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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROCENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
Vanessa Ramos Andrade
Sistema Prisional e Direitos Humanos: desafios para a garantia de uma política de proteção aos direitos dos presos.
Rio de Janeiro2008
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANASESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL
Vanessa Ramos Andrade
Sistema Prisional e Direitos Humanos: desafios para a garantia de uma política de proteção aos direitos dos presos
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Serviço Social
- 2 -da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Suely Souza de Almeida Co-orientadora: Lilia Guimarães Pougy
Rio de Janeiro2008
2
Agradecimentos
Gostaria de agradecer primeiramente a Deus por abençoar a minha vida.
Aos meus pais, que estão sempre presentes em vida e foram fundamentais para
a realização deste sonho.
Ao meu irmão querido que me incentivou bastante durante os momentos difícieis
da graduação.
À minha supervisora de estágio, Teresinha T. de Araújo, com quem compartilhei
um ano e meio da minha vida acadêmica, aprendendo e trocando idéias sobre a nossa
profissão.
A todos meus amigos, em especial, Alessandra, Bruna e Marta pelo apoio e
companheirismo durante esta jornada; que a nossa amizade possa perdurar por muito
tempo.
A todas às amigas do núcleo de pesquisa “O serviço social e a constituição do
campo dos direitos humanos no Brasil”.
À Victória por compartilhar um pouco de sua sabedoria e de sua história de vida
durante o período que convivemos na pesquisa.
À minha co-orientadora Lilia Pougy que teve um papel fundamental em minha
vida enquanto pessoa e estudante, por me orientar neste momento tão especial, que é
a união de todo o conhecimento que obtive durante a graduação.
E, em especial, a minha querida orientadora Suely Souza de Almeida, a quem
dedico este trabalho. Uma pessoa forte, inteligente e de extrema simplicidade com
quem tive o privilégio de conviver intensamente durante a minha vida acadêmica, ao
integrar seu grupo de pesquisadoras. Onde quer que ela esteja permanecerá em meu
3
coração. Espero em minha trajetória profissional, dar continuidade aos seus projetos
para a construção de sociedade mais justa, na defesa e garantia dos direitos humanos.
4
Resumo
Este trabalho examina o sistema prisional do Rio de Janeiro, uma vez que seu
cotidiano é marcado pela permanência de práticas violentas no interior dos presídios.
A análise da violência institucional perpretada pelo Estado, por meio de seus
agentes, demonstra o distanciamento existente entre a esfera legal e a efetivação dos
direitos.
Verificou-se a dificuldade no cumprimento das leis, em contraposição ao plano
formal, tendo em vista que o Brasil após a Constituição de 88 tornou-se signatário de
diferentes pactos e convenções, que visam à garantia e à proteção dos direitos de
todos os indivíduos.
5
Sumário
Apresentação................................................................................................ 08
Introdução.....................................................................................................12
Capítulo I: Violência Institucional e Direitos Humanos: reflexões sobre o sistema
penitenciário do Rio de Janeiro. .........................................................................15
1.1) Sistema Penitenciário do estado do Rio de Janeiro...........................28
Capítulo II: A Execução Privativa da Pena e a banalização da violência no interior
das prisões..........................................................................................................43
2.1) Legislações de Proteção aos direitos dos presos e Sistema
Prisional..............................................................................................................50
2.2) Criminologia Crítica e “Ressocialização”............................................64
Capítulo III: Cotidiano do Sistema Prisional do Rio de Janeiro sob a perspectiva de
funcionários e apenados....................................................................................69
3.1) A Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira...............................70
3.2) Qualificação dos Profissionais entrevistados durante a realização da
pesquisa..............................................................................................................72
3.2.1) Idade.................................................................................................72
3.2.2) Sexo..................................................................................................73
3.2.3) Formação..........................................................................................74
3.2.4) Tempo de serviço na Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de
Janeiro.................................................................................................................75
3.3) Opinião em relação a política de encarceramento adotada pelo sistema
penitenciário brasileiro.........................................................................................75
3.3.1) Rebatimentos da política de encarceramento no cotidiano
profissional...........................................................................................................78
6
3.3.2) Descrição do cotidiano profissional e das condições para realização das
intervenções......................................................................................................79
3.3.3) Limites e possibilidades para a implementação do trabalho...........80
3.3.4) Conhecimento sobre Direitos Humanos e viabilização destes em suas
intervenções........................................................................................................82
4) Qualificação dos apenados entrevistados.............................................85
4.1) Idade...................................................................................................85
4.2) Sexo....................................................................................................86
4.3) Escolaridade.......................................................................................86
4.4) Artigo/Condenação.............................................................................87
5) Análise qualitativa dos dados obtidos....................................................88
5.1) Opinião dos apenados em relação ao sistema penitenciário
brasileiro..............................................................................................................88
• Principais dificuldades enfrentadas durante a execução da
pena.................................................................................................90
5.2) Significado dos Direitos Humanos para os presos...............................92
Considerações Finais..................................................................................95
Referências Bibliográficas...........................................................................98
Anexos........................................................................................................103
7
APRESENTAÇÃO
O Trabalho de Conclusão de Curso ora apresentado é produto de toda uma
bagagem teórica e prática propiciada pelo espaço acadêmico, a Escola de Serviço
Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O interesse pela temática, Violação de Direitos Humanos e Sistema Prisional,
surgiu a partir de minha inserção na Pesquisa O Serviço Social e a Constituição do
campo dos Direitos Humanos no Brasil, coordenado pela Profª. Drª. Suely Souza de
Almeida, bem como da experiência de estágio na SEAP (Secretaria de Administração
Penitenciária – Rio de Janeiro).
Durante o curso de graduação, participei de atividades de ensino e pesquisa
voltados para o campo dos Direitos Humanos e da Criminalidade. Disciplinas como
Direitos Humanos, Questão Social no Brasil, Núcleo Temático sobre Criminalização da
Pobreza foram fundamentais para a compreensão da realidade social brasileira, e, por
conseguinte dos problemas referentes ao sistema prisional.
A iniciação científica foi fundamental para o desenvolvimento deste trabalho, obtive
contato com profissionais de diversas áreas que enriqueceram o meu conhecimento,
além de leituras, discussões e atividades voltadas para uma formação em Direitos
Humanos de qualidade. Essa gama de conhecimento propiciou a produção trabalhos
para Jornadas de Iniciação Científica, além da a Revisão do I Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos - PNEDH. Foi um trabalho de extrema importância
para a minha formação porque representou o compromisso da universidade com a
sociedade, através da avaliação de instrumentos formais de direito à educação. A
revisão deste plano contemplou os debates realizados em vários estados do país de
modo a envolver todas as contribuições dos encontros estaduais e municipais e dos
8
documentos recebidos durante o processo de consultas estaduais realizadas em todos
os estados da federação. A revisão a cargo da UFRJ foi uma demanda da SEDH, em
parceria com a UNESCO.
Outra atividade de extrema importância, na minha trajetória acadêmica, foi a
análise de entrevistas realizadas com profissionais dos Programas de Proteção a
Vítimas e Testemunhas e nos Centros de Atendimento a Vítimas de Violência,
existentes em todo o território nacional, quando foi possível conhecer o trabalho
realizado por assistentes sociais, psicólogos e advogados e identificar elementos
relacionados às condições de trabalho, qualificação profissional, o papel destes
trabalhadores no Programa, dando ênfase ao papel do Assistente Social neste trabalho.
A experiência de estágio também foi um fator condicionante para realização
deste trabalho. O conhecimento adquirido nesta área, a apreensão do cotidiano
prisional e das correlações de força existente neste espaço suscitaram o meu interesse
por este tema, que é de extrema relevância para a sociedade.
Realizei alguns trabalhos sobre o sistema penitenciário como bolsista de iniciação
científica. Em 2006 apresentei um trabalho intitulado de Os Mitos da Reintegração
Social dos Presos, que consistiu em demonstrar como o trabalho configura-se ao
mesmo tempo em uma possibilidade de inclusão e exclusão social para os apenados,
além de examinar a relação entre a política educacional implementada pelo Governo do
estado do Rio de Janeiro e as dificuldades e possibilidades encontradas pelos
apenados com vistas à inserção no mercado de trabalho.
9
Em 2007, apresentei o trabalho1 “Relações de Gênero e Sistema Prisional”, na
XXIX Jornada de Iniciação Científica da UFRJ, onde foram estudadas as disparidades
do número de visitantes em unidades prisionais masculinas e femininas. Partimos da
idéia de que as mulheres constituem a grande maioria de visitantes no Sistema
Penitenciário, tanto em unidades masculinas, quanto em unidades femininas.
Entretanto em unidades femininas o número de visitantes é muito menor.
Desta forma, minha trajetória acadêmica propiciou um arcabouço teórico e prático
que culminou na realização deste trabalho.
Este trabalho de conclusão de curso tem as marcas desse percurso, como vistas a
contribuir no debate acerca dos direitos humanos e do sistema prisional, tema este que
se constitui em um desafio para todos os segmentos da sociedade que militam pelos
direitos humanos.
Para a realização do trabalho, foi necessária a realização de um levantamento
bibliográfico sobre a temática: trabalhos, textos e artigos referentes ao Sistema
Penitenciário, Violência e Direitos Humanos.
A pesquisa não abordou a realidade de todo o Complexo Penitenciário do Rio de
Janeiro, o estudo foi restrito à Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira, Unidade
onde realizei estágio curricular.
Foram realizadas entrevistas com os apenados e profissionais que trabalham
nesta Unidade Prisional totalizando um quantitativo de 12 entrevistados (6 profissionais
com competências diversificadas na instituição e 6 internos) – com o objetivo de
compreender as relações, as visões e o julgamento dos diferentes atores sobre a
1 O trabalho foi elaborado em co-autoria com Alessandra Nascimento dos Santos também integrante do núcleo de pesquisa “O Serviço Social e a constituição do campo dos direitos humanos no Brasil e orientado pela Profª. Dr. Suely Souza de Almeida e co-orientado pela Profª. Dr. Lília Guimarães Pougy.
10
realidade em que se encontram inseridos - com o objetivo de verificar como a violência
institucional praticada pelo Estado e seus agentes interferem e influenciam o cotidiano
destes sujeitos, que vivenciam relações complexas de poder devido ao caráter
repressivo e punitivo da ideologia que atravessa as prisões.
A condição de estagiária desta unidade prisional foi muito importante para a
realização da pesquisa, pois o vínculo mantido com a instituição proporcionou a
colaboração de todos os entrevistados para a coleta dos dados. Assim, o resultado
obtido neste trabalho será devolvido à instituição de modo a contribuir com as
atividades daqueles que participaram diretamente e indiretamente da pesquisa.
11
INTRODUÇÃO
O objeto de estudo deste trabalho consiste na análise da violência institucional
perpretada pelo Estado, com vistas à verificar a dificuldade no cumprimento das leis,
em contraposição ao plano formal, tendo em vista que o Brasil, após a Constituição de
88, tornou-se signatário de diferentes pactos e convenções, que visam à garantia e à
proteção dos direitos de todos os indivíduos.
Diante do cenário atual, de aprofundamento das desigualdades sociais e de
minimização das funções do Estado, torna-se fundamental trazer para o espaço
acadêmico a discussão sobre violação de direitos humanos no Sistema Prisional; tema
este bastante incipiente dentro da Universidade.
A violência institucional reproduzida pelo Estado ao longo dos anos é resultado de
uma cultura política que apresenta fortes traços de clientelismo, assistencialismo e
autoritarismo, o que acaba por dificultar a formação de uma consciência política da
população e, por conseguinte, a não ocupação direta desta em espaços que deveriam
ser utilizados para o controle e o gerenciamento das políticas sociais.
No sistema prisional, em especial, o aviltamento da cidadania dos presos é bem
mais explícito; visto que, no senso comum, os direitos humanos são entendidos como
direitos de bandidos e, portanto não devem ser respeitados.
Segundo Wacquant, “A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo:
remediar com um ‘ mais Estado ’policial e penitenciário o “menos Estado” econômico e
social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e
subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo”. (2001:7)
Assim, na perspectiva neoliberal, o cidadão é visto como consumidor e as políticas
sociais acabam assumindo duas funções: social – passa a ter função redistributiva de
12
renda na sociedade, funcionando como complemento ao salário do trabalhador;
econômica – constituindo-se num instrumento para baratear a força de trabalho e
permitindo que os trabalhadores se reproduzam de modo que a acumulação se dê a
partir de sua exploração (Pastorini,1997).
As desigualdades sociais oriundas das contradições existentes na sociedade
capitalista refletem-se no perfil da população carcerária brasileira. Esta representa um
determinado segmento que é criminalizado segundo sua condição de classe.
Desta maneira, a violência institucionalizada atinge os presos de formas variadas:
torturas, falta de assistência médica, jurídica, social, psicológica, dentre outros. A
população carcerária vive em condições desumanas; a precariedade das unidades
prisionais gera, em muitos casos, rebeliões, por meio das quais os apenados
reivindicam melhores condições de vida, pois estão sob a proteção do Estado e este
não cumpre com o seu dever de zelar pelas garantias fundamentais destes indivíduos.
Conforme Almeida, “sendo dirigida predominantemente contra frações das classes
e categorias subalternizadas, a violência é uma das expressões da questão social (...)
que podem ser igualmente qualificadas como formas brutais de violência que se
materializam nas condições de vida de enorme parcela da população brasileira – a
indigência, a convivência diária com a fome, a falta de acesso à habitação, o trabalho
precário e intermitente, o desemprego, as precárias condições de saúde”. (2004:53)
O Serviço Social é uma profissão que intervém nas expressões da questão social,
tendo como princípios fundamentais a defesa intransigente dos direitos humanos e a
ampliação e a consolidação da cidadania. Desta maneira, é importante trazer para a
academia o debate sobre o sistema penitenciário, pois o Assistente social tem um papel
13
fundamental tanto na efetivação quanto na denúncia do não cumprimento dos direitos
daqueles que se encontram reclusos nas unidades prisionais.
Tendo em vista as desigualdades sociais e os processos de marginalização social,
cultural e econômica das classes subalternas, Torres afirma que “as saídas para a
categoria atuante no sistema penitenciário, bem como uma reflexão sobre a intervenção
da profissão nos presídios, estão nas mãos dos próprios profissionais, mas não de
maneira individual, e, sim de forma coletivamente, de maneira que leve a uma reflexão
crítica e ao estabelecimento de estratégias para o enfrentamento desta realidade”.
(2001: 91)
Assim, é necessário pensar em estratégias que venham reconfigurar o tratamento
dispensado aos presos, na tentativa de viabilizar a efetivação de direitos no sistema
prisional.
14
Capítulo I: Violência Institucional e Direitos Humanos: reflexões sobre
o sistema penitenciário do Rio de Janeiro.
Trabalhar a questão penitenciária atualmente implica considerar a conjuntura
social, econômica, política e cultural do país. Estes elementos são fundamentais para o
entendimento da realidade das prisões, e como estas vêm se gestando na sociedade
capitalista.
O sistema carcerário do país constitui-se em um conjunto de instituições cuja
finalidade concentra-se na detenção de determinados segmentos sociais com vistas à
manutenção e reprodução da ordem estabelecida. Verifica-se, nesses espaços, que o
índice de violência é bastante acentuado; esta se expressa de várias formas, sejam
elas físicas ou psicológicas.
A realidade das prisões brasileiras representa o descaso do poder público com a
sociedade, e revela a face perversa das políticas formuladas para o enfrentamento da
pobreza no país. Desta forma, determinados segmentos da população são
criminalizados em decorrência de classe, etnia e gênero; portanto, são alvos de ações
paliativas que reforçam as desigualdades existentes na sociedade.
O aumento da criminalidade na sociedade brasileira tem como pano de fundo a
sua formação social, além de traços remanescentes do período vivenciado durante o
regime ditatorial. Pereira, utilizando Wacquant (2001a) traz a seguinte contribuição ao
cenário brasileiro: este acentua que algumas razões, ligadas à nossa história e à
posição subordinada do Brasil na estrutura das relações econômicas internacionais,
contribuem para o crescimento da criminalidade, em uma sociedade marcada pelas
disparidades sociais e pela pobreza em massa.
15
Essa subordinação do Brasil em relação aos organismos internacionais acarreta
a ausência de políticas sociais universais que contemplem as demandas da população.
À medida que esta não possui meios para suprir a sua necessidade, realiza estratégias
para garantia de sua sobrevivência, seja a partir de atividades informais ou através de
práticas consideradas ilícitas, uma vez que o sistema de justiça criminal considera as
classes populares mais propensas à prática de delitos.
As políticas para área de segurança pública, que também se constituem em um
setor de intervenção estatal, ainda são bastante incipientes, mesmo com os avanços
ocorridos nos anos 902:
“criação da Secretaria Especial de Direitos Humanos; o lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos(2001) e o estabelecimento do Sistema Único de Segurança Pública (2003); com o objetivo de implementar as diretrizes do plano”.
No entanto, mesmo com avanços no aparato legal ainda há dificuldades para que
uma política de direitos humanos possa se estabelecer na sociedade brasileira.
A violência institucional reproduzida pelo Estado ao longo dos anos é resultado de
uma cultura política que apresenta fortes traços de clientelismo, assistencialismo e
autoritarismo; o que acaba por dificultar a formação de uma consciência política da
população e, por conseguinte, a não ocupação direta desta em espaços que deveriam
ser utilizados para o controle e o gerenciamento das políticas sociais.
“A violência e a criminalidade no Brasil só podem ser entendidas como produto de relações históricas, particularizadas por cinco séculos de colonialismo e por um passado escravocrata recente, por relações fortemente hierarquizadas (...) que minam fronteiras entre o público e o privado (...) o que nos lega como patrimônio coletivo a banalização da vida, a naturalização da morte e a cultura da impunidade” (ALMEIDA, 2004:49)
2 Segundo Neme (2005), essas iniciativas surgiram como novas políticas de segurança a partir do nível federal e entre outros objetivos, visaram tratar os problemas de segurança pública com racionalidade maior – a partir de diagnósticos, sistematização de dados e definição de prioridades. Também buscaram associar a eficiência policial ao respeito aos direitos humanos em uma tentativa de oferecer alternativas aos dilemas entre lei e ordem que fortemente domina o campo da segurança no Brasil.
16
É importante salientar que a violência não é um fenômeno que se restringe ao
Estado, ela se encontra em outras instituições; por exemplo: na família, nas escolas,
nas atividades religiosas... no cotidiano dos indivíduos, nos espaços em que estes se
socializam; nos elementos necessários para a sua reprodução e também para
legitimação das ações estatais.
Assim, a violência praticada pelo Estado atravessa todas as esferas da vida social
contribuindo para não efetivação de direitos à medida que não garante à população o
exercício da cidadania.
As políticas realizadas pelo Estado incidem drasticamente na vida da população; a
violação de direitos humanos torna-se uma prática comum e a cidadania dos indivíduos
deixa de ser efetivada.
No sistema prisional, em especial, o aviltamento da cidadania dos presos é bem
mais explícito, visto que no senso comum os direitos humanos são entendidos como
direitos de bandidos e, portanto, não devem ser respeitados.
Para que a política de encarceramento utilizada pelo Estado seja compreendida
atualmente, torna-se necessário fazer um resgate histórico das relações sociais
estabelecidas na sociedade brasileira, buscando apreender suas particularidades,
tendo em vista sua formação social.
Baseada em um regime escravocrata que permanece fortemente enraizado em
nossa cultura, a formação da sociedade brasileira constitui um elemento fundamental
para análise dos problemas que atingem a população cotidianamente, uma vez que
reforça o caráter conservador das políticas implementadas e não democratiza as
estruturas de poder estabelecidas nas esferas governamentais.
17
Os aspectos culturais desta sociedade demonstram que os valores construídos
socialmente revelam traços autoritários e preconceituosos, que contribuem para a
legitimação de ações estatais e para a manutenção das prisões como estratégias de
controle da violência e da criminalidade.
Segundo Adorno, mesmo com o fim do
“regime autoritário (1964-1985) não se logrou a efetiva instauração do Estado democrático de Direito. Persistiram graves violações de direitos humanos, produto de uma violência endêmica, radicada nas estruturas sociais, enraizada nos costumes, manifesta quer no comportamento de grupos de sociedade civil, quer no de agentes incumbidos de preservar a ordem pública. Mais do que isso, tudo indica que, no processo de transição democrática, recrudesceram as oportunidades de solução violenta dos conflitos sociais e de tensões nas relações intersubjetivas”. (1995:299)
Mesmo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro,
atualmente, encontra dificuldades para concretização das garantias previstas quanto
aos direitos dos cidadãos. Algumas instituições, principalmente aquelas voltadas para a
área de segurança pública, permanecem legitimando ações autoritárias, remanescentes
do período militar. Estas se constituem em grandes entraves para tornar estes espaços
mais democráticos e conseqüentemente para promoção de uma cultura de direitos.
A luta pela democratização do país teve início no final dos anos 70, tornando-se
efetiva durante a década de 80, um período de grande efervescência no país. Com o
fim da ditadura houve um amplo movimento da sociedade civil – rearticulação do
movimento operário no ABC paulista, além da participação de novos sujeitos políticos
em busca da democratização da sociedade. Vários segmentos da sociedade uniram se
em torno de um interesse comum: um sistema de governo que permitisse a participação
da população nas suas decisões 3.
3 Segundo Adorno, (...) a reconstrução democrática e o novo regime político acenaram para substantivas
mudanças, entre as quais conviria destacar as seguintes: ampliação dos canais de participação e
18
Para Coutinho (2000) este processo que pôs fim à ditadura, possui uma dinâmica
contraditória:
“Os regimes ditatoriais modernizadores e não fascistas – de que são exemplos clássicos, entre outros o Brasil pós-64 e Espanha franquista em seu segundo período – apresentam uma contradição fundamental: desencadeiam forças que, a médio prazo não podem mais controlar, ou, em palavras mais precisas, desenvolvem pressupostos de uma sociedade civil, que progressivamente, escapa à sua tutela. Quando a pura repressão se revela inviável , têm lugar os chamados projetos de abertura, encaminhados pelo alto e baseados essencialmente em duas iniciativas correlatas: a) na tentativa de adotar uma ação repressiva mais seletiva, voltada apenas contra os setores mais radicais da sociedade civil, b)no esforço de cooptar os segmentos mais moderados da oposição, incluindo-os subalternamente no bloco do poder.”(pág. 90)
Apesar da participação incisiva da população no período de democratização do
país, o mesmo autor assinala que ocorreu uma transição “fraca” de regimes4 as
aspirações da sociedade civil foram incorporadas “através de combinação de processos
pelo alto e de movimentos provenientes de baixo; e de decerto o predomínio de uns
sobre os outros” (pág.92), porém de modo que as estruturas de poder não fossem
modificadas.
Coutinho assinala que “uma transição desse tipo (...) implicava certamente uma
ruptura com a ditadura implantada em 1964, mas não com os traços autoritários e
excludentes que caracterizam aquele modo tradicional de se fazer política no Brasil.
(pág.93)
Com o fim da ditadura houve todo um reordenamento da sociedade, inclusive dos
espaços públicos, permitindo a participação da população nas decisões políticas que
incidiam em seu cotidiano. Neste período, o Estado, através de reivindicações
representação políticas; alargamento do elenco de direitos (civis, sociais e políticos); desbloqueio da
comunicação entre sociedade civil e Estado; reconhecimento das liberdades civis e públicas (...). (1995:
301)4 Não foi possível romper com traços de uma sociedade autoritária.
19
populares, buscou contemplar as aspirações deste segmento, que se consolidou na
Constituição de 1988, proporcionando a população à ampliação de seus direitos e a
participação e o controle dos espaços públicos.
“O país reajustou boa parte de seu instrumental legal aos novos contornos da situação democrática e ao mesmo tempo, demonstrou disposição em se afinar aos principais instrumentos de regulação da ordem internacional, especialmente aqueles voltados para o respeito e a promoção aos direitos humanos”. (SALLA, 2003:419).
O mesmo autor afirma que embora tenham ocorrido mudanças significativas na
sociedade brasileira, algumas instituições não acompanharam este processo:
“(...) Os aparato policial e prisional, desde a década de 80, têm oposto forte
resistência à assimilação dos novos padrões da vida democrática que se
estabeleceram no país, em boa parte em razão das práticas de arbitrariedade
e violência apesar do esfacelamento das formas autoritárias de governo”.
(SALLA, 2003: 419).
A face punitiva e moralizadora da prisão encontra-se imbricada nessas
condições, uma vez que a disciplina e a ordem corroboram com a não realização de
direitos. Mesmo com um aparato legal de proteção aos direitos dos presos, estes não
são efetivados; dada a cultura prisional, bem como o corporativismo existente entre os
agentes de segurança – que reforçam práticas incompatíveis ou mesmo inexistentes
nas legislações específicas do sistema prisional.
Durante o período ditatorial, a violência engendrada pelo Estado voltou-se para os
indivíduos que se opunham às idéias disseminadas pela classe dominante em favor do
grande capital. Atualmente, a violência é dirigida às camadas mais baixa da sociedade;
aqueles que não conseguiram inserir-se no contexto das transformações societárias5,
5José P. Netto afirma que estas transformações afetam diretamente o conjunto da vida social, pois a
reestruturação do mundo do trabalho traz novas configuarações, demandas a vida da classe
trabalhadora.
20
aos que não conseguiram acompanhar as modificações ocorridas no mundo do
trabalho: a mundialização da economia; sendo atingidos fortemente pela introdução de
novas tecnologias na esfera da produção.
“A violência ganha graus acentuados de institucionalização, seja porque envolve freqüentemente agentes públicos, seja porque está incrustada nas várias esferas do poder público, seja, ainda, por se apoiar na complacência e na omissão do Estado. É importante realçar a relação entre o Estado brasileiro e a crescente banalização e naturalização de processos institucionais de violência, cujos efeitos incidem desigualmente sobre o conjunto da sociedade brasileira”. (ALMEIDA, 2004:57).
As instituições policiais utilizam a força para a contenção da ordem pública,
empregam a violência física para reprimir a população. Adorno (1995) sinaliza que para
conter o crescimento da criminalidade violenta tem se recorrido a um controle
igualmente violento da ordem pública, cujos resultados se espelham no emprego não
raro desproporcional das forças policiais repressivas.
Afirma também que:
“Muitas vezes, sob pressões da opinião pública, as políticas públicas de segurança formulam diretrizes às agências policiais no sentido de conter a violência a qualquer custo, mesmo que para isso seja necessário comprometer vidas de indivíduos suspeitos de cometimentos de crimes”. (pág.318)
É importante frisar que a violência exercida por estas instituições não se restringe
aos delitos cometidos pelos indivíduos, atua também na contenção, no controle das
classes trabalhadoras. Exercem extrema repressão contra aqueles que expressam
opiniões contrárias ao ideário burguês hegemônico, que realizam manifestações pela
garantia e manutenção dos direitos conquistados historicamente através das lutas dos
trabalhadores.
Os movimentos sociais são exemplos de categorias da sociedade que são
amplamente reprimidos nos momentos em que expõem e defendem suas idéias.
21
As instituições policiais do Rio de Janeiro apresentam altos índices de corrupção,
os meios de comunicação veiculam cotidianamente o envolvimento de policiais em
esquemas ilícitos como tráfico de drogas e as milícias6.
Como afirma Torres (2001: 77),
Há inúmeras ilegalidades e situações de violência a que está submetida a população carcerária, praticadas muitas vezes pelos próprios agentes do Estado (funcionários e policiais) como maus-tratos, humilhações, espancamentos, torturas, corrupção, tráfico de drogas e de privilégios; a problemática da impunidade desta realidade, que colabora na manutenção da ideologia do castigo e da vingança social por meio do controle e da perversidade do Estado e de seu aparato policial.
Para o sociólogo francês Loïc Wacquant (2001), o Estado Penal brasileiro apenas
agrava o problema que deveria resolver, a polícia é um instrumento da violência - tanto
a militar, conhecida pelo lema “atire primeiro, pergunte depois”, quanto a civil, que está
constantemente relacionada à tortura e à brutalidade. Para ele, o Brasil adotou uma
estratégia na qual os americanos foram pioneiros: usar práticas punitivas para controlar
os problemas sociais gerados pela sociedade, prometendo soluções a curto prazo. As
prisões não passam de grandes depósitos de gente, nos quais os membros alienados
da sociedade são amontoados.
Constata-se, desta forma, que a violência é utilizada como um instrumento de
coerção que incide de modo recorrente no espaço público e privado dos indivíduos. Ao
serem coagidos por estas ações, ocorre a desmobilização dos cidadãos; que deixam de
se organizarem politicamente com vistas à melhoria das condições de vida. Ao passo
que não se organizam, percebe-se a instalação do individualismo, a tendência atual é
desmobilizar a população para fragmentar suas lutas; estas perdem seu caráter coletivo
e cada segmento social passa a reivindicar interesses próprios.
6 Grupo de policiais que exigem de moradores de comunidades, uma quantia mensal em troca de uma suposta proteção.
22
As transformações na sociedade brasileira decorrentes das modificações nas
estruturas sociais e econômicas acentuaram os níveis de desigualdades sociais. O
individualismo exarcebado provocado pelas novas relações oriundas da sociedade de
consumo, na qual os indivíduos estão inseridos atualmente, gera o surgimento de uma
série de particularismos e nacionalismos (Rouanet,1993) as lutas sociais passaram do
âmbito coletivo para o particular. De acordo com este autor, a individualidade abriu
espaço para o hiperindividualismo (os indivíduos voltados para seus interesses
pessoais sem a perspectiva de vinculação ao gênero humano). A autonomia que
permitia aos sujeitos a liberdade de condução de suas vidas foi perpassada pela
ideologia das classes dominantes, desta forma, sob a ótica do pensamento burguês; o
homem constrói a sua liberdade, os seus valores sem pensar no bem estar da
coletividade.
À medida que o poder público opta pela contenção de parcelas da população, a
partir do contexto social e econômico em que estão inseridas, acaba atribuindo aos
indivíduos a responsabilidade sobre a sua condição, moralizando comportamentos e
criminalizando determinadas condutas; uma vez que as políticas implementadas
associam pobreza à violência. Os setores econômicos, sociais e políticos são tratados
separadamente e o resultado dessa dissociação é a formulação e a implementação de
políticas sociais fragmentadas que tendem a amenizar os problemas sociais ao invés
de eliminá-los. Assim, retira-se o caráter histórico das políticas sociais, das lutas para
sua implementação.
A vinculação entre pobreza e violência acarreta uma série de danos à população,
pois o enfrentamento dos problemas desse segmento aparece como um fenômeno
eventual e localizado.
23
“Tal associação ideológica tem repercussões profundas para as classes subalternas, pois, além de não terem acesso a políticas públicas básicas, têm em torno de si comportamentos de discriminação e repressão. Devem ser enfatizadas, ainda, as marcas danosas produzidas em seus processos de subjetivação, em especial a internalização dessa concepção mistificadora”. (ALMEIDA, 2004:56).
A realidade das prisões brasileiras é uma expressão da questão social, existe uma
série de fatores que contribui para que ela permaneça nessas condições, violadora de
direitos. O efetivo carcerário, geralmente, é formado por segmentos da população com
baixa escolaridade, muitas vezes sem nenhum tipo de profissionalização, provenientes
das classes populares e inseridos no mercado informal de trabalho quando em
liberdade. Assim, aqueles que se encontram encarcerados, em algum momento de
suas vidas não conseguiram usufruir a cidadania na sua plenitude, pois apesar a
universalização dos direitos, o acesso aos mesmos se dá de maneira desigual. O
resultado dessa desigualdade de acesso aos direitos é fragmentação e a seletividade
das políticas sociais brasileiras faz com que a população tenha acesso a frações de
cidadania, uma vez que os direitos não são universalizados e os serviços oferecidos
não se efetivam frente às demandas da população.
A punição passa a ser realizada através do aspecto individualizante e não leva em
consideração a realidade, a totalidade social; o problema está no indivíduo e não nas
relações que constroem os valores e a dinâmica social. Para Iamamoto,
“a questão social é indissociável do processo de acumulação e dos efeitos que produz sobre o conjunto das classes trabalhadoras, o que se encontra na base da exigência de políticas sociais públicas. Ela é tributária das formas assumidas pelo trabalho e pelo Estado na sociedade burguesa e não fenômeno recente, típico do trânsito do padrão de acumulação no esgotamento dos 30 anos gloriosos da expansão capitalista.” (2001:11)
Com o advento do neoliberalismo, há o agravamento da questão social. Os
princípios constitucionais, em virtude da política econômica e social adotada, deixam de
ser objetos de intervenção direta do Estado, principalmente no que se refere às
24
políticas de seguridade social. As políticas sociais implementadas para o
enfrentamento das mazelas sociais permanecem com traços clientelísticos e focalistas
contribuindo para a permanência da “cultura de favores”, que ainda perpassa o ideário
da população brasileira. Ao passo que o Estado opta pela manutenção dos interesses
capitalistas, deixa de cumprir com suas funções e contribui para a criminalização da
miséria.
O desenvolvimento do capitalismo e, conseqüentemente, as transformações
ocorridas no mundo do trabalho geraram mudanças de caráter econômico, social e
político na sociedade; afetando drasticamente a vida da classe trabalhadora no que diz
respeito a efetivação de direitos.
O contexto atual é marcado pelos ajustes neoliberais que visam à diminuição das
funções estatais em detrimento de um Estado penal e repressor. Nota-se que as
políticas implementadas pelos governantes enfatizam a esfera econômica, com a
finalidade de potencializar o padrão de acumulação capitalista e as condições para sua
reprodução. Logo, o cidadão é visto como consumidor e as políticas sociais acabam
assumindo duas funções: social – pode ter função redistributiva de renda na sociedade,
funcionando como complemento ao salário do trabalhador; econômica – constituindo-se
como instrumento para baratear a força de trabalho, permitindo que os trabalhadores se
reproduzam de modo que a acumulação se dê a partir da força da classe trabalhadora.
(Pastorini, 1997).
Antunes, ao discorrer sobre os modelos de produção, afirma que atualmente:
“vivem se formas transitórias de produção, cujos desdobramentos são também agudos, no que diz respeito aos direitos do trabalho. Estes são desregulamentados, são flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessário para adequar-se a sua nova fase. Direitos e conquistas históricas dos trabalhadores são substituídos e eliminados do mundo da produção. (1999: 16)
25
O resultado das desigualdades sociais, que penalizam as camadas populares
também, se expressa no perfil da população carcerária brasileira. O sistema carcerário
do país é um reflexo das contradições produzidas pela própria sociedade que fortalece
a lógica excludente de um modelo econômico que marginaliza e criminaliza imensas
parcelas da população.
É possível notar que as prisões tornaram-se locais de neutralização e
esquecimento dos detentos; portanto, sem qualquer perspectiva de oferecer a esses
indivíduos uma alternativa para retornarem à sociedade. Neste sentido, o discurso da
“ressocialização” revela-se uma falácia. A sociedade não é harmônica e seus
problemas fundamentam-se nas contradições da sociedade capitalista, que, em
detrimento da apropriação privada da riqueza produzida pelo trabalho coletivo,
aprofunda cada vez mais as desigualdades sociais entre as classes.
Para Wacquant, os efeitos do encarceramento sobre as populações e os
espaços mais diretamente colocados sob tutela penal são:
“estigmatização, interrupção de estratégias escolares, profissionais, matrimônios e desestabilização das famílias, amputação das redes sociais, enraizamento em bairros marginalizados, onde o encarceramento se banaliza como uma “cultura de resistência ou mesmo de desafio à autoridade, e todo o cortejo de patologias, sofrimento e violências (inter) pessoais comumente associados à passagem pela instituição carcerária”. (2003:12)
Neste sentido, é possível perceber a reprodução social da desigualdade pelo
sistema punitivo brasileiro; uma vez que os fenômenos sociais são enfrentados a partir
de um viés coercitivo, tendo como objetivo a eliminação e contenção dos pobres.
Com as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, houve uma reestruturação de
formas de produção e reprodução das mercadorias e conseqüentemente da vida social.
Essa reorganização do capitalismo gerou uma situação de incerteza para os
26
trabalhadores, que passaram a vivenciar as reduções de empregos e o aumento dos
trabalhos informais. O cenário atual é de prevalência do mercado em detrimento da
minimização das funções estatais; há um processo de migração da população para
outros setores da economia, principalmente o terciário (que encobre uma série de
trabalhos informais, originando-se o subemprego).
A massa carcerária constitui uma parte significativa da população que não teve
acesso ao emprego por meio de qualificação adequada para sua inserção no mercado
de trabalho.
Embora alguns autores afirmem que a o trabalho não é um fator importante para
análise das desigualdades sociais na contemporaneidade, ele se constitui em um
elemento fundamental para a garantia das condições de vida de todos os indivíduos.
O Sistema de Proteção Social Brasileiro, baseado na idéia do seguro, tem
implícito o conceito de cidadania regulada (Santos, 1984), ou seja, o acesso aos
direitos encontra-se atrelado ao vínculo empregatício do trabalhador. Assim, com o
aprofundamento da política neoliberal no país, reduzem-se cada vez mais os postos de
trabalho formais e precarizam-se as relações contratuais existentes; não há
investimentos em infra-estrutura para que o operariado tenha acesso às Políticas de
Educação, Saúde, Habitação, Assistência etc..., condições básicas para a garantia de
um mínimo de sobrevivência e uma inserção mais qualificada no mercado de trabalho.
“No Brasil, revela-se um quadro em que tanto o Estado Social como o Estado Legal são fracos, pois incapazes de universalizar, de fato, os direitos sociais e os direitos civis. A garantia desses direitos permanece restrita a uma minoria, de modo que as amplas parcelas da população restam um Estado precário e repressor. É para as camadas sociais mais pobres, desprovidas dos direitos sociais, que se apresentam tanto os maiores riscos da criminalidade como a face repressora ou mesmo ilegal do Estado”.(NEME, 2005:15)
27
Desta maneira, tem-se progressivamente um aumento significativo de indivíduos
encarcerados, uma vez que estes não apresentam condições de proverem suas vidas e
não possuem apoio estatal para a garantia de um sistema de proteção social que possa
ampará-los diante das incertezas postas pelo mercado de trabalho. O encarceramento
em massa revela que as medidas adotadas pelo Estado possuem um público
direcionado, que quando privado de sua liberdade, tem seus laços sociais
enfraquecidos; dificultando assim a retomada das relações sociais, quando estiver em
liberdade.
1.1 - Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro
O sistema penitenciário do Rio de Janeiro encontra-se regulamentado pelo
Decreto 8.897 (RPERJ), instituído em 31 de março de 1986. Este decreto objetiva
complementar a Lei de Execuções Penais (1984), especificando as competências e os
procedimentos a serem adotados pelos diversos profissionais que atuam no sistema
penitenciário do Rio de Janeiro.
Este regulamento trouxe medidas significativas para a vida dos presos, uma vez
que no âmbito da assistência objetiva “a preservação da condição de ser humano do
detento tanto quanto prevenir o crime, além de orientar o retorno do interno à
convivência em sociedade, buscando proporcionar aos presos, assistência material, à
saúde, à defesa legal, educacional, de serviço social e religiosa, estendendo-se a
referida assistência aos egressos e aos filhos das presas no estado”.
Em 2002, o sistema prisional do Rio de Janeiro esteve vinculado à Secretaria de
Justiça, até então extinta; transformando-se na Secretaria de Direitos Humanos e
28
Sistema Penitenciário, no governo de Antony Garotinho. Passado este período, durante
o mandato de Benedita da Silva, o sistema carcerário retornou ao comando da
Secretaria de Justiça. Em 2003, a então governadora Rosinha Garotinho, através do
Decreto 32.621 de 1º de janeiro do referido ano, instituiu a Secretaria de Administração
Penitenciária (SEAP/RJ)7, com o objetivo de dar um tratamento individualizado e
específico ao sistema penitenciário do Rio de Janeiro.
A SEAP encontra-se organizada através de três Subsecretarias Adjuntas:
Unidades Prisionais8, Infra-Estrutura e Tratamento Penitenciário, além de uma
Subsecretaria Geral de Administração Penitenciária. Tem ainda três Coordenações de
Unidades Prisionais: Gericinó, Frei Caneca e isoladas; Niterói e interior, com o objetivo
de dar assistência mais personalizada às direções dos presídios. São órgãos da SEAP:
Fundação Santa Cabrini (FSC), o Conselho Penitenciário (CONPE) e o Fundo Especial
Penitenciário (FUESP).
Apesar de toda uma estrutura voltada para a questão da individualização da pena
dos presos, bem como da tentativa das melhorias das condições de vida dos apenados
nas unidades prisionais, o sistema carcerário do estado do Rio de Janeiro apresenta
contradições quanto aos objetivos da política de encarceramento e os resultados
obtidos atualmente.
Existe uma separação entre o tratamento penal e a segurança penitenciária,
ambas orientam-se por perspectivas diferenciadas; predominando sobre o sistema
penal o pensamento dos agentes de segurança. A lógica da punição permanece sob a
ótica positivista, onde os indivíduos serão “reinseridos” na sociedade através da
7 www.seap.rj.gov.br 8
29
perspectiva da “ressocialização”, onde os apenados, dentro das prisões, adquiririam
novos hábitos para tornarem-se “bons cidadãos”, ou seja, é a realização de uma
metodologia de trabalho que tem como referencial um modelo de sociedade em que
não há contradições, as relações sociais são harmônicas e, portanto os indivíduos
devem se adequar à mesma; pois os fatores que ocasionaram a perda da liberdade
estão estritamente vinculados à subjetividade dos apenados.
Desde o seu nascimento, início do século XIX, a penalidade estabelecida
constituiu-se na manutenção do controle dos indivíduos, “de maneira cada vez mais
insistente, tem em vista menos a defesa geral da sociedade que o controle e a reforma
psicológica e moral das atitudes e dos comportamentos dos indivíduos” (FOUCALT,
1977: 67).
Neste período, o controle dos indivíduos não se restringirá apenas ao poder do
judiciário; várias instituições lhe darão suporte para o acompanhamento da execução
da pena dos presos:
“uma gigantesca série de instituições que vão enquadrar os indivíduos ao longo de sua existência; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas e psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia, etc. Toda essa rede de um poder que não judiciário deve desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infrações dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades” (idem, 1974:68).
O sistema penitenciário apresenta novos mecanismos para aplicação da punição.
Se antes, no nascimento das prisões o corpo era o alvo de práticas violentas e estas
eram demonstradas publicamente, na atualidade, os presos continuam sendo
submetidos à praticas de tortura, que englobam violência física e psicológica e estas
não são publicizadas regularmente, uma vez que não há interesse em divulgar a
realidade destas instituições. As condições degradantes a que são submetidos;
contribuem para o fomento de rebeliões, bem como para dificultar o retorno dos presos
30
à vida em liberdade. Apesar dos avanços constitucionais e do surgimento de
alternativas para o cumprimento da pena e a prevenção do crime, as taxas de
encarceramento da população brasileira continua apresentando cada vez mais acirrada.
A situação dos apenados não se diferencia totalmente dos presos de regimes
passados, ao contrário: os modelos de prisões contemporâneos apresentam uma nova
“roupagem”, mas atuam de modo a assegurar que estes indivíduos permaneçam sob
vigilância a todo o momento; uma série de elementos coercitivos são implementados
para o controle da subjetividade de cada um dos internos. Durante o período de
encarceramento, estes perdem a sua individualidade uma vez que suas singularidades
são expostas a situações vexatórias cotidianamente.
Se antes existia o Panopticon9 “uma forma de arquitetura que permite um tipo de
poder do espírito sobre o espírito” (idem,1977:69); para o controle dos indivíduos, hoje,
a sociedade capitalista através dessas mesmas instituições exercem um poder sobre os
indivíduos que, através de determinados comportamentos e infrações a normas
estabelecidas socialmente, os levam a legitimação e reprodução da ordem. O controle
também se dá através da esfera privada dos cidadãos, o ideário dominante é propício à
perpetuação de uma ideologia que culpabiliza os indivíduos pela sua condição.
Com o advento da sociedade industrial as formas de punição deixam de ter como
foco central a função de disciplinar e reeducar os apenados; têm como finalidade
adequar os indivíduos às novas formas de produção da sociedade capitalista.
9 O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas havia segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura. Na torre havia um vigilante. Como cada cela dava para o interior e exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de venezianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver tudo, sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. (FOUCALT: 1974: 68,69)
31
Foucault sustenta que a prisão vai muito além da simples detenção, ela pretende
disciplinar o indivíduo e torná-lo dócil. Pois, “é dócil um corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (1977:126)
Os mecanismos de disciplinamento dos cárceres, as formas de regulação do
cotidiano prisional, servem para moldar o comportamento dos aprisionados numa
perspectiva preventiva e educativa, mas que são sobrepostas pela lógica da punição.
Melossi (2005) ao discutir a vinculação entre cárcere e trabalho descreve como a
casa de trabalho foi uma estratégia anterior ao cárcere, de subordinação das classes
subalternas ao desenvolvimento do sistema capitalista: a casa de trabalho – “um
protocárcere” que seria depois tomado como modelo da forma moderna do cárcere no
período iluminista, isto é quando ocorreu a verdadeira “invenção da penitenciária” não
parecia ser outra coisa senão uma instituição de adestramento forçado das massas ao
de modo de produção capitalista, afinal, para elas, esse modo de produção era uma
absoluta novidade ( e nesse sentido, a casa de trabalho era uma instituição subalterna
à fábrica).
“Neste sentido, torna-se indispensável considerar tanto a dimensão instrumental quanto a dimensão simbólica da instituição carcerária. A dimensão instrumental nos permite iluminar as origens da penitenciária e as funções econômicas imediatas que ela assumia, sendo a principal delas a produção de uma força de trabalho disciplinada e disponível à valorização capitalista. A dimensão simbólica, por sua vez permite-nos explicar o motivo do sucesso histórico aparente da instituição carcerária. O cárcere representa a materialização de um modelo ideal de sociedade capitalista industrial, um modelo que consolida através do processo de desconstrução e reconstrução contínua dos indivíduos no interior da instituição penitenciária”. (GIORGI, 2006:45).
Deste modo, tem-se na contemporaneidade a produção de formas de
estigmatização e criminalização dos indivíduos que não têm acesso ao trabalho, a
punição continua sendo focalizada aos segmentos populares da sociedade, naqueles
que vivem em situação de pobreza. A política de controle implementada pelo Estado
32
contribui para o aumento das desigualdades sociais restando aos indivíduos que não
usufruem os direitos sociais a adoção de medidas alternativas para a garantia de sua
sobrevivência. “A força de trabalho excedente, desempregada, se vê obrigada a
garantir a sua existência através de artifícios e de estratégias de sobrevivência que vão
do biscate ao crime. É a utilização de meios legítimos de sobrevivência. (DORNELLES,
1992:57).
Garland apropriando-se do pensamento de Michel Wieviorka (1997), a partir da
década de 60, ocorre em nível mundial um novo paradigma da violência. Este novo
paradigma origina-se das transformações sociais, políticas e econômicas; emergindo
desde então novas formas de controle social e punição. O surgimento de novas formas
de controle produzem novas relações sociais,
“mais do que uma mudança circunscrita às práticas e percepções acerca do crime e da criminalidade, ou das formas de controle social e de punição, estaria ocorrendo na atualidade uma transformação mais geral da violência e de suas representações no mundo contemporâneo (pág. 08)”
Esse novo reordenamento alterou as formas de punição e o tratamento destinado
à criminalidade. Ocorreram modificações nas práticas penais e nas políticas de
segurança; pois as estratégias de manutenção da ordem atentam-se para o
crescimento da insegurança e do medo presente na sociedade. As políticas formuladas
pelo Estado tentam responder de maneira eficaz aos anseios da população diante dos
elevados índices de criminalidade transmitidos constantemente pelos meios de
comunicação.
O sistema carcerário brasileiro apresenta particularidades, quanto às práticas de
violência incorporadas ao cotidiano das prisões. Wacquant (2001) demonstra alguns
elementos importantes que contribuem para as formas de punição adotadas pelo Brasil.
33
Chama atenção, conforme já foi mencionado, para posição subordinada do país na
estrutura das relações econômicas internacionais, acarretando disparidades sociais
vertiginosas e a pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento
inexorável da violência criminal. Afirma também o uso rotineiro da violência letal pela
policia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil, as execuções
sumárias e os desaparecimentos inexplicados geram um clima de terror entre as
classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado;
sinaliza que no Brasil existe um recorte de classe, sendo a discriminação baseada na
cor um elemento fundamental para aplicação da violência pelos aparelhos policial e
judiciário; e por fim, menciona o estado das prisões, utilizados para o controle dos
distúrbios urbanos; por meio de uma associação entre as prisões brasileiras e os
campos de concentração, como empresas públicas de depósito industrial dos dejetos
sociais.
Assim, as prisões são utilizadas para conter um público que não se enquadra ao
modelo de sociedade vigente, é um instrumento,
‘‘ (...) para limpar as escorias das transformações econômicas em curso e retirar do espaço público o refugo da sociedade de mercado – os pequenos delinqüentes ocasionais, os desempregados e os indigentes, os sem teto, os sem documentos, os toxicômanos, os deficientes e doentes mentais deixados de lado por incúria de proteção sanitária e social. (DAMER PEREIRA apud Wacquant, 2004:217)
As relações estabelecidas nestes espaços revelam a fragilidade de uma política
penitenciária que gera cada vez mais o distanciamento entre o plano formal e a
efetivação de direitos dos apenados. Diariamente, os presos convivem com uma série
de violações de direitos que incidem brutalmente em suas vidas, principalmente no
tocante aos seus projetos de liberdades. Os presos não têm a possibilidade de projetar
suas vidas extramuros, porque não se viabilizam condições para que possam obter
34
meios para garantia de sua sobrevivência e de seus familiares. Muitos reincidem
porque encontram uma realidade bastante complexa quando saem em liberdade.
Mesmo com o apoio dos familiares são numerosos os efeitos produzidos pelas prisões,
que dificultam principalmente o acesso ao mercado formal de trabalho.
A violência no interior das instituições penais é resultado de vários aspectos que,
combinados, contribuem para a banalização das condições de vida da população
carcerária.
Salla (2001) afirma, que ao longo das décadas de 1980 e 1990, a violência nas
prisões brasileiras tem sido resultado de um conjunto bastante conhecido de aspectos:
a deterioração das condições físicas dos locais de encarceramento, a superlotação, a
falta de condições de higiene, a inexistência de serviços de assistência à saúde, a falta
de assistência judiciária, a corrupção e a incompetência administrativa, além da
constância na prática de tortura.
Geralmente, os elementos acima descritos são alvos de reivindicações dos presos
durante rebeliões. Estas, quando ocorrem, consistem em estratégias de resistência às
formas de convivência no interior das prisões.
Nas unidades prisionais do Rio de Janeiro, os apenados têm muitas dificuldades
quanto ao acesso aos serviços oferecidos pela instituição. A área técnica, composta por
profissões como, Serviço Social, Psicologia, Psiquiatria, Educação, dentre outras, é um
espaço, ainda que com um viés de manutenção e coesão, que propicia melhores
condições de vida a estes indivíduos, oferecendo orientações e realizando atividades
que garantam seus direitos, tais como: assistência social, psicológica, educacional,
visando à garantia de um apoio durante a execução da pena. Porém, verifica-se que há
35
alguns obstáculos por parte dos agentes de segurança para que estes setores
desenvolvam seus respectivos trabalhos.
Muitos desses impedimentos estão estritamente ligados à questão da segurança;
a movimentação de presos parece causar uma certa fragilidade no interior dos
presídios, impossibilitando a realização de trabalhos que venham a contribuir com o
desenvolvimento das potencialidades dos apenados. Assim, as práticas que têm como
propósito a promoção da cidadania dos internos não têm tanta relevância em relação às
atividades desenvolvidas pela segurança, que objetivam apenas a manutenção da
ordem e da segurança penitenciária.
Dhamer Pereira (2006) assinala que o cotidiano da vida prisional assemelha-se ao
jogo de “cabo de guerra” numa ponta estão os inspetores penitenciários, com sua
atenção voltada para as ações de manutenção da ordem; na outra ponta do jogo os
profissionais da assistência. Os dois grupos se queixam mutuamente e cada um dos
lados acusa o outro de colocar empecilhos à realização de seus trabalhos.
Trata-se de perspectivas diferenciadas de trabalho, pois o processo de formação
desses profissionais abrangem questões que não se articulam no interior das Unidades
Prisionais. Ambas as partes estão sempre reivindicando em torno de condições
propícias para o desenvolvimento de suas atividades, pois:
“as contradições advindas dos objetivos divergentes perseguidos tanto por inspetores quanto por técnicos podem ser simplificadas como no jogo cabo de guerra mencionado. Todos os envolvidos na administração da custódia de presos convivem com este conflito, intrínseco à pena privativa de liberdade e às medidas de segurança; jamais haverá vencidos e vencedores. (pág. 185)
As formas punitivas existentes na sociedade brasileira fundamentam-se em uma
perspectiva de criminalização da pobreza, as classes subalternas – público alvo das
prisões são discriminadas pelas condições sócio-econômicas em que vivem.
36
A face punitiva das ações realizadas no sistema penitenciário do Rio de Janeiro
“produz não só a relação de desigualdade, mas os próprios sujeitos passivos desta
relação” (Baratta, 2002:166).
“a função do cárcere na produção de indivíduos desiguais (...) recrutando-os principalmente das zonas mais depauperadas da sociedade, um setor de marginalizados sociais particularmente qualificado para intervenção estigmatizante do sistema punitivo do Estado e para a realização daqueles processos que, a nível da interação social e da opinião pública, são ativados pela pena e contribuem para realizar o seu efeito marginalizador e atomizante. (Idem, pág. 167).
Dados do Infopen10 revelam que, em 2007, o quantitativo da população carcerária
do estado do Rio de Janeiro, incluindo homens e mulheres, era de 22.851 reclusos.
Estes distribuídos de acordo com seus respectivos regimes e situações: Presos
Provisórios, Regime Fechado, Semi-Aberto, Regime Aberto, Medida de Segurança-
Internação, Medida de Segurança-Tratamento ambulatorial.
Em relação à quantidade de presos por Grau de Instrução tem-se: Analfabetos:
4.069, Alfabetizados: 511, Ensino Fundamental Incompleto: 13.849, Ensino
Fundamental Completo: 2.514, Ensino Médio Incompleto: 801, Ensino Médio Completo:
913, Ensino Superior Incompleto:118, Ensino Superior Completo: 74, Ensino acima de
Superior Completo:02.
Ilustração 1
10 Inteligência Penitenciária Nacional do Depen.
37
GRAU DE INSTRUÇÃO - POPULAÇÃO CARCERÁRIA DO RIO DE JANEIRO
18%
2%
60%
11%
4%
4%
1%
0%
0%
Analfabetos
Alfabetizados
Ensino FundamentalIncompletoEnsino FundamentalCompletoEnsino MédioIncompletoEnsino Médio Completo
Ensino SuperiorIncompletoEnsino SuperiorCompletoEnsino acima deSuperior Completo
Da população carcerária 80% possui nível de escolaridade baixo, refletindo a
situação de pobreza que estes indivíduos vivenciam cotidianamente; em conseqüência
da precariedade das condições de vida e das relações de trabalho. Muitos apenados
nunca obtiveram vínculo empregatício durante a vida profissional; estiveram sempre
vinculados ao mercado informal de trabalho desenvolvendo atividades laborativas sem
nenhum tipo de proteção por parte do Estado.
A ausência de proteção social é resultado de uma política que aprofunda as
desigualdades sociais,
“a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades.” (WACQUANT, 2001:08)
O mesmo autor sinaliza dentre outros fatores que,
“o recorte de hierarquia de classes e de estratificação etnorracional e a discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias policial e judiciária (...) os indiciados de cor se beneficiam de uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldades de acesso a ajuda jurídica e por um crime igual,
38
são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. E, uma vez atrás das grades, são ainda submetidos às condições de detenção mais duras e sofrem violências mais graves. Penalizar a miséria significa aqui tornar invisível o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado” (idem, págs. 09 e10).
Ilustração 2
Quantidade de Presos por Cor de Pele/Etnia
31%
25%
43%
0%
1%
Branca
Negra
Parda
Amarela
Outros
No sistema penitenciário do Rio de Janeiro, o total de negros e pardos
corresponde a 15.572 do total de 22.851 internos (as). Este dado representa os
destinatários da política de encarceramento se localizam nas classes populares, pois
este segmento da sociedade é composto de indivíduos que apresentam maiores
dificuldades para terem seus direitos garantidos. Geralmente são aqueles que se
inserem precariamente no mercado formal de trabalho, possuem baixa escolaridade, a
base salarial gira em torno de um salário mínimo, sem contar com as pessoas inseridas
no mercado informal, que sobrevivem de uma renda que nem sempre é suficiente para
sobrevivência familiar e são completamente desprotegidos em relação aos direitos, uma
vez que a seguridade social organiza-se através do seguro social, dificultando o acesso
aos direitos, tendo um de seus princípios “seletividade e distributividade na prestação
dos benefícios e serviços”, ou seja, a situação de vínculo empregatício define quem terá
acesso aos benefícios e serviços previstos em lei.
39
No sistema carcerário do Rio de Janeiro, bem como do restante do país há a
ausência de uma padronização da política penitenciária orienta e organiza as ações
neste campo de intervenção, que não se constitui como área privilegiada para o Estado.
Não existe investimento porque “o sistema prisional apresenta-se como funcional à
economia capitalista, tal como a criminalidade, já que contribuem decisivamente para o
mercado da segurança pública” (DHAMER PEREIRA, 2006:342). As modificações
neste poder instituído implicariam mudanças nas relações sociais presentes no
cotidiano e conseqüentemente no entendimento de que o modelo de encarceramento
não é a única via para os problemas sociais.
A compreensão de que o aumento da violência e dos índices de criminalidade
estão vinculados à decisões de cunho econômico e político, que incidem nas condições
de vida dos indivíduos, é de fundamental importância para que se pense em políticas
sociais universais, de caráter preventivo de modo a auxiliar a população no provimento
de suas necessidades básicas.
As políticas sociais aplicadas pelo poder público são pontuais, não se efetivam
concretamente em relação às demandas sociais apresentadas pela população. Desta
forma acabam por fragilizar a vida daqueles que necessitam dos serviços oferecidos,
uma vez que não são idealizadas sob o princípio de universalidade de atendimento,
existe um público específico que acessa as ações realizadas pelo poder público. À
medida que estes serviços (saúde, educação, assistência,...) são débeis e fragilizados
não respondem às expectativas dos indivíduos deixando-os em condição de
vulnerabilidade social.
As políticas sociais existentes no cárcere, também são bastante ineficientes; pois
não há uma articulação entre as mesmas. A ausência de uma política específica para o
40
sistema penal colabora para a inexistência de uma interlocução entre as demais
políticas: saúde, assistência, educação, entre as diversas áreas que se ocupam do
“tratamento” e também das questões pertinentes à segurança e ao cumprimento da
pena.
Todos os problemas apontados contribuem para permanência de práticas
violentas que se traduzem no descontentamento dos apenados, bem como dos agentes
de segurança que exercem suas funções em condições precárias e insalubres.
As rebeliões, comumente associadas à reivindicações dos presos por melhorias
nas unidades prisionais, são apropriadas pela mídia de forma sensacionalista,
transmitindo à sociedade que a violência existente nestes espaços origina-se da
insubordinação dos presos às medidas adotadas pela administração dos presídios em
relação às regras de condutas emanadas para segurança e o funcionamento destas
instituições. São escassos os noticiários que fazem observações sobre a realidade dos
espaços prisionais e do público que neles encontram-se privados de sua liberdade.
Garland (1997), que faz uma associação entre as falhas do sistema penal e a
questão da violência, afirma que:
“há uma tensão inerente às sociedades ocidentais, uma vez que estas lidam com a punição de forma racional e por meio de um desejo coletivo moral e apaixonado de punir aqueles que violam as regras sociais. A tentativa de prevenir o crime por meio de leis e de um sistema carcerário convive com o desejo de vingança. O sistema jurídico-penal, portanto, é capaz de oferecer melhores oportunidades de escolha para uma vida sem crimes, mas também opera no sentido de satisfazer vontades coletivas’.
Neste sentido, a lógica da punição relaciona-se muito mais ao desejo de punir
aqueles que violaram as regras impostas por um modo de pensar dominante, do que
oferecer um sistema que busque respeitar os direitos destas pessoas e que
conseqüentemente garanta o mínimo necessário para que os apenados tenham
41
condições de cumprirem sua pena e obterem acesso a políticas que lhe dêem suporte
quando estiverem em liberdade.
42
Capítulo II: A Execução Privativa da Pena e a banalização da violência
no interior das prisões.
Existe um grande distanciamento entre a esfera legal e as práticas realizadas nas
prisões. Com base em alguns instrumentos legais referentes ao sistema penitenciário
buscou-se identificar a banalização da violência por parte do Estado; uma vez que este
viola cotidianamente os direitos da população carcerária, apesar da existência de
mecanismos legais que dispõem sobre o tratamento penal destinados aos presos.
A vida da população brasileira tem sido marcada por numerosas situações de
violência. Atualmente, os meios de comunicação têm veiculado uma série de notícias
relacionadas ao aumento da criminalidade e da insegurança nas grandes cidades e é
possível verificar que há uma necessidade de convencimento da população em relação
ao endurecimento das penas, como se o encarceramento daqueles que cometem
delitos fosse a solução para a redução dos elevados índices de violência na sociedade.
A realidade das prisões brasileiras revela de forma concreta as condições de vida
dos apenados (celas superlotadas, instalações degradadas, doenças, ociosidade,
injustiça). Estes fatores são condicionantes para o surgimento de motins e rebeliões.
Sobre as condições degradantes dos presídios, Rolim (2007) cita um trecho do
Relatório Anual (2002) do Centro Internacional para Estudos Penitenciários:
“O conceito tradicional de prisão, pelo menos nos países ocidentais, é de um lugar onde o ofensor é enviado como castigo, e não para ser castigado. O que implica que o castigo consiste na privação de liberdade e não se estende à forma na qual as pessoas aí são tratadas (...). Cada vez mais, aumenta o número de instâncias nas quais as condições em que os presos são mantidos dá a impressão que eles foram enviados para a prisão para serem castigados. Isto provavelmente depende dos recursos da administração da prisão para mantê-las em boas condições de detenção (...). Em muitos casos as condições repressivas são impostas nos presídios de modo intencional, como uma forma
43
de administração executiva e conveniente para lidar com os presos que apresentam risco de fuga ou rebelião. Também porque acreditam que determinado grupo de presos merece tal tratamento devido às ofensas pelas quais foram presos ou condenados”. (pág. 83).
O mesmo autor, em linhas gerais, apresenta as principais avaliações críticas
produzidas no Brasil sobre o sistema penitenciário, estas demonstram o
posicionamento do Estado quanto às estratégias adotadas para a contenção da
criminalidade.
1. “O sistema de Justiça Criminal no Brasil tem privilegiado as condenações às penas privativas de liberdade. Ao longo dos últimos anos, tais condições têm sido empregadas com muito maior freqüência pelo Poder Judiciário cuja tendência mais representativa parece apontar – na maior parte dos estados, pelos menos – para um endurecimento da execução penal e para a prolatação de sentenças mais longas”.
Nota-se que há um aparato judicial e policial que privilegia o encarceramento dos
indivíduos, ao invés da aplicação de penas alternativas em relação ao delito cometido.
O Estado utiliza a força e a militarização “para conter a insegurança física cujo vetor é a
criminalidade de rua e a insegurança social gerada em toda parte pela dessocialização
do trabalho assalariado, o recuo das proteções coletivas e a mercantilização das
relações humanas”. (Wacquant, 2001:13).
2. “Independentemente do fenômeno objetivo de avanço da criminalidade e do aumento da violência produziu-se no Brasil uma avassaladora sensação de insegurança que parece moldar cada vez mais o comportamento e as expectativas disseminadas socialmente. Concorre para esse fenômeno, o destaque desproporcional e muita das vezes sensacionalista oferecido pela mídia aos temas da violência e da criminalidade, o que contribui, também, para que toda a discussão pública a respeito da segurança seja constrangida por uma forte dose de emocionalismo e preconceitos”.
A mídia tem um papel fundamental quanto à formação da opinião pública em
relação aos problemas sociais, econômicos e políticos da sociedade. Quando faz
referência ao aumento da violência e da criminalidade, constrói no imaginário social a
idéia de medidas repressivas como única alternativa contra autores de delitos,
44
desconsiderando a historicidade de vida destes indivíduos e as contradições existentes
na sociedade.
3. ”Do ponto de vista político, este mesmo clima passa a alimentar iniciativas de cunho demagógico – seja no âmbito administrativo, seja no âmbito legislativo - e reforça um discurso retrógrado do tipo “lei e ordem” e/ou “tolerância zero” não raras vezes proponentes da violência hostil a qualquer princípio humanista”.
O discurso demagógico da punição surge como uma alternativa única frente a
violência que assola o país, para o Estado a militarização da vida social é a solução
para os problemas sociais.
Nestas circunstâncias, verifica-se que a organização do sistema de justiça criminal
no Brasil, “revela a função coercitiva do Estado e demonstra que a justiça se torna mais
rígida e passa a punir associada a um aparelho policial mais vigilante” (DAHMER
PEREIRA, 2006:67), não oferece estrutura para o cumprimento das penas, e sua
finalidade concentra-se apenas no aspecto punitivo e no controle dos indivíduos nas
prisões.
Zaffaroni afirma que:
“O poder punitivo é seletivo por natureza; não existe no mundo um sistema penal que não seja seletivo. É um dado estrutural, não acidental. Por causa disso, o que pode e deve fazer um sistema penal (e o direito penal como contra – poder de contenção) é procurar diminuir o grau da seletividade. Para isso não é solução reprimir ainda mais algumas camadas sociais, ou seja, impor maior repressão, mas diminuir o peso da repressão geral. (...) Não temos um modelo ideal no mundo. Pensar no melhor sistema penal é perguntar pela melhor guerra. Temos sistemas penais mais ou menos violentos, mais ou menos corruptos, mais ou menos seletivos, mas ideais, nenhum. (2007:135)
Rolim (2007) sinaliza alguns dos principais problemas das instituições penais
brasileiras, que contribuem para a banalização da violência e o desrespeito aos direitos
dos presos durante o cumprimento das penas privativas de liberdade:
45
1. Inexistência de um processo de individualização das penas, condicionada, em larga medida, pela circunstância objetiva da superlotação das casas prisionais.
2. Ausência de procedimentos padronizados de administração prisional, tratamento dos presos e o gerenciamento de crises.
3. Inexistência de garantias mínimas e exposição sistemática dos condenados às mais variadas possibilidades de violência por parte dos demais presos e por parte de funcionários do sistema.
4. Regimes disciplinares rigorosos e ineficientes que agravam arbitrariamente a execução penal e promovem tensionamentos desnecessários nas instituições.
5. Tratamento inadequado e normalmente ilegal e abusivo na revista de familiares de apenados quando das visitas às instituições.
O conhecimento sobre o cotidiano dos apenados ocorre em momentos extremos,
não se discute os problemas referentes ao sistema penitenciário e não há um
entendimento de que as contradições existentes dentro destes espaços originam-se
das desigualdades existentes na sociedade.
A persistência de violações de direitos nas prisões é resultado do estigma sofrido
por este segmento pelos próprios agentes do Estado e também pela população que
reage de forma bastante incisiva quanto às medidas a serem adotadas durante o
período privação de liberdade destes indivíduos. É comum a associação dos direitos
humanos a direitos de bandidos, essa simples relação retira o caráter histórico das
conquistas democráticas, resultado de lutas sociais da humanidade e exclui também o
caráter universal desses direitos; uma vez que no senso comum estes são restringidos
à população carcerária.
A falta de conhecimento da vida intramuros por parte da população e a ausência
de vontade política dos governantes para tornar efetivas as prescrições das leis, gera
esse distanciamento entre a esfera legal e as garantias previstas aos apenados, pois
46
em nome da ordem e da segurança legitimam-se práticas que não condizem com os
instrumentos legais que visam o bem estar de todos os indivíduos.
As prisões destinam-se aos que ficaram à margem do desenvolvimento econômico
produzido na sociedade capitalista. O acúmulo de riquezas concentrado nas mãos de
uma minoria da população expressa as disparidades sociais existentes entre a classe
trabalhadora e a classe dominante.
As desigualdades sociais são inerentes a este modelo de sociedade, portanto, o
acesso aos direitos se constitui em uma dificuldade para determinados segmentos da
população.
Nesta perspectiva, Coutinho (1997:159) assinala que “a divisão da sociedade em
classes constitui um limite intransponível à afirmação conseqüente da democracia” (...).
Ao discutir o conceito de cidadania, afirma que no modelo de produção capitalista
a mesma não se realiza. Para Coutinho, em uma democracia efetiva, todos os
indivíduos se apropriam da riqueza socialmente produzida.
Apesar da existência de um Estado de Direito no país, a democracia brasileira,
ainda é bastante deficitária, a universalidade dos direitos não atinge a totalidade da
população. Constata-se que a classe trabalhadora tem sido submetida a situações
extremas de exploração, ficando assim a vulnerável a condição de pobreza e miséria.
Os direitos sociais são paulatinamente desmontados e as políticas sociais,
implementadas através de lutas sociais não ampliam os direitos deste segmento,
constituindo-se em instrumentos focais e assistencialistas; que não abrangem os
problemas sociais na sua totalidade.
Mészáros (1993) chama atenção para o que Marx afirma ser uma “ilusão jurídica”,
que trata a esfera dos direitos como independente ou auto regulada (pág. 204); ou seja,
47
a realização dos direitos ocorre sem levar em consideração as escolhas dos indivíduos,
ela existe independentemente da vontade humana.
“A objeção principal de Marx diz respeito à contradição fundamental entre os
direitos do homem e a realidade da sociedade capitalista, onde se crê que estes direitos
estejam implementados”. (1993:204)
Nesta sociedade, torna-se insuficiente a garantia de direitos apenas no plano
formal, estes estão voltados apenas para uma minoria ao invés de serem
universalizados para todos os cidadãos.
“Os direitos humanos de liberdade, fraternidade e igualdade são, portanto, problemáticos, de acordo com Marx, não por si próprios, mas em função do contexto em que se originam, enquanto postulados ideais abstratos e irrealizáveis, contrapostos à realidade desconcertante da sociedade de indivíduos egoístas. Ou seja, uma sociedade regida pelas forças desumanas da competição antagônica e do ganho implacável, aliados à concentração de riquezas em número cada vez menor de mãos (1993:207)
Ao trabalhar a questão da propriedade privada sinaliza que “a aplicação da
pretendida igualdade direitos a posse culminou em uma contradição radical, visto que
implicou necessariamente a exclusão de todos os outros da posse efetiva, restrita a um
só indivíduo”.
“Marx rejeita enfaticamente a concepção de que o direito à propriedade privada
(posse exclusiva) constitui a base de todos os direitos humanos” (1993:208). Retira-se
o caráter universal dos direitos humanos, eles passam a serem atribuídos apenas para
aqueles que possuem os meios de produção; tornando-se justificativa para as
desigualdades sociais.
Quanto ao sistema penitenciário, nota-se que o conjunto de instituições que o
organizam transformaram-se em espaços privilegiados para o desrespeito aos direitos
humanos. Os apenados são submetidos a condições de vida lastimáveis devido ao
48
constante descumprimento das leis. Não há nenhuma garantia de que os presos
tenham a possibilidade de cumprirem suas penas em conformidade com o delito
cometido e não há suporte para que o preso possa, gradualmente, dar continuidade a
sua vida quando estiver em liberdade.
Aqueles que se encontram encarcerados buscam através dos familiares e de
algumas instituições – principalmente as religiosas11; o apoio necessário para
conviverem com esta dura realidade, imposta cotidianamente.
Neste sentido, torna-se necessário enfrentamento desta problemática no país, pois
é necessário afirmar os princípios democráticos do Estado de direito, num momento em
que a violação de direitos abrange toda a população brasileira.
Bobbio (1992:25) afirma que “o problema grave do nosso tempo, com relação aos
direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”.
“(...) o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais são e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados”.
DHAMER PEREIRA (2006:133) sinaliza que reafirmar os direitos humanos, no
caso os direitos dos presos e de suas famílias – não é uma dificuldade de ordem
conceitual. São direitos reconhecidos, pelo menos, por parte da humanidade e constam
nas normas internacionais”. Além disso, expressam o interesse maior da humanidade, o
qual deve predominar sobre o interesse particular (MESZÁROS, 1993:214).
A dificuldade em realizá-los está relacionada à falta de compreensão da população
em relação aos direitos dos presos e também decorre da ausência de uma política
11 Geralmente, os presos que não recebem visitas dos familiares buscam o apoio material e emocional junto a entidades religiosas.
49
institucional definida e estruturada em níveis nacionais, que possibilite a configuração
de diretrizes e objetivos para o sistema penitenciário brasileiro.
Meszáros (2006) alerta, contudo para o risco dos direitos humanos se tornarem
um mero discurso ideológico enquanto os interesses de classe prevalecerem e
paralisarem a realização do interesse de todos. E chama atenção ainda para o
significado da expressão do interesse de todos, que numa sociedade como a nossa
pode ser interpretada como os interesses de todos os setores dominantes.
Desta forma, os direitos humanos devem ser entendidos como direitos universais,
portanto viabilizados a todos os indivíduos. Para que sejam efetivados torna-se
necessária modificações na estrutura social visando a garantia de uma sociedade mais
justa e igualitária.
Tendo em vista os aparatos legais de proteção aos direitos humanos, o próximo
item deste trabalho destina-se a análise da implementação desses mecanismos dentro
das prisões.
2.1. Legislações de Proteção aos direitos dos presos e Sistema Prisional
Nesta etapa do trabalho considerou-se importante fazer uma análise de alguns
instrumentos nacionais e internacionais de proteção e respeito aos direitos dos presos.
Para tanto, examinou-se os seguintes dispositivos: A Constituição Federal de 1988, a
Lei de Execuções Penais e as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de
Reclusos.
Esses mecanismos legais expressam com clareza as prerrogativas dos apenados,
mas cotidianamente vêm sendo afrontados pelo Estado dentro das prisões. Portanto,
50
trazê-los para o debate contemporâneo sobre o sistema prisional é de extrema
relevância para sociedade.
A Constituição Federal de 1988 prevê no artigo 5º que “Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e a propriedade”.
Estabelece que: ”III) ninguém será submetido a tortura nem a tratamento
desumano e degradante”(...); “XLVI) a lei regulará a individualização da pena; (...),
“XLVIII) a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a
natureza do delito, a idade e o sexo do apenado; XLIX) é assegurado aos presos o
respeito à integridade física e moral.
A rotina prisional é perpassada por numerosas violações das garantias
constitucionais. Nota-se que a população carcerária possui tratamento desigual em
relação aos demais segmentos da sociedade. O fato de estes indivíduos terem
cometido algum delito, faz com estes sofram processos criminalizantes por condutas
que estão fora dos padrões determinados socialmente.
DHAMER PEREIRA (2006:139) observa que “na legislação, encontramos a
cidadania formal, tal como imaginamos que ”deve ser”. Na verdade, entretanto, um
amplo contingente dos brasileiros, entre eles os presos, é visto como não merecedor de
direitos”.
Não há um entendimento de que os apenados estão apenas cerceados do direito
de ir e vir, do direito ao voto, direitos civis e políticos. Logo, a idéia de que os presos
não são cidadãos é fomentada entre os agentes do Estado – poucos são aqueles que
possuem idéias contrárias a este pensamento, assim, os presos são obrigados a
51
conviverem com uma série de humilhações em decorrência da manutenção de uma
ideologia de castigo.
Nas prisões, os apenados são submetidos a torturas e tratamento desumano, que
se expressam em práticas violentas que incidem profundamente na esfera pública e
privada dessas pessoas. Esse controle social fomentado pelo ideário da cultura
prisional invade a vida dos presos afetando suas relações sociais, e a conseqüência
destes atos é torná-los propensos à reincidência criminal uma vez que não encontram
nesses estabelecimentos oportunidades para a suposta “regeneração”.
Perguntado sobre o sistema penitenciário do Rio de Janeiro, um apenado
verbalizou:
“Falta muito, tem muita coisa faltando para o preso. Porque as condições são muito ruins, falta o essencial: educação, saúde, atenção. Falta muita coisa pra você ressocializar o preso. Só nesta unidade se encontra coisas de estudos, industrial, mas se vai para outra cadeia, vai encontrar só o espaço que tem pra ficar, não tem trabalho, não tem nada”. (Presidiário, 33 anos, recluso há cinco anos e nove meses. Já teve passagem em três unidades prisionais – Bangu VIII, Água Santa e atualmente Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira).
A fala deste interno resume a realidade das prisões brasileiras, não possuem
estrutura adequada para o “tratamento dos presos” apresentando limites para
viabilização de direitos.
O sistema prisional brasileiro está regulamentado pela Lei de Execuções Penais
(Lei 7.210 de 11/07/1984). Esta lei tem como objetivo “efetivar as disposições da
sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração
social do condenado e do internado”. Organiza as práticas existentes no sistema
prisional e estabelece normas a serem cumpridas acerca dos direitos e deveres dos
presos bem como dos funcionários destas instituições.
52
A LEP tem como meta a reintegração dos indivíduos, porém a proposta de
reinserí-los na sociedade de forma harmônica não condiz com a realidade, porque esta
é perpassada de contradições e o seu movimento é dialético.
Formulada sob o ponto de vista da perspectiva etiológica, atribui aos indivíduos a
responsabilidade de adequação as normas sociais estabelecidas, desconsiderando os
problemas sociais, que são fatores condicionantes na vida dos indivíduos aprisionados.
Segundo Torres,
“A LEP determina como deve ser executada e cumprida a pena privativa de liberdade e restrições de direitos. Contempla os conceitos tradicionais da justa reparação, satisfação pelo crime que foi cometido, o caráter social preventivo da pena e a idéia de reabilitação. Dotando os agentes públicos de instrumentos de individualização da execução da pena, aponta deveres, garante direitos, dispõe sobre o trabalho dos reclusos, disciplina e sanções; determina a organização e competência jurisdicional das autoridades; regula a progressão de regimes e as restrições de direito”. (2001:79)
A LEP buscou contemplar os preceitos das Regras Mínimas para o Tratamento
dos Presos (1955), instrumento do Sistema Internacional de Proteção aos Direitos,
normas estas que o Brasil é signatário e prevêem que a execução penal trabalhe em
conformidade e respeito aos direitos humanos. Ao adotar o paradigma do tratamento
incorpora também os direitos e garantias da Constituição Federal de 1988.
Apesar de se constituir em um instrumento de extrema importância para as
práticas existentes no sistema prisional, é comum o descumprimento de suas
prerrogativas.
Iniciamos a análise da – LEP – artigo 5º “Os condenados serão classificados,
segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da
pena”.
53
Verifica-se que o processo de individualizador da pena não tem se concretizado no
sistema prisional. Uma parte dos condenados cumpre pena irregularmente, em locais
não apropriados de acordo com as sentenças que lhes foram proferidas. Existem
muitos presos condenados cumprindo penas em delegacias policiais ou em unidades
prisionais destinadas a presos provisórios. Alguns sem condenação definida
permanecem um longo período de suas vidas nas instituições penais em decorrência
de questões burocráticas relativas ao sistema judiciário.
A divisão de presos por facções é uma particularidade que impõe limites ao
sistema penitenciário brasileiro. Pois, a falta de vagas em estabelecimentos prisionais
específicos dificulta o acesso dos presos a progressões de regimes e
conseqüentemente a outros benefícios que venham colaborar gradualmente com o seu
retorno à liberdade.
O artigo 10º da LEP define que “a assistência ao preso e ao internado é dever do
Estado, objetivando prevenir e orientar o retorno à convivência em sociedade” O artigo
11º especifica a assistência a ser prestada aos presos: I) material; II) à saúde; III)
jurídica; IV) educacional; V) social; VI) religiosa.
Nestes artigos está previsto o trabalho do atendimento técnico (Assistência
Social, Psicológica, Educacional, Jurídica e Saúde), que no geral apesar dos embates
com os setores de segurança, apresentam intervenções em certa medida são
significativas, e apresentam efetividade no atendimento dos presos.
A LEP prevê que a assistência à saúde, será proporcionada ao preso e ao
internado e terá caráter “preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico,
farmacêutico e odontológico” (artigo 14). Nas unidades prisionais, este atendimento é
bastante precarizado; não há medicamentos adequados para os presos enfermos.
54
Alguns convivem com doenças como HIV e Tuberculose, que são agravadas pelas
condições insalubres dos locais em que se encontram alojados. A falta de profissionais
na área da saúde também contribui para a fragilização dos atendimentos nesta área.
De modo geral, estes atendimentos são realizados pelos serviços de saúde pública, e
são muitos precários para a grande maioria da população. Acrescenta-se a este fato as
dificuldades ligadas à segurança prisional que impõe limitações para o deslocamento
dos presos (transferências para hospitais penais ou movimentação interna); tendo-se
assim, nesta área uma grande dificuldade para cumprir os aspectos legais.
“(...) a assistência social, assistência judiciária e assistência à saúde do preso são igualmente problemas crônicos nas prisões brasileiras. A assistência à saúde, no entanto, é a que apresenta maior precariedade. Os serviços internos à prisão são constantemente alvos de críticas dos presos pela ausência de médicos e outros profissionais de saúde, e pela falta de equipamentos essenciais e medicamentos. Presos com necessidades especiais – deficientes físicos, doentes mentais, doentes com problemas crônicos ou graves – não encontram qualquer tipo de atendimento especializado na maior parte das prisões brasileiras”. (SALLA, 2003:427)
Quanto à assistência educacional está previsto no artigo 17 que esta
compreenderá a “instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado”.
São poucos os estabelecimentos prisionais que oferecem qualificação profissional aos
internos, o ensino oferecido pelas escolas não abrange a totalidade da população
carcerária que busca dar continuidade aos estudos. Não há recursos materiais e
humanos suficientes para que o trabalho seja desenvolvido com qualidade. Além disso,
as iniciativas de profissionalização dos presos são muito incipientes; poucos
estabelecimentos prisionais possuem convênio com a Fundação Santa Cabrine –
instituição responsável em organizar atividades culturais, educacionais e artísticas,
incentivando a ocupação criativa de detentos.
55
O trabalho prisional disposto no artigo 28 da LEP preceitua como “dever social e
condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva”; o artigo 31
dispõe sobre a obrigatoriedade na medida das aptidões e capacidades de cada preso.
Outro fator importante relacionado ao trabalho prisional e mencionado nesta legislação
é a remição de pena, (artigos 126 a 130) quando é regulamentada a possibilidade do
tempo de prisão ser reduzido na proporção de três dias trabalhados para um de pena,
ressaltando-se que a ocorrência de falta grave é fator de perda dos dias anteriormente
remidos.
O trabalho nas prisões é realizado através de atividades de manutenção interna
dos presídios (limpeza, cozinha, obras), artesanato e atividades informais. Algumas
destas atividades possuem remuneração, mas não são protegidas pelas leis
trabalhistas.
A maior parte do efetivo carcerário é formada por uma população com baixa
escolaridade, a grande maioria sem nenhum tipo de profissionalização; muitos
provenientes das classes populares e inseridos no mercado informal de trabalho
quando em liberdade. As atividades desempenhadas pelos apenados, em muitos
casos, não lhes fornecem o aprendizado e a experiência necessária para posterior
vinculação ao mercado de trabalho.
Segundo Foucault, o trabalho foi apropriado pelo Sistema Prisional como
mecanismo de disciplinamento dos cárceres com vistas à manutenção das normas para
a regulação do cotidiano na direção da constituição de corpos dóceis. Assim, o
trabalho prisional exerce várias funções: controle, oferta de mão -de - obra barata para
o capital, além de isentar o Estado de suas atribuições; visto que muitas das atividades
realizadas deveriam estar sob a responsabilidade de funcionários admitidos através de
56
concursos públicos, com todas as garantias trabalhistas previstas em lei. Os apenados
realizam estas atividades e na maioria dos casos não recebem nenhum tipo de
remuneração. Para eles, o trabalho se constitui como um elemento fundamental para
reorganização de suas vidas e uma oportunidade para não reincidirem criminalmente.
O Estado não propicia o acesso à Educação (em muitas instituições, as escolas
encontram-se fechadas ou o ensino oferecido não condiz com o perfil da população
usuária. Os cursos de qualificação profissional não são compatíveis com as exigências
do mercado de trabalho e apesar do governo possuir uma instituição (Fundação Santa
Cabrini) com o objetivo de contribuir para a criação dos meios necessários para que os
internos e egressos do sistema penitenciário do Rio de Janeiro tenham condições de
acesso ao exercício da cidadania, através da profissionalização, da educação e da
experiência no exercício profissional, são as famílias que assumem, em geral, o papel
de apoiá-los de acordo com suas condições e garantir uma carta de emprego com
“pessoas conhecidas” ou em firmas onde os apenados já trabalharam anteriormente.
Desta maneira, a falta de investimento no setor educacional e laborativo é um
fator condicionante que influencia nos projetos de liberdade dos presos; pois está ligada
diretamente à questão da sobrevivência e manutenção destes indivíduos.
“A oferta de programas de escolarização, de formação profissional e de postos de trabalho para os presos fica muito aquém das necessidades na maior parte dos presídios brasileiros. Faltam estudos consistentes sobre as taxas de reincidência criminal no Brasil, mas todos os levantamentos parciais feitos pela polícia, pelo poder judiciário ou pelo sistema penitenciário apontam que elas estão sempre acima de 50%, revelando que uma das principais atribuições legais do sistema, que é a reinserção do indivíduo na sociedade, não está sendo cumprida”. (SALLA; 2003:427)
Outra área abordada pela LEP é a assistência jurídica que deve ser destinada aos
presos e internados sem recursos financeiros para constituírem advogados.
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Os atrasos no andamento dos processos judiciais se dá também pela falta de
recursos materiais e humanos. Os atendimentos realizados nas unidades prisionais não
são contínuos; uma vez que os Defensores são alocados em vários estabelecimentos
penais ao mesmo tempo, e não conseguem dar conta dos inúmeros processos que
acompanham. Tem-se desta forma uma das causas da superlotação do sistema
penitenciário brasileiro.
A assistência social (artigo 22) “tem por finalidade amparar o preso e o internado,
e prepará-los para o retorno à liberdade; entre suas atribuições está a orientação ao
preso, a sua família e à vítima (artigo 23)”.
A assistência social também apresenta limitações no desenvolvimento de seu
trabalho, por questões relativas à segurança e por todos os motivos que já foram
expostos e que abrangem as demais áreas que atuam no “tratamento” dos presos.
A Lei de Execução Penal, apesar de conter aspectos importantes no que tange às
normas de cumprimento das penas privativas, não tem sido levada em consideração na
prática pelos custodiadores, principalmente quanto ao tratamento penitenciário. Os
direitos ao atendimento social, médico, psicológico e profissionalizante previstos, não
são colocados em prática pela execução penal: existem algumas exceções, mas estas
não conseguem superar essa conjuntura marcada por uma ausência de atendimento e
preparo psicossocial e profissionalizante do preso. Da mesma forma, as atividades
educacionais, jurídicas, profissionalizantes, produtivas, bem como o atendimento a
familiares e às condições físicas dos prédios não têm expressado o real cumprimento
da lei.
Outro mecanismo legal que orienta a administração da vida dos presos são as
Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos. Essas regras foram adotadas pelo
58
primeiro Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento de
Delinqüentes, realizado em Genebra (1955).
Divide-se em duas partes: a primeira consiste “em matérias relativas à
administração geral dos estabelecimentos penitenciários e é aplicável a toda categoria
de reclusos, dos foros criminal ou civil, em regime de prisão preventiva ou já
condenados, incluindo os que estejam detidos por aplicação de medidas de segurança
ou que já sejam objeto de medidas de reeducação ordenadas por um juiz. A segunda
parte contém regras que são especificamente aplicáveis às categorias de reclusos de
cada secção”.
Desta forma são, portanto, referência para todos os profissionais que trabalham no
sistema penitenciário, uma vez que instituem um conjunto de procedimentos a serem
implementados nos estabelecimentos prisionais dos países que compartilham com as
idéias adotadas por esta resolução.
Destacou-se na primeira parte, no tocante as Regras de aplicação geral, alguns
itens relacionados às instituições penais, que também estão contemplados na Lei de
Execuções Penais; tais como: Separação por Categorias, Locais de Reclusão, Higiene
Pessoal, Vestuário e Roupa de Cama, Alimentação, Serviços Médicos.
• Separação por Categorias
A Regra nº 8 “estabelece que as diferentes categorias de reclusos devem ser
mantidas em estabelecimentos penitenciários separados ou em zonas de um mesmo
estabelecimento penitenciário, tendo em consideração o respectivo sexo, idade,
antecedentes penais, razões da detenção e medidas necessárias”.
59
b) “Presos preventivos devem ser mantidos separados dos condenados”;
A realidade das prisões brasileiras não corresponde ao estabelecido por esta
regra, em decorrência das rivalidades existentes entres as facções do crime organizado
e da morosidade do aparelho judiciário, os presos são alocados nas unidades prisionais
aleatoriamente, desde que sejam de uma facção comum ao presídio a que são
destinados.
No item 9º “As celas ou locais destinados ao descanso noturno não devem ser
ocupados por mais de um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso
temporário de população prisional, for necessário que a administração penitenciária
central adote exceções a esta regra, deve evitar-se que dois reclusos sejam alojados
numa cela ou local.
No item 10º “As acomodações destinadas aos reclusos, especialmente
dormitórios, devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, tomando-se
devidamente em consideração as condições climatéricas e especialmente a cubicagem
de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação”.
No item 11º “em todos os locais destinados aos reclusos, para viverem ou
trabalharem”:
a) “as janelas devem ser suficientemente amplas de modo a que os reclusos
possam ler ou trabalhar com luz natural e devem ser construídas de forma a
permitir a entrada de ar fresco, haja ou não ventilação artificial”;
A superlotação, a insalubridade, a falta de infra-estrutura são problemas
recorrentes no sistema penitenciário, que em muitos casos são reivindicações dos
apenados quando estes organizam motins e rebeliões por melhores condições de vida
para sobreviverem nestes espaços.
60
• Higiene Pessoal
Regra nº 12 “As instalações sanitárias devem ser adequadas, de modo a que os
reclusos possam efetuar as suas necessidades quando precisarem, de modo limpo e
decente”.
Regra nº 14 “Todas as zonas de um estabelecimento penitenciário usadas
regularmente pelos reclusos devem ser mantidas e conservadas sempre
escrupulosamente limpas”.
Os locais destinados à higiene pessoal são totalmente degradados, sem
privacidade, sem as condições necessárias para que o ser humano realize suas
fisiológicas, é um espaço inadmissível para a permanência de um indivíduo.
• Vestuário e Roupa de Cama
Regra Nº 17 “Deve ser garantido vestuário adaptado às condições climatéricas e
de saúde a todos os reclusos que não estejam autorizados a usar o seu próprio
vestuário. Este vestuário não deve de forma alguma ser degradante ou humilhante”.
Regra Nº 19. “A todos os reclusos, de acordo com padrões locais ou nacionais,
deve ser fornecido um leito próprio e roupa de cama suficiente e própria, que estará
limpa quando lhes for entregue, mantida em bom estado de conservação e mudada
com a freqüência suficiente para garantir a sua limpeza”.
• Alimentação
Regra 20 - 1) “A administração deve fornecer a cada recluso, a horas determinadas,
alimentação de valor nutritivo adequado à saúde e à robustez física, de qualidade e
bem preparada e servida”.
61
Vestuários, Roupa de Cama e Alimentação, em muitos casos, ficam sob a
responsabilidade dos familiares, pois esses serviços são oferecidos eventualmente e no
caso da alimentação, é possível afirmar que a mesma é de péssima qualidade.
• Serviços Médicos
Regra 22
1) “Cada estabelecimento penitenciário deve dispor dos serviços de pelo menos
um médico qualificado, que deverá ter alguns conhecimentos de psiquiatria. Os
serviços médicos devem ser organizados em estreita ligação com a administração geral
de saúde da comunidade ou da nação. Devem incluir um serviço de psiquiatria para o
diagnóstico, e em casos específicos, o tratamento de estados de perturbação mental”.
2) “Os reclusos doentes que necessitem de cuidados especializados devem ser
transferidos para estabelecimentos especializados ou para hospitais civis. Quando o
tratamento hospitalar é organizado no estabelecimento este deve dispor de instalações,
material e produtos farmacêuticos que permitam prestar aos reclusos doentes os
cuidados e o tratamento adequados e o pessoal deve ter uma formação profissional
suficiente”.
3) “Todos os reclusos devem poder beneficiar dos serviços de um dentista
qualificado”.
Regra 24.
“O médico deve examinar cada recluso o mais depressa possível após a sua
admissão no estabelecimento penitenciário e em seguida sempre que, necessário, com
o objetivo de detectar doenças físicas ou mentais e de tomar todas as medidas
62
necessárias para o respectivo tratamento de separar reclusos suspeitos de serem
portadores de doenças infecciosas ou contagiosas de detectar as deficiências físicas ou
mentais que possam constituir obstáculos à reinserção dos reclusos e de determinar a
capacidade física de trabalho de cada recluso”.
Regra 25.
“Ao médico compete vigiar a saúde física e mental dos reclusos. Deve visitar
diariamente todos os reclusos doentes, os que se queixem de doença e todos aqueles
para os quais a sua atenção é especialmente chamada”.
O serviço médico também é bastante fragilizado, os presos ficam sujeitos expostos
a diversas doenças contagiosas e não possuem tratamento curativo e preventivo
adequado para a eliminação das mesmas. Em muitas unidades prisionais não há oferta
contínua das atividades médicas, assim a população carcerária também tem seus
direitos transgredidos na área da saúde.
As violações de direitos humanos dos apenados são notórias, todas as normas
acima destacadas expressam a evidente ilegalidade que ocorre no sistema de
aprisionamento no Brasil. O Estado não assiste aos presos em suas necessidades
básicas; apesar dos avanços legais em relação ao tratamento da questão penitenciária.
É possível notar que as prisões tornaram-se locais de neutralização e
esquecimento dos detentos; portanto, sem qualquer perspectiva de oferecer a esses
indivíduos uma alternativa para retornarem à sociedade. Neste sentido, o discurso da
“ressocialização” revela-se uma falácia. A sociedade não é harmônica e seus
problemas fundamentam-se na contradição capital x trabalho, que, em detrimento da
apropriação privada da riqueza produzida pelo trabalho coletivo, aprofunda cada vez
mais as desigualdades sociais entre as classes. Os mecanismos de regulação da
63
prisão reproduzem a violação de direitos humanos e não cumprem os objetivos de
reintegração social, as prisões se transformaram em locais de propagação do crime,
pois a tendência é a eliminação de todas as medidas e políticas que visem mudanças
nesta realidade.
2.2. Criminologia Crítica e “Ressocialização”
A criminologia crítica contribui de forma significativa para a análise dos
processos criminalizantes. Esse marco teórico é referenciado por um horizonte
macrossociológico, que analisa a sociedade a partir de questões estruturais da
sociedade, ou seja, as contradições vigentes na estrutura econômica e social da
sociedade capitalista.
Neste sentido, a perspectiva crítica de análise do sistema penal tem como
referencial a teoria marxiana, onde o movimento da realidade social é visto de uma
forma dinâmica considerando os conflitos de classe existentes na sociedade.
Para Baratta (2002), a desigualdade da sociedade capitalista reflete no processo
de criminalização. Há uma distribuição desigual da penalização de acordo com a classe
social, pois os indivíduos são selecionados em decorrência de sua situação econômica.
Para o autor, segundo a criminologia crítica, não há uma igualdade no direito
penal, pois as funções do direito penal da sociedade capitalista compactuam com o
controle social sobre os comportamentos desviantes.
Há situações socialmente negativas no processo de criminalização, que legitimam
uma discriminação seletiva cujo alvo são as camadas subalternas. Assim, o sistema
penal atinge prioritariamente os pobres, legitimando a discriminação seletiva e
imunizando as camadas dominantes da sociedade.
64
Sobre esse aspecto, ressalta Baratta (2002) que há uma contradição entre a
igualdade formal do direito penal burguês e a desigualdade real da sociedade de
classes.
Este autor propõe as seguintes críticas quanto ao direito penal burguês:
1. O direito penal não defende a todos, mas somente os bens essenciais; e, quando pune as ofensas aos bens essenciais, o faz com intensidade desigual e de modo fragmentário;
2. A lei penal não é igual para todos, pois o status de criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos;
3. O grau efetivo de tutela e a distribuição de status de criminoso é independente do dano social das ações e da gravidade das infrações à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação criminalizante. (BARATTA, 2002:162)
Neste estudo, Baratta discute a contradição entre a igualdade formal e a
desigualdade que os sujeitos vivenciam na realidade social. A exemplo, tem-se o
descumprimento das garantias da Carta Constitucional de 1988, que embora esteja
normatizado formalmente não é efetivado na realidade social brasileira.
Um exemplo recente de que o direito penal não é igual para todos, é o caso do
banqueiro Daniel Dantas, “acusado gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, evasão de
divisas, formação de quadrilha e tráfico de influência” comprovando o poder de sua
influência sobre as autoridades judiciárias brasileiras, na tentativa de tornar impunes os
crime que cometeu. Em contrapartida, tem-se o caso de Marcos Mariano da Silva12, que
“foi preso injustamente no lugar de um assassino com o mesmo nome dele. O mais
absurdo: duas vezes. Primeiro, em 1976, ele ficou detido seis anos. Esclarecido o
engano, Marcos ganhou só um pedido de desculpas. Três anos depois, a polícia o
12 Notícia veiculada no Fantástico no dia 03/08/08.
65
levou de volta para o presídio pelo mesmo crime que ele não havia provado que não
tinha cometido. Ficou lá mais 13 anos”.
O Brasil possui um dos piores índices de distribuição de renda do mundo, a
desigualdade social atinge assim, patamares inaceitáveis. Há uma parcela da
sociedade que sobrevive em condições de indigência enquanto que uma pequena parte
usufrui a riqueza socialmente produzida. Esta disparidade reflete no modo desigual de
operação do direito penal analisado por Baratta, que leva a práticas punitivas e a uma
política de aprisionamento para controlar os problemas sociais gerados pela
desigualdade.
A criminologia crítica identifica nos efeitos marginalizadores do cárcere a
impossibilidade da “ressocialização”, para esta perspectiva o discurso da
“ressocialização” contribui para legitimar a repressão às classes subalternas.
Ressalta Baratta:
Antes de falar de educação e de reinserção é necessário, portanto, fazer um exame do sistema de valores e dos modelos de comportamento presentes na sociedade em que se quer reinserir o preso. Um tal exame não pode senão levar à conclusão, pensamos, de que a verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo condenado: antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão( BARATTA, 2002: 186)
O termo ressocialização nos traz uma visão conservadora e moralizante que está
presente em grande parte da sociedade. Nesta ótica a sociedade é vista como um
modelo ideal e a prisão assume o papel de reformar a pessoa que delinqüiu.
A prisão é constituída de elementos negativos da sociedade capitalista. Através de
práticas violentas e ilegais, acaba por transformar os apenados em indivíduos
submissos às relações de poder existentes nesta instituição, sem a perspectiva de
oferecer a estes indivíduos condições propícias para o retorno à liberdade.
66
O cárcere tende a reproduzir os valores construídos pela sociedade, desta forma,
marginaliza aqueles que estão privados de direitos. Uma vez encarcerado, o apenado
sofre um processo de estigmatização, que influencia na sua interação com a sociedade:
prejudica o acesso ao trabalho, a retomada de vínculos afetivos com familiares e
amigos; levando este a tecer novas redes sociais e culturais com o objetivo de
fortalecer a sua identidade e a sua autonomia.
Torna-se necessária uma mudança na base estrutural da sociedade para se evitar
os efeitos danosos provocados pelo acirramento das desigualdades sociais provocadas
pelo modelo de produção capitalista.
SegundoTorres (2007:197),
“A realidade dos presídios em todo país é o retrato fiel de uma sociedade desigual e da ausência de uma política setorial séria e estruturada que enfrente a ineficiência do sistema carcerário penitenciário. O quadro caótico em que se encontra hoje o sistema carcerário brasileiro, revela uma “desassistência” generalizada nos presídios, reflexo da ausência de uma política que venha, minimamente, romper com o estado de degradação em que se encontram milhares de homens e mulheres presos”.
No sistema penitenciário do Rio de Janeiro, bem como nos demais sistemas
prisionais do país, não há uma política efetiva de acompanhamento dos presos, uma
política que contribua de fato para que os apenados tenham acesso a direitos sociais
de modo que não reincidam em práticas delituosas.
Neste sentido, o modelo de encarceramento adotado pelo país, de criminalização
da miséria com um cunho extremamente repressivo e disciplinador necessita ser
modificado, pois atinge diretamente a vida dos presos e daqueles que os acompanham
durante a execução da pena, uma vez que estes têm seus direitos constantemente
violados.
67
A seguir, tentaremos demonstrar a realidade de uma das unidades prisionais do
sistema penitenciário do Rio de Janeiro, com base nas experiências dos profissionais
que atuam neste estabelecimento e dos presos que nele se encontram reclusos,
buscando identificar as dificuldades para o cumprimento das leis e os reflexos dessa
prática no cotidiano desses atores dentro do sistema prisional.
68
Capítulo III: Cotidiano do Sistema Prisional do Rio de Janeiro sob
a perspectiva de funcionários e apenados.
Neste capítulo, buscou-se avaliar alguns aspectos da vida intramuros de uma
unidade prisional, com o objetivo de identificar elementos relativos à rotina deste
estabelecimento, que influenciam no trabalho dos profissionais que realizam
intervenções com muitas limitações em decorrência da precarização das condições de
trabalho e dos apenados que cumprem suas penas e têm seus direitos constantemente
violados.
Foram realizadas entrevistas com alguns profissionais desta instituição,
assistente social, psicóloga, educadora, inspetor de segurança, sub-diretor da unidade
prisional, totalizando a quantidade de seis entrevistados. O instrumento de coleta de
dados foi concebido para permitir que cada um desses sujeitos pudesse expor
elementos do seu cotidiano profissional, face ao modelo de aprisionamento voltado
para punição e repressão adotado pelo Estado.
Aplicou-se o mesmo questionário para todos os profissionais, tanto para os que
compõem a equipe técnica, quanto para os que fazem parte da área de segurança.
Os apenados também participaram da pesquisa, pois se considerou de extrema
importância a opinião dos mesmos sobre os reflexos do sistema penitenciário em suas
vidas, as dificuldades enfrentadas para terem seus direitos garantidos durante o
cumprimento da pena.
Para os internos, foram elaborados questionários com uma perspectiva
diferenciada daqueles aplicados aos profissionais, uma vez que ambos os entrevistados
69
possuem papéis distintos e desiguais dentro das correlações de poder existente dentro
das unidades prisionais. Seis internos participaram da pesquisa.
Os dados coletados foram obtidos através de um questionário elaborado com
perguntas abertas e outras previamente formuladas, ou seja, obteve-se este material
através de entrevistas semi-estruturadas; onde os participantes da pesquisa puderam
discutir abertamente o assunto em questão.
Para análise dos dados considerou-se as seguintes categorias para os
profissionais: idade, sexo, formação (ano, instituição e titulação), vínculo empregatício
com a SEAP (Secretaria de Administração Penitenciária) e tempo de serviço. Para os
presos: idade, sexo, escolaridade, artigo / condenação, período de reclusão e
passagem em outras unidades prisionais.
Para a análise qualitativa do material coletado estabeleceram-se as seguintes
categorias para os profissionais: política de encarceramento, cotidiano profissional,
limites e possibilidades para a realização do trabalho e direitos humanos. Para os
presos: opinião em relação ao sistema carcerário brasileiro, principais dificuldades
enfrentadas durante a execução da pena, conhecimento sobre seus direitos e direitos
humanos.
3.1) A Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira
Todos os entrevistados fazem parte do universo desta unidade prisional, portanto,
considerou-se importante fazer uma contextualização deste estabelecimento, que se
constitui em uma parte do conjunto de unidades prisionais que compõem o sistema
carcerário do Rio de Janeiro.
70
A Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira foi criada em 16/09/1957, como
anexo da Penitenciária Lemos de Brito, funcionando como complexo agroindustrial para
aplicação do regime semi-aberto. Em 21/11/1963, pelo decreto nº 1.524/63,
desvinculou-se da Penitenciária Lemos de Brito, tornando-se Instituto de Trabalho,
Reeducação e Ensino Profissionalizante. Em 28/07/1966, através do decreto nº 646,
passou a ser Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira, para cumprimento de pena
em regime fechado, com capacidade para abrigar, aproximadamente, 992 homens,
disponibilizando as seguintes atividades para seus internados: 1. Serviço Social; 2.
Psicologia; 3. Psiquiatria; 4. Atendimento Médico; 5. Atendimento Odontológico; 6.
Atendimento Jurídico; 7. Defensoria Pública; 8. Escola de Ensino Fundamental; 9.
Biblioteca; 10. Padaria; 11. Atividades Religiosas. Atualmente os apenados contam com
projetos para realização de Artesanato, Capoeira, Curso Supletivo para conclusão do
Ensino Médio e Pré-Vestibular.
O desenvolvimento dessas frentes de trabalho ocorre numa perspectiva
multidisciplinar, apesar de existirem iniciativas para que o trabalho seja realizado sobre
o ponto de vista interdisciplinar. Alguns profissionais buscam essa interação porque a
consideram de extrema relevância para o fortalecimento de suas intervenções, pois os
diferentes saberes ampliam os horizontes dos técnicos no tocante as diversas situações
que aparecem no cotidiano da prisão. Assim, estes profissionais caminham em busca
da construção de uma metodologia de trabalho entre as equipes, para formular projetos
e intervenções que visem contribuir de forma significativa para amenizar o processo de
aprisionamento e execução da pena, assim como atividades que objetivem fornecer
elementos para que se pense nos projetos de liberdade dos apenados.
71
A Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira tem como característica principal,
dentro do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, a geração de trabalho e
renda para aqueles que nela se encontram reclusos. Desta forma é considerada uma
unidade prisional modelo, pois se comparada com as demais, até mesmo quanto a
infra-estrutura, oferece aos apenados muitos serviços relacionados à educação, cultura
e trabalho, o que não é a realidade de todo o sistema prisional.
É importante salientar que estes esses serviços não atendem a totalidade de
internos e que os profissionais responsáveis pelo planejamento e gerenciamento
dessas atividades enfrentam diversas dificuldades para realizá-las, tendo em vista a
falta de investimento nesta área e os problemas relacionados à segurança que também
interferem no desenvolvimento do trabalho.
O predomínio da ideologia do controle também se faz presente neste
estabelecimento e concorre para o processo de vulnerabilização dos presos, mas
apesar desta contraditoriedade e da ausência de políticas públicas, existem algumas
iniciativas de fomento a cidadania e garantia de direitos.
3.2) Qualificação dos Profissionais entrevistados durante a realização da
pesquisa.
3.2.1) Idade
A pesquisa demonstra que não há muitas disparidades em relação a faixa etária
destes trabalhadores. Dentro desta amostra, verificou-se que o maior índice está entre
os profissionais com idade entre 34 e 38 anos; ambos situados no setor de segurança
da unidade prisional e todos do sexo masculino; os demais, do sexo feminino fazem
parte da área técnica.
72
A ilustração abaixo corresponde aos profissionais entrevistados.
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
4
4,5
Faixa etária de 30 a 40 anos Faixa etária de 40 a 55 anos
3.2.2) Sexo
Neste item obteve-se o mesmo quantitativo de indivíduos do sexo masculino e
feminino. Porém, percebeu-se que o sexo masculino predominou na área de segurança
enquanto que o sexo feminino prevaleceu nas áreas consideradas de tratamento aos
presos.
Na unidade prisional Esmeraldino Bandeira, as mulheres não exercem nenhum
cargo de chefia no setor de segurança; as funcionárias localizadas neste campo atuam
como agentes penitenciárias. As demais conseguem exercer estas funções, mas nas
áreas que se destinam ao “cuidado” com o preso. Como já foi descrito acima, nas
funções que garantem os serviços de assistência aos apenados.
A desigualdade de gênero é processada nos espaços de reprodução social - em
instituições como a família, a escola, a igreja, os meios de comunicação e, também, a
prisão objeto de nosso estudo. Essa desigualdade é fortemente materializada, nas
relações de trabalho, no campo político, sindical por meio da divisão sexual do trabalho.
73
Kergoat (1996) ao construir o conceito de relações sociais de sexo nos dá uma
visão sexuada dos fundamentos da organização da sociedade, que é materializada na
divisão sexual do trabalho.
Para a autora a relação social específica entre os homens e as mulheres implica
práticas sociais diferentes segundo o sexo. Homens e mulheres sofrem e/ou exercem a
dominação segundo sua posição nas diversas práticas sociais que são determinadas
dentro de uma rede de relações sociais, como o trabalho, a família, a escola.
É importante frisar que esta é uma discussão densa e que deve ser explorada em
outros trabalhos, porém é uma questão importante que não pode deixar de ser
analisada.
3.2.3) Formação
Os profissionais que apresentam ensino superior completo localizam-se na área
técnica: Educação (formada em 1979 pela Universidade Castelo Branco), Serviço
Social e Psicologia (ambas estão formadas em 1990 pela Universidade Federal
Fluminense e com especialização em Educação e Saúde Pública pela ENSP FIO
CRUZ).
Aqueles que possuem ensino superior incompleto estão cursando Direito nas
faculdades UNIVERCIDADE e Universidade Castelo Branco e por fim um dos
entrevistados apresenta Ensino Médio Completo.
A maioria dos entrevistados possui nível superior ainda que alguns esteja
cursando. Este se constitui em um dado positivo, pois os profissionais estão buscando
qualificação para conduzir e aperfeiçoar suas intervenções.
74
3.2.4) Tempo de serviço na Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de
Janeiro
Todos os profissionais entrevistados são estatutários e constatou-se que a maioria
exerce atividades laborativas há mais de 10 anos na SEAP.
1 1
3
1
0
0,5
1
1,5
2
2,5
3
3,5
9 anos 10 anos 14 anos 22 anos
9 anos
10 anos
14 anos
22 anos
3.3) Opinião em relação a política de encarceramento adotada pelo sistema
penitenciário brasileiro.
Observou-se opiniões diferenciadas quanto a política de encarceramento adotada
pelo sistema carcerário brasileiro, em especial, o Rio de Janeiro, objeto de estudo deste
trabalho.
Alguns profissionais opinaram positivamente sobre a estrutura organizacional da
Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP), relatando que as
medidas adotadas para a contenção dos presos estão com um cunho mais educativo,
tendo como objetivo a recuperação dos apenados.
Para os profissionais da área de segurança o trabalho está mais organizado, tendo
estes a possibilidade de desenvolver e planejar suas atividades em condições
75
propícias, de modo a garantirem um espaço harmônico dentro da unidade prisional,
evitando conflitos entre os presos e os agentes penitenciários.
“Ah! Melhorou bastante, porque antes era difícil conscientizar o preso. Hoje muitos presos estão conscientes até dos seus direitos, até dos próprios guardas, corpo técnico. Eu trabalho, bato papo com os internos de direitos. Eu acho também que a parte judiciária quando foi operada a Lei do Um Sexto melhorou muito, agora o interno para ele adquirir benefícios de progressão de regime, de condicional é muito menos tempo da pena, isso ajudou no comportamento do interno. Então eu acho que foi uma política geral do governo de tentar colocar pessoas dirigindo a Secretaria coma idéia de ressocialização, das direções, do nível intelectual dos guardas, isso tudo desencadeou um lado bom, um lado mais de conscientização dos internos pelos guardas e pelos técnicos” (Agente de Segurança, com experiência de 14 anos na SEAP).
Neste depoimento, reitera-se o discurso da ressocialização presente no espaço
prisional. A prisão é considerada um espaço privilegiado para integração dos apenados
na sociedade, porém o tratamento penal a eles destinados não leva em consideração o
movimento da realidade social, os problemas sociais oriundos desta dinâmica,
culpabilizando-os pela sua condição.
Os demais profissionais apontam para ausência de uma política penitenciária, uma
vez que não há uma política que oriente e normatize as ações do sistema prisional em
âmbito nacional, cada estado possui uma forma de gerenciar seus respectivos sistemas
prisionais.
“Sobre a política penitenciária aqui no Brasil, eu acho que não há nenhuma política voltada para essa área aqui, criminal, de encarceragem. O que há é muita das vezes especulação política, há uma necessidade de colocar o pessoal preso, da criminalidade, só que não tem uma política que realmente... para que o pessoal não venha e o pessoal que já está como é que vai sair? Falta tanta coisa! Falta essa política, a parte social; até mesmo para com os funcionários. A gente vê que não tem uma política séria, ta faltando vontade política”. (Agente de Segurança, com 9 anos de experiência na SEAP)
Foi possível apreender o desconhecimento e/ou falta de aprofundamento por parte
de alguns profissionais em relação a realidade em que se encontram inseridos. Alguns
76
limitam suas atividades a demandas instituídas e não buscam relacionar os limites de
sua atuação numa perspectiva de totalidade, limitando-se exclusivamente ao
desenvolvimento de práticas burocráticas, tendo em vista que o Estado não oferece
condições dignas para o desenvolvimento do trabalho.
“A gente pouco conhece sobre a política de encarceramento, a Psicologia, a gente participa do cotidiano institucional, políticas de saúde eu estou mais a par. Eu já participei do grupo DST/AIDS, um programa de adulto né, políticas públicas na área de saúde dentro no caso do sistema penal eu to mais a par, mais assim né com a minha formação”.(Equipe Técnica, com 14 anos de experiência na SEAP).
Tomando como base o ponto de vista crítico da criminologia em relação ao
sistema prisional, verificou-se o não conhecimento da realidade em que esta instituição
se encontra inscrita, bem como os seus objetivos. Grande parte dos profissionais
detiveram-se apenas na realidade e no espaço em que atuam, particularizando
questões que são pertinentes a todo o sistema penitenciário.
Percebeu-se também, uma forte presença da perspectiva da etiológica (1996) - na
fala dos profissionais para justificar as ações implementadas pelo Estado no tocante ao
“tratamento dos presos”.
Esta perspectiva busca a explicação dos comportamentos criminalizados tendo
como pressuposto que a criminalidade é intrínseca ao indivíduo que comete o delito,
tornando-se assim justificativa para programas de tratamento para que estas pessoas
sejam transformadas em sujeitos de boa índole, sem a permanência de um
comportamento desviante das normas estabelecidas na sociedade.
Ao opinarem sobre o cunho educativo do sistema penitenciário reforçam a visão
do tratamento sem levar em consideração as condições objetivas e estruturais que
levaram a origem do delito e por conseqüência não relacionam com os objetivos da
77
prisão, que agrega um número considerável de indivíduos em virtude de sua condição
de classe e etnia, culpabilizando-os pela sua condição.
3.3.1) Rebatimentos da política de encarceramento no cotidiano profissional.
A maior parte dos entrevistados opinaram em relação a precarização das
condições de trabalho, atentando para a dificuldade de cumprir os objetivos da Lei de
Execuções Penais, “que prevê através das penas e das medidas de segurança a
proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor do delito à comunidade”, uma
vez que há carência de recursos materiais e humanos, o que impossibilita a realização
de um trabalho eficaz para os presos e que este incida concretamente em suas vidas.
Há uma contraditoriedade em relação a alguns depoimentos obtidos na questão
anterior, pois, se o modelo de encarceramento adotado pelo sistema penitenciário
brasileiro traz como proposta o tratamento e a reintegração dos apenados sob um viés
educativo e moralizante, as condições para o desenvolvimento de tais atividades
deveriam ser concomitantes ao que está exposto na lei, e esta não é a realidade das
unidades prisionais do Rio de Janeiro de acordo com os entrevistados, que apresentam
muitas dificuldades para tornarem efetivas suas intervenções.
“Quem legisla no Brasil muita das vezes não conhece o assunto, não vive, não tem aquela experiência, aquela vivência de lei, que realmente vai se aproveitar, vai ter proveito em uma unidade prisional. Eles fazem a lei, mas não sabe das suas conseqüências e muitas das vezes também a lei só vem para atrapalhar (...) Muitas das vezes, a gente vê também que o sistema cai no mesmo erro também de 10, 20 anos atrás, com um mínimo de funcionários, com uma massa carcerária na cadeia maior”. (Agente de Segurança, com 9 anos de experiência na SEAP)
Desta maneira, é possível apreender que a política penitenciária tem inviabilizado
atividades que contribuem para minimizar os efeitos deteriorantes da prisão, uma vez
que esta não dispõe de infra-estrutura para realização das mesmas.
78
Segundo Wolff (2005),
“Trata-se, portanto, de negar direitos legalmente estabelecidos em nome da necessidade da segurança e disciplina prisionais. Trata-se de desconsiderar a possibilidade de um tratamento humano para reforçar a vulnerabilidade ou deterioração e o esteriótipo de delinqüente irrecuperável, nocivo à sociedade” (pág.205).
3.3.2) Descrição do cotidiano profissional e das condições para realização
das intervenções.
As condições inadequadas para o desenvolvimento das atividades, em
decorrência da falta recursos materiais e humanos, não é impeditiva para a realização
de suas intervenções.
“Já tenho 8 anos só nesta unidade prisional, então na nossa unidade que é industrial, eu acho que ela tem muitas atividades, então a educação em relação as dificuldades que nós temos de material, de recursos de tudo, eu acho até que funciona bem. Nós temos pré-vestibular, nós temos capoeira, alfabetização, nós vamos começar agora com a aula de música, temos artesanato, teatro. Então fora as provas de vestibular, que tem internos que fazem as provas de vestibular do PCERJ, da UERJ e do fundão, então eu acho que perante as outras nós temos bastante atividades aqui dentro. A condição não é muito favorável não porque, por exemplo, eu tenho uma máquina olivete de bater, eu até hoje não tenho um computador (...) para que o andamento do trabalho possa fluir teria que ter um computador, a minha sala não tem piso, é muita dificuldade aqui que a gente trabalha. Às vezes o interno que está fazendo curso de pré-vestibular não tem caderno, não tem lápis, entendeu, a gente faz o que pode, os recursos são bem escassos “. (Equipe Técnica, com 22 anos de experiência na SEAP).
Desta maneira, os serviços prestados aos apenados atingem certa efetividade na
medida em que colaboram para a manutenção e coerção destes indivíduos. A
fragilidade desses serviços faz parte de um processo de adaptação às normas
prisionais.
“Eu acho que no nosso cotidiano, o ambiente não é muito valorizado, o ambiente profissional não é muito valorizado. Tudo é bem precário, como são precárias as condições de todo o sistema. Eu acho que não tem uma ênfase em melhorar um pouco”. (Equipe Técnica, com 10 anos de experiência na SEAP).
79
Um dos motivos apontados para a precarização dos serviços oferecidos aos
apenados é a falta desarticulação com as demais políticas setoriais buscando ampliar
os atendimentos realizados, numa perspectiva de garantia e viabilização dos direitos
dos presos.
“Por se tratar de uma instituição que às vezes traz esse perfil mesmo de estar isolada, excluídas de outras políticas, temos dificuldades de lidar com o que a gente chama de homem aprisionado; porque ele continua com a cidadania cerceada, alguns aspectos de sua cidadania, mas ele não deixa de ser cidadão”. (Equipe Técnica, com 14 anos de experiência na SEAP).
Assim, de acordo com este relato seria de fundamental relevância a ampliação de
serviços com as demais ações de outras políticas públicas, considerando que estes
atores possam contribuir significativamente para o processo de execução penal. A
política de trabalho e renda, realizada atualmente com os apenados, é um exemplo de
política que deveria ser ampliada para todo o efetivo carcerário e para os seus
familiares, pois colabora diretamente para a retomada dos vínculos familiares e
contribui para que os apenados tenham recursos financeiros para proverem suas
necessidades básicas e de suas famílias.
3.3.3) Limites e possibilidades para a implementação do trabalho.
Alguns profissionais identificaram como limite o que é imposto pelas leis, ou seja,
trabalham de acordo com as normatizações estabelecidas no que tange ao sistema
penitenciário.
Outro elemento apontado como restrição ao trabalho dos técnicos é o predomínio
da ideologia da segurança, da custódia voltada para punição, pois interfere diretamente
no cotidiano das prisões, impossibilitando em alguns momentos a realização de
atendimentos ou atividades relativas aos presos.
80
DHAMMER (2006:135) afirma que “ainda que a esfera legal seja repudiada,
desconsiderada pelos sujeitos, por exemplo, da área de segurança, ela ainda é, a
nosso ver, o instrumento pelo qual, institucionalmente, pode-se buscar suporte para o
embate, bem como encontrar estratégias para, junto ao escalão superior de chefias,
discutir estas e outras proibições” (...)
Assim, caberia às autoridades que atuam na gestão penitenciária, conforme citado
por um profissional, um interesse maior para que todos os trabalhadores que atuam nas
unidades prisionais possam realizar, com efeito, suas ações.
“Eu acho que poderia ter mais empenho, mais empenho das pessoas, não só das autoridades, mas também da nossa Secretaria, de quem está acima, mais empenho. Porque acredito muito na educação, através dela você pode conseguir muita coisa, você tem resultados positivos”. (Equipe Técnica, com experiência de 22 anos na SEAP).
Outro depoimento importante é a fala de um Agente de Segurança, que aponta
como limite a questão do preconceito em seu cotidiano profissional:
“O que existe é preconceito dos funcionários antigos, isso é uma barreira. Acham que preso tem ficar preso, o direito do preso tem que ser o mínimo possível, eles ainda não conseguiram ter a conscientização que é melhor para o preso, para o nosso trabalho que o preso se conscientize do seu local, que o preso está aqui para se ressocializar. E isso, o preso se conscientizando melhora o trabalho de todo mundo. Então o único problema que eu tenho é esse, o ranço dos funcionários antigos que acham que o preso tem que entrar na linha, na base da agressão, isso é um limite. Mas, fora isso, de direção para cima todos são muito bem conscientizados em relação a ressocialização”. (Agente de Segurança, com 14 anos de experiência na SEAP).
A idéia expressa neste relato pressupõe que os internos não foram socializados no
período que antecedeu ao cárcere, portanto cabe a prisão o papel de ressocialízá-los
tendo em vista que o contexto sócio-familiar em que se encontravam inscritos, não foi
capaz de cumprir esta tarefa dentro dos limites aceitos pela sociedade.
Como possibilidade para melhoria das condições de trabalho foi citada a
construção de uma política penitenciária de âmbito nacional, que vise a uniformização
81
das medidas adotadas no sistema prisional, que contemple a capacitação contínua de
todos os profissionais sensibilizando-os para temáticas relacionadas à cidadania e aos
direitos humanos.
“Tem que ter uma política voltada para o sistema penitenciário, que pense melhor a capacitação de seus profissionais, do Assistente Social também, não é fácil lidar com esse tipo de população, ele também está vulnerável ao bombardeio da mídia, que continua cada vez mais a estigmatizar esse segmento. É necessário um trabalho com todos que trabalham no sistema penitenciário, uma capacitação contínua de todos os profissionais para que saibam lidar com isso, uma capacitação em direitos humanos e cidadania”. (Equipe Técnica, 14 anos de experiência na SEAP).
Os profissionais apontam também para a construção de uma política penitenciária
de âmbito nacional, que vise à uniformização das medidas adotadas no sistema
prisional, de modo a evitar margens para arbitrariedades frente às intervenções destes
trabalhadores, dos internos, bem como seus familiares.
3.3.4) Conhecimento sobre Direitos Humanos e viabilização destes em suas
intervenções.
Neste item foi possível verificar que há percepções equivocadas sobre os direitos
humanos:
“É o básico para o desenvolvimento da integridade do ser humano”. (Agente de Segurança, com experiência de 14 anos na SEAP).
Essa concepção é muito genérica. Para que os indivíduos se desenvolvam
enquanto sujeitos sociais, precisam ter acesso a uma gama de direitos que não se
restringem apenas à garantia da integridade humana. Faz-se necessário um conjunto
de direitos que garanta o seu bem estar proporcionando o alcance aos bens produzidos
socialmente.
“Fundamento de todos os direitos, que uma vez sendo homem, os direitos humanos é o direito a vida num conceito mais amplo, de qualidade, com respeito, com o reconhecimento da identidade. É você ser uma pessoa que
82
tenha uma expressão, tenha um reconhecimento, os direitos humanos é a base de tudo isso”. (Equipe Técnica, com experiência de 14 anos na SEAP).
Esta fala compreende os direitos humanos como direito à vida, não leva em
consideração o processo histórico de sua conquista. Ao fazer esta vinculação,
pressupõe que os direitos humanos são inerentes aos indivíduos, descaracterizando as
lutas sociais para a realização da cidadania.
“Direitos humanos no Brasil, infelizmente, é um cabide de emprego, porque nas nações como China, EUA, Japão e a própria Indonésia, na França, não ouvimos falar de direitos humanos. No Estado lá, as leis são muito mais rígidas, em alguns casos, na China o Estado mata, nos EUA o Estado mata o ser humano e no Brasil vemos os direitos humanos só voltados para os direitos dos presos e não pro lado de quem também trabalha. Na realidade, nem do preso porque eles não vêm aqui, não sabem o que acontece no dia a dia, da necessidade do preso quando o Estado falta com alguma coisa, isso é direitos humanos?”. (Agente de Segurança, com 9 anos de experiência na SEAP).
Neste depoimento há uma dificuldade de discernimento entre os direitos humanos
e a execução penal, estes são entendidos como direitos de bandidos e contrários a
qualquer forma de tortura e arbitrariedade.
Portanto, dentro do sistema prisional os direitos humanos não são compatíveis
com a ideologia de punição, pois este estabelecimento visa à eliminação de todas as
formas de concretização de direitos daqueles que estão privados de liberdade.
A luta pela garantia dos direitos humanos no Brasil foi adensada durante o regime
ditatorial no Brasil, onde uma série de entidades e movimentos da sociedade civil
começaram a denunciar as atrocidades cometidas pelo Estado contra aqueles que
possuíam opiniões políticas contrárias à ideologia dominante.
Na sociedade brasileira, os direitos humanos são constantemente violados e
identificados como direitos de bandidos, como privilégio de poucos. Ainda está obscuro
no imaginário social que os direitos humanos contemplam os direitos de 1ª geração
83
(civis e políticos) e 2ª geração (econômicos, sociais e culturais); portanto referem-se ao
bem estar de todos os indivíduos sem nenhuma distinção.
Atualmente, há um constante desrespeito por parte do Estado em relação a estes
direitos. A Constituição de 88, instrumento conquistado através de lutas sociais, vem
sendo paulatinamente desmontada, demonstrando que “o legal, para incidir no real,
exige um complexo sistema de instituições expressivas e concretizadoras dos valores
que informam os princípios legais. Essa assincronia é flagrante no país. O fato dos
direitos humanos estarem inscritos na agenda nacional e a inexistência de formas
legais que os protegem e promovem não significam, absolutamente, que tenham
vigência na sociedade brasileira”. (2001:44)
Colabora para a permanência da violação de direitos, traços antidemocráticos e
antipopulares, da cultura socio-política dominante da nossa sociedade.
Assim, todo este ideário faz com que os direitos humanos sejam restritos a
poucos, pois uma imensa parcela da população não tem acesso à cidadania.
Perguntados sobre legislações de proteção aos direitos dos presos, alguns
entrevistados informaram não ter conhecimento e os que responderam citaram a Lei de
Execuções Penais e o RPERJ – Regulamento do Sistema Penal do estado do Rio de
Janeiro. Esta informação se constitui em um dado importante, pois à medida que não
conhecem os instrumentos que garantem direitos, as possibilidades de concretizá-los
tornam-se insuficientes ou nulas.
“(...) Dentro do sistema eu conheço muito pouco em relação a isso, eu conheço o RPERJ nosso, o direito dos presos e tal, o que pode ser feito para ele, o que gente pode ajudar e o que não pode também”. (Equipe Técnica, com 22 anos de experiência na SEAP).
“Na LEP tem escrito o que é direito e o que é dever”. (Equipe Técnica, 14 anos de experiência na SEAP).
84
“Assim, agora de cabeça assim de cabeça eu não lembro não. Eu nunca lembro de número de lei ou até de artigo, é uma coisa que eu não lembro”. (Agente de Segurança, com 14 anos de experiência na SEAP).
“Aqui eu não tive acesso, mas eu lembro perfeitamente que na faculdade mesmo eu assisti palestra, sociologia jurídica que deu muito isso. Agora legislação específica que cuida disso falta mesmo. Falta disponibilizar tanto para os funcionários quanto para os internos”. (Agente de Segurança, com 14 anos de experiência na SEAP).
Embora tenham citado estas legislações, apenas um profissional relatou utilizar a
LEP em suas intervenções, na viabilização dos direitos dos internos. Logo, ainda há um
longo caminho a ser percorrido para que de fato haja a tentativa de humanização do
tratamento penitenciário e esse movimento deve ser realizado em conjunto com a
sociedade, caso contrário o sistema penitenciário continuará sendo um local de
transgressões aos direitos humanos.
A LEP é uma das legislações do país que protege os direitos dos presos, mas
existe uma série de instrumentos internacionais referentes às prerrogativas dos
apenados dos quais o Brasil é signatário, desconhecidos desses profissionais. Por
exemplo, é possível citar A Declaração Universal dos Direitos Humanos, As Regras
Mínimas para o Tratamento de Reclusos da ONU e o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
5) Qualificação dos apenados entrevistados
O objetivo desta pesquisa é fazer um levantamento sobre dados importantes que
possam fornecer elementos significativos da vida dos presos, relativos ao delito e ao
processo de cumprimento da pena de prisão. Para tanto, foram realizadas entrevistas
com seis apenados.
4.1) Idade
85
Nesta amostra, ocorreu o predomínio de presos com idade entre 30 e 35 anos
idade. Não há registros sobre o perfil da população carcerária nesta unidade prisional,
mas através de dados empíricos obtidos nos atendimentos e relatórios no período de
estágio, foi possível afirmar que esta faixa etária é a que mais se sobressai nesta
instituição.
É importante salientar que também existe um público significativo compreendido
entre 21 e 30 anos. Portanto, com a união dos percentuais descritos na figura abaixo
com este grupo de indivíduos não contemplados na pesquisa, é possível perceber que
os apenados encontram-se em uma fase produtiva e que certamente estão sujeitos às
modificações da sociedade, aos impactos oriundos das transformações sociais
econômicas que futuramente dificultarão o acesso à educação e ao trabalho,
impossibilitando assim, a construção de uma vida melhor para si e para seus familiares.
A inexistência de serviços de abrangência de todo os apenados acaba por
restringir as possibilidades destes indivíduos, que não recebem nenhum incentivo do
Estado, com políticas de qualidade, ficando expostos à reincidência criminal quando
estiverem em liberdade.
4.2) Sexo
Por se tratar de unidade prisional masculina, todos os entrevistados compreendem
este sexo.
4.3) Escolaridade
O grau de instrução dos entrevistados é bastante heterogêneo, e foi possível
constatar que a maioria possui Ensino Médio Completo.
86
Através de pesquisa empírica e dados coletados a partir de relatórios e entrevistas
durante o período de estágio, a maioria dos presos reclusos nesta unidade prisional
possuem uma baixa escolaridade, pois apresentam ensino fundamental incompleto. Em
muitos casos, a pouca escolaridade se dá em razão da entrada precoce no mercado
formal e informal de trabalho com vistas a auxiliar financeiramente a família por questão
de sobrevivência, em outros casos segundo alguns relatos, não se sentiam motivados
ou incentivados para freqüentar a escola, iniciando atividades laborativas
prematuramente para conquista da liberdade e de bens materiais, que pelo trabalho
seria a forma mais rápida para o acesso. Porém, esta escolha significa que este
indivíduo não terá uma qualificação profissional, o que implica oportunidades de
trabalho precárias, e o mais importante que é a falta de conhecimento para o exercício
da cidadania e informações acerca do cumprimento de seus direitos.
4.4) Artigo/Condenação
Os apenados entrevistados cumprem pena por infringir os seguintes artigos: 12
14 e 18 (Tráfico Internacional), 33 (Tráfico de Drogas) e 157 (Roubo). O tempo de
condenação varia entre 3 e 39 anos de reclusão.
Crime Artigo Quantidade de Presos Pena
Roubo 157 1 35 anosTráfico de Drogas 33 1 6 anos
Tráfico
Internacional
12,14 e 18 3 12 anos / 39 anos
Associação e
Tráfico
12 e 14 1 15 anos
As ilustrações abaixo demonstram respectivamente o tempo que estes internos
estão cumprindo pena no sistema carcerário do Rio de Janeiro e também expressam a
87
quantidade de apenados que já tiveram passagem em outras unidades prisionais. O
envolvimento com o tráfico de drogas foi o delito que teve mais repercussão entre os
entrevistados. Segundo Teixeira (2007),
“O sistema penitenciário do Rio de Janeiro apresenta uma peculiaridade em relação a todos os demais sistemas das unidades da federação: enquanto em todos eles a grande maioria dos presos são condenados por roubo, no estado do Rio de Janeiro, a maior incidência de condenações é por tráfico de entorpecentes.Essa tendência encontra sua explicação na ação de grupos organizados em torno do comércio varejista de drogas. Este comércio se fundamenta em facções que são rivais entre si e disputam o controle dos espaços, sendo essa divisão em facções, um critério fundamental de distribuição de internos no sistema prisional” (2007:78).
A rotatividade dos presos entre as unidades prisionais do sistema penitenciário do
Rio de Janeiro também pode ser atribuída à rivalidade entre facções criminosas e ao
controle do tráfico dentro e fora dos muros da prisão.
5) Análise qualitativa dos dados obtidos
5.1) Opinião dos apenados em relação ao sistema penitenciário brasileiro.
Todos os entrevistados fizeram uma avaliação negativa do sistema penitenciário
brasileiro, apontando a inexistência de investimento por parte do Estado como um dos
88
Período de Reclusão
67%
33%
Entre 1 e 6 anosEntre 9 e 10 anos
Passagem em outras Unidades Prisionais
83%
17%
SimNão
principais fatores pela falta de infra-estrutura para a manutenção dos presos nas
prisões, uma vez que a ideologia do controle suscita uma série de fatores que
contribuem para tornar o cumprimento da pena muito mais doloroso, tendo em vista a
tortura cometida pelos agentes de segurança culminando na repressão e neutralização
dos presos.
Esta é uma prática corriqueira no sistema penitenciário, segundo Wolff (2005) “a
punição de um crime cometido efetiva-se para além da sentença prolatada pelo
processo judicial. Isto porque, se não temos, nos tempos atuais a exposição pública do
suplício, sabe-se que de forma extralegal, ele é levado a cabo nas delegacias, presídios
e penitenciárias brasileiras (...)”.
Sobre o sistema penitenciário, um entrevistado declara:
“Ele é totalmente falido, falido no modo de estrutura, ele é totalmente falido. A alimentação é ruim, a falta de estrutura física, tudo engloba desde o funcionário mal remunerado, e isso repercute no dia a dia de trabalho dele, ele vem esculachar um interno. Então isso tudo é uma bola de neve, de um sistema falido”. (Interno com 45 anos, nunca teve passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 2 anos e 4 meses de pena).
Existe uma relação de poder entre desiguais dentro das prisões, ao mesmo tempo
em que o interno relata sua opinião sobre a ineficácia do sistema prisional, tenta
justificar os atos dos agentes de segurança com o mesmo argumento utilizado para
demonstrar a ineficiência das prisões. Ou seja, violação de direitos perpassa o cotidiano
dos apenados e dos agentes que cuidam da custódia dos presos.
“Eu acho que o sistema carece de oportunidades para ocupar o tempo. Tem falta de atividades, até assim de alojamento, a comida poderia ser melhor também. É que tem várias deficiências, certamente que não existe nenhum sistema que é bom, porém sempre deve ser tentado melhorar o sistema porque também faz parte da sociedade da qual a meta é ressocializar para ter o convívio com o resto das pessoas da sociedade”. (Interno com 57 anos, já teve passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 9 anos e 2 meses de pena).
89
Este interno também reproduz o discurso da ressocialização. Para o público
carcerário esta é a única via para o retorno à sociedade, para eles, as prisões não são
produtos do contexto social em que estão inseridos, portanto torna-se necessária uma
suposta transformação do indivíduo para que ele se “reintegre” socialmente.
Logo, o período de reclusão traz conseqüências que influenciam significativamente
em suas vidas (...) “as marcas são físicas e somáticas, como as limitações de funções
orgânicas, lesões e dores permanentes. São também emocionais, pois produzem
diferentes traumas e perturbações e, são ainda, sociais, no momento em que
incapacitam para o trabalho, com repercussões na família e no meio social.
• Principais dificuldades enfrentadas durante a execução da pena
As principais dificuldades apontadas pelos apenados consiste nas precárias
condições da prisão (alimentação, higiene,...), acesso a informação, convivência com
os demais internos e funcionários, carência em relação aos familiares.
Os apenados relataram que enfrentam vários empecilhos para receberem os
familiares, pois o Estado e seus agentes ainda trabalham com o conceito de família
estruturada – composta por pai, mãe e filhos; uma vez que os presos são oriundos de
famílias que não seguem este modelo e ficam privados das visitas porque não é
permitida a confecção de carteiras de visitantes para parentes não co-sanguíneos (tios
(as), primos (as), cunhados (as), limitando-os em suas relações sociais e afetivas).
Em muitos casos, os presos não têm a possibilidade de receber a visita dos pais,
dos irmãos, tendo em vista que muitas famílias residem em locais distante do complexo
penitenciário e não possuem recursos financeiros para as despesas como o
90
deslocamento e alimentação. Assim, os demais familiares e amigos, que no período
anterior a prisão, faziam parte das redes sociais dos internos, ficam impossibilitados de
realizar visita aos entes encarcerados e os presos ficam destituídos do direito de
conviverem com pessoas que podem contribuir para a vida durante e após a prisão.
Os familiares cumprem pena junto com seus entes privados de liberdade, portanto
também sofrem com os preconceitos e com a precarização dos serviços nas unidades
prisionais.
É importante salientar o quanto às normas estabelecidas pelo sistema
penitenciário se torna rentável durante os dias de visita dos familiares.
“O comércio tem a funcionalidade de servir aos critérios para ingresso. Como exemplo, podemos citar: o quiosque que aluga roupas para os visitantes que vieram vestidos de forma que foge à regra do presídio; supermercados que vendem os alimentos, principalmente os perecíveis, que não podem ser levados de casa; o mercado, que vende até o saco plástico transparente, onde devem ser acondicionados os alimentos para passar pela revista; os bares, onde as mulheres aguardam; o banheiro, que é pago. Enfim, são construídos diversos meios de atender as regras do sistema e de favorecimento financeiro através da exploração dos familiares. (SANTOS, 2007:17).
As condições insalubres dos presídios também fazem parte do conjunto de
situações relatadas pelos presos como dificuldades enfrentadas no interior dos
presídios. Estes são obrigados a conviverem amontoados em locais sem higiene,
alimentação adequada, assistência médica insuficiente, assistência judiciária, dentre
outros.
Os presos ficam propensos a várias enfermidades, seus familiares sofrem com as
humilhações das revistas para entrada nas unidades prisionais e com os abusos de
autoridade cometidos pelos agentes penitenciários. Não conseguem realizar o
acompanhamento de suas penas devido a toda burocracia imposta pelo aparato judicial
na garantia dos benefícios de Progressão de Regime e Livramento Condicional.
91
Todas essas questões rebatem no tratamento dispensado aos presos pelo Estado,
um completo desrespeito aos direitos destes indivíduos que estão sob sua tutela e
possuem a garantia destas prerrogativas em legislações de proteção aos direitos
humanos.
“Eles tratam mal, eles não tratam como gente, tratam como bicho, a gente é tratado como se fosse animal. Ninguém é nada, ninguém tem direito a nada”. (Interno com 32 anos, já teve em passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 1 ano e 6 dias de sua pena).
Assim, a vida dentro do cárcere é formada por um conjunto de práticas que se
resumem na falta perspectivas para os apenados. As prisões visam muito além do
cumprimento da pena, embora objetivem o tratamento dos reclusos, acabam por
reproduzir ou eliminar os mesmos.
5.2) Significado dos Direitos Humanos para os presos
Os apenados também não apresentam muita clareza sobre os direitos humanos.
Constatou-se nos dados obtidos que alguns fizeram relação com direitos que possuem
enquanto presos, dando ênfase à integridade física e outros vincularam os direitos
humanos a grupos de indivíduos, que visitam as unidades prisionais para investigar as
condições das prisões.
“A gente entende, por exemplo, que o lugar que a gente dorme poderia ser mais organizado, tipo roupa de cama, colchão... Muita gente não tem cama pra dormir, dorme em um colchão que dura três, quatro dias e já não presta mais (...). Alguns têm condições de trazer, a família manda, outros já não têm”. (Interno com 32 anos, já teve em passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 1 ano e 6 dias de sua pena).
“São todos os direitos que todos os seres humanos têm, de, por exemplo, pra ter uma situação digna. Na teoria os presos devem ter seis metros quadrados de espaço, tem que ter uma alimentação adequada tem que ter as coisas básicas, ou seja, as coisas básicas para os seres humanos sobreviverem sem sofrimento. Não pode sofrer maus tratos, tanto físico quanto psicológico. Então acho que tudo isso faz parte do que são os direitos humanos”. (Interno com 57
92
anos, já teve passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 9 anos e 2 meses de pena).
Nestes depoimentos, os apenados identificam os direitos humanos como direito à
integridade física, em decorrência das situações de maus-tratos por eles vivenciadas.
É possível apreender também que o Estado não tem cumprido o seu papel de
garantir os direitos destes indivíduos, na medida em que é o responsável pela custódia
dos apenados. Estes acabam por receber apoio material e emocional através de seus
familiares e aqueles que não possuem familiares ficam sujeitos a precariedade das
prisões.
“Eu escrevi uma para eles, mas que tipo de direitos humanos na cadeia? Se você é delinqüente não tem direito nenhum na lei. Aqui você só tem direito ao seu cantinho, sua comida e mais nada. Dentro daqui da cadeia não tem direitos humanos, lá fora pode ter, mas aqui dentro preso não tem direito não. Direito humano é preso abaixar a cabeça (...)”. (Interno com 33 anos, já teve em passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 5 anos e 9 meses de sua pena).
“Raramente a gente vê falar alguma coisa. Desde que estou aqui, raramente apareceram, (...) se vieram aqui deram uma voltinha na cadeia e foram embora”. (Interno com 45 anos, nunca teve passagem em outras unidades prisionais, já cumpriu 2 anos e 4 meses de sua pena).
Nos relatos acima, os entrevistados relacionam os direitos humanos a comissões
de investigação sobre questões relacionadas à tortura, arbitrariedades, maus-tratos, no
interior das prisões. Há uma afirmação sobre a inexistência dos direitos humanos
dentro do sistema penitenciário, tendo em vista que os presos não são considerados
cidadãos perante agentes penitenciários e determinados segmentos da população.
Portanto, é possível apreender que o debate sobre direitos humanos ainda é
bastante restrito neste espaço, considerando também os depoimentos de alguns
profissionais que trabalham nestas instituições.
93
Os presos, assim como uma grande parcela da população têm seus direitos
violados pela falta de conhecimento dos mesmos ou das formas de acesso para obtê-
los e garanti-los.
O espaço prisional se sustenta na idéia de uma suposta segurança à sociedade,
na qual indivíduos perigosos são excluídos deste meio considerado harmônico. Desta
maneira, o apoio da sociedade “à violação de direitos dos presos vem sendo
alimentada pela imagem de que o sistema penitenciário não é punitivo. Ou pela imagem
de que o infrator da lei não tem condições e oportunidade de ser regenerado, sendo,
portanto, um privilegiado, que grande parte da população não tem acesso aos mínimos
sociais” (Guindani, 2001:49).
Estas se constituem justificativas recorrentes para o desrespeito aos direitos
humanos dos presos, retira-se do Estado a atribuição de prover o bem estar de todos
os indivíduos e culpabiliza-se os apenados pelas suas condições, desconsiderando a
realidade social em que estão inseridos.
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência na sociedade brasileira tem sido agravada pelo aumento da
criminalidade, face aos problemas oriundos do modo de produção vigente na
sociedade. Há intrínseco neste processo a vinculação entre pobreza e criminalização, o
que possibilita ainda mais o descumprimento das leis e outras ilegalidades contra os
pobres, segmento populacional de maior expressão na sociedade brasileira.
Neste trabalho buscou-se a realização de uma análise sobre a violação de direitos
dos presos no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, uma instituição que ao longo de
sua trajetória tem um histórico de infringir os direitos humanos.
A população sofre com a precarização dos serviços oferecidos pelo Estado e com
o descumprimento dos previstos na Constituição Federal de 1988.
O Brasil apresenta índices inaceitáveis de desigualdades sociais e o sistema
penitenciário reflete a realidade social do país, onde as taxas de encarceramento
representam a falta de investimento sociais no combate à pobreza. A ausência de
políticas voltadas para áreas como Educação, Saúde, Habitação e Trabalho fragilizam
as condições de vida da população brasileira.
As mazelas da questão social são reproduzidas através de políticas sociais
assistencialistas e focalizadas que não respondem aos problemas sociais, e às
demandas essenciais da população, tornando-se alvo de ações pontuais, sem o
enfrentamento dos problemas estruturais da sociedade.
Cabe ao conjunto da sociedade, a mobilização para ampliação e universalização
das políticas sociais, para que uma parcela significativa da população não vivam
situações desumanas e de indigência.
95
A permanência de violações de direito no sistema prisional é um desafio para
todos os profissionais que nele exercem suas atividades. O Serviço Social, em especial,
tem como princípios norteadores de sua profissão, a liberdade, a democracia e a
cidadania, com vistas à construção de uma sociedade mais justa e igualitária para
todos; desta maneira, na perspectiva de consolidar e garantir os direitos humanos, deve
zelar pelo respeito e cumprimento desses direitos no sistema penitenciário brasileiro.
No entanto, para que os direitos sejam efetivados, Almeida sinaliza que:
“No plano institucional, é fundamental uma profunda reforma do sistema judicial. Enquanto a justiça for cara e morosa, carregada com indisfarçados traços de classe e de uma visão elitista, a defesa dos direitos humanos encontrará obstáculos quase intransponíveis. Igualmente indispensável é a transformação medular do aparelho policial: enquanto corroído pela corrupção, notabilizado pela ineficácia e impermeabilizado pelo corporativismo, haverá de movimentar-se sempre na contracorrente dos direitos humanos (independentemente de quaisquer manifestações retóricas). Corolário dessa dupla e estrutural alteração será a metamorfose do sistema penitenciário, verdadeira chaga da nossa sociedade” (2001:44,45)
A luta pela consolidação dos direitos humanos no Brasil é fundamental para a
construção de uma sociedade democrática, sem dominação de classe, etnia e gênero.
Logo, a afirmação de direitos no sistema penitenciário deve ser alvo de debates
incessantes para que os apenados tenham condições de continuarem a suas vidas
após a prisão.
Cabe ressaltar que o discurso ressocializador presente entre os profissionais do
sistema penal, não se efetiva nas prisões dado os elementos apontados na pesquisa e
todas as informações que são veiculadas cotidianamente. O sistema carcerário não se
constitui em um instrumento de contenção da criminalidade, esta instituição acaba por
produzir indivíduos estigmatizados, desestabilizando suas relações, familiares e
profissionais tendo em modo em que é administrada a execução penal no Brasil.
96
Verifica-se que o cumprimento da pena dá margem para outras punições, os
direitos dos apenados não são efetivados e estes sofrem uma série de injustiças,
ficando vulneráveis no processo de aprisionamento.
A fragilidade na efetivação dos direitos sociais se traduzem na formulação das
políticas sociais segmentadas para o enfrentamento da questão social. Estas possuem
um papel fundamental nos processos de seleção das pessoas sujeitas a criminalização,
pois aqueles que não têm acesso às condições dignas de vida ficam mais propensos a
cometerem delitos. Logo, cabe ao Estado zelar pelas garantias deste segmento
populacional e fornecer a todos os indivíduos os elementos necessários para uma vida
digna. Caso isto não ocorra, os índices de criminalidade permanecerão elevados
favorecendo a propagação da violência na sociedade brasileira e as desigualdades
sociais continuarão acirrando as mazelas da questão social no país.
97
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102
ANEXOS
103
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Escola de Serviço Social Disciplina: Trabalho de Conclusão de Curso Profª: Suely Souza de Almeida Aluna: Vanessa Ramos Andrade
Título: Sistema Prisional e Direitos Humanos: desafios para consolidação de uma política de garantia e proteção aos direitos dos presos.
Roteiro (Entrevistas)
PROFISSIONAIS
1) Idade:
2) Sexo:
3) Formação:
4) Ano:
5) Instituição de Ensino:
6) Titulação:
7) Vínculo empregatício com a SEAP:
8) Há quanto tempo encontra-se trabalhando no sistema penitenciário?
9) Qual a sua opinião em relação a política de encarceramento adotada pelo sistema
penitenciário brasileiro?
10) Quais os rebatimentos desta política no seu cotidiano profissional?
104
11) Descreva o seu cotidiano profissional e explique de que forma desenvolve a sua
intervenção e sobre que condições ela se realiza.
12) Quais os limites e as possibilidades para implementação do trabalho?
13)Quais os desafios ético-políticos do seu trabalho dentro desta instituição?
14) O que você entende por direitos humanos? Consegue viabilizá-los na sua intervenção
profissional?
15) Possui conhecimento de legislações referentes à proteção dos direitos dos presos,
nas quais o Brasil é signatário? Quais? Em algum momento de sua intervenção,
conseguiu respaldar-se nas mesmas frente a situações de violação de direitos?
105
INTERNOS
1.Idade:
2.Sexo:
3.Escolaridade:
4.Artigo/Condenação:
5.Período que se encontra recluso:
6.Possui passagem em outras Unidades Prisionais?
7.Qual a sua opinião sobre o sistema carcerário brasileiro?
8.Quais as principais dificuldades por você enfrentadas durante a execução de sua
pena?
9.O que você pensa sobre o tratamento destinado aos presos nas Unidades Prisionais?
10.Tem conhecimento sobre seus direitos? De que maneira você acha que eles devem
ser garantidos?
11.O que você entende sobre direitos humanos? Consegue ter acesso a esses direitos?
106