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SEÇÕES OLHO VIVO E ANÁLISE DE IMAGEM: DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES ENTRE ENSINO DE HISTÓRIA E HISTÓRIA DA
ARTE
Jaqueline Santos Sampaio
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação UFRGS
Linha de Pesquisa: História, Memória e Educação
Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
RESUMO: A presente investigação propõe analisar os boxes textuais que acompanham
vinte e cinco reproduções de pinturas, encontradas nas seções Olho Vivo e Análise de
Imagem, ambas pertencentes a duas coleções de livros didáticos de História para o
Ensino Médio, coleção História em Movimento (AZEVEDO; SERIACOPI, 2014) e a coleção
Oficina de História (CAMPOS; CLARO, 2015), respectivamente. Ao se caracterizarem como
espaços que utilizam fontes visuais para o ensino de saberes históricos, busca-se
compreender de que modo essas seções promovem a interdisciplinaridade entre os
campos do Ensino de História e História da Arte, bem como interpretam e criam
sentidos para as reproduções de pinturas selecionadas. Para desenvolver essa pesquisa,
situada nos campos do Ensino de História e Educação, serão utilizadas técnicas da
Análise Textual Discursiva.
Palavras – Chave: livro didático de História, reproduções de pintura, Seção Olho Vivo,
Seção Análise de Imagem.
INTRODUÇÃO
Os livros didáticos se caracterizam por serem materiais pedagógicos
polissêmicos e multifacetados, repleto de possibilidades de pesquisa para àqueles que
desejam empregá-lo enquanto objeto de estudo. Apesar de ser um nicho descoberto
recentemente pelos pesquisadores do campo da História da Educação e Ensino de
História (CHOPPIN, 2004; GATTI JÚNIOR, 2004) destaca-se o aumento crescente de
investigações dedicadas aos livros escolares (CHOPPIN, 2004) em geral e aos livros
didáticos de história em particular (CAIMI, 2010 e 2015; FONSECA, 2003).
A pesquisa em andamento a ser apresentada, se situa em meio a uma
proliferação crescente de investigações sobre os livros didáticos. Refletindo sobre esse
aspecto, acabo por concordar com Cristiani Bereta da Silva, quando afirma que
já se disse tanto que ao iniciarmos uma leitura cujo objeto de discussão é o
livro didático, acompanha-nos certa sensação de déja vu. Ou seja, parece que
não há nada muito novo a ser dito sobre os livros didáticos, especialmente se
considerarmos os de História, talvez os mais pesquisados dentre os
pesquisados (2007, p.220).
Partindo desse horizonte, alguns questionamentos acabaram por me acompanhar
durante a formulação da presente investigação: é possível realizar um estudo sobre o
livro didático de História inovador? Existem ainda assuntos a serem debatidos a partir e
sobre o livro didático de História? Há ainda perguntas que devam ser feitas e
problematizadas, e que por outro lado, mereçam ser respondidas? Como não provocar
(ou diminuir) essa sensação de déja vu descrita por Bereta da Sila e tornar a pesquisa em
livros didáticos, tanto para aquele que a realiza quanto para o leitor final do estudo, um
assunto pertinente e instigante? Por que ainda se faz necessário empreender pesquisas
sobre livros escolares?
Embora eu não tenha ainda respostas sobre tais questionamentos, são essas
indagações que me estimulam a prosseguir com o estudo proposto, uma vez que as
percebo enquanto provocações para que eu encontre maneiras diferentes de construir
uma pesquisa em livros didáticos de História. Longe de perceber tais indagações como
barreiras ou obstáculos, acredito que a busca por respondê-las possa suscitar em uma
pesquisa que, se não totalmente inovadora, possa trazer visões renovadas sobre um
aspecto em especial que muito me instiga e relaciona-se com as seções Olho Vivo
(2014) e Análise de Imagem (2015): a presença de imagens em livros didáticos de
História, e especialmente as imagens oriundas do universo artístico.
ENTRE LIVROS DIDÁTICOS E REPRODUÇÕES DE PINTURAS
A presente pesquisa busca analisar os recursos textuais que acompanham vinte e
cinco reproduções de pinturas das seções Olho Vivo (2014)1 e Análise de Imagem
(2015)2, presentes nas coleções didáticas de História para o Ensino Médio, História em
Movimento (AZEVEDO; SERIACOPI, 2014) e Oficina de História (CAMPOS;
CLARO, 2015). Entre os objetivos dessa proposta, que se situa no campo do Ensino de
História e da Educação, destaca-se compreender de que forma essas duas seções
articulam saberes históricos em diálogo com outra área do conhecimento, nesse caso,
com os campos da Arte Visual e História da Arte.
Os interesses que movem essa investigação partem da compreensão do livro
didático enquanto documento capaz de fornecer, por intermédio das problematizações
trazidas pelo pesquisador, conhecimento sobre os contextos educacionais, políticos e
culturais nos quais se encontram inseridos. Nesse sentido, entendo o livro didático
enquanto documento fabricado socialmente (LE GOFF, 2003), resultante “do esforço
das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente -
determinada imagem de si própria” (LE GOFF, 2003, p.538).
Enquanto documentos, os livros didáticos se caracterizam por contribuírem na
formação dos saberes escolares, tanto por se apresentarem como espaço destinado aos
1. Pinturas da Seção Olho Vivo (2014): O casal Arnolfini, 1434, de Jan Van Eyck (1390-1441); Os
embaixadores, 1533, de Hans Holbein (1497-1543); O retrato da armada da Rainha Elizabeth I, 1588, de
George Gower (1540-1596); Sem título, [Ritual de Candomblé] 1967, de Djanira (1914-1979); Fundação
da cidade de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará, 1908, de Theodoro Braga (1872-1935); A lição de
anatomia do Doutor Tulp, 1632, de Rembrandt (1606-1669); A morte de Marat, 1793, de Jacques-Louis
David (1749-1825); Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808, 1814, de Francisco Goya (1746-1828);
Tiradentes Esquartejado, 1893, de Pedro Américo (1843-1905); Independência ou morte, 1888, de Pedro
Américo (1843-1905); A liberdade conduzindo o povo, 1830, de Eugène Delacroix (1798-7863); A
batalha do Avahy (1872-1877), de Pedro Américo (1843-1905); A Redenção de Cam, 1895, de Modesto
Brocos (1852 x 1936), Guernica, 1937, de Pablo Picasso (1881 – 1973) e Mural Sonho de uma tarde
dominical na Alameda Central, 1948, de Diego Rivera (1886-1957).
2 . Pinturas da Seção Análise de Imagem (2015): O combate entre o Carnaval e a Quaresma, 1559, de
Pieter Bruegel (1525-1569); Rainha Elizabeth I, 1592, de Marcus Gheeraests (1561-1636); A execução do
Rei Carlos I da Inglaterra (1600-1649) retratado por uma testemunha ocular, 1649, de Jhon Wessop
(não encontrado), O marquês de Pombal, 1766, de Louis-Michel van Loo (1707-1771); Consagração do
imperador Napoleão e coroação da imperatriz Josefine, 1805-1807, de Jacques-Louis David (1749-
1825); O peregrino sobre o mar de brumas, 1818, de Caspar David Friedrich (1774-1840); Simón
Bolívar, libertador e pai da nação, 1819, de Pedro José Figueiroa (1770-1838) e II Quarto Stato [o
quarto Estado], 1895-1896, de Giuseppe Pellizza de Volpedo (1868-1907).
conteúdos que devem ser ensinados e aprendidos - e a forma como tais conteúdos
devem ser ministrados e consequentemente apreendidos - quanto por serem materiais
didáticos que constituem e são constituídos por valores ideológicos e culturais
(BITTENCOURT, 2009; CHOPPIN, 2004).
Contudo, ao tratar de seções que se encontram em duas coleções didáticas que
circulam atualmente na rede de ensino pública e privada – válidas para o triênio 2015 a
2017, em consonância com o último Guia dos Livros Didáticos publicado para o Ensino
Médio - essa investigação trata ainda do livro didático enquanto documento situado no
tempo presente. Por essa razão, os livros didáticos selecionados se caracterizam ainda
por serem materiais inscritos na vivência escolar da atualidade, marcados “por
experiências ainda vivas, com tensões e repercussões de curto prazo” (DELGAGO e
FERREIRA, 2012, p.25), e por se organizarem enquanto documentos “inseridos nos
processos de transformação em curso” (DELGAGO e FERREIRA, 2012, p.25).
No que diz respeito às seções Olho Vivo (2014) e Análise de Imagem (2015),
algumas ponderações se tornam essenciais. Apesar do livro didático de História ser um
material pedagógico produzido para o ensino de saberes históricos, essas seções
utilizam fontes visuais que originalmente não foram criadas para serem trabalhadas em
situações didáticas (BITTENCOURT, 2008), o que torna necessário, para compreendê-
las, serem analisadas a partir de um viés teórico que esteja em consonância com suas
“características de linguagem e especificidades de comunicação” (BITTENCOURT,
2008, p.333). Tal aspecto determina que a presente investigação esteja aberta ao diálogo
constante com as áreas do saber em que essas reproduções de pinturas se fundamentam.
Como adverte Marcos Napolitano, no que diz respeito ao trabalho do historiador
com fontes audiovisuais e musicais, é preciso percebê-las “em suas estruturas internas
de linguagem e seus mecanismos de representação da realidade, a partir de seus códigos
internos” (2010, p.236). Esses cuidados com as particularidades das fontes audiovisuais
e musicais são aqui consideradas igualmente para as fontes pictóricas oriundas do
universo artístico, já que as reproduções selecionadas para essa investigação se
caracterizam por serem pinturas criadas no âmbito da arte.
Em frente a essas considerações, a presente pesquisa acaba se delineando como
um estudo interdisciplinar, procurando não apenas compreender a interdisciplinaridade
existente nas referidas seções - quando utilizam fontes visuais provindas do campo da
arte para o ensino de saberes históricos - mas também partindo de concepções teóricas
que visam compreender as seções Olho Vivo (2014) e Análise de Imagem (2015) por
intermédio de dois focos de abordagem – a partir da fundamentação teórica no campo
do Ensino de História e igualmente no campo da História da Arte.
SEÇÕES OLHO VIVO E ANÁLISE DE IMAGEM: PERCURSOS E
PROBLEMATIZAÇÕES
As coleções didáticas História em Movimento (AZEVEDO; SERIACOPI, 2014)
e Oficina de História (CAMPOS; CLARO, 2015) foram selecionadas a partir do contato
com o Guia de Livros Didáticos de História para o ensino médio - 2015, uma vez que o
critério inicial estabelecido era de que as obras didáticas estivessem em circulação na
rede pública de ensino. Dentre as dezenove coleções aprovadas no PNLD 2015 para o
Ensino Médio foi disponibilizado como doação - por intermédio do contato direto com
as editoras - seis conjuntos com três volumes cada um, referentes ao primeiro, segundo
e terceiro ano do ensino médio3. Além disso, obtive ainda a doação de mais quatro
conjuntos oriundos da versão para a rede privada4, já que as editoras alegaram não
terem disponível os exemplares referentes ao PNLD solicitado. Uma das editoras negou
o pedido e as demais não responderam aos contatos estabelecidos.
Os primeiros contatos com as dez coleções didáticas que me foram
disponibilizadas se estabeleceram no sentido de conhecer as reproduções de obras de
arte existentes nesses materiais, e a forma como estariam dispostas em meio aos
conteúdos abordados pelo livro didático. Durante esse processo, me chamou especial
atenção à extrema quantidade de reproduções de arte presentes nesses livros, como por
exemplo, esculturas, gravuras, iluminuras, mosaicos, azulejos, pinturas, xilogravuras,
fotografias, entre outros. A quantidade de imagens fora tamanha, que em muitos
momentos me senti desconfortável com o excesso dessas reproduções, fazendo com que
3. AZEVEDO, Gislane Campo; SERIACOPI, Reinaldo. História em Movimento. 2° ed. São Paulo:
Ática, 2013. ALFREDO, Boulos Júnior. História, sociedade & cidadania. 1° ed. São Paulo: FTD, 2013.
CATELLI JUNIOR, Roberto. Conexão história. 1° ed. São Paulo: Editora AJS. PELLEGRINI, Marco
César. Novo olhar história. 2° ed. São Paulo: FTD, 2013. SER Protagonista [Obra coletiva, sem autor
especificado]. 2° ed. São Paulo: Edições SM, 2013. VICENTINO, Cláudio. História geral e do Brasil.
2° ed. São Paulo: Scipione, 2013.
4. CAMPOS, Flavio de; CLARO, Regina. Oficina de História. 1° ed. São Paulo: Leya, 2015. COTRIM,
Gilberto. História Global: Brasil e geral. 10° ed. São Paulo: Saraiva, 2012. NAPOLITANO, Marcos.
História para o ensino médio. São Paulo: Atual, 2013. VAINFAS, Ronaldo. Conecte: história. 1° ed.
São Paulo: Saraiva, 2014.
me questionasse por diversas vezes sobre os motivos que levam os livros didáticos de
História – e aqui me refiro exclusivamente a estas dez coleções que entrei em contato –
a inserir tantas imagens oriundas do campo das artes visuais. Apesar de não ter nesse
primeiro momento contabilizado as imagens que encontrei, como uma forma de mostrar
quantitativamente a presença massiva dessas reproduções, alguns questionamentos me
acompanharam durante esse processo acerca das imagens de arte: qual papel que
desempenham nos livros escolares de História? É realmente necessário sua presença em
obras didáticas? Quais são os argumentos, apresentados pelas próprias coleções, que
justificariam a presença de tantos desses elementos? Como o próprio livro didático
orienta o contato com essas imagens? Por que se utilizam tantas reproduções de arte em
livros didáticos de História?
Apesar de inicialmente ter estabelecido apenas a seleção de obras que estivessem
circulando no ensino público, e tê-las buscado no PNLD 2015 para o ensino médio, a
disponibilização por algumas editoras de títulos direcionados a rede privada fez com
que eu considerasse a possibilidade de trabalhar igualmente com essas obras. O
encontro com a seção Análise de Imagem (2015) fez com que eu selecionasse a Coleção
Oficina de História (CAMPOS; CLARO, 2015), aprovada para o PNLD 2015 – ensino
médio, porém aqui escolhida pela versão em volume único direcionada à rede particular
de ensino.
Dentre as dez coleções consultas, as obras História em Movimento (AZEVEDO;
SERIACOPI, 2014) e Oficina de História (CAMPOS; CLARO, 2015) chamaram minha
atenção por apresentarem as seções Olho Vivo (2014) e Análise de Imagem (2013).
Nestes espaços, os conteúdos históricos são abordados em diálogo com outras áreas do
saber - como a Geografia, a Arqueologia e a História da Arte - por intermédio da
utilização de fontes visuais. Diversas imagens são assim apresentadas, como mapas,
artefatos, cerâmicas, esculturas, mosaicos, iluminuras, pinturas, fotografias, entre
outros. Em decorrência dessa diversidade, optei por analisar apenas as reproduções de
pinturas das referidas seções.
Tal critério foi colocado em função do processo de revisão de literatura, pois
observei que as pesquisas sobre imagens em livros didáticos de História tendem a
investigar diversos tipos de imagem, não se concentrando em uma reprodução
específica. Esse aspecto contribui para um perfil de pesquisa muito mais quantitativo e
descritivo do que propriamente analítico. Além disso, minha trajetória acadêmica e
profissional ligada ao campo das artes visuais, juntamente com o gosto e a preferência
pessoal por pinturas, dentre as demais fontes visuais trabalhadas por estas seções,
orientou-me igualmente para esse recorte particular.
Em relação às reproduções de pinturas, diversas informações são trazidas ao
leitor, desde dados mais básicos sobre as obras, como autor, título e técnica, até a
decodificação simbólica da própria imagem e sua relação com o contexto histórico
abordado. Abaixo, seguem duas fotografias para demonstrar como as seções estão
dispostas nos livros didáticos selecionados (Ver figura 1 e 2).
Figura 1 – Fotografia da Seção Olho Vivo (2014), Coleção História em Movimento, v.2
(AZEVEDO; SERIACOPI, 2014, p.224 e 225). Pintura: A liberdade conduzindo o povo (1830), de
Eugène Delacroix (1798-1863). Fonte: fotografia realizada pelo autor.
Figura 2 - Fotografia da Seção Análise de Imagem, da coleção Oficina de História (CAMPOS, CLARO;
2015 p.138). Pintura: O combate entre o Carnaval e a Quaresma (1559), de Pieter Bruegel, o Velho
(1525-1569). Fonte: fotografia realizada pelo autor.
Em relação a estas seções, alguns aspectos me despertaram a atenção, e podem
ser estruturados da seguinte maneira:
1) Dentre as dez coleções consultadas, apenas as obras História em Movimento
(AZEVEDO; SERIACOPI, 2014) e Oficina de História (CAMPOS;
CLARO, 2015) apresentaram reproduções de arte em formato de seções, em
que parte de um conteúdo do capítulo é tratado de maneira separada do corpo
do texto principal. Apesar de não ser necessário a leitura dessas seções para a
compreensão do conteúdo central, chama a atenção o fato das imagens de
arte terem recebido um espaço exclusivo dentro dessas publicações. Nesse
espaço ocorre a apresentação detalhada da imagem ao leitor, que tem a
oportunidade de adentrar no universo artístico de algumas obras em
particular.
2) O modo como as imagens de arte são apresentadas nessas seções.
Circunscritas por setas ou números e algumas vezes dispostas entre as duas
folhas do livro didático, as imagens recebem pouco espaço para o próprio ato
do olhar. As setas e números induzem o leitor a rapidamente visualizar os
boxes textuais, fazendo com que o olhar se desloque da reprodução da
pintura para o texto. Apesar da fonte visual utilizada ser o “ator principal”,
acaba que a palavra - “atriz coadjuvante” – assume o posto da referência
mais importante, dentro de uma suposta hierarquia entre imagem e palavra.
Cercada por recursos textuais, a imagem em si torna-se pouco relevante em
prol de uma disposição gráfica que privilegia o que se diz sobre a imagem,
ou seja, na palavra proferida sobre a reprodução da obra de arte em questão.
3) Esses boxes textuais, ao informarem o leitor sobre a imagem, acabam por
explicá-la, dando sentido e significado para a mesma. Tal processo faz com
que o próprio livro didático interprete a reprodução. Como coloca Circe F.
Bittencourt, “os manuais escolares apresentam não apenas os conteúdos das
disciplinas, mas como esses conteúdos devem ser ensinados” (2008, p.72.
Grifo do autor). Sendo assim, quando utilizam fontes visuais para o ensino
de História, os livros didáticos, ao apresentarem a forma como os leitores
devem conhecer as imagens propostas, acabam tendo de explicá-las, criando
interpretações para as mesmas. Essa ação acaba orientando o leitor sobre o
modo como deve entrar em contato com as imagens. Nesse caso em
particular, no modo como devem entrar em contato com as reproduções de
pinturas das referidas seções.
4) A utilização de imagens provenientes do campo das artes visuais para o
ensino de saberes sobre a história. Nesse sentido, a presença da
interdisciplinaridade entre duas áreas de conhecimento, atuando juntas em
um livro destinado a trabalhar a disciplina de História por um viés educativo.
Procura-se compreender com essa proposta de investigação, centradas nas
Seções Olho Vivo (2014) e Análise de Imagem (2015), as seguintes indagações:
Em relação às reproduções de pinturas: O que é dito, de que forma é dito e
por que é dito desta forma e não de outra? Como essas seções interpretam as fontes
visuais trabalhadas, nesse caso, as pinturas? Quais são os sentidos e significados que
expressam nos boxes textuais que as acompanham? Como esses sentidos e significados
são construídos? Como coloca W.J.T.Micthell, “que forma particular de textualidade é
provocada (ou reprimida) pela pintura e em nome de quais valores?” (2009, p.91) 5. Por
que, por exemplo, a seção Análise de Imagem (2015) ao utilizar a obra O peregrino
sobre o mar de brumas (ver figura 3), pintada em 1818 por Caspar David Friedrich
(1774-1840), afirma que “as cores frias e ácidas, com brilhante luminosidade aumentam
o sentimento de melancolia e isolamento”? (CAMPOS; CLARO, 2015, p.370). Por que
a seção Olho Vivo (2014), ao utilizar a pintura, Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808
(1814), de Francisco Goya (1746-1828), afirma sobre uma das figuras a nossa direita
que “antevendo seu futuro trágico, esse personagem leva a mão à boca, em um gesto
infantil de medo?” (AZEVEDO; SERIACOPI, 2014, v.2, p.141).
Para Michel Baxandall, no que concerne as relações entre linguagem e obras de
arte,
nós não explicamos um quadro: explicamos observações sobre um quadro.
Só explicamos um quadro na medida em que o consideramos à luz de uma
descrição ou especificidade verbal dele (2002, p.31).
Nesse sentido, a linguagem aproxima-se do quadro na medida em que explica
não o seu conteúdo, mas antes o que pensamos e acreditamos ter visto. Nesse processo,
muitas das explicações e descrições construídas quando nos dispomos a falar sobre uma
obra de arte não possuem, necessariamente, relação direta com a mesma. Para
Baxandall, existem três formas habituais com que usamos a linguagem para pensarmos
sobre uma obra de arte:
falar diretamente do efeito que o objeto provoca em nós, estabelecer
comparações com coisas que produzem um efeito semelhante, fazer
inferências sobre o processo que teria levado um objeto a nos causar esse
efeito (BAXANDALL, 2002, p.38).
Partindo das afirmações de Baxandall, é possível identificar se essas três formas
– falar do efeito do objeto; comparações com outros objetos que possuem efeito
semelhante; e inferências sobre os motivos que levaram esse objeto a nos causar
determinado efeito – estão presentes nas seções Olho Vivo (2014) e Análise de Imagem
5 . Tradução minha.
(2015) quando utilizam reproduções pictóricas? Essas formas, essas relações entre
linguagem e obra de arte, são também identificadas nesses espaços? Como são
operacionalizados? Existem outras formas de interação, para além dessas mencionadas
por Baxandall, existentes entre palavra e imagem? Quais são? De que forma atuam?
Figura 3 - O peregrino sobre o mar de brumas (1818), de Caspar David Friedrich (1774-1840). Óleo
sobre tela. 0,98 x 0,74 m, Kunsthalle de Hamburgo, Alemanha. Fonte: arquivo pessoal do autor.
Figura 4 – Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808 (1815), de Francisco Goya (1746-1828). Óleo sobre tal,
2,68m x 3,47 m, Museu do Prado, Madri. Fonte: arquivo pessoal do autor.
Em relação ao livro didático: Quais são as relações entre as reproduções de
pinturas das referidas seções e os conteúdos abordados nos capítulos aos quais estão
vinculadas? De que maneira estas relações são articuladas? Por que se faz necessário a
presença dessas seções, com essas pinturas, nesses capítulos? Por que, para
determinado capítulo, se recorrem a determinadas pinturas? Por exemplo, por que na
coleção História em Movimento (AZEVEDO; SERIACOPI, 2014), a seção Olho Vivo
(2014), ao abordar a Revolução Francesa, utiliza a obra A morte de Marat, pintada em
1793 por Jacques-Louis David (1748-1825) e não outra? Por que, na mesma coleção, se
utiliza novamente um quadro ligado a questões de conflitos franceses como A liberdade
conduzindo o povo (1830) de Eugène Delacroix (1798-1863) em um capítulo dedicado a
trabalhar a Europa no século XIX? Por que esse quadro e não outro? Por fim, quais as
relações entre os saberes históricos propostos por essas coleções didáticas e as
reproduções de pinturas utilizadas? (Figuras 5 e 1)
Figura 5 - A morte de Marat, 1793. Jacques-Louis David (1749-1825). Óleo sobre tela, 1,62 m x 1,28 m.
Museu Real de Belas Arte, Bruxelas. Fonte: arquivo pessoal do autor.
Os objetivos almejados com essas indagações centram-se na compreensão dos
seguintes fatores:
1) Compreender de que forma as coleções História em Movimento
(AZEVEDO; SERIACOPI, 2014) e Oficina de História (CAMPOS;
CLARO, 2015) propõem conhecimento histórico por intermédio de fontes
visuais nas seções Olho Vivo (2014) e Análise de Imagem (2015).
Compreender de que modo esses espaços articulam saberes históricos com
saberes provenientes do campo das Artes Visuais e História da Arte. Como
esta interdisciplinaridade é estabelecida? Como é operacionalizada nas
referidas seções? Quais são as estratégias metodológicas utilizadas? Quais
são as estratégias didáticas utilizadas?
2) Para W.J.T.Mitchell, um estudo empreendido em textos ilustrados - em que
podemos observar as relações estabelecidas entre palavra e imagem - podem
“responder as convenções dominantes (ou a resistência à convenção) que
governam a relação da experiência visual e verbal” (2008, p.85)6. Levando
em consideração essa afirmação, seria possível identificar as convenções
visuais e verbais dominantes nessas seções? Ou a resistência a determinadas
convenções? Identificando tais questões, seria possível ter algum vestígio7
sobre as convenções ou resistências a (ou ainda os dois, convenções e
resistências) visuais e verbais existentes nas duas coleções didáticas
trabalhadas?
APORTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
Para tentar responder as indagações formuladas, a presente pesquisa centra-se
em aportes teóricos e metodológicos que buscam tanto compreender a natureza dos
livros didáticos de História e o papel que ocupam na cultura escolar, quanto
6 . Tradução minha. 7. Refiro-me à vestígio, pois acredito que para empreender tal questão nos livros didáticos abordados,
seria necessário ampliar a análise para as demais reproduções de pinturas presentes nestas publicações,
além das que são utilizadas nas referidas seções.
compreender as propriedades específicas que caracterizam e fundamentam as pinturas
em questão.
Esse aspecto faz com essa investigação parta inicialmente de estudos situados
no campo do Ensino de História, empreendido pelos pesquisadores Circe Bittencourt
Thais Nívea de Lima e Fonseca, Flávia Caimi, Décio Gatti Júnior e Alain Choppin,
autor este mais próximo da História da Educação. No que concerne a História da Arte,
área do saber em que as reproduções de pinturas se encontram fundamentadas, essa
pesquisa parte dos estudos de Michael Baxandall, Georges Did-Huberman e
W.J.T.Mitchell, que trabalha a história da arte por concepções oriundas do campo da
cultura visual.
Outro campo do conhecimento importante para o embasamento teórico que aqui
se configura é a História, que será abordada através da História Cultural. Dentro da
História Cultural, a vertente de referência para essa investigação é aquela que tem se
colocado atenta aos “aspectos discursivos e simbólicos da vida sociocultural”
(BARROS, 2011, p.41). Sendo assim, a presente investigação se fundamentará nos
estudos de Michel Foucault, vistos nesse primeiro momento por intermédio da
interlocução de Rosa Maria Bueno Fischer (2012). Como coloca a autora, para Foucault
“interessa fundamentalmente a ideia de que o discurso constitui, de que o discurso é
constitutivo de alguma coisa. [...] dizer é uma forma de fazer, e esse é seguramente um
de seus temas mais importantes e definidores de sua obra” (2012, p.39). Se dizer é uma
forma de fazer, acredito que a compreensão das práticas discursivas pela perspectiva de
Foucault possa enriquecer a investigação das seções Olho Vivo (2014) e Análise de
Imagem (2015), uma vez que são elaboradas não apenas pela reprodução da obra de arte
em questão, mas, sobretudo, pela linguagem que acompanha tais reproduções.
Compreender os fenômenos discursivos desses espaços se coloca como ponto
fundamental, pois é exatamente na linguagem – no que dizem – que as relações entre os
campos do Ensino de História e História da Arte poderão ser visualizadas e
investigadas.
Para a organização, tratamento e análise dos dados que devem ser averiguados -
os boxes textuais que acompanham as referidas seções - essa investigação pretende
utilizar técnicas provindas da Análise Textual Discursiva, tendo como base a leitura de
GALIAZI & MORAES (2013). A Análise Textual Discursiva é uma ferramenta
metodológica a ser utilizada para a coleta, organização e análise de conjuntos textuais,
entendidos não apenas como materiais descritos por palavras, mas também podendo ser
utilizado para pesquisas que se debrucem em corpus imagéticos (GALIAZI; MORAES,
2013). Configura-se ainda como uma ferramenta metodológica flexível entre as
abordagens oriundas da análise de conteúdo e a análise de discurso. Como colocam os
autores,
a análise textual discursiva corresponde a uma metodologia de análise de
dados e informações de natureza qualitativa com a finalidade de produzir
novas compreensões sobre os fenômenos e discursos. Insere-se entre os
extremos da análise de conteúdo tradicional e a análise de discurso,
representando um movimento interpretativo de caráter hermenêutico (2013,
p.7).
Os procedimentos sugeridos pela Análise Textual Discursiva são os seguintes
passos: desmontagem dos textos (unitarização), estabelecimentos de relações
(categorização), captando o novo emergente (interpretação e comunicação):
1 - Desmontagem dos textos: também denominado de processo de
unitarização, implica examinar os textos em seus detalhes, fragmentando-os
no sentido de atingir unidades constituintes, enunciados referentes aos
fenômenos estudados.
2 – Estabelecimento de relações: este processo denominado de categorização
envolve construir relações entre as unidades de base, combinando-as e
classificando-as, reunindo esses elementos próximos, resultando daí sistemas
de categorias.
3 – Captando o novo emergente: a intensa impregnação nos materiais da
análise desencadeada nos dois focos anteriores possibilita a emergência de
uma compreensão renovada do todo. O investimento na comunicação dessa
nova compreensão, assim como de sua crítica e validação, constituem o
último elemento do ciclo de análise proposto. O metatexto resultante desse
processo representa um esforço de explicitar a compreensão que se apresenta
como produto de uma nova combinação dos elementos construídos ao longo
dos passos anteriores. (GALIAZZI, MORAES,2013,p.12)
Essas técnicas se colocam assim como possibilidades para a desconstrução dos
textos analisados, seguido de uma reconstrução que possibilitará por fim, novas
interpretações dos fenômenos abarcados.
A escolha por realizar a análise a partir dessa metodologia provém justamente da
possibilidade de mesclarmos bases teóricas oriundas da análise de conteúdo e da análise
do discurso. Acredito que a realização da análise por intermédio dos aportes teóricos e
metodológico apresentados poderá trazer respostas quanto às indagações que foram
levantadas, sobre a forma como essas seções interpretam e propõem sentido para as
reproduções de pinturas utilizadas, e a forma como esses saberes artísticos,
apresentado pelas próprias seções, são articulados com os conteúdos históricos
abordados nos capítulos em que se encontram inseridas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em razão da presente investigação se encontrar em andamento, optei por
apresentar os interesses e indagações que me estimulam a empreender pesquisas em
livros didáticos de História. Ao me debruçar nestes materiais pedagógicos, busco
compreender, dentre tantas possibilidades existentes, as relações estabelecidas entre
História e Imagem, e nesse caso em especial, entre o Ensino de História e a História da
Arte. As reproduções de pinturas trazidas pelas seções Olho Vivo (2014) e Análise de
Imagem (2015) são utilizadas nos livros didáticos História em Movimento (AZEVEDO;
SERIACOPI, 2014) e Oficina de História (CAMPOS; CLARO, 2015), respectivamente, para a
proposição de conhecimento histórico. Tais reproduções não são apresentadas nessas
seções a partir do discurso do campo da História da Arte ou da História, mas sim a
partir do campo do Ensino de História. É exatamente nesse ponto que reside meu
interesse: investigar os modos pelos quais o Ensino de História, enquanto área do saber,
se apropria dessas reproduções de pintura, constituindo um conhecimento histórico e
artístico próprio e muito particular sobre essas fontes visuais.
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