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O último suspiro do flâneur Rodrigo Saturnino * Índice Introdução 1 1O flâneur: A arte de ser vagabundo 1 2 A angústia de Baudelaire 2 3 A cooptação do poeta errante 4 4 Onde está o vagabundo virtual? 5 5 Os últimos suspiros do flâneur 7 Referências Bibliográficas 9 Introdução A Internet é um lugar de trajetórias. A afirmação é de Lev Manovich (2005). O autor descreve a web como um espaço simbólico, caracterizado por infinitas possi- bilidades de percursos. No admirável uni- verso cyber de Manovich, a conectividade é sua base de sustentação. Na sua realidade análoga, o ciberspace é um espaço nave- gável, aberto ao decurso errante e propício para o ato da flânerie. Seguindo este raciocínio, o objetivo deste artigo-ensaio é, despretenciosamente, refletir sobre o conceito de flâneur a fim de perceber se podemos admitir sua transposição para o atual contexto da utilização da Internet. Apresento algumas apreciações literárias de Charles Baudelaire, seguida da verificação * Mestrando em Ciências da Cultura. Comuni- cação e Cultura. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. do conceito em Walter Benjamin. Posterior- mente, considero algumas contribuições de Lev Manovich e André Lemos e as respecti- vas ampliações metafóricas que estes autores realizaram em relação ao termo. 1 O flâneur: A arte de ser vagabundo Nos dicionários, os termos flâneur e flânerie têm restrita ligação ao ato de deambular sem destino; uma prática de quem ostenta a di- vagação. Não exagero em dizer que um dos principais contextos do surgimento da flânerie encontra-se em Paris 1 . Considerada como o palco de grandes revoluções políti- cas e industriais, Paris não era vista apenas como a capital da França. De certo modo, o simbolismo dos meados de 1800, fazia coro para elevá-la como a capital do mundo, afi- nal a cidade sustentava no currículo atribu- tos que continuam insubstituíveis. Não foi só conhecida pela produção artística, filosó- fica e militante, como também despertou o 1 Não devemos desconsiderar a aproximação lon- drina do flâneur de Baudelaire que emergiu através do “homem da multidão” de Edgar Alan Poe. No en- tanto, a considerar pelo avanço da industrialização de Londres quando Poe escreveu o conto, podemos su- por que o ato da flânerie era mais propício em Paris. Provavelmente, o contexto taylorista de 1888, já não reservava espaço para tal prática.

SATURNINO, Rodrigo. O Último Suspiro Do Flâneur

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SATURNINO, Rodrigo. O Último Suspiro Do Flâneur.

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  • O ltimo suspiro do flneur

    Rodrigo Saturnino

    ndiceIntroduo 11 O flneur: A arte de ser vagabundo 12 A angstia de Baudelaire 23 A cooptao do poeta errante 44 Onde est o vagabundo virtual? 55 Os ltimos suspiros do flneur 7Referncias Bibliogrficas 9

    Introduo

    A Internet um lugar de trajetrias. Aafirmao de Lev Manovich (2005).O autor descreve a web como um espaosimblico, caracterizado por infinitas possi-bilidades de percursos. No admirvel uni-verso cyber de Manovich, a conectividade sua base de sustentao. Na sua realidadeanloga, o ciberspace um espao nave-gvel, aberto ao decurso errante e propciopara o ato da flnerie.

    Seguindo este raciocnio, o objetivo desteartigo-ensaio , despretenciosamente, refletirsobre o conceito de flneur a fim de perceberse podemos admitir sua transposio parao atual contexto da utilizao da Internet.Apresento algumas apreciaes literrias deCharles Baudelaire, seguida da verificao

    Mestrando em Cincias da Cultura. Comuni-cao e Cultura. Faculdade de Letras da Universidadede Lisboa.

    do conceito em Walter Benjamin. Posterior-mente, considero algumas contribuies deLev Manovich e Andr Lemos e as respecti-vas ampliaes metafricas que estes autoresrealizaram em relao ao termo.

    1 O flneur: A arte de servagabundo

    Nos dicionrios, os termos flneur e flnerietm restrita ligao ao ato de deambular semdestino; uma prtica de quem ostenta a di-vagao. No exagero em dizer que umdos principais contextos do surgimento daflnerie encontra-se em Paris1. Consideradacomo o palco de grandes revolues polti-cas e industriais, Paris no era vista apenascomo a capital da Frana. De certo modo, osimbolismo dos meados de 1800, fazia coropara elev-la como a capital do mundo, afi-nal a cidade sustentava no currculo atribu-tos que continuam insubstituveis. No fois conhecida pela produo artstica, filos-fica e militante, como tambm despertou o

    1No devemos desconsiderar a aproximao lon-drina do flneur de Baudelaire que emergiu atravsdo homem da multido de Edgar Alan Poe. No en-tanto, a considerar pelo avano da industrializao deLondres quando Poe escreveu o conto, podemos su-por que o ato da flnerie era mais propcio em Paris.Provavelmente, o contexto taylorista de 1888, j noreservava espao para tal prtica.

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    interesse da arquitetura mundial. Paris sim-bolizava a cidade aberta.

    A ousadia dos projetos urbansticos es-to registradas nas palavras de Walter Ben-jamim. Ao classific-la como The Capitalof the Nineteenh Century, deixava mostrasua apreciao pelas grandes galerias comer-ciais que contriburam para o crescimentodo comrcio, da moda e da industrializaoda cidade. Paris suportou tambm os de-safios de Haussmann, convidado por Bona-parte para alterar toda a fisionomia da antigacidade. O artiste dmolliseeur provocou amais forte alterao arquitetnica j vista nascidades do sc. XIX. Em nome do rigor dafuncionalidade social, abriu avenidas, criouprdios pblicos, boulevards e deu espaopara suportar grandes fluxos de pessoas, detrnsito e de lucro (BENJAMIM, 2002: 42).

    A metrpole explodiu sob a forma de sm-bolo do progresso. Ao mesmo tempo reveloucom sua ostentao um novo problema so-cial. O projeto de Haussman fez transbordarna fisionomia e fisiologia parisiense o fen-meno da multido. Por sua vez, a multidopropiciou novas formas de experincias so-ciais. Seu movimento multitudinrio e in-definido, reconfigurou a questo da indivi-dualidade que marcou os perodos anterioress revolues industriais.

    Na multido o indivduo est dissolutode toda sua personalidade. Ao misturar-se,tornava-se partcula paisagstica que com-punha o novo cenrio urbano. Por outrolado, a multido contribuiu para originar no-vas formas de isolamento social e de ano-nimato conveniente. No seio da multido afigura do flneur foi alimentada. A meta-morfose espacial que a metrpole sofreu,propiciou o desaparecimento do sujeito. In-versamente, ela ocasionou o conforto so-

    cial por que era capaz de dispersar as iden-tidades. Clia Margarida Loureno Bento,em sua tese de mestrado, destacou que afuno de deambular estaria especialmenteentregue aos parisienses devido aos prece-dentes contextuais que a cidade provocou nareputao dos indivduos, conclamando-osa uma paixo e um sentimento pelo ato daflnerie (BENTO, 2004: 19).

    2 A angstia de BaudelaireO poeta francs, Charles-Pierre Baudelairenasceu em Paris em 09 de abril de 1821 eainda considerado um dos grandes poetasdo sc. XIX. No ensaio Le Peintre de LaVie Moderna, publicado em 1863, o autordestacou a figura emblemtica de Sr. G., umartista notvel a quem Baudelaire classificoucomo o autntico flneur.

    Baudelaire utilizou a personagem para daro tom crtico do seu ensaio e, assim, contra-por o novo modelo que emergia na sociedadeparisiense do sc. XIX durante o processode industrializao do tempo e da arte. Apersonagem era um cidado espiritual, umhomem do mundo, um artista que se inte-ressava pela vida e por tudo que o rodeava.Sr. G. compreendia a sociedade e suasrazes misteriosas por que se empenhavaem conhec-la de forma global (BAUDE-LAIRE, 2006:15).

    A personificao do Sr. G. representava odesprendimento do poeta diante dos condi-cionalismos sociais e econmicos que a so-ciedade parisiense insistia em imputar aosartistas que resistiam ao processo de indus-trializao da cidade. Segundo o poeta, parao homem do mundo seria insuportvel res-tringir a sua competncia elaborativa da vidaapenas s limitaes presentes nos crcu-

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    los da maioria dos artistas, estes vencidospela cooptao, verdadeiros homens brutosmuito cheios de jeito, pura mo-de-obra, in-teligncias campnias, crebros de um qual-quer lugarejo (BAUDELAIRE, 2006: 15).

    O protagonista de Baudelaire simbolizavaa exaltao do homem do mundo, aqueleque se prendia ou se desprendia para co-nhecer toda superfcie, sem restries terri-toriais. Dois aspectos moviam os interessesdo Sr. G.: a curiosidade o ponto de partidapara sua genialidade e a convalescena que o levava a se interessar vivamente pelascoisas, mesmo por aquelas que so aparente-mente mais triviais (BAUDELAIRE, 2006:16).

    Atravs dele, Baudelaire distanciava-sedos moralismos e absorvia, como umaesponja, as coisas que os seus olhos al-canavam. Sr. G era um especialista no e-xerccio da observao do mundo que cres-ciae sua volta. Por isso, ele se abne-gava em ser categorizado como artista (nosentido restrito da palavra e do contexto dosc. XIX) e em ser chamado de dandy,mesmo sendo este o smbolo da aristocracia,da sofisticao e da inteligncia sutil em re-lao ao conhecimento do mecanismo moraldo mundo. O dandy, apontou Baudelaire,apesar das tais atribuies, aspirava insen-sibilidade do mundo. Era um ser blas, re-lapso e inspido pela poltica ou por razesde natureza familiar. Definitivamente, noeram estes os atributos de Sr. G.

    Restou ao autor e esse caminho foi queBaudelaire percorreu ao eliminar as cate-gorias deficientes incluir sua personagemna condio de flanador. A multido erao seu domnio. Sua funo era despos-la em perfeito comprometimento com suasatribuies. O flneur era um observador

    apaixonado que elegeu domiclio na invisi-bilidade. Ela habitava o inconstante, o movi-mento, o fugitivo e o infinito, e nisto estava oseu imenso gozo (BAUDELAIRE, 2006:18).O flneur estava fora de casa. No entantosentia-se, em todo lado, na sua prpria casa.Ele podia ver e sentir o mundo. Podia estarno centro dele, mas ainda assim, sorrateira-mente, conseguia permanecer oculto e insu-bordinado s estruturas automticas de clas-sificao.

    O flneur de Baudelaire, nos percursos,nas observaes cotidianas e na absorodo mundo, sobrevivia no interior do queele chamava de modernidade, ou seja, notransitrio, no contingente e na metade daarte. Para Baudelaire, o ato de deambularcomo um vagabundo errante era um exerc-cio de contemplao artstica. No seu delriopotico, os passeios de Sr. G. serviam defonte para alimentar a sua memria. Per-dido na multido, aproveitava para olhar semjulgamento e construir, num ato de exper-tise, a prpria ordenao do mundo. O de-vaneio era a reflexo do flneur. O exerc-cio de ordenar servia para atribuir um sen-tido eterno aos instantes captados. [...], fun-cionando como um caleidoscpio dotado deconscincia (BENTO, 2004: 22).

    A multido era o smbolo do seu questio-namento em relao transio que acidade e sua etnognese enfrentavam com osavanos do sc. XIX. O sujeito, o flneur, opintor da vida moderna de Baudelaire, pre-conizava a figura emblemtica das crises deidentidade cultural que a modernidade re-presentava. O flneur refletia o estado pro-visrio do ser no mundo. Todos os demaisque sucumbiam s exigncias destas trans-formaes, eram rebatidos pelo flneur. Eleera o ltimo artista. O derradeiro sobre-

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    vivente no caos da transitoriedade. E o seutrunfo era fruto dos constantes atos de meta-morfose, anonimato e mutao. O pintorda vida moderna pincelava o prprio mundocom movimentos ariscos e fugazes. Faziasua ronda no meio das galerias comerciais,nas rcades, nas passarelas da moda, nasmanifestaes e nas greves. No entanto, nose apegava a nenhuma delas.

    A experincia da flnerie conectava-secom a experincia esttica que a moder-nidade oferecia ao flneur. No ensaio, o au-tor utilizou trs representaes sociais paradiferenciar as suas atitudes: a figura do mi-litar, a do dandy e a da mulher. O mili-tar personificava-se atravs da estampa ali-nhada do sujeito forte, uniforme, estruturadoe rgido. O dandy representava a aristocraciahipcrita que configurava a imagem da so-ciedade educada, e sofisticada. E finalmente,a mulher era concebida atravs da belezados trajes, dos adereos e pela valorizaodos atributos fsicos. Para o poeta, ela eraa imagem mais valorizada e a mais exacer-bada pelos estetas modernos e servia comouma analogia dos objetivos da modernidade.Quando se referiu ao ato da maquiagem fe-minina, deixou escapar a crtica social con-tra as artificialidades que emergiam na suapoca.

    A maquiagem, defendia Baudelaire, eraum ato corretivo que pretendia harmonizar aausncia do bem na figura humana. O poetaestava convicto de que a complacncia noera uma atribuio natural do homem. Aocontrrio dos crimes e das atrocidades ex-plcitos nos desejos naturais humanos a be-nignidade s poderia ser adquirida por meiode sua conquista. Para o autor, o bem era umadereo artificial ao sujeito. A maquiagemutilizada pelas mulheres parisienses repre-

    sentava a tentativa do sujeito da modernidadefazer desaparecer, de uma vez por todas, asmanchas que a natureza havia semeado ul-trajosamente na sua cara. O p de arrozque cobria os rostos plidos dos parisienses que depois acompanhou toda a gerao daBelle poque , uniformizava no s a pele,mas a moral do homem e da mulher moderna(BAUDELAIRE, 2006:50-51).

    O ensaio de Baudelaire, inaugurou marcosposteriores atravs das suas formulaes so-bre o lugar do tempo e da arte no meio dosufrgio da cidade em relao aos projetosde modernizao. Para ele, apenas o artista-flneur conseguiria no interior das tur-bulncias e da histeria da metrpole preser-var na sua memria as imagens da subje-tividade experimentadas durante as deambu-laes que realizava. Baudelaire acreditavaque a modernidade retirava o lugar acolhe-dor que a cidade constitua. No lugar de con-forto, a cidade havia se transformado em umespao de indiferena e hostilidade. A voznostlgica do poeta suspirava, esperanosa-mente, atravs do seu heri: ele era o nicoprotagonista com chances reais de transfor-mar as imagens captadas durante a flnerieem novas formas poticas de interpretaoda realidade. Este era o seu ltimo esquivode subverso da tecnocracia que estruturava,uniformizava e maquiava a sociedade quesurgia com a Revoluo Industrial.

    3 A cooptao do poeta erranteO tema da cidade e de suas transformaesesto presentes em diversos artigos de Wal-ter Benjamim. No texto Paris, the Capitalof the Nineteenth Century e em On SomeMotifs in Baudelaire, Benjamin (2002)descreveu a transformao que a capital

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    francesa sofreu durante os grandes investi-mentos de modernizao da cidade. A figurado flneur emergiu como elemento de des-crio social do fenmeno industrial que acidade se submeteu. Mesmo diante do as-pecto fragmentrio da obra benjaminiana, possvel destacar a importncia existente en-tre esses dois elementos urbanos: a cidade eo flneur. Benjamin concordava com Baude-laire, e era a partir dele que destacava a ruae a multido como lugares de refgio doflneur. No entanto, Benjamin apresentouum novo desfecho para esta personagem.

    Para Benjamin, a flnerie na sociedade in-dustrial estava destinada a sobreviver nos in-terstcios e nas passagens construdas entreas luxuosas galerias comerciais na Paris dosc. XIX. O autor julgava ser este lugar oparaso da multido. Era o local ideal paraque o flneur usufrusse, comodamente, dosespaos fludos das galerias. O passeio pro-piciava o exerccio da observao ociosa edescontrada. Nelas, o flanador distanciava-se do tormento do trnsito e do barulho dasgrandes avenidas. As galerias tornaram-seem um lugar de anulao do tedium vitae dopovo. Um mundo em miniatura, um resumoda cidade fragmentada estava disposiodos transeuntes.

    Tanto Baudelaire como Benjamin consi-deravam o flneur como um sujeito dotadode perspicaz habilidade no olhar. Ao obser-var ele entrava em choque com a realidadeque despedaava o passado. O drama exis-tencial refrigerava-se na multido. No seuinterior sua identidade ainda desconhecida,encontrava paz atravs do convvio com ou-tros annimos, misturados entre a invisibi-lidade e a dissoluo dos traos individuaisque a massa proporcionava.

    Para Benjamim, a multido era anestsica.

    Propiciava, por um lado, o exerccio doanonimato e por outro, criava uma paisagemfantasmagrica coberta por um vu que es-camoteava o lado horrvel da sociedade.Outro aspecto atormentava o flneur: asolido. Quanto mais annimo o flneurfosse dentro da massa e quanto mais elese sentisse fora do processo em que a mul-tido estava includa, seu sentimento desolido seria mais evidente. Mas a cidadede Benjamin exigia mais do flneur. Coma marginalizao do cio e do anonimato namultido, a metrpole comeou a tornar-seuma ameaa vida do deambulante. A so-ciedade que o absorvia, apontou Benjamin,estava marcada pela voracidade da repro-duo industrial em busca de avidez de lucroe de produo.

    Cooptada, restou multido seguir atrsdo processo industrial. O flneur ir recor-rer a um ltimo lugar de refgio. Benjaminlevou o vagabundo para os centros comer-ciais. Mas j no h tempo para flnerie. Namultido que marchava no ritmo da moda eda mercadoria, o destino fatal do flneur foio de render-se. Dificilmente ele conseguiriaesquivar-se do poder da embriaguez alucin-gena em que as pessoas na multido estavamenvolvidas. No fim da sua jornada, sucumbiuao mesmo modo de existir daquela que, ou-trora, constituiu sua esperana.

    4 Onde est o vagabundovirtual?

    A cidade, depois das revolues e meta-morfoses descritas por Benjamim e Baude-laire, continuou seu processo de moderniza-o. Na sociedade contempornea os seusmovimentos fizeram nascer um novo espao.

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    Ao invs de largas avenidas ou geomtricosboulevards, passamos a experimentar um es-pao desterritorializado. O ambiente sim-blico da Internet o exemplo mais profcuo.

    Os socilogos e tericos da comunicaodedicaram inmeras pginas para celebraro seu surgimento. Manuel Castells (2002;2003) um dos mais promissores autoresa refletir sobre as transformaes sociaisque ela acarretou. Reafirmando o antigoparadigma da revoluo tecnolgica, chegoua consider-la como marco anlogo a novarevoluo industrial. Apropriando-se dametfora da rede, Castells acreditava que asua formao representou uma nova formado sujeito vivenciar sua posio no mundo.Para o socilogo, a chegada da Internetrevolucionou todo o padro cultural ante-riormente estabelecido, atingindo crenase cdigos construdos ao longo da nossahistria.

    Para alm das potencialidades sociol-gicas que Castells destacou, o carter ri-zomtico da Internet colaborou para esta-belecer marcos simblicos em relao geo-grafia das coisas. A reorganizao do es-pao, do tempo e da nossa interao afetivavem sendo considerada como um dos aspec-tos cruciais para sua consolidao como am-biente relacional. Sem dvida a afirmao deLev Manovich confirma-se: A Internet umespao marcado por trajetrias, propcio sanalogias com a navegao.

    A experincia de navegao adiciona aoimaginrio do utilizador novas formas desubjetivao da sua identidade. SegundoManovich, a estrutura navegvel fortalece anecessidade afetiva do sujeito deambular eexplorar lugares. Manovich tentou resgataro conceito de flneur ampliando a sua pers-pectiva. Para ele, as restries fsicas da

    cidade so, literalmente, superadas na Inter-net na medida em que o utilizador conseguiutransformar o seu percurso como se a suarota fosse um espelho de sua prpria subje-tividade.

    The navigable space is thus asubjective space, its architectureresponding to the subjects move-ment and emotion. In the caseof the flneur moving through thephysical city, this transformation,of course, only happens in theflneurs perception, but in thecase of navigation through a vir-tual space, the space can literallychange, becoming a mirror of theusers subjectivity. (MANOVICH,2001:269).

    Segundo ele, o flneur virtual mais fe-liz por que est em movimento constante. Oclicar em objetos simblicos ressignifica aexperincia da deambulao. Como se es-tivesse numa cidade infinita, o utilizador am-plia o seu campo de navegao quando inter-naliza a possibilidade de navegar atravsda aleatoriedade dos cliques.

    Para Manovich, o espao navegvel noest preso fisicalidade ou s interfacesfuncionais. O espao navegvel tambmuma expresso, um desejo psicolgico, umestado de ser de quem navega. O movi-mento do flneur na metrpole ocorre unica-mente na percepo do prprio sujeito. Afi-nal ele quem desloca-se enquanto o es-pao continua inerte. Ao contrrio da durezada cidade, na Internet, defende Manovich,o espao rizomtico e pode transformar-se. E Manovich vai mais longe. Afirmaque o fracasso do flneur na modernidade

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    foi superado na Sociedade da Informao.Na Internet, ele no s realizou o sonhodemocrtico de Castells, como tambm re-cuperou a sua honra, afinal, neste espaoele pode deslizar sobre campos infinitos dedados apenas clicando em um boto. J noso as cores ou as formas da cidade que oconforta, mas a variedade de operaes quepode executar a partir das prprias decises.

    Like Baudelaires flneur, the vir-tual flneur is happiest on themove, clicking from one objectto another, traversing room afterroom, level after level, data volumeafter data volume. [. . . ] naviga-ble space is not just a purely func-tional interface. It is also an ex-pression and gratification of a psy-chological desire, a state of being,a subject position rather, a sub-jects trajectory. If the subject ofmodern society looked for refugefrom the chaos of the real worldin the stability and balance of thestatic composition of a painting,and later in the cinematic images,the subject of the information so-ciety finds peace in the knowledgethat she can slide over endlessfields of data, locating any morselof information with the click of abutton, zooming through file sys-tems and networks. She is com-forted not by an equilibrium ofshapes and colors, but the varietyof data manipulation operations ather control (MANOVICH, 2002:274-275).

    No texto Ciber-Flnerie, Andr Lemos(2001) defendeu uma ideia similar. O au-

    tor estabeleceu uma aproximao direta en-tre o comportamento dos utilizadores da In-ternet e a figura do poeta-vagabundo dasmetrpoles. Para Lemos (2001), a flnerieurbana e a virtual se relacionam a partir daquesto espacial que ambas estabelecem. Noespao simblico da Internet, a ciber-flnerietraduz-se em uma apropriao do ciberes-pao pela hiprbole, pela profuso de in-formao, pelo excesso. Como Manovich,o autor pontua a questo relacional que seconstituiu durante a navegao dos uti-lizadores. Lemos considerou que a estru-tura imaginria da rede da Internet permiteo livre caminhar por links, como um ciber-flneur, experimentando a no-linearidade(ou multi-linearidade), a multiplicidade e aheterogeneidade de pontos de vistas. O au-tor chega a afirmar que esta experincia norepresenta uma privao ou isolamento, masum forma de construir e inventar o dia adia (LEMOS, 2001).

    5 Os ltimos suspiros do flneurLev Manovich e Andr Lemos partilham deuma viso: a Internet um espao de tra-jetrias e de cartografias simblicas. Deve-mos concordar com os autores na medida emque a realidade s pode existir a partir das in-teraes simblicas estabelecidas no interiordas sociedades. No basta ser fsico para serreal.

    Enquanto lugar simblico dotado, tecni-camente, de mecanismos que simulam tra-jetrias, a Internet, de fato, um espaosem aspas. At aqui possvel admitir al-guma conexo entre a figura de Baudelaire ea que emerge no seu interior. Sem dvida,o utilizador realiza um percurso na utiliza-o que faz da Internet atravs das suas li-

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    gaes e hiperligaes. No entanto, a am-pliao do conceito deve se restringir ape-nas ao carter ldico da ao. O aspectopoltico que est implcito, por exemplo, naatitude do flneur baudelairiano, sofrer im-portantes restries esquemticas se tentar-mos ampli-lo ao atual comportamento doutilizador da Internet.

    O flneur, na sua constituio clssica, eracaracterizado pela atitude desprenteciosa,gratuita e errante em relao ao seu tempo. Odesejo de sucumbir aos condicionalismos daindustrializao aterrorizava a sua constitui-o identitria. A postura de vagabundo nomeio da multido era resistncia e desprezocontra a rotina que a mquina inaugurava.

    A potica otimista de Lemos e Manovichdeixou de lado o destino que Benjamindeu flnerie. H 10 anos atrs a Inter-net ostentava o ttulo de espao em recons-truo constante. Vivamos o frenesi ri-zomtico. Hiperlinks ilimitados, volume dedados incontveis, contedos diversificados,trajetrias infinitas frente das cores vi-brantes dos ecrs. Continuamos a experi-mentar suas transformaes mas, trs aspec-tos latentes estabeleceram um marco de dor-mncia na postura do flneur virtual defen-dido pelos dois autores: a produo do self,o vigilantismo e a rotinizao da rota.

    Na multido de Baudelaire, o sujeitotransformava-se em no-sujeito. O gozo doflneur concentrava-se em perder-se no meiodos transeuntes a fim de no ser nem en-contrado nem reconhecido. Era assim queconstitua sua subjetividade enquanto ser quesubsistia nos espaos no institucionaliza-dos. No incio dos anos 2000, alguns au-tores celebraram a Internet como lugar sim-blico de transitoriedade, impermanncia ea autonomia. Estes atributos continuam as-

    sociados ao seu carter reticular. Mas aatitude da flnerie virtual que experimen-tamos atualmente, condiciona-se atravs dopoder de cooptao dos nossos desejos queos grandes monoplios digitais exercem so-bre nosso comportamento.

    Na meta-cidade, o ciber-flneur rende-se, no mais aos centros comerciais, mas justificao da presena. No h gozo emperder-se na multido de informao. Aocontrrio, a Internet de hoje exige reputao.O anonimato, apesar de continuar a exis-tir, no justifica a postura deste flneur. AInternet de hoje exige personalizao e pu-blicidade. Ao contrrio da flnerie, ela um convite para nos encontrarmos e paraser encontrado. O jogo relacional e afetivoque ela estabelece, colabora para criar no-vas identidades, novas subjetivaes, novascomplexidades e uma gigante base de dadoseficaz aos servios de triagem publicitriae vigilncia consentida. No h navegaocatica. Existem itinerrios quase mecni-cos, naturalizados pela repetio montonae anestsica. Clicamos nos mesmos links enos mesmos likes.

    Os ltimos suspiros do flneur virtual,ironicamente, reclamam por privacidade nomeio da ciber-multido. Ele regozija e sofre.Alegra-se com a infinita cidade que esperapor ser despojada, comemora sua cidada-nia, mas angustia-se com tantos disposi-tivos capazes de identific-lo e localiz-lo demaneira muito mais eficaz do que as medidasaplicadas no sc. XIX. A tecnologia de IPse os registros obrigatrios para subscrio desites na Internet, os cartes SIM e os sis-temas de GPS dos telemveis e tablets, ater-rorizam sua existncia. Sua rota foi transfor-mada em rotina de valor comercial.

    O flneur virtual participa de um jogo in-

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    voluntrio que se torna em ao voluntriana medida em que no consegue escapardo processo. Ao consentir, auxilia a es-camotear a fora poltica da vigilncia quese realiza atravs deste ato (Poster, 2000:102). O flneur virtual est confuso. Nasua memria emerge a lembrana de que oregistro da sua trajetria no passa de umpressuposto social de normalizao e har-monizao das populaes, conforme de-fendeu Foucault (1999). Mesmo admitindoas potencialidades do novo espao, sabe quequanto mais fugir, mais ser encontrado.Quanto mais navegar, quanto mais clicar,quanto mais marcar os amigos nas fotos,mais estar engrossando as estatsticas. AInternet de hoje no admite contemplao,no suporta a melancolia nem as angstiasdo mundo. Ela pr-activa, feliz e ren-tvel. Ao contrrio do que escreveu Lemos(2001) quando celebrou a flanrie virtual,os cliques nervosos e aleatrios imprimemno s as marcas do ciber-flneur na redecomo justifica o estado latente da sociedadeque o flanador de Baudelaire ignorava. Jno h tempo para levar tartarugas parapassear pelas galerias e seguir o protesto deBenjamim contra o capital (1994: 50-51).

    A celebrao filosfica e ecolgica daInternet tentadora. Estamos diante da m-xima experincia de comunicao que a todoinstante nos seduz. Se alguma vez esta ex-perincia foi de desvio e de invisibilidade,hoje ela tende a evidenciar que as clivagensdo discurso poltico da Internet vulgarizaramtodas as suas teorias de resistncia contra aessencializao das identidades e dos reces-sos ntimos e subjetivos.

    Referncias BibliogrficasBAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida

    Moderna. Trad.: Teresa Cruz. 4a ed.Lisboa, Nova Veja: 2006.

    BENJAMIM, Walter. Walter Benjamin: Se-lected Writings, Volume 3: 1935-1938.Ed. Michael W. Jennings, et al. Cam-bridge, MA, and London: The BelknapPress of Havard University Press , 2002.

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    IntroduoO flneur: A arte de ser vagabundoA angstia de BaudelaireA cooptao do poeta erranteOnde est o vagabundo virtual?Os ltimos suspiros do flneurReferncias Bibliogrficas