir das traduções uma intervenção sobre o

conceito. Entretanto, o conceito conflito poderia ser resgatado através do poeta maranhense

Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), em uma frase lapidar: “Viver é lutar” 140

Na vida social somos remetidos a lutas efêmeras ou duradouras, e essas são partes

gerais da vida social. Conflito em português possui conotação reducionista, e não a ideia de

conflito como acontecimento carregado de diversos sentidos. Quer este fosse somente um

estudo etimológico da palavra conflito, diríamos ser a versão em português reducionista e

estreita. Dessa forma, entende-se conflito como um dos elementos componentes das nossas

sociações. A sociação é o ato e o feitio da confecção dos vínculos sociais, e compreendido

a partir da seguinte ponderação de Georg Simmel: “Admite–se que o conflito produza ou

modifique grupos de interesse, uniões, organizações. (...) é uma forma de sociação”

. A frase é

parte do poema (cf. nota de rodapé), a qual dimensionaria o conceito de uma forma social

mais precisa.

141. Ele é

um momento social a possibilitar construções e destruições, quer sejam sob a forma de

instituições, de estruturas, de arranjos, de processos, de relações e de interações sociais. É

um tempo socialmente espacial, localizado por indeterminadas formas142

Dessa maneira, o conflito assumiria importância social, na medida em que é uma

das formas prevalecentes nas interações de convivência. Os indicadores sobre assaltos e

acidentes, apresentados mais à frente, são mais um dos registrados e referência quanto ao

conteúdo existente nessa forma de convivência social, restrita aos quadros sociais da

realidade dos passageiros.

na órbita do

social. Expresso por diversas formas localizadas em variados momentos sociais

enfrentados no cotidiano, e, no caso, destacaria o do ônibus, que é um exemplo acessível

devido às observações da investigação.

Para contextualizar a questão dos conflitos sociais, adotei um princípio encontrado

no senso comum143

140 “Canção do Tamoio”: “Não chores, meu filho;/ Não chores, que a vida/ É luta renhida:/ Viver é lutar./ A vida é combate,/Que os fracos abate,/Que os fortes, os bravos/Só pode exaltar”. (Dias, 1997: 141).

, qual seja: são uma energia, na medida em que o atrito é a condição sine

qua non para existir enquanto meio relacional. Torna-se momento entre partes litigiosas e,

às vezes, inerente às uniões e um instante de estruturação social das formas sociais,

confeccionadas nos dramas, nas intrigas, nas animosidades, nas confusões, nas rebeliões e

nas tragédias. Simmel apontou aspectos virtuosos atribuídos ao conflito, devido ao fato de

141 Simmel, 1983: 122. 142 Freud, 1980, op. cit.: 216. 143 Uma alusão à recomendação feita por Aristóteles de que devemos levar em consideração os ditados, os enunciados populares. (Aristóteles, 1978, passim).

114

ser e criar patamar: um espaço para partes se situarem em um mesmo nível. O combate

somente se efetiva quando as partes díspares em litígio superam o próprio

desconhecimento. O mesmo se constituiria em espaço social para os atos de

reconhecimento. Um metamorfismo se efetua quando essas interações sociais ocorrem e

produzem novas formas de relações sociais. A característica positiva é atribuída ao fato de

superar os hiatos e os limites socialmente estabelecidos entre os intervalos dicotômicos, ou

mesmo entrelaçados pelas desigualdades sociais e essas últimas como substâncias

existentes nas diversas relações entre os indivíduos na sociedade. Nos dias atuais, a

questão assumiu relevância, na medida em que a violência adquiriu proporções

interferentes nas rotinas sociais. Ao ser reconhecido como um dos elementos mais intensos

e corriqueiros nas mais diversas sociedades e, ao mesmo tempo, componente relativamente

pouco estudado apesar de sua relevância, ele pode ser analisado sob o seguinte prisma:

“(...) Se toda interação entre os homens é uma sociação, o conflito, afinal, é uma das mais

vívidas interações”.144

O próprio conflito resolve a tensão entre contrastes. (...) Essa natureza aparece de modo mais claro quando se compreende que ambas as formas de relação – a antitética e a convergente – são fundamentalmente diferentes da mera indiferença entre dois ou mais indivíduos ou grupos. (...) “o conflito contém algo de positivo”

Ele constitui os arranjos sociais e coletivos, quando lhe atribuem a

capacidade de ser produtor, e em virtude de ser considerado algo socialmente construtivo:

145

.

É um gradiente de forças dinâmicas propulsoras e desobstaculiza situações de

contextos sociais estáticos, aqueles já cristalizados no interior da sociedade. Ao impor um

passo além do agora construído socialmente, é uma ação desencadeadora de reviravoltas

sociais e de mudanças sociais. Os passageiros e os trabalhadores, vítimas de roubos e

furtos, comentam e lamentam os prejuízos tidos por sofrerem tais ações. No caso dos

cobradores, eles pagam o roubo em virtude de não guardarem no cofre do ônibus o

dinheiro arrecadado.

Os dados sobre roubos foram, aqui, considerados como mais um dos conflitos sociais

a integrar a realidade dos ônibus. Uma reportagem da revista Veja São Paulo, de

05.06.2000, produziu quadro probabilístico acerca dos assaltos junto aos passageiros de

ônibus. Um entre três mil e quinhentos passageiros já havia sido assaltado numa linha de

ônibus de São Paulo. Um desses momentos de aflição foi observado por mim. A ocorrência

144 Simmel, 1983: 122. 145 Simmel, op. cit.: 123.

115

se deu num momento de permanência junto à fila de um dos coletivos da linha, quando

assisti a dois acontecimentos dignos de registro. O primeiro foi um rápido furto a uma

senhora de aproximadamente setenta anos. Ela vinha passando pela calçada do ponto do

ônibus e teve o seu cordão de ouro arrebatado do pescoço. A senhora deu um grito de

espanto. Ainda meio atônita, passou as mãos pelo pescoço, como se estivesse à procura de

algum sinal de arranhão ou machucado e que, ao mesmo tempo, confirmasse a subtração

do seu adorno. Um jovem, alto e magro, com rápido movimento, havia subtraído o seu

adorno. Enquanto isso, os passantes olhavam o acontecido, mas não expressavam nenhuma

reação de solidariedade. O jovem ladrão podia ser identificado entre a multidão de

transeuntes indiferentes. Ele saiu do local conferindo o seu furto. Os que o olhavam não

externaram nenhum tipo de reprovação. Ante esse fato, eu resgataria uma afirmação já

feita: a exposição ao público dos passageiros nos pontos de ônibus faz desse espaço

público um ponto nevrálgico de uma cidade. No espaço público há regularidade de assaltos

e outros delitos contra o cidadão, então o espaço público está sendo uma negação da vida

socialmente estabelecida.

A identificação dos problemas gerados pelos microconflitos era uma avaliação dos

próprios motoristas e passageiros. Para tanto, apresento, logo abaixo, a tabela 06 contendo

dados coletados sobre a incidência de assaltos nos anos de 1995, 1996, 1997 e 1998.

TABELA 06 - ASSALTOS POR MESES-ANO

1995

1996 1997 1998 Janeiro 299 507 504

1.034 Fevereiro 255 464 478

1.045 Março 325 468 460

1.022 Abril 314 420 412

948 Maio 334 491 489

1.139 Junho 336 514 598

1.088 Julho 373 506 648

1.188 Agosto 444 442 701

1.231 Setembro 336 407 680

1.248

Outubro 348 385 581 1.082

Novembro 398 382 698 1.076

Dezembro 403 341 802 804

Total 4.165 5.327 7.051

12.905

Médias 347 443 587 1.075 Fonte: SPTrans

116

A tabela 06 apresenta sinteticamente a escalada das incidências de assaltos – furtos

e roubos – registrados nos anos de 1995, 1996, 1997 e 1998 junto aos trabalhadores, no

caso específico, os cobradores de ônibus. A questão dos assaltos tornou-se uma situação

insuportável para eles. Os passageiros ao embarcarem em um veículo eram acompanhados

por esse medo.

Nas primeiras viagens os motoristas me indicaram esse fato social, como

mencionado na introdução deste trabalho. A leitura da tabela 06 confirmou essa

informação informal. Essas estatísticas somente dizem respeito aos assaltos que vitimaram

trabalhadores nesse serviço. As médias de roubos estavam ascendentes no volume de

ocorrências anuais: 1995 – 347; 1996 – 443; 1997 – 587 e 1998 – 1.075, e foram

registradas as ocorrências de roubos. Nota-se que entre os anos de 1995 a 1998 houve

triplicação nas ocorrências: enquanto em 1995 foram registrados 4.165 assaltos, em 1998

registraram-se 12.905 ocorrências. O momento de maior incidência se verificou entre os

anos de 1997 e 1998, quando a média foi duplicada na ordem de quase treze mil

ocorrências de assaltos. Esse fato social era um dos traços regulares em algumas linhas de

ônibus da cidade de São Paulo. A atmosfera sentida no interior desses veículos pela

população usuária produziu atitudes defensivas no dia-a-dia da sociabilidade desses

passageiros. Os roubos contra passageiros começaram a ser tratados institucionalmente,

quando a questão no interior dos ônibus já era matéria tratada até pelos Tribunais de

Justiça do Estado de São Paulo. Vejamos:

Os tribunais ainda estão divididos, mas começam a admitir com mais frequência a responsabilidade objetiva das empresas de transporte coletivo urbano pela segurança dos passageiros em caso de assaltos. A responsabilidade é objetiva quando independe de provar que a empresa agiu com culpa (negligência, imprudência ou imperícia) e está prevista no Código de Defesa do Consumidor. “Nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, a violência faz parte do dia-a-dia das pessoas, portanto, acontecimentos violentos passam a ser previsíveis. As empresas precisam aperfeiçoar-se para evitar esse tipo de ocorrência”, afirma o advogado civilista Edgar Fiore146

.

Na perspectiva dos trabalhadores, a questão da insegurança no interior dos veículos

já merecia mobilização social das categorias profissionais, para tanto organizavam

manifestações sociais e, em uma delas, ornaram os veículos com uma fitinha branca,

fixada nos retrovisores laterais dos veículos e que se constituiu num símbolo contra a

violência cotidiana, já identificada com alguns traços de anomia junto a essa situação 146 Folha de S. Paulo, de 18 de julho de 1998, pág. 3-2.

117

social. Essa grande preocupação culminou com a manifestação realizada a 07 de julho de

2000; dias após a manifestação, ainda se encontravam algumas dessas fitinhas brancas

presas aos veículos. Um dia perguntei a um dos motoristas, que estava pegando e

admirando reflexivamente uma delas no seu veículo de trabalho, no ponto final da Rua

Arruda Alvim:

– “Foi do dia da Paz?” – referia-me à última manifestação.

O motorista respondeu. “– Eh! Os caras gostaram! E deixaram aí!”

A conclusão, feita em tom de preocupação pelo motorista, confirmava a situação de

tensão presente no seu cotidiano.

Outro tipo de acontecimento com clima conflituoso nas viagens nesse tipo de veículo

deve ser consorciado pela tensão produzida pelos torcedores dos times de futebol de São

Paulo. Esse é um fator a interferir na comodidade e segurança de todos os utilizadores

desse serviço público móvel. Os cobradores interrogados sobre o assunto conflito logo

mencionavam os incidentes verificados nos dias dos jogos de futebol. O motorista J. falou

sobre o temor existente nesses dias especiais. Vejamos a seguinte crônica:

A tensão marcou a viagem de passageiros nos ônibus que levaram torcedores ao jogo entre Corinthians e Palmeiras, anteontem à noite. Do terminal da Praça da Bandeira, no centro, até a Avenida Morumbi, apenas os cantos de guerra e o batuque nos vidros e na lataria eram ouvidos. No caminho até o estádio, quem nada tinha a ver com o jogo olhava em silêncio a cidade pela janela, o assoalho do veículo e, vez ou outra, com muita discrição, a torcida na parte de trás do veículo. (...) Depois que o ônibus partiu e a batucada começou, ninguém além dos torcedores falou nada. “Na semana passada, entrou um são-paulino e eu queimei o seu gorro e sua camisa dentro do ônibus.” (...) Dois vidros quebrados, viagens atrasadas e medo mudaram a rotina das pessoas que passavam pela avenida professor Francisco Morato por volta da meia-noite de anteontem. Depois da derrota de seu time para o Palmeiras, os corintianos que lotaram os pontos de ônibus da via não se conformavam de os motoristas quererem sair sem levá-los. (...) Nem vi de onde vieram as pedras, disse o motorista Reginaldo Henrique Gomes. Segundo ele, não importando qual seja a torcida, dia de jogo nunca é sinônimo de tranquilidade. É sempre complicado147

.

Nos dias de jogos, os torcedores de futebol provocam e criam uma atmosfera

bastante tensa no trajeto desses veículos. São momentos de constrangimento social, a

atmosfera dentro dos veículos piora nos dias de partidas futebolísticas nos estádios da

cidade, devido aos momentos de intimidação contra os demais usuários dos transportes

147 O Estado de São Paulo, de 07 de maio de 1999, pág. C-A.

118

coletivos, ameaçados com atentados físicos e morais pelos torcedores no interior ou no

entorno dos veículos.

Os acidentes ocorridos nos ônibus são outra situação cotidiana que produz

constrangimentos aos usuários. Essas eventualidades ocorrem comumente em alguns dos

veículos componentes das frotas de ônibus; os técnicos em engenharia de transportes

atribuem a existência dessa rotina à idade e ao precário estado das frotas. Essas ocorrências

têm grande impacto sobre a rotina dos passageiros, pois provocam um corte abrupto no

trajeto em realização e necessário ao seu cotidiano, o que impõe aos passageiros

reformularem e recalcularem seus trajetos.

Segundo a SPTrans S. A., no ano de 1998 ocorreram em média 1.254 acidentes

com ônibus em São Paulo. A tabela 07 reflete o comportamento desse tipo de

eventualidade através dos números de acidentes em 1998, quando houve oscilações

crescentes nas ocorrências dos acidentes, ao longo de todos os meses do ano.

TABELA 07 – NÚMERO DE ACIDENTES - 1998

Fonte: SPTrans S. A.

Os conflitos sociais no interior dos ônibus também se reproduzem entre grupos

juvenis de passageiros e se concretizam através de agressões físicas e morais entre eles,

conforme relato abaixo:

A rivalidade entre grupos de jovens acabou em pancadaria, roubo e prisões dentro de um ônibus na região de Pinheiros (Zona sudoeste de São Paulo). A briga entre clubbers e skatistas aconteceu anteontem à noite na linha de ônibus Paraíso, próximo da Avenida Faria Lima. É o terceiro confronto entre dois grupos de adolescentes em menos de três meses na capital. (...)

Janeiro 1.246

Fevereiro 1.200

Março 1.461

Abril 1.289

Maio 1.432

Junho 1.372

Julho 1.359

Agosto 1.355

Setembro 1.454

Outubro 1.470

Novembro 1.420

Dezembro 1.397

Média 1.254

119

Patrícia afirmou ter espancado as garotas, pois elas eram de tribos diferentes. ‘Isto é para ela aprender a não curtir movimento errado’, disse ela.148

O conflito foi motivado por concepções sociais diferenciadas; uma das agressoras

relatou seu álibi, numa tacanha postura social entre grupos de jovens. Essas ocorrências

são intervenientes no cotidiano dos passageiros de ônibus e uma moldura cotidiana para

situações de convivência deles.

Mais uma vez recorri a um aspecto do conceito de conflito social simmeliano para

destacá-lo em sua capacidade de amálgama social, um elemento gestor dentre as formas

relacionais. “Todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando vistas pelo ângulo do

caráter sociologicamente positivo do conflito149

É o conflito um fato sui generis e sua inclusão sob o conceito de unidade teria sido tão arbitrária quanto inútil, uma vez que o conflito significa a negação da unidade

, diz Simmel. O conflito é uma intervenção

identificada com a própria construção do socialmente estabelecido; destaca o conteúdo, o

qual alteraria e ou criaria condições intervenientes na existência social; gesta novas formas

sociais. E os frutos resultantes dos embates reorganizam formas sociais proporcionadas por

esses constantes embates sociais.

150

.

Ele se configura em intervenção construtora de novos quadros sociais em níveis

diferenciados e multiplicados de acordo com o tempo histórico no qual esteja inserido.

Novos arranjos sociais são produzidos e derivados dessas múltiplas interações sociais.

Simmel sugere haver uma relação entre as forças e formas próprias resultantes dos affaires;

os conflitos seriam fatores dessas transmutações e reordenações históricas ao constituírem

novas aderências sociais. A união ou a desunião resultante do conflito decorrem dos

instantes de enfrentamentos de semelhantes. O conflito é uma dimensão estipuladora de

limites ao criar e circunscrever espaços singulares derivados de desigualdades sociais.

Se levássemos às últimas consequências as análises de Simmel, poderíamos apostar

na criação de subdisciplinas sociológicas: a conflictugrafia e conflictulogia151

148 Folha de S. Paulo, de 28 de dezembro de 1999, pág. 3-6.

. A primeira

com a tarefa de catalogar e descrever as diversas formas de conflitos em contextos e

abordagens históricas. A segunda prestar-se-ia ao estudo sistemático dos resultados

produzidos pela primeira. Elas poderiam fazer medições e avaliações sobre o estado da arte

149 Simmel, 1993: Ibid. 150 Simmel, 1993: Ibid. 151 Tavares dos Santos, 1999. O dossiê sobre os conflitos sociais é apresentado como um problema sociológico contemporâneo.

120

das relações humanas em medições da simples rixa até o confronto nuclear. “Mas essas

discordâncias não são absolutamente meras deficiências sociológicas ou exemplos

negativos”.152

Designamos por “unidade” o consenso e a concordância dos indivíduos que interagem, em contraposição a suas discordâncias, separações e desarmonias. Mas também chamamos de “unidade” a síntese total do grupo de pessoas, de energias e de formas, isto é, a totalidade suprema daquele grupo, uma totalidade que abrange tanto as relações estritamente unitárias quanto as relações duais

A matéria conflito se presta à análise sociológica na tarefa prospectiva sobre

as condições de vida das diversas sociedades. Nesse sentido, permite detectar aspectos

junto à noção de unidade, na qual haveria uma rica questão sociológica a ser superada: a

simples compreensão restritiva ou, então, hegemônica sobre a noção de unidade, como

aqueles processos culturais e sociais associados à ideia de unicidade, e essa reduzida a uma

única dimensão. Dessa forma, o avanço descritivo acrescentaria a compreensão mais

abrangente da noção de unidade, a qual não ficaria restrita a uma simples razão sem

contexto, mas verificadora dos elos componentes nas relações sociais. “Toda unanimidade

é burra”. A oração rodriguiana é uma representação apreciativa do lado qualitativo e

benéfico sobre o conceito de conflito, o qual visaria à compreensão da noção de unidade. A

noção dialética de conflito precisará ser apreendida como algo que, por princípio, é aberto

e ao mesmo tempo móvel (cf. Lefebvre, s/d e s/r). E responsável pelas novas formas

criadas por seus embates, no seu contato com as velhas formas existentes no meio

interacional. Há um argumento sobre a noção de unidade dado por Simmel, o qual entende

ser ela formada pela seguinte dimensão:

153

.

A visão de unidade é fundamentada por eixo explicativo mais complexo. Ao

associarmos as lutas aos referenciais negativos, talvez estejamos induzidos a determinada

“visão social de mundo”. É problemático atribuir valor negativo aos processos decorrentes

do conflito, em razão de desconhecermos os componentes dos processos civilizatórios.

Esses não somente aniquilam antigas ou novas estruturas, mas as (re)criam em novas

formas ou as mantêm sob determinadas condições. A reclamação de um passageiro de

ônibus – por exemplo, quando o cobrador informa não ter um troco – poderá conter um

fermento social componente das lutas sociais. As reclamações contra as situações de

constrangimento e animosidade enfrentadas pelos passageiros se processam nos constantes

momentos, arranjos e embates formadores e responsáveis por novas situações sociais

152 Simmel, op. cit.: 124. 153 Simmel, op., cit.: 125.

121

recorrentes nesse recinto público. Observemos o trecho de um cordel e uma dimensão já

apontada no item 2.2.1.:

A falta de troco, companheiro / É uma difícil defesa / Negocie com o passageiro / Pra ficar tudo beleza / E explique que a falta de dinheiro / É por culpa da Empresa154

(sic.).

Em Brasília, nos anos 80 do século passado, estava havendo treinamento dos

profissionais de ônibus. Os versos são alusões aos momentos de conflito verificados no

interior do ônibus quando da cobrança da passagem. Esse momento contém exemplo desse

tipo de conflito de interesses opostos entre as categorias de passageiro e trabalhadores do

setor.

Lukács comparou Simmel ao pintor Monet155. A pintura impressionista se

caracterizou por fazer uma decomposição nas formas reproduzidas, e essa alusão é uma

maneira de demonstrar como Simmel fez a decomposição dos elementos da realidade

social. Ele também deteria a capacidade de “anódino da vida cotidiana”.156 Isto é, os

pequenos elementos componentes são pinçados em suas análises, tanto nas suas

intensidades como nas suas peculiaridades. Ele trata o conflito social em suas diversas

nuanças: algumas situações de repulsa, oposição e aversão, como elementos topológicos

relacionais E se remete à preocupação central da sua investigação: “como é possível a

sociedade?157. Devido a isso, ressaltou-se sua aproximação teórica com Kant. Em Simmel,

encontramos apriorismos para a explicação da sociedade. Nesse sentido, teria adotado o

princípio kantiano, ao realizar um esforço explicativo acerca das formas e dos conteúdos

de integração dos conjuntos sociais. Na análise simmeliana essas formas de sociação

estariam prenhes de energia, tais como ‘energias de repulsa’, que, em contato com as

“forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergências de interesses”158

154 Rodoviário e usuário: a nossa união é o melhor itinerário. Brochura de campanha educativa do sindicato dos rodoviários. (Brasília, Gráfica do sindicato dos rodoviários, 1992).

,

produziriam formas e distinções grupais. Essas criam estruturas delimitadoras de

confinamentos sociais em espaços reservados às identidades sociais constituintes da

sociedade. Ele também indicaria as particularidades dos indivíduos aglutinados em searas,

e, nesse sentido, o espaço público da viagem de ônibus no trânsito urbano é terreno fértil

155 Lukács, 1993: 204, apud: Simmel, 1993. 156 Lukács, op. cit.: 202. 157 Moraes Filho, 1983: 20. 158 Simmel, op. cit.: 126/127.

122

desses jogos de animosidades, nos pequenos conflitos estruturantes dos modos de

convivências sociais lá encontrados.

Há uma “matriz formal de tensões” estabelecidas nos códigos sociais existentes no

interior das próprias relações sociais. Há uma matriz estabelecida e propiciada pelas

atitudes de “oposição”, “aversão”, “sentimentos de mútua estranheza”, “repulsa”, “ódio”,

“lutas sociais”, e acrescentaríamos até a guerra, como exemplos de atitudes substantivas à

atual vida social. Essas são referências típicas nas atitudes conflituosas: “Não é só um meio

de preservar a relação, mas uma das funções concretas que verdadeiramente a

constituem”.159

Outra questão polêmica na literatura simmeliana é o tratamento dado aos

componentes associados ou atribuídos ao campo psicológico. Simmel exclui a visão

corporativista, geralmente conduzida por um tratamento dado a essa questão. Ele garimpa

os nexos entrelaçados entre os terrenos sociológico, antropológico e psicológico. Mas

alerta que se deve entender que reduzir essa dimensão a um ou outro terreno de

conhecimento não é um procedimento recomendado à analise de um fato social. Haveria

uma correlação entre os microconflitos verificados cotidianamente com os passageiros ao

utilizarem ônibus e, nesse ínterim, quando do movimento de translados, reproduções nas

condições de convivência lá estabelecidas nas formas de sociabilidade no interior do

ônibus urbano; portanto, a homogeneidade e a heterogeneidade são mantidas através da

existência dos jogos sociais processados entre o singular e o plural. Segundo Simmel:

Dessa forma, prevalece a união enquanto elemento estruturante da

sociedade, uma pré-condição às reciprocidades positivas, as quais em interação ou

acopladas aos elementos aglutinadores dariam gênese às formas sociais. Florescem

empreendimentos ao se adotar uma estratégia de união, preservando as diferenças e as

semelhanças – critério garantidor dos processos sociais como um enriquecimento da vida

social.

Os processos de dentro do indivíduo são, afinal, do mesmo tipo. (...) de oscilações variadas e contraditórias, que designá-los por qualquer de nossos conceitos psicológicos é sempre imperfeito e realmente enganoso, pois os momentos da vida individual, também, nunca se ligam por um elo somente – este é o quadro que o pensamento analítico constrói da unidade da alma, que lhe é inacessível160

.

159 Simmel, op. cit.: 126/127. 160 Simmel, 1993, op. cit.: 129.

123

A contribuição analítica de Simmel possibilitou visualizar e identificar elementos

relevantes das conexões entre os indivíduos e a sua dissolução nesse quadro social

reproduzido no interior do ônibus. O individual é arquétipo da estrutura social, ao assentar-

se nessas diversas órbitas. Para Ernst Bloch, Simmel era um intelectual “inteligente e

sensível161

Ao considerar os fenômenos sociológicos, encontramos assim uma hierarquia de relações. (...) Os sentimentos de valor com que acompanhamos as ações das vontades individuais classificam-se em certas séries

. Quando se destacam essas qualidades, faz-se em razão de ser sua análise

receptáculo dos pequenos indícios classificatórios sobre os fenômenos sociais médios

abordados. Isto pode ser deduzido da estipulação dos matizes existentes em cada conflito,

os quais perpassariam pelos indicadores sociais já apontados pelos assaltos, tensões,

acidentes e demais inconvenientes, descritos anteriormente:

162

Os diversos arranjos sociais surgem enquanto configurações e produtos sociais, em

razão das múltiplas formas estabelecidas nas interações e nas relações potencializadas nos

diversos tipos de embates estabelecidos entre os jogos combinatórios formados a partir da

sociação. “Os sentimentos de valor com que acompanhamos as ações das vontades

individuais classificam-se em certas séries. (...) A mistura de relações harmoniosas e

hostis, todavia, apresenta um caso no qual as séries sociológicas e éticas coincidem”.

.

163

Outro caso limítrofe parece ser a luta engendrada exclusivamente pelo prazer de lutar

Esse aspecto sugeriu ser psicológica a razão do tipo de conflito de natureza subjetiva: o

egotismo dentro do contexto social. Esse indício é de grande valia para os estudos do

conflito nos dias modernos. Não mais se trataria da “luta” no seu sentido restrito de labuta

humana, mas rico de elementos sociais à primeira vista psicológicos, mas que a sociologia

teria passado para outro lado, desprezando a dimensão como uma regularidade social, e

deixando de encarar essa dimensão como algo substantivo às relações e interações sociais.

164

O desejo de possuir ou subjugar, ou mesmo de aniquilar o inimigo, pode ser satisfeito por meio de outras combinações e eventos além da luta. Quando o conflito é simplesmente um meio (...). Mas quando o conflito é determinado exclusivamente por sentimentos subjetivos (...). Tal luta pela luta parece ser sugerida por um certo instinto de hostilidade que às vezes se recomenda à observação psicológica

.

165

161 Transcrição de Heinz Maus, IN: Moraes Filho, 1983, op. cit.: 13.

.

162 Simmel, 1993, op. cit.: 132. 163 Simmel, Ibid. 164 Simmel, 1993, op. cit.: 133. 165 Simmel, 1993, op. cit.: 134.

124

Comunga-se com a necessária importância conceitual de conflito para a compreensão

dos dias de hoje. A necessária sistematização retrataria alguns momentos dentre os

microconflitos verificados; por exemplo, um que já foi considerado no interior do ônibus:

entre trabalhadores do setor de transportes e os passageiros, e esses últimos também

poderiam ser identificados como trabalhadores. Daí um fato sui generis, trabalhadores em

confronto com outros trabalhadores. É um componente constante e parte da própria

dinâmica das relações sociais lá vividas. Portanto, o conflito é a epígrafe da sociedade

atual, e a sua grande importância se deve à intensidade quantitativa e qualitativa; é uma

chave para a compreensão dos nossos processos sociais.

Dentro da vida social encontramos mecanismos sociais de proteção,

individualizados nas relações adotadas nos dias atuais. Vejamos a ponderação de Simmel

sobre o sentimento de aversão:

Sem tal aversão, não poderíamos imaginar que forma poderia ter a vida urbana moderna, que coloca cada pessoa em contato com inumeráveis outros todos os dias. Toda a organização interna da interação urbana se baseia numa hierarquia extremamente complexa de simpatias, indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao mais duradouro. (grifo do autor)166

.

A construção dos alicerces sociais condicionaria esses elementos de manutenção do

socialmente construído nas atitudes relacionais. Esses mecanismos são corriqueiros e

proporcionariam a existência do atual modo de vida, por se constituírem em elementos

balizadores nas condutas sociais do dia-a-dia. No seu artigo “A metrópole e a vida mental”,

aquilo que em aparência é algo extremamente isolante e segmentador é, na realidade, o

padrão adotado para as convivências. Nessa perspectiva, os nossos atuais alicerces sociais

estariam assentados em marcos e códigos de posturas não relacionais. Em virtude de

apontar uma série de pistas rumo à compreensão das formas e dos conteúdos dos conflitos

na sociedade – uma interlocução descritiva entre conteúdo, o passageiro, e forma, uma

estrutura acolhedora, por exemplo, quando se realizam os translados, ou se destacam certos

aspectos ordinários dentro da ordem social cotidiana –, a questão do conflito irá

desmistificar e, ao mesmo tempo, apontar uma regularidade nas convivências humanas.

Nesse sentido, as contribuições conceituais poderiam ser utilizadas como campo reflexivo

para as análises e estudos antropológicos e sociológicos em diversas sociedades. Enfim,

partilha-se com a perspectiva desmistificadora das dimensões pertinentes aos conflitos

166 Simmel, op. cit.:128.

125

sociais. Sendo assim, o conflito é uma dimensão do cotidiano e, nas palavras de Ralf

Dahrendorf (1992), teria a seguinte avaliação: “Os conflitos daí resultantes são sutis em

alguns lugares e ostensivos em outros, mas são quase que onipresentes167

.

167 Dahrendorf, 1992: 164.

126

4. CONCLUSÃO

A investigação a respeito dos passageiros de ônibus permitiu abrir pistas à

compreensão de aspectos do contexto social da mobilidade urbana, ao destacar peculiares

formas cotidianas de sociabilidades; maneiras expressas nas efêmeras situações solidárias,

licenciosas e conflituosas. Essa seleção pinçou traços qualificadores desse meio

instrumental, que viabiliza os processos de desterritorialização nas urbes, e agrupamentos

humanos sui generis construídos e encontrados nesse espaço público como modo coletivo

de circular por uma cidade.

O método clássico de observação social aplicado à linha de ônibus permitiu

perscrutar o espaço interior dessa realidade moderna. Assim, possibilitou uma descrição

das principais configurações, destacadas dentre os elementos e as reações sociais

plastificadas nesse espaço público. O olhar sociológico visualizou nesse espaço os

microquadros sociais e permitiu desnaturalizar situações e dimensões ordinárias dos

passageiros de ônibus urbano, realçando-as enquanto interveniências dos aspectos técnicos

sobre as microformações sociais gestadas nessa pequena-realidade habitual e rotineira,

enfrentada pelos passageiros.

Os dados, as estatísticas e as informações revelaram a ocorrência de fatos sociais

intervenientes e crescentes nessa ordem horripilante, com grandes impactos nefastos e

promotores de ondas de insegurança social, os quais poderiam vir a se constituir em

elementos solapadores dos laços de solidariedades positivas nessa realidade. Também se

detectaram alguns pontos de vista históricos desqualificadores sobre esse equipamento de

natureza coletiva.

As expressões de sociabilidade constatadas foram qualificadas pelos seguintes

traços sociais. As sociabilidades solidárias visariam a recompor situações de precariedade

social. As demais sociabilidades são matizes de contradições sociais diluídas nessas

convivências fortuitas, as quais oscilariam em razão das formas de administração desses

equipamentos necessários aos movimentos da população. Os quadros de inconsistências

sociais são referências, momentos regulares da sociabilidade da população. A

infraestrutura material do STC molda influxos mecanizados interferentes sobre as

sociabilidades dos passageiros e, assim, essa materialização da mecanização afetará a vida

cotidiana. A organização técnica desse sistema precisaria ser vista como um produto

ideológico a interferir sobre as condições de convivência social. No contexto interno dos

veículos configuram-se práticas sociais derivadas desses mesmos condicionantes, os quais

127

exigem novos alicerces epistemológicos a serem aprofundados pelas Ciências Sociais. As

formas de semelhanças e dessemelhanças nesse meio de deslocamentos interferem

sobremaneira nessas sociabilidades rotineiras. As microexpressões individuais são

elementos e momentos etnológicos materializados nesses espaços públicos urbanos e, ao

mesmo tempo, podem ser detectadas como ingredientes efervescentes e galvanizadores de

movimentos reivindicatórios no Brasil. As posturas e os traços sociais encontrados nesse

espaço público são marcas de sociabilidades cotidianas eminentemente conflituosas. E esse

momento social constituído por uma viagem de ônibus refletirá a situação social como um

todo. As interações sociais nesse microcosmo recebem de forma diluída projeções

macrossociais da sociedade moderna. Dessa maneira, os seus momentos constituem-se

num eco do socialmente estabelecido, como demonstrado através das diversas formas de

sociabilidade, expressas e detectadas, no interior desses coletivos. O horror é a constatação

óbvia, a de que estejam os espaços de convivência social sob a forma coletiva,

predominantemente, formados por quadros de dilapidação e de violência social.

Concluindo, eu diria ter estabelecido uma relação entre os conteúdos e as formas

sociais a partir desse microespaço, no qual se processam maneiras fortuitas desqualificadas

em um serviço e em um espaço de natureza pública, necessários às movimentações no

tecido urbano. Os conteúdos microscópicos gestados no interior do coletivo produzem

desgastantes situações aos seus cidadãos, daí uma pista à compreensão de que estes

almejam soluções individuais para os seus deslocamentos no dia-a-dia, como um

afastamento a essa situação coletiva que é abominável!

128

5. REFERÊNCIAS LIVROS E ARTIGOS

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