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Ser e Deus: uma leitura do evangelho de Joo a partir de Heidegger e Herclito, pp. 239-260
Revista Lampejo - vol. 7 n 1 239
SER E DEUS: UMA LEITURA DO
EVANGELHO DE JOO A PARTIR
DE HEIDEGGER E HERCLITO
Alex Antnio Rosa Costa1 RESUMO Pretendemos aqui fazer um paralelo entre a leitura que Martin Heidegger faz da filosofia grega em comparao com o cristianismo. A tese a ser defendia a proximidade existente entre Ser e Deus. PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; Cristianismo; Joo; Herclito; Dasein. ABSTRACT We pretend here to make a parallel between Martin Heideggers reading of Greek philosophy comparing to Christianism. The thesis to be defended is the proximity that is between Being and God. KEY-WORDS: Heidegger; Christianism; John; Heraclitus; Dasein.
1 Graduando em Direito pela FDUSP. Professor de Filosofia do Cursinho Popular Clarice Lispector. E-mail: [email protected].
mailto:[email protected]
Ser e Deus: uma leitura do evangelho de Joo a partir de Heidegger e Herclito, pp. 239-260
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Introduo
Heidegger, por muito tempo, foi um grande estudioso convertido ao cristianismo. Ao longo
de sua vida, ele diz ter abandonado a preocupao com a teologia, para se dedicar exclusivamente
ao trabalho filosfico. Em carta endereada a Jean Beaufret, conhecida como Carta sobre o
Humanismo, Heidegger diz: Esta filosofia no se decide nem a favor nem contra a existncia de
Deus. Ela permanece presa indiferena2.
Heidegger diz, pois, expressamente, no saber opinar a respeito da existncia de Deus.
Contudo, a pergunta que fazemos : o que esse Deus? A pergunta mais corriqueira, contudo, :
quem Deus? Esta pergunta, diferente daquela, tem em si uma premissa que nos leva a erro:
considerar Deus como quem, ou seja, como prximo do homem. O antropomorfismo divino
comum desde h muito tempo. A pergunta que fazemos : no seria uma reduo comparar Deus a
um homem? As grandes religies responderiam de pronto: claro! O problema parece ser que, a
despeito de uma resposta to evidente, as religies ocidentais ainda parecem pensar Deus a partir
do homem, de modo que o prprio Deus no pensado. Assim, retomamos a pergunta, agora
heideggerianamente, o que isso Deus?3
Nossa tese aqui : Deus o Ser. primeira vista, esta tese no inovadora. O relevo se d
na hermenutica radical que aqui se opera. Poderamos supor que a essncia daquele Cristo
(Khrists, Ungido) do Evangelho de Joo este mesmo Ser; nossa tarefa evidenciar isso. Mais
explicitamente: o que pretendemos fazer aqui uma leitura da figura divina crist com base na
filosofia grega, tendo como guia o pensamento de Heidegger. Deve ficar claro, contudo: No se
trata de uma leitura daquela que Heidegger faz do cristianismo (muito rica, verdade). Seu
pensamento usado apenas como norte; a partir dele que teceremos nossas consideraes.
Heidegger no tem a mesma concepo que a defendida aqui. Ele diz, expressamente, que
Deus entendido na tradio crist como ser, contudo, na realidade, ele apenas um ente, mesmo
que seja o maior de todos: um ente dentre outros4. Nossa defesa aqui no sentido de que o
2 HEIDEGGER, Martin, Carta sobre o humanismo. 2 ed. Traduo de Rubens Eduardo Frias. So Paulo: Centauro, 2005, p. 65. 3 Como na preleo de 1955 Quest-ce que la philosophie? (O que isto a filosofia?) (ttulo em francs no original). Traduo para o portugus: HEIDEGGER, Martin, Que isto A Filosofia?. In ______, Conferncias e escritos filosficos. Trad. Ernildo Stein. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1999. p. 27-40. (Os Pensadores), 4 HEIDEGGER, Martin, Ser e verdade: a questo fundamental da filosofia; da essncia da verdade. Trad. Emmanuel Carneiro Leo. Rev. Renato Kirchner. 2 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012, p. 65.
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cristianismo conseguiu, em sua ontoteologia, principalmente em Joo, chegar muito prximos do
Ser mesmo a que Heidegger se refere.
Antes, contudo, um excurso. Duas vises devem ser consideradas. Ns vemos Deus como
o Ser, enquanto o cristianismo v Ser como Deus. A diferena aqui enorme. Ver Deus como o Ser
dizer: o que verdadeiramente existe o Ser, enquanto Deus o nome que se deu na tentativa de
chegar verdadeira essncia. Ver Ser como Deus exatamente o oposto. Como grande
consequncia, aponto a relao entre filosofia e teologia. Se considerarmos Deus como Ser, sendo
a filosofia o questionamento pelo Ser, toda teologia deve ser entendida como insuficiente, como
quer Heidegger, para a grande tarefa que se impe ao pensamento ocidental: a questo pelo Ser.
Alm disso, todo moralismo religioso, toda regra de conduta religiosa, tudo que no puramente o
questionamento por Deus no tem grande valor enquanto pensamento originrio. Do contrrio, se
entendermos Ser como Deus, colocaremos a filosofia abaixo da religio, evidenciando a real
importncia do pensamento teolgico e, talvez, de uma vida religiosamente ordenada.
Defenderemos aqui, claro, a viso de Deus como Ser; afinal, queremos um trabalho
filosfico.
Ser e ente
No livro do xodo, temos um belo e esclarecedor dilogo entre Moiss e Deus: Moiss
disse a Deus: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: O Deus de vossos pais me enviou at vs;
e me perguntarem: Qual o seu nome?, que direi? Disse Deus a Moiss: Eu sou aquele que .
Disse mais: Assim dirs aos filhos de Israel: EU SOU me enviou at vs (Ex 3:13-14)5.
Eu sou aquele que . EU SOU me enviou at vs. Em Joo, essa construo Eu Sou
(em grego, (eg eimi) repetida diversas vezes6. Muitas so as interpretaes possveis do
trecho do xodo, que valem para Joo. No queremos nos ater s explicaes dadas
tradicionalmente pelo cristianismo. Ressaltamos aqui o fato de Deus ser equiparado ao Ser; mais: o
texto est em discurso direto, ou seja, Deus se equipara ao Ser.
E o que o Ser?
5 Para o portugus, utilizamo-nos da Bblia de Jerusalm, exceto para os Evangelhos, cuja traduo utilizada foi a recente feita por Frederico Loureno: BBLIA. Volume I: Novo Testamento: os quatro evangelhos. Traduo do grego, apresentao e notas por Frederico Loureno. 1 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2017. 6 Eu Sou com complemento: 6, 35; 8,12; 10,7; 10,11; 14; 6; 15,1. Apenas Eu Sou: 8,24; 8,28; 8,58; 13,19; 18,6.
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Heidegger faz uma importante distino entre Ser e Ente. Segundo ele, essa a distino
fundamental da ontologia, chamada por ele de diferena ontolgica7. Falar sobre o Ser sempre
complicado. Afinal, ao dizermos: O Ser ..., j o transformamos em ente, de modo que, como diz
Heidegger em 1929, a exigncia de apreender algo assim como o ser em contraposio ao ente
uma exigncia para a qual no h nenhuma esperana8. No nos desanimemos. Podemos
apresentar uma diferena numrica, desde j: h um Ser, enquanto h infinitos entes. Veremos o
que so entes. Contudo, algo claro: no possvel que haja mais de um Ser. Ou se , ou no se :
base da lgica. Com isso, j podemos fazer uma comparao com o Deus cristo: para o cristianismo,
s h um Deus. Esse o alicerce do monotesmo. Por exemplo: Eu sou o primeiro e o ltimo, fora
de mim no h Deus (Is 44, 6). Isaas traz vrias passagens em que o monotesmo fica claro9.
J que no podemos falar muito do Ser, analisemos primeiro o que o ente.
A pergunta o que a pergunta pela essncia. Ao perguntarmos o que a Justia?, no
estamos preocupados com o entendimento do STF brasileiro do sc. XXI acerca da Justia,
tampouco com o que os gregos entendiam por Justia. A pergunta busca aquilo que comum a todo
entendimento de Justia. Mais precisamente: trata-se de uma pergunta por aquilo que permanece no
conceito de Justia, independentemente do tempo e do lugar em que o conceito pensado. Em
outras palavras: aquilo que pressuposto por todos que falam sobre o tema, isto , a essncia.
Aristteles falava que a essncia de algo o que esse algo . O que isto?, ento, a
pergunta pela essncia. Plato nos disse que o que algo , isto , o ser-o-que10 (Wassein) (
(to t enai))11, o que est constantemente presente (stndig anwesend), por maior que seja a
diversidade e a transformao. A essncia o ncleo duro que se mantm presente a despeito de
qualquer transformao na parte externa.
7 HEIDEGGER, Martin Introduo filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rev. de trad. Eurides Avance de Souza. Rev. tcnica Tito Lvio Cruz Romo. 2 ed. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, 28, p. 225 8 HEIDEGGER, Martin, Introduo filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rev. de trad. Eurides Avance de Souza. Rev. tcnica Tito Lvio Cruz Romo. 2 ed. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, 26, a, p. 204. 9 Ver tambm: Is 42, 8; 40,25; 43,10-12; 45,5-7; 45,14; 45,18; 45,21-22; 46,5; 46,9; 48,11. 10 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 17, b, p. 81. Ver tambm: HEIDEGGER, Martin, A teoria platnica da verdade. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos), p. 215-250, p. 237. 11 Das Was etwas ist, das Wassein ( ), . . ein Haus oder ein Mensch, das ist jenes, was an dem so Angesprochenen stndig anwesend ist. HEIDEGGER, Martin, Grundfragen der Philosophie: Ausgewhle Probleme der Logik, in ______. Gesamtausgabe, II. Abteilung: Vorlesungen 1923-1944, band 45. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann GmbH, 1984, 17, b, p. 61.
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O grande salto de Plato, afirma Heidegger, dizer que a essncia, aquilo que
constantemente presente, visto por ns de antemo. Ns vemos a essncia antes de tudo. O
exemplo muito usado por Heidegger : antes de entrarmos em uma casa, antes de vermos suas
partes, seus atributos contingentes, como a quantidade de quartos, a cor das paredes, a disposio
dos mveis, antes de tudo temos em mente a ideia de casa. Para que possamos nos relacionar com
tudo aquilo que se nos apresenta, temos que antes ter captada a ideia, ou seja, a essncia. O
constantemente presente o que desde o princpio temos em vista, mas no consideramos
expressamente. Expressamente, consideramos o corredor, os quadros e a janela, no aquilo que em
tudo est: a casa. A essncia de tudo o que se nos mostra de antemo e constantemente visto12,
mas no considerado expressamente.
Conclumos: a essncia aquilo que algo 13. E o que , ento aquilo que algo , o o-que-
? Para tal pergunta no parece mais haver nenhuma resposta possvel14. Plato, contudo, oferece
a resposta: aquilo que , o Wassein, o visto de antemo (es ist im voraus gesichtet), o observado en
passant. O visto (das Gesichtete) o o-que-, a essncia, a (ida). Isto , o aspecto (Anblick)
oferecido por aquilo que .
Agora podemos falar mais sobre a essncia, sobre o ser-o-que (Wassein) de algo. O o-que-
ele- (Was es ist) a ida, ou seja, a essncia (Wesen). Ver em grego . O que visto a ideia
(). Assim, a essncia a ida, a essncia o que visto desde o princpio. Ida deve ser entendido
como o aspecto (Anblick), a aparncia que ele tem e mostra por si mesmo, (edos) (Anblick =
edos = aspecto).
Vimos rapidamente o que vem a ser entendido por essncia. Nossa busca inicial era pela
essncia do ente. A essncia do ente chamada por Heidegger de entidade do ente. A entidade
aquilo que confere o carter de ente, assim como a humanidade confere o carter de humano.
Voltemos um pouco ao incio da filosofia grega. O pensamento grego se baseia, diz
Heidegger, no fato de o homem se colocar diante do ente em sua totalidade (Seiende im Ganzen) e
12 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 17, b, p. 82. 13 Das Wesen, sagten wir, ist das, was etwas ist, (quidditas). HEIDEGGER, Martin, Grundfragen der Philosophie: Ausgewhle Probleme der Logik, in ______. Gesamtausgabe, II. Abteilung: Vorlesungen 1923-1944, band 45. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann GmbH, 1984, 17, wiederholung, 1, p. 64. 14 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 17, repetio, 1, p. 85.
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no reconhecimento de que se pertence ao ente, isto , no reconhecimento de que ele mesmo,
homem, um ente. Parmnides dizia: Necessrio o dizer e pensar que (o) ente ; pois ser, / e
nada no ; isto eu te mando considerar15. Completa Heidegger: A realizao fundamental desse
pensamento , por isso, a questo acerca do ente mesmo, aquilo que ele, o ente enquanto tal, na
totalidade16.
Ente enquanto tal em sua totalidade a (phsis). No traduzamos phsis por
natureza, pois o significado bem outro17. Ente, para os gregos, era
o que finca p em si em contraposio ao que cai e desmorona em si. Ente os gregos experimentaram o ente como o constante ante a mudana do mero emergir e j logo desaparecer uma vez mais.18
Por isso, entidade do ente a constncia. Alm disso, o ente o que se presenta em contraposio
a tudo o que se ausenta e a todo definhamento19. Heidegger aqui quase potico. A ideia, contudo,
no complicada: sabemos que todos os objetos, por exemplo, esto em constante transformao,
inclusive em evaporao. Por mais que haja essa transformao, algo sempre permanece. Podemos
tirar um p da mesa, podemos tirar uma pgina do livro, beber o caf da xcara, pintar a parede, e
mesmo assim a mesa continuar sendo mesa, o livro ainda ser livro, e assim por diante. A entidade
de um ente, a livridade do livro, a mesidade da mesa aquilo que se mantm, aquilo que no muda
a despeito de todas as eventuais transformaes que esse ente possa sofrer.
Por fim, podemos dizer: ente aquilo que 20. Ser a essncia do ente em sua totalidade.
A frase acima pode parecer obscura, mas muito precisa. Ser a essncia de todas as
coisas, todos os entes. J vimos o que a essncia: aquilo que permanece. Chegar essncia fsica
pode ser uma das metas da fsica, vemos isso com a ideia de tomo. Mas, e a essncia metafsica, a
substncia simples, a Mnada (Leibniz)?
15 Fragmento 6, traduo de Jos Cavalcante de Souza. Original: , / 16 HEIDEGGER, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 32, p. 167. 17 [...] tampouco possumos uma palavra apropriada para nomear e pensar a essncia da [...]. No entanto, no conseguimos emprestar de imediato a essa palavra a plenitude e a determinidade [de] que ela precisa. HEIDEGGER, Martin, A essncia e o conceito de em Aristteles Fsica B, 1. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos), p. 251-314, p. 271. 18 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 32, p. 167. 19 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 32, p. 167. 20 Toda , o aspecto de alguma coisa, proporciona a viso daquilo que um ente a cada vez . [...] As ideias so o que de todo ente. HEIDEGGER, Martin, A teoria platnica da verdade. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos), p. 215-250, p. 239.
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Sabemos o que a essncia e que a essncia do ente em sua totalidade o Ser. A tentativa
aqui mostrar que, no fundo, h pouca discordncia. O Deus cristo o Ser enquanto essncia de
todas as coisas. Santo Toms de Aquino entendeu bem a mensagem. Ele diz: Deus est em toda
parte21, por conseguinte, sendo Deus a causa universal de todo ser, como acima foi demonstrado
(l. II, c. XV), necessrio que onde quer que se encontre o ser esteja tambm a a presena divina22.
Ser, nessa frase, usado por Toms de Aquino deve ser lido, no vocabulrio heideggeriano, aqui
usado, como ente. Heidegger mesmo fala que, na tradio, foi comum confundirem ser e ente,
por isso Heidegger prefere usar, depois de sua virada (Kehre), a palavra Seyn (seer) para designar o
ser originrio, enquanto ser seria o ente de que falava23. A prpria meta-fsica fsica j que fala
sobre o ente em sua totalidade (phsis), no sobre seer24. Voltemos a Toms de Aquino. A ideia de
que Deus a essncia indivisvel de todas as coisas fica ainda mais clara:
No se deve, porm, pensar que Deus est em toda parte dividido pelos espaos dos lugares, como se uma parte estivesse aqui, outra, ali; pois Deus est todo ele em cada parte, sendo simples como e sem partes.25
O mesmo entendimento pode ser visto em Spinoza. Para ele, Deus entendido como a
natureza em seu todo. Deus e natureza significam uma s e mesma coisa: a totalidade das coisas26.
Foi para explicar a filosofia de Spinoza que os ingleses cunharam a palavra pantesta27, significando
que Deus est em todas as coisas.
Creio que tenha ficado claro: Deus o nome que se d ao Seer. Heidegger chama o homem
de Dasein, ser-a. No desenvolveremos aqui muito sobre o assunto. Por ora, vale notarmos a
proximidade nica que o homem tem com o Seer. O ser-a um ente como os outros. Contudo, ele
21 Deum esse infinitae virtutis. Est igitur ubique. (grifo meu), Summa contra gentiles, livro III, cap. LXVII, 2424. TOMS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Trad. D. Odilo Moura O.S.B., baseada em parte em traduo de D. Ludgero Jaspers O.S.B. Reviso Luis A. de Boni. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 22 Cum igitur Deus sit causa universalis totius esse, ut in Secundo (cap. 15) ostensum est, oportet quod in quocumque est invenire esse, ei adsit divina praesentia, cap. LXVII, 2425. TOMS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Trad. D. Odilo Moura O.S.B., baseada em parte em traduo de D. Ludgero Jaspers O.S.B. Reviso Luis A. de Boni. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 23 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, Anexo, 3, b, p. 254. 24 HEIDEGGER, Martin, A essncia e o conceito de em Aristteles Fsica B, 1. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos), p. 251-314, p. 253. 25 Non est autem aiestimandum Deum sic esse ibique quod per locorum spatia dividatur, quase uma pars eius sit hic et alia libi, sed totus ubique est. Deus enim, cum sit omnino simplex partibus caret, cap. LXVII, 2430. TOMS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Trad. D. Odilo Moura O.S.B., baseada em parte em traduo de D. Ludgero Jaspers O.S.B. Reviso Luis A. de Boni. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 26 SPINOZA, Baruch. tica. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autntica, 2009, I, prop. 15. 27 BORGES, Jorge Luis. Sobre a Felicidade e outros dilogos. Trad. John Lionel OKuinghttons Rodrguez. So Paulo: Hedra, 2009, Spinoza, p. 71.
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o nico que existe. A existncia um modo de ser prprio de um ente chamado ser-a28. Por meio
da linguagem, o homem torna-se capaz de acessar o seer. Diferente de todos os animais, plantas e
objetos, o homem, enquanto ser-a, conversa com o seer, acessa-o, contempla-o. Na tradio crist,
isso foi lido como: somos filhos de Deus, dele provemos, e com ele podemos conversar por meio da
orao, isto , pela fala, pois Deus Verbo (logos) (Joo 1,1). A ideia a mesma: falar com Deus
usar da linguagem para acessarmos o seer. A orao nada mais que um pensamento, no sentido
forte que Heidegger d, isto , um questionamento acerca do fenmeno originrio (Goethe), da
abertura originria, da Clareira (Lichtung).
Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida
O caminho
Ao se despedir de seus filhinhos (tekna) (Joo 13, 33) antes da crucificao, Jesus diz que
ir casa do Pai. Pai o sinnimo mais prprio que os cristos do a Deus. Conforme nossa tese,
Jesus aqui diz: irei ao Ser. Pouco mais adiante, ainda no Evangelho de Joo, diz Jesus: E para onde
eu vou, vs conheceis o caminho (Joo 14, 4). Tom indaga:
Senhor, no sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho? Diz-lhe Jesus: Eu Sou o caminho, a verdade e a vida. Ningum chega ao Pai a no ser atravs de mim. Se me conhecsseis, tereis conhecido o meu Pai. A partir de agora j O conheceis e O vistes.
Diz-lhe Felipe: Senhor, mostra-nos o Pai e [isso] nos basta! Diz-lhe Jesus: Estou h tanto tempo convosco e ainda no me conheceste, Filipe? Quem v a mim v o Pai. Como podes tu dizer: Mostra-nos o Pai? No acreditas que eu [estou] no Pai e o Pai est em mim? (Joo 14, 5-10)29.
Nossa leitura do trecho a seguinte. Todos os homens so seres-a. Isso quer dizer: o
homem acessa o seer e tem em sua essncia o prprio Seer. Jesus a caracterizao mxima do ser-
a. Isso quer dizer: Jesus o mais homem de todos os homens. No precisamos entrar no mrito se
Jesus filho de um Deus criador, como quer a tradio crist. No essa nossa anlise. Jesus deve
28 HEIDEGGER, Martin Introduo filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rev. de trad. Eurides Avance de Souza. Rev. tcnica Tito Lvio Cruz Romo. 2 ed. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, 12, a, p. 75. 29 Original: (legei aut thmas kurie ouk oidamen pou upageis kai ps dunametha tn odon eidenailegei aut o isous eg eimi odos kai altheia kai z oudeis erchetai pros ton patera ei m di emou ei egnkeite me kai ton patera mou aegnkeite an kai ap arti ginskete auton kai erakate auton legei aut philippos kurie deixon min ton patera kai arkei min legei aut o isous tosouton chronon meth umn eimi kai ouk egnkas me philippe o eraks eme eraken ton patera kai ps su legeis deixon min ton patera ou pisteueis oti eg en t patri kai o patr en emoi estin ta rmata a eg lal umin ap emautou ou lal o de patr o en emoi menn autos poiei ta erga).
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ser entendido aqui como o modelo de ser-a, a personagem histrica que deixou mais explcitas as
caractersticas essenciais de todo ser-a. Estando o Seer na prpria essncia do ser-a, j podemos
entender a frase dita por Jesus: No acreditas que eu [estou] no Pai e o Pai est em mim?; afinal,
o homem habita a verdade do seer.
Ao dizer que vai ao Pai, Jesus quer dizer que vai ao Seer. Ir ao seer deve ser lido com cautela.
No devemos entender ir ao seer como um deslocar-se qualquer. Trata-se de um deslocar-se para
dentro da prpria essncia, um mergulhar-se em si to profundo que a prpria individualidade
perdida, no momento do encontro com a essncia de todas as coisas, que, claro, est em ns. Por
isso os gregos falarem em conhece-te a ti mesmo, e Herclito em Procurei-me a mim mesmo30,
faculdade essa, de procurar-se e conhecer-se, dada a todos os homens31. O fim da individualidade,
claro, s possvel no momento da morte. Ir ao encontro do Pai dirigir-se morte.
Ao falar do ser-a, Heidegger caracteriza-o como ser-para-a-morte (Sein zum Tode) (em
especial, Ser e Tempo, 45 e 51). A base a constatao simples de que estamos fadados morte.
Esse pensamento toma relevo na medida em que a morte vista como fim das possibilidades, ao
mesmo tempo em que a indisponvel possibilidade32. Nossa existncia, por sua vez, vista como
marcada pelas possibilidades. Nosso poder-ser fundamental marcado pela morte inexorvel.
Nossa vida, por fim, um caminhar para a morte. Agora podemos entender o que a sentena de
Jesus significa enquanto caracterstica essencial do ser-a. Ir ao Pai, ir ao seer caminhar para a
morte e, ao mesmo tempo, caminhar para o mais fundo do homem: a verdade do seer.
Entendemos aonde vai Jesus. Disse ele mais: ns conhecemos o caminho para o seer. Dessa
afirmao, podemos tirar duas informaes relevantes para ns: ns conhecemos de antemo o
caminho ainda no percorrido e ns somos capazes de percorr-lo. O conhecimento de antemo
a caracterstica fundamental da essncia platnica, da ida. Conhecemos de antemo significa:
acessamos primeiramente a essncia do ente. Jesus completa: eu sou esse caminho. Se
entendermos Jesus como ser-a (o que parece ser muito plausvel, j que Jesus humano), podemos
entender que o caminho para o seer da essncia do ser-a, ou seja, o acesso ao seer parte do
30 Fragmento 101. Original: 31 Fragmento 116: A todos os homens compartilhado o conhecer-se a si mesmos e pensar sensatamente. Original: 32 STEIN, Ernildo. Introduo ao Pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: PUCRS, 2011, p. 69.
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fundamento do homem enquanto ser-a. Jesus, enquanto mostra viva mxima da essncia do ser-
a, nos evidencia o fato de sermos seres-a, isto , caminho para o seer.
Pela ideia crist, somos filhos de Deus. Isso deve ser lido fenomenologicamente de maneira
radical como: somos provenientes do seer, temos em nossa essncia o seer, abrigamos em ns a
morada divina, somos, na essencialidade de nossa essncia, Deus. Por isso, ns caminhamos para o
seer. Que fique claro: ao dizer eu sou o caminho, Jesus no quis dizer que outros homens no so
o caminho, mas que s o so enquanto ser-a em sua prpria essncia.
No NT, Caminho tem importncia tambm no Ato dos Apstolos, referindo-se
comunidade de fieis cristos33.
Sobre o caminho, uma ltima palavra. Heidegger diz sobre seus escritos: eles so Wege -
nicht Werke, isto , Caminhos - no obras esta foi a misso que Heidegger deixou ao seu editor
geral, na capa dos manuscritos, pouco antes de morrer34. Priscila Lima, em sua tese de doutorado35,
chama-nos a ateno justamente para esse ponto: vrias so as obras de Heidegger em que ele usa
a palavra caminho (Weg), como Holzwege (Caminhos de floresta), Wegmarken (Marcas do caminho),
Unterwegs zur Sprache (A caminho da linguagem), Mein Weg in die Phanomenologie (Meu caminho
para a fenomenologia) Heidegger esclarece que o caminho ( - hods) parte do mtodo
( - mthodos), de modo que caminho significa caminhar em direo a36. Esse mesmo
entendimento fica claro na primeira frase do Evangelho de Joo e verbo estava com Deus, em que
usada a preposio (prs), que pode significar, e aqui pode ser o caso, justamente caminhar
em direo a.... Voltemos ao que Jesus disse: eu sou o caminho, agora, deve ser lido como: eu
caminho em direo ao seer. O ser-a, enquanto existe, isto , enquanto tem seu modo de ser a
existncia, caminha em direo ao seer.
O mais importante, portanto, para Heidegger, no a resposta (a chegada), mas a
elaborao das perguntas (o caminho). Ele diz claramente: A nossa meta a prpria busca37. Diz
33 9,2. Outras ocorrncias: 18,25-26; 19, 9.23; 22.4 (sinnimo de Igreja); 24,14.22. Mateus tambm fala do caminho: 7,13-14; 22, 16. 34 HEIDEGGER, Martin, Gesamtausgabe, I. Ab, bd, I, Frhe Schriften. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann GmbH, 1978, Nachwort des Herausgebers, p. 437. 35 LIMA, Priscila Sissi. O caminho do amor: a possibilidade existencial do amor em Heidegger e sua importncia para a investigao do justo. 2015 Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo, 2015. 36 LIMA, Priscila Sissi. O caminho do amor: a possibilidade existencial do amor em Heidegger e sua importncia para a investigao do justo. 2015 Tese (Doutorado em Direito) - Faculdade de Direito, Universidade de So Paulo, 2015, Introduo, p. 12. 37 HEIDEGGER, Martin, As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 3, p. 9.
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ele certa feita: Longo o caminho de que nosso pensamento mais necessita38. O caminho aqui
a prpria filosofia. Por isso, Heidegger chega a definir filosofia como filosofar39, isto , transcender.
Por ora, basta frisarmos que a filosofia no uma resposta, no um cdigo, um catlogo ou
autoajuda. A filosofia o filosofar, ao, ela um tipo fundamental do comportamento40. A
filosofia o caminho. Tendo isso em vista, precisamos saber: caminho para onde? Qual o destino da
filosofia, ou melhor, qual a tarefa da filosofia? Heidegger respondeu isso. Ele disse que a filosofia
tradicionalmente confundida com a metafsica, de modo que precisamos superar isso; afinal, a
histria da metafsica a histria do esquecimento do seer. A filosofia deve ser superada pelo
pensamento, cuja tarefa, como dissemos, o questionamento pela verdade do seer. Disso tiramos:
o pensamento a que Heidegger se refere o caminhar em direo verdade do seer, ou seja, o
mesmo caminho a que se referia Jesus ao dizer eu sou o caminho.
Na Bblia, podemos encontrar a mesma ideia sobre a importncia do caminho para o acesso
a Deus, como em: Uma voz clama: No deserto, abri um caminho para Iahweh; na estepe, aplainai
uma vereda para o nosso Deus (Is 40, 3)41. No cristianismo, vemos que Jesus visto como aquele
que prepara o caminho para Deus. Em uma viso filosfica, poderamos dizer: o homem, enquanto
ser-a, o responsvel por preparar seu prprio caminho verdade do seer. Deve ter ficado claro:
entendemos Jesus aqui como Dasein. Jesus, de acordo com essa viso, no mais do que ningum.
Jesus um homem que entendeu seu papel como homem; se quisermos dizer: papel como filho de
Deus, tambm estaremos corretos, desde que consideremos todos os humanos como igualmente
filhos de Deus, afinal, em todos ns h o Seer, a essncia de todos os entes. Deus deve ser entendido
como a essncia de todas as coisas, presente em todas as coisas, mas acessado apenas pelo ser-a.
Falarmos que somos feitos imagem e semelhana de Deus (Gn 1, 26-27) falarmos que somos
seres-a, isto , entre os entes, os mais prximos do seer, os nicos que, por meio da linguagem,
podem acess-lo.
Se entendermos que Jesus o modelo de ser-a, teremos que aceitar que ele est na
essncia de todos os homens enquanto entes histricos, no sentido que Heidegger d ao termo.
38 HEIDEGGER, Martin, Logos (Herclito, fragmento 50). In ______. Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel e Marcia S Cavalcante Schuback, 8 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012a. (Coleo Pensamento Humano). p. 183-204, p. 183. 39 HEIDEGGER, Martin, Introduo filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rev. de trad. Eurides Avance de Souza. Rev. tcnica Tito Lvio Cruz Romo. 2 ed. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, 30, p. 235. 40 HEIDEGGER, Martin, Introduo filosofia. Trad. Marco Antonio Casanova. Rev. de trad. Eurides Avance de Souza. Rev. tcnica Tito Lvio Cruz Romo. 2 ed. So Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, 7, p. 27 (grifo nosso). 41 Esse trecho ser retomado por Mateus, 3,3 e Joo, 1,23.
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Jesus, nesse sentido, seria a essncia do homem e estaria, portanto, no nosso interior. Agostinho,
nas Confisses, diz: Vs, porm, reis mais ntimo que o meu prprio ntimo e mais sublime que o
pice do meu ser!42 Ser mais ntimo que meu prprio ntimo participar da minha essncia mais
retamente que eu mesmo: ser minha essncia. Eis Jesus, cuja essncia Deus. Essa viso pode ser
encontrada no Salmo 139 (138), em que se diz que Deus sabe de nosso interior mais do que ns
mesmos. Ora, isso entender Deus como a essncia mesma do homem, como o Seer:
Iahweh, tu me sondas e conheces: conheces meu sentar e meu levantar, de longe penetras o meu pensamento; examinas meu andar e meu deitar, meus caminhos todos so familiares a ti. A palavra ainda no me chegou lngua, e tu, Iahweh, j a conheces inteira. Tu me envolves por trs e pela frente, e sobre mim colocas a tua mo. um saber maravilhoso, e me ultrapassa, alto demais: no posso atingi-lo! Para onde ir, longe do teu sopro? Para onde fugir, longe da tua presena? Se subo aos cus, tu l ests; se me deito no cho, a te encontro. (Salmo 139(138))
Quase todo o trecho citado agora pode ser entendido. Vejamo-lo novamente:
Senhor, no sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho? Diz-lhe Jesus: Eu Sou o caminho, a verdade e a vida. Ningum chega ao Pai a no ser atravs de mim. Se me conhecsseis, tereis conhecido o meu Pai. A partir de agora j O conheceis e O vistes.
Diz-lhe Felipe: Senhor, mostra-nos o Pai e [isso] nos basta! Diz-lhe Jesus: Estou h tanto tempo convosco e ainda no me conheceste, Filipe? Quem v a mim v o Pai. Como podes tu dizer: Mostra-nos o Pai? No acreditas que eu [estou] no Pai e o Pai est em mim? (Joo 14, 5-10)
Sobre a Verdade e a Vida, falaremos logo mais. A frase Se me conhecsseis, tereis
conhecido o meu Pai tambm pode ser bem entendida se considerarmos Jesus como a essncia do
ser-a e Pai como o prprio Seer. Heidegger chega a dizer que, para reconhecer o ente enquanto tal,
necessria uma postura fundamental do simples acolhimento do ente em sua entidade, e, com isso,
no elemento uno que determina o ente enquanto tal43. Ente em sua entidade significa a essncia
mesma do ente. Se continuarmos nosso entendimento de que o seer est na essncia de todos os
entes, um conhecimento verdadeiro e profundo do ser-a nos leva busca mesma e ao
conhecimento do seer.
Em seguida, Jesus diz: A partir de agora j O conheceis e O vistes. Isso pode ser lido em
dois aspectos que nos ajudam: conhecemos o seer de antemo. Sobre essa viso, j falamos.
Podemos ainda ver como: Jesus desvelou a verdade do seer. J no prlogo de Joo, lemos: A Deus
42 AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confisses. Trad. J. Oliveira e A. Ambrsio de Pina. 6 ed. Petrpolis RJ: Vozes, 2015, III, 6, 13, p. 73. 43 HEIDEGGER, Martin. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 33, p. 178.
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ningum nunca viu. Deus unignito, que est no seio do Pai, esse deu [o Pai] a conhecer44 (Joo
1,18). Poderamos traduzir, em nossos termos: Ao Seer ningum nunca viu. Ser-a, que habita a
morada do seer, esse deu [o Seer] a conhecer.
A Verdade
Uma das questes fundamentais da filosofia, diz Heidegger, a questo acerca da
Verdade45. Por essa razo, trata-se de um dos temais mais desenvolvidos pelo autor, estando
presente em diversos escritos seus. Infelizmente, no podemos aqui desenvolver a questo como
devido. Falaremos rapidamente, para que nosso objetivo (relacionar com a passagem bblica) seja
alcanado.
De acordo com a tradio (este um dos pontos mais importantes para Heidegger),
verdade significa adequao (adaequatio), ou correo (Richtigkeit). O raciocnio : frente frase:
esta parede branca, como posso dizer que essa uma afirmao verdadeira ou falsa?
Tradicionalmente, a resposta direta: o enunciado verdadeiro aquele que est adequado ao
objeto. Um enunciado verdadeiro, diz-se, orienta-se, retifica-se (sich richten nach) por seu objeto46.
Na viso tradicional, verdade a concordncia do conhecimento (da representao do
pensamento do juzo do enunciado) com o objeto47. Toms de Aquino, por exemplo, entendia
veritas principaliter est in intellectu: a verdade se principia no entendimento judicativo48. Diz ainda
em outra ocasio: A verdade propriamente encontrada no intelecto humano ou divino (veritas
proprie invenitur in intellectu humano vel divino49). Descartes dir o mesmo na modernidade:
Verdade ou falsidade, em sentido prprio, no podem estar em nenhum outro lugar a no ser no
intelecto (veritatem proprie vel falsitatem non nisi in solo intellectu esse posse50). Nietzsche, que
perguntou sobre a verdade da maneira mais apaixonada possvel51, est preso a esse
44 Original: (heon oudeis eraken ppote o monogens uios o n eis ton kolpon tou patros ekeinos exgsato) 45 HEIDEGGER, Martin. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 5. 46 HEIDEGGER. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 6, p. 22. 47 HEIDEGGER. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 6, p. 24. 48 la verdade principalmente est en el entendimento TOMS DE AQUINO. .Suma de Teologa. Vol. I, parte I, Edicin dirigida por los Regentes de Estudios de las Provincias Dominicanas en Espaa. Presentacin por Damipan Byrne O. P. Colaboradores Jos Martorell et. al. 4 ed.2001. Cuestin 16: Sobre la verdad, art. 1, La verdad, est o no est slo en el entendimiento?, p. 225. 49 Toms de Aquino, Quaestiones de veritate; qu. I art. 4, resp 50 DESCARTES, Ren. Regulae ad directionem ingenii. Herausgegeben von Artur Buchenau: Leipzig, Drrschen Buchhandlung, 1907, p. 23 51 HEIDEGGER, Martin. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 4, p. 16.
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entendimento: Verdade o tipo de erro, sem o qual uma determinada espcie de seres vivos no
poderia viver. O valor para a vida decide por fim52.
Heidegger percebe que esse entendimento no vai ao fundo da essncia da verdade. De
acordo com a leitura que Heidegger faz de Plato, o grego, na Alegoria da Caverna, oferece-nos
uma viso muito rica acerca da essncia da verdade. A tradio no est errada ao dizer que verdade
correo. Mas qual o fundamento disso? A palavra que os gregos usavam para verdade
(altheia), que significa, precisamente, desvelamento, ou desencobrimento (Unverbogenheit). A
verdade no est no intelecto, mas ela o prprio desvelamento do ente.
O que a altheia? Como o prprio nome diz, o fato de o ente no estar fechado, mas
aberto. Como a correo fundamentada pelo desvelamento, o fato de o ente estar aberto, sua
abertura, que fundamenta a verdade como correo53. Isso foi muito bem entendido pelos gregos,
o que explica seu entendimento de que no necessrio fundamentar a verdade como correo.
por essas razes que no precisamos mais nos perguntar acerca da verdade como correo. A
resposta est nos gregos. Nosso erro foi traduzir altheia como veritas, restringindo-nos verdade
enquanto correo. Houve um soterramento da essncia da verdade54.
Completa Heidegger: Toda relao patentemente aberta um comportamento55. Todo
ente tem em si uma abertura. por ela que o ente se deixa ver, se deixa exprimir. O ente se prope
enunciao. A enunciao, para que se conforme ao ente, para que seja verdadeira, deve obedecer
ordem dada pelo ente. Percebemos que a abertura do comportamento que possibilita a
conformidade entre enunciao e ente. Assim, a essncia da verdade est no que torna possvel a
conformidade do enunciado56.
52 Wahrheit ist die Art von Irrtum, ohne welche eine bestimmte Art von lebendigen Wesen nicht leben knnte. Der Werth fr das Leben entscheidet zuletzt, NIETZSCHE, Friedrich. Der Wille zur Macht. Leipzig: Alfred Krner Verlag, 1922, n. 493. 53 HEIDEGGER, Martin. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 26, p. 129. 54 HEIDEGGER, Martin. As Questes Fundamentais da Filosofia. trad. Marco Antnio Casanova. So Paulo: Martins Fontes, 2017, 26, p. 132. 55 HEIDEGGER, Martin. A essncia da verdade. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos). p.189-214, p. 196. 56 HEIDEGGER, Martin. A essncia da verdade. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos). p.189-214, p. 197.
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A verdade, portanto, no est na enunciao, mas na abertura: somente desta
possibilidade intrnseca abertura do comportamento que a conformidade da proposio recebe a
aparncia de realizar a essncia da verdade57.
Tentemos usar esse entendimento de Heidegger acerca da verdade no Evangelho de Joo.
Antes, uma observao importante: a palavra altheia a palavra grega para verdade.
Como os evangelhos foram escritos em grego, esta a palavra usada. Uma pergunta que poderia
ser feita: por que analisar s Joo? Muitas respostas podem ser dadas: espao, qualidade,
singularidade do texto. Mas, neste ponto, outra ainda mais precisa: Joo o que mais se utiliza do
termo, mais de vinte vezes58. Mateus a usa uma vez59; Marcos60 e Lucas61, trs vezes cada.
Vemos no prlogo de Joo a famosa frase: E o verbo fez-se carne e habitou entre ns; e
contemplamos a sua glria glria enquanto [filho] unignito do Pai, pleno de graa e de verdade62
(Joo 1,14). A graa e a verdade vieram-nos atravs de Jesus Cristo63 (Joo 1,17)
Glria , no livro do xodo, o mesmo que a manifestao divina A glria de Iahweh pousou
sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu durante seis dias. No stimo dia, Iahweh chamou Moiss do
meio da nuvem (24,16). No trecho de Joo, vemos que a glria de Jesus, ou seja, ele manifesta o
divino. Alm disso, Jesus pleno de graa e de verdade. Verdade aqui (altheias), que,
como vimos, ao p da letra, significa desvelamento, desencobrimento. Podemos fazer um paralelo,
em primeiro lugar, com a nuvem. Seria a verdade um desnuveamento, no no sentido de
afastamento de Deus, claro, mas no de esclarecimento e revelao do Pai? No segundo trecho,
temos tambm o uso de altheia. Aqui, -nos dito que o desvelamento veio por meio de Jesus, ou
seja, podemos ler como: Jesus o caminho para desvelamento, leitura que corrobora a j analisada
aqui.
57 HEIDEGGER, Martin,. A essncia da verdade. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos). p.189-214, p. 197 (grifo nosso). 58 1,17; 3,21; 4,23-4; 5,33; 8,32 (2x); 8,40; 8,44 (2x); 8, 45; 8; 46; 14,6; 14,17; 15,26; 16,7; 16,13, 17,17 (2x); 17,19; 18,37, 18,38. 59 22,16. 60 5,33; 12,14; 12,32. 61 4,25; 20,21; 25,59. 62 Original: (kai o logos sarx egeneto kai esknsen en min kai etheasametha tn doxan autou doxan s monogenous para patros plrs charitos kai altheias) 63 Original: (oti o nomos dia mses edoth charis kai altheia dia isou christou egeneto)
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No fim do primeiro captulo do Evangelho, vemos a seguinte fala de Jesus: Amm amm
vos digo: vereis o cu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho da Humanidade (Jo
1,51). Como se sabe, essa uma referncia ao sonho de Jac: Eis que uma escada se erguia sobre a
terra e o seu topo atingia o cu, e anjos de Deus subiam e desciam por ela! (Gn 28, 12). Essa ideia
de escada era comum na Mesopotmia. O que nos importa que Jesus visto como essa escada, o
que, mais uma vez, mostra seu carter de caminho. Alm disso, ele aquele que abre os cus aos
homens. Esse abrir pode ser lido como a prpria verdade enquanto desvelamento: Jesus desvela.
No muito repetir nosso ponto: no fazemos aqui uma apologia religiosa. Jesus desvela
deve ser lido: o homem, enquanto ser-a, desvelador. da essncia do ser-a desvelar.
A origem Grega Herclito. Uma leitura do Evangelho de Joo
Dissemos no comeo de nossa investigao que ela se daria por bases gregas. Falar de
Heidegger j , de certa forma, falar do pensamento grego, j que o prprio alemo tem como
grande inspirao os gregos. Para o nosso ponto aqui defendido, escolhemos Herclito como o mais
evidente dos pensadores.
Deve ter ficado claro que o que desejamos fazer mostrar como o pensamento cristo
aproveitou de uma mentalidade com germe na Grcia antiga acerca do Ser e do ente. No
poderemos nos aprofundar muito aqui. Veremos rapidamente alguns trechos de Herclito que
corroboram nosso entendimento.
O mais teolgico, e ontolgico, dos Evangelhos o de Joo. Seu prlogo contm sua mais
importante parte, trazendo para ns importantes conceitos. Leiamo-lo em parte para que possamos
analis-lo luz de Herclito.
No princpio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Este no princpio estava com Deus. Todas as coisas existiram por ao dele e sem ele existiu nem uma s coisa que existiu. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. [...]
[O verbo] era a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todo o ser humano. Ele estava no mundo e foi por intermdio dele que o mundo existiu; e o mundo no o reconheceu. Veio para o que era seu e os seus no o receberam. Porm quantos o receberam, a esses deu a licitude de se tornarem filhos de Deus - a esses que creem no nome dele, os quais no nasceram de sangues, nem de uma vontade da carne, nem da vontade de um varo, mas sim de Deus.
E o verbo fez-se carne e habitou entre ns; e contemplamos a sua glria - glria enquanto [filho] unignito do Pai, pleno de graa e de verdade.
Joo [Batista] d testemunho acerca dele e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu disse: O que vem depois de mim passou-me frente, porque existia antes de mim. [...]
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A Deus ningum nunca viu. Deus unignito, que est no seio do Pai, esse deu [o Pai] a conhecer.64 (Joo 1, 1-5; 9-15; 18).
A traduo do grego sempre complicada. Aqui foi-nos apresentada uma das palavras que
mais gera discrdia entre interpretadores do grego em geral: (lgos). Frederico Loureno, o
melhor tradutor que temos do grego, disse: Joo inicia o seu Evangelho com uma das mais
intraduzveis afirmaes alguma vez registradas por meio da palavra escrita65. Sua opo, ao
traduzir, seguir a tradio. Alguns tradutores preferem, inclusive, no traduzir, deixando como
logos mesmo. A palavra tem duas acepes: razo e discurso. Neste sentido, ainda pode significar
linguagem, palavra, ou, como foi aqui traduzido, verbo, seguindo a tradio da Vulgata de So
Jernimo, que traduziu Lgos por Verbum.
Uma observao importante: em grego, no h diferena, como h em portugus, entre
ser e estar, ambos so o verbo (eim). Assim, no original, no h diferena entre o Verbo
estava com Deus e o Verbo era com Deus.
O que nos importa a equiparao de Deus e logos, Deus e razo, ou Deus e verbo. A
famosa caracterizao aristotlica do homem como um animal social dotado de logos pode nos
ajudar. Segundo Aristteles, em nossa essncia est o logos. Se continuarmos nosso entendimento
anterior de que, em essncia, o homem Deus, o raciocnio fica claro. O homem dotado de logos
na medida em que tem em sua essncia o seer, sendo o logos o prprio modo de acesso ao seer. A
linguagem, por fim, seria o divino em ns. Ao dizer que o Verbo se fez carne, Joo, claro, refere-se a
64 , , . . , . , . , . [...] , , . . , ; , , , , , , , , . , , , , . , , , , , . [...] ; , , (en arch n o logos, kai o logos n pros ton theon, kai heos n o logos. Outos n en arch prs ton Theon. Panta di autou egeneto, kai chris autou egeneto oude en gegonen. En aut z n, kai z n to phs tn anthrpn. Kai to phs en t skotia phainei, kai skotia auto ou katelaben. [...] n to phs to althinon, o phtizei panta anthrpon, erchomenon eis ton kosmon. En t kosm n kai o kosmos di autou egeneto kai o kosmos auton ouk egn. Eis ta idia lthen, kai oi idioi auton ou parelabon; hosoi de elabon auton, edken autois exousian, tekna theou genesthai, tois pisteuousin eis to onoma autou, oi ouk ex haimatn, oude ek thelmatos sarkos, oude ek thelmatos andros, all ek theou egennthsan. Kai ho logos sarx egeneto, kai esknsen en hmin, kai etheasametha tn doxan autou, doxan s monogenous para patros, plrs charitos kai altheias. Ianns marturei peri autou, kai kekragen, legn, outos n on eipon, ho opis mou erchomenos, emprosthen mou gegonen, oti prtos mou n. [...] Theon oudeis eraken ppote; o monogens uios [theos] ho n eis ton kolpon tou patros, ekeinos exgsato) 65 BBLIA. Volume I: Novo Testamento: os quatro evangelhos. Traduo do grego, apresentao e notas por Frederico Loureno. 1 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 319.
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Jesus. Em nossa leitura, fazer-se carne, ou seja, nascer enquanto homem, referncia expressa ao
ser-a. Fazer-se carne o prprio a do seer.
De Herclito, temos apenas alguns fragmentos. Comparado a outros pr-socrticos,
contudo, um pensador de que temos bastante coisa. Usaremos aqui as tradues feitas por Jos
Cavalcante de Souza. O fragmento 1 de Herclito nos traz:
Deste logos sendo sempre [,]66 os homens se tornam descompassados67 quer antes de ouvir quer to logo tenham ouvido; pois, tornando-se todas (as coisas) segundo esse logos, a inexperientes se assemelham embora experimentando-se em palavras e aes tais quais eu discorro segundo (a) natureza distinguindo cada (coisa) e explicando como se comporta. Aos outros homens escapa68 quanto fazem despertos, tal como esquecem quanto fazem dormindo.69, 70
Em primeira anlise, podemos perceber que o logos sempre existe. Os homens, contudo,
afastam-se, descompassam-se, ou seja, no compreendem o logos. Os homens, completa
Herclito, parecem inexperientes quanto ao logos, que est presente em todas as coisas, at mesmo
quando eles, os homens, falam e agem. O falar aqui deve ser entendido em correspondncia com o
discurso, que o logos. Assim, mesmo quando em contato com o logos, os homens parecem no o
entender.
Essa anlise se aproxima tanto do pensamento cristo quanto do heideggeriano. O
distanciamento de Deus, inexorvel, verdade, faz com que no O entendamos completamente,
mesmo que estejamos no caminho. Isso fica claro no fragmento 45 de Herclito: Limites da alma
no os encontrarias, todo o caminho percorrendo; to profundo logos ela tem71. Heidegger diz o
mesmo quanto ao seer: nossa incompreenso do seer, nossa, inclusive, incapacidade de elaborao
da questo sobre seer, advm de nosso distanciamento, ou melhor, de nosso esquecimento do seer.
O ponto que, apesar disso, o logos est no homem, necessariamente; o logos no homem. Quer
leiamos isso, de acordo com Herclito, como: ns experimentamos necessariamente o logos em
nossas palavras e aes; quer, de acordo com o cristianismo, como: somos filhos de Deus, portanto
66 Apenas para facilitar o entendimento, a vrgula sugerida. 67 Reproduzimos a nota de Jos Cavalcante de Souza: No grego axynetoi, literalmente que-no-se-lanam-com, i. e., que no compreendem 68 Reproduzimos a nota de Jos Cavalcante de Souza: No grego lanthnei, do mesmo tema de lthe (= esquecimento), que forma a-ltheia (lit. no-esquecimento) = verdade. Cf. fragmento 16 69 PESSANHA, Jos Amrico Motta (Org.). Pr-Socrticos: vida e obra. Traduo de Jos Cavalcante de Souza et. al. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2000. (Os Pensadores), p. 87 70 Original: 71 Original:
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somos em parte deuses; quer ainda de acordo com Aristteles: o homem dotado de logos; fato
que o logos em ns.
Mesmo que esse logos nos fuja, devemos segui-lo72. Herclito fala mesmo em seguir, o
que pressupe um caminho, exatamente o que falamos antes. Ressaltamos aqui apenas a
importncia desse fugir do logos. Heidegger73 usa o fragmento 123 de Herclito, Natureza [Phsis]
a ama esconder-se74, firmemente em sua anlise.
Do que falamos quanto unidade de Deus, isto , o monotesmo evidenciado em Isaas,
Herclito, mais uma vez, muito se aproxima. comum, em especial aos pr-socrticos, a busca pelo
Uno, isto , a busca por aquilo que est em todas as coisas, a busca pelo princpio nico, pela
substncia simples, buscada na Modernidade. sabido que, para Herclito, esse princpio o fogo75.
Convm ressaltarmos o fato de o Seer, isto , a Unidade, o que est no quente e no frio, para o
cristianismo, como aqui lemos, Deus, o buscado por Herclito. O fragmento 10 bem claro nesse
sentido (no o nico): Conjunes o todo e o no todo, o convergente e o divergente, o consoante
e o dissoante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas76. Assim, dia e noite so uma s
coisa77; mais: O deus dia noite, inverno vero, guerra paz, saciedade fome (fragmento 67)78;
tudo um79.
Organizemos a exposio. Propomos aqui o pensamento de equiparao entre seer no
sentido heideggeriano e Deus no sentido cristo. Colocamos em questo agora o Logos heraclitiano.
72 Cf. fragmento 2. 73 Ver: HEIDEGGER, Matin. Aletheia (Herclito, fragmento 16), In: ______. Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel e Marcia S Cavalcante Schuback. 8 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012a. (Coleo Pensamento Humano). p. 183-203, p. 240 . 74 (Phsis kryptesthai philein). Carneiro Leo traduz de maneira menos literal, mas com importante significao: Surgimento j tende ao encobrimento, in HERCLITO. Fragmentos: origem do pensamento. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. 75 Fragmento 30: Este mundo [ksmos], o mesmo de todos os (seres), nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, e sempre ser um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas Original: , , , ' , 76 Original: , , 77 Cf. fragmento 57: Mestre da maioria Hesodo; pois este reconhecem que sabe mais coisas, ele que no conhecia dia e noite; pois uma s (coisa). Original: , . O mesmo no fragmento 106: Com razo Herclito consurou Hesodo por fazer uns dias bons e outros maus, dizendo que ignorava como a natureza de cada dia uma e a mesma. Original: , , , . 78 Completo: O deus dia noite, inverno vero, guerra paz, saciedade fome; mas se alterna como fogo, quando se mistura a incensos, e se denomina segundo o gosto de cada. Original: , , , ( ), (), . 79 Fragmento 50: No de mim, mas do logos tendo ouvido falar sbio homologar tudo um Original: .
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O termo, contudo, j havia sido citado. Como expusemos, Joo comea seu prlogo falando do
Logos: (en arkh n o logos). Aqui temos dois termos que merecem nossa
ateno: arkh a famosa palavra grega para princpio80, origem. Este a mesma frase do comeo
do Gnesis. Citamos apenas en passant para mostrar a preocupao em comum entre Joo e os
primeiros filsofos gregos. Em seguida vem nosso real objetivo: . Heidegger escreve um
ensaio dedicado explicao desse termo em Herclito81. O texto denso, mas contm algumas
informaes que suportam nossa tese aqui apresentada.
Herclito, em seu fragmento 32, diz: Uma s (coisa) o sbio no quer e quer ser recolhido
no nome de Zeus82. A traduo aqui pode no ficar muito clara. Herclito comea referindo-se ao
, (en), que propriamente o Uno. Assim, uma s (coisa) foi a opo para se referir ao Uno, de
que falamos acima. A dvida que aqui surge : Herclito aqui equipara o Uno, isto , o Logos, a Zeus?
Heidegger diz que no. Segundo sua leitura, o Uno maior. Dentro do Uno, h entes (neste texto,
em vez de entes Heidegger fala em vigentes). Zeus o mais alto deles. H, contudo, uma partilha
(moira). Assim, conclui, Zeus no , em si mesmo, o "E, embora, dirigindo com o raio, cumpra e
realize os envios do destino83. "E, portanto, no aceita ser chamado de Zeus. Zeus um ente entre
outros, mesmo que esteja acima de qualquer outro. "E est acima at mesmo de Zeus. Essa a
mesma leitura que Heidegger faz do Deus cristo84.
Para Heidegger, e ele parece estar correto em sua anlise, h um Logos superior at mesmo
s divindades, de acordo com a viso grega. Contudo, pouco antes, Heidegger conclui: essncia do
acenaria, pois, para a deidade de Deus85. Se sairmos do mundo grego, isto , se
desconsiderarmos Zeus e colocarmos em seu lugar o Deus cristo, o entendimento pode ser outro.
Apenas conjecturamos aqui, sem nada afirmar. Se entendermos o Deus cristo como um ente,
80 Para uma reflexo sobre o termo, ver: HEIDEGGER, Martin, A essncia e o conceito de em Aristteles Fsica B, 1. In ______. Marcas do caminho. Trad. de Enio Paulo Giachini e Ernildo Stein. Rev. da trad. Marco Antnio Casanova. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008. (Coleo Textos Filosficos), p. 251-314, p. 259. 81 HEIDEGGER, Martin, Logos (Herclito, fragmento 50). In ______. Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel e Marcia S Cavalcante Schuback, 8 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012a. (Coleo Pensamento Humano). p. 183-204. 82 Original: . 83 HEIDEGGER, Martin, Logos (Herclito, fragmento 50). In ______. Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel e Marcia S Cavalcante Schuback, 8 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012a. (Coleo Pensamento Humano). p. 183-204, p. 198. 84 HEIDEGGER, Martin, Ser e verdade: a questo fundamental da filosofia; da essncia da verdade. Trad. Emmanuel Carneiro Leo. Rev. Renato Kirchner. 2 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012, p. 65. 85 HEIDEGGER, Martin, Logos (Herclito, fragmento 50). In ______. Ensaios e conferncias. Traduo de Emmanuel Carneiro Leo, Gilvan Fogel e Marcia S Cavalcante Schuback, 8 ed. Petrpolis, RJ: Vozes. Bragana Paulista, SP: Editora Universitria So Francisco, 2012a. (Coleo Pensamento Humano). p. 183-204, p. 196. Original: Das Wesen des gbe so einen Wink in die Gottheit des Gottes.
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mesmo sendo ele o maior dos entes, ele estar abaixo do seer. Os gregos no pareciam se opor a
esse entendimento. O Deus cristo, por sua vez, no parece ser correspondente com essa viso.
Como vimos, na Bblia, fica bem claro que Deus um s e no h nada acima dele. Temos duas
opes: ou consideramos que o Deus cristo como Zeus e assumimos que os cristos no viram ou
negligenciaram o seer, ou subimos o nvel de Deus ao de Seer, de modo que ele no mais um ente.
Esta ltima parece a opo mais coerente.
Concluso
Este artigo tem uma pretenso muito mais especulativa que propriamente doutrinar.
Lanamos luz a uma relao que nos parece possvel: entre a leitura que Heidegger faz dos escritos
gregos e a Bblia crist. Se aceitarmos essa viso, muitas concluses podem ser tiradas. A influncia
da filosofia grega no cristianismo, dentro de seu prprio livro sagrado, j muito debatida, pode se
tornar ainda mais evidente. Uma releitura de muitos entendimentos na histria da ontologia pode
surgir. Ficamos com o benefcio do estmulo que a ideia nos oferece.
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