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Ausência, silêncio e morte: a nação impossível na obra A menina morta, de Cornélio
Penna
Maria Ângela de Araújo Resende - UFSJ
Introdução
Em 1976, Luiz Costa Lima publica A perversão do trapezista – o romance de
Cornélio Penna, no qual dá ênfase à obra A menina morta e deixa claro, na Introdução, a
necessidade de falar a partir de uma posição teórica que, segundo ele, não se resume em
"estrutural, neo-estrutural ou o que seja" (p. 11). Entretanto, considerando-se a natureza do
método, e mesmo alertando para o perigo dos rótulos, Costa Lima se vale do binarismo como
um dos procedimentos de análise, partindo dos modos de representação do masculino e do
feminino e suas trocas simbólicas nos espaços onde se desenvolve a trama. Para isto,
contrapõe ao Grotão - incluindo a fazenda autárquica, os campos cultivados e a floresta que a
cerca - a Corte, urbana e europeizada, traçando um desenho espacial marcado pela dicotomia
entre os caminhos que partem da casa-grande. Um deles, o caminho da Corte, signo do
caminho do masculino, se constitui através das personagens: o Comendador, o Barão, um dos
filhos dos senhores, que, após um breve retorno, abandona o Grotão e passa a viver
definitivamente na Corte. O outro, o caminho da clareira, metaforizando o caminho do
feminino nas figuras de Mariana, a menina morta e Carlota. Se levarmos em conta essa
relação, poderíamos nos valer de um plano histórico e de um plano mítico que irão dar
sustentação, em parte, à proposição do autor, uma vez que ele estabelece um sistema de
oposições entre natureza e cultura. O espaço da mata também funciona como contraponto ao
espaço da fazenda e de seus moradores, também eles divididos, hierarquicamente: o Senhor e
a Senhora, as parentas agregadas (D. Virgínia., D. Inacinha, Sinhá Rola e Celestina) o
administrador português, a governanta alemã, os escravos de dentro e os escravos de fora, e
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são elementos importantes para identificarmos a passagem do real ao simbólico e dos
fantasmas expressos nas formas de interdição.
Pretendendo localizar, historicamente, a matéria narrada, que chamará de "tempo
real", Costa Lima destaca os referentes espaciais e temporais presentes no romance - o Rio
Paraíba, os trilhos de ferro ao pé da serra, mais tarde a Estrada de Ferro Mauá e a Vila de
Porto Novo - de tal maneira que, fazendo as devidas aproximações históricas, demarca o
desenvolvimento da ação entre os anos de 1867 e 1871, portanto, anos antes da abolição da
escravatura e período da agricultura cafeeira.
Wander Mello Miranda (1997) destaca algumas questões fundamentais no romance de
Cornélio Pena: o silêncio e a linguagem em dobras, a morte como signo disseminador de
sentidos, o histrionismo e a loucura, o ritual da devoração que inclui três vítimas expiatórias: a
menina, Florêncio e Carlota, o casamento, que seria o signo de vida e continuidade, tanto para
Carlota como para o Grotão, revelado como signo de morte para ela e a fazenda. Abre
caminhos para pensarmos o resgate da herança do passado, onde se localizaria o processo de
formação de nossa nacionalidade, que o período escravocrata traduz sob a forma de violento
dissenso. Diz ele:
(...) Cornélio Penna não só estaria problematizando a pretensa unidade que nos constituiria enquanto nação, mas assinalando a permanência de um conflito não sanado na origem e que, sob a forma de um fantasma desagregador, continua a nos assombrar e a nos manter exilados no passado, como num pesadelo que não parece ter fim. (Miranda, 1997: 482).
Assim, parece–nos pertinente discutir e ampliar algumas questões levantadas por Costa Lima
quanto à relação natureza e cultura, que vise uma linha interpretativa da seguinte ordem:
privilegiar aspectos da narrativa que expressem o desejo de fundação da nação e sua
representação, tentando conciliá-los com as questões levantadas por Melo Miranda, ou seja, a
herança do passado como (im)possibilidade de formar a nação. Afinal, qual (ais) seria(m) o
fantasma(s) desagregador (es) que permeiam as dobras e os silêncios deste texto?
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Em busca da nação
Ao lançar A menina morta aos leitores brasileiros em 1954, poderia se pensar que
Cornélio Penna estaria na contramão do processo modernizador pelo qual o Brasil passava,
ao colocar em cena uma obra que, entre outros temas, também falasse da escravidão.
Considerando-se o a onda desenvolvimentista dos anos 50, o momento anunciava o desejo de
uma identidade que se pautasse na modernidade e no progresso. Seria, então, possível,
buscar uma origem que traduzisse o desejo de pátria, já que o autor de Fronteira construiu um
texto privilegiando a subtração na origem, da qual Bhabha nos fala (1998, p. 225), cunhando
personagens desterritoralizadas, que, através de sua "meia-língua" metaforizam as margens e
o despaisamento e cujas identidades não podem ser compartilhadas? Qual seria o discurso
que daria corpo e voz à nação imaginada, uma vez que a narrativa se constrói mais pelas
“reticências e cochichos incompreensíveis”(p.37), pelas "cogitações estéreis dos moradores
do Grotão" (p. 155) e por "palavras balbuciadas" (p.199)? Reticências e lacunas que
atravessam o sussurro dos escravos, as histórias contadas pelas negras, interrompidas pelo
medo e sobressalto, os balbucios e murmúrios das parentas pobres e agregadas, sempre se
esgueirando pelos quartos e corredores, o silêncio/presença perturbadora da menina-morta e a
quase incomunicabilidade dos senhores, materializada nas figuras de Mariana e do
Comendador. Além disso, a voz que conduz o texto pertence a um narrador atento aos
detalhes, à extrema hierarquização e à ritualização da vida cotidiana na fazenda, mas cuja
precisão microscópica é traída pela indefinição produzida pelos jogos de luz e sombra, o que
evidencia um tipo de saber "não sabendo". Em outras palavras, esse narrador estaria mais na
direção de um não-saber, tragado pela indecibilidade de sua também "meia-língua", pois nem
o leitor nem as personagens encontram respostas para os fatos acontecidos, envolvidos por
um passado de neblinas: "... não vamos porque não sabemos de nada, nem procuramos
saber” (p. 216) “- Ninguém me diz nada nesta casa! E não compreendo o que dizem...” (p.
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238). Se, por um lado, o narrador é capaz de chegar ao saber e à lembrança quase exata da
letra em alto relevo gravada numa caixa, dos dísticos bordados nas cambraias de linho ou do
"... balde de porcelana verde com medalhões onde se viam castelos medievais..." (p. 210), por
outro não oferece a chave de um mistério indecifrável e interdito. A linguagem narrativa,
aparentemente lenta e sinuosa, marcada pelo signo das minúcias e pelo esforço metonímico,
encobre o silêncio e a falta que atravessam as personagens.
O narrador faz falar os objetos, atentando para o detalhamento da casa-grande e seus
amplos espaços interno e externo, os telhados e janelas, os corredores, os móveis duros e
severos, os cofres, escrínios, armários e gavetas, as roupas, os candelabros, leques e xales,
caixinhas de música, a cozinha e despensa, as comidas, seus cheiros e sabores, as latas de
biscoito, os objetos provenientes da “Velha Europa e da Índia”. Narrando a ritualização e a
organização da vida cotidiana , revela os hábitos dos moradores da fazenda e sua disposição à
mesa, nos horários das refeições. A descrição da oração diária revela a hierarquia imposta
àquela comunidade, todos dispostos de acordo com sua importância no complexo patriarcal:
senhores, parentes agregados, governanta, administrador, feitores, médico da enfermaria e
médico do Partido, mucamas, mulatinhas de dentro, escravos na senzala e escravos nas
plantações. Entretanto, “aquele enorme organismo ... movido com a regularidade dos
cronômetros” (p. 225) encobre ressentimentos e hostilidades e revela silêncios e rasuras. Se
existe uma língua pedagógica que faz falar os objetos, o territórios e os hábitos daquela
comunidade que, de certa maneira, poderiam servir de mote para a questão identitária, essa
mesma língua é suplantada pelo não-dito, pelo mistério e terror que potencializam a violência
do não-saber sobre um passado insepulto, sepultamento análogo ao mistério que permeia a
morte da menina e de Florêncio e o desaparecimento súbito de Mariana. O narrador, ao se
referir à hesitação das escravas, com sua meia-língua :
"a mais velha delas (...) dizia com voz sibilante e atropelava as palavras em estranha algaraviada de palavras africanas e portuguesas"(p. 78)
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experimenta, também, a hesitação como marca textual, portanto, contrária à forma
totalizadora e totalizante de se pensar a fundação. Ao presidir o réquiem deste corpo-texto
vivo, morto-vivo, em aflição, cheio de dúvidas, vagando entre vultos e sombras, luz e trevas,
testemunha a desconstrução, a desagregação e a ruína do mundo patriarcal - “a melancolia do
nosso patriarcalismo”, de acordo com Costa Lima, portanto, a falência de um projeto
fundador. Por que falência? A perspectiva do plebiscito diário pareceria viável, se as
fronteiras internas estabelecidas nesse mundo patriarcal pudessem propiciar espaços de
identidades a serem compartilhadas e negociadas. Entretanto, o que se verifica é a negação de
uma possível unidade social, marcada pelas hostilidades, ressentimentos e ódios que
permeiam as personagens, que se movem e convivem naquele organismo.
Lembrar para esquecer? Estaria esse esquecer na direção do "estranho esquecimento"
da história do passado da nação que envolve a violência envolvida no estabelecimento dos
seus escritos, conforme postula Ernest Renan (2000), apontando para a compreensão de um
passado que possa indicar a construção do presente e do futuro? O que se observa é a
configuração de um mundo espectral, onde os vultos e sombras sugeridos também formam os
fantasmas passados que impedem o saber de Carlota. Através de Carlota, poderia o narrador
suscitar-nos a seguinte pergunta: o que fizeram do nosso passado?
Em busca da voz
Um ponto que serve de baliza para a minha leitura é a “radicalidade com que o
romancista se entregava à tarefa de fazer falar o que não tem voz e que, a custo, emergia
como alteridade constitutiva de sua escrita” (Miranda,1997: 472). Duas coordenadas aqui se
inscrevem: 1. a fala dos que não têm voz metaforizada na meia-língua do estrangeiro (Frau
Luiza, o administrador português) do negro, dos serviçais e das parentas "que deviam viver
como sombras", funcionando como um certo tipo de exílio: "Tudo lhe parecia inimigo e hostil
nessa fazenda tão grande onde a tratavam como estrangeira” (p.109); 2. como essa
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alteridade é representada pelo texto, uma vez que a matéria narrada em detalhes e com vigor
descritivo, evidencia um narrador escorregadio, hesitante e também irônico, a ironia aqui
tomada, principalmente, pela visão desconstrutora do mundo patriarcal. O dissenso do qual
fala Melo Miranda ratifica, então, a quebra de uma representação homogênea de pátria, uma
vez que Cornélio Penna, ao se valer do período escravocrata para uma possível interpretação
da nação, põe em xeque as formulações de Gilberto Freyre quando o sociólogo apresenta a
convivência quase pacífica entre casa-grande e senzala e o intercâmbio étnico para explicar a
formação da identidade nacional.
No ensaio O fado tropical de Gilberto Freyre, Stélio Marras (2000), assinala que o
ponto focal que norteia a obra freyriana quanto às relações entre casa-grande e senzala, "raiz
do complexo patriarcal", origina suas marcadas impressões reconhecendo a virtude da
empresa colonial portuguesa e grafando de otimismo a experiência da mestiçagem, "esta que
fundou a maior civilização moderna nos trópicos". (CG&S). O que se verifica n'A menina
morta é uma permanente tensão e conflito entre os membros da comunidade patriarcal: os
moradores da casa-grande não se entendem, as parentas agregadas disputam pequenos restos
de consideração dos senhores: "- ... Acho que só nos duas nos alegramos realmente com a
chegada de Carlota. Essas duas acreditam estar em campo de batalha... "(p. 207); as
escravas, esquecendo-se de sua condição de "des-lugar", brigam entre si por reconhecimentos
que não existem; os serviçais estrangeiros, nostálgicos da terra natal, tentam encontrar o seu
locus, perdidos "... em certo rincão selvagem em plena América, nesse mundo ainda na
infância" (p. 194) e Florêncio, o escravo mestiço, aparece misteriosamente enforcado,
desconstruindo a experiência otimista da mestiçagem. Longe de nos esquecermos do
entendimento da nação como narração, é possível creditar A menina morta na fatura de obras
que buscaram interpretar o Brasil? Como isto se opera?
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Origens
A busca da origem e o desejo de traduzir a nação são tomados pela via do feminino,
se levarmos em conta a opção do autor em estabelecer a relação cultura/natureza que vai
tomando corpo pela via do mítico. A personagem Mariana, nomeada pelo narrador "Senhora",
mãe da menina morta e de Carlota, não amamenta. A função materna é delegada à ama negra,
que, por sua vez, é orientada por D. Virgínia, uma das primas do Comendador, que exerce o
poder dos senhores na ausência de ambos. Arriscaríamos dizer que essa personagem poderia
representar um elemento de negociação entre os dois mundos descritos por Costa Lima: o
masculino e o feminino, uma vez que, desde o início da narrativa, ela opera e interfere nos
dois espaços, funcionando como elemento ordenador e regulador. O leite/vida da raça negra
se destina à manutenção da criança branca, o que possibilitaria a promessa do futuro:
Sabia manter-se impassível diante da ama jovem e robusta, a amamentar a filha dos senhores em um espetáculo magnífico e despudorado de tamanha maternidade e toda a sua importância se traduzia apenas por observações rápidas e secas que lhe fazia, orientando-a em suas funções, nas quais a negra era apenas guiada pelo instinto animal, soberbo e vencedor”(p. 74) Ainda se vê ser menina destinada a tornar-se mulher robusta, capaz de ter muitos filhos e fundar outra fazenda maior que esta! (p.15) (grifos meus)
Valendo-se de uma imagem extremamente plástica, uma das marcas do texto corneliano, o
narrador descreve a ama jovem e robusta e seu instinto animal e vencedor no cumprimento
de suas funções, quer para a morte, quer para a vida. Imagem em estado bruto que ratifica a
marca do instinto sobrepondo-se à razão, esta representada pela voz que procurava orientar,
desnecessariamente, o ato. Imagem que lembra também um quadro de Frida Khalo, de 1937,
intitulado A minha ama e eu, e que nos interessa à medida que a artista plástica mexicana
também se pautou em registros auto-referentes que traduzissem, através de suas pinturas, a
sua busca identitária. Uma operação de deslocamento é efetuada: uma "falsa" mãe cuja
maternidade também não lhe pode ser negada - sobrepõe-se à função da mãe legítima: a
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senhora branca. Se a metáfora de pátria-mãe é uma idéia supostamente tomada pela via do
feminino, aqui ela não encontra eco, pois a legitimidade do ato é esvaziada, uma vez que o
corpo da mãe não existe para a sociedade escravocrata. Se o corpo que gera não existe, algo
tem que substituí-lo, daí a possibilidade de se pensar a alteridade como uma categoria
analítica. Em outras palavras, o dissenso se instala à medida que a diferença já é posta como
única alternativa viável para compreendermos a violência na origem. Violência porque a ama
negra, responsável pela manutenção da vida do sujeito, ou seja, a criança e a futura mulher
capaz de fundar e manter a linhagem, também é um não-sujeito. Portanto, permanece a
lacuna: como compatibilizar a fundação e manutenção da linhagem pelo suplemento, o menos
um de que fala Derrida? Abre-se aqui uma perspectiva, ainda sem resposta: seria, então, o
caso de se pensar a nação pela via do mítico, abolindo-se a história e a cultura?
Tomada a relação pátria e mãe, anula-se o ponto de pertencimento ou poderíamos
pensar na criação de um entre-lugar, como diz Bhabha (1998), levando a se produzir um
"novo signo de identidade" (p. 20). Por outro lado, a citação posterior traduz a "ferida de
origem": diante do corpo sem vida, o prenúncio de uma morte futura, já anunciada: o fim da
manutenção da linhagem e da prosperidade econômica. Desta forma, podemos nos valer da
idéia de mito fundador descrito por Chauí (2000): além do sentido etimológico e
antropológico do termo, está relacionado à fundatio, impondo um vínculo interno com o
passado como origem, isto é,
"...com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal". (Chauí, 2000: 9)
A voz da personagem tenta, em vão, assegurar uma origem já desintegrada desde o seu
começo. Se, de acordo com Chauí, a fundação, diferentemente de formação, vise algo como
perene (quase eterno) - daí a perspectiva mítica - encontramos no texto tentativas frustradas
de atribuir a fundação, continuidade e manutenção da fazenda autárquica - sob os auspícios da
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representação masculina - à mulher, metaforizada no par menina morta/Carlota. Morta a
menina, Carlota abandona a Corte e retorna ao Grotão para garantir a vida e a continuidade,
através do casamento, referenciado como um projeto e um negócio entre as partes
interessadas. A personagem seria, então, o signo da realização da promessa do futuro. Assim,
sob a perspectiva masculina, representada pela voz de seu pai, o retorno de Carlota
funcionaria como a boa-nova, o espírito novo que vem para unificar (Atos, 2-1-13) e realiza,
às avessas, a metáfora da meia língua que parece ser substituída pelo entendimento e pela voz:
“... – Tenho a dizer-lhes que minha filha mais velha chega amanhã (...) Creio ser essa uma boa notícia... Levantou-se logo respeitoso rumor de alegria e de aprovação, e imediatamente as línguas se desataram, entabulando-se uma conversação geral...” (p. 206) (grifos meus)
No capítulo XIX, também se observa o desejo de encontrar uma origem quando, pela
voz da escrava Libânia, se ouve :
"Eu sozinha é que sou a ama da menina. Começa porque sou a única que sabe onde está enterrado o umbigo dela. (...) via-se que se confessavam vencidas, na absoluta ignorância em que se encontravam desse local sagrado (...) - Fiquem sabendo onde sei perfeitamente onde ele foi enterrado, pois quem o enterrou fui eu! Está debaixo de uma roseira que fica no canto do jardim da sala de visitas e marquei com uma pedra que lá está até hoje, pois não deixo ninguém mexer nela! (p. 78-79) .
A autoridade da negra Libânia - a escrava que criara a menina morta - é disputada pelas outras
negras e cafusas, diante do corpo sem vida. O local sagrado - lugar da vida e da morte - é
escolhido e demarcado por um outro, a negra Libânia, que, de objeto/escrava, seria elevada à
categoria de escrava alforriada. Entretanto, diante da morte e da impossibilidade do acesso ao
funeral da menina, nega a condição de sujeito livre e, num ato de revolta, rasga a sua carta de
alforria, o que poderia ser interpretado como uma rasura na origem. O umbigo, cuja
representação simbólica aponta para o centro do mundo, fonte e ponto de retorno à origem
(Chevalier & Gheerbrant, 1994, p. 659) poderia nos levar a pensar, paradoxalmente, também
na idéia do desterro. Uma vez ali enterrado, simbolizaria a vida continuada. Morta a menina, a
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sua ausência demandaria um outro, Carlota, que poderia ser prefigurada como seu duplo. A
menina morta teria, então, uma substituta, que realizaria a promessa do futuro:
“eu... eu julguei... eu me lembrei da menina morta, pois me parecia ser ela a nhanhãzinha de volta agora grande, moça e bonita...”
Entretanto, desterrada e exilada do seu passado, não pertence. Não se sabe. O que seria
oposição vida/morte acaba por se transformar numa relação complementar, isto é, a alteridade
mencionada se revela em duas direções: a ritualização da morte e a manutenção da vida
seriam viabilizadas por essas vozes despossuídas, pois os preparativos do corpo da menina
morta são feitos pelas serviçais, que cumprem funções a eles delegadas, assim como a função
de amamentar. Rictus de uma morte (ou de outra morte) já anunciada?
Se a origem é evocada pela via do feminino, o patriarca como origem também é
trazido à cena pelo narrador:
“O sol batia em cheio na sua figura rude e ele parecia a estátua de proa da grande nave constituída pela fazenda enorme, pesadamente espalhada, com os mastros erguidos das palmeiras a agitar suas flâmulas aos ventos. Aquela presença masculina, poderosa e forte, fonte e origem em potência de muitas vidas, que viriam ao mundo ricas de seiva e se multiplicariam pelos séculos, era bem a do patriarca dominador de todo aquele grupo de homens e mulheres, era o tronco da árvore sem medida cujos galhos se reproduziriam sem cessar. (p. 261) (grifos meus)
Mais uma vez, o tempo imemorial e mítico aqui se concretiza, através da narração bíblica: a
árvore dos bons frutos a se multiplicarem, fundando comunidades imaginadas, num tempo
que não cessa nunca. Entretanto, da mesma forma que Carlota se recusa à continuidade, o
Comendador parte para a Corte e de lá não retorna, acometido de doença e morte, sem
explicação. Essa origem supostamente localizada se revela ainda pelas histórias contadas por
uma negra anciã, quando pretende explicar a formação da família Albernaz:
“... Sua fazenda era Canaã ... conhecera os senhores que tinham sido avós de toda a enorme família Albernaz... sonhara ser a bela senhora, em sua fazenda que era toda a antiga sesmaria da serra concedida ao antepassado, cercada da adoração dos dez filhos e dos numerosos escravos e tudo crescia em torno dela, os filhos, a riqueza e o poderio... Tudo era abençoado e farto naquela casa, e os filhos de longas barbas curvavam a cabeça diante do pai, beijavam-lhe as mãos e obedeciam como meninos” (p. 112)
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Num primeiro momento, o enunciado confunde o leitor, com a crença da Terra Prometida.
De acordo com o relato bíblico, Josué, ministro e sucessor de Moisés, é apresentado como
líder da conquista e da instalação das tribos de Canaã (Josué, I). Duas questões ficam claras
no Livro de Josué: a posse da terra e a sua instalação pelas tribos, fundando nações. Ao falar
dos antepassados do Comendador, Dadade, nomeada pelo narrador de anciã, (e, também não
é por acaso que, somente depois de morta, seu nome é pronunciado “Felicidade”, por outro
ancião, o Senhor Manuel Procópio.) detentora, em sua meia-língua das histórias da família,
conta um passado feliz e que anunciava a prosperidade. Note-se que a voz que “traduz” a
memória desse passado é uma voz desautorizada, ratificada, também por sua indecibilidade.
Mas a utopia desse passado como origem, essa promessa de nação encenada, é desmascarada
pela violência. Aquilo que seria motivo lúdico para a inocência da menina – os maus tratos
dos escravos – torna-se chave para a lucidez/loucura de Carlota:
"(...) lembrou-se então das terríveis lendas que cercavam a fazenda da serra, as histórias contadas sobre a crueldade dos antigos senhores e estremeceu ao pensar no quadro de beleza serena, de formosa prosperidade que a velha paralítica sempre descrevia. Não era possível combinar a negra sem cara e toda aquela opulenta bondade que tudo transformava em riqueza e alegria. (p. 115)
O passado promissor, configurado pela opulência é desestabilizado, gradualmente no
texto:
A fazenda era enorme e rústico palácio, fortaleza sertaneja do senhor feudal sul-americano, e tudo ali era grande e austero, de luxo sóbrio e magnífico, mas era preciso viver naquelas salas amplas, de tetos muito altos e mobiliadas com móveis que pareciam destinados a criaturas gigantescas, sem contar com alguma coisa de certo nem no presente nem no futuro (p. 109) (grifos meus)
Inscreve-se aí algo de mítico, tempo em suspenso, que vai sendo disseminado ao longo da
escritura. A idéia do senhor feudal sul-americano opõe-se ao projeto modernizador, uma das
marcas do final do século XIX, referenciado na narrativa. De um lado, o rústico palácio se
mantém com as últimas novidades da Europa: objetos, roupas, comidas e as revistas que
chegavam do Velho Mundo. Do outro, como fortaleza sertaneja, se protege dos ares
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modernizadores que poderiam fazer ruir a idéia totalizante de fazenda autárquica,
materializada na voz do Comendador: o pai, o protetor, o patriarca, mas também, o
dominador:
O Brasil é muito vasto... e o nosso Império é um colosso formado de pequenos pedaços mal ligados que deixam inúmeras fendas entre eles. Qualquer gota d'água, qualquer sopro, se infiltra nessas fissuras e dificilmente se evaporam... Assim é que o ouro da Califórnia com sua aparição súbita veio até nós perturbar os nossos mercados, e a alta de certos artigos, como a baixa dos outros, nos trouxe um desequilíbrio que ainda nos prejudica” (p. 140)
No fim, o silêncio
Carlota desterrada e exilada de seu passado e presente. O ponto de pertencimento é
desvanecido em sua busca desenfreada de si mesma e de suas origens. Indagações sobre
retratos, cartas, marcas materiais e testemunhas do vivido. Carlota metaforiza, então, a
impossibilidade da constituição da nação pelas vias do sacrifício e do dissenso. Na contramão
de Gilberto Freyre, que postula a pátria a partir da unidade da família, Menina Morta
representa um projeto falido de uma nação encenada sob um jogo de máscaras.
“E assim tudo continuava em sua aparência habitual, mas havia um princípio de desagregação, de ruína e desmoronamento que todos suspeitavam, e olhavam para o dono da casa como o único capaz de salvá-los, de tornar fazer reviver e galvanizar aquele grande corpo que lhes parecia agonizante, agitado pelo trabalho subterrâneo da morte”(p. 81)
Se a menina morta, promessa do futuro, é um projeto sequer iniciado por sua morte
prematura, Carlota, seu duplo, com passagem pela corte europeizada, também rejeita a sua
condição de redimir o Grotão das feridas de origem. O seu não saber aponta, então, para a a
morte e a loucura.
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