36
SGANARELLO Texto de Molière Tradução em versos de Armando Gonzaga

SGANARELLO - · PDF file... ela não vale nada. ... de Companhia e o Homem levando Célia). ... hei-nos aqui! Não se zangue o senhor com o que vai perguntar o seu fiel servidor

Embed Size (px)

Citation preview

SGANARELLO Texto de Molière

Tradução em versos de Armando Gonzaga

PERSONAGENS

GORGIBUS

CÉLIA

DAMA DE COMPANHIA

SGANARELLO

MULHER DE SGANARELLO

LÉLIO

CRIADO

UM PARENTE DE SGANARELLO

VILLEBREQUIM

A ação se passa em um praça pública.

Cena I

Gorgibus, Célia e a Dama de Companhia. Célia sai de

casa debulhada em lágrimas.

GORGIBUS - Que resmungas aí com esse ar rabugento /

Queres que eu volte atrás do que já

resolvi? / Acaso não terei mais poder

sobre ti? / E por tolas razões tua cabeça

tonta / Pretende regular questão de

tanta monta? / Qual de nós, afinal, deve

no outro mandar? / Em tua opinião,

quem deverá julgar, / Oh, bobinha! O que

mais convém ao teu futuro? / Com os

diabos! Ouve lá: se insistes, eu te juro /

Que poderás sentir, com verdadeira dor, /

Se meu braço perdeu seu antigo vigor. / O

mais simples será, discreta e conformada,

/ Aceitares, risonha, o noivo que me

agrada. / "Eu não sei!" - dizes tu - "quem é

esse sujeito / E nem ao menos fui

consultado a respeito". / Informado dos

bens que ele pode trazer, / Devia eu

procurar outras coisas saber? / Um noivo

que dispõe de tamanha bolada, / Para

adorado ser precisa de mais nada? /

Vamos! Seja quem for, com o dinheiro que

tem, / Posso-te garantir que é um homem

de bem...

CÉLIA - Ai! Meu Deus!...

GORGIBUS - Ai, meu Deus! A quem vem tal queixume? /

Vejam só de que modo ela as coisas

resume! / Se a cólera, outra vez, se apossa

de meu peito, / Eu te farei cantar: "ai,

meu Deus" de outro jeito. / É esse o

resultado, o fruto encantador / Da

leitura imbecil de romances de amor. / O

teu cérebro, agora a tolices votado, /

Pensa menos em Deus do que no

namorado. / Vamos! Atira ao fogo esses

livros insossos, / Que estragam dia a dia o

espírito dos moços. / Lê, como é

necessário, em vez de coisas tais, / Os

versos de Pibrac e as sentenças morais /

Do velho Mathieu. São obras de valor, /

Que se guardam de cor quando se é bom

leitor. / "Guia do Pecador", que é também

excelente, / Ensina a mocidade a viver

sabiamente. / Se não lesses senão essas

moralidades, / Seguirias melhor as

paternas vontades...

CÉLIA - Que, meu pai, o senhor pretende que eu renegue

/ Um noivo contra o qual nada há que se

alegue? / Eu andaria mal agindo só por

mim, / Mas foi o senhor quem me

mandou dizer "sim".

GORGIBUS - Dissemos mil "sins", vinte mil, um milhão, /

Um fato sobrevém que muda a situação.

/ O Lélio é um bom rapaz, mas isso é

quase nada, / Diante de quem possui uma

bolsa recheada. / O ouro faz belo o feio,

inteligente um beócio / E entre um

"pronto" e um ricaço, este é melhor

negócio. / O Valério talvez não seja o teu

querido, / Mas será, com certeza,

excelente marido. / O amor, podes crer, é

um belo sentimento / Que muitas vezes

vem depois do casamento... / Mas estou a

perder meu tempo e meu latim / Num

caso que afinal, só depende de mim... /

Poupa-me, pois, de ouvir tuas

impertinências, / De te ver com este ar

que inspira condolências. / Meu genro

virá hoje aqui para nos ver. / Falta um

pouco sequer a bem o receber... / Se eu te

vir de ar amuado ou se ouvir teus ais, /

Eu te... é o que te digo... eu já falei

demais...

Cena II

Célia e a Dama de Companhia.

A DAMA - Que! Recusar assim, com todo esse vigor, / O

que outras, podes crer, desejam com

fervor? / À ordem de casar responder

toda em prantos / E retirar um "sim" que

só nos traz encantos? / Quisesse ainda

alguém comigo se casar / E não seria eu

que o faria esperar. / E longe de tal "sim"

me deixar pesarosa, / Eu daria de "sins"

uma dúzia, uma grosa. / O velho

professor de que é aluno seu irmão /

Afirmava outro dia, e com toda a razão,

/ Que a mulher, neste mundo, é como a

parasita: / Ela se desenvolve e é sempre

mais bonita / Quando ao tronco que vive

está bem agarrada. / Enquanto que,

sozinha, ela não vale nada. / Posso-lhe

assegurar que a coisa é verdadeira, / Pois

que a esse respeito eu falo de cadeira. /

Que o bom Deus tenha em paz o meu

pobre Martim, / Mas eu tinha, ele vivo, a

cor de um querubim, / Um aspecto sadio,

a alma sempre contente... / Hoje, o meu

triste ar é de quem vive doente. /

Naquele belo tempo eu nunca senti frio, /

Mesmo durante o inverno estava em

pleno estio, / Puxar um cobertor era

coisa ridícula... / E agora, ai de mim!

Tremo em plena canícula... / Enfim, nada

há melhor, digo-o porque o senti, / Do que

ter-se um marido à noite ao pé de si. /

Não fosse senão para atento à nossa

saúde, / Quando damos um espirro,

exclamar: "Deus te ajude".

CÉLIA - Podes aconselhar-me o crime ignominioso / De

Lélio desprezar por esse desgracioso?

A DAMA - O tal Lélio, direi, não parece andar bem... /

Por que há tanto tempo essa viagem o

retém? / O seu afastamento induz à

desconfiança / De ter sua paixão já

sofrido mudança...

CÉLIA (Mostrando-lhe o retrato de Lélio) - Não queiras

aumentar o meu enorme desgosto! /

Examina este olhar, as linhas deste

rosto... / Tudo fala a favor de sua

lealdade / Onde vês, por acaso, um traço

de maldade? / E no entanto é preciso...

Ah! Socorre-me!... (Deixa cair o retrato).

A DAMA - Que houve? / Menina!... Santo Deus! Ela já

não me ouve! / Socorro! Venha alguém!

(Sganarello entra).

Cena III

Célia, A Dama e Sganarello.

SGANARELLO - Por que tal rebuliço?

A DAMA - Minha ama está morrendo!...

SGANARELLO - Ah! É apenas isso? (Segura Célia) /

Pensei tudo perdido ouvindo o

espalhafato. / Mas vamos lá, você morreu

mesmo de fato?... / Ela não diz palavra...

A DAMA - Ajude-me, senhor! / Vou chamar mais

alguém... É um minuto. Ai que horror!

(Sai).

SGANARELLO (Passando a mão pelo corpo de Célia) -

Ela está geladinha... e, no entanto, está

linda... / Procuremos saber se ela respira

ainda... / Francamente não sei. Mas todo

o meu desejo / É que ela viva... (A Mulher

de Sganarello aparece à janela).

Cena IV

Célia, Sganarello, a Mulher de Sganarello.

A MULHER - Céus! Será mesmo o que vejo? / Meu

marido abraçado à outra! Custa a crer...

/ Mas o fato ali está e eu vou já descer...

(Desaparece. Entra a Dama de

Companhia seguida de um homem).

SGANARELLO - Levá-la para casa é o socorro preciso... /

Morrer assim na rua é falta de juízo. /

Marchar para o outro mundo é loucura

insanável, / Quando no mundo aqui a

coisa é bem passável... (Sai com a Dama

de Companhia e o Homem levando Célia).

Cena V

A Mulher de Sganarello.

A MULHER - Ele se foi daqui com tal celeridade, / Que

afinal enganou minha curiosidade... /

Mas de sua traição tenho prova provada.

/ Pelo pouco que vi estou mais que

informada. / Já não me espanta mais a

frialdade do gelo, / Com que ele

corresponde ao fogo do meu zelo. / O

ingratalhão reserva as suas cortesias /

Para outras talvez que se mostrem mais

frias. / Eis dos maridos de hoje o proceder

comum: / Para as outras nutrir, fica a

esposa em jejum... / No começo, em geral

a vida é uma delícia, / E eles são para

nós só ternura e carícia. / Mas em breve

o prazer de nossa companhia / Cansa-os,

e eles lá vão em busca da folia. / Ah! Por

que nossa lei também não autoriza / A de

esposo mudar como de uma camisa? /

Seria bem melhor, e eu conheço várias /

Que são dessa doutrina ardentes

partidárias... / (Apanhando o retrato)

Mas que jóia é esta aqui? Parece de

valor... / O esmalte é precioso e a pintura

um primor... / Abramos... (Sganarello

entra falando a si mesmo).

Cena VI

Sganarello e a Mulher.

SGANARELLO - Eu pensei que ela estivesse a pique / De

morrer. E afinal era um simples

chilique... / Mas que! Minha mulher?

A MULHER (Crendo-se só) - Que bela miniatura! / É um

guapo rapaz numa linda pintura...

SGANARELLO - Mas que é que lhe desperta assim tanta

atenção? / Um retrato? Que tal? Será que

é uma traição? / Uma suspeita vil meu

espírito invade...

A MULHER (Crendo-se só) - Que beleza! Que amor! Que

preciosidade! / Nunca vi coisa igual... que

sorte a de encontrá-lo! / (Cheirando-o) E

como cheira bem!...

SGANARELLO - Ah! Peste! Ainda beijá-lo!... / Apanhei-

te!

A MULHER (Sempre crendo-se só) - A mulher deste

jovem querida / É que pode falar das

delícias da vida... / É preciso ser forte em

sua devoção / Para deste rapaz fugir à

tentação... / Ah! Que eu não tenha um de

igual desenvoltura, / Em vez desse

animal que me engana...

SGANARELLO (Arrancando-lhe o retrato) - Ah! Perjura!

/ Nós te apanhamos em flagrante

vergonhoso, / Arrastando na lama a

honra de um esposo... / Quer dizer que,

segundo a tua veleidade, / O marido não

vale a sua cara metade. / Pelo demo

infeliz que te queira levar, / Que partido

melhor podias desejar? / Quem pode

achar em mim razões de censura? / Este

talhe, este porte, esta linda figura. / Este

rosto gentil que a todos extasia, / Por

quem beldades mil suspiram noite e dia. /

Em resumo, o meu eu, minha bela pessoa

/ Não é para Madame, acaso, coisa boa?

/ E para bem saciar tua fome é preciso /

Ao marido juntar o "ragout" de um

Narciso?

A MULHER - Eu bem estou percebendo aonde vai a

ironia. / Por este meio crês...

SGANARELLO - Basta de hipocrisia! / A coisa está bem

clara e eu tenho em minha mão /

Documento capaz de provar a traição.

A MULHER - Minha exasperação já é bem vês, imensa,

/ Para a aumentares mais com outra

nova ofensa / Não queiras tu ficar com

esta jóia, que é minha, / E pensa um

pouco...

SGANARELLO - Eu penso em te quebrar a espinha. / Ah!

Que eu não tenha em mãos, com a cópia

encontrada. / Também o original...

A MULHER - Para quê?

SGANARELLO - Para nada... / Com certeza achas mal

que eu me ponha a gritar... / Meu crânio,

de teus dons, deve até se alegrar... /

(Examina o retrato) É este o malandrim

que me faz de pateta. / O maldito tição

de uma chama secreta. / O velhaco com o

qual...

A MULHER - Com o qual... Vamos, prossegue!

SGANARELLO - Com o qual... Que queres mais? Que o

diabo te carregue!

A MULHER - Que quererá dizer com isso este cachaça?

SGANARELLO - Tu sabes muito bem, grandíssima

devassa. / Sganarello é um nome a que

renunciarei, / Pois Cornélio, isto sim,

para todos serei. / Sem honra ficarei, mas

tu, que és a culpada, / Não ficarás

impune. Isto é coisa assentada.

A MULHER - E tu me ousas falar com tal desfaçatez?

SGANARELLO - E tu me ousas pregar peças de tal jaez?

A MULHER - Que peças? Dize logo o que queres dizer.

SGANARELLO - Que é que sobre o teu crime ainda

queres saber? / Enfeitado por ti, nada

mais é preciso / Para que me transforme

em sujeito de riso.

A MULHER - Assim, depois de ter, de maneira

infamante, / Burlado a boa fé de uma

esposa confiante, / Tomas de um falso

ódio o vão divertimento, / Procurando

evitar o meu ressentimento... / Um tal

procedimento é mesmo de pasmar. /

Quem cometeu a falta é que quer acusar!

/ Ah! Desavergonhada! Ao ver sua

atitude

SGANARELLO - Não se podia crer que ela é a própria

virtude?

A MULHER - Vai! Segue o teu caminho, atira-te à

gandaia, / Mostra do que és capaz por

um rabo de saia, / Mas dá-me este

retrato. Ele é meu, eu o achei... / (Toma o

retrato e foge).

SGANARELLO - Tu pensas me escapar, mas eu te

alcançarei. (Sai atrás da mulher).

Cena VII

Lélio e o Criado.

CRIADO - Enfim, hei-nos aqui! Não se zangue o senhor

com o que vai perguntar o seu fiel

servidor...

LÉLIO - Fala.

CRIADO - Estará o diabo em seu corpo? Eu pergunto, /

Por vê-lo resistir a tanto esforço junto. /

Há mais de uma semana, em louca

disparada, / Sem dormir, sem comer, sem

quase beber nada... / Vimos nós por aí em

mulas sacudidos... / Eu confesso que sinto

os membros doloridos, / Sem fazer alusão

a um maldito acidente / Em sítio que

nomear não seria decente... / Entretanto

o senhor parece não sentir / Que há tanto

tempo está sem comer nem dormir.

LÉLIO - Todo esse açodamento era mais que preciso, /

Pois do himeneu de Célia eu recebera

aviso. / Tu sabes que eu a adoro e quero

estar ao fato / Do sentido que encerra

esse estranho boato.

CRIADO - Sim, mas um bom jantar nos daria a

vantagem / Do caso investigar com mais

força e coragem. / Eu julgo por mim

mesmo. O menor desprazer / Deixa-me

sem ação, quando estou sem comer. / Mas

quando bem comi, minh'alma, resoluta, /

Enfrenta, sem temor, toda sorte de luta. /

Pode confiar em mim: entre bem no

"mastigo", / Se pretende vencer todo e

qualquer perigo. / E para combater com

mais animação, / Em alguns copos de

vinho afogue o coração.

LÉLIO - Eu não posso comer...

CRIADO (À parte) - Ele quer me matar... / (A Lélio)

Entretanto, ao que sei, já está pronto o

jantar...

LÉLIO - Cala-te!

CRIADO - Eu não insisto. Era um simples convite...

LÉLIO - Eu sinto inquietação e não sinto apetite.

CRIADO - Pois eu sinto apetite e grande inquietação, /

Por ver que um tolo amor nos priva da

ração.

LÉLIO - Deixa-me ver, primeiro, o que quero apurar / E,

sem me aborrecer, se queres vai jantar.

CRIADO - Eu não replicaria à ordem tão severa. (Sai).

Cena VIII

LÉLIO (Só) - Não tal não pode ser... Meu temor exagera...

/ O pai m'a prometeu e a filha com ardor,

/ Sempre me demonstrou um grande e

puro amor. (Sganarello entra

examinando o retrato).

Cena IX

Lélio e Sganarello.

SGANARELLO - Tenho outra vez comigo a horrível

carantonha... / Do tipo sem pudor que fez

minha vergonha... / Tal cara jamais vi...

LÉLIO (Observando Sganarello) - Será mesmo de fato? / O

que ele tem na mão parece meu retrato...

SGANARELLO (Sem ver Lélio) - Ah! Pobre Sganarello, a

que sorte malvada / Tua reputação foi

por fim condenada!...

LÉLIO - Este retrato pode em outra mão ter caído, / Sem

que me deixe ver que está tudo perdido?

SGANARELLO - Deves daqui por diante a tolos ser

mostrado? / Ser posto em cançoneta e

caricaturado? / Suportar tristemente, até

que o mundo a esqueça, / A afronta que

te faz abaixar a cabeça?

LÉLIO - Será possível isto? (Procura ver o retrato).

SGANARELLO (Sem ver Lélio) - Ah! Monstro de

maldade! / Ter-me feito "cocu" na flor de

minha idade! / E mulher de um marido

ainda em pleno brilho, / Foi bastante que

um parvo, um pulha, um peralvilho...

LÉLIO - Eu não me engano, é mesmo o meu retrato. É

boa! / Este moço é curioso... / (Sganarello

observa Lélio) Isso até me atordoa...

SGANARELLO (À parte) - Que é que ele quer comigo?

(Afasta-se).

LÉLIO (À parte) - Eu preciso abordá-lo. / (Alto) Poderei;

por favor... /

SGANARELLO (Sempre se afastando) - Eu preciso

afastá-lo...

LÉLIO - Poderei conhecer, desculpe-me a razão / Que fez

este retrato ir parar em sua mão?

SGANARELLO (À parte) - A quem vem tal desejo?... Ah!

Está tudo explicado! / Bastava, para

tanto o seu ar perturbado... / Coisa tão

clara assim só não vê quem não quer: / É

o meu homem! Melhor, é o de minha

mulher...

LÉLIO - Livre-me desta angústia, e diga com franqueza...

SGANARELLO - Nós sabemos de tudo e não temos

surpresa. / O retrato que o faz tremer

neste momento / Foi apanhado em mãos

de seu conhecimento. / E já não é segredo

o criminoso ardor / Que estão

alimentando a tal dama e o senhor. / Eu

já não sei se já sou em tal galanteria /

Conhecido, afinal de Sua Senhoria. / Mas

faça-me o favor de cessar, desde já, /

Uma paixão que, creia, o marido acha

má. / E lembre-se que o nó do

matrimônio...

LÉLIO - É exato? / Aquela, o senhor diz, a quem dei meu

retrato...

SGANARELLO - É minha esposa e eu sou seu esposo.

LÉLIO - Seu esposo?

SGANARELLO - Seu esposo, repito, e esposo desgostoso...

/ Nós sabemos por que... E só me resta ir /

Entender-me com os seus... (Sai).

Cena X

LÉLIO (Só) - O que venho de ouvir!... / Bem me foram

dizer que ela tinha casado / Com um tipo

sem valor ridículo e sovado... / Ah!

Quando as juras mil de uma boca tão

terna / Não me fizessem crer numa

paixão eterna, / A escolha de um vilão

tão reles, tão chinfrim, / Devia sustentar

o interesse por mim... / Ingrata! E todo o

bem... Mas toda essa embrulhada. / Junto

ao esforço que fiz nessa longa jornada, /

Causa-me um mal-estar, um choque tão

violento, / Que sinto que vou ter um

desfalecimento... (A Mulher de Sganarello

entra falando sozinha).

Cena XI

Lélio e a mulher de Sganarello.

A MULHER - Ah! Perverso! Ah! Bandido! (A Lélio) O

senhor está doente? / Vejo que vai cair ao

chão redondamente...

LÉLIO - É um súbito mal de que fui atacado.

A MULHER - Mais um pouco e o senhor cairá

desmaiado. (Saem, Sganarello entra com

um parente de sua Mulher).

Cena XII

Sganarello e o Parente.

O PARENTE - De um marido em tal ponto eu aprovo o

cuidado / Mas não está você indo uma

tanto apressado? / De tudo que, contra

ela, eu acabo de ouvir, / Que haja mesmo

traição não se pode concluir, / É um

ponto delicado e sempre em casos tais, /

Sem tudo investigar, não se acusa

jamais...

SGANARELLO - Quer dizer que é preciso a coisa apalpar

bem...

O PARENTE - Muita serenidade em tais casos convém, /

Para tudo aclarar. Esse homem do

retrato / Será dela, afinal, conhecido de

fato? / Procure investigar, e se for o que

pensa, / Eu serei o primeiro a puni-la da

ofensa. (Sai).

Cena XIII

SGANARELLO (Só) - A que ele diz, enfim, não deixa de

ser justo. / Sinto que me deixei dominar

pelo susto... / Eu meti na cabeça essas

visões macabras. / E estou vendo em

redor só maridos de cabras. / Por um

simples retrato em suas mãos encontrado

/ Eu não posso concluir que já estou

desonrado. / Tratemos de apurar... (A

Mulher entra reconduzindo Lélio).

Cena XIV

Sganarello, a Mulher e Lélio.

SGANARELO - Ah! Que vejo! Esta agora!... / Já não se

trata mais de retrato nesta hora. / Tenho

aos olhos a coisa em seu original!

A MULHER (A Lélio) - Não se apresse. O senhor pode

sentir-se mal / Novamente. O melhor

seria repousar...

LÉLIO - Obrigado. Não sei como lhe hei de pagar. / O

socorro gentil que me prestou agora...

SGANARELLO (À parte) - A velhaca não quer que o

malandro vá embora! (A Mulher torna a

entrar em casa).

Cena XV

Sganarello e Lélio.

LÉLIO (À parte) - Ele viu que eu já vi o que dantes não

vira... / Minha alma se comove e este tipo

me inspira... / Mas preciso evitar

qualquer gesto plebeu / E ao destino

imputar tudo que aconteceu... /

Invejemos somente a sua estranha sorte...

/ (Indo a Sganarello) Parabéns... O senhor

tem uma bela consorte... (Vai a sair e é

visto por Célia que aparece à janela).

Cena XVI

Sganarello e Célia.

SGANARELLO (Só) - Isto sim é que é ir ao cúmulo do

abuso!... / Um cumprimento tal deixa-me

tão confuso, / Como se me crescesse uma

matagal na testa. / (Olhando para o lado

por onde Lélio saiu) Esse teu proceder não

é de gente honesta!

CÉLIA (Entrando) - Será Lélio? É ele mesmo... Eu da

janela o vi... / Mas por que me esconder

sua presença aqui?

SGANARELLO (Sem a ver) - "Parabéns... O senhor tem

uma bela consorte"... / Seria bem melhor

ter uma bela morte. / Dessa horrível

mulher o fogo desbragado / Vai deixar-

me, é fatal, todo carbonizado... / Mas eu

deixo partir o herói desta vergonha / E

fico a me queixar aqui como um

pamonha! / Era de meu dever, fosse

embora à socapa. / Atirar-lhe uma pedra

ou lambuzar-lhe a capa. / E sobre ele,

feroz, para minha vingança, / Instigar e

fazer correr a vizinhança... (Durante a

fala de Sganarello, Célia aproxima-se e

espera, que lhe passe o transporte para

tomar a palavra).

CÉLIA - Aquele que ainda há pouco estava aqui parado.

/ Sabe o senhor quem é, por ter com ele

falado?

SGANARELLO - Quem o conhece bem, acredite a

menina, / É minha esposa... Ui!... (Põe a

mão no peito).

CÉLIA - Que desgosto o domina?

SGANARELLO - Não julgue o meu pesar, um sentimento

fútil / E deixe-me gemer, embora seja

inútil...

CÉLIA - Mas de onde podem vir as suas agonias?

SGANARELLO - Se eu me sinto em aflição, não é por

ninharias. / Eu poderia dar a qualquer

outro o ensejo / De se ver, sem pesar, no

estado em que me vejo, / Do marido

infeliz, eis o exemplar mais belo! / Passa

a viver sem honra o pobre Sganarello... /

Mas não vem só daí minha grande

aflição; / Com a honra foi também minha

reputação...

CÉLIA - Como?

SGANARELLO - Pois este malandrim, falo com

reverência, / Fez-me agora "cocu", com a

maior imprudência... / Eu mesmo

constatei o comércio secreto / Entre

minha mulher e esse tipo abjeto.

CÉLIA - Aquele que inda há pouco...

SGANARELLO - Aquele, sim, senhora, / Adora minha

esposa e minha esposa o adora.

CÉLIA - Bem me quis parecer que esta volta imprevista,

/ Envolvia a traição de um coração

egoísta. / Não tremi sem razão ao vê-lo

aparecer... / Pressenti, desde logo, o que

podia ser...

SGANARELLO - Eu devo agradecer tão bondosa defesa,

/ Nem todo o mundo tem igual

delicadeza. / A maioria, ao saber de

minha desventura, / Só pensará em rir e

aumentar-se a tortura...

CÉLIA - Há nada de mais vil que esta covarde ação? / E

deve ela ficar sem sofrer punição? /

(Como falando a Lélio) Não te julgas,

infame, indigno de viver, / Depois dessa

traição que vens de cometer? / Será

incrível, meu Deus!

SGANARELLO - É apenas verdade...

CÉLIA - Ah! Traidor! Celerado! Homem sem probidade!

SGANARELLO - Que grande coração!...

CÉLIA - Nem mesmo na gehena / O teu crime teria a

merecida pena.

SGANARELLO - Isto é que é falar bem...

CÉLIA - Tratar com tal fereza / A inocência, a bondade,

a própria gentileza...

SGANARELLO (Lisonjeado) - Meu Deus!

CÉLIA - Um coração, que isento de maldade, / Jamais

quisera crer na desonestidade...

SGANARELLO - Muito bem!

CÉLIA - Que julgava... É demais! Tal horror / É de fazer

um peito arrebentar de dor.

SGANARELLO - Não se incomode tanto, excelente

menina, / Tudo isso, afinal, já estava em

minha sina...

CÉLIA - Mas não leves tua crença ao ponto de pensar /

Que só a queixas vãs eu me vou limitar. /

Para bem me vingar eu sei o que fazer. /

E é isso que vou já daqui a correr. (Sai).

Cena XVII

SGANARELLO (Só) - Que a preserve o bom Deus do mais

leve perigo! / Vejam com que interesse ela

sofre comigo!... / Com efeito, este furor

contra quem me desgraça, / Mostra-me o

que, afinal, é preciso que eu faça. / Não

se deve jamais sofrer silencioso / Tal

afronta... a não ser que se seja medroso. /

Vamos, pois, procurar esse grande

bandido / Que não quer respeitar a honra

de um marido. / Ah! Eu te ensinarei a rir

da gente honesta / E sem respeito algum

pôr-lhe enfeites na testa. / (Recuando

depois de alguns passos) Mas vamos com

mais calma. Este homem tem o aspeito /

De ser de ânimo forte e mais forte de

peito. / E poderia bem, que tal não me

aconteça, / Fazer no meu costado o que

fez na cabeça. / Eu sempre detestei

atitudes veementes / E tenho grande

amor aos homens pacientes. / De em

desordens meter-me as vantagens não

vejo, / Pois viver calmamente é o meu

grande desejo... / Mas a honra me diz que

semelhante afronta / Exige desde já

represália de monta... / Pois diga o que

quiser, se lhe agrada falar... / Ao diabo

quem, portanto, a quisesse escutar. /

Quando eu fizesse o bravo e uma espada

ou uma lança, / Por um golpe de azar me

entrasse pela pança, / E corresse o rumor

de minha desventura, / Minha honra,

alguém crê, ficaria mais pura? / A vida

numa cova é sempre melancólica / E

muito inconveniente aos que sofrem de

cólica. / E acho, quanto a mim, bem

estudado o assunto, / Que vale muito

mais ser "cocu" que defunto. / Que mal

isto nos faz? A perna torna-se, ela, / Mais

forte e ficará a expressão menos bela? /

Que o demônio carregue o autor dessa

invenção / Que nos vem afligir com uma

errada visão / E quer do homem de bem

a honra submeter / Ao que a sua mulher

se disponha a fazer. / Se, de acordo com a

lei, todo crime é pessoal, / Quando o

crime é de um só como ser do casal? / Dos

erros da mulher fazem-nos responsáveis,

/ Como se tais ações nos fossem

favoráveis, / É preciso que o mal fique só

com o culpado: / Quem da honra zombou

que seja o desonrado. / Basta de

confusões! Um tribunal perfeito / Bem

podia acabar com esse preconceito. / Já

não temos na vida inúmeros tormentos, /

Que nos vêm perturbar a todos os

momentos? / As demandas, questões,

sede, fome, doença / E outras coisas mais

que formam lista imensa? / Como, pois, ir

buscar uma nova maçada / Num fato

que, a rigor, quase não vale nada? /

Demos ao que se passa o tom de uma

pilhéria / E calquemos aos pés nossa

própria miséria. / Minha mulher pecou?

Pois que chore sozinha / Por que devo eu

chorar, se a culpa não foi minha? / E

depois, uma coisa um tanto me alivia: / É

que não estou sozinho em minha

confraria. / Ver cortejar a esposa e achar

que é coisa à toa, / Acontece, hoje em dia,

há muita gente boa. / Evitemos, portanto,

alimentar querelas, / Provocar

dissensões, por simples bagatelas. /

Chamar-me-ão talvez de

desavergonhado... / Que importa? O que

interessa é salvar meu costado / (Pondo a

mão no peito) Mas eu ouço uma voz que

me chama de vil / E me incita a tomar

um desforço viril. / Sim, a consciência

fala. É feio ser poltrão! / Quero, sem mais

demora, atirar-me ao vilão. / E para

começar, neste ardor que me inflama /

Vou dizer que o apanhei metido em

minha cama! (Sai).

Cena XVIII

Gorgibus, Célia e a Dama de Companhia.

CÉLIA - Sim, eu me dobrarei à tua decisão. / Pode,

quando entender, dispor de minha mão /

E marcar, desde logo, a data desejada... /

A seguir meu dever estou determinada.

GORGIBUS - Ah! Como me faz bem ouvir falar assim! /

Uma alegria tal se apodera de mim, /

Que eu me poria aqui francamente a

dançar, / Se não fosse com isso ao riso me

prestar. / Vem a meus braços, filha! É

justo que eu te abrace / Que te faça um

carinho e te beije na face... / Pode um pai,

muito bem, beijar a filha amada, / Sem

escândalo dar ou provocar risada. / A

alegria de ver que voltaste ao bom senso,

/ Enche-me o coração de um bem-estar

imenso. (Sai).

Cena XIX

Célia e a Dama de Companhia.

A DAMA - Tal mudança me espanta!

CÉLIA - E quando tu souberes / Porque motivo agi, verás

como as mulheres / Sofrem...

A DAMA - É sempre assim...

CÉLIA - Lélio, parece incrível! / Feriu-me o coração de

modo inconcebível... / Sem nada me

dizer...

A DAMA (Reparando) - Calma! Ele vem aí! (Entra

Lélio).

Cena XX

Célia, Lélio e a Dama de Companhia.

LÉLIO (A Célia) - Antes de, para sempre, afastar-me

daqui, / Quero deixar patente a tua

felonia...

CÉLIA - Que! Inda me falar com tamanha ousadia!

LÉLIO - Ela, realmente, é grande. A tua escolha é tal, /

Que só posso dizer que eu é que andava

mal. / Vive, vive feliz, ri de minha

memória / Com o marido ideal que fará

tua glória...

CÉLIA - Sim, traidor, viverei, e meu contentamento / É

ver que provoquei o teu ressentimento...

LÉLIO - O culpado sou eu e a razão está comigo!

CÉLIA - O criminoso é outro e eu mereço o castigo!...

Cena XXI

Os mesmos e Sganarello.

SGANARELLO (Armado da cabeça aos pés) - Guerra!

Guerra mortal ao ladrão audacioso, / Que

pretende roubar nossa honra de esposo.

CÉLIO (Mostrando-o a Lélio) - Volve, volve teu olhar,

antes de me argüir!

LÉLIO (Irônico) - Estou vendo...

CÉLIA - Não é para te confundir?

LÉLIO - É mais para fazer com que cores da escolha.

SGANARELLO - Felizmente ainda pude encontrar esse

trolha. / Agora é que vão ver se me falta

coragem, / Para fazer aqui uma horrível

carnagem. / Eu jurei sua morte! É coisa

decidida / Que só o deixarei, quando o

sentir sem vida. / Vou justo ao coração...

Devo calcular bem... (Tira meia espada).

LÉLIO (Voltando-se) - Contra quem tal furor?

SGANARELLO (Tornando a embainhar) - Não é contra

ninguém...

LÉLIO - Para que este arsenal?

SGANARELLO - É simples precaução / Por causa do

mau tempo... (À parte) Ah! Que

satisfação. / Matá-lo agora mesmo.

Amanhã será tarde...

LÉLIO (Voltando-se) - Hein?

SGANARELLO - Eu não disse nada... (A si mesmo) Ah!

Poltrão! Ah! Covarde! / Defende o teu

direito!

CÉLIA (A Lélio) - Ele fala em meu nome. / Este honrado

senhor que o despeito consome.

LÉLIO - Sim, estou vendo bem que sempre andei errado /

E que fui, sobretudo, um cretino chapado,

/ Quando tomei a sério, um certo

juramento...

SGANARELLO (À parte) - Minha audácia fugiu?...

CÉLIA (A Lélio) - Chega de fingimento! / À tua

farsalhada é bom dar uma pausa.

SGANARELLO (À parte) - Sganarello, vê que ela esposa

tua causa! / Coragem, meu rapaz,

mostra-te vigoroso! / Vamos! Faze por ti

um esforço generoso! / Aproveita o

momento em que ele está de costas...

(Lélio dá dois passos e Sganarello recua).

LÉLIO (À Célia) - Já que de me escutar percebo que não

gostas, / Devo apenas dizer que estou

bem satisfeito, / Pois escolha melhor

ninguém teria feito.

CÉLIA - É uma escolha feliz a que me sinto presa...

LÉLIO - Pois andas muito bem tomando-lhe a defesa...

SGANARELLO - Decerto que anda bem defendendo uma

vítima. / Sua ação, meu senhor, não é

nada legítima. / Tenho razões até, se não

fosse pacato, / De cometer aqui talvez

um assassinato...

LÉLIO - De onde vem sua queixa a esse pensar brutal?

SGANARELLO - Deve o senhor saber onde me aflige o

mal. / Se o senhor não tivesse uma alma

tão mesquinha, / Deveria pensar que a

minha esposa é minha. / Querer, no meu

nariz, passar-lhe assim a mão, / Não é

modo de agir de quem se diz cristão.

LÉLIO - Semelhante suspeita é quase uma torpeza. /

Neste ponto, o senhor pode ter certeza /

De que nenhum de nós poderia pensar...

CÉLIA - Ah! Como sabes bem, traidor, dissimular! / Pode-

se acreditar que eu tivesse a ousadia.

LÉLIO - De tentar praticar, uma tal vilania? / Minha

reputação será assim tão má?

CÉLIA - Fala ao próprio, é melhor, ele te explicará.

SGANARELLO - Não, não cedo a palavra a quem com

tanto ardor / Defende a minha causa e

confunde o impostor.

Cena XXII

Os mesmos e a Mulher de Sganarello.

A MULHER (A Célia) - Eu não quero mostrar um

rancor desmedido / Contra quem se

apossou de meu ente querido; / Há por aí

paixões que não têm nenhuma graça. / E

seu peito devia extinguir uma chama /

Mas, enfim, não sou tola e vejo o que se

passa. / Que só lhe pode dar uma bem

triste fama...

LÉLIO - Esta declaração não tem senso comum.

SGANARELLO (À Mulher) - Quem te mandou aqui fazer

esse zunzum? / Pretendes censurar quem

defende o marido / E tremes de pavor

vendo o galã perdido?

CÉLIA (À Mulher de Sganarello) - A senhora enganou-se

ao julgar-se enganada. / (A Lélio) Dize

agora que minto. Estou mais que

vingada...

LÉLIO - Que quer isso dizer?

A DAMA - Parece coisa feita. / Quando esta confusão

será, for fim, desfeita? / (À parte)

Responda-me o senhor. De que vem sua

queixa?

LÉLIO - Vem de ver que a infiel por um outro me deixa.

/ Quando, ouvindo o rumor deste

himeneu fatal, / Embarquei para aqui,

pronto a evitar o mal, / Por supor que

ainda fosse o noivo pretendido, / Era

tarde demais: ela tinha um marido...

A DAMA - Um marido? Quem é?

LÉLIO (Mostrando a Sganarello) - Este Zinho.

A DAMA - Este Zinho?

LÉLIO - Pois não...

A DAMA - Quem foi que disse?

LÉLIO - Ele próprio, há pouquinho.

SGANARELLO - Qual nada! Eu disse ser casado, / Mas

com minha mulher.

LÉLIO (Bastante perturbado) - Meu retrato o senhor em

seu poder tem...

SGANARELLO - É verdade. Ei-lo aqui.

LÉLIO - E me disse também / Que aquela em cujas mãos

se achava o meu retrato / Estava presa

ao senhor por sagrado contrato.

SGANARELLO - Sem dúvida. E das mãos eu lho havia

arrancado. / Foi como descobri o seu

negro pecado...

A MULHER - Quem me vens tu contar, com ares

petulantes? / O retrato eu o achara, a

meus pés, pouco antes... / E mesmo

quando, após tua grande insolência, / Eu

fiz entrar o moço em nossa residência. /

Não o reconheci como o tal da pintura...

CÉLIA - Do retrato fui eu que dei causa à aventura. /

Caíra-me das mãos quando desfaleci...

SGANARELLO - E pressurosamente a salvá-la corri...

A DAMA - Essa história, sem mim, não acabava mais. /

Todos precisam cá de um pouco de meus

sais.

SGANARELLO (À parte) - Tomemos tudo aqui como

moeda corrente, / Apesar de eu sentir a

cabeça ainda quente...

A MULHER - Minha aflição não foi ainda dissipada... /

E doce, embora, o mal, temo ser

enganada...

SGANARELLO (À Mulher) - Voltemos novamente ao

calor do himeneu. / Arrisco mais do meu,

do que arriscas do teu... / Sobre o meu

coração repousa confiante...

A MULHER - Seja! Mas teme o pau, se te apanho em

flagrante.

CÉLIA (Depois de falar baixo a Lélio) - Desfeitas, muito

embora, as nossas divergências / Devo do

meu furor sofrer as conseqüências. /

Julgando-te perjuro, eu para me vingar, /

Prometi a meu pai com o Valério me

casar. / Essa fatal promessa é que tudo

complica... / Lá vem meu pai!

LÉLIO - Falando é que a gente se explica...

Cena XXII

LÉLIO - Senhor, aqui me vê depois de longa viagem! /

Sem jamais esquecer sua camaradagem, /

Espero merecer a mesma simpatia / Com

que fui recebido em sua casa um dia...

GORGIBUS - Senhor, que vejo aqui depois de longa

viagem... / Se, sem nunca esquecer minha

camaradagem, / Espera merecer a

mesma simpatia / Com que foi recebido

em minha casa um dia, / Creia-me servo

fiel de Vossa Senhoria...

LÉLIO - Que, Senhor, é assim que me quer receber?

GORGIBUS - Sim, senhor, é assim que cumpro o meu

dever... / Minha filha também...

CÉLIA - Meu dever me interessa / A cumprir junto a

Lélio uma antiga promessa.

GORGIBUS - Pretendes desfazer os meus entendimentos?

/ Tu não vais desmentir os teus bons

sentimentos! / Por Valério ainda há

pouco... Ah! Mas vejo o meu sócio! / Ele

vem, certamente, ultimar o negócio...

(Villebrequim entra).

Cena XXIII

Os mesmos e Villebrequim.

GORGIBUS - A que devo o prazer de vê-lo tão cedo?

VILLEBREQUIM - A uma história infeliz, a um terrível

segredo, / Que rompe de uma vez nossa

combinação. / Valério, com quem Célia

aceitava a união, / Há quatro meses já,

num lugar escondido, / Vive com uma

mulher de quem se diz marido, / Não

sendo mais meu filho uma simples

criança, / Eu não posso, está claro,

anular essa aliança, / E venho...

GORGIBUS - Não precisa. Isso não vale nada. / Se seu

filho já está com sua vida arranjada, /

Não lhe devo esconder que minha filha

está / Ao Lélio prometida, há muito

tempo já. / E estando aqui presente esse

rapaz virtuoso, / Com certeza será o seu

futuro esposo.

VILLEBREQUIM - Essa escolha me agrada...

LÉLIO - E esse honesto desejo, / De uma vida feliz vai

fornecer-me o ensejo.

GORGIBUS - Vamos determinar, o dia do himeneu...

(Saem todos, menos Sganarello).

SGANARELLO (Só) - Alguém já se julgou mais "cocu" do

que eu? / Vede que, em casos tais, a mais

forte aparência / Nem sempre

corresponde à verdade em essência /

Sobre o exemplo que aí fica é bom que

mediteis. / E embora vejais tudo, em

nada acrediteis...

FIM