22
Página | 1 SOBRE AS EXPLICAÇÕES ATEÍSTAS PARA A ORIGEM E A PROPAGAÇÃO DA CRENÇA EM DEUS Eliel Vieira (www.elielvieira.org) Como forem os pensamentos e a disposições do homem, assim será o seu Deus; quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais, será o valor de seu Deus. Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento. (Ludwig Feuerbach) Uma vez que Deus não existe (principal conclusão dos ateus) uma pergunta importante surge para que eles nos forneçam uma resposta: como e porque se originou o fenômeno que conhecemos como religiosidade? Várias respostas a esta pergunta foram esboçadas, especialmente nos dois últimos séculos, entretanto, como mostrarei neste capítulo, aparentemente nada de definitivo e convincente foi apresentado por parte dos ateus. As tentativas ateístas de explicar a suposta origem da religiosidade humana, pelo contrário – afirmam alguns estudiosos cristãos – têm apenas confirmado o que a Bíblia e os teólogos primitivos já diziam há muitos séculos. Em outras palavras, as explicações ateístas seriam assim nada além do que algumas explicações já dadas pelos cristãos e pela Bíblia – não seriam, portanto, neste sentido, nada que os cristãos deveriam negar. Vou dividir este texto em duas etapas: primeiramente, vou expor e analisar o pensamento de Ludwig Feuerbach (cujo ateísmo é questionável), Karl Marx e Sigmund Freud, pelo fato de haver uma similaridade muito grande nas respostas destes três pensadores. A seguir, vou expor e analisar as respostas dadas por Richard Dawkins para a origem do fenômeno religioso universal, que são totalmente distintas das respostas propostas por Feuerbach, Freud e Marx. Por fim, vou levantar algumas questões relativas às origens do ateísmo na mente das pessoas. O fato de o ateísmo surgir quase sempre na adolescência pode ser explicado psicologicamente?

Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 1

SOBRE AS EXPLICAÇÕES ATEÍSTAS

PARA A ORIGEM E A PROPAGAÇÃO

DA CRENÇA EM DEUS

Eliel Vieira (www.elielvieira.org)

Como forem os pensamentos e a disposições do homem, assim será o seu Deus;

quanto valor tiver um homem, exatamente isto e não mais, será o valor de seu Deus.

Consciência de Deus é autoconsciência, conhecimento de Deus é autoconhecimento.

(Ludwig Feuerbach)

Uma vez que Deus não existe (principal conclusão dos ateus) uma pergunta importante surge

para que eles nos forneçam uma resposta: como e porque se originou o fenômeno que conhecemos

como religiosidade?

Várias respostas a esta pergunta foram esboçadas, especialmente nos dois últimos séculos,

entretanto, como mostrarei neste capítulo, aparentemente nada de definitivo e convincente foi

apresentado por parte dos ateus. As tentativas ateístas de explicar a suposta origem da religiosidade

humana, pelo contrário – afirmam alguns estudiosos cristãos – têm apenas confirmado o que a Bíblia

e os teólogos primitivos já diziam há muitos séculos. Em outras palavras, as explicações ateístas

seriam assim nada além do que algumas explicações já dadas pelos cristãos e pela Bíblia – não

seriam, portanto, neste sentido, nada que os cristãos deveriam negar.

Vou dividir este texto em duas etapas: primeiramente, vou expor e analisar o pensamento de

Ludwig Feuerbach (cujo ateísmo é questionável), Karl Marx e Sigmund Freud, pelo fato de haver uma

similaridade muito grande nas respostas destes três pensadores. A seguir, vou expor e analisar as

respostas dadas por Richard Dawkins para a origem do fenômeno religioso universal, que são

totalmente distintas das respostas propostas por Feuerbach, Freud e Marx. Por fim, vou levantar

algumas questões relativas às origens do ateísmo na mente das pessoas. O fato de o ateísmo surgir

quase sempre na adolescência pode ser explicado psicologicamente?

Page 2: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 2

Ludwig Feuerbach: A Religião é uma Projeção das Necessidades Humanas

O filósofo alemão Ludwig Andreas Feuerbach (1804 – 1872) talvez tenha sido o primeiro

pensador a teorizar sobre as origens psicológicas da crença humana em Deus∗∗∗∗. Como eu disse no

parágrafo anterior, é questionável o fato de Feuerbach ter sido ateu uma vez que ele estudou

Teologia e também pelo fato dele próprio alegar ser um homem de fé1. Alguns escritores consultados

consideram Feuerbach um ateu (p. ex.: Alister McGrath), outros como um cristão (p. ex.: Armand

Nicholi Jr.). A verdade é que seus escritos tendem muito mais para o ateísmo do que para qualquer

espécie de visão teísta.

As idéias de Ludwig Feuerbach sobre a origem psicológica da religião influenciaram dois

grandes pensadores ateus que teorizaram sobre este assunto: Karl Marx e Sigmund Freud. Apesar

disto, a única relação que podemos estabelecer com certeza sobre Feuerbach e o ateísmo é que as

idéias deste filósofo alemão influenciaram muito os pensamentos ateístas sobre as origens da

religiosidade humana. O que vem a partir disto (como a hipótese de Feuerbach ter sido ateu) não

passa de pura especulação.

Antes de prosseguir é apropriado enfatizar que a já mencionada influência de Feuerbach nos

pensamentos ateístas quanto à origem da religiosidade foi muito grande. Em uma carta ao amigo

Silberstein, Sigmund Freud menciona esta influência: “Feuerbach é alguém que eu reverencio e

admiro acima de todos os outros filósofos”2.

É no seu livro chamado A Essência do Cristianismo (1841) que Feuerbach apresenta seu

pensamento acerca da origem da religiosidade do ser humano. A idéia central do livro é simples: os

seres humanos criam suas divindades e religiões a partir de suas aspirações, necessidades e medos.

A religião, portanto, de acordo com Feuerbach, é uma projeção das necessidades e desejos humanos

em um plano transcendente ilusório3.

Como Feuerbach chegou a esta concepção?

Ludwig Feuerbach abordou o fenômeno religioso na humanidade a partir do próprio homem.

Toda esta abordagem está presente no já mencionado livro A Essência do Cristianismo. O autor ∗ Alguns estudiosos argumentam que Xenófanes de Cólofon (570 a.C. – 475 a.C), filósofo grego pré-socrático, já havia

proposto que a religião era uma “criação” do ser humano de acordo com sua própria imagem. Em um dos fragmentos

mais conhecidos deste pensador, podemos ler: “Mas se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos ou se fossem

capazes como os homens de pintar obras com as mãos, os cavalos como os cavalos, os bois como os bois pintariam o

aspecto dos deuses, e fariam o corpo deles tal qual cada um deles o tem.” 1 NICHOLI JR, 2005. Ultimato. p. 27.

2 Ibidem.

3 MCGRATH, 1999. Loyola. p. 242.

Page 3: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 3

começa distinguindo o ser humano dos animais. O ser perfeito, dos seres imperfeitos. O homem é

perfeito, de acordo com Feuerbach, pois ele possui consciência, diferentemente dos animais4. Tudo

aquilo que distingue o ser humano dos animais – amor, razão e vontade – está relacionado à

consciência, sendo esta, portanto, a perfeição do ser humano. “A consciência”, diz Feuerbach, “é a

característica de um ser perfeito”5. É a partir de toda a perfeição de si mesmo que o ser humano

projeta Deus. Desta forma o Ser Absoluto, o Deus do homem, nada mais é do que uma projeção do

próprio homem. Deus é uma projeção da perfeição ideal do ser humano.

Uma pergunta importante surge aqui: Por que o ser humano projeta Deus?

Segundo Feuerbach, projetamos Deus a partir do anseio que temos em relação a um ser

sobrenatural capaz de satisfazer nossos desejos, suprir as nossas necessidades e trazer alento e

sentido a nossa existência. O homem, portanto, projeta Deus a partir de seus desejos e

necessidades. Todas as religiões são mundos de fantasias habitadas por pessoas que projetaram

Deus a partir de suas esperanças, planos, objetivos, desejos, medos e anseios. Apesar de seu livro se

chamar A Essência do Cristianismo, as conclusões de Feuerbach são relativas a todas as formas de

pensamento que envolvem a existência de um Ser divino absoluto.

Como bem percebeu Alister E. McGrath (1999, p. 242), o pensamento de Feuerbach é inverso

ao exposto na Bíblia. As Escrituras Sagradas nos dizem que Deus criou os seres humanos conforme a

sua imagem; já Feuerbach declara que nós humanos, em compensação, criamos Deus conforme a

nossa imagem.

A consciência da existência de Deus é, em síntese, a autoconsciência do ser humano; o

conhecimento de Deus é também o autoconhecimento do homem. Por intermédio de Deus é

possível conhecer o homem e, reciprocamente, por meio do ser humano é possível conhecer

Deus. Os dois são parte de uma mesma realidade6.

Temos, portanto, no pensamento de Ludwig Feuerbach, uma primeira resposta ateísta

(independente do fato dele ter sido ou não ateu) para o problema da existência da religiosidade no

ser humano. A figura de Deus (qualquer visão de Deus em qualquer religião) é projetada por nós

mesmos a partir de nossos anseios, desejos, necessidades, esperanças e medos. Nós criamos Deus,

não o contrário. Este é o pensamento de Feuerbach em sua forma mais simples e resumida.

4 <http://www.administradores.com.br/artigos/a_religiao_sob_um_outro_olhar_ludwig_feuerbach_e_a_essencia_do_cri

stianismo/24426/>. 5 FEUERBACH, 1841.

6 MCGRATH, 2005, Shedd. p. 606

Page 4: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 4

Uma das principais influências de Feuerbach é observada nos pensamentos de Karl Marx, que

também teorizou sobre a religiosidade do homem. Vamos analisar o pensamento de Marx a seguir.

Karl Marx: A Religião é o Ópio do Povo

Karl Heirich Marx (1818 – 1883) foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da

doutrina comunista moderna, que atuou como economista, filósofo, historiador, teórico político e

jornalista. Marx talvez tenha sido o fruto mais influente – para o bem ou para o mal, dependendo de

sua ideologia política e econômica – vindo da filosofia alemã. Em uma pesquisa da rádio BBC de

Londres, realizada em 2005, Karl Marx foi eleito o maior filósofo de todos os tempos7. A maior

contribuição – ou a pior, também dependendo de sua ideologia política e econômica – encontra-se

em sua crítica às sociedades capitalistas.

O pensamento do também filósofo alemão Hegel (1770 – 1831) influenciou muito as

concepções de Marx. Lenin disse, por exemplo, que é impossível entender Marx sem antes termos

estudado e compreendido o pensamento de Hegel8. Não é viável, contudo, expor o pensamento de

Hegel aqui neste ensaio pelo mesmo ser complexo e bem amplo, e por não estar ligado diretamente

à proposta do ensaio como um todo. Grosso modo, Hegel defendia a existência de uma Consciência

Humana Geral (ou Espírito do Mundo, ou Superalma ou Consciência Absoluta), comum – porém

distinta – a todos os indivíduos e manifesta na idéia de Deus. Para Hegel, toda a realidade humana

era ditada por esta Consciência Absoluta.

Após se familiarizar com as concepções materialistas de Feuerbach, Marx deixou de ser um

hegeliano de esquerda∗∗∗∗ para se tornar um crítico de Hegel. Marx eliminou o Espírito do Mundo

enquanto sujeito ou essência, porque passou a compreender que a origem da realidade social não

reside nas idéias, mas sim na ação concreta (material, portanto) dos homens, portanto, no trabalho

humano9. Para Marx, então, não existe nenhuma realidade além da que conhecemos como

“material”.

O contato com as idéias de Feuerbach influenciou também o pensamento de Marx no tocante

à religião. O fenômeno religioso, de acordo com Marx, não passa de um mero reflexo do mundo

7 <http://www.bbc.co.uk/radio4/history/inourtime/inourtime_20050714.shtml>.

8 LENIN, V. I. Obras escolhidas, 1972, volume 38, p. 180.

∗ Os de hegelianos esquerda, chamados jovens Hegelianos, interpretaram Hegel em um sentido revolucionário, o que os

levou a se aterem ao ateísmo na religião e ao socialismo na política. 9 Informações extraídas de <http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Marx>.

Page 5: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 5

material, uma decorrência das necessidades sociais e das expectativas do ser humano10, um fruto da

alienação.

O conceito de alienação é muito importante na filosofia de Marx. A melhor forma de

compreendermos a alienação religiosa de Marx é explicando o que o filósofo alemão entendia como

alienação do trabalho, a raiz de todas as alienações, segundo o filósofo. Entende-se por alienação o

processo em que as atividades do homem (especialmente as atividades produzidas em seu trabalho)

tornam-se estranhas ao próprio homem. O homem, que antes se identificava com o trabalho que

realizava para se sustentar, passou a ser alheio a todo o processo de produção a partir da

industrialização no capitalismo. A divisão do trabalho e a existência da propriedade privada eram os

principais fatores responsáveis pela alienação e pelos conflitos na ordem econômica e social11.

A alienação do trabalho consiste no fato de que o trabalho é externo ao operário, isto é, não

pertence ao seu ser. Nisto, o trabalho ganha um caráter de escravidão e massificação; o

operário não se afirma no seu trabalho, não se sente satisfeito, mas se nega e sente-se fora de

si; se está trabalhando não se sente em sua própria casa. O seu trabalho não é voluntário, é

trabalho forçado. No trabalho, o homem deveria trabalhar e se trabalhar a si mesmo,

aperfeiçoando suas capacidade e habilidades, e assim, trabalhar sua própria natureza. Esta

deveria ser a verdadeira função do trabalho. Este caráter do trabalho foi se perdendo por que

ele se tornou o único meio de subsistência para o trabalhador. E o trabalho se tornando meio

de subsistência, o homem está se reduzindo a um ser que somente luta para sobreviver, troca

sua vida, sua força de trabalho – única propriedade sua – pela sobrevivência.

A crença em Deus, segundo Marx, é um fruto desta alienação econômica e social que é

comum aos trabalhadores no sistema capitalista. “A religião é um consolo que torna as pessoas

capazes de suportar sua alienação econômica”12. Em uma de suas frases mais famosas, Karl Marx

conclui que “a religião é o ópio do povo”.

Pois bem, Deus não existe. Mas de onde vem a crença na existência de Deus, então?

Deus, Marx concorda com Feuerbach, é uma projeção feita por nós mesmos a partir de nossas

necessidades e anseios em um plano transcendente. Nas palavras de Marx, “a religião nada mais é

do que a autoconsciência e a auto-estima de pessoas que ainda não encontraram a si mesmas ou

que já estão completamente perdidas de novo”. O fenômeno religioso existe, portanto, por causa de

um conjunto de fatores econômicos e sociais existentes na sociedade capitalista. São as condições

econômicas injustas que criam a crença em Deus, como um alívio, um ópio às massas. Uma vez

10

MCGRATH, 2005. Shedd. p. 607. 11

Ibidem, p. 607. 12

MCGRATH, 2005. Shedd. p.607.

Page 6: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 6

eliminada a alienação do trabalho, o fenômeno religioso deixaria de existir de acordo com o filósofo

alemão.

Em suma, esta é a explicação de Karl Marx para a origem da religiosidade humana.

Antes de finalizar a exposição das idéias de Marx concernentes ao fenômeno religioso, é

importante destacar que Marx não produziu seu pensamento a partir da necessidade de responder a

questão da origem da religião. A resposta de Marx surgiu como consequência da leitura que ele fez

da alienação econômica da sociedade. O debate sobre a existência ou inexistência de Deus e suas

implicações, ao que me parece, era indiferente ao pensador alemão. Ainda assim, achei proveitoso

citar seu pensamento aqui.

Sigmund Freud: A Religião é a Neurose Obsessiva Universal

Sigmund Schlomo Freud (1856 – 1939) é apontado pelo vocabulário popular como aquele que

tudo explica. Sendo ateu em todos os sentidos e em todas as questões, Freud foi outro pensador que

se esforçou na tarefa de trazer uma explicação para a origem do fenômeno religioso na humanidade.

É provável que Freud tenha sido o ateu que mais “sucesso” alcançou em sua tentativa de trazer uma

explicação para a existência da religiosidade no ser humano. Freud chega a ser respeitado (e em

alguns casos reverenciado) entre escritores cristãos – como Armand Nicholi Jr., Philip Quinn e Carlos

Dominguez Morano – que aceitam muitas das conclusões do pai da psicanálise. Um bom número de

livros já foi lançado na busca de traçar paralelos entre a psicanálise e a fé cristã.

Curiosamente, um dos melhores amigos de Sigmund Freud era um teólogo cristão fervoroso

chamado Oskar Pfister, a quem Freud certa vez escreveu por carta (30/12/1909): “Caro homem de

Deus, uma carta sua faz parte do mais belo que pode recepcionar a gente no regresso para casa”13.

Apesar de ter grande apresso por Pfister e até por alguns personagens bíblicos como o apóstolo

Paulo14, Freud nunca escondeu que era completamente alheio à idéia de que exista um ser inteligente

por trás do universo. A idéia de um “super-homem idealizado dos céus”, diz Freud, é “tão

patentemente infantil e tão estranha à realidade, que... é doloroso imaginar que a grande maioria dos

mortais jamais irá transcender essa visão da vida”15. Em uma carta enviada a Charles Singer cerca de

13

FREUD, 1998. Ultimato. p. 41. 14

Sobre o Apóstolo Paulo, Freud diz que ele é um personagem que “permanece incomparável em toda a história”. In:

NICHOLI JR, op.cit., p. 63 15

In: NICHOLI JR, op.cit., p. 44.

Page 7: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 7

um ano antes de sua morte, Freud disse que “jamais em minha vida particular ou em meus escritos

eu escondi o fato de que sou um descrente de ‘cabo a rabo’”16.

Qual é a explicação de Freud, então, para a origem da crença em Deus?

De acordo com Alister E. McGrath (1999, p. 251), o pensamento de Freud a respeito da

religião deve ser considerado em dois estágios: na busca, primeiramente, de suas origens ao longo

da história humana – a razão do fenômeno religioso ser tão comum em todos os povos e culturas do

mundo – e, depois, de suas origens no indivíduo – como e porque cada indivíduo projeta a figura de

Deus.

É no livro Totem e Tabu que Freud desenvolve seu pensamento de como a espécie humana

começou a acreditar em Deus. Sigmund Freud idealizou um drama primordial no qual existia um pai

ciumento e dono de todas as mulheres de seu clã. Seus filhos, procurando uma forma de se

relacionar com as mulheres, assassinaram e em seguida devoraram seu pai – a única forma que eles

tiveram de ter acesso às mulheres. Desde então os filhos sentem-se perseguidos pela culpa de ter

matado e devorado o próprio pai. É aí que surge o sentimento religioso comum à todas as pessoas e

povos do mundo.

O assassinato do pai, porém, tornou-se um fracasso: os filhos observaram que ninguém poderia

tomar o lugar do pai, sob pena de que o crime se perpetuasse indefinidamente. O lugar do pai

deveria ficar vazio. E foi exatamente neste hiato deixado pelo pai que a religião encontrou sua

semente originária.17

Foi a partir deste estranho evento pré-histórico que a religião surgiu no inconsciente do ser

humano em geral, de acordo com Freud. Os filhos, buscando encontrar uma forma de se redimir do

assassinato do pai, criaram rituais para expiar seus pecados. É por essa razão que o fator motivador

da religião é sempre a culpa. O Deus que o ser humano adora, diz Freud, já viveu aqui na Terra na

forma de carne mortal.

Observando os ritos religiosos das pessoas de fé, Freud percebeu que eles possuíam uma

semelhança muito grande com os atos obsessivos de seus pacientes neuróticos. Foi a partir desta

observação que Freud concluiu que a religião era basicamente uma forma distorcida de neurose

obsessiva18. A religião é a neurose obsessiva universal da humanidade.

16

Ibidem, p. 46. 17

DOMINGUEZ MORANO, 2003. Loyola. p. 39. 18

MCGRATH, 1999, Loyola. p. 251.

Page 8: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 8

De acordo com Alister McGrath (op. cit., p. 252) esta compreensão de Freud sobre a origem

social da religião nunca foi levada muito a sério. A verdadeira contribuição de Freud para a explicação

da origem da religiosidade está na explicação que ele deu para a maneira como nós criamos,

individualmente, a concepção de Deus para nós mesmos.

O pensamento de Freud aqui possui grande influência da idéia de Feuerbach da crença em

Deus como projeção de nossas necessidades e desejos. O próprio Freud chegou a dizer

modestamente em O Futuro de uma Ilusão que nada em seu pensamento já não havia sido proferido

antes de forma bem mais completa e contundente por outros pensadores19. Para Armand Nicholi Jr.

(2002, p. 51) o êxito particular de Freud foi conseguir identificar de forma específica quais são estes

desejos e necessidades que nos fazem projetar Deus.

Para Freud a formação da crença em Deus em uma pessoa está intimamente relacionada com

os eventos que esta pessoa viveu enquanto ainda era criança. O principal destes eventos é o

sentimento de impotência e desamparo que a criança vive em seus primeiros dias de vida,

sentimento este que, quando retomado na fase consciente do indivíduo, projeta a imagem de Deus.

Devo boa parte exposição do pensamento freudiano abaixo ao artigo Freud e a religião: a neurose

obsessiva universal da humanidade20, escrito pelo meu amigo (apaixonado por psicanálise) Glauber

Ataíde.

Ao nascer, observa Freud, toda criança se vê desamparada em um lugar totalmente distinto

do conforto aconchegante que ela tinha no útero da mãe. Barulho ao invés de silêncio, bagunça ao

invés de tranquilidade, frio ao invés de calor e luz forte ao invés de escurinho. Ao nascer, a criança se

sente totalmente impotente diante do universo que a rodeia, com medo, até que surge então a figura

da mãe. A mãe alimenta a criança, a agasalha, cuida dela e a protege. A criança nasce totalmente

impotente e desamparada, mas vê na mãe alguém que lhe ama e lhe protege.

Posteriormente surge na vida da criança a figura do pai, que toma da mãe a responsabilidade

de protetor da criança. A relação da criança com o pai é pautada, porém, por um sentimento

ambivalente particular: ao mesmo tempo em que ama e admira o pai por sua proteção, a criança

teme o pai pelo perigo que ele representa a ela – talvez por causa do rompimento da relação

protetora com a mãe, causado pelo pai. A criança, portanto, ao mesmo tempo em que ama, tem

medo de seu pai.

A criança então cresce. O cuidado protetor do pai e da mãe progressivamente vai dando lugar

à liberdade e independência do indivíduo. Porém, chega o momento em que este indivíduo se vê 19

NICHOLI JR, op.cit., p. 51. 20

<http://glauberataide.blogspot.com/2007/10/freud-e-religio-neurose-obsessiva.html>.

Page 9: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 9

impotente em relação a vários poderes superiores no mundo (doenças, morte, catástrofes naturais,

etc.) e ele então descobre que nunca deixou de ser uma criança desamparada e impotente em um

mundo cruel. Sentindo-se novamente como criança impotente, o indivíduo começa a procurar um pai

que lhe proteja dos perigos do mundo. O indivíduo então projeta um pai superior, Deus, a partir

destas necessidades.

De acordo com Freud, portanto, a crença em Deus é uma projeção feita pelo ser humano a

partir do desamparo que ele sente em relação aos problemas enfrentados no mundo, como forma de

suprir a necessidade de alguém que lhe proteja. Como na ocasião de sua infância, porém, o indivíduo

nutrirá por Deus o mesmo sentimento de admiração e de medo que ele nutriu por seu pai. Está é a

explicação de Freud para o fato das pessoas religiosas amarem e ao mesmo tempo temerem seu

Deus. Deus é aquele que te dá salvação eterna, mas também é aquele que pode te jogar no fogo do

inferno. As pessoas amam a Deus pela proteção que Ele trás, mas ao mesmo tempo vêm Deus como

um pai exaltado que pode lhes punir a cada falha cometida. Para Freud,

Os indícios dessa ambivalência na atitude em relação ao pai são profundamente impressos em

toda a religião... Quando o indivíduo em desenvolvimento acha que foi destinado a permanecer

uma criança para sempre, que ele jamais poderá viver desprotegido em relação a poderes

estranhos superiores, ele atribui a tais poderes as características pertencentes à figura do pai21.

Deus, portanto, nada mais é do a imagem que tivemos de nosso pai na infância. Concluindo a

análise de Freud sobre a origem da religião, Armand Nicholi Jr (2002, p. 54) lembra que, de acordo

com o pensamento de Freud, não somos nós que criamos Deus conforme nossa imagem, mas nós

que criamos Deus conforme a imagem que tínhamos de nosso pai durante o período da infância.

Análise: Deus é Apenas uma Projeção de Nossa Mente?

Decidi analisar os pensamentos de Feuerbach, Marx e Freud em um só tópico, pois eles são

muito semelhantes entre si e cansaria ao leitor ler a mesma análise praticamente três vezes,

mudando apenas alguns poucos detalhes.

A verdade é que, como já foi dito, as respostas para a origem da religião de Marx e Freud são

baseadas nas concepções apresentadas anteriormente por Ludwig Feuerbach. As respostas dadas por

estes três pensadores possuem a similaridade de apresentar Deus como uma projeção feita por nós,

a partir de nossas necessidades e anseios. Criamos Deus para preencher um vazio que temos em

21

In: NICHOLI JR, op.cit., p.52.

Page 10: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 10

nós. Marx, que enfocava sua filosofia nas questões econômicas e sociais, disse que este vazio surge a

partir da alienação do trabalho. Já Freud diz que este vazio surge da necessidade que temos de ter

alguém que nos proteja depois que descobrimos que somos, e seremos, eternas crianças

desamparadas e impotentes neste mundo.

A crença em Deus é, em suma, uma satisfação dos desejos que temos. Desejamos alguém

que traga conforto à nossa existência (Karl Marx) e que nos proteja dos perigos do mundo (Sigmund

Freud), então projetamos Deus.

Tenho três considerações a serem feitas sobre esta abordagem de o fenômeno religioso

originar-se a partir dos desejos e necessidades de uma pessoa. A primeira é que, se esta abordagem

estiver totalmente correta, a crença em Deus desapareceria na mesma proporção em que a

sociedade se tornasse mais consciente. Alister McGrath resume o pensamento de Marx da seguinte

forma:

Em síntese, a religião é fruto da alienação econômica e social. Ela brota dessa alienação e, ao

mesmo tempo, a encoraja, por meio de uma espécie de embriaguez espiritual, que torna as

massas incapazes de reconhecer sua própria condição e de tomar alguma atitude quanto a isso.

A religião é um consolo que torna as pessoas capazes de suportar sua alienação econômica. Se

essa alienação não existisse, a religião seria desnecessária. [...] Assim, a religião é resultado de

um determinado conjunto de circunstâncias econômicas e sociais. Uma vez alteradas essas

circunstâncias, de forma a eliminar a alienação econômica, a religião deixaria de existir, pois

não teria mais qualquer função social22.

Em seu artigo Religião e Alienação – com Marx contra Marx, Osvaldo Luiz Ribeiro levanta a

mesma questão:

[...] a religião é inexoravelmente, alienação? Caso o sujeito religioso esclareça-se de sua

condição antropológica, dissolve-se necessariamente a “sua” religião. Se sim, Marx estava

certo. Basta que a humanidade, ou melhor dito, que os homens e as mulheres concretos do

mundo, sejam “educados” dentro dos princípios das Humanidades, e acaba a religião23.

A conseqüência imediata da aceitação de que a religião é uma alienação (trato aqui

especificamente da abordagem de Marx), ou algo que projetamos a partir da alienação econômica

que vivemos é que, uma vez que nos desvencilhemos desta alienação do trabalho, a crença em Deus

desapareceria naturalmente. Ou, como levantou Osvaldo Luiz Ribeiro na citação acima, se o indivíduo

se conscientizar de sua situação antropológica neste mundo, sua religiosidade necessariamente

22

MCGRATH, 2005, Shedd. p. 607-608. 23

<http://www.ouviroevento.pro.br/teologicofilosoficos/religiao_e_alienacao.htm>.

Page 11: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 11

deveria se dissolver. Se esta abordagem estiver totalmente correta, segue-se, é impossível existir um

cristão consciente de sua situação antropológica ou que esteja desvencilhado de uma alienação

econômica, já que a crença em Deus é fruto de uma alienação econômica. Um único exemplo

contrário bastaria para mostrar que a abordagem de Marx não é totalmente verdadeira.

Temos, todavia, incontáveis casos que apontam para a direção oposta. É provável que você

mesmo conheça pessoas que continuaram acreditando em Deus a despeito de sua situação

econômica ter melhorado ou de sua capacidade intelectual ter crescido. Quantos donos do próprio

negócio não são pessoas fervorosas em sua fé? Quantas pessoas que vivem no interior (longe do

mundo do capital) e que a despeito disto têm crença em Deus? Quantas pessoas não descobrem

Deus enquanto estão na universidade? Quantas pessoas brilhantes não acreditam em Deus? Um

exemplo interessante que novamente muito citado é o do filósofo Antony Flew que, após defender o

ateísmo por mais de 50 anos, veio a assumir publicamente que passara a acreditar em Deus em

2004, aos 81 anos de idade. Flew, que chegou a assinar o Manifesto Humanista III, escreveu um livro

chamado Deus Existe24 contando sua experiência de como rejeitou os pontos do ateísmo e passou a

acreditar em Deus. Vários outros exemplos semelhantes são conhecidos por nós, como Chesterton, C.

S. Lewis, Alister E. McGrath, Lee Strobel e Francis Collins. Todos passaram do ateísmo para a fé após

um exame da existência através de um prisma diferente daquele que usavam enquanto ateus.

A primeira consideração que tenho a fazer, portanto, é que as pessoas, ao que parece, não

abandonam a crença em Deus após se desvencilharem das alienações econômicas ou após

aumentarem seu conhecimento. Devem existir, obviamente, muitas pessoas que abandonaram sua

visão teísta de mundo após encontrar um trabalho com o qual se identificaram mais ou após se

familiarizarem com estudos científicos, psicológicos ou sociológicos, porém, isto não representa uma

regra geral, mas casos particulares. A crença em Deus, ao que parece, é independente dos fatores

econômicos, sociais ou intelectuais de uma sociedade, apesar, vale deixar aqui minha reserva, destes

fatores representarem alguma influencia sobre a visão de mundo que as pessoas possuem. (Países

mais ricos geralmente têm menos crença em Deus.) A fé em Deus é influenciada por alguns estes

fatores, mas, não depende da existência ou inexistência destes fatores para existir.

Tomei o cuidado de dizer há alguns parágrafos atrás que um único exemplo contrário à

abordagem de Marx sobre a origem do fenômeno religioso na sociedade serviria para mostrar que ela

não é totalmente verdadeira. Perceba que eu jamais disse que um exemplo torna a abordagem de

Marx falsa ou totalmente errada. Eu não deprecio ou condeno toda a obra de Karl Marx apenas

porque algo não parece ser verdadeiro, diferentemente dos ateus que dizem, por exemplo, que a fé é

24

Lançado no Brasil pela Editora Ediouro, 2008.

Page 12: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 12

sempre prejudicial à sociedade baseando-se no fato de que algumas pessoas usam a fé para realizar

atrocidades. Não, este tipo de abordagem não é correta. Muito do que Marx e Freud disseram parece

ser lógico, verdadeiro e observável. O fato de eu não concordar com todas suas conclusões não

desmerece toda a obra destes pensadores. Que isto fique bem claro antes de prosseguirmos.

A segunda consideração que tenho a fazer sobre esta abordagem de o fenômeno religioso

originar-se a partir dos desejos de uma pessoa é que ela tem pouco a dizer – se é que diz alguma

coisa – sobre a existência de Deus em si. No já mencionado artigo Freud e a religião: a neurose

obsessiva universal da humanidade, Glauber Ataíde expressa este ponto da seguinte maneira:

Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que a origem "psicológica" da religião não diz nada

sobre a existência (ou não existência) de Deus. Não é muito incomum encontrar pessoas

citando essa teoria de Freud para "provar" ou "demonstrar" que Deus não existe, o que é um

grosseiro erro de lógica. [...] a teoria exposta por Freud pode ser o mecanismo do qual Deus

nos dotou para que pudéssemos reconhecer a Sua existência e buscar com Ele um

relacionamento, e deixa o campo aberto para que futuras pesquisas sejam realizadas em cima

dessa hipótese. No geral, podemos ver essa teoria de Freud, se verdadeira, da seguinte

perspectiva: se Deus não existe, então a teoria de Freud é uma explicação muito plausível de

como se originou a crença religiosa e a idéia de Deus. Por outro lado, se Deus existe, esta

teoria pode esclarecer o mecanismo do qual Ele nos dotou para pudéssemos reconhecer a sua

existência e sentir a necessidade de estabelecer com Ele um relacionamento.25

Deus pode muito bem ter permitido que este mecanismo identificado por Freud se

desenvolvesse no ser humano afim de que o ser humano partilhasse de um anseio de busca por Ele.

Por este mecanismo, o homem sempre estará em busca de seu Criador, pois sem Ele, o homem

sempre se sentirá desprotegido. Em seu livro Confissões, Santo Agostinho diz a Deus que:

Tu o incitas [o homem] para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está

nosso coração enquanto não repousa em ti26.

A idéia de que os seres humanos naturalmente desejam se relacionar com Deus está impressa

também na Bíblia Sagrada. Um dos salmistas bíblicos certa vez expressou que “Como a corça anseia

por águas correntes, a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus

vivo”27.

A hipótese de Deus existir não se torna menos provável apenas porque a crença em Deus

satisfaz alguns desejos e necessidades específicos de quem crê nEle. Muito menos ela é menos 25

<http://glauberataide.blogspot.com/2007/10/freud-e-religio-neurose-obsessiva.html>. 26

AGOSTINHO, 1984. Paulus. p. 15. 27

Salmo 42:1-2.

Page 13: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 13

provável pelo fato das pessoas desejarem Deus. O fato de eu ter desejado ver este ensaio finalizado

não o torna menos real do que ele é. O lógico alemão Eduard Von Hartmann chamou atenção para

este ponto em The History of Logic [A História da Lógica] em uma crítica às conclusões de Feuerbach

– que podemos muito bem estender às conclusões de Marx e Freud uma vez que as respostas dos

três possuem a mesma similaridade:

É perfeitamente verdadeiro que nada existe meramente porque desejamos sua existência, mas

não é verdade que algo não possa existir simplesmente porque desejamos sua existência.

Contudo, a crítica de Feuerbach contra a religião e a prova de seu ateísmo residem nesse

simples argumento – uma falácia lógica28.

C. S. Lewis foi além. Ele primeiramente identifica este desejo humano que não pode ser

preenchido por nada neste mundo – a quem ele denomina Joy. Joy é uma possível tradução para o

inglês do termo alemão Sehnsucht – algo como “desejo”, em português. Lewis, porém, argumenta

que não existem desejos no ser humano que não possam ser satisfeitos. O desejo sempre é como

uma saudade daquilo que já se teve. Para C. S. Lewis:

As criaturas não nascem com desejos que não podem ser satisfeitos. Um bebê sente fome:

bem, existe o alimento. Um patinho gosta de nadar: existe a água. O homem sente o desejo

sexual: existe o sexo. Se descubro em mim um desejo que nenhuma experiência deste mundo

pode satisfazer, a explicação mais provável é que fui criado para outro mundo.29

O mesmo ponto usado por Freud para mostrar que a crença em Deus é uma ilusão foi usado

por Lewis para mostrar que esta crença é real. Novamente digo, apesar de não concordar com

algumas conclusões dos pensadores ateístas mencionados, não há razão para depreciar toda sua

obra. Como disse certa vez Agostinho: “Toda verdade, é a verdade de Deus, onde quer que você a

encontre”. Mesmo que ela se encontre em um pensamento ateísta contrário à religião.

A terceira consideração que tenho a fazer sobre a abordagem de o fenômeno religioso

originar-se a partir dos desejos de uma pessoa é a seguinte: se a fé em Deus surge a partir das

necessidades de uma pessoa, não deveríamos concluir também que o ateísmo, por ser, a priori, uma

visão de mundo como a crença em Deus, também seja projetado pelos ateus a partir de alguma

necessidade? Pensemos: o que distingue as visões teístas da visão ateísta de mundo? As primeiras

são representações da crença na existência de Deus e a segunda é uma representação da crença na

inexistência de Deus. No sentido epistêmico, ambas são crenças – afirmações de conhecimento.

Ambas são igualmente, também, visões de mundo. As variadas formas de teísmo são visões de como

28

In: MCGRATH, 1999. Loyola. p. 244. 29

LEWIS, 2005. Martins Fontes, p. 182.

Page 14: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 14

é o mundo (com um Deus regente) e o ateísmo é também uma visão de mundo (sem nenhum Deus

criador ou regente). Portanto, ambas as visões de mundo são sujeitas às mesmas críticas. O ateísmo

não deve, portanto, estar imune ao pensamento de Freud. Se a crença em Deus é uma projeção da

necessidade humana de proteção, o ateísmo deveria também ser uma projeção de alguma

necessidade humana. Alguns já escreveram sobre esta questão dizendo que a necessidade humana

que pressiona psicologicamente uma pessoa ao ateísmo é o desejo humano de autonomia moral.

Freud afirma: "O crente está ligado aos ensinamentos da religião por certos vínculos afetivos.

Contudo, indubitavelmente existem inumeráveis outras pessoas que não são crentes, no

mesmo sentido". Isto é, as causas tanto da crença quanto da descrença são primariamente

emocionais, e só secundariamente racionais.30

Sobre este assunto, recomendo a leitura de um artigo muito interessante escrito por Paul C.

Vitz, chamado The Psychology of Atheism [A Psicologia do Ateísmo]31 onde o autor aponta inclusive

quais são as pressões edipianas que as pessoas sofrem que conduzem-nas ao ateísmo. Pode-se

elaborar sem dificuldades – mesmo sem fazer referências a Freud e aos impulsos sexuais que o ser

humano possui – uma explicação psicológica para o surgimento do ateísmo no ser humano, uma vez

que ele surge na vasta maioria dos casos na mente de adolescentes. (Faça uma pesquisa entre seus

amigos ateus e tente descobrir com qual idade eles se tornaram ateus, ou pesquise a mesma coisa

sobre seus escritores ateus favoritos.)

Não vou me deter mais neste assunto para não cansar o leitor, acredito que a teoria da crença

em Deus como satisfação de um desejo foi bem explanada e comentada aqui. Não há motivo algum

para pensar que ela implique alguma coisa que comprometa o teísmo. Outro pensador ateu que

teorizou sobre as origens da religiosidade no ser humano foi Richard Dawkins. Vamos abordar seu

pensamento a seguir.

Richard Dawkins: A Religião é um Subproduto de Outra Coisa

É no quinto capítulo de Deus, um delírio – chamado As raízes da religião – que Richard

Dawkins apresenta seu pensamento sobre a origem do fenômeno religioso na espécie humana. Antes

de iniciar a exposição do pensamento de Dawkins, é notório observar que Dawkins – em nenhuma

outra parte de Deus, um delírio – faz menção ao pensamento de Ludwig Feuerbach, Karl Marx ou

Sigmund Freud sobre as origens da religião. Sequer seus nomes são mencionados na obra de

30

<http://glauberataide.blogspot.com/2007/10/freud-e-religio-neurose-obsessiva.html>. 31

<http://www.leaderu.com/truth/1truth12.html>.

Page 15: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 15

Dawkins. Por que será? Será que Dawkins não está familiarizado com as teorias propostas por estes

pensadores? Ou será que Dawkins está familiarizado, mas discorda tanto deles ao ponto de nem citá-

los em seu livro? O fato é que, mesmo contendo um subtítulo chamado Preparados psicologicamente

para a religião, o quinto capítulo do livro Deus, um delírio não faz menção alguma aos pensamentos

ateístas propostos por Feuerbach, Marx e Freud.

Esta não menção tem seu lado negativo e seu lado positivo. O lado negativo é que se fica com

a impressão de que a obra de Dawkins ficou incompleta com a não-menção destes pensamentos

importantes, principalmente quando a pessoa que está lendo já está familiarizada com as proposições

de Feuerbach, Marx e Freud. Em contrapartida, para o bem ou para o mal, a abordagem de Dawkins

foi totalmente original, apresentando certa criatividade na análise da questão.

Em sua análise, Dawkins parte do ponto de que o fenômeno religioso existe em nós por algum

motivo relacionado ao processo de evolução que nossa raça sofreu através da seleção natural.

Sabendo que somos produtos da evolução darwiniana, devemos perguntar que pressão ou

pressões exercidas pela seleção natural favoreceram o impulso à religião.32

Como Deus não existe (aliás, quase com certeza não existe) – Dawkins faz toda sua análise

com este pressuposto em mente – o fenômeno religioso tem de ser apenas algum desvio, um

acidente de percurso no processo de seleção natural na espécie humana. É importante aqui explicar

porque a crença em Deus deve ser tratada como um acidente de percurso por Dawkins. A seleção

natural, conforme tem sido observado desde Darwin, é o processo que moldou todas as espécies

vivas conforme as vemos hoje – inclusive os seres humanos. Ela seleciona aqueles que tiveram

mutações aleatórias mais vantajosas para determinando ponto e elimina os demais. O corte realizado

pela seleção natural, portanto, teoricamente, deveria deixar passar apenas aspectos benéficos às

espécies, pois a seleção elimina os seres vivos com mutações que não as ajuda no processo de

adaptação ao ambiente em que esta espécie vive e, além disso, através dos replicadores, todas as

mutações positivas são transmitas aos descendentes da espécie.

Se o fenômeno religioso surgiu através de pressões causadas pela seleção natural, e se a

seleção natural corta fora as mutações ou produtos que atrapalham uma espécie a viver no seu meio,

então deveríamos concluir inequivocamente que o fenômeno religioso deve ser útil de alguma forma

ao ser humano. A seleção natural de alguma forma projetou a crença em Deus no ser humano e, se

assim o fez, esta crença seria (ou conteria) um bem ao ser humano. Esta conclusão, porém, não

interessa nem um pouco a Richard Dawkins, a quem a fé em Deus é um mal que se deve ser evitado

32

DAWKINS, 2007. Companhia das Letras. p. 215-216.

Page 16: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 16

e combatido. Dawkins então identifica uma brecha na seleção natural onde se pode encaixar a

origem do fenômeno religioso na espécie humana: a religião como subproduto de outra coisa.

Faço parte do número cada vez maior de biólogos que enxergam a religião como subproduto de

outra coisa. [...] Talvez a característica em que estamos interessados (a religião, nesse caso)

não tenha um valor direto de sobrevivência por si só, mas seja um subproduto de outra coisa

que tenha.33

Para explicar o que quer dizer com “subproduto de outra coisa” Dawkins cita o exemplo do

suicídio das mariposas. Todos já devem ter observado alguma vez como as mariposas dão vôos

rasantes em direção à chama de uma vela e se matam sem qualquer motivo aparente. Dawkins

explica que a seleção natural moldou os insetos a usar a luz da lua e das estrelas como parâmetros

de navegação, como uma bússola que guia seu caminho. A luz artificial é uma inovação recente e a

mariposa não tem ciência disto. Usando um mecanismo útil a si – de navegar usando a luz como guia

– a mariposa voa diretamente para o centro da chama da vela e morre. Apesar disto, diz Dawkins, o

mecanismo de guia da mariposa é muito útil porque a luz da vela é uma ocasião rara para a

mariposa, que por toda sua vida se guiou pela luz da lua e das estrelas. De acordo com Dawkins,

“Jamais foi correto chamar aquilo de suicídio. Trata-se de um subproduto indesejado de uma bússola

normalmente útil.”34

Como o caso do suicídio da mariposa, a religião, argumenta Dawkins, é um subproduto

indesejado de algo útil que a seleção natural nos trouxe. Não é que a seleção natural tenha projetado

em nós o impulso para crermos em Deus, antes, a crença em Deus foi um subproduto indesejado e

maléfico gerado acidentalmente a partir de algum aspecto útil no ser humano.

O comportamento religioso pode ser um subproduto indesejado e infeliz de uma propensão

psicológica subliminar que, em outras circunstâncias, é, ou foi um dia, útil.35

A partir deste ponto, Dawkins começa a conjecturar qual seria esta coisa da qual a crença em

Deus é um subproduto indesejado. Richard Dawkins propõe que esta coisa útil ao ser humano e que

gerou por algum motivo o subproduto religião foi a tendência das crianças de sempre acreditarem em

tudo o que os seus pais dizem a elas.

Mas, para dizer o mínimo, haverá uma vantagem seletiva para cérebros de crianças dotados da

seguinte regra geral: acredite, sem questionamentos, no que os adultos lhe dizem. Obedeça a

seus pais; obedeça aos anciãos da tribo, especialmente quando eles adotam um tom solene e

33

Ibidem. p. 227-228. 34

Ibidem. p. 229. 35

Ibidem. p. 230.

Page 17: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 17

ameaçador. Confie nos anciãos sem questionamentos. [...] A seleção natural constrói o cérebro

das crianças com a tendência de acreditar em tudo o que seus pais ou líderes tribais lhe

disserem. Tais confiança e obediência são valiosas para a sobrevivência: o análogo a navegar

orientando-se pela lua, no caso da mariposa. Mas o lado ruim da obediência insuspeita é a

credulidade escrava.36

A religião de acordo com Dawkins é, portanto, um subproduto indesejado de algo bom: a

tendência dos filhos de sempre acreditarem em tudo o que seus pais e superiores lhe dizem. A crença

em Deus, propôs Richard Dawkins em trabalhos anteriores, não passa de um vírus, um vírus da

mente. “Uma vez infectada, a criança crescerá e infectará a geração seguinte com o mesmo absurdo,

aconteça o que acontecer”.37

Análise da Tese de Dawkins Para a Origem da Religião

Dawkins não trabalha melhor sua tese depois que propõe esta tendência infantil como análoga

ao caso da lua como navegadora pelas mariposas, para o caso da origem do fenômeno religioso no

ser humano. Dawkins não fez nada mais do que sugerir de forma modesta que a religião surgiu como

um infeliz subproduto da obediência cega das crianças aos seus pais. Teria sido interessante se

Dawkins tivesse explicado como e porque algum pai ancestral disse a seu filho que Deus existe. Por

que um pai mentiria a seu filho dizendo que Deus existe sabendo que Ele não existe? Será que o

próprio pai acreditava em Deus? Mas como o próprio pai veio a ter em mente a idéia da existência de

um Deus? Esse pai aprendeu com seu pai? Mas e o pai do pai, com quem aprendeu que Deus existe?

Com o pai do pai do pai? Mas e esse pai do pai do pai, com quem aprendeu? A regressão se segue

ad infinitum. Em algum momento, algum pai pensou na idéia da entidade Deus sem a influência de

seu pai. Porém esta conclusão joga por terra a teoria de Dawkins de que a crença em Deus surgiu

como subproduto da obediência cega que os filhos têm em relação a seus pais. Se a tese de Dawkins

prova alguma coisa, ela prova que o pensamento religioso se propagou através desta característica

infantil, mas ainda permanece aberta a questão de como este pensamento surgiu.

Dawkins, aliás, se ateve mais em explicar o quão prejudicial é a doutrinação infantil por parte

das pessoas religiosas do que em aprofundar-se mais em sua tese de como o fenômeno religioso

surgiu no pensamento do ser humano. Acredito que até esta maneira de Dawkins de ter conduzido

seu pensamento em Deus, um delírio nos mostra que sua tese, se verdadeira, nos diz apenas qual foi

o mecanismo que propagou a crença em Deus através dos séculos, mas não como ela surgiu.

36

Ibidem. p. 230, 231 e 233. 37

Ibidem. p; 248.

Page 18: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 18

Parece (esta foi a impressão que tive) que nem o próprio Dawkins levou a sério suas

conclusões que foram propostas. Pouco depois de apresentá-la – e gastar um bom espaço de seu

livro falando sobre a doutrinação infantil, que nada tem a ver com a questão da origem da

religiosidade no ser humano – o autor disse cautelosamente:

Lembre-se, porém, de que minha sugestão específica sobre a útil credulidade da mente infantil

é apenas um exemplo do tipo de coisa que pode ser análogo à navegação das mariposas pela

lua ou pelas estrelas.38

Dawkins dispensa mais páginas explicando outras teorias da religião como subproduto de algo

útil propostas por outros pensadores do que em sua própria tese. Fica-se com a impressão que nem

Dawkins acredita no que ele propôs, e, podemos conjecturar, ele também não bota muita fé nas

teorias propostas por outras pessoas, uma vez que além destas teorias, se deu ao trabalho de ter

proposto outra tese. Outra teoria apresentada em Deus, um delírio sobre qual seria o análogo à lua

no exemplo da mariposa, no caso da religião, por exemplo, é a teoria da religião como subproduto do

hábito humano de se apaixonar por apenas um integrante do sexo oposto.39

Tenho outra consideração em relação a esta proposição de Dawkins sobre a origem da

religiosidade. É a seguinte: o fenômeno religioso é comum a todos os povos e culturas de todas as

partes do mundo. Não existe nenhuma tribo, por mais aborígene ou por mais moderna que seja, que

não possua um sistema religioso organizado, com ritos, leis, doutrinas e punições. Se a religião surgiu

como subproduto da obediência cega dos filhos aos pais em uma situação específica, como explicar o

fato de todos os povos do planeta – até as tribos mais isoladas do mundo que foram descobertas

apenas no último século – apresentarem um sistema religioso organizado e incrivelmente semelhante

entre si? Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil em 1500, os índios que aqui habitavam – que

não tinham contato algum com o mundo europeu-asiático – possuíam um sistema religioso

organizado com crenças, rituais, deveres e punições, o que dificultou um pouco o trabalho dos

missionários católicos que vieram com Cabral. Se a origem da religião aconteceu em um evento

específico, por que este evento se tornou universal e pode ser observado em culturas totalmente

isoladas do mundo, como em tribos indígenas?

Alister McGrath e Joanna McGrath (2007, p. 78 e 79) observaram outra característica estranha

na tese de Dawkins da religião como subproduto acidental e infeliz de algo útil durante o processo

evolucionário. Para os autores,

38

Ibidem. p. 235. 39

Ibidem. p. 246-247.

Page 19: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 19

Dawkins amplia essas especulações ao sugerir que tais tendências essencialmente naturais

poderiam ter sido mal direcionadas, terminando em algo fundamentalmente religioso. [...] Isso,

no entanto, parece mais que incompatível com seu próprio “darwinismo universal”, que evita

qualquer idéia de propósito – um entendimento famosamente sintetizado em sua declaração de

que o universo “não tem nenhum projeto, nenhum propósito, nenhum mal e nenhum bem,

nada além da impiedosa e cega indiferença”. Então, como Dawkins pode referir-se à religião

como “acidental”, quando seu entendimento do processo evolutivo evita qualquer base teórica

que permita sugerir que alguns resultados são “intencionais” e outros “acidentais”? É

incompatível com a visão darwinista do mundo. Para o darwinismo, tudo é acidental. As coisas

podem parecer planejadas – mas essa aparência de planejamento ou intencionalidade origina-

se do desenvolvimento fortuito.40

Muito bem observado! Se o mundo no fim não possui sentido algum, como e por que um

evento aleatório pode ser considerado como “acidental” ou como “prejudicial”? Como se pode usar

um padrão ou uma escala para definir o que é bom ou ruim no universo se a concepção darwinista

exclui qualquer possibilidade de existência de padrões, sentidos ou escalas absolutas no universo? Se

toda história do Cosmo é apenas um acidente cego e sem propósito, como poderíamos classificar as

coisas como “uteis”, “boas”, “ruins” e “prejudiciais”?

Por fim, outro aspecto que percebi enquanto lia Deus, um delírio e que, para minha surpresa,

foi notado também pelo casal McGrath e mencionado em O delírio de Dawkins é a absoluta falta de

evidências para sustentar tais proposições da religião como subproduto de outra coisa.

A principal crítica a essa teoria do “subproduto acidental” é a falta de evidências sérias em seu

favor. Onde está a ciência? Qual é a evidência para tal crença? Vemos a especulação e a

suposição substituírem os rigorosos argumentos regidos pelas evidências e nela embasados,

pelos quais temos o direito de esperar. As teorias de Dawkins sobre as origens biológicas da

religião, embora interessantes, devem ser consideradas altamente especulativas. Seus

argumentos sobre as origens psicológicas da religião estão poluídos por muitos “talvez” e “pode

ser”, indicadores verbais de que não existe evidência significativa para as idéias altamente

tênues e especulativas que ele examina com seus leitores.41

Portanto, não vi boas razões para levar a sério o que Dawkins disse. Existe um abismo

enorme entre uma suposição e uma explicação sobre a origem de um fenômeno. A teoria de Dawkins

não passa de uma suposição sobre como o fenômeno religioso pode ter se originado na humanidade,

porém, está muito longe de ser uma explicação eficaz sobre estas origens.

40

MCGRATH, Alister; MCGRATH, Joanna. 2007. Mundo Cristão. p. 78 e 79. 41

Ibidem. p. 79.

Page 20: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 20

Conclusão

Apresentei neste ensaio as teses de quatro pensadores sobre as possíveis origens naturais do

fenômeno religioso. Ludwig Feuerbach – embora exista controvérsias se de fato ele era ou não ateu –

deu o pontapé inicial com sua abordagem da crença em Deus como projeção de nossos desejos,

necessidades e anseios. O pensamento de Feuerbach influenciou dois outros pensadores que

teorizaram sobre a origem da religião: Karl Marx e Sigmund Freud. Para Marx, a religião é projetada

pelo ser humano em consequência da alienação econômica e social que impera no mundo em que

vive. Para Freud, a religião é uma projeção da imagem que tivemos de nosso pai na infância a partir

da necessidade que temos de nos sentir protegidos nesse mundo que nos apresenta muitos perigos.

Em uma linha completamente independente de Feuerbach, e por essa razão incompleta,

porém totalmente original, Richard Dawkins – o ateu mais influente e lido do mundo atual –

apresenta a origem da religião em bases darwinistas, ou seja, a religião como consequência de

alguma pressão evolutiva no processo de seleção natural. Dawkins apresenta a religião como

subproduto indesejado de algo útil, a saber, segundo ele, a obediência cega que as crianças nutrem

em relação a seus pais.

Fiz neste ensaio duas análises distintas, uma em relação às primeiras teorias que postulam a

crença em Deus como projeção dos desejos e necessidades que temos; e uma análise da crença em

Deus como subproduto indesejável de algo originalmente bom. Sobre as primeiras análises, pesou o

fato de a crença em Deus não se tornar menos verdadeira simplesmente porque as pessoas desejam

a existência de Deus e, sobre a segunda análise, pesou a falta de evidências que a sustentam bem

como a aparência que nem mesmo o pensador que propôs o pensamento acredite de fato nele.

Você pode me questionar porque a crença em Deus como subproduto de outra coisa deve ser

descartada pela falta de evidências e a crença em Deus – que não possui evidências que a sustentem

– não deve. A minha resposta é que, ao contrário da teoria da religião como subproduto de outra

coisa, a existência de Deus não pretende (e nunca pretendeu) ser uma teoria científica. As pessoas

acreditam em Deus pela fé, não porque Deus é passível de ser observado por um microscópio. Se

esta metodologia é correta ou não, pelo menos as pessoas religiosas nunca a esconderam. Richard

Dawkins, ao contrário, é cientista e ainda por cima ateu. Ele é alguém (segundo suas palavras) que

valoriza as evidências empíricas mais do que qualquer outra coisa na vida. Mais do que a qualquer

pessoa, as evidências deveriam ser valorizadas por ele. E isto inclui evidências para suas próprias

teorias, principalmente.

Page 21: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 21

Aprendi muito enquanto escrevia este ensaio sobre as origens psicológicas da religião. Porém,

não li nada que gerasse um sentimento de “e agora?” em mim. As explicações oferecidas são até

razoáveis, mas praticamente todas são passíveis de serem interpretadas biblicamente e, portanto,

não contradizem as crenças que tenho.

OBRAS CONSULTADAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. 17 ed. São Paulo:

Paulus, 1984.

ATAÍDE, Glauber. Freud e a religião – a neurose obsessiva universal da humanidade.

Disponível em <http://tinyurl.com/35zf3qo>. Acesso em 17 de Setembro de 2010.

DAWKINS, Richard. Deus um delírio. Tradução de Fernanda Ravagni. São Paulo: Companhia das

Letras, 2007.

DOMINGUEZ MORANO, Carlos. Crer depois de Freud. Tradução de Eduardo Dias Gontijo. São

Paulo: Edições Loyola, 2003

FREUD, Sigmund. Cartas entre Freud & Pfister. Tradução de Karin Hellen Wondracek e Ditmar

Junge. Viçosa/MG: Ultimato, 1998.

LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. Tradução de Álvaro Oppermann e Marcelo Brandão

Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MARTINS, José Ricardo. A Religião Sob um Outro Olhar: Comentário Sobre o Livro “A

Essência do Cristianismo” de Ludwig Feuerbach. Disponível em <http://tinyurl.com/37hk

6x9>. Acesso em 17 de Setembro de 2010.

McGRATH, Alister E. (1999) Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião. Tradução de Jaci

Maraschin. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

________. (2005) O Deus de Dawkins: Genes, Memes e o Sentido da Vida. Tradução: Sueli

Saraiva. São Paulo: Shedd Publicações, 2008.

McGRATH, Alister E.; McGRATH Joanna. O Delírio de Dawkins: Uma Resposta ao

Fundamentalismo Ateísta de Richard Dawkins. Tradução de Sueli Saraiva. São Paulo:

Mundo Cristão, 2007.

Page 22: Sobre as Explicações Ateístas Para a Origem e Propagação da Crença em Deus

Página | 22

NICHOLI, Armand. Deus em Questão: C. S. Lewis e Freud Debatem Deus, Amor, Sexo e o

Sentido da Vida. Tradução de Gabriele Greggersen. Viçosa/MG: Ultimato, 2005.

RIBEIRO, Osvaldo Luiz. Religião e Alienação – com Marx contra Marx. Disponível em

<http://tinyurl.com/2cwtact>. Acesso em 17 de Setembro de 2010.

VITZ, Paul C. The Psychology of Atheism. Disponível em <http://tinyurl.com/25zhc8w>, Acesso

em 17 de Setembro de 2010.

-

www.ElielVieira.org