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OLIBERAL BELÉM, DOMINGO, 30 DE NOVEMBRO DE 2014 MAGAZINE 11 sim [email protected] VICENTE CECIM Diálogos com homens sábios: Aurobindo V ocê lembra o que Sri Auro- bindo nos disse sobre o que ele chama de perfeição ativa e pureza positiva, na página Sim do domingo passado? Certamente não, se você nem leu a página – o que nos leva à evidência de que outros tam- bém não terão lido e, lendo esta, preci- sem se situar no tema da primeira, que foi a pergunta: Pode os homens ir além do homem? – e é para esses, então, que reproduzo um pequeno trecho do seu texto, antes aqui mostrado, Os Instru- mentos do Espírito: A primeira necessidade para uma perfeição ativa de nosso ser é a puri- ficação do atuar dos instrumentos que ele atualmente utiliza. O ser em si próprio é eternamente puro. A mente, o coração, a alma de desejo vital, a vida no corpo são os assentos da impureza. O objetivo não é uma pureza negativa, proibitiva, passiva ou aquietadora, mas uma pureza positiva, afirmativa, ativa. É uma total purificação de toda a com- plexa instrumentalidade em todas as partes de cada instrumento que é soli- citada a nós pela perfeição integral. O que vimos na página passada foi que, ante a pergunta abissal - indo de Buda a Cristo e passando por tudo o que há entre os dois - praticamente todos concordam em responder à pergunta: - Sim, mas ninguém está de acordo sobre a forma como isso poderá ser feito. Um dos que buscou a resposta foi o brevemente já apresentado no domin- go passado - Sri Aurobindo. Eu tenho um sentimento muito grande de Ego como o gerador em nós, homens, de todas as dualidades – somos divididos por ele, separa- dos da Vida Autêntica, e acabamos entrando em conflitos não apenas com o mundo, também cada um consigo mesmo. Afinal, para que serve o Ego? - O sentido do ego serve para li- mitar, separar e diferenciar do modo mais definido possível; serve ao má- ximo aproveitamento da forma indivi- dual e existe porque é indispensável para a evolução da vida inferior. Mas, quando queremos ascender ao grau de uma vida divina, temos de dimi- nuir a força do ego e, por fim, livrar- mo-nos dele — assim como é indis- pensável o desenvolvimento do ego para a vida inferior, assim também para a vida superior esse movimento inverso de eliminação é igualmente indispensável. Por quanto tempo ainda o homem permanecerá submetido ao Ego, sem evoluir para uma visão unificada da Vida? Quando veremos e viveremos o Uno de Plotino? Enfim, pode o ho- me ir além do homem e superar essa limitação? - Este ego ou “eu” não é uma verda- de permanente, e muito menos a parte essencial do nosso ser. É somente uma formação da natureza: uma forma mental que centraliza os pensamentos na nossa mente que percebe e discri- mina; uma forma vital que centraliza os sentimentos e sensações nas partes virtuais do nosso ser - e uma forma de receptividade física consciente que centraliza no nosso corpo a substância e as funções da substância. O que nós somos no interior não é o ego, mas a consciência, ou espírito. O que somos no exterior e na superfície não é o ego, mas a Natureza. Uma força cósmica executiva nos molda e, por meio do nosso temperamento, do nosso am- biente e da nossa mentalidade – todos eles moldados por ela – por meio da nossa formulação individualizada das energias cósmicas, determina nossas ações e os seus resultados. Na verdade, nós não pensamos, nem queremos, nem agimos - são os pen- samentos, vontades, impulsos e atos que ocorrem em nós, e o sentido do ego reúne ao seu redor todo esse fluxo de atividades naturais e toma-se como o centro delas. É a Força cósmica, é a Natureza que forma o pensamento, impõe a vontade e confere o impulso. O corpo, a mente e o ego não passam de uma onda nesse mar de força em ação - não o governam, mas, pelo con- trário, são governados e dirigidos por ele. O sadhaka – o homem sábio - em seu progresso rumo à verdade e ao au- toconhecimento, tem de chegar a um grau em que a alma abra os olhos da sua visão e reconheça esta verdade do ego e esta verdade das obras. Então, o sadhaka compreende ideia de um “eu” mental, vital e física que age ou deter- mina a ação - reconhece que a Praktriti, a Força da natureza cósmica que segue suas leis sempre rígidas, é a única que opera todas as coisas nele e em todas as coisas e criaturas. Sobre a prisão do Ego e a libertação do Eu O Ego vive fingindo que é o ver- dadeiro Eu Universal – e dele diz o filósofo pré-socrático Heráclito que leva os homens a pensarem como se cada um tivesse um Logos/inteli- gência particular e a ignorar esse Eu Universal/a Inteligência do Cosmos. Como você vê isso? - No mundo, nós agimos movidos pelo sentido do egoísmo. Afirmamos que são nossas as forças universais que operam por nosso intermédio - afirmamos que a ação seletiva, for- mativa e progressiva do transcen- dente na estrutura da mente, da vida e do corpo não passa de um efeito da nossa vontade, sabedoria, força e virtude pessoais. A iluminação nos dá o conhecimento de que o ego não passa de um instrumento - começa- mos a perceber e a sentir que essas coisas são nossas, sim, mas porque pertencem ao nosso Si Mesmo supre- mo e integral, Aquele que é uno com o Transcendente, e não ao ego instru- mental. As contribuições que damos à obra são as limitações e distorções, o verdadeiro poder que nela opera é divino. Quando o ego humano perce- be que a sua vontade é uma ferramen- ta, que a sua sabedoria é ignorância e infantilidade, que o seu poder é o tatear de um bebê, que a sua virtude é uma impureza arrogante e preten- siosa - quando aprende a confiar-se Àquilo que o transcende - nisso está sua salvação. A liberdade e a autoafir- mação aparentes do nosso ser pessoa, ao qual somos tão profundamente apegados, ocultam uma lamentabi- líssima sujeição a milhares de suges- tões, impulsos e forças que tornamos estranhas à nossa insignificante pes- soa. O ego, que se jacta da sua liber- dade, é sempre e a cada momento o escravo, o brinquedo e o marionete de incontáveis seres, forças, poderes e influências da Natureza universal. cionalidades que para lá convergem em busca de harmonia interior e uma mais ampla reintegração ao Univer- so. Se você quer visita-la, pelo menos virtualmente, boa viagem: procure no Google por Auroville, Bommaya- palayam, Tamil Nadu, Índia. O pensamento de Aurobindo está bem expresso no substancial livro The Syntesis of Yoga que em português apareceu reduzido e com o título Por Uma Psicologia Maior. Nosso Diálogo com homens sábios de hoje é com Sri Aurobindo: ele abor- da o Ego, a vida inferior e a redenção humana através de uma vida com ele- vada consciência. - Quem? Talvez você pergunte. Na dúvida, falemos mais dele. Aurobindo Akroyd Ghosh nasceu em 1872 na Índia e se foi em 1950. Tem- po suficiente para conceber e transmi- tir por todo o mundo a sua Yoga Inte- gral – se preferir, chame de seu Yoga Integral. Aos 5 anos foi para a Inglater- ra, aprendeu vários idiomas e só voltou a Índia com 20 anos de idade – iniciado na cultural ocidental, mas querendo mergulhar na sabedoria oriental, sua origem. Contra a Inglaterra, que nessa época se impunha colonialmente a Índia, organizou em segredo e depois assumiu publicamente o comando do movimento revolucionário que lutava pela independência do país. Preso pelo governo inglês, foi durante esse perí- odo de isolamento que Sri Aurobindo Sri é um modo de se referir a alguém muito sábio – passou por experiências que o afastaram da política e o condu- ziram ao caminho espiritual. Que Caminho foi esse? Sabemos que atualmente, além de seus livros, esse caminho passa pela cidade de Auroville. Bem diferente da infernal Alpha- ville - que dá título ao filme-parábola de Jean-Luc Godard - dominada por uma máquina que controla seus ha- bitantes, literalmente, com mão de ferro: o computador Alpha 60 – Au- roville, a Cidade da Aurora, foi cria- da na Índia segundo os princípios da Yoga Integral, de Sri Aurobindo, e seus 25 km 2 são habitados por, além de indianos, pessoas de todas as na- É quando a mente fica silenciosa que se produz a realização do Si silencioso acima da mente, espalhado em sua vastidão por toda parte. SRI AUROBINDO Olho / Cosmos Auroville: Viver em uma mandala Auroville: Cúpula central da Cidade da Aurora

Sim 77 Diálogos com homens sábios: Aurobindo

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Sobre a prisão do Ego e a libertação do Eu

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O LIBERALBELÉM, DOMINGO, 30 DE NOVEMBRO DE 2014 MAGAZINE 11

sim [email protected] CECIM

Diálogos com homens sábios: Aurobindo

Você lembra o que Sri Auro-bindo nos disse sobre o que ele chama de perfeição ativa e pureza positiva, na página

Sim do domingo passado? Certamente não, se você nem leu a página – o que nos leva à evidência de que outros tam-bém não terão lido e, lendo esta, preci-sem se situar no tema da primeira, que foi a pergunta: Pode os homens ir além do homem? – e é para esses, então, que reproduzo um pequeno trecho do seu texto, antes aqui mostrado, Os Instru-mentos do Espírito:

A primeira necessidade para uma perfeição ativa de nosso ser é a puri-ficação do atuar dos instrumentos que ele atualmente utiliza. O ser em si próprio é eternamente puro. A mente, o coração, a alma de desejo vital, a vida no corpo são os assentos da impureza. O objetivo não é uma pureza negativa, proibitiva, passiva ou aquietadora, mas uma pureza positiva, afirmativa, ativa. É uma total purificação de toda a com-plexa instrumentalidade em todas as partes de cada instrumento que é soli-citada a nós pela perfeição integral.

O que vimos na página passada foi que, ante a pergunta abissal - indo de Buda a Cristo e passando por tudo o que há entre os dois - praticamente todos concordam em responder à pergunta: - Sim, mas ninguém está de acordo sobre a forma como isso poderá ser feito.

Um dos que buscou a resposta foi o brevemente já apresentado no domin-go passado - Sri Aurobindo.

Eu tenho um sentimento muito grande de Ego como o gerador em nós, homens, de todas as dualidades – somos divididos por ele, separa-dos da Vida Autêntica, e acabamos entrando em conflitos não apenas com o mundo, também cada um consigo mesmo. Afinal, para que serve o Ego?

- O sentido do ego serve para li-mitar, separar e diferenciar do modo mais definido possível; serve ao má-ximo aproveitamento da forma indivi-dual e existe porque é indispensável para a evolução da vida inferior. Mas, quando queremos ascender ao grau de uma vida divina, temos de dimi-nuir a força do ego e, por fim, livrar-mo-nos dele — assim como é indis-pensável o desenvolvimento do ego para a vida inferior, assim também para a vida superior esse movimento inverso de eliminação é igualmente indispensável.

Por quanto tempo ainda o homem permanecerá submetido ao Ego, sem evoluir para uma visão unificada da Vida? Quando veremos e viveremos o Uno de Plotino? Enfim, pode o ho-me ir além do homem e superar essa limitação?

- Este ego ou “eu” não é uma verda-de permanente, e muito menos a parte essencial do nosso ser. É somente uma formação da natureza: uma forma mental que centraliza os pensamentos na nossa mente que percebe e discri-mina; uma forma vital que centraliza os sentimentos e sensações nas partes virtuais do nosso ser - e uma forma de receptividade física consciente que centraliza no nosso corpo a substância e as funções da substância. O que nós somos no interior não é o ego, mas a consciência, ou espírito. O que somos no exterior e na superfície não é o ego, mas a Natureza. Uma força cósmica executiva nos molda e, por meio do nosso temperamento, do nosso am-biente e da nossa mentalidade – todos eles moldados por ela – por meio da nossa formulação individualizada das energias cósmicas, determina nossas ações e os seus resultados. Na verdade, nós não pensamos, nem queremos, nem agimos - são os pen-samentos, vontades, impulsos e atos que ocorrem em nós, e o sentido do ego reúne ao seu redor todo esse fluxo de atividades naturais e toma-se como o centro delas. É a Força cósmica, é a Natureza que forma o pensamento, impõe a vontade e confere o impulso. O corpo, a mente e o ego não passam de uma onda nesse mar de força em ação - não o governam, mas, pelo con-trário, são governados e dirigidos por ele. O sadhaka – o homem sábio - em seu progresso rumo à verdade e ao au-toconhecimento, tem de chegar a um grau em que a alma abra os olhos da sua visão e reconheça esta verdade do ego e esta verdade das obras. Então, o sadhaka compreende ideia de um “eu” mental, vital e física que age ou deter-mina a ação - reconhece que a Praktriti, a Força da natureza cósmica que segue suas leis sempre rígidas, é a única que opera todas as coisas nele e em todas as coisas e criaturas.

Sobre a prisão do Ego e a libertação do Eu O Ego vive fingindo que é o ver-dadeiro Eu Universal – e dele diz o filósofo pré-socrático Heráclito que leva os homens a pensarem como se cada um tivesse um Logos/inteli-gência particular e a ignorar esse Eu Universal/a Inteligência do Cosmos.Como você vê isso?

- No mundo, nós agimos movidos pelo sentido do egoísmo. Afirmamos que são nossas as forças universais que operam por nosso intermédio - afirmamos que a ação seletiva, for-mativa e progressiva do transcen-dente na estrutura da mente, da vida e do corpo não passa de um efeito da nossa vontade, sabedoria, força e virtude pessoais. A iluminação nos dá o conhecimento de que o ego não passa de um instrumento - começa-mos a perceber e a sentir que essas coisas são nossas, sim, mas porque pertencem ao nosso Si Mesmo supre-mo e integral, Aquele que é uno com o Transcendente, e não ao ego instru-mental. As contribuições que damos à obra são as limitações e distorções, o verdadeiro poder que nela opera é divino. Quando o ego humano perce-be que a sua vontade é uma ferramen-ta, que a sua sabedoria é ignorância e infantilidade, que o seu poder é o tatear de um bebê, que a sua virtude é uma impureza arrogante e preten-siosa - quando aprende a confiar-se Àquilo que o transcende - nisso está sua salvação. A liberdade e a autoafir-mação aparentes do nosso ser pessoa, ao qual somos tão profundamente apegados, ocultam uma lamentabi-líssima sujeição a milhares de suges-tões, impulsos e forças que tornamos estranhas à nossa insignificante pes-soa. O ego, que se jacta da sua liber-dade, é sempre e a cada momento o escravo, o brinquedo e o marionete de incontáveis seres, forças, poderes e influências da Natureza universal.

cionalidades que para lá convergem em busca de harmonia interior e uma mais ampla reintegração ao Univer-so. Se você quer visita-la, pelo menos virtualmente, boa viagem: procure no Google por Auroville, Bommaya-palayam, Tamil Nadu, Índia.

O pensamento de Aurobindo está bem expresso no substancial livro The Syntesis of Yoga que em português apareceu reduzido e com o título Por Uma Psicologia Maior.

Nosso Diálogo com homens sábios de hoje é com Sri Aurobindo: ele abor-da o Ego, a vida inferior e a redenção humana através de uma vida com ele-vada consciência.

- Quem?Talvez você pergunte.Na dúvida, falemos mais dele.Aurobindo Akroyd Ghosh nasceu

em 1872 na Índia e se foi em 1950. Tem-po suficiente para conceber e transmi-tir por todo o mundo a sua Yoga Inte-gral – se preferir, chame de seu Yoga Integral. Aos 5 anos foi para a Inglater-ra, aprendeu vários idiomas e só voltou a Índia com 20 anos de idade – iniciado na cultural ocidental, mas querendo mergulhar na sabedoria oriental, sua origem. Contra a Inglaterra, que nessa época se impunha colonialmente a Índia, organizou em segredo e depois assumiu publicamente o comando do movimento revolucionário que lutava pela independência do país. Preso pelo governo inglês, foi durante esse perí-odo de isolamento que Sri Aurobindo – Sri é um modo de se referir a alguém muito sábio – passou por experiências que o afastaram da política e o condu-ziram ao caminho espiritual.

Que Caminho foi esse?Sabemos que atualmente, além de

seus livros, esse caminho passa pela cidade de Auroville.

Bem diferente da infernal Alpha-ville - que dá título ao filme-parábola de Jean-Luc Godard - dominada por uma máquina que controla seus ha-bitantes, literalmente, com mão de ferro: o computador Alpha 60 – Au-roville, a Cidade da Aurora, foi cria-da na Índia segundo os princípios da Yoga Integral, de Sri Aurobindo, e seus 25 km2 são habitados por, além de indianos, pessoas de todas as na-

É quando a mente fica silenciosaque se produz a realização do Si silenciosoacima da mente, espalhadoem sua vastidão por toda parte. SRI AUROBINDO

Olho / Cosmos

Auroville: Viver em uma mandala

Auroville: Cúpula central da Cidade da Aurora