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ADEMIR LUIZ ALESSANDRO GARCIA CLAUDIO PORTELLA DANIEL OSIECKI FAUSTO FAWCETT JAYME FERREIRA BUENO MARLISE SAPIECINSKI REVISTA DE CRÍTICA ANO 01 / # 05

Sainte-Beuve #05

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Revista brasileira de crítica.

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Ademir Luiz ALessAndro GArciAcLAudio PorteLLA dAnieL osiecki FAusto FAwcettJAyme FerreirA Bueno mArLise sAPiecinski

REVISTA DE CRÍTICAANO 01 / # 05

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REVISTA DE CRÍTICA

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Todos os direitos desta edição reservados a

os colaboradores asseguram seu direito moral de serem identificados como os autores dessa obra.

© 2014 PuBLicAdo oriGinALmente em 2014 com o tÍtuLo SAINTE-BEUVE REVISTA DE CRÍTICA Nº 5 ///

coPyriGHt dA seLeÇÃo © 2014 FLAUBERT REVISTA DE CONTOS ///

todos os textos destA ediÇÃo sÃo coPyriGHt de seus resPectivos Autores ///

© ADEmIR LUIz // ALESSANDRO GARCIA //CLAUDIO PORTELLA // DANIEL OSIECkI // FAUSTO FAwCETT //

JAymE FERREIRA BUENO // mARLISE SAPIECINSkI ///

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NESTAEDIÇÃO:

11 AlessAndro GArciA

Emocional e sincero, Middlesex parecia, até o

momento, o dono do cetro de romance de sua geração.

15 dAnielosiecki

A incursão de Lobo Antunes em um tema tão forte como as

marcas deixadas pela guerra o acompanhará durante boa

parte de sua obra ficcional.

18 FAusto FAwcett

Os personagens de Andre Sant’anna são apresentados como primatas urbanizados

se debatendo na luta pra se afirmar (...)

21 JAyme FerreirA Bueno

Uma coisa é a realidade, outra, diferente, é a produção artística.

9 Ademirluiz

O Rei está morto, vida longa ao Rei

23 mArlise sAPiecinski

Tudo o que forma o caráter de Antígona a impele a

desafiar o édito de Creonte.

13 clAudio PortellA

Mas a Luciana quer saber dos críticos que estão

escondidos, e acha que o livro organizado por Alan Flávio

Viola da conta do recado.

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contAto [email protected] /// issuu.com/revistAFLAuBert /// FAceBook.com/revistAFLAuBert

EXPEDIENTEeditor mARIEL REIS [[email protected]] ///

conseLHo editoriAL ANDRÉ TARTARINI [[email protected]] //JD LUCAS [[email protected]] ///

editores reGionAis rio GrAnde do suL ALESSANDRO GARCIA [[email protected]] //

ceArÁ ANDERSON FONSECA [[email protected]] // rio de JAneiro ANDRÉ TARTARINI, JD LUCAS //

PArAnÁ DANIEL OSIECkI [[email protected]] // sÃo PAuLo DELFIN [[email protected]] ///

ProJeto GrÁFico ALESSANDRO GARCIAdiAGrAmAÇÃo STUDIO DELREy

os personagens e as situações dos textos aqui publicados são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e sobre eles não emitem opiniões.

Ano 01 / # 05

BrAsiL2014

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EDITORIAL

A crítica literária é pobre no Brasil, escrevi em artigo. Paradoxalmente, o outro lado disto é a presença discreta de cultores de uma crítica centrada na obra, sem apelo para jargões interpretativos e, sobretudo, sem a violência de uma imposição de

leitura sobre a obra literária, sequestrando-a para um valor adjetivo que não lhe pertence ou lhe é exagerado. Em um tempo de abandono avaliativo, os comentaristas de literatura desesperam-se por um avatar que substitua os totens de uma cultura brasileira que se transforma sem nenhuma certeza sobre si mesma, sem indicativos de direção ou balizas instituídas para mensuramento do que se constrói em um tempo de rapidez, consumo e dissolução.

Os suplementos culturais dos jornais sofrem desprestígio, perdem espaço e cada vez mais os comentaristas instalados são pouco aparelhados para apreciação dos fenômenos não apenas literários, como também os políticos e culturais. E a literatura é um segmento do fenômeno cultural. Não conseguimos formar bons avaliadores. Percebemos um déficit na capacitação dos profissionais que se arvoram como os pretensos críticos, devemos questionar a validação desses profissionais e interrogar os motivos de ocupação de territórios privilegiados se não há a percepção de um comportamento intelectual adequado para preenchê-lo. Isto não se refere a formação acadêmica, mas a formação de um leitor capaz de transvaloração da leitura de uma obra, que a surpreenda na própria surpresa tramada contra o espectador e revele seus alçapões.

Assis Brasil, escritor piauiense, apresentou-me a Fausto Cunha. Antes mesmo que falássemos sobre qualquer assunto, a simpatia do crítico e leitor voraz tomou-me a lição de casa: uma tabuada sobre os clássicos da minha língua. Assis Brasil olhava calmo, certo de que o aluno se sairia bem da arguição. Minha memória, antes e depois de meu acidente cerebral, sempre se mostrou generosa, acudiu-me e minha pouca inteligência produziu fulgurantes centelhas acerca do que era perguntado. Parecia ter agrado as minhas respostas, meu conhecimento sobre livros e autores brasileiros. “Mariel, como é saudável encontrar um jovem familiarizado com a sua língua e a sua literatura. Todos que me têm procurado, escrevendo ficção ou crítica, leram dois ou três autores brasileiros por obrigação escolar. A mesma cartilha: Machado de Assis, um pouco de Graciliano (Ramos), outro punhado de Guimarães (Rosa), Clarice (Lispector). E acham suficiente para sair por aí apontando o dedo, dizendo isso pode, isso não pode. Pequenos draconianos. Agora podemos conversar, porque há muito imbecil travestido de intelectual. Gente que não sabe ler nem as próprias vírgulas”.

A minha experiência se deu na década de noventa. Muita coisa mudou, e a Sainte-Beuve acompanha uma parcela de autores que leem muito mais que as vírgulas. Minha gratidão a todos os leitores e colaboradores da edição.

mARIEL REIS // editor

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O REIE Eu

Ademir Luiz

No livro Os dois corpos do rei, o historiador Ernst Kantorowicz analisa a perspectiva, largamente difundida na Inglaterra do século XVI, de que

o soberano possuía tanto um corpo físico, basicamente igual ao de qualquer pessoa, com fraquezas e limitações, quanto um corpo místico, que representava em si o sentido último do reino que governava. Quando o rei morria, quem partia não era o Rei em si, o Rei com R maiúsculo, mas o indivíduo que estava, naquele momento, imbuído de seus atributos. Seu sucessor herdaria, para além dos privilégios e responsabilidades burocráticas e de corte, sobretudo seu corpo místico. Rei morto, Rei posto. O Rei está morto, vida longa ao Rei.

Esses “dois corpos do rei” podem ser interpretados artisticamente de diferentes formas. Por exemplo: na adaptação cinematográfica da peça Henrique V, de Shakespeare, dirigida por Laurence Olivier na década de 1950, o célebre monólogo do protagonista é uma apologia a instituição da monarquia, exaltando o rei como uma figura, por definição, acima do homem comum. O corpo místico é o foco. Na versão de 1989, dirigida por Kenneth Branagh, a mesma cena é usada para humanizar Henrique V, colocando em perspectiva o papel social que lhe coube desempenhar, em função das circunstâncias. O corpo real, de carne e osso, domina. As mesmas palavras, interpretações diferentes. O mesmo personagem, personagens diferentes.

Henrique V foi uma figura que existiu no tempo e no espaço; mas Shakespeare o pôs numa outra esfera quando criou o personagem Henrique V, colocando-o na dimensão da alta literatura, tornando-o múltiplo, aristotelicamente salvaguardando-o da pressuposta objetividade do relato histórico, possibilitando que Olivier e Branagh o interpretassem de diferentes formas, sem deixar de ser o Henrique V de Shakespeare e mantendo o eco do homem que nasceu em 16 de setembro de 1386, na Inglaterra, e morreu em 31 de agosto de 1422, na França.

Na novela O retrato ou Um pouco de Henry James não faz mal a ninguém, de 2014, o escritor Lima Trindade propõe uma interessante visão acerca dos dois corpos do rei Dom Carlos I de Portugal. Lima Trindade é um dos mais interessantes prosadores da nova geração brasileira, tendo lançado a novela Supermercado da solidão (LGE, 2005), os volumes de contos Todo sol mais o Espírito Santo (Ateliê

Editorial, 2005) e Corações, Blues e Serpentinas (Arte Pau Brasil, 2007), figurou em diversas antologias de contos e trabalha atualmente no romance A cidade e os nomes, premiado pelo Edital para Criação Literária da SECULT/BA (2012). Além de consistente atuação literária, Lima Trindade também é editor da revista eletrônica Verbo21, uma das mais conceituadas da internet brasileira com foco em literatura.

O retrato recebeu um belo trabalho gráfico da editora P55. Na forma de envelope (o livro faz parte da coleção Cartas Bahianas), trata-se de uma peculiar e elegante edição de bolso, contendo belas ilustrações e fotos. Em suas 46 páginas, Lima Trindade transita por diversos gêneros. O livro começa no melhor estilo de Henry James, como propõe seu subtítulo, partindo de uma divertida narrativa de viagem que subitamente se transforma em um mistério com ares sobrenaturais, literalmente uma “volta do parafuso”. Em seguida, torna-se um romance histórico, amparado em apurada pesquisa, que habilmente o autor vai transformando em uma história de amor proibido. Todas essas mudanças de eixo narrativo são realizadas de maneira suave e convincente, embora eu tenha sentido falta de um maior desenvolvimento do “mistério” da primeira parte, que se revela, aparentemente, fruto de mera coincidência. Realmente, um pouco de Henry James não faz mal a ninguém e, nesse caso em particular, eu queria mais.

Estando claro o sentido do subtítulo, de quem é “o retrato” do título? Na verdade, trata-se de um retrato que não houve. O retrato de uma pessoa que, no universo de ficção proposto pelo autor, ficou escondido pela história.

A novela é composta por duas narrativas em primeira pessoa que se mesclam sem se misturar. Os dois narradores possuem o mesmo nome: António Dias de Oliveira. O primeiro, que traça a primeira camada narrativa, é um escritor contemporâneo, que faz uma viagem turística a Portugal com seu companheiro, Simão. O segundo António Dias de Oliveira foi um empregado no Palácio de Verão da Família Real Portuguesa, falecido em 12 de agosto de 1911. A visão do túmulo de seu homônimo no dia 12 de agosto de 2011 fez com que o António contemporâneo buscasse informações sobre essa obscura figura do passado.

Descobre que se tratou de um jovem sensível e letrado que manteve uma longeva relação amorosa com

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Dom Carlos I, um rei conhecido por sua inteligência, interesse pelas artes, ciências e por sua grande capacidade diplomática. As sequências onde Lima Trindade desenvolve o processo de sedução do grande rei ao jovem plebeu são sutis e, sendo narradas do ponto de vista de António, plenas de inocência. Compartilhamos com António as dúvidas sobre os reais sentimentos do monarca, se ele foi apenas mais um seduzido de uma longa lista ou se Carlos I de fato lhe tinha afeto, um afeto que socialmente não poderia ser demonstrado ou revelado, jamais fica claro. Essa incerteza enriquece a narrativa, que do contrário poderia sucumbir ao sentimentalismo barato. Mas, longe disso, Lima teve a habilidade de mostrar que ao mesmo tempo em que Carlos I era um homem pleno de desejos era também um rei, um rei enfrentando um momento de crise de Estado, sobrando-lhe pouquíssimo tempo para sua vida pessoal. Essa dubiedade o enriquece enquanto personagem, tornando a angustia de António mais real. Tornando pungente seu impossível desejo de aparecer em um retrato tirado pelo rei.

Em determinado momento da narrativa, António desabafa que “Nunca ninguém fez meu retrato. El-Rei tinha uma máquina fotográfica. No ano passado, fotografou os filhos. Bem que poderia me fotografar um dia” (p. 23). Mas essa foto se revelaria impossível. António estava condenado a ficar nas sombras.

Ficou? Aparentemente não. Carlos I foi assassinado por simpatizantes da República no dia 1º de fevereiro de 1908. Seu amante, inconsolado, escreveu que “morreu aquele de quem só tive o exemplo da coragem e do amor”. Mas como sabemos que escreveu? De acordo com a narrativa, o António contemporâneo encontrou sua história em um blog obscuro chamado apelativamente de “Segredos de Alcova”. Como os autores do blog tiveram acesso a tais informações? Simplesmente inventaram? Parece pouco provável. O texto em primeira pessoa do António do passado, embora tenha uma ou outra expressão arcaica, é escrito em português brasileiro e moderno, dando a entender que se trata da atualização de um documento de época. Considerando todas essas informações, é possível que o amante do rei assassinado, sendo um jovem letrado e culto, apreciador de literatura, tenha decidido exorcizar suas angústias escrevendo sua história secreta em um diário, como era comum se fazer no século XIX e início do XX, antes da cultura da exposição extrema que vivemos hoje.

Esse diário, depois de sua morte, pode ter sido incorporado ao acervo de algum arquivo, em função do fato de pertencer a alguém próximo da Corte. Tempos depois, eventualmente, foi encontrado por um historiador acadêmico que incluiu a descoberta em alguma nota de rodapé de seu trabalho científico, na condição de curiosidade acerca das práticas eróticas dos monarcas portugueses. É possível ainda que o detalhe tenha chamado atenção de neófitos, certamente brasileiros, que adaptaram as informações originais e as divulgaram para o grande público no blog de fofocas históricas. Surge aqui a terceira camada narrativa. A primeira é a do António contemporâneo que lê num blog, que é a segunda camada narrativa, a história do outro António, sendo que o texto do blog foi inspirado em um diário antigo.

Um manuscrito, naturalmente, diria Umberto Eco. Parece crível, mas, reforço, sou eu refletindo a partir das propostas de Lima Trindade. Apenas isso.

Na verdade, é preferível que o mistério continue. Explicar demais pode tirar o encanto da estória, sem H. Afinal, Henry James foi mestre em instigar nossa imaginação com mistérios que encantam mais pela sugestão do que pelo explícito. Lima Trindade soube fazer sua parte. Seu O retrato é um livro sobre múltiplos corpos e múltiplos pontos de vista, que podem ser históricos ou ficcionais (como o autor faz questão de deixar claro ao final do volume). Dois corpos do Rei, dois corpos de dois Antónios diferentes, mas curiosamente próximos, ou aproximados, na vida e na morte.

O livroO retrato ou um pouco deHenry James não faz mal a ninguémLima TrindadeP55 Edições. 48 páginas

Ademir Luiz é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), doutor em História e pós-doutor em Poéticas Visuais e Processos de Criação. Correio eletrônico: [email protected]

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NA SOmbRA DE fRANzEN, NA cOLA

DE wALLAcE

ALessAndro GArciA

No final da década de 80, quando Jonathan Franzen e David Foster Wallace já eram, aos vinte e poucos anos, dois jovens escritores com seus romances

de estreia sendo comentados (The Twentyseventh City, de Franzen e The Broom of the System, de Wallace, ambos inéditos no Brasil), Jeffrey Eugenides era somente um secretário executivo de uma associação de poetas, tentando desesperadamente emplacar seus contos na consagrada revista The Paris Review.

Alguns anos depois, Eugenides finalmente lança, em 1993, As Virgens Suicidas. O autor sempre declarou confiar no conselho de Virginia Woolf, de não lançar um livro antes dos 30. Talvez a espera explique a madura obra de estreia do autor, saudado pela crítica como uma das grandes vozes da jovem literatura americana. Retrato sensível dos aspectos mais dolorosos da adolescência, foi adaptado por Sofia Copolla para o cinema. Não tardou a tornar-se obra de culto, com sua narrativa lírica que traz uma espécie de coro de vozes dos então vizinhos das irmãs Lisbon, que mesmo muitos anos após, ainda tentam compreender o suicídio das cinco adolescentes em uma Detroit dos anos 70.

Em 2002, quando lança Middlesex, Jeffrey Eugenides comprova o talento extremamente inventivo de sua literatura. O romance conta a fantástica história de um gene que atravessa três gerações da família de gregos americanos Stephanides, até florescer no quinto cromossomo de um hermafrodita, a menina Calliope que, ao crescer, revela-se no seu contrário. Espécie de investigação científica narrada de forma intimista por uma Cal aos 41 anos de idade, o livro é um caldeirão no qual a protagonista joga detalhes sobre suas peripécias de infância, a adolescência conturbada e as mutações do seu corpo. Tudo isto encadeado por uma saga que se estende por oito décadas de vida da sua família e permeia fatos políticos, sociais e culturais, como a queda do Império Otomano, os anos 20 de uma Detroit industrial, a 2ª Guerra Mundial e uma liberal San Francisco dos anos 70. Mais elogios da crítica em todo o mundo e Middlesex ganha, além do National Book Award, o Pulitzer.

Pós-modernidade ou Oprah Winfrey?Jeffrey Eugenides parecia então fadado a igualar-se, ou

até superar, Franzen e Wallace. Eram eles as duas maiores estrelas entre os escritores que, com menos de 40 anos,

estavam envolvidos em uma luta de superação do legado de seus antecessores. Se a pós-modernidade e o hermetismo de nomes como Thomas Pynchon e John Barth eram, para estes jovens autores, insatisfatórios em traduzir as angústias de uma América contemporânea, qual deles então escreveria o romance que consagraria sua geração? O romance que romperia com a onipresente ironia — tão intima mente ligada ao pós-modernismo — e reabilitaria a literatura “emocional e sincera”, como David Foster Wallace defende em seu ensaio E unibus pluram, do livro A supposedly fun thing I’ll never do again, de 1997.

O próprio Wallace ambicionou ocupar a posição, em 1996, com seu enciclopédico Infinite Jest. No entanto, apesar do culto (e inveja) dos seus próprios pares, o livro ainda pode ser encarado com uma sátira e não somente como a história “triste” que o autor estava querendo escrever desde que estreara, como declarou à revista virtual Salon. Não obstante o New York Times ter definido Wallace como “um virtuose que parece capaz de fazer qualquer coisa”, Infinite Jest não rompeu seu elo com a persona mordaz que os brasileiros só puderam conhecer, até agora, pela publicação de Breves Entrevistas com Homens Hediondos (Companhia das Letras, 2005).

Emocional e sincero, Middlesex parecia, até o momento, o dono do cetro de romance de sua geração. Mas eis que, em 2011, Jonathan Franzen descobre o mapa da mina. Depois do sucesso de As Correções, de 2001, Franzen continua investindo em uma forma tradicional de narrativa realista e, em 2010, lança Liberdade. Romance mais comentado daquele ano e do seguinte, colocou o autor na capa da Times sob o epíteto “O Grande Romancista americano” e foi considerado o livro do século para o The Guardian. Ambicioso até a medula, usa o triângulo formado pelo casal Walter e Patty Berglund e o roqueiro Richard Katz, desde seus anos na universidade até os dias atuais, para construir um grande painel social que abarca o choque entre o liberalismo e o conservadorismo nos governos Reagan, Clinton e Bush, a superpopulação, as ameaças ecológicas, a derrocada do politicamente correto, o individualismo, a crise entre gerações, a globalização. Ufa! Franzen, através do mergulho na tragédia familiar pretende tocar nos pontos nevrálgicos da classe média norte-americana, com seu registro herdeiro da literatura do século XIX. Uma escolha

História de amor, roman à clef e bildungsroman: “A Trama de Casamento”, de Jeffrey Eugenides, é tudo isto. Mas é também desvio de uma voz até então original, que dá lugar a um realismo

painelístico típico de Jonathan Franzen e pega David Foster Wallace emprestado para decalque.

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estética que agradou da crítica empertigada a uma Oprah Winfrey histriônica, tornando-se um dos livros mais vendidos no mundo inteiro.

Roman à clef, bildungsromanAs pressões de um mercado editorial pós-Liberdade devem

ter tocado fundo em Jeffrey Eugenides, e isto transparece em seu recém-lançado no Brasil A Trama de Casamento. Se entre todos os autores daquela “panelinha” geracional, na qual se pode incluir também Michael Chabon, Chuck Palahniuk e Dave Eggers, Eugenides parecia o mais capaz de renovar a forma do romance (porque preocupado com assuntos mais sensíveis que Chabon e Palahniuk, porque capaz de uma inventividade que não chegava a assustar como um Wallace), em A Trama do Casamento ele cede ao convencionalismo de um livro que parece ter sido escrito com a pressão de um Jonathan Franzen nos ombros e a obsessão por um David Foster Wallace no tema. A pressão de Franzen sente-se ao nos darmos conta de que Eugenides abandona a inventividade extrema que vinha marcando sua obra, e cede lugar a um romance painelístico convencional que não faz jus ao trabalho do autor até então. Já a obsessão por Wallace é um fantasma que se apresenta de duas formas: além de parecer querer responder a um desafio feito por este no já citado ensaio E unibus pluram — ser um “antirrebelde” da literatura, um autor sem medo de ser tachado de melodramático e sentimentalóide —, em seu livro ele constrói um personagem que é simplesmente um decalque de David Foster Wallace (tal qual Franzen e seu Richard Katz, outro simulacro de Wallace), incluindo a bandana, o tabaco de mascar, a especialização em filosofia e a luta com a depressão.

O personagem em questão é o estudante de biologia Leonard Bankhead, o mais interessante, pelos motivos supracitados, da trindade formada neste livro. Ela inclui, ainda, o estudante de religião Mitchell Grammaticus e Madeleine Hanna. É em torno dela que orbitam os dois personagens masculinos, pretendentes românticos que rivalizam em estilos para conquistar a estudante de letras apaixonada por romances de casamento do século XIX. Ao bom leitor, basta somente a exposição desta sinopse para perceber que, mais do que com a metaliteratura (a heroína casadoira apaixonada por personagens casadoiras em dúvidas quanto aos dois pretendentes), Eugenides flerta com o roman à clef: se Bankhead é Wallace, o romântico Grammaticus, greco-americano de Detroit, seria o próprio Eugenides? O autor, já confrontado com esta hipótese, afirma que não.

Agora, que fique claro: Jeffrey Eugenides é um talento, com domínio indiscutível de sua prosa e grande habilidade para a construção de situações que avançam e regridem no tempo, intercaladas sutilmente entre seus protagonistas. Cria diálogos cômicos e repletos de coloquialidade — é um livro engraçado e com ótimos momentos. Mas com o defeito de seu mote esgotar-se antes de seu fm. Abandonando o divertido argumento a que se dedicava, sobre o cenário acadêmico americano nos anos 80, quando a difusão da semiótica implodiu com a ideia que se tinha de romance,

A Trama do Casamento converte-se em bildungsroman, ao alternar focos narrativos para contar a “jornada” de formação de seus três personagens (quando, mais uma vez, o preciosismo da derrocada depressiva de Bankhead oblitera os outros dois, mesmo o inspirado processo de descoberta religiosa de Grammaticus), afinal revelando-se uma insossa história de amor. E o que deveria ser uma modernização dos romances vitorianos beira a ingenuidade de um triângulo amoroso pós-adolescente.

O que mais se destaca, no fim das contas, é a indecisão de Jeffrey Eugenides entre dedicar-se à ambição metaficcional com que ameaça desde o título ou à construção de mais um romance realista, painelístico — e que é contradição à voz ímpar e inventiva de sua obra, até então. Se livros são sobre outros livros, como diz um personagem de A Trama de Casamento, talvez este seja sobre o livro metaficcional que gostaríamos que David Foster Wallace tivesse escrito ou o livro painelístico que, até agora, Jonathan Franzen tem escrito melhor.

O livroA Trama do CasamentoJeffrey EugenidesTradução de Caetano Waldrigues GalindoCompanhia das Letras. 440 páginas

ALessAndro GArciA é escritor, autor de A Sordidez das Pequenas Coisas (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti e um dos vencedores do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Escreve atualemente o livro infantil Números São Muitos Mundos e A Zona da Invisibilidade.

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A cRíTIcADA cRíTIcADA cRíTIcA

cLÁudio PorteLLA

O texto da orelha, de Luciana Villas-Boas, sem dúvida, experiente e capacitada editora, fala do bom momento do mercado editorial brasileiro, e indaga

sobre quem são os críticos desses “novos” autores nacionais que o mercado resolveu acolher. Cita nomes de críticos de gerações passadas e quer saber cinco nomes de críticos que de fato estão atuando, ou atuaram, no mundo contemporâneo da literatura brasileira atual. Fala que não vale citar os que têm espaços nos jornais, ou os que se tornaram acadêmicos. O que não faz muito sentido, já que os espaços (cada vez mais raros) nos jornais, e os meios acadêmicos são os veículos onde os críticos mostram seu ofício.

Vale abrir espaço para dizer que o jornal Rascunho é o principal jornal onde estão, ou estiveram, os melhores críticos da literatura contemporânea.

Mas a Luciana quer saber dos críticos que estão escondidos, e acha que o livro organizado por Alan Flávio Viola da conta do recado. Conclui dizendo que o volume é, em certa medida, uma crítica da crítica sobre a produção crítica contemporânea. Assim sendo, intitulei minha resenha de A crítica da crítica da crítica. Vamos a ela.

Nada a dizer do abrir com um texto sobre crítica de Machado de Assis. A não ser que foi uma sugestiva e acertada ideia.

Passemos para os críticos selecionados como os críticos literários contemporâneos. Sigamos o que diz Luciana Villas-Boas, segundo o que importa é conhecermos os críticos literários escondidos, os que não têm espaços nos jornais, ou que não transitam largamente no mundo da crítica acadêmica. Nesse sentido, não vou comentar os autores selecionados: Paulo Franchetti, Luiz Bras (Disse que não vou comentar, mas aqui me sinto no dever de dizer que o texto, Crítica é cara ou coroa, de Nelson de Oliveira é o melhor e mais lúcido da coletânea. Havia tempo que eu não lia um texto do Nelson, tão redondo. Embora eu discorde de alguns pontos), José Castello, Antônio Carlos Secchin e Marco Lucchesi. Já que esses são bastante conhecidos nos jornais e no meio acadêmico.

Ronaldo Lima Lins, parte de um romance de Philip Roth, Nemesis, evocando-o sempre ao longo do texto, para criar um ensaio literário confuso. Onde, a questão da crítica literária, não é muito discutida. Ficando mais no campo de algumas conceitualizações históricas da literatura.

O texto de Ettore Finazzi-Agrò, é ainda mais confuso do que o de Ronaldo. Também passando ao largo do assunto crítica e focando-se mais no historicismo.

Carmen Cristiane Borges Losano, se apega muito a discussão do cânone literário, mas através dele levanta algumas questões sobre a crítica.

O problema do ensaio, Poesia contemporânea nacional: reincidências e passagens, de Mauricio Salles Vasconcelos, é que ele é de 1999. Deixando mais de uma década de nova produção poética nacional de fora.

Renato Rezende, se encaixa com perfeição. É um crítico literário atual, e sua crítica selecionada é de qualidade.

O ensaio de Luciene Azevedo sobre autoficção é o mais contemporâneo do volume. Discorrendo sobre autoficção faz uma análise crítica da literatura contemporânea.

O ensaio de Sebastião Marques Cardoso é sobre Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima, com desdobramentos, críticos fundadores do cânone literário brasileiro. No ensaio há pontos de luz sobre a produção da crítica literária de hoje; que é o que deveria ser relevante. Sebastião traça um panorama histórico que nos ajuda a compreender a carência da crítica atual.

Pedro Duarte escreve sobre como Antônio Cândido e Silviano Santiago compreendem o modernismo brasileiro. É somente historiográfico. Nada acrescenta à crítica literária contemporânea.

O texto do Carlos Emílio Corrêa Lima é bom. Mas o autor continua se perdendo em longas construções de imagens metafóricas, e na insistência aos neologismos.

José Luís Jobim, escreve sobre o crítico e ficcionista João Almino. Adentrando nos estudos de Almino sobre o também crítico e ficcionista Machado de Assis. Demonstra o quanto é possível que o trabalho crítico do autor que é também ficcionista pode interagir na obra ficcional do mesmo. É um tema alvissareiro.

Marta de Senna, faz uma crítica da obra de Machado de Assis, quando, o mais condizente, seria fazer uma crítica da obra de um autor novo, e que estivesse produzindo hoje.

Para Alberto Pucheu, vale o mesmo que escrevi sobre Renato Rezende.

O caso de José Carlos Pinheiro Prioste é semelhante ao de Marta de Senna. A crítica dele é sobre a obra de Guimarães Rosa.

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Parece que a pergunta de Luciana Villas-Boas ficou sem resposta.

O livroCrítica literária contemporâneaOrg. Alan Flávio Viola, vários autores1ª Edição, 2013Civilização Brasileira, 336 páginas, R$ 42,90

cLÁudio PorteLLA (Fortaleza, 1972) é escritor, poeta, crítico literário e jornalista cultural. Autor dos livros Bingo! (2003), Melhores Poemas Patativa do Assaré (2006; 1ª reimpressão, 2011; Edição em e-book, 2013), Crack (2009), fodaleza.com (2009), As Vísceras (2010), Cego Aderaldo (2010), o livro dos epigramas & outros poemas (2011), Net (2011), Os papéis que meus pais jogaram fora (2013) e Cego Aderaldo: a vasta visão de um cantador (2013). Colabora em importantes publicações do Brasil e do exterior. Ganhou o concurso de conto da ubeny - União Brasileira de Escritores em Nova York.

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DA GuERRA cOLONIAL À

REVOLuÇÃO DOS cRAVOS

dAnieL osiecki

A guerra da independência de Angola foi fonte inesgotável para muitos escritores portugueses da chamada geração pós 25 de abril. Lídia Jorge tratou

desta temática em seu romance A costa dos murmúrios (1988) com grande desenvoltura e conhecimento de causa. Almeida Faria, autor de Lusitânia (1980) não tratou da guerra colonial como tema isolado neste seu romance, mas procurou abordar com mais cuidado as relações distintas do indivíduo português após a Revolução dos Cravos e suas consequências para uma classe média não operária e todas as mudanças que vieram com a revolução. A guerra colonial e a permanência do exército português em África são tão criticados quanto à situação que se instaura no país após a revolução.

Porém, poucos autores exploraram tão a fundo essa temática quanto António Lobo Antunes, que esteve em Angola como oficial do exército português entre 1970 e 1973. Portugal vivia em um regime fascista agonizante, principalmente após a morte de Salazar (1889 – 1970) enquanto as tropas portuguesas sofriam baixas consideráveis em seu contingente, pois, em Angola os soldados portugueses se depararam com uma guerra civil, foram vítimas de técnicas de guerrilha, pois os Angolanos não tinham o mesmo poder bélico de Portugal, então partiram para o contato físico direto.

Nos dois primeiros romances de Lobo Antunes, Memória de Elefante (1979) e Os Cus de Judas (1979), os protagonistas são médicos psiquiatras que estiveram em África na guerra colonial e voltaram para Portugal sofrendo grandes crises existenciais. Ambos os livros são autobiográficos e retratam a dificuldade do indivíduo em se readaptar à sociedade depois de ter visto os horrores da guerra. Dificuldade em se relacionar com outras pessoas, relações sociais e amorosas, divórcio, perda da guarda dos filhos e vários outros problemas se tornam irredutíveis na vida desses protagonistas anônimos e a única solução que encontram é o isolamento, a solidão.

A incursão de Lobo Antunes em um tema tão forte como as marcas deixadas pela guerra o acompanhará durante boa parte de sua obra ficcional. Livros como O Esplendor de Portugal (1997), O Manual dos Inquisidores (1996), Exortação aos Crocodilos (1999) já apresentam um estilo bem diferente dos romances iniciais do autor. Além de o universo temático de Lobo Antunes ter se tornado mais abrangente, a estrutura linguística dos romances publicados a partir dos anos 90

apresentam uma mudança formal muito significativa, pois grande parte dos enredos explorados por Lobo Antunes nesta “nova fase” de sua obra tem como objetivo central não o enredo em si, mas em como esse enredo será apresentado ao leitor. Percebe-se uma incursão por técnicas narrativas mais apuradas que em suas primeiras obras, como a ausência de pontos finais nos fins de períodos, o uso constante do discurso indireto livre e do fluxo de consciência. Algumas dessas técnicas exploradas por Lobo Antunes (como o fluxo de consciência) são muito mais comuns naqueles romances em que há mais vozes, pois é uma técnica que auxilia o discurso no tempo psicológico, portanto faz mais sentido usá-lo em um enredo em que há mudanças constantes de narrador e de foco narrativo do que nos enredos mais lineares e com o foco narrativo em terceira pessoa.

Nos seus livros publicados do ano 2000 em diante, como Não entres tão depressa nesta noite escura (2000), Que farei quando tudo arde? (2001), Boa tarde às coisas aqui em baixo (2003), Eu hei-de amar uma pedra (2004), Ontem não te vi em Babilónia (2006), O meu nome é Legião (2007), O arquipélago da insônia (2008) e Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009), Sôbolos rios que vão (2010), Comissão das Lágrimas (2011), Lobo Antunes explorou muito as questões relacionadas à perda, seja financeira, física, moral ou emocional, a perda, seja ela qual for, é o mote de praticamente todas as obras recentes do autor de Os Cus de Judas. E em quase todos os casos os indivíduos que convivem com a perda não têm uma relação social e familiar pacífica, vivem uma vida de negações, projetos que nunca se concretizarão e dessa maneira se veem num labirinto existencial sem solução, sem saída e niilista.

O Manual dos Inquisidorese as faces do 25 de abrilDepois de certo tempo vivendo sob um regime fascista, o

povo português estava saturado de um regime autoritário e repressor. O povo ansiava por mudanças a qualquer custo, e esse desejo por mudanças culminou na Revolução dos Cravos, no dia 25 de abril de 1974. Muitos escritores se engajaram nesta empreitada em prol de uma suposta liberdade que viria com a derrocada do regime salazarista, mas o que veio logo a seguir não foi a tão almejada liberdade há tanto tempo esquecida, mas sim um período de transição complicado de

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uma ditadura fascista de extrema direita para um governo também autoritário de esquerda com princípios stalinistas.

No livro O Manual dos Inquisidores (1996) António Lobo Antunes descreve sob a ótica de vários narradores aspectos e consequências da Revolução dos Cravos, como falência financeira e moral, perda de bens, perda de cargos públicos e a tomada do poder por forças operárias e o exílio de ministros e pessoas em geral ligadas ao governo deposto. O romance, mesmo não tendo um personagem principal, gira em torno do drama de Francisco, um homem que no passado foi ministro da defesa durante o governo de Salazar, homem conhecido por sua servidão ao ditador e por ser, por sua vez, ditatorial em seu mundo, que se restringe a casa em Lisboa, à quinta em Palmela, no convívio com as amantes e empregadas e com seus funcionários do ministério.

Durante toda a narrativa há uma espécie de eco que trespassa todo o romance, que é a própria voz do ministro que dizia que nunca tirava o chapéu, pois era um sinal de hierarquia. Dizia o ministro:

Nunca devia ter tirado o chapéu da cabeça para que se soubesse quem era o patrão (p.14).

Esta é uma das diversas formas que Lobo Antunes mostra como um regime autoritário atinge até os próprios agentes do governo, pois essa ideia de nunca tirar o chapéu para mostrar quem manda é um discurso completamente fora da realidade e provinciano, como se fosse proferido por um coronel feudal decadente que vê na imposição de certos caprichos e regras sem sentido a única maneira de impor respeito.

É interessante ressaltar que o poder neste romance não tem apenas um detentor, pois há três momentos separados: a fase de opressão durante a era Salazar; o período de transição entre uma ditadura e uma pseudodemocracia e uma era nova, de governo “democrático” capitalista. Um personagem singular no romance é João, filho do ministro Francisco que herda suas terras e propriedades, mas devido à situação geral de Portugal pós 25 de abril, perde tudo para a família de sua ex-esposa, donos de banco. João foi vítima de um golpe financeiro que além de deixá-lo falido financeira e moralmente, fez com que o ministro, no fim da vida, fosse abandonado num lar para idosos.

Todas as idas e vindas dos vários narradores servem como representação de um desespero coletivo que assola Portugal em épocas incertas, seja durante a ditadura ou não. A vida coletiva após a revolução adquire certa cor, enquanto a vida privada, tal como era antes, deixa de existir. As mudanças de poder refletem um estado sem perspectivas vindouras com uma população cada vez mais alienada, que é simbolizada pelos abandonados no fim do romance, o ministro e sua ex-governanta, Titina.

Esses dois personagens dão o tom mais amargo do romance, pois já abandonados em um asilo, deliram e imaginam que em breve alguém virá buscá-los. Interessante aqui é que Lobo Antunes dá a entender que os dois estão no mesmo asilo, mas em momento algum se encontram, sabem da existência um do outro mas em sua alienação, em sua doença, se ignoram por completo. É uma metáfora sobre a

população portuguesa que caminha sem rumo, sem objetivos após sofrer perdas irreparáveis, como foi o caso de João, que perdeu a fazenda; ou de Milá, ex-amante do ministro que vivia com a mãe em um apartamento de classe média alta e após o 25 de abril, como o ministro perde seu poder e sua influência, Milá com sua mãe são expulsas do apartamento onde moravam depois de passarem dificuldades financeiras e humilhações dos vizinhos.

Esses personagens são alguns dos vários exemplos de pessoas diretamente atingidas pelo impacto da Revolução dos Cravos, e passam a viver em uma espécie de situação limite em que a qualquer momento algo pode acontecer. Vivendo na iminência de algo ainda mais dramático acontecer, as pessoas, João e Milá são apenas alguns exemplos dessas pessoas, tornam-se prisioneiras de uma situação absurda da qual não podem se livrar, e por isso se alienam e é como se a vida que tiveram anteriormente nunca tivesse existido.

Conhecimento do Infernoe a gênese da polifonia Com a publicação de Conhecimento do Inferno (1980)

Lobo Antunes passa a um novo patamar na literatura portuguesa contemporânea. Conhecimento do Inferno é o último romance que compõe uma trilogia sobre os horrores da guerra colonial juntamente com Memória de Elefante (1979) e Os Cus de Judas (1979).

Os dois primeiros livros se assemelham muito em relação ao estilo e seus enredos são muitos circulares, pois ambos retratam o retorno de um médico psiquiatra de Angola para Lisboa ao fim da guerra naquele país. As referências históricas, além de elementos autobiográficos, são marcas que permeiam esses três romances iniciais de Lobo Antunes, porém, a experimentação linguística tão presente em suas obras mais recentes e ainda não explorada nos dois primeiros livros, passa a fazer parte do universo ficcional do autor a partir de Conhecimento do Inferno, com menos diálogos em um plano físico e mais fluxo de consciência.

Aparentemente o enredo de Conhecimento do Inferno é muito simples. O livro retrata uma viagem pelo sul de Portugal feita por um médico psiquiatra depois de voltar de Angola no início dos anos 1970. Novamente a temática da guerra colonial se faz presente na ficção de Lobo Antunes, porém sob uma perspectiva mais sombria em relação à guerra, em relação à vida e à própria psiquiatria.

O romance é dividido em 12 capítulos e cada um desses capítulos centra-se em um ponto geográfico específico da viagem. A viagem desse psiquiatra desenvolve-se em vários níveis narrativos, como no percurso percorrido no carro, em suas recordações da infância, nas recordações de Lisboa antes de ir pra África e das recordações dos horrores da guerra. Todos esses aspectos se interpõem através de uma voz narrativa que permeia todo o romance, porém, em alguns momentos, há mais de um narrador. Um deles é o próprio personagem principal, tornando o romance auto-diegético, e outra voz, essa em terceira pessoa, onipresente e onisciente.

Durante suas recordações de seu trabalho como psiquiatra há dois tópicos distintos: um deles é sua prática médica em Lisboa antes de embarcar para Angola; o outro é sua prática

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médica em África, durante a guerra. São tópicos distintos porque nas recordações de Lisboa, a psiquiatria e a medicina geral são retratadas como ciências inúteis e cruéis, que além de maltratar seus pacientes, colocam os médicos em um nível superior, e naturalmente essas passagens são descritas com um humor ferino.

- Foi você quem disse que a Psiquiatria é mais nobre das especialidades médicas? – perguntou ele. – Gaita, se eu soubesse o que sei hoje tinha seguido dentista (p.62).

Já nas recordações de Angola, a psiquiatria não existe, com exceção de alguns flashbacks de seu trabalho em Lisboa, pois na guerra não há espaço para a psiquiatria, e isso vem de encontro à tese que Lobo Antunes, o autor e o personagem, defende no romance, que é a inutilidade do que faz e que por consequência é a inutilidade de toda uma vida, o que remete à náusea sartreana. O que de fato importa na guerra é a sobrevivência física, pois a mental já está, automaticamente, condenada. É impossível retornar para casa, e isso se torna evidente, sem traumas, sem lembranças dos acontecimentos terríveis presenciados numa guerra cruel. Nota-se claramente essa distinção espacial entre Lisboa e África tanto na narrativa auto-diegética quanto no foco narrativo em terceira pessoa.

Outro aspecto relevante da narrativa de Conhecimento do Inferno que evidencia bem essa nuance da troca de foco narrativo, é a autocitação. António Lobo Antunes, o autor do romance Conhecimento do Inferno, cria um personagem fictício para ser o condutor (ficcionalizado) da realidade, ou seja, o Lobo Antunes real traz realidade à sua ficção, tornando seu texto complexo e experimental, muito mais do que uma simples narrativa autobiográfica, chega a ser um mosaico pós-moderno sobre as angústias do homem contemporâneo.

Conhecimento do Inferno foi uma espécie de livro de transição de António Lobo Antunes, pois é a partir desta obra que o autor de Os Cus de Judas passa a explorar com mais perícia os meandros da polifonia e da experimentação linguística. É com Conhecimento do Inferno que Lobo Antunes assume de fato uma postura diferenciada na literatura portuguesa, é com este romance que ele mostra que não há necessidade de contar uma história para produzir um grande livro, mas explorar a mente de seus personagens para atingir o domínio da técnica narrativa.

dAnieL osiecki nasceu em Curitiba, em 1983. É professor de literatura, crítico literário e editor regional da Flaubert. Colunista do Jornal Relevo, de Curitiba, publicou o livro de contos Abismo (2009). Mantém o blog Távola Redonda: novatavolaredonda.blogspot.com

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A fERIDADO cAPETA

FAusto FAwcett

“Somos todos personagens medievais primitivos de uma tela do renomado pintor holandês Hieronymus Bosch. Eu sou um personagem

morto, aquele capetinha com a cara toda retorcida no canto da tela, e eles os ignóbeis medievais, já estão chegando junto com aqueles porretes. Eles querem me expulsar da área, os ignóbeis públicos e particulares. Uiuiui”. Esse é o trecho final do conto O que se passa na cabeça de um sujeito nessas condições, um dos 24 que compõem o livro de André Sant’anna O Brasil é Bom e que serve como ponto de partida para atravessarmos essa espécie de odisséia proposta pelo autor em cinco movimentos intitulados Histórias do Brasil, uma série de dezenove contos dissecadores de certa impaciência generalizada, mau humor, intolerância e estupidez devidamente temperados com violência desmedida e fúrias inexplicáveis que há um bom tempo fazem parte do cotidiano mental comportamental do brasileiro, e depois História da Revolução, História do rock, História do futebol e História da Alemanha, mergulhos na memória mais explicitamente pessoal de André e que nos remete a outra figura das artes visuais holandesas: Maurits Escher. Exatamente pela maneira como o autor vai entrelaçando os acontecimentos e os personagens reais com os inventados nas suas infâncias e juventudes em três cidades brasileiras e numa Berlim sensacionalmente misturada com tudo. Entrelaçando situações e personagens, gerando perspectivas variadas. Entre as duas sequências, uma espécie de texto- fronteira chamado dificuldade da poesia.

Comecei usando a referencia do pintor Bosch porque esse holandês sem usar grua ou estar num bunker de edição de alguma emissora de TV conseguiu fazer o mais incrível plano sequência do que acontecia nas cabeças, corpos e corações do tal medievo ilustrando magistralmente a forma como os paraísos, infernos e purgatórios entranhados no imaginário mexiam, paralisavam, moviam as pessoas encaradas como vetores grotescos de uma certa ordem religiosa, sobrenatural, metafísica que no fundo sempre foi mera fantasia mundana saída do desespero de se estar jogado aqui nessa, digamos, dimensão. E é assim que, de certo modo, André nos apresenta seus personagens, como agentes grotescos de certa desordem emocional, mental, social brasileira advinda das tais chagas históricas do subdesenvolvimento e do histórico nacional, tais como ecos

eternos da escravidão, os ambientes viciosos de todos os negócios amalgamados com a política cheia de clientelismo, fisiologismos e assistencialismos, mares de incompetência e desperdício cercando ilhas de excelência, fabricação incessante de lixo civil, mas não apenas a forma miserável explicita-esfomeada-tradicional que, de certa maneira, foi estancada mas não finalizada, como também os novos náufragos existenciais adulados pelas promessas claudicantes dos rugidos econômicos de um tigre sul americano: um bric que deveria já estar fazendo parte do grande PIB mundial de tudo, inovações e índices de não se sabe que desenvolvimento. Indivíduos com insatisfação crônica – indivíduos, dane-se. Tudo isso envolto pela boa e velha identidade de alegria, festa, hospitalidade e gentileza e superação de tudo que na verdade são cascas frágeis para a brutalidade do cotidiano que gera os tais agentes grotescos da desordem emocional – tão bem flagrados em close por André em contos como O Brasil não é ruim, onde a palavra Não pontua de forma irônica tudo o que há de sinistro, ilegal e desviante na cultura corrupta da política e da sociedade brasileira em geral. Em Para ser sincero, ele cutuca o mal estar institucional que existe na relação das pessoas com essas entidades ou pessoas, que acabam virando entidades do absurdo kafkiano ou, com mais frequência, da impertinência cotidiana, conhecidos como funcionários de telemarketing importunando-nos com ofertas e pedidos de caridade a todo momento. A partir de um telefonema de uma dessas criaturas pedindo dinheiro para crianças com câncer e que (típica tática delas) começa se esgueirando com perguntas pseudointeressadas sobre a vida do usuário-futuro-possível-doador, André faz uma reflexão/desabafo rasante sobre a possibilidade de sermos para sempre governados pela tal classe baixa alta que emergiu nos últimos tempos e que só tem consumo pesado como ideal de vida. Agentes grotescos. Comentários na rede sobre tudo que está acontecendo e Nós somos bons abordam uma certa caricatura de Direita ou de pensamento reacionário calcado num eco esmaecido de “tradição, família e propriedade”, já que esses três itens estão devidamente perturbados, re-encaminhados, re-escalonados nos dias de hoje pela volúpia da vida urbana, financeira, econômica, tecnológica, afetivamente complexa dos dias que correm. Mas os dois contos jogam com essa imagem de pensamento pseudoconservador – uma mais clássica em Comentários, e

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que diz respeito às falhas da Justiça em relação aos criminosos, aos menores criminosos, que de menores não tem mais nada há muito tempo, e que devem ser enjaulados mesmo e tratados como lixo civil impossível de ser reciclado, e que tudo é culpa do “Direitos Humanos”, tratado aqui como um personagem e que na verdade é no que se transformou para muita gente, um botador de panos quentes adulando, passando a mão na cabeça das vítimas da sociedade – que de vítimas tem muito pouco. Ainda mais em se tratando de facínoras que saem como zumbis furiosos a cata de qualquer coisa, qualquer merreca, sem se importar com a vida de ninguém. Em Nós somos bons, o lado magnânimo de quem absorveu e foi muito bem absorvido por Lula – antes o representante mor de toda uma situação socialista impossível de ser aturada. Use sempre camisinha segue a mesma toada de O Brasil não é ruim, só que, em vez da palavra Não, o mote da ironia é a palavra camisinha: exceda a velocidade, maltrate crianças e mulheres, reaja com violência a tudo, invente impostos pra melhorar a vida das pessoas que não vão melhorar as vidas dessas pessoas, incentive tráficos variados. Mas tudo sempre usando a camisinha. A brutalidade por baixo das boas intenções sem consistência. Felicidade é um conto central, não apenas pela sua temática da futilidade no submundo das celebridades, mas também por uma característica muito presente na escrita de Andre Sant’anna. Ao abordar com maestria as falas e as intenções de uma modelo que quer ser atriz séria e não mais uma bunda por aí (ele apresenta a personagem como “a menina que tinha um bunda e era artista de novela”), André traça um mínimo perfil dessa figura e vai superpondo intenções, falas de opiniões na sua boca e aquele mínimo perfil acaba se solidificando como um refrão de personalidade cercado por acordes dissonantes de novas experiências adquiridas, novas observações sendo feitas. Fazem companhia à modelo: policiais que batem por bater, outra atriz já velha que critica as bundas vulgares e outros (todos reduzidos a um traço de personalidade social quase que patológico: protagonista absoluto do que sentem ou pensam essas pessoas). Essa forma de desumanizar, de tornar crua a pessoa é um traço forte na obra de André, e que no livro Sexo talvez tenha acontecido de forma mais concentrada. Desumanizar para tornar mais contundente o darwinismo da gincana social. O que você criou como armadura para lutar, para se impor, para se defender, para aparecer,para convencer, para vencer, para se arriscar, para matar ou morrer na gincana darwinista da sociedade brasileira? André Sant’anna é mestre em dissecar essa situação e focar numa função básica a que é reduzida uma pessoa na luta pela sobrevivência dos seus afetos, das suas taras, dos seus sonhos ou pesadelos que ajudam a ir para algum lugar. E quando uso a palavra refrão de personalidade repetido como um refrão de musica textual é porque André também é musico e, certamente, como ele deixa patente noutros momentos do livro, os momentos mais memorialistas, a intersecção entre fala e música, escrita e desenho que pode virar cinema oral, ritmo e poesia, cinema da música verbal, música do verbo cinematográfico, essa intersecção aparece firme e forte. Texto como partitura guiando a respiração, que é a respiração dos personagens envolvidos na tal crueza de

sobrevivência. Transtornados por algum afeto, alguma fúria mas, principalmente, por um vazio de perspectivas, os personagens de Andre Sant’anna são apresentados como primatas urbanizados se debatendo na luta pra se afirmar, amainados por certos sonhos de compaixão mas, acima de tudo, brutalizados, brilhantemente brutalizados. Felicidade. Impossível não fazer ligações com Rubem Fonseca e Dalton Trevisan (no excelente conto Um gosto podre na boca, o modo como André trata as negociações de trepada de um casal é digna do Vampiro de Curitiba,) muito mais pela telegrafia sintática do que exatamente pelos temas, pelo menos em relação a Rubem. Graciliano e suas vidas secas aparecem como outro espectro, afinal de contas, a crueza das existências encurraladas pela tal estupidez endêmica que toma conta das ruas no país, favorece uma secura nas relações gerais. A verdade é que ninguém na literatura brasileira atual está retratando esse momento de pavios curtos e crise constante recheado de oportunidades globalizadas devidamente impedidas por obscuridades governamentais, por mesquinharias e antiquíssimos vícios e instintos anti-sociais como Andre Sant’anna. Depois de Felicidade, destaco na sequência O brasileiro é bom e Amor a Pátria. O primeiro segue o mesmo caminho de O Brasil não é ruim e Use sempre camisinha, fazendo uma ode às boas características do brasileiro – novamente de forma irônica. Todos os clichês-arquétipos estão lá: a mulher brasileira e sua beleza, a capacidade de superação, o jogo de cintura, o grande coração, as ambições de país grande em ser membro do conselho de segurança da ONU etc. Em Amor à Pátria, novamente o tal pensamento caricato de direita aparece na boca do narrador que fala saudosamente da ditadura através da eficiência das seleções de futebol que até 94 obtiveram títulos com dois sobreviventes daquela época: Zagallo e Parreira. O conto O que se passa na cabeça de um sujeito nessas condições é na verdade outro refrão que nos aborda constantemente todos os dias, olhando gente desperdiçada, ou simplesmente numa situação difícil. Esse é o conto de onde extraí o texto que abre essa critica e um dos melhores do livro, mostrando o trajeto de um garoto “filho de japonês com neguinha”, esquizofrênico, que tinha vergonha dessa mãe, tem vários irmãos e, enfim, acaba numa cracolândia. Ou numa bolha crítica desse mundo, fomentada por fármacos e sentimentos cristãos primitivos. Aquela visão do quadro de Bosch se agiganta nas mentes baqueadas mas cheias de gana para absorver o mundo. É o que o autor afirma. Bichos soltos assustando os bem postos. O banquete mais antigo é o banquete dos mendigos e André cutuca a ferida do capeta urbano, tecnoempreendedor cheio de créditos e inovações, gerando mais loucuras e perigos do que esperanças de soluções. Só é o título de outro texto que escancara a tal gincana social darwinista quando o narrador demonstra o quão só pode ficar um sujeito pela falta de dinheiro e de tudo que ele atrai. Estando El Dionísio en lo exílio é escrito em castelhano numa tradução de Ronaldo Bressane e dá uma panorâmica nos sentimentos de compaixão, vontade de viver o máximo, no máximo, comunhão selvagem com a vida seja qual for, contanto que cheia de aventuras geográficas ou lisérgicas, mentais e amorosas – panorâmica nos sentimentos

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que o próprio André opõe a toda essa estupidez que grassa por aí na figura de um Dionísio, óbvio fomentador de nossos prazeres mais profundos, de nossa inteligência mais insinuante, ficando acuado ou fugindo galhofeiramente e deixando seus devotos mais à deriva ainda. Esse conto chega, de certa maneira, a fazer par com Juízo Final, o conto onde Cristo volta furibundo com o que fizeram com seus ensinamentos, suas dicas de bem viver e crescer como ser, digamos, espiritual. Espírito versus instituição religiosa. Um mote constante, sorrateiro nos textos de André, nos textos desse livro. Principalmente na segunda metade que trata das suas memórias de rock, revolução, futebol e Alemanha. A metade Escher do livro: o contrário do que acontece na primeira metade, onde a predominância é dos tais vetores grotescos, forjados por um país cheio de vertigens sociais barra pesada e, paradoxalmente, sinistramente estimulantes. A primeira metade é fechada com dois textos: Lodaçal (uma pequena novela) e A dificuldade da Poesia. Ambos tem características muito interessantes e até parecidas. O primeiro fala, da saga de dois personagens, Toninho e Chiquinho, e suas vidas zero à esquerda mas cheias de vitalidade negativa. O que chama atenção é como o autor transforma os nomes Chiquinho e Toninho em autênticos gatilhos sintáticos fazendo com que as outras palavras que vem dar sentido existencial, humano aos nomes também virem gatilhos gerando um fluxo de mantra que tem por âmago Toninho, Chiquinho e suas aventuras humanas. Mas é a prosa poética que dá o verdadeiro tom e, novamente, a desumanização aparece, a redução de pessoas a seus nomes e a sua origem; no caso, o brejo das cruzes, que está entranhado nesses dois jogados fora, nas suas vidas secas. Aqui, os dois artistas visuais Bosch e Escher estão misturados na escrita sensacional, musical, do autor. A crueza da violência na gincana da sobrevivência e as palavras e situações se concatenando como uma montanha russa de engates de palavras, fazendo com que um ritmo avassalador tome conta da nossa leitura e da nossa imaginação. Ritmo cheio de refrões que são palavras gatilhos. É como se as palavras fossem bastões, numa pista de narração, sendo passadas umas às outras e, nessas repetições sutis, mutações vão acontecendo. E isso também vai ocorrendo com as circunstâncias dos personagens. Quando você menos espera, as palavras Chiquinho e Toninho ou a palavra poesia em A Dificuldade da poesia já percorreram quilômetros de sentimentos e locações e conflitos com outras palavras, e você nem sentiu que eram as mesmas. Genialidade de André. Mágica pura do trabalho duro com as palavras, meus caros. Raridade no trato de certos temas e raridade na escrita é o que nos apresenta Sant’anna com O Brasil é Bom. Lodaçal e A Dificuldade da Poesia, como eu disse, são textos de fronteira nos dois grandes módulos que compõem a obra. O modulo Histórias do Brasil e o módulo Histórias memorialistas do rock, da revolução, do futebol e da Alemanha. No primeiro, mais Bosch que Escher. Nos textos fronteiriços, mistura dos dois em Lodaçal. Na segunda metade, Escher é predominante, com André enveredando por deliciosas lembranças cheias de ficção e perspicácia sobre suas infâncias e adolescências em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro em Ubatuba, em Berlim. Digo infâncias e adolescências porque

em todos os quatro textos ele se coloca na pele, ou na figura de George Harrisson que, a exemplo de Toninho e Chiquinho, também vira uma palavra gatilho que vai puxando outros personagens, que engatilham outros personagens, só que dessa vez não é apenas fantasia de conto, é realidade biográfica misturada com ficção biográfica e afetiva, que gera o âmago mitológico da vida e que vai dar o charme da escrita, do texto. George Harrisson vai se transformando em outras figuras e entidades do rock, do futebol, da vida berlinense ou da vida política na ditadura ou esquerdista guiada pelas visões de um novo Brasil da eztetyca de Glauber Rocha e do amalgama de Jorge Mautner. George Harrisson desembocando em personagens de mídia televisiva radiofônica ou jornalística. Quem tem de quarenta e cinco pra cima vai se divertir e se emocionar ao passear e se embrenhar pelas memórias que nos mostram exatamente o que sentimos e o que fazemos com o cinema das nossas vidas guardado na ilha de edição, como dizia Wally Salomão, da nossa mente. Vida que, na mente, vira filme de vivência real e acontecimentos vagos, lembranças incertas ou mesmo ficções de personalidade que acabam virando cinema de vivência devido à força da imaginação na geração de afetos. André Sant’anna é um mestre das manchas textuais cheias de ritmo e fluxo de batida verbal, sustentando o cinema que extrai da observação e vivência da vida perturbada nesse Brasil. O cinema da sua própria vida também está presente nesse livro. Envolventes e inebriantes manchas textuais inspiradas pelas feridas do capeta urbano, mas também pelas compaixões malucas que se chocam com as fúrias, os ódios por aí. Traduzindo com seus textos, testemunhando com eles a atualidade dos desequilíbrios nacionais. O Brasil é bom é um grande livro e André Sant’anna é o que melhor traduz, sintetiza e expõe o que vivemos hoje.

FAusto FAwcett é escritor, compositor e músico.

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POETA, fINGImENTO E SINcERIDADE NA LITERATuRA

PORTuGuESAJAyme FerreirA Bueno

A crítica literária portuguesa de modo geral se debate em relação a um problema literário, e em especial poético, que é o caso do fingimento e da sinceridade

na criação artística. Qual seria a principal função do criador: confessar-se ou fingir? Com fundamento nessa pergunta-se, passa-se a enfocar a produção de determinado poeta de acordo com a feição teórica que esse criador assume ao escrever seus poemas.

Embora o problema seja de todos os tempos, em Portugal ele se aprofundou depois de Fernando Pessoa, que explicitava em suas criações poéticas e em textos críticos a ideia que arte, e em decorrência disso, literatura e, mais especificamente, poesia, tudo é fingimento. Aristotélico como era, o grande poeta português não se afastava muito do seu mestre grego, que afirmava ser a poesia uma imitação. Ser imitação do real e fingir o real são conceitos que praticamente se igualam, pois ambos defendem uma realidade que subjaz à criação literária e que é de outra natureza. Uma coisa é a realidade, outra, diferente, é a produção artística.

Essa discussão intensificou-se com as declarações do grande poeta e líder da revista Presença, José Régio. Este, em aparente oposição ao poeta da revista Orpheu, considera a arte como resultado não do fingimento, mas da sinceridade. Desde então esses dois conceitos passaram a se opor em termos de crítica literária.

Olhando-se, porém, por um outro prisma, parece que tanto a poesia dita fingida, como aquela dita sincera, em nada são diferentes. Ambas são fingidas e ambas são sinceras, simultaneamente. São fingidas em relação à pura realidade, ou, como se queira, a realidade real; e ambas são sinceras, quanto ao modo como são produzidas. São elas sinceras artisticamente. É o que se pode depreender de textos como os que seguem: Quando Fernando Pessoa diz “A base de toda a arte é a sensação. Para passar de mera emoção sem sentido à emoção artística, ou susceptível de se tornar artística, essa sensação tem de ser intelectualizada”, ele está lançando uma como que teoria da poesia fingida. Há a necessidade de intelectualizar uma sensação, ou seja, fingi-la, para que ela se torne uma sensação com valor artístico. Antes disso, ela é apenas uma sensação. Fernando Pessoa aplica essa teoria no poema que denominou Autopsicografia, como se constata nesta transcrição da primeira estrofe:

O poeta é um fingidor. Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

Assim, “a dor que deveras sente”, a que se refere o poeta, é a sensação; a dor que ele diz “fingir”, essa é já a dor intelectualizada, que se torna matéria poética. A poesia e a teoria se correspondem, numa prova inequívoca de que a poesia de Fernando Pessoa é uma poesia pensada e não meramente sentida. De outro lado teórico, assumindo uma poesia viva, uma poesia sincera, José Régio declara que “o que então inspira a obra de arte – é a paixão; e uma paixão considerada infamante ou uma paixão considerada nobre – podem da mesma forma inspirar obras elevadas sob o ponto de vista que nos interessa: estético”, e também “ É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística”.

Poeticamente, e de modo coerente com essa teoria, José Régio escreve poemas como Demasiado Humano, aqui ilustrado em sua primeira estrofe:

Escancarei, por minhas mãos raivosas, As chagas que em meu peito floresciam. Versos a escorrer sangue eis escorriam Dessas chagas abertas como rosas…

Neste dramático poema denominado Diário, do qual se transcreve a primeira estrofe, diz ele:

Tinha um diário aonde ia escrevendo, Dia a dia, a agonia dos meus dias:

Era um romance tremendo, Dilacerado de piedade e de ironias.

Aí estão presentes dois modos de enfocar teoricamente e na prática a arte da poesia, uma classificada como “poesia fingida” e uma outra, que se denominou “poesia sincera”. A primeira é representada principalmente por Fernando Pessoa, mas de modo geral também pelos colaboradores da revista Orpheu, fundada em Lisboa em 1915. A segunda tem seu lídimo representante na pessoa de José Régio e dos poetas da revista Presença, que surgiu em Coimbra em 1927.

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Esta discussão levada a sério por muitos críticos foi também bastante combatida e mesmo ironizada. É o caso, por exemplo, do poeta do Surrealismo português Alexandre O’Neill, que, com seu senso altamente irônico e de certo modo desestabilizador dos formalismos, como foi preceito da estética surrealista, escreveu:

Às dores inventadas Prefere as reais.

Doem muito menos Ou então muito mais...

Antes do encerramento, trazem-se aqui dois fragmentos da crônica Elogio da Mentira, de Miguel Sanches Neto, publicado em 31 de março de 2009. No primeiro, afirma-se:

Não há verdades, apenas versões. Levando este raciocínio ao seu extremo, chegaremos à conclusão de que tudo é ficção. Assim, nada coincide com nada. O que vejo não é igual ao que o outro vê, mesmo quando estamos olhando para o mesmo objeto e do mesmo mirante. Movemo-nos em meio a realidades construídas.

E no segundo, conclui-se:

Todo ficcionista é um ilusionista profissional; promove uma proliferação de entes e fatos, embaralhando assim as muitas realidades. Todas verdadeiras à sua maneira. Pois só à maneira de cada um é que pode haver verdade.

Concluindo este breve comentário sobre tema tão complexo, apenas podemos dizer que toda poesia é, de um ponto de vista, fingida, porque é a vivência de uma sensação, de uma emoção, que é transformada pelo poder de intelectualizar, enfim de transformar o que se vive em matéria poética, o que se configuraria como a arte de fingir. Por outro lado, toda a poesia é sincera, porque está de acordo com a arte e não com a realidade. Fernando Pessoa, no poema Isto, que aqui se transcreve, esclarece vários aspectos:

Dizem que finjo ou minto Tudo o que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação. Não uso o coração.

. Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa é que é linda.

. Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé,

Livre do meu enleio, Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

1. Ele não finge no sentido literal, ele apenas sente com a imaginação, ou seja, ele intelectualiza, “finge” poeticamente.

2. O que o poeta sonha ou passa – as emoções – isso é apenas o primeiro estágio; o segundo estágio, que é a intelectualização dessa sensação ou emoção, essa coisa é que é linda, porque já é matéria poética.

3. Finalmente, o poeta confirma que escrever livre do enleio, ou seja, livre do encantamento do que se vive, mas, de modo sério, embora sobre um assunto que não é sério no sentido estrito da palavra, mas um “fingimento”, uma “cópia”, é que torna a arte séria. A arte assim construída deve, portanto, autêntica, verdadeira do ponto de vista estético.

JAyme FerreirA Bueno nasceu em Castro (PR), mas cedo mudou-se para Curitiba. Professor universitário e estudioso de Literatura, com trabalhos publicados na Literatura Brasileira e na Literatura Portuguesa e também em Teoria da Literatura. Publicou os livros Aspectos da Poética de António Gedeão (1979), Távola Redonda: uma experiência lírica (1983) e Quadros da minha vida: um ensaio autobiográfico (2011). Apresentou trabalhos em Congressos de Literatura. A mais recente apresentação foi na Universidade da Madeira, em Funchal, Portugal, em agosto de 2008. O tema enfocado foi Padre António Vieira, Escritor e Diplomata, que era uma das propostas do IX Congresso AIL - Associação Internacional de Lusitanistas. Atualmente escreve ensaios, resenhas e críticas no Blog do Jayme Bueno.

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ANTíGONA: A juSTIÇA mORAL

E O VALOR DA SAbEDORIA

mArLise sAPiecinski

A epígrafe acima, que traduz parte do diálogo imortal em que Antígona defende a lei dos deuses contra a lei humana de Creonte, é uma pequena amostra

da postura assumida pela heroína de Sófocles, ao enfrentar a tirania com indomável firmeza, opondo os ditames da consciência à razão de Estado e à lei política, mesmo sabendo que tal atitude lhe vai trazer uma condenação terrível. Mais do que a defesa de um código contra outro, na verdade, o que Antígona essencialmente faz é entregar todo o seu ser pela honra de seu irmão, pois entende que este é o seu dever.

Verdadeiro monumento na história da humanidade, Antígona é uma prova significativa de que, embora já não seja possível olhar a obra literária do modo como se fazia à época de Sófocles, visto que certos detalhes de suas tragédias parecem ininteligíveis ao leitor moderno, a civilização grega, com todo o seu imaginário mitológico e aparato cultural, alicerçado na justiça, na beleza e no equilíbrio, ainda hoje provoca uma espécie de deslumbramento naqueles que se aventuram em atravessar as ondas do passado, projetando-as sobre o futuro.

Por essas razões, Antígona representa, para muitos, o ponto culminante não só da obra de Sófocles, mas, provavelmente, de toda a tragédia clássica da antigüidade: le lys de l’art antique, como a chamou Henry Bordeaux; uma das mais sublimes e, sob todos os aspectos, mais consumadas obras de arte criadas pelo esforço humano, como atestou Hegel. Símbolo da devoção ao grupo familiar, Antígona é aquela que, resolutamente, declarou: Não nasci para odiar, mas sim para amar (524)1.

Depois de servir de apoio ao cego e miserável Édipo, seu desgraçado pai, já destituído do poder e despojado da honra, Antígona assume o destino de pertencer a uma estirpe impura, filha daquele que, sem saber, matou o pai e casou-se com a própria mãe, tornando-se rei de Tebas. Escutando somente os preceitos da lei religiosa, que incide sobre a lei do

sangue, que, por sua vez, manda dar sepultamento honrado aos membros da família, Antígona desafia a lei do Estado, entregando a própria vida em holocausto, para poder prestar os deveres fúnebres a seu irmão Polinices, condenado por Creonte a servir de pasto aos cães e abutres, numa punição infame post-mortem, por sua rebeldia contra a própria pátria. Na luta que Polinices trava com seu irmão Etéocles pela sucessão do trono de Tebas, ambos sucumbem, um ao outro matando, no campo de batalha. Quando o drama principia, o édito real acaba de ser proclamado.

Ao agir de modo a encarar seu próprio destino, opondo-se à vontade do rei, a jovem princesa acaba provocando o desencadeamento de ações que resultam na ruína de seu opositor, derrubado pela inconseqüência de seus atos tirânicos. Na verdade, a sentença de morte da filha de Édipo repercute, sucessivamente, não só no aniquilamento de Creonte, a quem a sabedoria chega tarde demais, depois de consumado o infortúnio, mas também no suicídio de Hémon e de Eurídice, sacrificados à obstinação daquele que foi vítima de sua própria cegueira.

Presa à maldição impiedosa que caiu sobre todos os descendentes de Lábdaco, em Édipo em Colona Antígona lamenta o seu destino e o de sua irmã Ismênia, aludindo à pesada herança que lhes ficava, após a morte do pai infeliz, que as gerara no ventre da própria mãe, no mais abominável incesto. A tímida e submissa Ismênia não herdará, contudo, a mesma determinação da irmã. Na tragédia que ostenta seu nome, Antígona ressente-se de sua falta de iniciativa, ao aceitar sua fraqueza face ao édito de Creonte, e prenuncia a decisão que por sua vez tomou: Sim, a esse irmão que é meu e teu, ainda que o não queiras. Não me acusarão de o ter atraiçoado (45-6). Levada assim às últimas conseqüências, a trágica devoção da desventurada filha de Édipo atinge uma sublimidade inigualável, tanto pela dedicação e renúncia, quanto pela integridade de sua figura.

“Eu não acreditava que os éditos humanos tivessem força suficiente para

conferirem a um mortal a faculdade de violar as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são imutáveis.”

(Antígona – Sófocles)

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Uma nova proposta de leituraO que, entretanto, foi até agora enfatizado, e que se encontra

de alguma forma em evidência na maioria das leituras de Antígona, muitas vezes acaba desviando a atenção do que subjaz à devoção da jovem à memória do irmão ultrajado, fato um tanto elementar para servir como único pano de fundo da peça, ainda mais se considerarmos a sutileza do pensamento de Sófocles. A rigor, é num plano mais complexo que se vai desenrolar, em toda a sua extensão, o conflito verdadeiramente trágico. Está-se falando da luta, fatal para ambos, travada entre Antígona e Creonte. Dessa luta sem tréguas resultam todas as conseqüências trágicas que, antes de alterarem o destino dos protagonistas, efetivamente o confirmam.

Diversas foram as leituras desse confronto. Hegel, por exemplo, e com ele vários críticos alemães, examinando sobretudo o conflito entre a lei humana e a lei divina, acentuaram uma oposição essencial, que consiste no contraste diferenciador entre o caráter do homem, levado a esquecer-se de si próprio, a conceber os fatos a partir do geral, do abstrato, e o caráter da mulher, que, de modo contrário, fechada em sua existência particular, concentra toda sua paixão nos objetos sensíveis e concretos. Elevando-se às relações gerais, à vida social, o homem compreende as razões de Estado, enquanto a mulher, não se elevando acima do sentimento, não consegue discernir mais do que as relações sensíveis, as afeições familiares: A l’homme la politique, à la femme la piété, como observara J. Bousquet2, na sua edição clássica de Antígona, não deixando de rejeitar esse tipo de posição, apesar de reconhecer-lhe a profundeza de análise.

Por seu turno, Fonseca Pimentel procurou igualmente demonstrar que interpretações dessa natureza são incapazes de resistir à uma análise mais profunda, uma vez que o conflito que ali se estabelece não é, em verdade, somente entre Antígona, a mulher, e Creonte, o homem. Às razões de Estado que este concebeu se opõem, não só Antígona, mas também Tirésias, o adivinho, e o próprio filho de Creonte, Hémon. Mais do que isso. Todos os tebanos, sem distinção de sexo, condenam, no íntimo, a atitude do rei e externariam os seus sentimentos ‘si la crainte ne leur fermait la bouche’. ‘Car – acrescenta Antígona – la royauté, entre autres privilèges, peut faire et dire ce qu’il lui plaît’.3

Com efeito, defendendo Antígona da acusação de rebelde, que lhe fora imputada por Creonte, Hémon fá-lo saber: Não é isso que afirma o povo unido de Tebas (733). A partir daí, é difícil não reconhecer que se tem razões suficientes para constatar que Creonte se encontra absolutamente só, divorciado tanto de seu povo quanto dos que lhe são mais próximos. Arbitrária e despótica mostra-se a sua atitude. E ainda que acredite na legitimidade de sua decisão, seu juízo confiante estava errado, visto que a razão o atraiçoa.

Ora, o conflito que aí se estabelece ultrapassa, com a permissão de Hegel e seus seguidores, o confronto entre o homem e a mulher, ou, num sentido mais amplo, o choque do direito familiar com o da cidade, para atingir proporções de outra natureza, que implicam, em última instância, em relações bem mais complexas, envolvendo conceitos como os de moralidade, legalidade, justiça, liberdade e poder, que incidem igualmente sobre as esferas pública e privada.

Longe de ser uma questão entre homens e deuses, como no Prometeu Agrilhoado de Ésquilo ou em As Bacantes de Eurípides, o conflito apresentado por Sófocles é inteiramente humano. Desse modo, mais do que apresentar situações trágicas, interessou-lhe focalizar de preferência caracteres. As figuras que protagonizam o drama são delineadas em conformidade com o sentido que se procura extrair de suas ações. Tudo o que forma o caráter de Antígona a impele a desafiar o édito de Creonte. Tudo o que forma o caráter dele o impele a exigir que suas ordens se cumpram. A espécie de conflito que se trava entre ambos define e configura a identidade de cada um deles. Assim, embora contrastem entre si, e pareça evidente o afirmado desacerto da determinação de Creonte, numa das mais recentes interpretações dessa tragédia, Trindade dos Santos defende a tese de que, por diferentes razões, ambos os heróis pecam. Creonte, contra os deuses; Antígona, contra a cidade. E assim, dado o conflito dos poderes que se digladiam, as suas faltas como que se potenciam, perante a indiferença dos poderes a que se aliam. A Antígona de nada servem os deuses; a Creonte, o precário apoio que começa por colher da cidade. O diferendo poderia ficar por aqui. Mas Sófocles acrescenta uma não pequena qualificação. É que embora os homens possam agir com correção, o mal sobrevirá quanto mais não seja pelo fato de as leis divina e humana se poderem achar em discordância.4 Parece ser esta a autêntica dimensão trágica da peça: de uma forma ou de outra, o ônus acaba sempre por cair sobre a cabeça dos homens. E evidentemente com mais conseqüências sobre a cabeça daqueles que detém o poder.

Trindade dos Santos efetivamente sugere que o conflito entre Antígona e Creonte se assume nos planos divino e político. Primeiro, pela integral consagração da jovem às divindades ctônicas, isto é, à Justiça que coabita com os deuses infernais, como ela mesma se refere. Segundo, pela sua intrusão no espaço público, saindo da clausura do privado a que sua condição feminina a condenava - a estas faltas da heroína corresponde Creonte com o desrespeito pelos direitos da morte e a pretensão de legislar publicamente sobre o espaço privado da piedade.5 Agindo do modo como agiu, Antígona atenta não só contra os vivos e contra os deuses Olímpicos, ao se entregar exclusivamente às divindades subterrâneas, mas também contra a cidade, uma vez que traz para o espaço público a piedade que lhe cumpria assumir apenas no espaço privado da casa de Creonte, como, pelo contrário, o fez Eurídice, quando tira a própria vida diante do altar da casa. Enforcando-se, pois, na caverna onde foi condenada a morrer, Antígona oferece-se inteiramente aos deuses a quem consagrou sua vida: É mais longo o tempo em que devo agradar aos que estão no além do que aos que estão aqui. É lá que ficarei para sempre (75-7), diz ela em diálogo com Ismênia, logo no início da peça. E mais adiante acrescenta: Tu tens vida, ao passo que a minha acabou há muito, para servir os que morreram (559-60).

Por outro lado, não se pode esquecer que, numa peça destinada à representação pública, de modo diferente do que ocorre num texto literário, a presença do público deve ser considerada, de modo que há que se atentar também, apesar da improbabilidade de uma resposta segura nesse sentido, para o tipo de mensagem que Sófocles queria que os atenienses compreendessem, considerando-se que o teatro, na Grécia

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clássica, tinha sobretudo a função de fornecer aos cidadãos a educação e a oportunidade de debate que nenhuma outra instituição lhes podia proporcionar. É evidente que a questão é bem mais complexa do que se desprende de sua simples formulação.

Nesse sentido, não foram poucos os estudos, principalmente ao longo dos séculos XIX e XX, que procuraram sugerir o modo como a peça deveria ser lida. O certo é que a interpretação hegeliana, dominante no século XIX, recebeu, no século XX, uma série de ataques, acirrando o debate em direção a outras possibilidades de entendimento, o que, na maioria das vezes, não passou do terreno das conjecturas. De qualque maneira, mesmo frente ao considerável número de interpretações discordantes, para críticos como Maria Helena da Rocha Pereira6, a leitura de Hegel continua sendo sem dúvida uma das melhores.

Quanto à posição de Creonte diante da assistência, Trindade dos Santos7 dirá que é possível presumir que, inicialmente, seus propósitos de defesa da justiça tenham-lhe granjeado a simpatia do público. Nada se passa nos primeiros diálogos, de que participam Antígona e Ismênia, que o leve a mudar de opinião, uma vez que, aos olhos do povo ateniense, são apenas mulheres a se aventurarem por caminhos e espaços que não podem pisar. A mudança efetivamente se faz notar a partir do momento em que Hémon entra em cena e, num admirável diálogo, troca com o pai as palavras que selam o destino do tirano:

CREONTE: E a cidade é que vai prescrever-me o que devo ordenar?HÉMON: Vês? Falas como se fôsses uma criança.CREONTE: É portanto a outro, e não a mim, que compete governar este país?HÉMON: Não há Estado algum que seja pertença de um só homem.CREONTE: Acaso não se deve entender que o Estado é de quem manda?HÉMON: Mandarias muito bem sozinho numa terra que fosse deserta (734-9).

Com palavras serenas e cordatas, a princípio, e revoltadas, por fim, Hémon procura fazer o pai voltar atrás de sua decisão. À argumentação ponderada e impecável do filho, demonstrando o possível engano do julgamento do pai, Creonte inicialmente só consegue revelar, numa frase espantosa, a medida do amor próprio ferido: Com que então devo aprender a ter senso nesta idade, e com um homem de tão poucos anos? (726-7). E nas intervenções seguintes, acima transcritas, esboça-se, de modo insofismável, o seu espírito absolutista e autoritário. A aproximação do castigo começa então a ser indicada, no final do diálogo: Ela morre, mas ao morrer, causará a perda de alguém (751), sentencia Hémon. Mas não para por aí. Com o afastamento do jovem, o Coro também passa a apresentar indeléveis sinais de hesitação, logo em seguida confirmados, na “Ode ao Amor”, diante da presença transfigurada de Antígona, que, de mãos amarradas, entre dois servos de Creonte, suscita agora a piedade e a homenagem que o Coro abertamente lhe presta: Mas ao ver isto, ‘té eu sou levado p’ra fora das leis, das

lágrimas não posso a torrente deter, quando vejo do tálamo a todos comum Antígona aproximar-se (801-6). Mas é sobretudo com o adivinho Tirésias que se compreende a medida dos erros de Creonte, testemunhando-se o arrependimento de quem no espaço de poucas horas aprendeu o que uma vida inteira não lhe tinha ensinado

Partindo, na verdade, de uma posição razoável, Creonte deixa-se ludibriar pela insensatez de uma obstinação que acaba sendo-lhe fatal. Não há dúvidas que, para fazer valer sua autoridade e castigar as faltas de Antígona, Creonte poderia ter-se valido de outros recursos, sem precisar chegar ao extremo a que chegou. Outro também teria sido o seu fim se a ira não lhe tivesse embotado a razão, mantendo-o surdo às críticas que lhe eram dirigidas e cego às evidências que lentamente se iam espalhando pela cidade.

Concentrando a atenção na relevada importância do papel desempenhado por Creonte, não foram poucos os críticos que apontaram a dificuldade que surge de se ver em Antígona a personagem principal da tragédia de Sófocles. Nesse sentido, sugeriram que “Antígona e Creonte” teria sido um título mais justo. Considerando assim que o fecho da peça é, clara e deliberadamente, todo para Creonte, H. D. F. Kitto, por exemplo (contrariando uma crítica mais antiga, que, ao afirmar que a peça era, evidentemente, acerca de Antígona, punha-se a dar explicações satisfatórias para as últimas cenas), entende que a última parte de Antígona não faz sentido até compreendermos que não há uma personagem central mas duas, e que das duas, a significativa, para Sófocles, foi sempre Creonte. Basta simplesmente olhar para os fatos dramáticos.8 Embora a tragédia de Antígona seja terrível, é ao mesmo tempo prevista e rápida, enquanto a de Creonte cresce diante de nossos olhos. Se Sófocles realmente nos convida a observá-lo, diz Kitto, Antígona deixa de ser a porta-estandarte das Leis Não Escritas e Creonte torna-se o principal agente. Seus são os defeitos e os méritos imediatamente relevantes para a peça. De todo modo, como disse George Steiner, qualquer que seja o aspecto enfatizado, o certo é que o fascínio de Antígona, a influência poética e política exercida pelo mito, são inseparáveis da presença de Creonte.9 O papel por ele desempenhado tem efetivamente dado lugar a uma reflexão não menos densa do que a provocada pela heroína.

Intuir, contudo, o sentido da mensagem que o poeta dirige à cidade e ao poder que a rege pressupõe, não obstante, a compreensão de aspectos que, mesmo para os estudiosos da cultura clássica, permanecem polêmicos. Na tentativa de ilustrá-los, pode-se mesmo cogitar acerca da função que a Ode que constitui o primeiro estásimo de Antígona, também conhecida como a “Ode ao Homem”, assume no contexto geral da peça. Díspares têm sido as suas interpretações: Se todos concordam em encará-la como uma das maiores criações da lírica coral grega, extenso é o desacordo sobre o seu sentido, possível destinatário, ou relevância na peça.10 Detendo-se demoradamente nessa parte da tragédia de Sófocles, ao analisar a polêmica que opõe a lei à natureza, em três textos da Grécia clássica – a referida Ode, o mito do Protágoras, de Platão, e a “Oração Fúnebre”, de Péricles, registrada por Tucídides no II livro da História da Guerra do Peloponeso –, Trindade dos Santos procurou mostrar que a sua função

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é apresentar o conflito que opõe e acabará por destruir os dois protagonistas, tendo como pano de fundo a evolução da Humanidade: Ao entregar-se à celebração dos feitos da raça humana, associando-os ao domínio das artes e técnicas e á aquisição da capacidade de expressão e comunicação, a “Ode ao Homem” inscreve-se numa tradição progressista minoritária e restrita, na cultura grega. A tradição maioritária acentua, pelo contrário, a visão degeneracionista da História.11

O problema da interpretação da Ode, cujas dificuldades são de diversa ordem, concentra-se efetivamente no sentido da mensagem que dirige aos homens, já de início expressa de modo dúbio, através da expressão ta deina, que ocorre logo na primeira linha, e que, de acordo com Trindade dos Santos, tanto pode ser interpretada no sentido positivo (maravilhas), quanto no negativo (coisas terríveis), ou ainda apontando-se-lhe a ambivalência (prodígios). Para discerni-la, impõe-se a compreensão de seus argumentos: A Ode inumera as conquistas do Homem. Começa por apontar o confronto constante com os antigos deuses: cruzando o Mar e trabalhando a Terra. Mas o titanismo do Homem manifesta-se ainda no domínio que exerce sobre os outros seres vivos, capturando as aves, animais selvagens e peixes, e domesticando o cavalo e o boi. A sua capacidade a tudo se estende: à fala, ao pensamento, e às normas que regulam as cidades, que aprendeu sozinho. Tal como a furtar-se à inclemência dos elementos: geada e chuva. Mostrando-se de tudo capaz, afronta o futuro, para tudo achando saída. Só à morte não escapa, embora já estude como vencer as doenças. A sua arte leva-o quer ao bem, quer ao mal. Se respeita a lei e os deuses é grande na cidade (“hypsipolis”). Fica, porém, fora dela (“apolis”), se incorrer no erro. E a Ode termina com a rejeição desse homem, associada à entrada de Antígona em cadeias, presa por ter infringido o édito de Creonte que proibia aos Tebanos o enterro dos cadáveres dos invasores da cidade (um dos quais é Polinices).

Pode-se sem dificuldade dividir a Ode em duas partes: na primeira, a celebração dos feitos do Homem é coroada pela construção da cidade e limitada apenas pela impotência que não deixa de manifestar perante a morte. A segunda parte dá lugar à meditação sobre a instabilidade da condição humana. A ambivalência da técnica leva o Homem ao bem ou ao mal: ao poder na cidade, quando a usa, respeitando as leis humanas e divinas, e à expulsão, quando ousa incorrer em falta. A estrutura formal e material da Ode manifesta assim uma dupla tensão entre pólos opostos. O momento de exaltação inicial não só vem a ser compensado pela crítica, como a própria crítica revela que o mal a que o Homem fica sujeito decorre do bem que obteve. A técnica que antes o libertou será precisamente a causa da sua desgraça. A instabilidade ética do Homem é dada quase como mera conseqüência da ambivalência da técnica, que o fez grande depois o destrói.12

A grande questão que se coloca, e que a longa citação procurou evidenciar, envolve o tipo de lição que afinal se oculta por detrás dessa tensão. Questão que se torna tanto mais significativa se considerado o fato de que o que está em discussão é a adoção de uma perspectiva otimista ou pessimista na interpretação da Ode. Nesse sentido, se encarada de uma perspectiva progressista, como se entenderia a sombria meditação acerca da ambivalência da técnica e da instabilidade

ética do Homem, com que a Ode termina? Por outro lado, se é justamente o final catastrófico que lhe confere sentido, como se explicaria o tom de celebração com que inicia?

A resposta a essas perguntas, na seqüência ainda do pensamento de Trindade dos Santos, esclareceria a referida tensão. Para todos os efeitos, a manutenção da ambigüidade, através da potenciação da intrínseca ambivalência da técnica pela instabilidade do Homem, de modo contrário à mera acentuação de somente um dos pólos em tensão, é a única que contribui para uma leitura coerente da Ode e, por extensão, da peça.13 Daí a necessidade de examinar o modo como esta mensagem é exemplificada no decorrer das ações, acercando-se, para tal, das sinuosidades do conflito que opõe os dois protagonistas, pois uma coisa é ler a Ode fora do contexto da tragédia, outra, muito diferente, interpretá-la em estreita relação com o desenrolar da ação.

Se a decisão de expulsar Polinices da cidade, bem como a de punir Antígona por ter desrespeitado seu édito, é um direito que ninguém pode negar a Creonte, visto que sua decisão não é uma invenção original, nem surpreendente, uma vez que existem exemplos históricos que apoiam o princípio de sua atitude, ele erra, porém, pelo excesso a que é levado para defender sua posição, deixando que o conflito avance até às últimas conseqüências. É por conta desse excesso, pelo modo como a sua falta vai ganhando proporções cada vez mais incontroláveis, que Creonte é acusado e punido. Primeiro, porque simplesmente ignora as razões invocadas por Antígona. Segundo, porque ao ignorá-las desrespeita a lei divina, que encarrega um parente de enterrar os seus mortos, ofendendo assim os deuses. Terceiro, porque não ouvindo sequer o próprio filho, a quem por direito caberia trazer à razão e à ordem a prometida esposa, peca até mesmo contra o Amor fraternal, da mesma forma como quis obrigar Antígona a fazê-lo. Quarto, porque ao não dar ouvidos às palavras de Hémon, que em nome da razão procura inutilmente defender Antígona, alertando-o sobre a simpatia que a heroína granjeara entre os seus concidadãos, ignora inclusive a vontade do povo. Quinto, e último, porque atenta, acima de tudo, contra os deuses infernais, por deixar os mortos entre os vivos e enviar uma viva para os reino dos mortos.

Além disso, considerando-se o seu despotismo, claramente exposto no diálogo com Hémon, Creonte incorre em mais dois erros fundamentais, decorrentes daqueles: O primeiro é a convicção de ser o Estado a única fonte de direito e de não haver nada, por conseguinte, ‘acima’ dele. O segundo consiste em admitir que o Estado pode interferir em todas as atividades humanas, quaisquer que sejam elas, e, conseqüentemente, em reconhecer que nada há ‘fora’ do Estado14. E se nada há acima nem fora do Estado, nada poderá haver, portanto, contra o Estado. Fica assim valendo a primazia absoluta da política contra todos os demais valores da cidade. Ideologia contra a qual Antígona se insurge e prefere morrer a endossá-la.

Tantos erros impelem Creonte de encontro à maldição, da qual em vão tentara escapar. Assim, ao lado dos Labdácidas, todos, como ele próprio, destruídos, Creonte é mais um dos homens visados pela Ode, cuja sentença fatal só se torna ativa em contato com o poder, como conseqüência do exarcebamento do conflito que os opõe aos deuses.

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Note-se, nesse sentido, o papel fundamental que a cidade e suas leis ocupam na tragédia de Sófocles, arrastando implacavelmente para a perdição a estirpe dos Labdácidas e todos os que a ela se associam. O mesmo poder que os eleva, expulsa-os da cidade, como se destituídos de autoridade (e em conseqüência longe do espaço onde efetivamente é possível exercê-la) a cadeia de maldição de repente se quebrasse.

ConclusãoPensando, enfim, na lição final da peça, é saliente a idéia de

que o sofrimento ensina, ainda que tarde demais, como o Coro não deixa de acentuar: Para ser feliz, bom-senso é mais que tudo. Com os deuses não seja ímpio ninguém. Dos insolentes palavras infladas pagam a pena dos grandes castigos; a ser sensatos os anos lhes ensinaram (1349-53). Esta é a situação à qual o infeliz Creonte, no espaço de um só dia, acaba reduzido – da mais altiva presunção a um lamentável estado de humilhação e solidão, aniquilado sobretudo pela dor da própria consciência, ao compreender as irrevogáveis conseqüências trágicas de seus atos. O seu juízo confiante estava errado. Nada pode repor-lhe a perda do filho, a cujos apelos se manteve surdo, e da mulher que amava, mas sempre ignorou nos momentos decisivos.

Se a sabedoria só vem com o sofrimento, sombrio é o destino humano. A concepção de progresso, transmitida pela “Ode ao Homem”, traz consigo uma prudencial porção de pessimismo. Dessa ambivalência o homem não pode escapar. Quanto mais alto se eleva, mais grave se torna a queda, se não aprender a contornar a imperfeição e a instabilidade de sua natureza. Dolorosa é a sorte que lhe é reservada, apesar de suas ousadas conquistas e de seu desejo de acertar. Já não há deuses em cena prometeicamente oferecendo tochas fulgurantes, que lhe permitam o aperfeiçoamento de técnicas de sobrevivência. O homem está sozinho na cidade e sozinho tem que aprender a lidar com as leis que criou, e com as quais não é capaz de conviver em paz. Assim foi com Creonte, vítima da dureza da lei que cega e obstinadamente quis impor, tanto aos outros como a si mesmo. É por uma racionalidade imperiosa, incapaz de transigir, que ele se deixa arrastar para a desrazão e para a autodestruição.

A lei moral grega ensina que a temperança é uma virtude que somente se adquire pela vida, evitando radicalidades e extremos. Ensinamento que Antígona e Creonte só aprendem quando transformados pela experiência dolorosa. É preciso saber ver as mediações e a hierarquia existentes entre a lei divina e a lei dos homens. Age mal todo aquele que não compreendê-las. Antígona, desconhecendo e desrespeitando a lei dos homens, paga a sua ação com a morte. Creonte, absolutamente convicto da legalidade de suas prerrogativas, paga a sua ação com o sacrifício do filho e da mulher amada, sendo, por fim, forçado a admitir a vigência simultânea das duas leis, a dos deuses e a dos homens.15

Parece ser essa a advertência que o poeta se esforçou em transmitir aos homens de seu tempo, referindo-se, mais do que qualquer outro, à necessidade de sabedoria e bom senso. Advertência, é preciso que se diga, mais do que nunca atual, principalmente se entendermos o profundo sentido de dignidade que, para além da grave beleza, as peças de Sófocles nos legaram.

Notas1. Com exceção da epígrafe, cuja tradução é de Fernando Melro (Portugal: Editorial Inquérito, 2000, 5. ed.), todas as demais citações do texto de Sófocles referem-se à tradução de Maria Helena da Rocha Pereira (Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992, 3. ed.).

2. Cf. Antígone, édition classique par M. J. BOUSQUET. Introduction. Paris: J. de Gigord, Editeur, 1938.

3. PIMENTEL, A. Fonseca. “Antígona”. In: Machado de Assis e outros estudos. Rio de Janeiro: Pongetti, 1962, p.179.

4. SANTOS, José Gabriel Trindade dos. “A natureza e a lei: reflexos de uma polêmica em três textos da Grécia clássica”. In: Estudos sobre Antígona. Portugal: Inquérito, 2000, p.86.

5. Ibid., p.105.

6. Cf. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica, I vol. – Cultura Grega. 8. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. Entre as interpretações discordantes, Maria Helena R. Pereira lembra a de Pohlenz (Die griechische Tragödie, Göttingen, 1954, 2 vols.), que entende que, se o autor quisesse mostrar Creonte como representante de um princípio justo, não teria feito tudo para lhe retirar a nossa simpatia durante o conflito, e que o que Sófocles faz é ‘transferir o total da esfera da legalidade para a da moralidade, das limitações do ritual para a religiosidade, chegando ao puramente humano’; e a de B. M. W. Knox (The Heroic Temper – Studies in Sophoclean Tragedy, Berkeley, reimpr. 1966), que prefere ver na tragédia a luta entre a ‘polis’ e a família (p.423-424).

7. Cf. SANTOS, José Gabriel Trindade dos. Op. Cit.

8. KITTO, H. D. F. A Tragédia Grega, I vol. Trad. de José Manuel Coutinho e Castro. Coimbra: Armênio Amado, 1990, p.233. Assinalando a relevância da figura de Creonte, Kitto defende o princípio de que, se Antígona é mais interessante que uma simples antítese de Creonte, ele é mais que o louco obstinado que a mata. Sófocles interessou-se pelo destino dele. É, se não cruel, pelo menos insensível; como um tirano, é rápido em suspeitar e não sabe como se transige. Mas tem a honestidade própria, a sua justificação própria e o senso próprio da responsabilidade (p.240).

9. STEINER, George. Antígonas. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 1995.

10. SANTOS, José Gabriel Trindade dos. Op. Cit., p.79. Em muitos comentadores, diz o autor, o desacordo acha-se condensado na tradução que adotam para o termo chave “ta deina”. Por outro lado, alguns intérpretes defendem não haver em algumas tragédias uma relação forte entre as intervenções do Coro e a ação da peça.

11. Ibid.

12. Ibid., p.81-82.

13. Com efeito, muitos foram os autores que exploraram a ambigüidade da Ode. Entre eles, Trindade dos Santos lembra de M. Nussbaum (The Fragility of Goodness, Cambridge, 1986) e de R. Bodeüs (“L’habile et le juste: de l’Antigone de Sophocle au Protagoras de Platon”, Mnemosyne, 1984). Nesse sentido, a interpretação “prodígios”, proposta por Maria Helena da Rocha Pereira, para a expressão ta deina, na sua tradução da peça (Sófocles, Antígona, Coimbra, 1984), adequa-se com particular felicidade a esta idéia. Por outro lado, há evidentemente os que preferem adotar outra posição, muitas vezes também ela ambivalente. Martin Heidegger, por exemplo, embora refira a citada ambigüidade, opta por acentuar os traços negativos da noção (“The Ode on Man in Sophocles’ Antigone”, in Sophocles: A Collection of Critical Essays – retirado de An Introduction to Metaphysics, Yale, 1959) . A ambigüidade da própria estratégia de Heidegger, aliás, permite-lhe explorar quase exclusivamente os traços pessimistas, sem se comprometer com uma tradução claramente negativa, como fará, por exemplo, Gilberte Ronnet (“Sur le premier Stasimon d’Antigone”, REG 80, 1967), que aproveita apenas o sentido negativo de ta deina para inserir a Ode na temática tradicional do phthonos divino. E de um lado extremamente oposto a esta última perspectiva, C. Segal, por sua vez, adota uma posição otimista, cuja interpretação recupera no texto da Ode os pontos capitais da ação, em contraste à sobreinterpretação que faz Heidegger, sem procurar colher informações no contexto da Antígona.

14. PIMENTEL, A. Fonseca. Op. Cit., p.181. Referindo-se às palavras de Thomas Mann (Das Problem der Freiheit, Stockolm, 1939), ao pensar a essência do espírito totalitário, Pimentel lembra que a transformação da política em valor absoluto (das Absolutwerden der Politik), a sua ditadura total sobre o complexo humano, significa a morte da liberdade e destrói a civilização, tanto quanto a anarquia: em tal disposição se encontram o fascismo e o bolchevismo.

15. Cf. FREITAG, Barbara. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. 2. ed. Campinas, SP: Papirus, 1997.

mArLise sAPiecinski nasceu em Tenente Portela (RS). Foi professora universitária e atualmente é fotógrafa. É Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS e Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS/Universidade de Coimbra. Publicou A poesia de Fernando Pessoa e o existencialismo (2001). Vive em Curitiba.

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