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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros ALARCON, S. Aos homens de boa vontade: estudos sobre sujeição e singularidade. In: AMARANTE, P., org. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000. Loucura & Civilização collection, pp. 25-40. ISBN 978-85-7541-319-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. 2 - Aos homens de boa vontade estudos sobre sujeição e singularidade Sergio Alarcon

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros ALARCON, S. Aos homens de boa vontade: estudos sobre sujeição e singularidade. In: AMARANTE, P., org. Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2000. Loucura & Civilização collection, pp. 25-40. ISBN 978-85-7541-319-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

2 - Aos homens de boa vontade estudos sobre sujeição e singularidade

Sergio Alarcon

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2 Aos HOMENS DE BOA VONTADE:

ESTUDOS SOBRE SUJEIçÃO E SINGULARIDADE

SERGIO AuRCON

Temos de aprender a desaprender,

para afinal, talvez muito tarde, alcançar ainda mais: mudar de sentir.

Nietzsche

Uma nova maneira de pensar que inclua a loucura em um sentido mais

alargado, com alguma positividade - talvez até como uma experiência de

libertação -, pressupõe necessariamente uma nova interpretação de nós mesmos,

de como nos pensamos, das práticas que isso implica, suas relações, e, dessa

maneira, deve levar em conta especialmente a questão do sujeito, suas vertentes,

seus antagonismos, na medida em que é a invenção do sujeito que funda as

práticas nas quais nos tornamos objetos de nosso próprio conhecimento

(Foucault, 1987b).

No entanto, foi em nome da liberdade que o humanismo POSItlVlsta reduziu a loucura a objeto de tratamento, matéria de pena e compaixão, num teatro urdido segundo as necessidades mais óbvias dos valores de

uma ordem de sentimentos delicados e piedosos. Na impossibilidade de

qualquer ordem se efetuar sem seu contrário, o capitalismo 'dialético'9 criou

sobre o corpo e a alma seu ponto de apoio, em que a credibilidade para os

negócios era o essencial. Credibilidade produtiva quanto ao corpo, credibilidade identitária para a alma. Trabalhador livre e sujeito de boa vontade. Do

trabalhador livre a idéia da liberdade em vender o próprio corpo, e o corolário

9 Dialédco como tudo aquilo que pensa a diferença como oposição, e a incorpora destruindo­a necessariamente ... Não é o caso, por exemplo, da diferença em Nietzsche, que se efetua por disjunção (DELEUZE, 1974).

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Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade

negativo do ocioso ou vagabundo; do sujeito a idéia da liberdade de escolha,

seja por um caráter, uma personalidade, uma normalidade; condições para a

configuração dos contratos. Mens sana in corpore sano. Esse o choro do bebê

economia. E dessas lágrimas é que nasceram a psiquiatria e a medicina

pública para amamentá-la. Nascem já viciadas por seus objetivos de

ordenação sociopolítica. Nascem sob o nome ideológico de humanismo. Ordenação

higiênica dos espaços públicos, dos espaços privados, pela saúde da humanidade.

Delicada ordem em que um corpo ind6cil ou fraco, escravo das paixões, e

uma alma perturbada e mentirosa, cheia de má vontade, eram, ao mesmo

tempo, o perigo e a condição para a existência; A partir da desordem microssocial

dos corpos e das almas, as estruturas poderiam tremer e o mundo desabar na

barbárie (Foucault, 1978). É verdade que hoje, 200 anos depois, nunca os

homens viveram tanto e tão bem. Só nos esquecem de dizer que são apenas

alguns. Mas quem são mesmo esses homens? Os que passaram as vidas

trancafiados nos manicômios pelo crime de não suportarem cumprir

determinados contratos? Sim, sem dúvida eles foram beneficiados, afinal era

para o bem deles, para a cura que eram internados ... a vida inteira. De outro

modo o 'humanismo' os teria eliminado... com mais presteza ...

Fala-se muito, hoje em dia, na liberdade do sujeito, em se libertar o

sujeito, dar mais atenção ao sujeito ... a liberdade de se deixar falar o sujeito ...

Mas de que sujeito se quer falar? Qual sujeito se quer deixar falar? E qual o caráter dessa liberdade? Será que essa liberdade do sujeito não é exatamente

o pressuposw da escravidão da loucura - se é que isso é realmente possível,

isto é, haver escravidão para a loucura ... ? Será que as propostas das antipsiquiatrias - usando o termo, como em Foucault (1997) - estariam

implicando, na verdade, um retorno inadvertido à Pinel, contra a hegemonia de uma visão kraepeliana ou biol6gica? Um retorno com base na reelaboração

da pergunta clássica da psiquiatria sobre a normalidade dos comportamentos,

na medida em que recuperar-se o sujeito seria o caminho privilegiado para

a libertação-cura, expressa na ressocialização, na cidadania, em suma: num pressuposto de vida moral? Isso não seria reintroduzir, mesmo que em outros

termos e com outras práticas, um antigo tratamento policialesco e serializante,

com objetivos de garantir ordem e bem-estar aos valores em curso, aos poderes

estabelecidos? Como seria possível supor algo diferente que uma integração

da loucura - mas outra coisa, como uma reinvenção - se desde a Idade Clássica (Foucault, 1978) ela se encontra formalizada por todo o peso de

um complexo jogo de verdade no qual é o sujeito enlouquecido que passa a

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Aos Homens de Boa Vontade

ter o seu rosto objetificado no campo social tendo por base justamente de

uma certa idéia de incompletude - que inclusive se pode chamar doença,

mas não apenas ... - que nos leva a buscar não somen[e a expressão de uma

lógica médica de sinais e sintomas, tratamento e cura; ou jurídica de

periculosidade e tutela, exclusão e clausura; mas todo um emaranhado

exercício de 'salvação' em nome da liberdade, da tomada de consciência, da

boa vontade em se reparar as maldades históricas ou as má vontades presentes

-- e fala-se dos direitos humanos também -, em nome, enfim, de uma

humanidade que intrinsecamente não suporta a idéia de que por detrás da

máscara que nos separa e segrega a loucura, pode não existir a nossa verdade

mais íntima, nem nossa deficiência ontológica, nem rosto algum para além

de outras máscaras possíveis?

Sujeito e liberdade seriam, dessa forma, difrações de um mesmo

problema no qual uma verdade subjaz baseado no que fazemos conosco em

nossas práticas cotidianas. Práticas que, em todo caso, vêm sempre

acompanhadas de uma intensa boa vontade. E a questão da boa ou má

vontade não é superficial. Ela é, na história do 'homem', desde Kant, a

condição de possibilidade de a liberdade se manifestar e produzir civilização.

Nesse sentido, como construtores das práticas que pressupõe a humanidade

em sua maior coerência, não se pode duvidar da 'bondade' de Pinel, Esquirol

ou de Morel e Kraepelin. Mas, por isso mesmo, nem podemos simplesmente

supor de antemão que os arautos da 'reforma psiquiátrica' sejam apenas

ideólogos anti-humanistas de uma nova forma de esquerdismo radical e

irracionalista. Contudo, qual a diferença entre essas duas formas de se fazer

a 'bondade'? O que as diferencia de fato? Em qual verdade queremos nos

situar para sermos éticos num sentido mais amplo e alcançarmos um exercício vigoroso de libertação - caso seja isso mesmo possível?

Propõe-se que a busca se faça justamente tendo por base as noções de sujeito . e dos modos de supor o tipo de liberdade implicada em alguns

pensadores-chave: Kant - uma vez que a ele se pode encontrar os

fundamentos de um cogito no qual se assentam as questões de nossa

modernidade; Nietzsche - no qual a mais vigorosa crítica à crítica da razão

foi esboçada; e o próprio Foucault - em que a crítica ao sujeito é levada ao limi[e do aparente paradoxo de uma ética postulada enquanto estética da existência, ou seja, como um modo de se autoproduzir enquanto sujeito de

uma vida bela.

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Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade

KANT

Devemos nos recordar que o conhecimento em Kant se relaciona ao

sentido que as formas puras do sujeito imprimem ao que é sensível. O sentido

do mundo, apesar de sempre de alguma forma subjetivo, está legitimamente

garantido na 'universalidade das formas que o condicionam. No entanto,

quando se trata de se movimentar pelo campo social, de efetivamente agir e se

relacionar no nível intersubjetivo e mundano, as formas do sujeito se deparam

com uma série de dificuldades inerentes a sua própria constituição. Pois se o

conhecimento racional se compõe na universalidade das estruturas a priori, o

que fundaria uma moral pura, igualmente universal, e que não fosse apenas a

expressão de um abuso, um despotismo, uma violação? A questão surge pelos

princípios que regem as motivações humanas e que se ligam necessariamente

à vontade. Diferente da razão, limitada por suas condições de possibilidade

dadas pela experiência, a vontade, como simples faculdade de escolher entre

isso ou aquilo, entre o sim e o não, é ilimitada. É por meio dessa fissura

entre um entendimento limitado e uma vontade ilimitada que emerge a

possibilidade do engano: no ato do juízo, a vontade naturalmente terá a

tendência a anteceder o intelecto - na sua relativamente letárgica e lógica distinção entre o verdadeiro e o falso - e a exprimir-se antes deste último

terminar o seu juízo. No ato imoral, por isso, é a vontade que está em causa,

é ela que prefere o mal ao bem. A tarefa de Kant, na Fundamentação da

Metaflsica dos Costumes (l986a) e na Crítica da Razão Prática (l986b), é dar

uma resposta à questão de se seria possível justamente uma moral, isto é, se

seria possível uma vontade essencialmente livre que prestasse obediência não às paixões enlouquecidas ou às vicissitudes mundanas, mas a um imperativo

universal e necessário, no momento de escolher e produzir uma ação.

Na Fundamentação da Metaflsica dos Costumes, Kant coloca que todo

sujeito racional deve aceitar como legítimo que é a boa vontade a única a

valer absolutamente como causa primeira da ação moral. Como uma boa

vontade opera por dever, submetendo-se à lei que a vontade racional dá a si mesma, a condição dessa obediência é justamente a liberdade da vontade. A

liberdade é a chave para a autonomia da vontade em direção ao que ela

condiciona: a liberdade de obedecer à lei moral.

Na Crítica da Razão Prática, Kant retoma o tema de forma analítica e

propõe que a liberdade do sujeito estaria no seu livre-arbítrio, ou seja, na

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Aos Homens de Boa Vontade

obediência de sua vontade aos princlplOs imanentes específicos da razão

universal: Assim, o que não depende de estímulos sensíveis e que, portanto,

pode ser determinado por motivos que são representados somente pela

razão, chama-se livre-arbítrio (Kant, 1987). Essa insensibilidade

condicionaria os movimentos que manifestam uma vontade livre. Por isso,

não é pelo sujeito do conhecimento, mas pela capacidade de se experimentar

a lógica das sucessões naturais entre as causas e seus efeitos que somos livres.

A liberdade, de maneira diferente das condiçóes do mundo fenomênico,

não é causada por nada que a antecede, ela é causa sui, ela é causa de si

mesma. Pois sujeito e liberdade seriam nesse sentido, 'númenos', seres de

um mundo supra-sensível, para além dos limites da experiência possível.

Dessa maneira, a liberdade não se constituiria fenômeno, mas uma coisa

em si, resultante da espontaneidade da razão não experimentada pelo

conhecimento, mas que se manifesta determinando a autonomia da vontade

racional pela ação moral. A lei moral seria a lei da causalidade e da

espontaneidade do sujeito como coisa em si. O abismo que se verifica está

entre o sujeito do conhecimento e o sujeito empírico . 10 Conhece-se

fenômenos, mas deve-se viver, na prática, sob os efeitos da espontaneidade

incausada, desconhecida, da coisa-em-si que somos para nós mesmos quando

se trata de nos conhecer. Ou melhor, nos conhecemos coletivamente pela

cultura que a moral - efeito de nós mesmos, de nossa espontaneidade ou

liberdade - funda. Intocável moral, filha de nossa liberdade intrínseca, que

conjura a fissura entre a vida mundana e a vida especulativa no sujeito

universal ético, numa espécie de relação de si para consigo mesmo que faz

nascer a humanidade e o humanismo.

10 O negativo, em geral, é isso: a não-igualdade, ou diferença, que se manifesta na consciência entre o 'eu' e a substância, que é seu objeto. O negativo pode ser encarado como uma falha de ambos; mas é Hegel que, porém, o coloca como a alma e o motor dos dois, o concebendo como um 'Si' (HEGEL, 1989). Em Hegel, a partir da diferença, surge o processo de alienação, no qual o sujeito devém num 'outro para si' - objeto de seu próprio 'si' -, condição para que se volte a si mesmo e se torne efetividade, se torne 'para-si'. A Fenomenologia do Espírito não conta ouua hisrória senão a do caminhar do sujeito do em-si (o 'eu' fendido pela diferença entre o sujeito empírico e o sujeito a priori) na direção do para-si (a superação da diferença na unidade substancial do sujeito). Não se faz necessário, nesse momento, relacionar a importância do negativo e da alienação nas constituições teórico-práticas das disciplinas psis ... Mas não é considerado muito importante, para o que se tenta aqui colocar, a distinção entre uma filosofia que situa como horizonte um ideal impossível - Kant - e outra que efetivamente acredita nesse ideal como realidade que se faz progressivamente - Hegel...

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Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade

A civilização, portanto, se construiria como a manifestação de um acordo

íntimo do homem com ele m,esmo diante da possibilidade, assustadora, de

que a má vontade possa, em qualquer caso, assumir o controle de uma vida

ou povo, e maCl.\lar toda construção legítima da humanidade. Uma obsessão

pela boa vontade se instáura e todo risco é excluído, conjurado, e, ao mesmo

tempo, tratado, recuperado. Assim, Foucault nos explica, na História da Loucura (1978), como, após o grande internamento, apenas os loucos tiveram que

permanecer na clausura. Eles eram incapazes de produzir atos de boa vontade ...

É em nome da moral de uma humanidade, de uma forma-homem

recém-inventada (Deleuze, 1986:132-142), que toda a parafernália que

teceu a loucura dentro dos limites da doença mental se estabeleceu. Tornou­se subitamente necessário resgatar o louco, curá-lo de sua desumanidade

constituída por um sujeito obnubilado, alienado de seu livre-arbítrio, incapaz

de conduzir-se por si em razão de uma má vontade submissa aos caprichos das paixões, dos fluxos do devir desregrado, impedido pela própria hybrisll de articular o supremo acordo de si para consigo, do sujeito transcendental

com sua possibilidade mundana ou ética: a liberdade. Curá-lo significa,

acima de tudo, conduzir às condições para a ação moral, ou seja, garantir a

aquiescência da vontade à pura. forma da lei. Em outros termos: passou-se

a acreditar numa verdade da saúde recalcada pela doença mental: a cura

passou a ser uma relação entre a possibilidade da boa vontade contra a

doença representada por uma má vontade ou pelo defeito da vontade em se

colocar docemente na conformidade de sua verdade íntima. O internamento

e o tratamento moral nascem ... em nome da liberdade.

NIETZSCHE

Nietzsche nos conta outra história sobre os princípios dessa liberdade,

quebrando a unidade metafísica do sujeito que a sustenta:

Supor a existência de um eu como causa do pensamento é proceder por recortes. Isola­se uma fração do fluxo contínuo, dá-se a ela um caráter de fixidez e estabilidade e passa-se a chamá-Ia de 'eu: A idéia de eu fixo e estável originou-se de uma superstição religiosa: a existência de uma alma indivislvel e eterna. Mas porque náo se teria uma alma múltipla ou mortal? O individuo, que se acredita possuidor de uma alma indivisível e eterna ou se percebe como um eu fixo e estável, em muito contribui para

11 "Com esse termo, intraduzÍvel para as línguas modernas, os gregos entenderam uma qualquer violação da norma da medida, isto é, dos limites que o homem deve encontrar em suas relações com outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas" (ABBAGNANO, 1982).

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Aos Homens de Boa Vontade

a vida gregdria. Ele se sente, no fUndo, exatamente igual a totÚJs os outros membros da coletividade. Atrelada à deflsa tÚJs interesses da coletividade, a crença no livre pensatÚJr recobre vdrias outras. (..) O quantum de crença que necessita um indivíduo para viver é revelador de sua fraqueza. (Nietzsche, 1983b:parág.347)

Nietzsche não concebe um eu como princípio de certeza e, como tal,

uma crença: crença na universalidade do sujeito transcendental e na

humanidade - a cultura - decorrente da liberdade inerente do sujeito

universal. Contra essa metafísica do humanismo, ele sustenta a

transitoriedade do sujeito, sua existência efetiva como produção singular no

seio da coletividade, sendo esta, igualmente, uma invenção, não de uma

suposta liberdade a priori, mas de uma agonística relativa a jogos de poder

entre forças entendidas como vontade imanente a relações 'fisiológicas', isto

é, próprias do corpo, e que se manifestam como invenções no nível do social: "( ... ) não esqueçamos disto: basta criar novos nomes e estimativas e

verossimilhanças para a longo prazo criar novas coisas (Nietzsche, 1983b:

parág. 58)". Nietzsche leva em consideração que os valores que fundam a

liberdade do sujeito como a expressão inata da universalidade fundamental

da razão humana não encontram respaldo nem na história, nem na natureza, mas nessa sujeição total ao estrito cumprimento do dever - moral....:, o que

pressupõe, em última análise, apenas a crença num absoluto - como a crença

na cultura como a expressão última do gênero humano - que na realidade

não passa do efeito de um esquecimento, de uma falha de memória sobre a

emergência da série de metáforas, aproximações, convenções, que o constituiu

(Nietzsche, 1983a:45-52).

Com a idéia de sujeito universal próprio à razão, cal por terra,

igualmente, a possibilidade de crença numa liberdade que se expressa a partir de vontade submetida a esse mesmo universal. Nietzsche rompe

com os princípios imanentes à razão, destrói antropomorfismos atirados como certezas absolutas fundamentando-se nas necessidades inerentes à

constituição de um senso comum. Institui, com isso, não a base de um

irracionalismo, mas uma prática de pensamento que não quer mais legitimar verdades constituídas, mas fazer práticas de invenção, liberando a vontade

como princípio plástico de todas as avaliações, como princípio de criação

de novos valores não reconhecidos, isto é, para além do bem e do mal. A

vontade de potência, diz Nietzsche, não consiste em cobiçar nem sequer

em tomar, mas em criar e doar (Deleuze, 1994:22). Como princípio

plástico e como perspectiva para a criação, a vontade não pode nunca ser

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Ensaios: subjetividade, saúde menta~ sociedade

concebida como algo a ser negado em sua atividade relaciona!, dominado

seja por qual princípio superior. Mesmo porque ela é, nesse sentido

nietzscheano, uma relação afirmativa segundo jogos de encontro entre corpos:

O incomciente travestimento de necessidades fisiológicas sob os mamos do objetivo, do puramente-espiritual, chega até o aterrorizante - e com bastante freqüência eu me perguntei se, calculando por alto, a filosofia até agora náo foi em geral somente uma interpretação do corpo e um mal-entendido sobre o corpo. ( . .) Ainda estou a espera de um médico filósofo, no sentido excepcional da palavra - um médico que tenha o problema da saúde geral do povo, tempo, raça, humanidade para cuidar -, terá uma vez o ânimo de levar minha suspeita ao ápice e aventurar a preposição: em todo o filosofor nunca se tratou de 'verdade: mas algo outro, digamos, saúde, futuro, crescimento, potência, vida ... (Nietzsche, 1983b: 190)

Trata-se de se pensar uma história dos corpos - e uma história dos

corpos é a história de seus encontros, suas relações, seus efeitos ... -, e não

um sujeito a priori, totalizador dos sentidos preexistentes da história. Pensar

o corpo - ou fenômeno - como médico, como diagnosticador ou intérprete,

como aquele que considera os fenômenos como sintomas ou valores e fala

por aforismos para determinar o sentido sempre parcial e fragmentário de

um acontecimento - uma relação de força -, para entendê-lo como uma

resultante, uma perspectiva dominante que pressupõe miríades de modos

de ver e dizer subalternos, rivais e pretendentes à dominação. Ao mesmo

tempo, pensar como aquele que avalia, isto é, criar perspectivas determinando

o valor hierárquico dos sentidos, totali~ando as partes sem atenuar-lhes,

contudo, a multiplicidade. Não se procura mais a origem - o sujeito fundante, os a priori -, pois não há sentido preexistente ao acontecimento presente. Em todo jogo de forças, o sentido é posterior à relação e a função do médico-filósofo é diagnosticar, interpretar para dar sentido, e avaliar,

criar a perspectiva para valorizar e hierarquizar os termos do encontro. A

avaliação como uma produção advinda das relações de forças, ou seja, do

poder; e os valores como o resultado das avaliações, o saber. Poder como

gerador de saber ou força como produtora de valor. Não mais a liberdade -

como o efeito de certa fidelidade entre um dado e sua manifestação natural.

Não mais a verdade do sujeito perdida na má vontade das mentiras das

ideologias ou nos defeitos de sua estrutura orgânica. Mas o sujeito como

um sintoma de relações entre forças que lhe dão visibilidade, sobre o qual se

aplicam ações, e para o qual a liberdade possível é a que convém, e a liberdade real está no exercício de desprender-se de si mesmo ...

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Aos Homens de Boa · Vontade

FOUCAULT

"Um pouco de possível, senão eu sufoco!" Esta frase, quase dilacerante,

foi atribuída a Foucault, em um momento qualquer de desabafo, no instante

em que se vê enclausurado por suas próprias teses. Tendo analisado as sociedades

disciplinares e seus dispositivos de captura calcados no modelo da clausura,

Foucault chega a um impasse. Como pensar fora do diagrama já formalizado

pelas relações de poder? Como supor um vácuo, um interregno, ou

afrouxamento nas cadeias das redes de poder-saber que pressuponha exercícios

de liberdade para a constituição do novo, do revolucionário, do diferencial?

Como pensar algo como a liberdade? Segundo nos coloca Deleuze (1993: 105-

147), é a partir então desse paradoxo, no qual as lutas contra o poder, as

resistências ao poder, acabam inexoravelmente ainda como um modo do poder

(Queiroz, 1994:170-196), que Foucault teria se lançado na análise dos modos

de subjetivação, nos dando a idéia de que apenas em práticas solitárias e

ascéticas seríamos capazes, enfim, de nos constituir homens livres, à maneira .

de uma ética conduzida como uma estética da existência (Foucault, 1988).

Aparentemente, uma ética que se daria dentro de um aristocratismo

intelectual altamente seletivo, impossível de se apresentar como opção mais

geral para uma luta política de libertação extensiva ao campo social. No

entanto, se considerarmos, em primeiro lugar, que Foucault considera a estética

da existência a maneira ética propriamente greco-romana, não necessariamente

a nossa, e mais ainda, não uma prescrição para nossas próprias condutas na

atualidade, veremos que toda a questão que levou Foucault a empreender um

retorno aos gregos foi a identificação, na Grécia e na Roma antigas, de uma

problematização similar às que deveríamos exercitar dentro dos parâmetros

de uma ontologia do presente. O problema atual - identificado como próximo ao que no mundo antigo produziu a estética da existência - diz respeito exatamente à condição, colocada por nossa cultura, da busca por nossa verdade

nas profundezas do sujeito, como algo necessário a nossa liberdade, por ser

justamente a liberdade o ser de nossa natureza como sujeitos. Essa verdade do

sujeito, a sua liberdade fundamental, foi que nos levou ao aprisionamento de

nós mesmos pelo "poder normalizado r da lei e da medicina" (Rabinow &

Dreyfus, 1995:283). A verdade de nossa sanidade talvez se esclareça a partir de como tratamos o outro, a alteridade - o múltiplo -, ou seja, nossa liberdade

começa na própria problematização que fazemos com base nas resistências

implícitas, como, por exemplo, na insanidade. E não apenas em relação à

psiquiatria e à medicina, mas igualmente em relação à lei e os ilegalismos, aos

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E(lsaios: subjetividade, saúde menl:Dl, sociedade

pais e os filhos , aos homens e as mulheres, enfim, a todos os antagonismos

que impliquem estratégias de luta, de resistência, e que acabam por constituir

o que Guattari chama de lutas transversais. O 'si mesmo' para Foucault,

nesse contexto das lutas, não se daria pela condição implicada quanto a

uma espécie de fidelidade ou boa vontade ao verdadeiro eu, como se tivéssemos

já de antemão um em si do qual nos separaríamos no contato com as

vicissitudes mundanas, com as ideologias alienadoras, ou nos espaços

labirínticos do desejo e do recalque; mas nas formas de relação consigo

criadas com base em interações transversais. Problematizar, nesse sentido, o

'si mesmo', constituí-lo não como autoconhecimento, mas como criação,

para inseri-lo nos jogos de verdade, fazê-lo existir como obra de arte no

stricto sensu da individuação, ou singularização, da construção artística como

rearranjo do que existe como consciência de si - em contraposição à insistência

do que preexiste, ou à evolução e progresso do que é absoluto, ou à existência

fiel das formas serializadas -, diante do que deve ser a resistência às relações

de poder num determinado contexto mundano.

Problematiuzção não quer dizer representação de um objeto preexistente, nem criação de um discurso de um objeto que não existe. É o conjunto das práticils discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do jàlso e a constitui como objeto para o pensamento (seja sob a forma de reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.). (Escobar, 1988:76)

Pensar através da problematização é pensar como e por que através de

certas práticas, e a um dado momento, determinadas relações se dão, fundando

objetos específicos aos quais dá-se sentido e valor. Ao 'como' se responde por intermédio da história crítica, arqueológica; ao 'por que' , por intermédio de

procedimentos genealógicos, no qual se estuda a formação efetiva dos discursos

e, continuando o projeto médico-filosófico de Nietzsche, empreende-se uma

ontologia do intempestivo, do atualizado,12 do presente, para mostrar que

este não é a evolução de um passado original nem o caminho para um fim ideal. Problematizar a modernidade não é vê-la como a perspectiva de um

tempo histórico, pois senão "teríamos de admitir a ingênua hipótese de uma

'''pré-modernidade' e de uma 'pós-modernidade'" (Foucault, 1984:39);

problematizá-Ia é, de outra maneira, a construção de formas para interagir

com o presente, uma ética, uma atitude:

12 Quando Nietzsche fala de sua filosofia como inatual se refere não a algo fora do tempo, mas a algo de tal forma inserido no devir que esteja sempre 'em aro' , em atividade ...

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Aos Homens de Boa Vontade

E por atitude, me refiro a um modo de se relacionar com a realidade contemporânea; uma escolha voluntdria fiita por pessoas; enfim, uma maneira de pensar e de sentir; um modo, também, de agir e de se comportar que simultaneamente marca uma relação de presença e se apresenta como tarefa. (Idem:39)

Tomando por base as pegadas deixadas pelo descentramento do sujeito

é possível a montagem de uma ontologia que é ao mesmo tempo uma analítica

e uma hermenêutica, e que se traduz numa descontinuidade histórica tal

que todos os princípios de unidade que de alguma forma mascaram a

pluralidade de um valor são destruídos. Foucault não rejeita o sujeito como

singularidade ou serial idade coletiva, como subjetividade que efetivamente

existe; mas recusa a idéia de um sujeito universal, preexistente e fundante.

Concebe-o como acontecimento, como discurso, em que o sentido e o valor

se dão em jogos de força sob uma vontade de potência determinada:

O essencial era libertar a história do pensamento de sua sujeição transcendental (. . .) Tratava-se de analisar tal história em uma descontinuidade que nenhuma teleologia reduziria antecipadamente: demarcd-Ia em uma dispersão que nenhum horizonte prévio poderia tornar a fichar, deixar que ela se desemvlasse em um anonimato a que nenhuma constituição transcendental imporia a forma do sujeito (Foucault, 1987)

A descontinuidade histórica é o pressuposto do descentramento do

sujeito, e a vontade liberada do absoluto é a relação que efetivamente se

produz num campo histórico arqueogenealógico; que é sempre real e positivo

e que supõe a migração, o risco, objetos de guerra, lutas, resistências ... má

vontade. Ao ideal do conhecimento e da descoberta da verdade, Foucault,

como Nietzsche, pensa a interpretação e a avaliação como aquilo que dá

sentido, valor, como aquilo que se arrisca e inventa novos modos de vida.

Como propõe Deleuze, trata-se, afinal, de "um passo para a vida, um passo

para o pensamento. Os modos de vida inspirando maneiras de viver. A vida ativa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida" (1994:22).

Essa comunhão indissociável entre vida e pensamento é o que se pode deduzir

do que para Foucault se poderia chamar de beleza. Sua inacabada genealogia

de uma ética da liberação se inicia justamente quando o impasse das

resistências como ainda relativas às relações de poder corria o risco de se

converter nas amarras últimas de um niilismo passivo. Ao exercer seu

pensamento, Foucault descobre, partindo da noção de poder produtivo,

descentrado e minucioso, que a liberdade política, ou a ausência de

'assujeitamento', só se dá tendo por base, justamente, uma espécie de ética

diferencial, uma ética híbrida, misturada com estética e política - mas

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Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade

distante da moral -, a qual denominou estética da existência. A liberdade,

então, só seria política se desvinculada da moral e se centrada numa nova

espécie de sujeito. Não um retorno ao sujeito puro, mas a um sujeito que só

emergiria como produto, como construção, como máscara, cujo caráter nobre

ou livre se daria como resultado de uma dissolução das relações do poder

micropolítico sobre a alma sujeitada às condições de poder-saber. A produção

desse tipo de sujeito provisório se daria ao mesmo tempo que a produção da

liberdade, uma liberdade absolutamente dependenre de uma capacidade

artística singular. Essa produção de singularidade, por sua vez, só seria possível

na pressuposição de uma rede de relações de forças na qual uma forma se

constitui (Deleuze, 1986). As formas se dissolveriam a partir da manipulação

das forças agindo sobre si mesmas - e não uma sobre outras - para

constituírem uma interioridade livre, desconectada das relações de poder

do fora, ainda que tributária do encontro de corpos, conforme uma lógica

estóica. Uma cintilação criadora de novas possibilidades, como um cLinamen,

que se desvia apenas para constituir novos choques, novos encontros, para

novas alianças, novas formalizações para além de um fluxo laminar dado

(Deleuze, 1974). O sujeito seria livre por estar sujeitado, em sua constituição,

a suas próprias forças,

livre pela possibilidade de identificar e mudar aqueles procedimentos ou formas através dos quais as nossas histórias tornam-se verdadeiras; porque podemos questionar e modificar aqueles sistemas que tornam possíveis - somente - certas espécies de ação; e porque não existe nenhuma relação autêntica com o nosso próprio eu a que tenhamos

. de nos ajustar (Rajchman, 1985:104)

... a que tenhamos de nos manter fiéis, a que tenhamos que buscar o verdadeiro valor e sentido, - ou a que devamos guardar a sanidade ...

CONCLUSOES

Como Foucault insinua, a questão da liberdade é enfrentar o dilema de

se saber como e se é possível ser uma causa para si mesmo apesar do sujeito

e das relações de poder que o enreda e constrói. 13 Desse modo, a questão

13 Contudo, essa relação de si para consigo, que funda uma espécie de causa sui - ou liberdade­na subjetivação, não é absoluta, nem solipcista, nem causa sui, uma vez que se dá nas relações agonísticas - e não dialéticas - com a alteridade. A ética da amizade comporta a idéia deleuziana do 'finito ilimitado', ou heccéité, e da visão nietzscheana de uma seletividade nobre na fabricação dos afetos que constituem - inventam - a alteridade que, afinal, merecemos ...

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Aos Homens de Boa Vontade

dos processos de subjetivação e singularização 'fala' não somente sobre os

modos pelos quais cada sociedade produz seus componentes, todos adequados

as suas engrenagens, mesmo quando desviantes - pois toda desordem se diz

a partir de uma ordem -, mas também sobre a disposição ou a brecha pela

qual nos constituiríamos como sujeitos livres. No transcendentalismo, de modo

diferente, sujeito livre é, na verdade, um eufemismo para uma consciência

adequada, tributável e cotidiana: a consciência 'norma!' ... Mesmo o conceito

de liberdade - sempre aposto ao de sujeito - se diz relativamente a um modo

'coercitivo' - a forma pura da lei - ao qual não se pode escapar inteiramente -

a não ser por maldade ... ou enlouquecendo .. .

A liberdade do sujeito transcendental - doador de sentido aos fenômenos

e a si mesmo -, no mesmo movimento em que 'mata Deus' - ou o

transcendente como garantia ontológica do cogito, do mundo e do saber -

inventa a ciência do tratamento moral ... e, logo depois, num lance de culpa

e revolta - uma revolta castrada que não faz mal a ninguém -, a analítica para

o tratamento dos desvios do desejo ... Assim, vítima da desmesura por algum

vício que se aloja na sede da vontade racional, e que por isso tem que tomar

consciência da responsabilidade pelas 'não-escolhas' que faz - daí os

tratamentos morais - ou de algum obscuro ' defeito no organismo - daí a

lobotomia, o ECT, a psicofarmacologia ... - ou perdido nos labirintos da

estrutura do inconsciente discursivo e lógico-fundante - condição do sujeito

do desejo - , a loucura se faz imprópria à constituição contratual de relações

de poder que pressupõem e constituem justamente o sujeito como vontade

livre - a boa vontade - e sua verdade um efeito ético da relação de si.! 4

É na crítica desse sujeito, cuja liberdade é a de Qbedecer a forma pura

da lei, que uma nova relação de si para consigo pode se constituir. Uma

relação na qual a loucura, distante das condições de possibilidade da

vitimização implicada nos traumas, recalques, verdades puras etc., com os

quais os homens se inventam a todo instante nos jogos de verdade, não seja

sinônimo de um beco sem saída, nem mesmo a simples saída do jogo, mas

como um paradoxo, uma disposição hiperbólica tal que de tantas saídas

tudo é saída, e pouco importa entradas e saídas. Talvez a loucura seja

14 Essa relação de si para consigo é distinta daquela que propõe Foucault, pois implica uma espécie de ortopedia da alma na maneira pela qual ela deve se expressar. Acontece o contrário em Foucault, que por não supor um sujeito fundante, concebe a ética como uma estética, uma obra de arte, criação de si por si a partir do devir.

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Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade

exatamente essa condição na qual o sofrimento é o próprio exerClCIO da

liberdade de um corpo contra sua intimidade, não um sujeito adoecido ou

ausente ... mas um corpo que luta sem trégua, sem pausa, encarniçadamente,

contra a própria consciência de si .. . no mais 'absoluto' amor foti l 5 ••.

Mas a questão nossa, mistos de homens disciplinados e disciplinadores,

deveria ser, antes que os devaneios terapêuticos - mas também eles contudo -,

de que forma aprender a ser livre, a ser cada vez menos sujeito, sem ser

aquele que não consegue exercitar a liberdade por confundi-la com a própria consciência e estar, portanto, na loucura da normatividade. Ou, pelo contrário,

como aquele para quem a liberdade não tem sentido, já que tudo é

absolutamente desregrado, desmedido, dionisíaco ... A liberdade como uma

antiga fórmula de conquista ético-política interminável, que começaria na

'libertação' do louco da clausura não apenas dos manicômios, mas sobretudo

das teorias e práticas de fundo pietista e criptopietista que supõem, por

tudo, a loucura como uma degenerescência do sujeito cumpridor de contratos

e, portanto, fora dos limites da confiabilidade para os contratos serem

fundados coletivamente (Rousseau, 1987), e que preconizam, acima de

tudo, algo como um retorno à contratualidade. Não se fala, aqui, contra as

condições de nossa vida societária, não se diz que a loucura seja a total

impossibilidade de socialização e cidadania. Apenas se afirma que talvez

nossos pressupostos básicos para o exercício dessa liberdade, ainda nebulosa,

podem ser muito mais do que a simples aquisição das condições para a

contratual idade, e que talvez corramos o risco de ainda perpetuarmos os

reducionismos com os quais se tem tratado a loucura dos outros e as nossas próprias, se não nos permitirmos ousar mais na direção até mesmo de uma

ética aristocrática - no sentido nietzscheano do termo - sempre que estivermos por construir qualquer obra de boa vontade para nós mesmos e

os nossos - incluindo nossos loucos ...

I; A vida como amor foti (NIETZSCHE, 1983), ou como o prazer especial- diferente em todo caso

de um aparente sadomasoquismo ... antes que alguém levante a vulgar objeção - , que faz aprovar o sôfrimento, as coisas problemáticas e terríveis, o mau, como o contraponto inevitável da vida bela; de um tipo de vida que entende a si mesma como um supremo esforço de perseverança, de superação, de luta. Uma vida cuja ética é a do guerreiro, cuja arte é a das estratégias miméticas, elípticas, surpreendentes, contra os inimigos mais nobres, mais fortes, desejados para a bela vitória ou a bela morte. Inimigos às vezes construídos na alucinação, quixotescos, inventados pela imposição de uma realidade mesquinha, na qual as lutas são conduzidas com vilania contra exércitos tão abstratos quanto indignos, como o 'mercado' e sua face ditatorial, ou a boa vontade dos outros ...

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Aos Homens de Boa Vontilde

Não precisamos, enfim, libertar os loucos. Receamos que eles nunca

foram prisioneiros ... Sempre, até hoje, apesar de todos os 'tratamentos',

nunca foram encontrados senão em outro lugar distante daquele onde alguém

dizia que deveriam estar ... 1 6 Mas precisamos antes, e com urgência, inventar

uma nova loucura, para nos libertar de nós mesmos, de nosso niilismo,

dessa boa vontade que só quer nada, que quer a forma pura ...

Esse talvez o sentido das práticas da estética da existência, desse pouco

de possível com o qual alentamos escapar das linhas do poder ... Escapar na

direção de nossa própria singularização ante as serializações do mundano,

produzir linhas de fuga, construir o hábito de exercitar a liberdade. Produzir

uma maneira, ou maneiras de se conduzir no mundo - e especialmente

como técnicos de saúde mental - para além do pessimismo da cura e da

doença e sua ética da comiseração, ética da fraqueza inerente ... Mas também

não na direção do otimismo, ou a tolice de se achar na iminência de uma

descoberta que solucione o problema, cure enfim, e nos conduza a todos ao

mar da normalidade natural. Nosso caminho é quase impossível,

enlouquecedor talvez, pois deseja o aprendizado do gesto que se pode querer

repetição de si mesmo pela eternidade, um modo de ser guiado pelo eterno

retorno da vontade de potência. I 7 Se isso é impossível, que seja então nossa

loucura ... e que ninguém venha tentar nos curar ...

16 :f possível que esse tenha sido o sentido da migração que encontramos na história da reestruturação psiquiátrica dos processos de desospitalização para os de desinstitucionalização .. .

17 Em outras palavras: Amor Fati. Sobre a ética do eterno retorno da vontade de potência, os vários contra-sensos que gera não levam em consideração que potência não é, em primeiro lugar, potestas, e que o eterno retorno se liga ao devir e à alteridade - ou seja, à multiplicidade. Portanto, não se pode tudo, a qualquer hora, pois a potência obedece condições concretas que lhe são dadas - e que não são condições dadas pela lei. Querer o eterno retorno da vontade de potência pressupõe entender antes o que pode a vontade ante a alreridade, a partir de relações de força concretas, e produzir afeto no mesmo movimento da própria auto­afecção. Esse o sentido da dobra em Deleuze e Foucault, quando a força age sobre si mesma e produz uma interioridade a partir do fora ...

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Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade

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