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 155 matraga, rio de janeiro, v.14, n.21, p.155-p.164, jul./dez. 2007 Santuza Cambraia Naves A ENTREVISTA COMO RECURSO ETNOGRÁFICO 1 Santuza Cambraia Naves (PUC-Rio) RESUMO Reflexão sobre a possibilidade de pensar a entrevista realizada com músicos populares como etnografia, devido principalmen- te ao procedimento de não separar empiria e teoria. A entrevis- ta é vista como uma obra em si, e não como subsídio empírico para uma teorização posterior. PALAVRAS-CHAVE: entrevista, etnografia, músicos populares Há alguns anos estudo a canção popular no Brasil, cujas dificul- dades específicas têm a ver com o estatuto singular que ela aqui desen-  volve u, principalmente a parti r do final dos anos 1950, torna ndo-se, acima de tudo, crítica. Por um lado, ao articular, à maneira modernista, a arte com a vida, tecendo comentários sobre o cenário político e cultu- ral; por outro, ao adotar, também como as vanguardas artísticas do início do século XX, uma série de procedimentos que comentam o pró- prio processo de composição, recorrendo, sobretudo, à metalinguagem e à paródia (NAVES, 2003). Assim, além de acompanhar o desempenho musical e performático dos artistas, costumo também entrevistá-los, procurando estabelecer com eles um diálogo produtivo. Este tipo de prática me levou a desenvolver uma identidade acadêmica um tanto peculiar, ajeitando-me nas fímbrias dos espaços departamentais, entre a antropologia, a sociologia e a teoria da literat ura. Reconheço, não obstante esta ambigüidade constitutiva, a minha dívida – e o meu fascínio – para com a etnografia, cujo método resultou de reflexões férteis de antropó- logos que, no início do século XX, procuraram alternativas às generali- zações das teorias evolucionistas com as quais haviam rompido. De fato, fazer antropologia, como reza a tradição desta discipli- na pelo menos desde Malinowski e Franz Boas, significa acima de tudo realizar um trabalho etnográfico. Claude Lévi-Strauss, em texto de 1954, discute esta questão ao afirmar que não é por um objeto de estudo específico que a antropologia se diferencia das outras ciências

Santuza a Entrevista Como Recurso Etnografico

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    Santuza Cambraia Naves

    A ENTREVISTA COMO RECURSO ETNOGRFICO1

    Santuza Cambraia Naves(PUC-Rio)

    RESUMOReflexo sobre a possibilidade de pensar a entrevista realizadacom msicos populares como etnografia, devido principalmen-te ao procedimento de no separar empiria e teoria. A entrevis-ta vista como uma obra em si, e no como subsdio empricopara uma teorizao posterior.PALAVRAS-CHAVE: entrevista, etnografia, msicos populares

    H alguns anos estudo a cano popular no Brasil, cujas dificul-dades especficas tm a ver com o estatuto singular que ela aqui desen-volveu, principalmente a partir do final dos anos 1950, tornando-se,acima de tudo, crtica. Por um lado, ao articular, maneira modernista,a arte com a vida, tecendo comentrios sobre o cenrio poltico e cultu-ral; por outro, ao adotar, tambm como as vanguardas artsticas doincio do sculo XX, uma srie de procedimentos que comentam o pr-prio processo de composio, recorrendo, sobretudo, metalinguageme pardia (NAVES, 2003). Assim, alm de acompanhar o desempenhomusical e performtico dos artistas, costumo tambm entrevist-los,procurando estabelecer com eles um dilogo produtivo. Este tipo deprtica me levou a desenvolver uma identidade acadmica um tantopeculiar, ajeitando-me nas fmbrias dos espaos departamentais, entre aantropologia, a sociologia e a teoria da literatura. Reconheo, no obstanteesta ambigidade constitutiva, a minha dvida e o meu fascnio paracom a etnografia, cujo mtodo resultou de reflexes frteis de antrop-logos que, no incio do sculo XX, procuraram alternativas s generali-zaes das teorias evolucionistas com as quais haviam rompido.

    De fato, fazer antropologia, como reza a tradio desta discipli-na pelo menos desde Malinowski e Franz Boas, significa acima detudo realizar um trabalho etnogrfico. Claude Lvi-Strauss, em textode 1954, discute esta questo ao afirmar que no por um objeto deestudo especfico que a antropologia se diferencia das outras cincias

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    humanas. Argumenta que, se a nova cincia teve incio com os estu-dos das chamadas sociedades primitivas, isso no significa, entre-tanto, que ela seja refm dos machados de pedra, do totemismo eda poligamia. E lembra oportunamente que os antroplogos, a partirdo perodo herico de constituio da disciplina (final do sculo XIXe primeiras dcadas do sculo XX), passaram a se interessar pelas so-ciedades civilizadas. Assim, a antropologia se singulariza e se desta-ca, no rol das cincias sociais, principalmente pela maneira originalde colocar os problemas (LVI-STRAUSS, 1996, p. 386). Lvi-Strausspe-se a explicar este diferencial da antropologia comparando-a coma sociologia, que v como estreitamente solidria com o observadorno apenas por tomar como objeto uma sociedade que lhe seme-lhante, mas, sobretudo, por abord-lo a partir de suas prprias cate-gorias lgicas. O antroplogo, ao contrrio, tende a formular um co-nhecimento inteligvel tanto para o nativo buscando alcanar o seuponto de vista quanto para um membro da sua prpria sociedade.(LVI-STRAUSS, 1996, p. 403-404).

    A partir dessas consideraes, seria possvel pensar a entrevis-ta, pelo menos na forma em que a realizo, como etnografia? A pergunta pertinente, porque os procedimentos usados para este tipo de entrevis-ta no pressupem necessariamente uma pesquisa de campo no sentidocannico da palavra, cuja tcnica a da observao participante, queenvolve, entre outras coisas, um contato prolongado com o nativo.Pelo contrrio, na maioria das vezes, o contato pessoal com o entrevis-tado s ocorre uma vez, levando-se em conta a condio do entrevista-do tpico: algum ligado ao show business ou a outras esferas do mundoartstico, ou mesmo uma estrela que brilha no cenrio acadmico jque costumo ouvir tambm a opinio dos crticos musicais e culturais.Trata-se, portanto, de pessoas muito requisitadas em suas reas espec-ficas e pouco disponveis, portanto, para conversas continuadas.

    Em que pesem as diferenas mencionadas entre a prticaetnogrfica e a da entrevista, podemos localizar pontos em comumentre uma e outra. Um deles, e talvez o mais importante, o do zeloantropolgico no sentido de no separar empiria e teoria. Isso signifi-ca que parto do pressuposto de que a entrevista uma obra em si, eno um subsdio emprico para uma teorizao posterior. Este comen-trio tambm faz eco proposta hermenutica de Gadamer, ao argu-mentar que a compreenso de um problema no acontece s no final

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    do que ele denomina investigao cientfico-espiritual (a qual dife-rencia da investigao promovida no mbito das cincias da nature-za); pelo contrrio, a apreenso de um determinado significado, se-gundo ele, j se d no incio da investigao, passando a dominargradualmente o todo. Assim, compreenso e interpretao, segundoele, se entrelaam mutuamente2 (DUTT, 1993, p. 47).

    E por falar em Gadamer, considero tambm o carter dialgicoda entrevista, que permite um processo constante de criao enquantodura o jogo de perguntas e respostas. Obviamente, para que o dilogose concretize, necessrio que o entrevistador no se reduza condi-o de um gravador de depoimentos alheios nem se esconda por trsde um questionrio frio e padronizado, mas que, pelo contrrio, assu-ma suas opinies. Em caso de discordncia entre entrevistador e en-trevistado, segue-se um embate que caracteriza mais ainda o aspectoldico dessa forma de conhecimento que no se reduz a uma sucessode perguntas e respostas. Devido adoo deste tipo de procedimento,algumas entrevistas se tornaram obras de referncia para determina-dos assuntos, como a que Lvi-Strauss concedeu a Georges Charbonnierpor volta de 1960, em que ambos emitiram opinies preciosas, entreoutras coisas, sobre arte e cultura (CHARBONNIER, 1989).

    E na medida em que no se visa um consenso nem tampouco umfechamento final da discusso, a entrevista se assemelha ao ensaio,tendo em vista o aspecto inacabado de ambas as formas. Um bomexemplo de tenso que no se resolve talvez possa ser dado em trechode entrevista que realizei com Hermano Vianna, em que o questioneicom relao ao artigo que ele escreveu para a Folha de So Paulo,intitulado A condenao silenciosa. Argumentei que, a despeito deele procurar sempre, a partir de uma postura relativista com relao msica, desconstruir uma srie de hierarquias, fazendo sempre umadefesa do entretenimento e uma crtica ao purismo, s ortodoxias e idia de autenticidade, quando no artigo citado ele defende o pagode,ele exemplifica com o conjunto Art Popular, que se destaca dos outrospela elaborao formal. Hermano respondeu dizendo que tinha cons-cincia disso e que propositalmente havia usado, para confundir umcerto tipo de leitores, argumentos quase de alta cultura. Com ointuito de prolongar a discusso, passei ento a cobr-lo quanto apossveis preferncias musicais, ao mesmo tempo em que lembrei quepostura semelhante dele, no sentido de democratizar o gosto musi-

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    cal, a dos tropicalistas, que abraaram o entretenimento, a cultura demassa, mas sempre operaram fazendo altas elaboraes formais.Hermano me respondeu que, de fato, tinha interesse por todos os g-neros musicais, inclusive pelo pagode, at que, depois de eu muitoinsistir, ele declarou a sua averso pela msica sertaneja. Mas em se-guida, como se pretendesse retomar o aspecto agnico dos embatesverbais que costuma travar com crticos, intelectuais e ativistas polti-cos, Hermano enveredou pela discusso sobre funk e hip-hop, compa-rando-os de maneira provocativa:

    Eu adoro o funk carioca, acho ele musicalmente mais interessante doque o hip-hop, que valorizado. Eu acho que ele mais criativo nojeito, nos timbres, na maneira de usar essa percusso que eles cha-mam de macumba. [...] E os samplers que eles usam, a maneira decantar, tudo muito criativo. Eles foram criando estilo prprio. Euvejo aquilo e acho completamente diferente do que se l nos jornais,que o hip-hop a msica consciente, importante... Outro dia fui nodebate da UNESCO sobre movimentos sociais no Rio de Janeiro. Lium artigo que no publiquei na poca, depois da morte do Tim Lopes.[...] O artigo era assim, meio desesperado: Vocs venceram, se paraacabar com o funk que acabem. E a li esse artigo na palestra daUNESCO, ao lado de MV Bill, Ktia Lund, Antnio Grasci, ReginaNovaes, que concordavam mais ou menos com o que eu estava falan-do. Mas a platia, composta em sua maioria por estudantes de esquer-da e por pessoas das rdios comunitrias, dizia coisas do tipo: Vocno pode comparar MV Bill com a Taty Quebra-Barraco, voc nopode colocar no mesmo saco. No estou querendo colocar no mes-mo saco, eu gosto de muitos sacos diferentes [...] Acho o MV Billbacana, acho a Taty Quebra-Barraco bacana tambm. E no dissenaquela ocasio, pois iria quebrar o pau se eu dissesse: Olha, eu achoa Taty Quebra-Barraco musicalmente mais interessante do que a mai-or parte do que o hip-hop faz, com excees, como o MV Bill. E oscaras das rdios comunitrias diziam: No, isso no toca na minhardio. A eu disse: Poxa, muito autoritrio. Esta postura maisautoritria do que a das rdios comerciais, ao dizer em um determi-nado sentido: Ns temos que ensinar. Eu sei o que bom e vouensinar o povo a gostar do que bom. (NAVES; COELHO; BACAL,2006, p. 289-290).

    Vale observar que, justamente pelo seu inacabamento distinti-vo, o dilogo no se restringe dupla formada pelo entrevistador epelo entrevistado, porque comum que ele repercuta, a partir princi-palmente de um ponto polmico, entre pessoas posteriormentecontatadas. Pode acontecer, neste caso, que o debate crie a possibili-

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    dade de pensar a questo em pauta atravs de uma perspectiva dife-rente, ou, o que mais raro, que propicie at mesmo a inveno denovos problemas e, conseqentemente, de novas palavras para nome-los. Neste caso, invocamos novamente Gadamer, ao afirmar que o di-logo se realiza no por tomarmos contato com o novo, mas por dei-xar algo dentro de ns, algo que no fazia parte de nossa experin-cia (GADAMER, 2000, p. 134).

    Um bom exemplo do primeiro caso o efeito desencadeado pelaentrevista realizada com Silviano Santiago (1/2/2002), a partir domomento em que ele criticou a conhecida frase de Oswald de Andrade:a massa ainda comer o biscoito fino que eu fabrico. Segundo San-tiago, esta frase seria reveladora da postura elitista dos modernistascom relao maneira como concebiam a educao do povo brasilei-ro, ao postularem que a massa incorporasse ou consumisse umconhecimento que no s lhe seria alheio na medida em que eraproduzido por uma intelligentsia ligada Semana de Arte Moderna como tambm lhe seria inoculado de cima para baixo. Cinco mesesdepois (em 16/7/2002), pedimos a Jos Miguel Wisnik que comentasseesse argumento de Santiago, o que ele fez, ao longo da entrevista,pensando a frase de Oswald atravs de uma perspectiva alternativa.Alm de declarar a sua simpatia para com essa frase de Oswald umaboutade, segundo ele , Wisnik considerou que a frase, profeticamen-te, remete a peculiaridades da cultura brasileira, a qual torna possvela passagem de uma cultura popular, que faz parte de um repertriode massas, para um nvel de densidade potica altssima. Vejamoscomo Wisnik complementou sua anlise:

    Houve um momento em que isso se configurou como umapotencialidade do pas canes de um repertrio mais elevado, den-sas, complexas, tendo possibilidade de circularem numa medida real-mente incomum para esse tipo de manifestao artstica. E isto signi-fica que a massa comeu e come o biscoito fino. [...] Nessa frase temum jogo, um trocadilho entre massa e biscoito, que significa queas matrias do mundo, em especial as simblicas, tm diferentes grausde densidade, e interagem. Na msica popular, como no futebol, con-vivem coisas finas e grossas. Uma das coisas fascinantes que a msi-ca popular urbana permitiu acontecer, em certo momento, foi o ex-traordinrio laboratrio de reverso do fino ao grosso, do grosso aofino. Quando uma coisa est fina demais, vem uma coisa grossa secontrapor quilo, e vice-versa. Essa realimentao paradoxal a coi-sa mais interessante da cultura popular de massas industrial, que faz

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    com que voc no esteja s num repertrio isolado que a msica deconcerto de certo modo promove, uma cmara de silncio, separadado mundo, na qual voc vai viver uma experincia musical privilegi-ada. (NAVES; COELHO; BACAL, 2006, p. 204-205).

    Quanto possibilidade aberta pela entrevista de se inventaremnovos problemas e s vezes novas categorias , um bom exemplo o fornecido por Caetano Veloso em entrevista que me concedeu em1986. Caetano fez o seguinte relato:

    Eu me lembro que o Jos Guilherme Merquior tomou como mote umacoisa dita por mim numa entrevista para a revista Isto, que eu acha-va esquisita uma entrevista que ele deu sobre psicanlise na Manche-te. Eu falei que, como ele aparecia em grandes fotografias posando nafrente dos livros dele, que ele estava invadindo a minha rea, que area do show business. E ele, na resposta, inteligentemente, captouuma coisa, na qual eu j tinha pensado, mas ele colocou de umamaneira muito boa, que exatamente a idia de que dos anos 60 parac, o que tem acontecido o contrrio. que as pessoas do showbusiness tm aparecido muito como substitutas dos ensastas, dos pen-sadores. E que isso, sim, que era uma distoro, porque essa genteno era seno e eu includo um resto do que havia de pior noromantismo. Sem querer, eu terminei, naquele momento, provocandode uma pessoa que um grande estudioso, um sujeito organizadointelectualmente, uma palavra um pouco mais comprometida comessa questo dos msicos populares como figuras assim mais ou me-nos orientadoras do pensamento, quer dizer, mais ou menos reveliadeles mesmos, tornados orientadores culturais, como pensadores dasociedade, dos problemas polticos... Isso uma coisa que realmentecomeou a acontecer dos anos 60 para c, mas que eu posso dizer queisso deve ter acontecido com o John Lennon, com o Mick Jagger, como Bob Dylan, e mais ou menos caiu em nossas mos de bandeja.

    Como vimos, a resposta de Jos Guilherme Merquior s obser-vaes jocosas de Caetano Veloso consistiu, na verdade, em um insightsobre o fenmeno cultural que se desenvolveu no Brasil pelo menos apartir dos anos 60, ou seja, o fato de o compositor popular ser reco-nhecido como um intelectual, um crtico da cultura. Esse assunto sem-pre me pareceu instigante, e medida que, ao longo dos anos, avana-va nas pesquisas sobre a constituio da idia de MPB, ele voltava baila. Retomei-o, ento, para observar a penetrao, no terreno dacano popular, principalmente a partir dos anos 40, de propostasque, no perodo modernista, eram restritas msica erudita. Mrio deAndrade, por exemplo, defendia a transfigurao erudita do populrio

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    (a cultura popular no contaminada pelo processo civilizatrio) emprol de um projeto construtivo (no caso, de construo da identidadenacional). Se a proposta modernista se aplicava, por exemplo, msi-ca de Villa-Lobos, mais tarde, principalmente a partir dos anos 50,passou a ser colocada em prtica, de maneira atualizada, pelos com-positores populares. Assim, a idia modernista de transfigurao doelemento popular para uma linguagem erudita passou a ser atualiza-da, na prtica dos msicos populares, como recriao das sonoridadeslegadas pela tradio. Devo reconhecer, portanto, que a troca de pala-vras entre Caetano e Merquior em muito influenciou a minha trajet-ria de pesquisadora de msica. Tanto isso verdade que, volta e meia,reconto a algum o episdio relatado por Caetano, visando talvez atua-lizar a discusso, o que fiz na entrevista citada com Silviano Santiago, oque dele provocou o seguinte comentrio:

    A idia tem uma tradio, porque a questo de intelectual (no sentidopreciso do termo, em oposio a artista) comea nas sociedades oci-dentais com o affaire Dreyfus. Desde que voc tenha atingido umdeterminado estatuto de qualidade numa atividade sua, voc tem di-reito a ter uma opinio universal. Creio que qualquer pessoa que te-nha adquirido esse grau de qualidade em qualquer atividade, no in-teressa qual filosofia, msica popular, literatura, lingstica, comoNoam Chomsky ou esse agricultor francs, o Jos Bov, [...] tem direi-to da opinio de valor universal. [...] Agora, essa passagem do parti-cular para o universal conseqncia, em primeiro lugar, de umadiviso do conhecimento em disciplinas. Nem a filosofia tem maisdireito hoje a uma fala universal, ningum mais tem. Ento, na medi-da em que ningum mais tem direito a uma fala universal, ela s podeser concedida a quem tenha sido excelente em um determinado cam-po de atividade especfica. Penso que tanto o Caetano quanto o ZGuilherme Merquior tm importncia nos seus respectivos campos,tm direito a dar opinies gerais e a se manifestar sobre o que elesbem entendem. Acho que so duas pessoas que se distinguiram. [...]Eu deslocaria a questo para isso: por que a palavra de Caetano, apartir da dcada 80, se tornou muito mais consensual do que a pala-vra do Z Guilherme Merquior? (NAVES; COELHO; BACAL, 2006, p.147-148).

    Retomo aqui o tema da entrevista como etnografia, e no poracaso. Uma das regras do trabalho de campo antropolgico conside-rar em primeira mo o ponto de vista do nativo, como j prescreviaMalinowski desde 1922, em Argonautas do Pacfico Ocidental(MALINOWSKI, 1978). Procuro, evidentemente, seguir esta conduta,

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    considerando, no entanto, que muito comum lidar, na linha de pes-quisa sobre a msica popular e sua crtica no Brasil, com uma espciede nativo erudito, como so os casos citados de Silviano Santiago eJos Miguel Wisnik. Este estatuto de meus informantes me levanta umproblema relativo ao fato de que, ao contrrio do objeto de estudo deMalinowski, os trobriandeses, que constituam uma cultura exticaaos olhos do antroplogo e aos quais s se tinha acesso, no final dosanos 1910, a partir de uma longa viagem de navio, vrios de meusentrevistados, alm de muito prximos em termos geogrficos e cultu-rais, mostram-se hierarquicamente superiores a mim na instncia quepartilhamos da vida acadmica. Em alguns casos, so pessoas que co-operam no meu processo de formao como professores ou como refe-rncias intelectuais. Assim, todo o cuidado pouco na maneira detrabalhar os seus pontos de vista. A despeito da singularidade dessesnativos identificados como promotores de cultura, procuro no tra-tar as suas consideraes como a palavra final sobre determinadoassunto, ou, como reza uma tradio bastante ingnua de textos bio-grficos e autobiogrficos, a verdade definitiva sobre Fulano, a suatrajetria e o seu tempo. Orientado por um entendimento diferente,procedo no sentido de conceber os textos dos entrevistados como ver-ses relativas a algum ou a alguma coisa.

    A diversidade de opinies sem dvida enriquece a discussosobre o tema. Mas j me deparei tambm com circunstncias que pro-vocaram um efeito, se no contrrio, pelo menos diferente, relativas tendncia, comum a alguns artistas, de responder de maneira padroni-zada a questes colocadas em entrevistas sobre trajetria profissionale construo da persona, entre outros itens. Este tipo de atitude sugereuma srie de explicaes, e a primeira idia que me vem cabea que o entrevistado em questo criou um tipo, algo assim como umpersonagem folclorizado, um esteretipo de si prprio. Este comporta-mento tende a ser assumido por msicos que no vem sentido ematuar fora de sua rea especfica e em prestarem depoimentos sobre oque quer que seja. como se o mundo se resumisse, para eles, no seuestdio de composio. H tambm casos de artistas maisintelectualizados que assumem este tipo de postura por outros moti-vos, como, por exemplo, pelo fato de se tornarem melanclicos aolongo do tempo. Tive uma experincia parecida com uma pessoa quesempre reputei como um dos intelectuais mais importantes que surgi-ram na dcada de 1960 e fui para a entrevista sequiosa para ouvir assuas consideraes sobre o passado, o presente e o futuro da cultura

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    brasileira. Devo confessar que o resultado foi decepcionante, pois aquelafigura a que eu reputava vitalidade absoluta no campo cultural semostrava enfraquecida, sem vontade, e tanto parecia me dizer que nose encantava com o seu passado, como que o seu presente era semsentido e que no vislumbrava nenhum futuro.

    De qualquer maneira, procuro no hierarquizar as entrevistaspor critrios que envolvam opo pessoal por figuras presumivelmenteautnticas, fantasiosas (personalidades mitmanas ou folclorizadas quemencionei anteriormente) ou melanclicas, entre outros tipos, porqueno h como negar que lidamos sempre com personagens, cujas identida-des so construdas a partir de processos de seleo. Assim, omitem-sedeterminados aspectos e enfatizam-se outros. E devo, alis, admitir, quetanto a memria fantasiosa quanto a melanclica podem se tornarobjetos de anlise interessantes, na medida em que so tambm reveladorasde determinadas predisposies ou estados de esprito individuais ou co-letivos. Ao indagar aos entrevistados sobre suas trajetrias e observar asidentidades que criam como artistas ou intelectuais, no busco realida-des a serem desvendadas, ou documentos comprobatrios de algumaverdade; afinal, tomo os seus relatos memorialsticos como categoriasnativas de pensamento (HALBWACHS, 1990; YATES, 1974). A meu ver,os depoimentos individuais tm carter ficcional; e, procurando ser coe-rente com este postulado, vejo tambm a cultura como um enredo tecidono s pelas pessoas que a integram, como tambm pelos antroplogosque a interpretam (GONALVES, 1996).

    ABSTRACTA reflection on the possibility of conceiving interviews of po-pular musicians as ethnography, particularly by not establishinga barrier between the empirical and the theoretical. The interviewis seen as a work in its own right rather than as an empiricalinput for later theorization.KEY WORDS: interview, ethnography, popular musicians

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    REFERNCIAS

    CHARBONNIER, Georges. Arte, linguagem, etnologia. Entrevistas com ClaudeLvi-Strauss. So Paulo: Papirus, 1989.

    DUTT, Carsten (org.). In conversacin com Hans-Georg Gadamer. Madrid: Edi-torial Tecnos, 1993.

    GADAMER, Hans-Georg. A incapacidade para o dilogo. In: ______.Hermutica filosfica nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre:Editora PUC-RS, 2000.

    GONALVES, Jos Reginaldo dos Santos. A obsesso pela cultura. In: PAIVA,Mrcia e MOREIRA, Maria Ester (orgs.). Cultura substantivo plural. Rio deJaneiro: CCBB; So Paulo: Ed. 34, 1996.

    HALBWACHS, Maurice. A memria coletiva. Rio de Janeiro: Vrtice, 1990.

    LVI-STRAUSS, Claude. Lugar da antropologia nas cincias sociais e proble-mas colocados por seu ensino. In: ______. Antropologia estrutural. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 385-424.

    MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacfico Ocidental: um relato doempreendimento e da aventura dos arquiplagos da Nova Guin Melansia.So Paulo: Abril Cultural, 1978.

    NAVES, Santuza Cambraia. A cano crtica. In: DUARTE, Paulo Sergio eNAVES, Santuza Cambraia (orgs.). Do samba-cano Tropiclia. Rio de Ja-neiro: FAPERJ/Relume Dumar, 2003.

    NAVES, Santuza Cambraia; COELHO, Frederico Oliveira; BACAL, Tatiana (orgs.).A MPB em discusso entrevistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

    YATES, F. El arte de la memoria. Madrid: Taurus Ediciones, 1974.

    NOTAS1 Este artigo resulta de palestra proferida no X Congresso Internacional daABRALIC (Associao Brasileira de Literatura Comparada), em simpsio co-ordenado por Italo Moriconi, Marlia Rothier Cardoso e Ana Cludia Viegas,intitulado Vida literria, virada de sculo: estados da arte, e seo intituladaA entrevista recurso metodolgico, gnero textual (UERJ, Rio de Janeiro, 4de agosto de 2006). Agradeo a Italo Moriconi por ter me convidado e incen-tivado a escrever sobre a minha experincia com a entrevista, e a GustavoSilvano Batista, por fazer uma leitura cuidadosa deste texto e me sugerir aleitura de Hans-Georg Gadamer, por identificar a minha noo de dilogocom a dele.2 A traduo minha.