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A Roda da Vida KIRPAL SINGH S.H.P. © Edition Naam, Cadolzburg, Alemanha

SINGH, Kirpal - A Roda Da Vida

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A Roda da VidaKIRPAL SINGH

S.H.P.

© Edition Naam, Cadolzburg, Alemanha

Tradução e Edição da

SOCIEDADE HOLOSÓFICA DE PORTUGAL

Lisboa, Maio de 2000

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PREÂMBULO

Pela sua própria estrutura, o ser humano possui uma ânsia inata de conhecer as coisas que o rodeiam e mesmo aquelas que ainda não descobriu. Esta ânsia actua logo desde a mais tenra idade, e o ser humano não cessa de aprender até ao fim da vida. Tão ilusório é o conhecimento dos seres vivos e das coisas aparentemente inanimadas que quanto mais conhecemos mais nos falta conhecer. Encontramo-nos, em cada estádio do conhecimento, numa situação lamentável e sem esperança. Pensadores e filósofos de todas as épocas jamais deixaram de pesquisar, e legaram-nos um registo escrito das suas investigações. Gerações sucessivas têm prosseguido tais investigações, mas ainda hoje, decorridos uns milhares de anos, nos encontramos no limiar do oceano do conhecimento. O conhecimento material é absolutamente desnor-teante.

O aspecto mais crítico do conhecimento material é que só estamos em contacto com ele enquanto vivemos neste corpo humano. Mas o que vem depois? Isso não sabemos nós. O verdadeiro conhecimento principia no conhecimento do Além. O grande Mestre Sant Kirpal Singh Ji, o autor desta obra, tenta esclarecer-nos acerca do verdadeiro conhecimento básico, isto é, procura levar-nos a descobrir o centro de gravidade do con-hecimento. Se nos identificarmos com esse centro de toda a existência visível e invisível, podemos conhecer tudo. Nada restará então para ser conhecido, nada restará para ser visto.

Primeiro temos de nos descobrir a nós próprios como almas, que são a fonte de toda a actividade nesta indumentária terrena. Ligando a alma ou atenção com a “Divina Luz” e o “Som Divino”, a alma liberta-se das peias da mente e da matéria, reconhece-se a si própria como alma e encontra Deus.

O autor deste livro escreveu muitos outros de grande utilidade.

Fundou Ruhani Satsang, a Divina Ciência da Alma, e também diversos Manav Kendras, centros ideais de serviço social à humanidade em geral, em várias partes do mundo e sob a sua orientação. Presidiu à Confraternidade Mundial das Religiões durante 15 anos e viu coroada de êxito a sua tentativa de trazer os líderes de todas as religiões a uma plataforma comum onde se escutassem uns aos outros e criassem laços afectivos entre si. Nesse mesmo sentido, convocou a Conferência Mundial da Unidade do Homem. Ao apelo do Homem-Deus, pessoas de todas as partes do mundo pertencentes a diferentes castas, credos, religiões, nacionalidades e convicções políticas, acorreram a Delhi às centenas de milhar e experimentaram a Unidade ao nível da Humanidade.

Kirpal Singh esforçou-se por pregar a todos a Fraternidade do homem sob a Paternidade de Deus. De acordo com as suas directivas, os centros de serviço social continuam a funcionar cada vez mais entusiasticamente. As almas que demandam a verdade desfrutam também, por graça sua, de serviço espiritual. Ele foi para a humanidade um ensinamento vivo de amor, serviço e devoção — pela humanidade e por Deus.

Oxalá as almas ardentes encontrem na sua taça de elixir o alívio, a paz e a salvação, e que lhes seja dado ascender à suprema e eterna felicidade.

Thakar Singh

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I

Não vos enganeis;Deus não se deixa escarnecer:

porque tudo o que o homem semear,isso também ceifará.

(Gal., VI:7)

Confrontado com as complexidades da vida que o prende à terra, o homem procura um caminho de saída. Para onde quer que se volte, vê o seu voo ascensional contrariado por barreiras imprevistas. Porquê tantas desigualdades neste mundo? Por que razão está bloqueado o acesso do homem à sua Morada primordial — a Morada de seu Pai Celestial? Por que é que o homem não consegue redimir o seu passado desconhecido? Para onde se há-de virar para encontrar a Luz salvadora da “Ciência Pura do Ser”? Estas interrogações levam a mente inquisitiva a uma investigação da lei universal da acção e reacção.

O termo “karma” aparece frequentemente na literatura filosófica e religiosa indiana. Na verdade, tantas vezes foi empregado por sacerdotes e pregadores que muita gente começou a considerá-lo como um tropeço imaginário no caminho da salvação espiritual. Tratando-se de um termo estranho no Ocidente, é geralmente deixado sem uma clarificação suficiente. Todos os Mestres de níveis inferiores falam da libertação mediante a acção realizada sem qualquer apego ou desejo do respectivo fruto ou resultado. Mas isto é apenas uma verdade parcial que nos deixa a meio caminho.

A mente está habituada a saborear o fruto das suas acções. Como é que vai prescindir desse hábito? As “sadhanas” (exercícios físicos ou mentais) podem ser utilizadas como instrumentos para disciplinar a mente até certo ponto. Mas, a longo prazo, este hábito da mente de desfrutar as suas experiências acaba por se afirmar. A mente só pode desistir dos prazeres mundanos quando obtém outro prazer de nível mais elevado.

Os Santos experimentam um prazer muito mais sublime — a bem-aventurança extática — no contacto com “Naam” (o Verbo de Deus ou o Divino Princípio do Som). Uma vez absorvida nesta Corrente do Som ou Naam, a mente desencanta-se do mundo. A mente tem o costume de correr atrás dos objectos mundanos e de saltar de uma coisa para a outra. O que temos a fazer, pois, não é deter o seu fluxo — que é apenas uma característica natural — mas imprimir-lhe uma direcção diferente: em vez de uma direcção descendente, para o mundo exterior, virá-la para o alto, para o mundo interior. Isto significa aproveitar as suas admiráveis aptidões e canalizar a energia mental para um curso adequado, susceptível de produzir resultados de natureza duradoura e permanente, o que é possível mediante a prática regular da absorção em Naam. É este o único método pelo qual se consegue pouco a pouco treinar a mente e acabar por torná-la inócua, com a sublimação das correntes mentais; a alma tem consciência de si própria e pode prosseguir sem impedimentos o seu caminho para a fonte original: o Eu Superior ou Alma Universal. Deste modo, os Santos que trilharam pessoalmente o Caminho — o Caminho de Surat Shabd Yoga (absorção no Verbo Sagrado ou Som Sagrado) — podem não só habilitar-nos a conseguir por nós próprios a libertação do ciclo kármico da acção e reacção, mas também nos proporcionam o acesso ao Reino de Deus, que está no interior de nós.

E agora põe-se a questão: como podem os karmas ser liquidados ou anulados? No labirinto das leis da Natureza, em que nos achamos inextricavelmente envolvidos, existe uma saída para aqueles que

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anseiam realmente pelo conhecimento do Eu e pelo conhecimento de Deus. O caminho para a saída desta densa floresta de karmas, que abrange tempos imemoriais, torna-se manifesto pela graça salvadora de um Mestre Verdadeiro. Uma vez que Ele nos aceite sob a Sua protecção e nos ponha em contacto com o eterno Verbo Sagrado ou Corrente do Som, ficamos livres de Yama, o anjo da morte que representa o aspecto negativo do Poder Supremo, o administrador da justiça no universo segundo o preceito: a cada um de acordo com as suas acções.

Cada acto de um ser vivo, realizado consciente ou inconscien-temente, independentemente do facto de se achar meramente em estado latente, como forma de pensamento, vibração mental, ou de se concretizar sob a forma de palavras que se pronunciam ou sob a forma de uma acção física, constitui karma.

Para evitar a confusão do leitor em relação ao termo “karma”, será melhor enquadrá-lo no seu contexto próprio. Originalmente, o termo significava ritos sacrificiais, rituais e “yajnas” realizados por indivíduos consoante o preceituado nos textos sagrados. Mais tarde, porém, veio a incluir todas as espécies de virtudes, sociais e de auto-purificação, como a veracidade, a pureza, a abstinência, a continência, “ahimsa”, o amor universal, o serviço desinteressado e todos os actos de natureza caritativa e filantrópica. Em suma, dava-se uma grande importância ao cultivo de “atamgunas”, que tendiam a disciplinar a mente e a encaminhar os poderes mentais na direcção certa, a fim de servirem o propósito mais alto de se libertarem de “atman”, o espírito em cativeiro.

Geralmente, classificam-se os karmas como proibidos, per-mitidos e prescritos. Todos os karmas degradantes e contrários à natureza (Nashedh) são classificados como proibidos porque a condescendência com os vícios é pecaminosa e o salário do pecado é a morte. São chamados “kukarmas” ou “vikarmas”. Vêm a seguir

os karmas que são edificantes e que nos ajudam a alcançar planos mais altos como “Swarg”, “Baikunth”, “Bahist” ou paraíso. Estes são karmas “sukama” ou “sukarmas”, ou seja, karmas que satisfazem os nossos desejos e aspirações benevolentes e que, como tais, são permitidos. Vêm por último os karmas cuja realização, de acordo com as Escrituras, é considerada obrigatória para as pessoas que pertencem a diferentes “varns” ou ordens sociais (brâmanes, a classe sacerdotal empenhada no estudo e ensino das Escrituras; “kshatriyas”, a classe guerreira, constituída por forças bélicas com propósitos defensivos; “vaishyas”, as pessoas que se dedicam ao comécio e à agricultura; e “sudras”, as pessoas que servem as três classes anteriores); realização obrigatória, também, em função dos diversos estádios da vida chamados “ashrams” (“brahmcharya, grehastha, vanprastha, sanyas”, que correspondem aproximada-mente ao período formativo da educação, à situação de homem casado e chefe de família, ao estado ascético de um eremita ou de um monge entregue a profunda meditação na solidão de uma floresta, e finalmente à condição de um peregrino espiritual que distribui pelos outros o fruto da experiência de toda a sua vida — sendo cada período de 25 anos, se computarmos em 100 anos o tempo total de vida). Estes são os karmas “netya”, isto é, karmas cuja realização é um dever do dia a dia, de acordo com a vocação e o período da vida.

Como código de comportamento moral, a lei do karma contribui valiosamente para o bem-estar moral e material do homem na terra e abre caminho para uma vida melhor no futuro. Em todas as esferas da vida humana — secular, material ou económica, religiosa e espiritual, designadas pelos termos “kama” (satisfação dos nossos desejos), “artha” (bem-estar económico e material), “dharma” (base moral e religiosa que sustém e suporta o universo), e “moksha” (salvação) — as acções ou karmas desempenham um papel vital. É a pureza moral, evidentemente, que figura como força motivadora

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para alcançarmos êxito nos nossos esforços. Para que os karmas tenham o fruto desejado, é necessário que sejam realizados com atenção diligente, simplicidade de espírito e devoção amorosa.

Para além destes há ainda uma outra forma de karma, a saber, “nishkama karma”, isto é, karma realizado sem qualquer desejo ou apego ao fruto respectivo. É superior a todas as outras formas de karma que, em maior ou menor grau, estão na origem do nosso cativeiro; mas este tipo de karma ajuda-nos um pouco a libertar da servidão kármica, embora não do efeito kármico. Note-se, contudo, que o karma “per se” não tem qualquer efeito vinculatório. É apenas o karma nascido do desejo ou “kama” que conduz ao cativeiro. Eis por que Moisés ensinou “não desejeis”, e Buda e o décimo guru dos sikhs, Gobind Singh, insistiram tantas vezes na necessidade de abolir o desejo. Deste modo, o karma é simultaneamente o meio e o fim de todos os esforços humanos. É através dos karmas que se conquistam karmas e se transcendem karmas. Qualquer tentativa para transgredir a lei do karma é tão fútil como tentar ultrapassar a própria sombra. A mais elevada forma de karma é “neh-karma”, ou “karma-rehat”, ou seja, karma realizado de acordo com o Plano Divino, com a consciência de se estar a colaborar com o Poder de Deus. Isto equivale a permanecer inerte na acção, como um ponto fixo na Roda da Vida em perpétuo movimento.

O termo “karma” pode ainda distinguir-se da palavra “karam”. “Karma” é o termo sânscrito que significa acção, feito, incluindo as vibrações mentais e as palavras proferidas, ao passo que “karam” é uma palavra persa que significa bondade, misericórdia, compaixão e graça.

Quanto à natureza do karma, na filosofa jainista, karma tem a natureza de matéria, tanto física como psíquica, havendo entre ambas uma relação de causa e efeito. A matéria, sob uma forma subtil e psíquica, enche o cosmos inteiro. Penetra na própria alma

por causa da sua relação com a matéria externa. Desta maneira, um “jiva” constrói para si um ninho, tal como fazem as aves, e fica agrilhoado pelo que se chama “Karman-Srira”, o corpo subtil, ficando aí cativo até que o eu empírico se despersonalize e se torne uma alma pura, radiante na sua luminosidade primordial.

O “Karman-Srira”, ou concha kármica que encerra a alma, consiste em oito “prakritis”, que correspondem aos oitos tipos de átomos kármicos que produzem diferentes tipos de efeitos. Estes são de dois tipos:

1 — Karmas que obscurecem a visão correcta, como por exemplo:

a) “Darshan-avarna”, que impede a percepção correcta ou a assimilação em geral;

b) “Janan-avarana”, os que obscurecem a compreensão ou entendimento correcto;

c) “Vedaniya”, os que obscurecem a natureza bem-aventurada inerente à alma, ocasionando assim sen-timentos de prazer e de dor;

d) “Mohaniya”, karmas que obscurecem a crença, a fé e o comportamento correcto.

Todos estes karmas funcionam como óculos de cor através dos quais vemos o mundo e tudo o que ao mundo pertence. A vida foi descrita poeticamente como uma “cúpula de vidro multicolorido” que “tinge a radiação branca da Eternidade”.

2 — Karmas que fazem a pessoa ser o que é, pois deter-minam a parte física do corpo, idade e longevidade, condição social e estrutura espiritual. Estes tipos são conhecidos, respectivamente, como “Naman”, “Ayus”,

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“Gotra” e “Antraya”. Existem ainda divisões e subdivisões de todos estes tipos, chegando as ramificações à casa das centenas.

As partículas kármicas espalhadas pelo espaço são inevitavel-mente atraídas por cada alma de acordo com a pressão da actividade a que ela se entrega. Este influxo constante de karma pode ser refreado se libertarmos o eu de todos os tipos de actividade do corpo, da mente e dos sentidos, estabilizando-o no seu próprio centro; entretanto, os karmas acumulados podem ser abreviados ou reduzidos pelo jejum, “tapas”, “saudhyaya”, “viaragya”, “prash-chit”, “dhyan”, etc. — isto é, austeridades, leitura de textos sagrados, desapego, arrependimento, meditação, etc.

Também o Senhor Buda realçou bastante a necessidade de um esforço, de uma luta constante destinada a obter uma vitória final sobre a lei do karma. O presente pode ser determinado pelo passado; o futuro é nosso, pois depende da vontade orientadora de cada indivíduo. O tempo é uma continuidade interminável — o passado conduzindo irresistivelmente ao presente e o presente ao futuro, em função dos gostos de cada um. O karma só deixa de nos afectar quando atingimos a mais elevada condição da mente, para além do bem e do mal. Com a realização deste ideal todo o esforço chega ao fim, pois a pessoa libertada, faça o que fizer, age sem apego. A Roda da Vida, em perpétua rotação, recebe o impulso da energia kármica; e quando essa mesma energia se esgota, a gigantesca Roda da Vida chega a um ponto morto, pois nessa altura a pessoa atinge a intersecção do tempo e do intemporal, um ponto que está em acção e no entanto permanece imóvel no centro. O Karma fornece uma chave para os processos vitais; e a consciência passa de um estádio para o outro até que o ser se torna verdadeiramente desperto ou Buda (o Iluminado ou o que vê a Luz Sagrada). Para Buda, o universo, longe de ser um simples mecanismo, era um “Dharma-

Kaya”, um corpo pulsante, com Dharma (princípio vital) a servir simultaneamente de suporte principal.

Em duas palavras, a Lei do Karma é a lei obstinada e inexorável da Natureza, que não conhece excepções e da qual não há forma de escapar. Tal como semeares, assim hás-de colher — é uma antiga verdade axiomática. É a regra geral da vida terrena, mas abrange também algumas das regiões superiores físico-espirituais, consoante a ordem de densidade e peculiaridade de cada. Karma é um princípio supremo, superior tanto aos deuses como aos homens, pois também os primeiros, mais tarde ou mais cedo, caem debaixo da sua alçada. Os vários deuses dos diferentes reinos da Natureza levam muito mais tempo a servir nas suas respectivas esferas celestiais do que os seres humanos; não obstante, em última análise têm de reencarnar em forma humana para poderem aspirar a uma eman-cipação final da ronda kármica dos nascimentos.

Todas as obras, todas as acções, constituem um dispositivo vital no Divino Plano para manter o universo inteiro em perfeita ordem de movimento. Ninguém pode permanecer totalmente isento de actividade (mental ou física), nem por um só momento. Está-se sempre a pensar ou a fazer isto ou aquilo. Por natureza, não se pode estar mentalmente vazio ou ocioso, nem se pode parar o fun-cionamento automático dos sentidos: os olhos não podem deixar de ver, os ouvidos não podem deixar de ouvir; mas o pior é que não se pode, como Penélope, desfazer o que já se fez. O arrependimento, embora bom em si mesmo, não pode curar o passado. O que quer que a pessoa pense, diga ou faça, para bem ou para mal, deixa uma impressão profunda na mente e estas impressões acumuladas fazem o sucesso ou a ruína de um indivíduo. Tal como pensamos, assim nos tornamos. É da abundância da mente que a língua fala. Toda a acção tem uma reacção, pois essa é a Lei Natural da Causa e Efeito. Por conseguinte, toda a gente tem de colher o fruto das suas acções

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— doce ou amargo, consoante os casos, quer se queira quer não.

Não há então nenhum remédio? Será o homem um simples brinquedo do destino ou da fatalidade, que trilha o seu caminho numa ordem absolutamente determinada? Há dois aspectos a considerar.

Até certo ponto, o homem possui livre arbítrio; pode assim, se for essa a sua opção, dirigir o seu curso e fazer do futuro um êxito ou um fracasso; pode até, em boa medida, moldar o momento presente em seu benefício. Dotado de uma alma viva da mesma essência do seu Criador, ele é mais poderoso do que o karma. O infinito nele pode ajudá-lo a transcender as limitações do finito. A liberdade de acção e o vínculo kármico são apenas dois aspectos do real que lhe são inerentes. Só a parte mecânica e material dele é que está sujeita à restrição kármica, ao passo que o verdadeiro espírito vital que lhe é inerente transcende tudo e dificilmente é afectado pelo lastro kármico — isto se ele se achar identificado com a sua natureza divina primordial. E como conseguir esta identificação com o nosso próprio e verdadeiro “saroop”, o Atman? Eis o que temos necessariamente de aprender se aspiramos a encontrar uma saída da interminável ronda kármica.

A dificuldade, para a maioria das pessoas, é que agem irreflec-tidamente. A cada passo vamos descuidadamente acumulando o peso das partículas kármicas, sem nos apercebermos de que existe um poder dentro de nós que regista tudo o que pensamos, dizemos e fazemos. Diz Thomas Carlyle, pensador famoso: “Louco! Pensas que, por não haver nenhum Boswell que tome nota dos teus disparates, eles morrem e são enterrados? Nada morre, nada pode morrer. A palavra mais insignificante que pronunciares é uma semente lançada no tempo e produz fruto para toda a eternidade.” Identicamente, Ésquilo, o pai da tragédia grega da era pré-cristã, escreveu:

Nas profundezas do céu inferior,A morte domina os caminhos do homemCom o seu braço poderoso e severo;E não há ninguém que consiga,Pela força ou acção,Iludir o olhar atento da MorteOu os registos do seu coração.

De “As Euménides”

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II

Os karmas foram classificados pelos Santos em três categorias distintas:

1) “Sanchit” — karmas acumulados e armazenados desde encarnações que se perdem na memória dos tempos.

2) “Pralabdha” — sorte, fado ou destino; aquela porção de Sanchit (armazém) que constitui o presente de uma pessoa viva e a que ninguém pode escapar, por mais que o tente ou deseje.

3) “Kriyaman” — karmas que a pessoa é livre de realizar como agente livre na vida ou existência terrena presente, e pelos quais pode edificar ou arruinar o seu futuro.

1) Sanchit, as acções armazenadas:

Acções boas e más que firmam os créditos do homem, contados em todas as existências anteriores na ordem da criação, a partir do dia em que a vida surgiu na terra pela primeira vez. O homem nada sabe a seu respeito, nem quanto à sua extensão nem quanto à sua enorme energia potencial. O rei Dritharashtra, o progenitor cego dos príncipes “kshatriyas”, os Kauravas da Idade Épica, quando foi dotado com o seu poder yóguico pelo Senhor Krishna, foi capaz de descobrir a causa da sua cegueira numa acção praticada no passado

ignoto, mais de cem encarnações atrás...

No capítulo 20:5 do Êxodo, quando Moisés revela os Dez Man-damentos de Deus, atribui-lhe as seguintes palavras: “Eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus zeloso, e visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e à quarta geração...” A própria ciência médica dos nossos dias reconhece a parte significativa que a hereditariedade desempenha; certas doenças têm origem nos progenitores e repetem-se em gerações sucessivas. Igualmente a moderna psicologia relaciona o comportamento problemático de certos indivíduos com as peculiaridades mentais dos pais e antecessores.

2) Pralabdha: uma parte determinada dos karmas sanchit que constitui o destino ou fado duma pessoa, fixando a sua presente existência na terra. A pessoa não controla estes karmas. O seu efeito, bom ou mau, tem de ser suportado o melhor possível, quer com lágrimas quer com sorrisos. A vida presente é apenas um desenrolar dos karmas predestinados, que cada um traz sobre si quando vem a este mundo.

É possível, no entanto, que uma pessoa tenha a oportunidade de moldar e desenvolver o seu eu interior, mediante a orientação de uma Alma Mestra, ao ponto de não sentir o aguilhão amargo e acerado desses karmas, tal como o miolo duma amêndoa ou duma noz madura não sente a picada de uma agulha, pois se destaca da concha exterior que, em consequência, enruga e endurece, servindo assim de armadura protectora.

Desta maneira, cada um de nós, de vontade ou contra vontade, consciente ou inconscientemente, vai forjando cadeias para si mesmo, não importando se elas são de ouro ou de ferro. Cadeias são sempre cadeias e a sua eficácia é sempre a mesma: mantêm a pessoa em cativeiro perpétuo. Tal como um pobre bicho da seda aprisio-nado no seu próprio casulo ou como uma aranha apanhada na

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9A LEI DA ACÇÃO E REACÇÃO

própria teia, ou um pássaro na gaiola, a pessoa fica presa com argolas de aço que ela mesma fabricou, sem qualquer oportunidade de escapar. Deste modo se põe em movimento o ciclo perpétuo do nascimento, morte e renascimento. Só quando uma pessoa trans-cende a consciência corporal e se torna “Neh-Karma”, isto é, inactiva na acção, como o ponto imóvel no centro da roda da vida em rotação perpétua, é que se detém o movimento da Gigantesca Roda dos Karmas, uma vez que a pessoa se converte então num colaborador consciente do Plano Divino. Eis por que Buda, o príncipe dos ascetas, recomendava vivamente: “Não desejeis” — pois que os desejos estão na origem do sofrimento humano, motivando acções a partir das vibrações subtis do subconsciente, que passam a pensamentos no plano consciente e conduzem à extensa e ilimitada colheita de acções variadíssimas, de todas as formas e tons, que brotam do desequilíbrio da mente.

O espírito, sentado na carruagem do corpo, é assim arrastado às cegas para as regiões dos prazeres sensoriais pelos cinco fogosos corcéis dos sentidos, incontrolados pela mente — um cocheiro intoxicado de poder e inevitavelmente desequilibrado — com as rédeas do intelecto pendendo, soltas, ao sabor do movimento. A auto-disciplina é então de importância primordial, e a castidade de pensamentos, palavras e obras é o requisito essencial que ajuda a pessoa no caminho do auto-conhecimento e do conhecimento de Deus, dado que a vida ética é um marco que conduz à espiritualidade.

3) Kriyaman: é a conta corrente das nossas acções voluntárias na existência presente. Este tipo de karma é completamente distinto dos outros dois.

Apesar das limitações impostas por Pralabdha ou destino inalterável, cada pessoa é dotada de livre arbítrio, sendo livre de

semear as sementes que puder. Dotado com o dom da faculdade discriminatória, exclusivamente privativa da sua constituição, o homem pode julgar por si o que é certo e o que é errado; sendo assim, seria presunção vã da sua parte esperar um leito de rosas depois de ter semeado cardos e espinhos. Depende dele o êxito ou a ruína do seu futuro.

Uma Alma-Mestra pode fornecer-lhe uma orientação correcta, indicando-lhe os verdadeiros valores da vida — vida que é bastante mais que o vestuário corporal e tudo aquilo que lhe está ligado (a existência dominada pelos sentidos). Sob a Sua orientação, o homem desenvolve facilmente um desapego do mundo e das coisas do mundo; quebrado o encanto, os antolhos caem e a realidade crua apresenta-se-lhe de frente, dando-lhe uma oportunidade de escapar ileso. Normalmente, porém, alguns dos karmas kriyaman produzem fruto nesta mesma vida. Outros, pelo contrário — os que não deram fruto — são transferidos para a conta geral dos karmas sanchit, que se vão acumulando de época em época.

Nestes termos, é oferecida ao indivíduo a possibilidade de pensar antecipadamente, de pesar bem as consequências das acções a realizar antes de dar o passo irreversível — um salto no escuro, um mergulho temerário num capricho de impetuosidade, que será deplorado para sempre e que não pode ser desfeito culpando as estrelas de uma suposta influência maligna. Um engenheiro de caminhos de ferro, por exemplo, tem de planear antecipadamente o itinerário da via férrea, pois uma vez a linha assente, os comboios correm às cegas. Um pequeno erro ao assentar os carris, uma placa solta ou ângulo mal calculado, podem provocar resultados calamito-sos. Mesmo que tudo seja feito como deve ser, é necessário manter uma vigilância rigorosa e constante, de dia e de noite, para que nada se desloque, pois doutro modo a via pode ser danificada pelos elementos hostis.

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10 A RODA DA VIDA

De acordo com a lei natural da vida, o homem (a alma encor-porada ou encarnada) é como uma jóia preciosa encastada em três cofres ou corpos — físico, astral ou mental e causal ou corpo-semente — partilhando todos eles, em maior ou menor medida, da natureza terrena, com graus variáveis de densidade.

E há corpos celestes e corpos terrenos; mas uma é a glória dos celestes e outra a dos terrenos.

I Cor, 15:40

Estes corpos são como um sobretudo, o casaco que está por baixo e a camisa por baixo do casaco. Quando um homem põe de parte o corpo físico, o seu espírito continua a envergar o corpo astral ou mental. Possui ainda o corpo causal ou corpo-semente etérico, véu delicado subjacente ao vestuário astral. Até que a pessoa seja capaz de abandonar o corpo físico, não consegue alcançar o primeiro céu, o reino astral que está dentro de si:

E agora digo isto, irmãos: que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herda a incorrupção... Porque convém que isto, que é corruptível, se revista da incorruptibilidade, e que isto, que é mortal, se revista da imortalidade. E quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó sepultura, a tua vitória?

I Cor, 15:50-53-55

Esta transformação, este abandono do corpo, pode ocorrer na dissolução final — o processo de desintegração comummente co-nhecido como morte — ou ser provocado pelo método da retirada voluntária das correntes sensoriais do corpo, tecnicamente co-

nhecido como “elevação acima da consciência corporal” por um processo de inversão e auto-dissociação. Os Evangelhos referem-se a esta retirada como “nascer de novo” ou “ressurreição”. As Escrituras hindus falam dela como “duas vezes nascido” ou “do-janma”. É um nascimento do espírito, distinto do da água, sendo este de “semente corruptível” e distinguindo-se assim do primeiro, de “semente incorruptível”, inalterável e permanente (o espírito). Os derviches muçulmanos (místicos) chamam a esta morte-em-vida “morte antes da morte”. O homem pode aprender a retirar-se, não só do seu corpo físico mas também dos outros dois corpos (astral e causal), mediante o auxílio generoso de um Santo Mestre, que se transcendeu a si mesmo no Além e pode ajudar os outros a proceder do mesmo modo. É mister, pois, “abandonar a carne pelo espírito”, se se está ansioso por escapar à perpétua Roda da Vida neste planeta sublunar.

No curso natural das coisas, o “jiva” (a alma encarnada ou espírito encorporado), após a morte física, não tem outra alternativa senão voltar oportunamente ao plano físico numa forma física, cuja natureza é determinada pelas suas propensões e inclinações naturais dominantes, a intensidade dos seus anseios e dos desejos longamente acarinhados e insatisfeitos, encastados na sua estrutura mental e sobretudo predominantes na altura da morte; a sua imperiosa influência molda irresistivelmente o curso da vida seguinte.

Amável e generoso é o Divino Pai,Que concede aos Seus filhos o que eles desejam.

Todavia, se uma pessoa, sob a orientação de um Mestre Perfeito (Sant Satguru), aprender o processo prático de auto-dissociação, ou seja, aprender a retirar-se voluntariamente do corpo físico e desenvolver o processo por uma prática regular, obtém uma experiência do Além enquanto viva (morte em vida); o resultado é que as escamas antigas das suas ilusões começam a cair-lhe dos

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11A LEI DA ACÇÃO E REACÇÃO

olhos e o mundo e as coisas do mundo perdem o seu encanto hipnótico; vendo as coisas nas suas cores verdadeiras, compreen-dendo o valor intrínseco de cada coisa, a pessoa vai eliminando os desejos e liberta-se — mestra de si própria, a alma libertada (jivan mukat). A partir daí, a sua vida continua somente para completar, sem apego, o tempo que lhe foi destinado. A isto se chama um novo nascimento (ou o segundo advento da alma) — a vida eterna. Mas como é que se pode lá chegar? Cristo ensina-nos:

E quem não tome a sua cruz e não segue após mim — não é digno de mim.Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.

Mat. 10:38-39E no Evangelho de S. Lucas:

E (Jesus) dizia a todos: se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo e tome a sua cruz, e siga-me.

Luc. 14:27Vemos assim que a “morte” em Cristo é o caminho para “viver”

com Cristo eternamente. Aprende a morrer para que possas começar a viver — é a exortação de todos os Santos. Entre os Muçulmanos isto é conhecido como “fana-fisheikh” ou auto-apagamento no “Murshid” ou Mestre. Por conseguinte, é factor de capital importância encontrar primeiro um Mestre Vivo suficientemente competente para interromper de uma vez para sempre o ciclo dos karmas, que doutro modo não conhece fim, e buscar refúgio aos Seus Santos Pés; assim se consegue a libertação da influência funesta dos nossos próprios actos, que doutro modo continua a perseguir-nos sob a forma de euménides e de fúrias.

A respeito do poder do “Jagat-Guru”, diz-se:

Um Jagat-Guru é capaz de anular os karmas pelo olhar e pela palavra; na sua presença, os karmas voam como as

folhas no outono levadas pelo vento.

E ainda, na Escritura:

Grande é o poder do anjo retribuidor, e ninguém pode escapar à sua fúria. Mas foge, com receio da morte, perante a rajada sonora da Palavra.

Quanto ao funcionamento da Lei Kármica, o exemplo seguinte pode ajudar-nos a entender a situação mais explicitamente.

Imaginemos duas espécies de grainhas de uva, uma amarela e outra castanha. Suponhamos que as grainhas amarelas representam as boas acções e as castanhas as más acções. Montes de ambas as espécies enchem um quarto até ao tecto. Isto constitui o armázem humano de karmas sanchit.

Temos o indivíduo A (corpo físico mais alma), que desde há muito acalenta o desejo de se tornar rei. Adoece, e o seu desejo insatisfeito de se tornar rei não lhe sai do pensamento. Entretanto, chega o momento em que a Natureza o obriga a abandonar o corpo físico; mas, de acordo com a Lei da vida, após a morte continua a envergar os corpos astral (mental) e causal (etérico). Passa agora a funcionar como espírito desencorporado ou desencarnado mas no seu outro vestuário, a matéria mental, tanto astral como causal. Uma vez que a mente é o armazém de todas as impressões, A continua a lembrar-se do seu desejo de vir a ser Rei. A, como espírito desencorporado (jiva), desprovido do corpo físico, enfrenta uma dificuldade: não lhe é possível funcionar como rei até que, uma vez mais, torne a envergar uma roupagem física que lhe permita tornar-se rei, numa ou outra etapa da sua carreira terrena. Impulsionado pelo motor infalível de toda a actividade, a sua matéria mental, é levado a aproveitar alguns karmas não frutificados que sejam capazes de produzir um novo conjunto de circunstâncias, susceptível de o auxiliar na realização do desejo longamente acalentado e

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12 A RODA DA VIDA

profundamente gravado.

O grande motor a que se fez referência tem dois aspectos: positivo e negativo. O primeiro impulsiona o indivíduo no regresso ao Lar; o segundo controla e orienta a vida no plano terreno. A Natureza, o aspecto negativo do Poder que é Uno, tem a ver apenas com a administração da vida tal como existe no planeta físico; a sua função principal é manter o mundo bem povoado e as pessoas empenhadas em diversos padrões de vida, em função dos méritos respectivos. Chama-se-lhe vulgarmente “Pralabdha” e talha a vida terrena de cada indivíduo com uma precisão absoluta e uma arte infalível.

Nas circunstâncias acima referidas, a pessoa vive numa espécie de ratoeira e não pode deixar de desenvolver aquilo que traz consigo em essência: é uma revelação ou manifestação do passado, oculto na semente ou essência que jaz adormecida no fundo da matéria mental essencial e que se projecta na tela da vida com os seus variadíssimos padrões e cores, assumindo as linhas mais diversas — é que a vida emerge da radiação primordial pura e eterna, que normalmente perdemos de vista à medida que vamos sendo absorvidos na “cúpula de vidro multicolorido” que nos encerra e pressiona de todos os lados com a passagem do tempo. A Mãe Natureza encarrega-se agora do seu filho de leite, a quem prodigaliza generosamente todas as suas dádivas, de tal modo que a pessoa desfruta, sem o saber, em plenitude e até à saciedade, aquilo por que suspirou no passado. Ofuscada pelo encanto das dádivas, a pessoa esquece o Grande Ben-feitor, o Dispensador das Dádivas, e fica presa nas malhas inextricá-veis da morte.

Isto é apenas uma parte da vida levada por A, como que um jogo predestinado. Concomitantemente, há uma outra parte, uma contrapartida de importância vital que depende da liberdade de acção e independência volitiva dada a todos os seres. É no correcto

entendimento dos valores superiores da vida e no aproveitamento pleno das oportunidade que lhe são dadas que reside a sua salvação, aqui e agora. Assim, paradoxalmente, o homem é, não só uma criatura do seu destino (passado), mas também um criador do seu destino (futuro). O que nós trazemos tem de ser realizado; o que fizermos agora moldará o nosso porvir. A sabedoria, portanto, está na escolha. O poder mental é uma entidade singela; se for correc-tamente orientado, pode, qual servo obediente, dar boa conta de si mesmo. Mas se lhe permitirem sobrepor-se ao espírito que dá a vida, revela-se um parasita traiçoeiro que suga a vitalidade e faz secar a planta de que vive e prospera e da qual retira a sua própria vida e sustento. Temos, pois, de ter o máximo cuidado para conseguirmos uma sementeira e um cultivo adequados enquanto desempenhamos o papel que nos é destinado no drama humano, no teatro da vida, à luz da radiação eterna que brilha através de todos os obstáculos, quer o saibamos quer não. A Vontade Suprema encontra-se já impressa no padrão do nosso ser, pois sem isso não pode haver existência; e conhecendo essa vontade e trabalhando em uníssono com essa Vontade, temos a possibilidade de escapar da Roda da Vida. O guru Nanak, no “Jap Ji”, refere-se a este facto nestes termos:

Como é possível conhecer a Verdadee abrir caminho através da nuvem de falsidade?Há um caminho, ó Nanak, para fazer nossa a Sua vontade,vontade que já se encontra lavrada na nossa existência.

Vemos, portanto, que os karmas e os desejos são responsáveis pelo ciclo interminável de nascimentos e renascimentos. Como, então, pôr fim a este ciclo incessante? Existem só duas maneiras de exaurir ou esgotar o imenso e ilimitado armazém de karmas — o muro de granito impenetrável entre a pessoa humana e o Supremo Ser, com o véu espesso da mente ignorante a interpor-se constan-

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13A LEI DA ACÇÃO E REACÇÃO

temente. São os seguintes os dois caminhos para solucionar este problema:

1) Deixar que a Natureza se encarregue de esgotar o armazém no seu devido tempo, se tal é possível, verdadeiramente.

2) Conseguir de uma Alma Mestra o conhecimento prático e a experiência da Ciência da Vida, no plano terreno como nos espirituais, e começar imediatamente a trabalhar para transitar de um para outro, enquanto restar oportunidade para tal.

O primeiro caminho, não só infinitamente longo como tortuoso em extremo, é falso e cheio de perigos e armadilhas a cada passo. Levará tempos sem conta até se alcançar a meta, se a pessoa for suficientemente afortunada para o conseguir. Além disso, a Natu-reza, por si própria, dificilmente ajuda alguém a desembaraçar-se a si mesmo da inexorável Ordem Kármica, pois isso acarreta a sua própria extinção e da sua descendência.

O nascimento humano é na verdade um privilégio raro, que se obtém depois de se passar por um longo processo evolutivo na criação, processo que abrange inúmeras formas ou encorporações que o Princípio Vital assume no plano físico. Uma vez que se perca esta oportunidade dourada, o jiva ou espírito encorporado tem de continuar na Roda da Vida, de acordo com as tendências mundanas geralmente predominantes durante o seu tempo de vida, e particular-mente aquelas que prevalecem e se projectam a si próprias no momento da passagem deste mundo; e a lei reza deste modo: “Onde a mente estiver, para lá vai o espírito irresistivelmente”. Assim sendo, é quase impossível a um espírito encorporado vulgar transcender o plano sensorial e manter a mente imobilizada e absorvida em si mesma, por meio dos seus próprios esforços, sem qualquer auxílio ou orientação, ainda que tais esforços sejam verdadeiramente hercúleos. Só um Homem-Deus ou Poder Supremo

está em condições de, por compaixão, ajudar um jiva a recuperar o reino perdido — o reino espiritual —, do qual se afastou por causa da desobediência aos mandamentos de Deus. Este caminho é semeado de perigos inauditos que espreitam a cada passo e que provêm até da própria natureza do indivíduo; daí que nenhuma pessoa mentalmente saudável se atreva a tentar a sorte por uma vereda tão solitária e exaustiva, que na maior parte dos casos conduz a um beco sem saída.

Pela adopção do segundo caminho, busca-se um Mestre espiritual competente que exerça influência sobre todos os poderes subor-dinados deste e doutros planos mais elevados da existência. Só Ele pode liquidar as contas kármicas do espírito falido. No momento em que Ele aceita um indivíduo como Seu, assume nas próprias mãos o processo de liquidação do interminável jogo kármico que provém do passado ignoto. O Mestre põe termo à carreira louca e irreflectida do indivíduo. “Alto, já basta!” — é o Seu mandamento; e coloca então o indivíduo na “auto-estrada” que conduz a Deus. Geralmente, não interfere com o Pralabdha ou destino, que tem de ser neces-sariamente concretizado, o melhor possível, a fim de completar o tempo de vida atribuído e de permitir colher o fruto; quanto ao Sanchit, o imenso armazém vai ser anulado pelo Mestre, colabo-rador consciente do Plano Divino, que põe o espírito em contacto com a centelha de Naam. O contacto com Naam (Verbo Sagrado) reduz imediatamente a cinzas o armazém dos karmas sanchit, assim como os karmas kriyaman ainda não frutificados e cometidos até então, tal como uma faúlha pode reduzir a cinzas uma floresta inteira ou uma montanha de bidões de combustível. O guru Nanak refere-se a isso com grande beleza no Pauri XX do Jap Ji, a oração matinal dos sikhs:

Quando as mãos, os pés e o corpo estão emporcalhados (com pó), lavam-se com água;

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14 A RODA DA VIDA

Quando as roupas ficam sujas e manchadas, lavam-se com sabão;

Quando a nossa mente está viciada pelo pecado, só pode ser purificada pela comunhão directa com o Verbo.

Os homens não se tornam santos ou pecadores meramente por palavras;

Levam consigo as suas acções para onde quer que vão.

Aquilo que semeares, o mesmo hás-de colher;

Oh, Nanak! Os homens vêm e vão na roda do nascimento e da morte, de acordo com a Sua Vontade.

Torna-se agora claro que a mente é o grande magnete que atrai os karmas com todos os seus acessórios. Utiliza o nosso “surat” (atenção, a expressão extrínseca da alma que está no interior de nós) como instrumento; e é precisamente a mais preciosa das faculdades herdadas pelo homem — a jóia sem preço de virtude imensa.

Os Santos Mestres vêm a este mundo com um propósito divino e uma Missão. Recebem de cima a incumbência de libertar o homem do cativeiro kármico. Se uma pessoa tem a sorte de encontrar um Santo Homem e se entrega à Sua vontade, Ele toma o espírito a Seu cargo. A Sua primeira tarefa importante é quebrar o encanto mágico dos tentáculos kármicos que nos prendem no seu abraço mortal. Ele aconselha-nos a levar uma vida ponderada e altamente disciplinada do ponto de vista moral, a fim de evitarmos contrair mais influên-cias nocivas ou impressões kármicas. Ele diz-nos que todas as liberalidades da Natureza, incluindo os objectos dos sentidos, se destinam apenas a uma utilização legítima e razoável, não servindo para que nos entreguemos a elas por uma questão de prazer. Todas as nossas dificuldades resultam do facto de nos entregarmos vorazmente aos prazeres dos sentidos, até à saciedade; como

consequência, em vez de desfrutarmos os prazeres mundanos, são os prazeres que nos desfrutam a nós completamente e nos deixam per-feitamente destroçados, física e mentalmente. Esquecemo-nos que a verdadeira felicidade é uma atitude do espírito e que brota de dentro, ao despertarmos conscientemente a Corrente da Vida (Verbo Sagrado) que jaz adormecida e nutrirmos o nosso “eu” do “Princípio Vital” imanente a todas as coisas, visíveis e invisíveis, — a única força motriz que cria e sustenta o universo inteiro. O passado, o presente e o futuro — tudo isto o Homem-Deus abrange no Seu abraço vigoroso; e, como um pai amantíssimo, guia os Seus filhos no caminho da rectidão e da virtude, que conduzem gradualmente ao Auto-conhecimento e ao Conhecimento de Deus, alcançando-se finalmente o prémio da Condição Divina. Tal como uma criança ignora o que o pai, de vez em quando, faz por ela, também o neófito não sabe o que por ele faz o Pai Celestial. Seguindo os Seus caminhos é que ele pode gradualmente aprender os mistérios esotéricos, que a cada passo se lhe vão revelando por si mesmos.

Pobre alma metida nisto, na carne, que sabes tu?

És demasiado estreita e desditosa para compreenderes o teu próprio ser.

J.Donne

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15A LEI DA ACÇÃO E REACÇÃO

III

A maneira como o Mestre ataca o problema intricado e confuso dos karmas pode descrever-se em meia dúzia de linhas:

Sanchit ou karmas-semente: tendências latentes armazenadas na nossa conta desde tempos imemoriais, desde quando o mundo começou. Ninguém lhes escapa, a menos que sejam totalmente concretizadas (sem que, entretanto, nada mais lhes seja acrescen-tado, o que, dada a natureza das coisas, é uma impossibilidade) num sem número de vidas futuras. Nestas condições, não é possível liquidar todo este “débito bancário”.

Não haverá, então, maneira de transpor o enorme fosso que existe entre o consciente e o subconsciente, e o fosso idêntico que separa o subconsciente e o inconsciente?

Todo o mal tem remédio, quer seja mal secular ou espiritual. Se fritarmos numa frigideira sementes de cereal até rebentarem, perdem a fecundidade ou poder de germinação, o que significa que jamais darão fruto. Exactamente da mesma maneira, os karmas sanchit podem ser secados e tostados ao fogo de Naam (o Verbo), por forma a tornaram-se inofensivos no futuro, pois que então nos tornamos colaboradores conscientes do Plano Divino e perdemos totalmente o contacto com o passado desconhecido.

Pralabdha karmas: constituem o nosso destino presente, a nossa

conta-corrente para esta existência. O seu fruto tem de ser supor-tado, por mais amargo ou doce que seja, pois não há modo de evitar a colheita do que foi semeado. Por conseguinte, o Mestre deixa-os incólumes, para que o homem sofra os seus efeitos com amorosa complacência e os esgote durante a vida presente. Se estes karmas fossem eliminados ou por qualquer forma afectados, o próprio corpo dissolver-se-ia. Ao lidar com eles, o discípulo não é deixado sózinho.

Logo no momento da iniciação, o Poder do Mestre toma o discípulo a seu cargo, ajudando-o a cada passo. Por meio de uma disciplina espiritual crescente, o discípulo aprende o processo de auto-dissociação e retirada do corpo e fortalece o seu espírito; como resultado, o efeito destes karmas, que doutro modo seria penoso, desfaz-se como uma brisa que sopra e deixa-o ileso. Mesmo em casos graves e incuráveis, o Poder do Mestre recorre às Suas Leis de Simpatia e Misericórdia.

Todas as dificuldades dos discípulos devotados são grandemente mitigadas e atenuadas. Por vezes, a incidência das perturbações corporais e mentais é intensificada um pouco para abreviar a duração do sofrimento respectivo, ao passo que outras vezes a intensidade é reduzida e a duração prolongada, consoante for julgado conveniente. Mas isto não é tudo.

Os sofrimentos, dificuldades e doenças do corpo físico provêm dos prazeres sensoriais. As dificuldads do corpo são, evidentemente, para ser suportados pelo corpo físico. O Mestre, como Verbo per-sonificado ou Deus Polarizado, conhece tudo acerca dos discípulos, onde quer que eles se encontrem, tanto a uma grande distância como ali à mão. E pode até, pela Lei da Simpatia, assumir sobre os seus ombros o peso dos karmas dos discípulos devotados, sendo então Ele a suportá-los, pois a Lei da Natureza tem de ser cumprida de uma forma ou de outra. Isto acontece em casos muito raros quando

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16 A RODA DA VIDA

ao Mestre parece conveniente. Aliás, nenhum discípulo gostaria de aceitar um rumo em que os seus erros tivessem de ser suportados pelo seu próprio Mestre. Bem pelo contrário, o discípulo deve aprender a orar ao Mestre com sinceridade; procedendo assim, todo o auxílio possível virá certamente aliviá-lo ou suavizar a situação e minimizar o respectivo sofrimento. É que a alma vai-se tornando cada vez mais forte com o alimento do Pão da Vida e o manancial revigorante da água da Vida.

Há, no entanto, certas coisas sobre as quais o homem não tem domínio apreciável: 1) as doçuras e agruras da vida, o conforto e o desconforto físico e mental; 2) riqueza, opulência e poder, ou pobreza, penúria e abjecção; 3) nome, fama, notoriedade, e completo esquecimento.

Todos estes factores são acessórios na vida terrena e vêm e vão de acordo com o que está predestinado. Toda a actividade humana é dirigida no sentido de conquistar estas ou aquelas doçuras da vida, procurando evitar o que é amargo, sem compreendermos que a vida em si mesma é tão evanescente como uma nuvem; é como uma sombra sem substância, uma simples miragem ou fogo fátuo, bruxuleando de um lado para outro e iludindo assim o incauto peregrino nas areias escaldantes do deserto do tempo. Os Santos Mestres, pela prédica e pela prática, dão a conhecer ao “jiva” a natureza ilusória do mundo e de tudo o que ao mundo pertence, e manifestam nele a fonte perene da vida. Em contacto com esta, o discípulo fica completamente saturado dos seus próprios ossos, da sua própria carne; satisfeito até à saciedade, torna-se capaz de deplorar a própria vida.

Kriyaman karmas: são os karmas que cometemos diariamente durante a nossa presente estadia no plano terreno. A propósito, todo o discípulo é instruído no sentido de levar uma vida de pureza e castidade, em pensamentos, palavras e obras, devendo abster-se de

todo o mal; é que toda a violação neste campo provoca neces-sariamente problemas, e o salário do pecado não é nada menos que a morte, a morte da própria essência da vida.

Em relação a estes karmas, a questão levanta-se quanto ao modo como os Santo Mestres assumem uma parte do lastro kármico dos jivas, em circunstâncias raras e especiais, e conseguem livrá-los do seu efeito pernicioso. Os karmas relacionados com o corpo físico têm, como se disse atrás, de ser suportados no corpo físico.

Deus vestiu-se a Si mesmo da vil carne do homem, para se tornar suficientemente fraco para sentir a dor.

J. Donne

É conhecido um incidente histórico que aconteceu com Baber, o primeiro rei “mughal” da Índia. Seu filho Humayun caiu gravemente doente e toda a gente desesperava de que resistisse. O rei, em silenciosa empatia, rogou a Deus que lhe fosse permitido assumir a doença do filho; por estranho que pareça, a partir desse momento as posições inverteram-se: o príncipe começou a recuperar gradualmente, ao passo que o rei começou a definhar e morreu. Este é apenas um exemplo simples de sofrimento por outrem no plano humano.

O Mestre é o Senhor da Compaixão. No Seu reino, que é ilimitado, não se faz registo dos factos. Absorvido no Divino, Ele concede ao discípulo um contacto com as vias de salvação interio-res, que servem de âncora nas ocasiões de apuro. A embarcação pode ser sacudida pelas águas tempestuosas da vida, mas se estiver ancorada à bóia flutuante, mantém-se direita, apesar dos ventos e das águas tormentosas.

O homem é irresistivelmente forçado a subir ao palco do mundo de olhos vendados, precisamente para colher o fruto do seu karma

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17A LEI DA ACÇÃO E REACÇÃO

Pralabdha, de que não tem qualquer conhecimento. Ele nem sequer tem conhecimento de como funciona o plano físico, para não falar das altas regiões. Com todas as suas crenças e protestos de fé, presta a Deus um culto fingido, pois não tem acesso aos Elos Divinos, os cabos de salvação interiores: a Luz e a Voz de Deus. Ele nem sequer conhece a natureza do seu verdadeiro Eu e passa o tempo todo entregue aos prazeres sensoriais. Julga-se apenas uma criatura do acaso, simples marioneta no palco da vida.

O Santo, pelo contrário, traz uma incumbência e um propósito. É um eleito de Deus, o Seu Messias, o Seu Profeta. Actua em Seu nome e com o poder da Sua palavra. Não possui uma vontade própria independente, para além da vontade de Deus. Colaborador consciente do Plano Divino, vê a mão oculta de Deus em todas as coisas da vida. Vivendo no tempo, pertence verdadeiramente ao Intemporal. É um Mestre da vida e da morte mas está cheio de compaixão e amor pela humanidade sofredora. A Sua Missão é unir a Deus as almas humanas que anseiam por essa reunião e porventura se entregam a uma busca impaciente. A Sua esfera de acção é totalmente distinta da do Avatar ou encarnação, pois este trabalha apenas no plano humano. A sua tarefa é manter o mundo em boa ordem e em boa forma. O Senhor Krishna declarou em termos inequívocos que vem ao mundo sempre que há um desequílibrio entre as forças do bem e do mal, sendo o objectivo restaurar o equilíbrio perdido, ajudar os justos e penalizar os injustos. Idêntico é o discurso do Senhor Rama no “Ram Chitra Mansa”. Ele próprio reencarnou quando o mal estava em fase ascendente no mundo. Os Avatares vêm para restabelecer a justiça; não podem, contudo, escancarar os portões da prisão do mundo e levar os jivas para os planos espirituais. Esta função cabe exclusivamente na jurisdição dos Santos, que trabalham conscientemente como colaboradores do Poder de Deus no Plano Divino e ensinam a venerar apenas o Divino — pois só isso põe fim aos efeitos do karma.

Escreve um teólogo muçulmano:

Finalmente veio a lume que no Reino dos Derviches os karmas não contam para nada.

E diz-se também:

O Santo Mestre expulsa os karmas, que fogem como chacais na presença do leão.

Ninguém consegue eximir-se aos frutos das suas acções, nem sequer os duendes e os espíritos; nem os gigantes, os demónios, “kinnars”, “yakshas”, “gandharvas”, “devas” e deuses. Os que possuem corpos luminosos, astrais e etéricos gozam o fruto das suas acções na região de “Brahmand”, a terceira grande divisão, acima das primeiras duas, “Pind” e “And”. Também eles aguardam uma oportunidade de nascimento humano, para se livrarem das garras das reacções kármicas; mas só com um nascimento humano existe a possibilidade de entrar em contacto com um Homem-Deus que lhes revele o segredo do Caminho Divino, a Corrente do Som ou Verbo Sagrado.

Para um homem ser capaz de entender, até certo ponto, como funciona a poderosa administração divina, são necessários muitos anos de paciente meditação, e muito pouco pode ser dito nesta fase àqueles que buscam a Verdade. É também igualmente difícil compreender um Mestre espiritual genuíno. Dentro destes con-dicionamentos, o Santo desempenha geralmente o papel normal do homem neste mundo e sempre fala de Si mesmo como de um escravo, um servo de Deus e do Seu povo.

Ao carregar sobre os Seus ombros o peso dos karmas das almas devotadas, o Santo Mestre não omite nem elimina a “Lei Mais Alta”. A Sua posição pode equiparar-se à de um rei que se disfarça para se misturar com os súbditos, cuja condição intenta melhorar,

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18 A RODA DA VIDA

podendo assim compreender as suas dificuldades e até, por vezes, partilhar com eles as alegrias e as penas.

No que se refere ao corpo humano, o Santo Mestre faz uso da Concessão Divina especial. Pode, em suma, reduzir uma morte por guilhotina à picada de um espinho. Às vezes, permite ao Seu próprio corpo sofrer um pouco, o que para um indivíduo vulgar poderá parecer uma grande provação. Deste modo, mostra ao homem que todos os corpos sofrem, pois é esta a lei da Natureza para todas as criaturas encorporadas.

“Tudo é miséria na vida física”, afirmou o Senhor Buda Shakyamuni. Santo Kabir afirmou também que jamais encontrara um único ser humano que fosse feliz, pois todos aqueles com quem travara conhecimento padeciam a dor. O guru Nanak traça graficamente uma imagem do mundo como cheio duma humani-dade que pena e sofre, excepto aqueles raros indivíduos que tomaram refúgio em Naam. É por causa desta triste experiência, generalizada à nossa volta, que nós tomamos o Homem-Deus como um ser vulgar, semelhante a nós. Ao sofrer a “dor física”, Ele desempenha aparentemente o papel de um homem, mas inter-namente vive sempre separado do corpo físico. O contacto constante com a divindade dentro dEle permite-lhe escapar ao que, de outro modo, seria para o discípulo um sofrimento intolerável.

Todo aquele que tenha sido colocado neste caminho e se empenhe no processo de inversão é capaz de retirar do corpo as correntes sensoriais, concentrando-se no centro anterior aos olhos. Pode haver, de indivíduo para indivíduo, diferenças de tempo para chegar a esse ponto, mas os resultados são inevitáveis e rigorosa-mente verificáveis caso a caso. Os discípulos devotados, mesmo na mesa de operações, dispensam voluntariamente a anestesia costumeira. Retiram a consciência do corpo e não sentem o efeito da lanceta do cirurgião. Diz-se de Bhai Mani Singh, que foi condenada

a morrer por amputação sucessiva das articulações, que não só se submeteu ao processo com um sorriso nos lábios mas até protestou e exigiu o cumprimento estrito das ordens, quando o executor tentou livrar-se da nefanda tarefa ou ao menos abreviá-la, esquartejando o corpo em vários bocados em vez de junta a junta, como fora decre-tado.

Aos “satsangis” que estudam as coisas com os olhos bem abertos deparam-se muitas vezes casos como este. As almas dotadas de uma vivência interior permanecem absorvidas no Eu Superior interno e não fazem exibição das suas potencialidades. Esta regra vale pela simples razão de que feitos deste tipo são calculados para passarem por milagres; daí que tenham de ser evitados escrupulosamente. Os Santos não exibem milagres nem permitem aos discípulos entrega-rem-se a essas vãs demonstrações de presunção.

Os Santos, quando aparentemente doentes, geralmente tomam alguns medicamentos prescritos pelos médicos, mas na verdade não precisam de tal tratamento. Fazem-no apenas para manter a ordem mundana das coisas. Deste modo, dão ao homem o exemplo de prosseguir sabiamente na rotina mundana, recorrendo ao tratamento adequado sempre que necessário. Obviamente se espera dos discípulos que não recorram a medicamentos que contenham produtos ou substâncias de origem animal. Alguns discípulos, porém, com uma fé inquebrantável na energia benigna do Poder Curador interno, evitam normalmente os recursos ditos da medicina e deixam a natureza encarregar-se do assunto, já que o Poder Curador interno faz parte do sistema humano.

Os distúrbios do corpo, tal como se apresentam, devem ser aceites e tolerados animosamente, pois são geralmente o resultado dos nossos próprios erros alimentares e podem ser corrigidos pelo recurso a medidas higiénicas adequadas e a uma selecção de alimentos. Hipócrates, o pai da medicina actual, salientava que os

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alimentos deviam ser usados como medicamentos. Mesmo certas doenças graves resultantes de reacções kármicas têm de ser suportadas com paciência, sem queixas nem amargura, porque todos os débitos kármicos têm de ser pagos e as contas saldadas aqui e agora; e quanto mais depressa, melhor, em vez de se deixarem algumas contas que terão de ser liquidadas mais tarde.

No tempo de Hazrat Mian Mir, grande devoto e místico muçulmano, diz-se que um dos seus discípulos, Abdullah, ao cair doente, retirou as correntes sensoriais para o foco visual e encerrou-se a si mesmo, em segurança, na cidadela da paz. Quando o Mestre Mian Mir o visitou, puxou-o para baixo, para a consciência corporal, e ordenou-lhe que pagasse o que tinha em dívida, pois não podia indefinidamente eximir-se ao pagamento por meio daquelas tácticas.

Ao contrário da maior parte de nós, os Santos Mestres não perdem muito tempo com as necessidades e cuidados do corpo. Consideram o vestuário físico um simples trapo que um dia terá de ser abandonado. Dedicam-se, sim, a um labor físico e mental incansável, em função das necessidades, sem procurar repouso nem descanso, passando em claro noites a fio. Esta prodigiosa actividade representa um enigma para a ciência moderna, ainda que para o Santo seja uma prática comum, pois Ele utiliza as leis mais eminentes da Natureza, com as quais está familiarizado e que nós ignoramos em absoluto.

As acções kármicas podem classificar-se em dois títulos: karmas individuais e karmas de grupo. Estes são praticados pelas sociedades ou nações como um todo e recebem a designação de “Dharma”. Tal como um indivíduo suporta os frutos dos seus próprios karmas (acções), o mesmo acontece com uma sociedade, que tem de suportar o fruto das suas políticas; sendo assim, indivíduos inocentes têm também de suportar os danos resultantes do “dharma” injus-

tamente concebido pela sociedade a que pertencem. Quando Nadir, Xá da Pérsia, invadiu a Índia e ordenou o massacre total da população de Delhi, houve consternação geral entre a populaça, que acreditava que as injustiças sociais da nação haviam assumido a forma de Nadir. Uma retribuição justa dos pecados, por acção ou omissão, é a própria essência da lei da Natureza e concretiza-se de uma forma ou de outra, chamem-lhe o que quiserem: fúrias, eumé-nides ou outra coisa qualquer.

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IV

Temos nas Escrituras uma história idónea do Rei Prikshat. Ele tinha ouvido dizer que todo aquele que escutasse o “Bhagwat” recitado por um “Pandit” se tornava “jivan mukat” — um ser liberto de todas as cadeias. Um dia, convocou o sacerdote da corte e pediu-lhe que lhe recitasse o texto edificante do Bhagwat, a fim de poder escapar ao cativeiro da mente e da matéria, ameaçando-o de que, caso a recitação não correspondesse à verdade dos ensinamentos sagrados, iria parar à forca. O sacerdote não era mais nem menos do que qualquer um de nós. Aterrorizado, viu a morte à frente dos olhos. Bem sabia ele que não tinha competência para ajudar o rei a obter a Salvação. Chegou a casa extremamente deprimido e preocupado com o destino que o esperava.

Na véspera do dia aprazado para a recitação do Bhagwat, o sacerdote estava meio morto de medo. Felizmente para ele, tinha uma filha talentosa. A pedido dela, revelhou-lhe a causa da sua condição miserável. A filha consolou-o e garantiu-lhe que o salvaria da forca se ele a deixasse acompanhá-lo no dia seguinte à presença do rei. E no dia seguinte, lá foi com o pai até à corte.

Quis saber se o rei desejava libertar-se do cativeiro do mundo e o rei respondeu afirmativamente. Disse ao rei que podia ajudá-lo a satisfazer aquele desejo tão ardente se ele seguisse o conselho dela e a autorizasse a fazer o que ela queria. Levou o rei e o pai para a

floresta com duas cordas resistentes e amarrou-os fortemente, cada um à sua árvore. Pediu então ao rei que desamarrasse e soltasse o sacerdote. O rei expressou a impossibilidade de o fazer, uma vez que ele próprio se encontrava amarrado. E logo a rapariga lhe explicou que uma pessoa que está, ela própria, cativa de “Maya” (a ilusão), não tem capacidade para libertar outrem do mesmo cativeiro.

A recitação do Bhagwat poderia certamente quebrar a concha mágica da ilusão, se fosse feita por uma pessoa libertada que por si mesma tivesse vencido os escolhos da ilusão; como tal, o rei não devia esperar a Salvação do seu real sacerdote, cujos grilhões eram tão fortes como os do próprio rei. Só “Neh-Karma”, alguém liberto dos karmas, é que tem competência para tornar outros iguais a si próprio e libertá-los do ciclo kármico das mortes.

De certo modo, isto também ilustra o facto de não servir de muito o simples estudo das Escrituras para se chegar a “Moksha”, a salvação; é que o assunto é puramente prático e só pode ser aprendido correctamente com um Adepto competente da linhagem, sob cuja orientação é necessário praticar e aperfeiçoar. O “Murshid-i-kamal”, o Mestre Perfeito, começa por unificar a placa despeda-çada da mente, dilacerada por desejos e aspirações sem conta, refazendo-a no seu todo perfeito; trata então de poli-la completa-mente para que seja capaz de reflectir a luz e a glória de Deus, o que não há livros que façam, por mais que se estudem.

Ninguém pode, evidentemente, conhecer e entender o verdadeiro significado das Escrituras, a menos que sejam explicadas por uma Alma-Mestra que tenha pessoalmente experimentado, no laboratório interno da Sua própria mente, o que as Escrituras dizem. O Mestre pode, assim, a partir da Sua própria experiência, ensinar e orientar o discípulo na sabedoria altamente esotérica contida em epigramas concisos que confundem o intelecto, limitado como é no seu alcance e nos seus instrumentos de assimilação. Eis porque se diz: “Deus

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A LEI DA ACÇÃO E REACÇÃO

torna-se acessível na companhia de um Sadh” (uma alma dis-ciplinada). Só uma Alma libertada pode libertar outra, ninguém mais. Diz-se a este respeito:

O estudo dos Vedas, dos Puranas e da Etimologia não conduz a lado nenhum. Sem a prática do Santo Verbo, fica-se para sempre na escuridão completa.

Um homem realizado na prática é, antes de mais, todas as Escrituras combinadas; mas é muito mais do que as Escrituras, que contêm, quando muito, apenas o lado teórico, em linguagem subtil, mas são incapazes de explicar a própria teoria por palavras e de proporcionar uma experiência prática dessa mesma teoria, o que pertence exclusivamente à competência do Mestre.

Toda a gente, nos nossos dias, tenta lançar as culpas dos seus males para “os tempos que correm”, e esta tem sido precisamente a queixa principal de todos os tempos. O tempo presente, assim como o futuro, não é mais nosso do que o tempo passado. Este mundo é um enorme campo magnético: quanto mais nos esforçamos para sair dele, mais nos enleamos e enredamos nas suas malhas. O homem dança na corda bamba julgando que ninguém o vê. Os mais espertos apalpam a corda, mas não sabem onde sentar-se à vontade. Assim, silenciosa e incessantemente, as enormes velas giratórias do moinho kármico vão rodando, gigantesca Roda da Vida, que tudo reduz a pedaços uniformes, lenta e implacavelmente. Este moinho da Natureza tudo mói, lentamente mas com segurança. Há pessoas que se apercebem disso e comentam: “parece que a natureza fez o homem e depois quebrou o molde.”

Não obstante, ninguém tenta decifrar o como e o porquê das coisas e dos acontecimentos, pois tudo é aceite complacentemente tal como vem na corrente do tempo. Ninguém tenta aprofundar os acontecimentos a fim de pôr a nu os elos da cadeia que conduz

àquilo que vemos e experimentamos. Toda a gente se esquece, no seu relacionamento recíproco, que tudo se tem de pagar neste mundo. As próprias dádivas da Natureza, como o espaço, a luz, o ar, etc., não são igualmente gratuitas para toda a gente.

No entanto, cada homem julga-se a si mesmo o guardião exclusivo das dádivas de Deus. Esforça-se por ser tão liberal quanto possível, encontra casualmente alguns diamantes mal polidos (homens) e é afectado pela “Lei do dar e do receber”. Só após muita canseira é que aprendemos que as balanças não fazem distinção entre o ouro e o chumbo, preocupando-se apenas com o peso morto. Toda a gente sabe que o nevoeiro não pode ser eliminado com uma ventoinha; no entanto, é o que toda a gente se esforça por fazer, tornando a confusão ainda mais confusa.

Uma pessoa atada de pés e mãos à cadeia interminável de causas e efeitos não consegue libertar os outros. Quando toda a gente no mundo anda quase a dormir, quem é que tem capacidade para despertar quem? Só um homem libertado é que pode libertar os outros, se assim o entender, pois os nossos erros, as nossas faltas, por acção e omissão, constituem a verdadeira essência da Lei da Natureza: mais tarde ou mais cedo caem sobre o seu autor, sob uma ou outra forma.

Quando metemos uma ave na gaiola ou colocamos uma corda ao pescoço de um animal para o mantermos cativo, supomos que essas mudas criaturas não dispõem de nenhum tribunal onde possam apresentar a sua queixa. Achamos que temos o direito de lidar com elas a nosso bel-prazer. Nunca receamos atropelar esta verdade comum, à qual não prestamos a mínima atenção: “Tal como semeares, assim hás-de colher”. A ignorância da lei não é desculpa. Todo o erro tem de ser reparado. Aquele que mata será morto. Quem vive à custa da espada, pela espada há-de morrer. Temos de pagar “olho por olho, dente por dente”, o que é tão verdadeiro hoje

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como no tempo de Moisés. Feliz, sem dúvida, quem faz a festa, até lhe ser apresentada a terrível conta.

Podemos fechar os olhos às leis da Natureza; podemos fazer fé na eficácia do poder sacerdotal: tudo isso não serve de nada. Quem matar ou extorquir bens ou cometer acções desse calibre — tem de pagar um preço elevado. Aqueles que vivem e prosperam à custa dos outros não podem ter um coração puro, e muito menos ter acesso ao reino dos céus. “Abençoados os puros de coração pois esses verão a Deus”.

Dizem os Santos que o homem ocupa o lugar mais alto da criação divina, sendo dotado de um soberbo intelecto; por con-seguinte, não deve passar o seu limitado tempo de vida de olhos vendados, como as outras criaturas. Há que não perder a opor-tunidade dourada de regressar ao seio de Deus e à Morada original. Uma oportunidade tão sublime só vem depois de o homem ter visitado a “Exposição do Mundo” de fio a pavio e de ter concluído com êxito a sua actuação no Grande Drama da Vida. Geralmente o homem perde-se nas atracções aqui de baixo. Resultado: perde a oportunidade rara que lhe é dada, após miríades de encarnações sob a influência dominante da reacção kármica, de retornar à região do puro espírito. Numa série interminável, recebe um corpo a seguir a outro. Começa a sentir o peso de todas as espécies de leis — sociais, físicas, naturais — blocos pesados que lhe barram a passagem a cada passo. Não lhe resta outra alternativa senão esperar por uma futura existência como homem; e quem sabe quando isso acontecerá?

Os Santos dão-nos uma definição muito simples de pecado: esquecermos a nossa origem (a divindade). Todo o pensamento, palavra ou acção que contribua para afastar o homem de Deus, é um verdadeiro pecado. Por outro lado, é sagrado e piedoso tudo o que aproxima de Deus. Dizia um teólogo persa comentando para si

mesmo a natureza do mundo: “O mundo só entra em acção quando nos esquecemos do Senhor. Pela lembrança constante de Deus, uma pessoa que viva no mundo, entre parentes e amigos, todavia não é do mundo”.

A maioria dos pecados, quer grosseiros quer subtis, são uma pura invenção do homem constrangido pela mente. Os mais subtis são encarados como “fraquezas perdoáveis” pelos Santos, imagens vivas da lei divina de amor e compaixão na terra. Enquanto a pessoa procede como criatura dotada de vontade própria, sujeita-se a todas as leis e aos seus rigores. Mas, quando entrega ou submete a sua vontade própria à de um Homem-Deus, cai sob a alçada da compaixão e do amor de Deus. É este o verdadeiro aspecto do pecado na vida quotidiana. (Nota: ver mais pormenores no Apêndice II, no final).

Os karmas são a forma de doença invisível mais contagiosa a que o homem jamais esteve exposto. São ainda mais insidiosos, devastadores e destruidores que o mais venenoso dos germes transmitido às células íntimas do sistema humano, e insinuam-se subrepticiamente no sistema sanguíneo. Na sociedade, os karmas começam por se afirmar vigorosamente sob a forma de uma mudança de perspectiva e de pensamento dos chamados modelado-res da opinião pública. Afectam depois a disposição e o carácter, e mais tarde lançam raízes fundas sob a forma de hábitos que se convertem numa “segunda natureza” do homem. Por essa razão, os antigos e os anciãos estavam sempre alerta para nos prevenir contra as más companhias. “Uma boa companhia traz a virtude, ao passo que a má conduz ao mal”. “Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”.

A coroar todas as dificuldades, temos de partilhar inadver-tidamente as reacções kármicas, mesmo no seio da família onde nascemos e fomos educados. Deste modo, as virtudes e os vícios

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desempenham um papel integral na formação da cultura. Dia a dia, hora a hora, contraímos karmas no ambiente que nos rodeia.

A única maneira de escapar à influência kármica é apegarmo-nos ao caminho de Deus por intermédio dos Santos. Tratando-se de seres ligados ao Mais Alto, situam-se muito acima do alcance dos karmas e são de facto Neh-Karma e Jivan-Mukat. Diz-se que no reino de um verdadeiro Homem-Deus não há que prestar contas dos karmas. O melhor que a pessoa tem a fazer é procurar a companhia de um “sadhu”.

Todavia, o homem é mais naturalmente inclinado a aceitar o mal do que a bondade ilimitada dos Santos. A companhia de um Santo tem uma eficácia maravilhosa para afastar todos os traços do mal. O raio de acção atmosférico de um Santo Mestre é uma vasta imensidão que o homem mal consegue imaginar. Os Santos não vêm apenas para bem da humanidade, mas para benefício de toda a criação activa e inerte do mundo, a todos os níveis, visíveis e invisíveis. A pobre criatura chamada homem não tem nenhum ver-dadeiro amigo. A própria mente, com os três “gunas” (qualidades de “Satva” ou pureza, “Rajas” ou actividade, e “Tamas” ou inércia), funcionando sempre como cúmplice do homem, olha para ele de soslaio, como gato que espia o movimento do rato. Os que seguem os ditames da mente são invariavelmente apanhados nas suas ratoeiras, submetendo-se a uma miséria inaudita e a terrores excruciantes. A “Mente”, porém, teme aqueles que são alvo da Bondade de Deus por intermédio do Seu agente, o Satguru (Homem-Deus). A mente não ousa interferir nos privilégios e direitos concedidos aos Seus bem-amados e opta por ajudá-los, qual assistente cumpridor que obedece às ordens do superior. Tal como o fogo, é um bom servo, mas um mau mestre:

Na companhia de um Sadhu, nada há que lamentar;Na Sua companhia, conhecemos o Senhor e seguimo-lo ver-

dadeiramente;Na Sua companhia, alcançamos a dádiva maior da Divin-dade.

Eis por que o guru Nanak afirmava convictamente:Oh, Nanak! Desfaz-te de todos os laços efémeros do mundo e vai em busca dos Verdadeiros.Se todos te abandonarem durante a tua vida, o Verdadeiro acompanhar-te-á mesmo até ao Além.

E novamente:

Certifica-te, ó alma, de que um Homem-Deus estará a teu lado no Tribunal de Deus.

Baba Farid, teólogo muçulmano, exprime-se quase nos mesmos termos:

Oh, Farid! Apressa-te a buscar um Homem Libertado, pois Esse libertar-te-á (do cativeiro do mundo).

E de novo:

A mente sempre inquieta não tem descanso até repousar num Homem-Deus.

Lê-se no Gurbani:

O intelecto vagabundo detém-se na companhia de um Sadh. Só a mente em repouso reflecte a Luz do Senhor.

Toda a gente está física e mentalmente manietada pelos laços invisíveis dos karmas. Enquanto andamos ao sabor da mente e da matéria e não procuramos a protecção de um Santo, somos gover-nados por todas as leis dos diversos planos e estamos sujeitos à aplicação pura e simples da justiça, não suavizada pela compaixão. Estamos sujeitos a punição por todos os nossos pecados — mesmo

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os inconscientemente cometidos, os subtis, os inominados. Um amigo, num tribunal terreno, pode ser capaz de abreviar o longo e tortuoso processo legal, mas no Tribunal do Mais Alto só um Santo Mestre é verdadeiramente Amigo na ocasião do julgamento. O guru Nanak afirma no Jap Ji:

O Santo é aceitável na Sua Corte, é o principal Eleito: o Santo adorna o limiar de Deus e é honrado até pelos reis.

E de novo:

O Satguru fez-me a dádiva da visão interior e eu vejo dis-siparem-se todas as dúvidas.

O anjo da morte já não me pode fazer mal, uma vez que a conta de todos os meus actos foi completamente apagada.

O Caminho dos Santos tem um destino completamente diferente. Para o iniciado não há julgamento nem tribunal. O Santo está presente em todo o lado e o Seu domínio estende-se a regiões insuspeitadas. Jamais abandona os Seus discípulos até ao fim do mundo. Eis a sua garantia solene:

Humanidade, eu irei contigo e serei o teu guia quando mais necessitares, e estarei a teu lado.

Everyman

Tal como um pai complacente e amigo, Ele próprio pode fazer uma censura ao filho que erra, mas jamais o entregará à polícia para ser castigado.

Ninguém padece cativeiro maior do que aquele que erronea-mente se considera livre. A armadilha do espírito bem nascido é a ambição. Aqueles que vivem prosperamente, no sentido mundano do termo, parecem-nos bem instalados na vida. Poderão ter semeado algumas boas sementes no passado e aparentemente estão a fazer

uma boa colheita no presente; ou então procedem de acordo com a política do “venha a nós” o mais possível, construindo assim um ninho de vespas que habitarão no futuro. Infelizmente, toda essa gente que vive na abundância esquece que, na melhor das hipóteses, são de ouro as cadeias que usa — “os invisíveis grilhões de ouro” — e caminha inconscientemente ao encontro dos problemas.

Diz o ditado: “Os muros e os palácios dos poderosos são construídos com o suor e as lágrimas dos pobres. “A menos que se tenha feito no passado uma boa sementeira, não se pode no presente ter uma boa colheita. Podemos, inclusivamente, trazer mesmo debaixo da manga o peso de alguma culpa, sem disso nos darmos conta. Se não semearmos agora sementes boas, como poderemos esperar frutos igualmente bons no futuro?

Além do mais, as boas acções não podem por si mesmas absolver uma pessoa da reacção das más acções, tal como a água suja não pode deixar a roupa limpa. Com toda a nossa rectidão, não pas-samos de trapos nojentos — diz um Santo cristão. Não há ninguém limpo, não, ninguém. O homem está permanentemente sujeito à lei do dar e receber, da compensação e retribuição. Seguir o caminho das boas obras é decididamente algo desejável e melhor do que o caminho das más obras; mas não é tudo. Uma vida moralmente elevada pode assegurar uma permanência longa num paraíso em que a pessoa desfrute confortavelmente a bem-aventurança celestial; mas a pessoa mantém-se confinada ao corpo astral ou corpo causal e não está livre do ciclo de nascimentos e tem de suportar o fruto das sementes. Só o contacto com o Espírito Santo, o Naam sagrado ou Verbo, é que pode ajudar-nos a ascender até às regiões espiritual-mente mais altas, muito para lá das sombras dos nascimentos e das mortes incessantemente repetidos e que nos empurram para cima e para baixo, numa dança interminável e sem esperança de escapar.

Céu e Inferno são as regiões onde os espíritos desencarnados têm

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de permanecer por um lapso de tempo relativamente longo, de acordo com as suas acções na terra, boas ou más. A permanência nessas regiões, por mais que se prolongue, não é eterna e não liberta as pessoas do ciclo inexorável das mortes e renascimentos.

O paraíso (Céu ou Éden) é o El Dorado de certas crenças. Muitos lhe chamam também Salvação. Mas o facto é que, depois de se terem desfrutado as liberalidades paradisíacas durante o lapso de tempo determinado pelas boas acções, novamente recebemos um corpo humano, pois só ele pode proporcionar uma oportunidade de ganhar mérito que conduza, em última instância, à libertação. Até os anjos que servem a Deus aspiram ao nascimento humano quando sentem que já cumpriram a sua missão. Deste modo, na sequência do quase universalmente reconhecido, largamente acreditado e grandemente aceite caminho das boas acções, acabamos por ser apanhados, uma vez mais, na rede dos desejos e ambições in-saciáveis; com o resplendor sempre ilusório do fogo fátuo brilhando à nossa frente, continuamos inadvertidamente cativos dos grilhões férreos do karma.

Para alcançar o seu objectivo, a pessoa realiza “tapas” (austeridades ascéticas variadas), que podem ocasionar vidas melhores. E mesmo se a pessoa alcança a soberania de um reino, a sua mente quebra as disciplinas, toma o freio nos dentes e comete grandes feitos de valor e de coragem, a maior parte dos quais são suficientemente perniciosos para lhe valer o inferno. E de novo, após a lição amarga das chamas infernais em que mergulhou, tenta encontrar alívio nas “tapas”. Assim, acaba sempre por ser apanhada e se enredar no ciclo vicioso das tentações e feitiços, movendo-se entre o Inferno e a contrição, da contrição para a soberania e da soberania outra vez para o Inferno — e assim sucessivamente, numa ordem cíclica infindável que a arrasta para cima e para baixo na Roda da Vida. Deste modo, cada indivíduo constrói para si mesmo

um Céu e um Inferno próprios, e permanece, pelos seus actos volitivos, emaranhado na fina teia da vida que ele próprio teceu.

Estas regiões do Céu e do Inferno não se encontram no caminho de quem segue o ensinamento dos Santos, o caminho do meio, precisamente entre as duas sobrancelhas, pois esse passa ao lado do trajecto do Karma Yogi. Mesmo que uma alma sob a protecção de um Santo Mestre possa eventualmente desviar-se por algum tempo, é certo que será socorrida. Embora os Santos sejam modelos vivos de humildade e não falem da grande autoridade que possuem, por vezes referem-se indirectamente ao poder salvador dos Santos que os antecederam. As escrituras revelam que Sant Satguru Nanak salvou um dos seus discípulos, que de algum modo se desviou e penetrou no inferno. O Santo teve de visitar o inferno em busca da ovelha perdida; mergulhou o Seu polegar nas chamas do inferno, arrefecendo assim toda a fornalha infernal, e deu alívio não só a uma mas a muitas almas pecadoras que gemiam lamentosamente em grande sofrimento. Casos similares ocorreram no tempo do rei Janak e de outros. Uma vez, Hazur, o meu Mestre, teve também de puxar um dos Seus discípulos que se havia desviado para baixo. Como pode então o homem comum redimir-se do Inferno?

Aqueles que se entregam à prática do sagrado Verbo, vêem terminados todos os seus trabalhos;

Os seus rostos, oh, Nanak!, brilham de glória, e muitas almas se salvam também com eles.

Existe uma outra região a que os Santos muçulmanos chamam “Eraf” (purgatório) e que possui alegrias e terrores em graus variados. Experiências de várias espécies de terrores e agonias infernais têm sido descritas por Mestres de diferentes graus. Este assunto não é propriamente um esquema imaginário reduzido a escrito mas um assunto que merece reflexão séria. Quer se acredite

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ou não, o discípulo de um Santo não tem nada que se preocupar com tudo isto. Desde que o discípulo seja fiel ao seu Santo Mestre (Sant Satguru), não há poder na terra capaz de atingir um só dos seus cabelos. É este o discurso do verdadeiro discípulo de um Satguru:

Só me relaciono com os Santos e a minha única preocu-pação vai para Eles.

Com a preparação dada pelos Santos, estou livre de todas as alucinações;

O anjo da morte já não pode tocar num só dos meus cabelos, pois o registo completo dos meus actos foi con-sumido pelas chamas.

E novamente:

Invencível é na verdade o anjo da morte,E ninguém pode submetê-lo;Mas fica impotente na presença da Corrente do Som do Mestre.O próprio som da Sua Palavra lança-o no terror e ele foge,Com receio de que o Senhor dos Espíritos o aniquile.

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V

De ninguém se pode dizer que nasceu por si mesmo, pois ninguém pode ser uma ilha dentro de si mesmo. Servir os neces-sitados, os doentes e os esfomeados é também uma linha comple-mentar, mais eficaz do que a mera pregação. Servir os outros estimula e inflama as cinzas da simpatia, da bondade e do amor. Estas virtudes possuem grande efeito purificador e limpam a pessoa de toda a escória, qualificando-a para o conhecimento mais elevado da divindade. “O prazer sabe melhor depois do serviço”, como diz o adágio.

“Ahimsa” (não-violência) inclui não só a abstenção de matar, agredir e injuriar, como também os maus pensamentos e palavras malévolas. Embora com os animais as coisas não sejam exactamente assim, ahimsa infunde no homem uma força que não só excede muitas virtudes mas é propriamente a mais elevada das virtudes. O serviço prestado aos que buscam sinceramente o Caminho da Verdade tem um valor muito maior do que qualquer outro serviço. Nele se incluem a distribuição de esmolas aos indigentes e realmente necessitados, a oferenda de compensações agradáveis aos que se acham empenhados em tarefas excepcionalmente árduas em lugares inacessíveis, o tratamento dos doentes e a ajuda aos aflitos. Todas estas qualidades são grandes auxiliares no Caminho e devem ser encorajadas e cultivadas assiduamente, por todos os meios possíveis. Claro que não devemos contentar-nos com elas; devemos

marchar em frente com o auxílio destes processos purificatórios, no nosso trajecto para a libertação sob a orientação do Mestre.

O amor é a panaceia ideal para a maioria dos males do mundo. É o coração de todas as outras virtudes. Onde existe amor existe paz. Ama, e todas as bençãos te serão acrescentadas — eis a ideia central dos ensinamentos de Cristo. Todo o edifício do Cristianismo se funda no princípio duplo: “Ama o teu Deus com toda a tua alma, toda a tua mente, toda a tua força” e “ama o teu próximo como a ti mesmo”. Deus é amor, e igualmente a alma humana, centelha da mesma essência. Diz S.João: “Aquele que não ama não conhece a Deus; pois que Deus é amor”, e “aquele que ama a Deus ama também os seus irmãos”. Identicamente, o guru Gobind Singh põe o acento tónico na necessidade primordial do amor: “Em verdade vos digo que Deus só se revela àqueles que amam.” E um Santo muçulmano:

Deus criou o homem como uma encarnação do amor. Para O glorificarem, os Seus anjos eram perfeitamente suficien-tes.

A coroar todas estas virtudes vêm a veracidade e o bom viver.1

Em primeiro lugar, devemos ser verdadeiros para connosco mesmos. O problema para a maior parte das pessoas é que a nossa mente, a língua e as acções não se movem em uníssono. Temos uma coisa em mente, outra na língua e ainda outra nas mãos. “Sê verdadeiro para ti próprio e daí se seguirá, como a noite ao dia, que não poderás ser falso para ninguém.” (Shakespeare). Cada um vive no seu corpo. Deus, o poder controlador, está também no corpo. Se eu for verdadeiro para mim mesmo, nada tenho que recear. Antes de tentar enganar alguém, começo por enganar o meu próprio eu. “Rama não pode vigarizar Rama”, foram as palavras de Swami Ram Tirath quando alguém tentou preveni-lo contra os caminhos ilusórios do mundo. A verdade é a maior de todas as virtudes; viver

1 Para mais pormenores, ver o Apêndice I no final.

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em verdade é ainda mais importante. Devemos esforçar-nos por levar uma vida limpa e ordeira no templo do Espírito Santo, sem o emporcalharmos com a falsidade e as luxúrias da carne, transformando-o assim numa toca do diabo.

Crê-se geralmente que a prosperidade é fonte de paz, mas o certo é que a prosperidade engana os tolos como um fogo fátuo e põe os ricos em perigo. Solta as rédeas da mente, e esta, uma vez que se desvie do percurso certo, contrai inadvertidamente uma série de pecados que acarretam consequências terríveis. Mergulhar o “eu” totalmente na lixeira mundana, quer por pensamentos, palavras ou obras, é um pecado nefando cuja recompensa é a morte.

Os caminhos que conduzem a Deus e ao enriquecimento mundano divergem bastante. Pode-se enveredar por qualquer deles, à vontade de cada um. A mente é uma entidade singular que liga o corpo à alma numa das extremidades, e o corpo aos bens mundanos na outra extremidade. Assim, há que escolher necessariamente entre as duas alternativas. Lançados os dados, o indivíduo tem por força de se aplicar energicamente para alcançar a meta, seja qual for. As riquezas, de per si, não constituem obstáculo no caminho da espiritualidade, pois são herança comum a toda a gente, tanto ricos como pobres, e nem uns nem outros podem reclamá-las como dádivas exclusivas. Tudo o que se requer para ter êxito no Caminho é um desejo genuíno, honestidade de propósitos, uma vida pura e uma devoção firme pela causa. Uma pessoa rica tem, evidentemente, de se esforçar por não utilizar meios incorrectos na administração da sua riqueza, procurando aplicar os seus tesouros honestamente adquiridos em ocupações fecundas e não em aquisições ruinosas e efémeras. Deve sempre encarar a sua fortuna como um crédito sagrado de Deus, destinado a auxiliar os pobres e necessitados, os que padecem a sede, a fome e a doença, pois toda essa gente tem em relação a ela um direito de fraternidade, como

filhos que são do mesmo pai. Foi este o conselho dado pelo sábio Ashtavakra ao rei Janak quando, depois de lhe ter proporcionado uma experiência prática na Ciência da Alma, lhe restituiu o reino, que o rei tinha dedicado ao seu Mestre preceptor antes da iniciação no caminho sagrado da experiência prática espiritual. O rei foi aconselhado a considerá-lo como uma dádiva dEle (o Rishi ou Homem-Deus) e a utilizá-lo para melhorar a condição do seu povo e do país, que lhe haviam sido confiados por Deus.

Se as riquezas não forem adquiridas por meios honestos e aplicadas com sabedoria e ponderação, o seu proprietário está sujeito a desviar-se e a tornar-se egocêntrico, escravo duma opulência ilegitimamente obtida, sendo apanhado inadvertidamente nas cadeias douradas que o mantêm cativo. Para evitar estas situações é que Cristo afirmou, em termos bem claros, que é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha do que um rico entrar no reino de Deus. T.S.Eliot, prémio Nobel, aconselha: “Não ponhas o pensamento na colheita, mas antes numa boa sementeira.”

A sementeira tem portanto uma importância primordial, pois a qualidade da colheita depende da qualidade das sementes. Vêm a seguir a vigilância e os cuidados adequados; o processo humani-zante que leva geralmente muito tempo e se estende por muitas encarnações, dependendo do passado de cada indivíduo. Porém, com o tipo certo de devoção perseverante e a graça do Poder Supremo, é fácil percorrer o caminho que de outro modo seria difícil e tortuoso. “Um Mestre Perfeito, familiarizado com as curvas e irregularidades da estrada”, diz Kabir,”pode, contudo, encaminhar o discípulo muito rapidamente.” A alma peregrina, com um Guia competente e um esforço razoável, pode facilmente atravessar o oceano do mundo, mesmo empenhada na vida mundana.

Todo aquele que não se entrega diariamente a “Bhajan” e ao

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29APÊNDICE I

“Simran” está constantemente em apuros. Flutua indefinida- mente na corrente dos prazeres sensoriais. A prática de “vairagya” contribui para o processo de purificação, habilitando gradualmente o discípulo a cortar a árvore “Upas” dos mil e um desejos; primeiro, amputando-lhe os ramos, depois, arrancando-a pela raiz.

Ninguém é perfeito. O homem é filho do erro, e o erro é sempre a sua crença. Ainda que errar seja próprio do homem, persistir no erro é vil. Não é vantajoso armazenar mercadoria de má qualidade. É bom nascer num templo, mas morrer nele é pecado; o que temos é de nos elevar gradualmente acima de todas as formas e formalidades do nível jardim de infância, que todas as religiões prodigalizam, e desabrochar no sol radiante da Espiritualidade. Temos de estudar o Caminho se queremos divinizar o futuro e despertar para a Realidade do Além. Quem não pensa no futuro, a breve trecho terá de lamentar o presente.

O pecado e a dor são nossos companheiros constantes e para onde vai um vai o outro. As nossas pequenas fragilidades inconfes-sadas ganham vulto gradualmente, ao passo que aquelas que andam à luz se ocultam parcialmente. O arrependimento genuíno seguido de boas acções leva muito tempo a minorar o sofrimento. O homem pouco faria por Deus se o diabo estivesse morto. Uma pessoa que viva sob a ameaça duma calamidade iminente dá o melhor de si mesma pois se esforça ao máximo. É facílimo encontrar defeito nos outros; o mais difícil é emendar os nossos, pois não vemos a trave nos nossos próprios olhos. O temor de Deus é o princípio da sabedoria e um perigo previsto é meio evitado. “Homem prevenido vale por dois.”

As pessoas ligadas ao plano físico têm de obedecer aos man-damentos de um Santo Mestre “libertado” se quiserem livrar-se a si mesmas das ilusões da mente e da matéria. Descarregai todo o peso

das vossas responsabilidades aos pés do vosso Mestre Espiritual, e o grilhão fatal dos pecados afrouxará pouco a pouco, mas inevitavel-mente, o seu aperto. “Deixa tudo e segue-Me”, foi a exortação do Senhor Krishna. “Vinde a Mim, vós que vos afadigais, e dar-vos-ei a paz”, disse Cristo. O discípulo devotado encara o seu próprio quarto de doente como um templo de devoção. Um Mestre intei-ramente versado na prática do Sagrado Verbo é competente para iniciar outros nessa mesma prática — é o Verdadeiro Mestre e um Guia Perfeito (Murshid-i-kamil). Ele tem poder para, qual ad-ministrador capaz e eficiente, liquidar todas as acções e saldar as contas; tal como Jesus, aconselha: “Não voltes a pecar”. Iden-ticamente, Hazur Sawan Singh Ji, uma vez que um discípulo confessou publicamente um lapso e suplicou indulgência, ergueu brandamente a mão direita e disse: “Basta, fiquemos por aqui!”.

Devemos então ficar impassíveis? Como é possível? A resposta é simples. Enquanto a mente domina, a pessoa não pode deixar de agir e tem mesmo de agir, embora possa controlar o seu compor-tamento de acordo com os mandamentos do seu Mestre, cultivando paralelamente as virtudes mais elevadas. Não fazendo nada, o homem aprende gradualmente a fazer o mal, e, como Pandora, solta as tendências malignas que se ocultam no íntimo. Se uma pessoa quiser deitar-se num leito de rosas, tem de cultivar e criar rosas para esse efeito. Mas nós procedemos sempre ao sabor do acaso e com propósitos egoístas. Não sabemos o que devemos fazer e do que devemos abster-nos. O Santo Mestre é o Imperador Divino do Seu tempo. Pelo amor, o ensinamento, a educação e o exemplo, leva o homem a agir com reverência e amor pelos Elos Divinos (Naam, Verbo, a Voz Interior de Deus, Kalma ou Kalam-i-Qadim, Akash-bani, Bang-i-Asmani), que lhes torna manifestos.

Um Mestre não deve ser respeitado por causa da casa que habita, mas a Sua casa por causa dEle. O Santo é pois o mais respeitável,

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30 A Roda da Vida

adorável e digno de todo a reverência. É Ele quem nos dá o contacto divino e a experiência de esquecer por momentos o eu físico. Temos então vislumbres visíveis dos Elos Divinos dentro de nós, e pouco a pouco vamos aprofundando cada vez mais a nossa experiência mística. Nos Seus Satsangs ou discursos espirituais, muitos pecados passados são eliminados. Da Sua companhia, quer seja em pensamento, por correspondência ou na meditação, muito benefício resulta no que diz respeito aos karmas e associações pecaminosas. Embora não tenham fim os pecados do homem, também por outro lado é infinita e incomensurável a misericórdia dos tesouros de Deus. Na jornada da vida, seja qual for o lugar, a seita, o país ou a sociedade a que o homem pertença, a sua bagagem principal consiste em Naam (o sagrado Verbo), o contacto com as linhas de salvação interiores, a Luz de Deus e a Voz de Deus. Os vários nomes de Deus, que geralmente conhecemos e frequentemente repetimos, são simples palavras forjadas por nós para a Realidade Inominada que é um todo individual, indescritível e inefável.

Sant Satguru, o Santo Mestre, é o Santo Pai. Vem de longe e para benefício de todos, tanto os pecadores como os virtuosos, pois todos se acham igualmente manietados pelas cadeias mundanas, quer sejam de aço ou de ouro. A todos Ele ama, e o amor conduz ao perdão. Jamais tenham receio de se aproximar dEle só por serem pecadores. Ele nunca condescenderia em entregar alguns dos Seus filhos num reformatório ou penitenciária para serem castigados, nem os sujeitaria a qualquer método do terceiro grau. Um pai bondoso e generoso nunca faria uma coisa destas. O Mestre prefere repreender o seu filho faltoso ou dar-lhe um pequeno correctivo de sofrimento corporal, preferindo ficar com ele, embora invisível, encorajando-o de dentro até que a situação de apuro chegue ao fim. A sua forma de agir é semelhante à de um mestre oleiro, que, ao mesmo tempo que pelo lado de fora vai batendo suavemente no pote

em rotação, para lhe dar a forma adequada, conserva a outra mão no interior do pote para impedir que se quebre. O amor do Mestre não conhece limites. O reino de um Derviche é um reino de graça.

O dever do superintendente de uma prisão é manter os presos em segurança, discipliná-los e corrigi-los. Paralelamente, a finalidade das encarnações divinas e das deidades (Avatares) foi sempre manter os homens ligados a elas distribuindo por eles variados “ridhis” e “sidhis”. (Isto refere-se à concessão de dádivas, vantagens, favores, prosperidade, facilidade e comodidades nas vocações mundanas, e à concessão de poderes sobrehumanos para o bem e para o mal). Estas salvações e compensações limitadas que essas deidades concedem aos seus devotos vão apenas até ao nível que elas próprias alcançaram, e podem mesmo permitir a aproxi-mação e a permanência nas várias regiões a que presidem. Todavia, são absolutamente incapazes de promover a união com o Todo-Poderoso, pois se trata de potestades subordinadas que não possuem esse privilégio supremo.

Os sidhis, poderes extraordinários acima referidos, são poderes yóguicos que os buscadores da Verdade adquirem com um pouco de prática (sadhan), mas constituem reais impedimentos no caminho da realização de Deus, pois as pessoas são normalmente tentadas a fazer milagres, como adivinhar o pensamento de outrem, predizer o futuro, vidência, satisfação dos desejos, cura espiritual, transe hipnótico, influências magnéticas e outros que tais. Estes sidhis são de oito espécies:

Anima: tornar-se invisível aos olhos externos. Mahima: aumentar o tamanho do corpo indefinidamente. Garima: tornar o corpo tão pesado quanto se queira. Laghima: tornar o corpo tão leve quanto se queira. Prapti: conseguir qualquer coisa pelo simples facto de a desejar. Ishtwa: alcançar todas as glórias do ego.

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31APÊNDICE I

Prakayma: ser capaz de realizar os desejos dos outros. Vashitwa: influenciar e dominar os outros.

Um Mahatma prático, por outro lado, tendo acesso ao domínio mais elevado, perdoa, liberta e concede o acesso ao Reino de Deus no decurso da vida presente, desde que, evidentemente, a pessoa esteja inteiramente decidida a entregar a sua vontade nas mãos dEle e cumpra os Seus mandamentos com sinceridade e amor.2 É sem dúvida uma tarefa bastante difícil para quem tem o hábito de obedecer apenas aos ditames da sua própria mente. É da natureza flutuante da mente inculta e incontrolada aceitar uma coisa uma vez e revoltar-se mais tarde contra essa mesma coisa. Santos como Maulana Rumi vão mesmo mais longe quando afirmam:

Vem, torna a vir, e vem sempre, mesmo que tenhas quebrado a tua promessa um milhar de vezes;

Pois que há sempre um lugar para ti na graça salvadora de um Santo Mestre.

Desde que nos entreguemos ao Mestre, nunca mais Ele nos aban-dona, ainda que sucumbamos num momento de fraqueza e tribulação e sejamos nós a abandoná-Lo ou a desviar-nos do Caminho. O Poder Crístico afirmou: “Jamais te deixarei só nem te abandonarei até ao fim do mundo.” Ele possui a Sua lei própria, uma lei de amor e miserircórdia que aplica a toda a gente em todos os momentos, mesmo que uma pessoa possa atrasar o seu processo de auto-disciplina desdenhando do amor do Mestre. A fonte de toda a paz, de toda a glória, está acima do corpo físico e no interior do homem. Quem não tiver paz interior deve prodigalizar ao seu eu, à mente e à alma, o alimento próprio. A palavra, ou Naam, é o ver-dadeiro “Consolador”, o pacificador que concede a tranquilidade e a

2 Para mais pormenores, consultar o Apêndice II no final.

salvação. O sentido vulgar do termo “salvação”, tal como habitual-mente vem consignado nos dicionários, não pode ser tomado como mera libertação do pecado. É uma auto-libertação do ciclo de nascimentos e de mortes e a união do espírito com o Senhor e a vida espiritual na Eternidade.

O homem comum toma a salvação como um gracejo de mau gosto, e outrotanto sucede com diversos círculos sectários. Os fundadores das diferentes ordens religiosas relataram as suas próprias experiências espirituais nas regiões internas a que tiveram acesso e descreveram-nas como o clímax ou a meta última de salvação e vida eterna. O Santo Mestre é um visitante de todas as regiões celestiais e descreve a sua condição real por vezes sob a forma de parábolas. Ele declara, em termos unívocos: “Eu sou a luz do mundo; aquele que me seguir não caminhará na escuridão mas terá a Luz da Vida.” Os Santos representam, assim, a Salvação eterna durante a vida presente e não após a morte; pois quem sabe o que pode então acontecer? Salvação após a morte pode revelar-se, ao fim e ao cabo, uma simples miragem, e não é bom viver-se uma vida inteira num estado de contínua e perpétua incerteza. Se a morte é condição prévia, nesse caso a salvação não passa de uma brin-cadeira da nossa imaginação. Um verdadeiro Santo liberta a alma, aqui e agora, de todos os liames do ciclo de nascimentos e mortes. Funda-se na “morte em vida” ou libertação durante a vida presente, a que se chama tecnicamente Jivan-Mukti. Assim, a alma pode comungar com o Inefável enquanto no corpo, e por último imerge no Todo-Poderoso, quando se dá o colapso final das energias interiores.

Pensa-se geralmente que se obtém a salvação após a morte física. A palavra “morte”, contudo, significa e inclui retirada temporária e deliberada da corrente espiritual do corpo físico, e não só desin-tegração e decomposição final das partes componentes do corpo

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físico, tal como é entendida na conversação do dia a dia. É absurdo pensar que uma pessoa que viveu toda a vida para o mundo se converta instantaneamente numa alma liberta no momento da morte. Os devotos espirituais moralmente disciplinados atingem ver-dadeiramente a Salvação enquanto nesta vida, e assim vencem a morte, o derradeiro inimigo da humanidade, ainda em vida. “No entanto, eu vivo; todavia, não eu, mas Cristo vive em mim”, escreve S.Paulo. Um “Pandit” na vida continua a ser um Pandit após a morte — costumava dizer o meu Mestre.

Liquidar os karmas e libertar a alma de todas as suas cadeias não faz parte das atribuições de nenhum político, diplomata, ministro ou homem de Estado, nem mesmo de nenhum Governo. Os próprios Avatares (encarnações do poder mais alto) são impotentes a este respeito. Os deuses que representam os poderes inferiores do Supremo Ser têm também, como atrás se disse, de aguardar um nascimento humano antes de poderem alcançar o mais alto.

As almas que não se colocaram sob a protecção de um Mestre genuíno ou Sant Satguru continuam a levar consigo a pesada carga de karmas sanchit, kriyaman e pralabdha. Quanto ao destino ou pralabdha, o não iniciado na Ciência do Além não consegue mais que um escasso alívio, pois tem de tolerar esses karmas com toda a sua intensidade sem qualquer hipótese de se libertar. Quanto ao kriyaman ou acções cometidas durante a vida presente em conse-quência dos ditames da mente, o não iniciado terá de colher infalivelmente o fruto respectivo na sua totalidade. É uma lei apertada e inexorável, quer se creia nela quer não. Não há nenhuma excepção à lei do karma, que funciona impiedosamente, arrastando todos por igual no moinho do tempo.

As nossas acções, boas ou más, serão trazidas a Tribunal,E é pelos nossos próprios actos que havemos de ascender ou

ser lançados nas profundezas.Aqueles que comungaram com o Verbo verão os seus trabalhos terminados,E os seus rostos inflamar-se-ão de glória.Não serão os únicos a encontrar a salvação, oh, Nanak!,Mas muitos mais encontrarão a liberdade com eles.

É de capital importância, por conseguinte, procurar um Mestre competente que ponha termo ao ciclo de karmas — de outro modo interminável — e achar refúgio a Seus pés de Lótus, libertando-nos assim da influência cativante das nossas acções.

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33APÊNDICE I

Apêndices

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34 A Roda da Vida

Apêndice I

VIVER EM VERDADE

Tal como a conhecemos, a vida na terra tem uma infuência tremenda na formação do corpo e da mente. Devemos portanto esforçar-nos por simplificá-la e aprender a viver em verdade. É da nossa maneira de viver que tudo o mais depende, até a busca do eu e do Eu Superior. Nunca é demais encarecer a importância duma vida autêntica. Com razão se diz:

A verdade é mais importante do que tudo,Mas ainda mais importante é viver em verdade.

“Vida simples e pensamentos elevados” foi um ideal constante entre os antigos, que sempre se esforçaram nesse sentido. Nos tempos modernos, raramente se tem dado muita atenção a esse ideal, embora haja quem por vezes o proclame e lhe preste uma homena-gem falaciosa. Ainda que pareça difícil atingir um padrão de vida de grande elevação, vale a pena ver o que isso significa, os meios para lá chegar e de o adoptar para nós mesmos. Em tudo aquilo que fazemos, temos sempre em vista este ou aquele objectivo, cujos princípios inerentes determinamos, estudamos os métodos capazes de nos levar à meta desejada e fazemos uma verificação periódica, uma revisão completa, para sabermos até que ponto nos aproximá-mos do fim em vista. Em relação ao tema presente, temos eviden-

temente de dedicar uma atenção sincera e de fazer diariamente um esforço sério antes que notemos uma melhoria apreciável na nossa vida e comportamento, tanto no que se refere àqueles que nos rodeiam como a nós próprios.

O que é que constitui a vida do homem? — poderíamos natural-mente perguntar. Uma pessoa de certa idade, com muita experiência da vida e já cansada do que viu e experimentou neste mundo, começa a analisar a própria vida. Será que a vida consiste apenas em comer, beber, dormir, procriar; ter medo, impacientar-se, lutar; apropriar-se das coisas, entesourá-las, odiar; aprisionar e subordinar os que são inferiores em força, física ou mental; matar os outros e apoderar-se do que lhes pertence? Teremos nós de passar a vida inteira a gozar os benefícios terrenos injustamente adquiridos, sem que, ao fim e ao cabo, nada mais consigamos que uma morte miserável que nos desgosta a nós e aos que nos rodeiam, os entes queridos que nos acompanham e deploram, impotentes?

E que dizer das atracções mundanas — terras, casas, dinheiro, animais de estimação e tantas coisas mais que necessariamente têm de ficar para trás, muito contra a nossa vontade? Em face de todos estes factos duros da experiência, deve o entesouramento das riquezas mundanas constituir o propósito único da nossa existência? Ou devemos nós lutar por algo mais elevado e mais nobre, per-manente e duradouro, que possamos guardar connosco aqui e mais tarde no além?

A resposta é simples: o Poder Supremo, a fonte única e original de toda a existência, o nosso lar de felicidade e paz eternas, e o meio de libertação da cadeia temível de nascimentos, mortes e karmas — este é que deve ser o objectivo principal, a única coisa que vale a pena desejar e realizar, isto é, o “bem supremo” da vida.

A meta mais alta, acima indicada, não pode ser atingida pelo

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35APÊNDICE I

mero acto de a pedirmos ou desejarmos em pensamento. Para atingir a meta mais alta temos de começar por procurar e encontrar aquele que na prática nos pode ajudar a atingi-la; alguém que tenha realizado pessoalmente e alcançado o Reino de Deus e nos possa ajudar na mesma empresa. Tal como a luz vem da luz, também a vida vem da vida. Ele lembrar-nos-á constantemente da nossa Morada, há tanto tempo esquecida, do Jardim do Éden, actualmente perdido para nós, e mostrar-nos-á as limitações do nosso quotidiano; finalmente, ajudar-nos-á a levar uma vida intensa de verdadeira pureza, em vez da existência superficial e vazia que levamos actualmente.

Este mundo é uma casa cheia de fumo e de fuligem onde não é possível ao homem evitar sujar-se, apesar de toda a sua inteligência e de todos os seus esforços. Ora bem: essas manchas, essas nódoas profundas, espessas e inúmeras, que impregnam o próprio padrão da nossa existência, não podem ser lavadas pelos nossos meros esforços, sem auxílio e orientação. Todo o homem é impelido, por força da sua natureza, a desempenhar um papel no palco da vida e a participar em actos vãos que não conduzem a parte nenhuma, a menos que a mão de uma Alma Mestra pegue no leme das nossas barcas e as conduza por entre escolhos e baixios. Esse auxiliador divino é o Santo Mestre, quer se Lhe chame guru, instrutor, Satguru (sábio divino que se identifica com a Verdade), Murshid-i-Kamil (Mestre Perfeito), Hadi (guia), irmão, amigo, ancião ou qualquer outro nome que nos apeteça.

Uma análise mais extensa mostraria que a vida do homem depende essencialmente de duas coisas: “Ahar” (regime alimentar) e “Vihar” (o seu comportamento em relação ao seu próximo e aos outros). Ahar e Vihar cobrem o programa de vida de uma pessoa. Em ambas estas esferas a pessoa baseia-se na tradição, ou na informação limitada colhida em livros, ou no que ouve dizer. Elas

constituem a base do seu padrão de cultura e civilização, impregnando e ocupando a sua mente e o intelecto.

Dificilmente encontraremos na trivialidade do dia a dia um método que oriente o homem na sua vida física, mental ou espiri-tual. Para escapar a esta situação caótica é necessário discutir e analisar o assunto nos seus elementos componentes. É necessária uma análise completa para captar a vida nos seus três aspectos: físico, mental e espiritual.

AHAR ou REGIME ALIMENTAR

O regime alimentar desempenha, evidentemente, um papel importante na questão da existência. Precisamos de alimento para manter o nosso corpo físico. Somos compelidos pela natureza a existir neste mundo durante o lapso de tempo que nos é atribuído pelo destino ou enquanto os karmas não se esgotam. Para que a nossa existência seja possível, temos de ingerir seja o que for. Neste aspecto, o homem é absolutamente dependente. A lei do karma é o método invisível pelo qual a natureza mantém o mundo sob a sua férrea sujeição, por forma a continuar povoado e em movimento. Por isso se torna tão necessário que o homem se coíba de contrair hábitos alimentares irreflectidos, negligentes e indiscriminados. Uma vez que não podemos passar sem comer, devemos ao menos seleccionar os alimentos que se revelem menos prejudiciais ao nosso progresso espiritual. O nosso regime alimentar não deve contribuir para aumentar as nossas dívidas kármicas desnecessariamente, o que é possível evitar com um pouco de cuidado. Com este fim em vista, vamos então estudar a natureza.

A alimentação do homem provém principalmente da terra, do ar e da água. Vemos então que a vida existe em tudo o que se move e

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não se move. As criaturas móveis vivem umas das outras, tal como na criação estática, isto é, vegetais, plantas, arbustos, árvores, ervas, etc. O homem, no entanto, faz amizade com todas as criaturas (aves e outros animais) que vivem na natureza e transforma-as em animais de estimação. Os antigos sabiam bem que o homem, os animais da terra e do ar se encontravam todos ligados pelo mesmo laço kármico. O homem, com a noção de fraternidade comum, trabalhava duramente para si mesmo e para os seus animais. Lavrava a terra e produzia frutos e alimentos para si mesmo e para as aves suas amigas, para os bois e as vacas. Com o andar do tempo, porém, tornou-se preguiçoso e acabou por consumir o leite dos animais e também a sua própria carne.

De acordo com os códigos de conduta moral, social e espiritual, não se deve interferir na vida de nenhum animal da criação de Deus. Na Índia, este padrão de comportamento designa-se “ahimsa” (não agressão a nenhuma criatura viva), o que conduz ao regime vegetariano, que se opõe ao regime não vegetariano. Quando reflectimos maduramente nos aspectos naturais e anti-naturais do regime alimentar, chegamos a uma compreensão mais perfeita do problema dos “gunas” ou propensões inatas, inclinações naturais e tendências latentes que nascem com todos os seres vivos.

Os alimentos podem ser classificados em cereais, legumes, leguminosas e frutos, que podem considerar-se como “Satvic” ou “Satoguni”, alimentos puros que produzem serenidade e equilíbrio e são próprios dos sábios e profetas. Os santos e eremitas que se retiram para cabanas ou cavernas isoladas para poderem meditar preferiram sempre este tipo de alimentação. Colhiam raízes comestíveis que cresciam debaixo do solo, como rabanetes, nabos, beterrabas, e frutos que os forneciam de vitaminas e sais orgânicos na sua forma original, suficientes para os manterem em forma para uma vida de concentração e meditação. Há alimentos que crescem

com abundância, ao passo que outros são produzidos com esforço. Os cereais destinam-se à população em geral.

Satvic, ou alimentação pura, prolonga a vida e cura uma série de doenças e indisposições. A sua utilidade foi já compreeendida pela ciência médica ocidental. Uma boa parte dos medicamentos actuais é preparada a partir de ervas, frutos e cereais, que provaram suficientemente a sua eficácia. Também os métodos de cura naturais, como os banhos de sol, de mar, de lama, de água fria, a massagem, a fisioterapia, a cromoterapia, etc., estão a produzir bons resultados. A alimentação satvic e a vida simples levam ao desenvolvimento da cultura e da civilização mais elevadas. Devemos ter presente que os alimentos foram feitos para o homem e não o homem para os alimentos. “Comer para viver” e não “viver para comer” — devia ser o lema da nossa existência. Seguindo esta via criamos receptividade para as coisas elevadas da vida, no plano ético e espiritual, que conduzem gradualmente ao auto-conhecimen-to e ao conhecimento de Deus.

“Rajsic”, ou alimentação criadora de energia (se ingerida com moderação), inclui, além dos alimentos vegetais, produtos como leite, nata, manteiga, «ghee», etc., provenientes de gado não bovino. Na antiga Índia, a utilização do leite restringia-se principalmente à classe dos príncipes, já que os príncipes precisavam de um reforço de energia para manterem sob o seu domínio populações bárbaras, rudes e turbulentas, que não viviam de acordo com os princípios de vida estabelecidos. A ordenha do gado leiteiro só era permitida depois de as vacas serem alimentadas e tratadas com todo o cuidado, deixando-se nos úberes leite suficiente para alimentar os seus próprios descendentes, os vitelos. O resíduo de leite era permitido ao homem em circunstâncias especiais. Esta regra destinava-se a prevenir a degeneração da civilização primitiva. O uso limitado do leite foi também praticado em tempos antigos por “rishis” que

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viviam em relativo isolamento e total independência e devotavam a maior parte do tempo à meditação solitária; mas deixavam sempre leite bastante para a criação da progénie dos animais.

O tradicional costume de utilizar apenas o leite residual continua a prevalecer nalgumas aldeias da Índia. Hoje em dia, porém, na sua ambição incontrolada de poder, o homem viola todas as leis da natureza com o pretexto da tal “liberdade” que reclama para si mesmo. Infelizmente, o homem veio a fazer fé no princípio da “sobrevivência do mais capaz”; assim, tem de pagar o preço elevado de uma opção imprudente.

A única consideração que o move actualmente é a obtenção da maior quantidade possível de leite, ainda que à custa dos próprios animais. Nalguns lugares, matam-se as crias logo após o nascimento e depois aplicam-se máquinas de ordenha aos úberes para extrair o leite até à última gota, a fim de se estar a par da concorrência comercial e de elevar os lucros. A isto chamam alguns, orgulho-samente, alta capacidade técnica e civilização. Os pequenos reformadores do mundo actual induzem o homem a tais práticas em vez de melhorarem a agricultura e a criação de gado e animais domésticos, ambas soluções inofensivas que podiam aliviar a pressão das carências de que tanto se fala hoje.

“Tamsic”, ou alimentação entorpecente, consiste de carne e bebidas alcoólicas, alho, etc., ou de qualquer outro tipo de alimen-tos, naturais ou não, frescos ou fermentados, conservados ou não. Aquele que come de tudo desenfreadamente vive para comer e não come para viver. O seu propósito na vida é o prazer e o seu lema é “comer, beber e ser feliz”. Entregam-se impensandamente àquilo a que chamam os doce prazeres da vida. Quando abençoados com pequenos poderes de concentração, dirigem as suas energias (mentais e físicas) no sentido de glorificar o seu pequeno ego, a

mente egoísta. Apraz-lhes considerar este modo de vida como um alto produto da civilização. Este modo de vida é estritamente proibido pelos Mestres da mais elevada ordem a todos aqueles que demandam o conhecimento do espírito no homem e a libertação final da alma dos grilhões da matéria e da mente.

Não quererão as pessoas sensatas deter-se por momentos e reflectir um pouco sobre a verdadeira posição do homem? Por que é o homem tão orgulhoso em considerar-se a si mesmo a mais nobre das criaturas, a raiz e a coroa da criação? Para onde caminha o homem tão irreflectidamente? Não estará à beira de um terrível precipício, com um declive assustadoramente acentuado, pronto a despenhar-se a todo o momento? Pela sua conduta, expôs-se temerariamente aos ventos imprevisíveis da vingança da natureza. Corre o risco de soçobrar no abismo mais profundo da aniquilação física e moral.

O homem aprendeu os seus hábitos alimentares com os animais da floresta e age como uma criatura selvagem. Deleita-se com carne, não só de criaturas inofensivas, como vacas e cabras, carneiros e veados, aves e peixes, mas também do próprio sangue e da carne humana, para satisfazer a sua fome insaciável de ouro e riquezas. Não terminou ainda a sua tarefa de auto-engrandecimento, a que orgulhosamente chama progresso. Bem podia ponderar os princípios básicos de que falam os Mestres quando prescrevem a alimentação vegetariana. Os vegetais contêm vida numa forma latente, como tem sido demonstrado por cientistas de todo o mundo. Aliás, como nós temos de desempenhar o nosso papel no palco do mundo, e portanto temos de sobreviver para manter corpo e alma juntos, a nossa dependência deve assentar nos produtos do solo.

Pois evidentemente que há vida nos legumes, nos frutos, nos cereais. O que caracteriza essencialmente a vida é o crescimento e a

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decadência. Esta verdade pode ser detectada desde os tempos mais recuados. Não se trata duma descoberta nova, ainda que alguns cientistas tenham redescoberto esta verdade e a proclamem como coisa sua.

Mas vamos ao essencial. Em toda a criação, a lei da natureza mostra que a vida depende da vida. Como outras criaturas em outros níveis da criação, também o homem se mantém a si mesmo ingerindo qualquer coisa que contém vida. Exteriormente, parece que o homem, em termos de aquisição de karma, viaja no mesmo barco que as outras criaturas dos estratos mais baixos da vida, como as feras, os répteis, etc.

A Natureza possui um outro elemento motor que funciona neste mundo material: a Lei da Evolução. Esta lei providencia para que todos os seres vivos passem de uma situação para outra. À medida que transita de uma ordem da criação para a imediatamente superior, cada ser adquire um valor que o separa do mais baixo. A base de determinação do valor da classe genérica, assim como do valor intrínseco, é a composição da matéria e do intelecto; quanto mais valiosos os constituintes da matéria num ser, maior o intelecto e maior o valor do ser.

Os Santos aplicam esta lei à solução do problema da alimentação do homem. Quer ele a tome em consideração ou não, os Santos apresentam esta lei ao homem para que ele possa corrigir a sua alimentação e evitar, tanto quanto possível, uma pesada carga de elos kármicos nos quais se envolva inextricavelmente.

Cada tipo de alimentação tem o seu efeito próprio no homem, em prejuízo da realização do seu ideal mais elevado: o auto-conhecimento e o conhecimento de Deus. Esta lei coincide com o que o homem geralmente aceita, embora inconsciente das razões do seu comportamento. A comparação dos dados seguintes na vida

quotidiana confirmará, para surpresa do homem, que aquilo que ele considera aceitável na vida social está em total concordância com a lei da natureza aqui explanada.

O corpo do homem, com todos os cinco elementos criativos em plena actividade (terra, água, fogo, ar e éter), tem o valor máximo. Esta a razão porque se encontra à cabeça da lista dos seres da criação e é considerado logo abaixo de Deus — o seu Criador. O assassínio de outras criaturas humanas é considerado como o mais hediondo dos crimes, merecedor de pena capital ou pena de morte.

O nível seguinte é o dos quadrúpedes e animais que possuem quatro elementos activos, sendo o quinto, o éter, quase ausente ou constituindo uma porção desprezível. A matança intencional de um animal que pertença a outrem implica, por conseguinte, uma pena equivalente ao valor do animal em questão.

Vem a seguir o nível das aves, com três elementos activos, a saber: água, fogo e ar — daí que sejam consideradas de valor nominal. Menor ainda é o valor atribuído a criaturas que possuem dois elementos activos — terra e fogo — existindo os outros três numa forma latente, como é o caso dos répteis, vermes e insectos, que são mortos e pisados quase sem arrependimento por não haver neste caso uma penalidade considerável.

O valor mínimo atribui-se às raízes, legumes, frutos, em que o único elemento activo e predominante é a água, permanecendo os restantes quatro elementos num estado latente.

Assim, karmicamente considerada, a alimentação vegetariana constitui de facto o regime que menos sofrimento provoca. Con-sumindo este tipo de alimentos, o homem contrai a menor dívida kármica. Deve, pois, contentar-se com este tipo de alimento enquanto ainda não puder dispensá-lo e habituar-se a qualquer coisa

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que não envolva consequências de espécie nenhuma.

Vejamos agora o que diz a este respeito o Evangelho Essénio de S. João:

Mas eles (os discípulos) responderam-lhe: “Para onde havemos de ir, Mestre, pois contigo estão as palavras da vida eterna? Diz-nos quais são os pecados que temos de evitar para que nunca mais conheçamos a enfermidade.” Jesus respondeu-lhes: “Faça-se de acordo com a vossa fé”. E sentou-se entre eles e disse: (XXI)

“Foi dito aos de tempos antigos: «honra teu Pai celestial e tua Mãe terrena e cumpre os seus mandamentos, para que teus dias na terra sejam longos». E a seguir foi dado este mandamento: «não matarás», porque a vida é dada a todos por Deus, e o que foi dado por Deus, não deixes que o homem o tire. Pois em verdade vos digo que de uma Mãe procede tudo o que vive sobre a terra. Portanto, aquele que mata, mata seu irmão. E a Mãe terrena separá-lo-á dela e dos seus seios vivificantes e os anjos afastar-se-ão dele, e Satanás terá a morada no seu corpo. E a carne dos animais sacrificados converter-se-á, no seu corpo, na sua própria tumba. Porque em verdade vos digo que aquele que mata se mata a si mesmo, e quem assim come da carne dos animais sacrificados come do corpo da morte...

E a morte deles converter-se-á na sua própria morte...

Pois que o salário do pecado é a morte, não mateis, nem tão-pouco comais da carne das vossas inocentes vítimas, para que não vos convertais em escravos de Satanás. Porque essa é a via do sofrimento e conduz à morte. Mas fazei a vontade de Deus, para que os seus anjos vos sirvam

no caminho da vida. Obedecei portanto às palavras de Deus: Eis aqui vos hei dado toda a erva que produz semente e que cresce sobre a face da terra, e toda a árvore na qual está o fruto de uma árvore que produz semente, para vós será como carne; e a todo o animal da terra e a toda a ave do ar, e a tudo o que se arrasta pela terra onde haja alento de vida, dou toda a erva verde como carne. Também o leite de tudo o que se move e vive será como carne para vós; assim como lhes dei a eles toda a erva verde, também vos dou o leite deles. Mas a carne e o sangue que a vivifica, vós não devereis comê-la... (XXII)

Logo outro (discípulo) disse: “Moisés, o maior de Israel, permitiu aos nossos antepassados comer carne de animais não impuros e proibiu a carne de animais impuros. Então por que nos proíbes tu a carne dos animais todos? Qual das leis provém de Deus? A de Moisés ou a tua? (XXIII)

E Jesus continuou: “Deus ordenou aos vossos antepas-sados: «não matarás». Mas os corações deles endureceram-se e eles continuaram a matar. Então, Moisés quis que eles ao menos não matassem os homens e tolerou que matassem os animais. Mas os corações dos nossos antepassados endureceram-se ainda mais e mataram homens e animais igualmente. Mas eu digo-vos: Não mateis homens nem animais, nem sequer o alimento que meteis nas vossas bocas. Pois se comeis alimento vivo, ele mesmo vos vivifi-cará, mas se matais o vosso alimento, o alimento morto matar-vos-á também. Pois a vida só provém da vida, e a morte provém sempre da morte. Pois tudo o que mata o vosso alimento mata também os vossos corpos. E tudo aquilo que mata os vossos corpos mata também as vossas almas. E os vossos corpos convertem-se no que os vossos

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alimentos são, assim como os vossos espíritos se convertem igualmente no que os vossos pensamentos são... (XXIV)

Portanto, comei sempre da mesa de Deus: os frutos das árvores, o cereal e as ervas do campo, o leite dos animais e o mel das abelhas. Porque tudo o que for além disto é Satanás e conduz pelo caminho do pecado e das enfer-midades até à morte. Mas os alimentos que comeis da mesa abundante de Deus dão fortaleza e juventude ao vosso corpo e jamais vereis enfermidade... (XXV)

VIHAR ou CONDUTA SOCIAL

A formação do homem é outra atribuição dos Santos. Qualificar totalmente o homem para o conhecimento mais elevado da alma e da Alma Universal é a Sua missão primordial e mais importante. O Santo exige dos que demandam a Verdade uma purificação completa do corpo, da mente e do intelecto, pois tal é o processo de tornar o homem um todo unificado, antes de empreender a tarefa de desatar o nó górdio entre o corpo e o espírito. Um homem mutilado e truncado jamais pode conhecer-se a si mesmo, nem tão pouco a Deus. Qual, então, a linha de conduta a seguir pelo aspirante? Esta é a questão mais importante, a questão vital, todavia ignorada e evitada sem grande reflexão.

A escassa informação acessível ao homem comum provém, quer da própria sociedade em que vive, quer das alusões ocasionais ouvidas a quem tenha preocupações religiosas, quer do estudo dos livros sagrados. No entanto, nenhum esforço é feito pelo homem no sentido de adoptar um rumo ou fórmula definida, nem a nível intelectual. Na verdade, jamais ele teve tempo suficiente para se

ocupar deste problema. Talvez o fanatismo religioso ou o medo não permitam ao clero chamar a atenção das massas para este problema. É provável que lhes pareça improfícuo delinear um código alimentar, por causa do materialismo intenso que prevalece em todo o lado. Alguns há, não obstante, despidos de opiniões tendenciosas, que estudam a literatura do Oriente com um espírito aberto. Mas têm de enfrentar imensas dificuldades, devidas à terminologia peculiar que lhes é estranha. As palavras não são suficientemente explícitas em si mesmas, ou dificilmente transmitem a intenção exacta de quem escreve.

Os sábios antigos — os rishis e munis de antanho — dissecaram totalmente o problema da vida humana. Analisaram exaustivamente os seus vários aspectos e chegaram a um programa cultural exequível pelo homem na busca da perfeição. Desenvolveu-se assim um padrão aceitável de civilização ou reforma universal que compreendia o conhecimento do eu ou alma e culminava com o atingir da Realidade última — a grande Verdade. Começaram por investigar metodicamente as “gunas” (qualidades) — a coluna vertebral e a fonte primordial de todas as actividades kármicas, em cujo fulcro a mente oscila. A seguir dissecaram as gunas e dividi-ram-nas em três grupos distintos, bastante diferentes entre si:

1) Satogun — O mais elevado modo de agir. Pode ser descrito como vida pura em equilíbrio mental.

2) Rajogun — É interpretado como o modo de agir médio, à maneira comercial de dar e receber.

3) Tamogun — É o modo inferior de agir. Pode descrever-se como uma vida orientada para fins puramente egoístas, sem qualquer consideração pelos outros.

É fácil entender o assunto com alguns exemplos:

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41APÊNDICE I

a) Consideremos, por exemplo, a questão do serviço e auxílio.

1 — X fez do serviço altruísta o princípio norteador da sua vida, mas não aceita dos outros nenhum serviço ou auxílio como recompensa pelo que fez. Fazer bem sem olhar a quem — é a regra da sua vida.

2 — Y serve e ajuda os outros e espera retribuição idêntica. Pode comparar-se este esquema com uma troca de serviços, tal como na actividade comercial, na base do dar e receber, ou permuta de bens — faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem.

3 — Z nem serve nem ajuda os outros, considerando que tem direito a receber ajuda e serviço dos outros, nada o obrigando a retribuir seja o que for.

b) Consideremos agora a questão da caridade:

1 — X dá e esquece e não gosta de receber nada em troca. O seu princípio é prestar serviço altruísta aos desamparados e necessitados.

2 — Y dá e espera retribuição pelo bom serviço que prestou, de uma forma ou doutra.

3 — Z só aceita auxílio e serviço quando necessita, mas nunca retribui, ainda que outra pessoa se encontre em dificuldades mesmo à frente do seu nariz.

É fácil de ver que a conduta de X é a melhor, e é Satogun. As suas boas acções valem-lhe mérito aos olhos de toda a gente deste mundo e até do mundo do Criador.

Y não ganha mérito pelas suas boas acções porque sempre as equilibra no seu estilo de vida “comercial” de dar e receber, ficando

os seus créditos anulados. Z, pelo contrário, acumula dívidas e responsabilidades, pelas quais terá de sofrer o processo kármico, porventura estendendo-se interminavelmente de geração em geração.

É por isso que os Mestres aconselham os homens a adoptar o regime número um, em caso nenhum descendo abaixo do número dois, se é que há necessidade disso. Assim, qualquer pessoa pode traçar o seu programa de vida e determinar o seu estilo de conduta. E é quanto basta, por enquanto, em relação à conduta do homem como membro da ordem social a que pertence. Mas esta conduta não é um fim em si mesma, antes um meio para se chegar a um fim: a conversão da pessoa em “neh-karma”, isto é, empenhando-se na acção kármica sem qualquer apego ou desejo em relação ao respectivo fruto, e como “Swadharm” (acção na inacção), visando o desenvolvimento do eu interior e experimentando a fonte de todo o Amor, Vida e Luz — na qual verdadeiramente vivemos e temos o nosso próprio ser, tal como um peixe na água que não conhece a água em que vive.

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Apêndice II

VIDA DE AUTO-ENTREGA

O problema do “Achar”, ou conduta pessoal do homem como indivíduo, tem uma importância primordial para se atingir o êxito no caminho espiritual. Uma fé amorosa e uma submissão completa à Vontade de Deus ou do Seu eleito, o Homem-Deus, constituem os princípios básicos da vida de quem demanda a Verdade.

Todos os sábios e as Escrituras nos dizem que enquanto vivermos no mundo não devemos conduzir-nos como se pertencês-semos ao mundo; devemos, sim, manter uma atitude de abnegação e total desapego do mundo e de tudo quanto ao mundo pertence. Devemos, portanto, viver como uma flor de lótus, que mergulha as raízes no fundo da lama mas eleva a cabeça bem para o alto, para a luz do Sol glorioso que brilha sobre as águas sombrias, ou como um cisne real, que voga majestosamente à superfície da água, seu “habitat” natural, e no entanto é capaz de voar alto e secar-se, sempre que assim lhe apetece ou parece necessário.

Esta espécie de isolamento desinteressado ou separação do meio ambiente, e principalmente do eu inferior (o corpo, a mente e o mundo mental), só se verifica quando a pessoa dissolve o seu ego ou vontade individual na Vontade de Deus ou do seu Guru (Mestre), o Homem-Deus; é que nessa altura a pessoa actua como simples boneco num espectáculo de marionetas, dançando e representando à vontade do bonecreiro que se oculta atrás do palco. A isto se chama

submissão completa, que silenciosamente anseia por “não a minha, mas a tua vontade, Senhor”. Uma atitude deste tipo leva facilmente o indivíduo a tornar-se “neh-karma”. Embora aparentemente fazendo isto ou aquilo, não faz nada de sua própria vontade mas cumprindo a Vontade de Deus seu Pai ou do seu Preceptor Divino; vê dentro de si, verdadeiramente, o Plano Divino tal como é, deixa-se simplesmente arrastar na Grande Corrente da Vida e reconhece-se a si mesmo como instrumento consciente nas mãos invisíveis que dirigem todos os seus movimentos.

Submissão significa, pois, entregar-se por inteiro a Deus ou Seu Eleito, o Preceptor (Deus no homem), incluindo o seu corpo, os seus bens e o seu verdadeiro eu (a mente pensante). Não significa para o indivíduo uma situação de bancarrota total, como alguns são levados a pensar. Deus e o Seu Eleito são os dadores de todas estas coisas e não necessitam delas; Eles deram-nas já, livremente e com abundância, aos seus filhos, para que as usem legitimamente e da melhor maneira. Na nossa ignorância, consideramo-las como propriedade nossa e adoptamos uma atitude de possessão agressiva, esforçando-nos por adquiri-las por todos os meios justos e injustos, para depois as guardarmos ciosamente com todas as nossas forças. Apegados a estas dádivas que seguramos firmemente, esquecemos o Grande Dador; e deste modo se insinua imperceptivelmente a grande ilusão, o grande engano, a causa fundamental de todos os nossos sofrimentos.

Sem dúvida que as coisas do mundo que vieram parar às nossas mãos são nossas, mas foram-nos dadas temporariamente como uma concessão sagrada, destinada a ser utilizada de acordo com a Vontade do Dador, em si mesmo perfeito e imaculadamente limpo. À medida que a sua vida se desenrola no plano da matéria, o homem, com todos os seus poderes mundanos, não consegue evitar a influência das impressões grosseiras, permitindo que se acumulem livremente, dia após dia, até formarem uma parede de granito à sua volta; e assim, perdendo a clareza de percepção, o homem torna-se

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43APÊNDICE II

cego para a realidade e começa a identificar o seu eu com “Pinda” e “pindi-manas” (o corpo e a mente corporal).

Com estas lentes fumadas e estes antolhos, a visão fica distorcida e o homem deixa de ver a radiação branca da Realidade, coberta agora por uma cúpula de vidro multicor. Os Santos falam-nos da Realidade e ajudam-nos a quebrar estes falsos óculos, a rasgar os antolhos que limitam a visão e a vermos o mundo manifestado como obra magnífica das mãos de Deus. Dizem-nos que o mundo que nós vemos é um reflexo de Deus e que Deus habita nele. Assim sendo, devemos conservar as divinas dádivas do corpo, da mente e dos bens materiais, limpos e em ordem, tal como quando nos foram concedidas; e devemos usá-las judiciosamente ao Seu serviço e ao serviço da Sua criação, de acordo com a Sua Divina Vontade, que já se acha impressa no padrão do nosso ser (doutro modo, como poderíamos existir?). Porém, por um sentido constante de separação da Realidade, perdemo-la de vista no turbilhão avassalador do mundo, e também perdemos o domínio das correntes vitais que fluem dentro de nós: a Luz e o Som de Deus.

Os Santos dizem-nos que invertamos o processo de projecção exterior para a realidade interior, pela compreensão dos verdadeiros valores da vida, pois que a “vida” é muito mais preciosa do que a carne (corpo), e a carne mais do que o vestuário (bens mundanos) com que vestimos o nosso pequeno eu corporal e mental — que erroneamente julgamos nossos e que utilizamos de forma impensada e egoísta, nos prazeres sensoriais e nas exibições mundanas.

Se nos elevarmos acima da consciência corporal, ficamos a saber o que somos e aprendemos a usar melhor as nossas dádivas ao serviço de Deus e do Plano de Deus, e não em actividades pecami-nosas nascidas de apetites carnais e de vanglória ou como meios de adquirir poder temporal ou lucros e vantagens pessoais. Foi esta a

grande lição que o sábio Ashtavakra deu ao rei Janak depois de lhe conceder uma experiência prática da Realidade. Na verdade, não temos nada a que renunciar a não ser ao nosso apego egoísta ao cofre do coração; e isto, ao invés de nos tornar mais pobres, atrai cada vez mais dádivas amorosas do Pai Supremo, por ver a sabedoria do Seu filho, anteriormente filho pródigo, mas agora mais amadurecido. A isto se chama submetermos o pequeno ego, com todos os acessórios do corpo, mente e bens materiais, por amor do eu mais elevado (alma), de acordo com a Divina Vontade, e tornarmo-nos neh-karma, o verdadeiro propósito da vida.

Vamos ilustrar este ponto com um exemplo para o tornar mais explícito. No tempo do guru Arjan, o quinto na linha de sucessão do guru Nanak, passou-se o seguinte episódio com Bhai Bhikari, discípulo exemplar: um outro discípulo pediu ao Guru que o apresentasse a um “Gurbhakta” (discípulo dedicado). O Guru enviou-o com uma carta a Bhai Bhikari e pediu-lhe que ficasse com este alguns dias. Bhikari recebeu o seu irmão de fé calorosamente e fez o possível por lhe ser agradável.

No dia da chegada do novo discípulo, o anfitrião estava cal-mamente a coser um pequeno pedaço de tecido que parecia a cobertura de um caixão. O discípulo, depois de alguns dias passados alegremente na companhia de Bhikari, manifestou o propósito de regressar, mas Bhikari pediu-lhe que ficasse mais algum tempo para assistir ao casamento do filho, que teria lugar muito brevemente. Ante a insistência amável do anfitrião, o outro acedeu em ficar.

Chegou o dia do casamento. Grandes festejos houve naquela casa, mas Bhikari manteve-se tão sereno como sempre. O discípulo, tal como toda a gente, acompanhou o cortejo nupcial, assistiu às cerimónias jubilosas e incorporou-se no grupo que acompanhou o noivo até casa de Bhikari. No dia seguinte, quis a pouca sorte que o

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44 A Roda da Vida

único filho de Bhikari, o jovem recém-casado, adoecesse subita-mente e morresse. Tranquilamente, Bhikari pegou no tecido que propositadamente preparara dias antes, embrulhou nele o corpo do filho, levou-o até ao local de cremação e realizou as últimas cerimónias com a sua usual equanimidade. A atitude de Bhikari, uma atitude de firme compostura mantida ao longo de toda a sequência de acontecimentos, deixou o discípulo absolutamente perplexo, pois em Bhikari não se notaram vestígios de alegria nem de desgosto, antes uma perfeita resignação à Vontade do Senhor, que ele conhecia desde o princípio; ele limitou-se a agir em confor-midade, sem exibir sequer qualquer emoção ou sentimento pessoal.

O Guru Nanak costumava dizer: “Oh, Senhor! Não faças nada do que eu digo, mas administra a Tua Vontade!” Também Sant Kabir costumava apelidar-se a si mesmo Moti (nome de cão), e referia-se a todos os seus feitos como sendo do Senhor, que segurava a trela nas Suas mãos e o levava para onde lhe aprazia. Cristo sempre proclamou: “Seja feita a Tua Vontade, assim na terra como no céu”; “Seja feita a Tua Vontade” foi sempre a frase que conclui a oração diária dos monges hindus, derviches muçulmanos e sacerdotes cristãos, seguidas das palavras “Tatha Astu” ou “Amen”, que significam “assim seja”.

Do exposto se pode deduzir claramente que os discípulos verdadeiramente fiéis e sinceros dos Mestres, e os próprios Mestres, sempre consideram que não possuem uma existência individual própria, independente de Deus ou do Homem-Deus. Tais pessoas lêem o passado, o presente e o futuro como um livro aberto e fazem as coisas em conformidade com o Plano Divino. Isto leva-nos irresistivelmente à conclusão de que Deus ajuda aquelas almas que fazem a Sua Vontade. Mas isto é apenas para homens de fé inabalável e não pode ser tomado como pretexto por indivíduos vulgares que vivam exclusivamente no plano dos sentidos, pois que

aqueles são governados pela lei de que Deus ajuda os que se ajudam a si próprios.

A qualidade da submissão, seja qual for a intensidade da fé, produz o seu fruto, e rapidamente, de acordo com o nível a que é praticada. Pela experiência se aprende gradualmente o seu pleno valor, à medida que se avança no Caminho, até se atingir um estado em que o ego se perde completamente na Vontade Divina e a pessoa se torna neh-karma, coroa e glória de toda a existência humana. Uma fé amorosa na bondade inerente a Deus e uma submissão completa à Vontade Divina conduzem inevitavelmente o discípulo pela rota da espiritualidade, sem que seja necessário da sua parte um esforço muito intenso. Estes dois factores constituem o “abre-te sésamo”, a chave mágica que escancara o portal do Reino de Deus que está dentro do templo do corpo humano que todos nós somos: “Não sabeis que sois o templo de Deus e que Deus habita ver-dadeiramente dentro dele?” — dizem todas as Escrituras.

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Sant KIRPAL SINGH Sant THAKAR SINGH, o Mestre actual

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ÍNDICE

Preâmbulo

CAPÍTULO I..................................................................1

CAPÍTULO II...............................................................13

CAPÍTULO III..............................................................29

CAPÍTULO IV..............................................................39

CAPÍTULO V...............................................................53

APÊNDICE I: Viver em Verdade..................................69

APÊNDICE II: Vida de Auto-Entrega............................87

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Literatura DisponívelEdições da S.H.P. em Português

LIVROS

Espiritualidade, o que é — de Sant Kirpal Singh

A Roda da Vida — idem

O Mistério da Morte — idem

A Coroa da Vida — idem

Homem-Deus — idem

Histórias que nos Fazem Bem — de Sant Thakar Singh

5 Entrevistas com Sant Thakar Singh

Elixir Espiritual — de Sant Kirpal Singh

Sant Thakar Singh — notas biográficas

CADERNOS

Meditação, Palavras dos Mestres

Surat Shabd Yoga, uma Introdução

Poder de Deus, Poder de Cristo, Poder do Mestre

Regime Vegetariano do Ponto de Vista Espiritual

Curiosidades Biográficas de um Homem-Deus

A Holosofia e a Sociedade Holosófica de Portugal

A História do Ramayana Contada às Crianças

10 Canções de Amar e Louvar ao meu Divino Mestre

Porquê Vegetariano?

Sant Mat - Cadernos de Consulta (3 volumes)

Psicologia do Misticismo: Amor, Concentração, Entrega

Kabir, Santo e Poeta

Outras Histórias que... também nos Fazem Bem!

Ciência e Misticismo - Aspectos de Convergência