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7/21/2019 R.R. - Pierucci http://slidepdf.com/reader/full/rr-pierucci 1/5 Pierucci - Religião como solvente Resumo: Em oposição à visão de Durkheim, para quem a religião atua como religião dinamogênica do indivíduo com a sociedade a que pertence, este ensaio sustenta que hoje a força social da religião est na capacidade de dissolver antigas pertenças e linhagens religiosas esta!elecidas" #om !ase na o!ra de $a% &e!er, argumenta'se que a religião universal de salvação individual , forma religiosa que tende a predominar so!re as demais, funciona como um dispositivo que desliga as pessoas do conte%to cultural de origem" Umbanda minguante (erce!o o a!alo demogr)co que a um!anda sofreu nas d*cadas )nais do s*culo ++" Em -./ chegava a apenas /,01 da população, caiu em -- para /,21 e continuou caindo em 3///, chegando a /,41 56ota: 6o censo de 3// se esta!ili7ou em o,418" 9uanto mais se amplia no rasil a diversidade religiosa livre de amarras de um Estado #onfessional, multiplicando para os !rasileiros as possi!ilidades o!jetivas de livre escolha em face de maior estoque de religi;es em oferta, aumenta para o soci<logo da religião a e%igência de se perguntar =que forma de religião> aca!a se saindo melhor nesse processo predat<rio de =seleção cultural> a olho nu que aqui se instalou desde as ?ltimas d*cadas d s*culo ++" (ortanto, * necessrio classi)car" E por conta disso achei que valia a pena tra7er à !aila o velho recurso funcionalista de classi)car as religi;es  por função. (ortanto, faremos uma classicação funcional" @ma classi)cação ?til no enfretamento analítico de um campo de forças religiosas diversas e com desigual potencial de desenvolvimento * a que distingue entre religiões étnicas Areligi;es com função de preservação de su!culturas *tnicas, favorecendo a auto'identi)cação de um grupo socialB e religiões universais Aa!ertas para a conversão de todo e qualquer indivíduo, independente de tri!o, etnia ou nacionalidadeB" 6a de)nição de religião universal, duas ideias estão associadas: abertura e conversão " =Celigião de conversão>, portanto, )ca sendo uma categori7ação que se encai%a com maior propriedade no segundo grupo funcional, na medida em que coloca no centro da =modernidade religiosa> a )gura m<vel não s< do convertido, mas tam!*m do =convertível>, da pessoa que est desde j e sempre'

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Pierucci - Religião como solvente

Resumo: Em oposição à visão de Durkheim, para quem a religião atua como

religião dinamogênica do indivíduo com a sociedade a que pertence, este ensaio

sustenta que hoje a força social da religião est na capacidade de dissolver antigaspertenças e linhagens religiosas esta!elecidas" #om !ase na o!ra de $a% &e!er,

argumenta'se que a religião universal de salvação individual, forma religiosa que

tende a predominar so!re as demais, funciona como um dispositivo que desliga as

pessoas do conte%to cultural de origem"

Umbanda minguante

(erce!o o a!alo demogr)co que a um!anda sofreu nas d*cadas )nais do s*culo

++" Em -./ chegava a apenas /,01 da população, caiu em -- para /,21 e

continuou caindo em 3///, chegando a /,41 56ota: 6o censo de 3// se

esta!ili7ou em o,418"

9uanto mais se amplia no rasil a diversidade religiosa livre de amarras de um

Estado #onfessional, multiplicando para os !rasileiros as possi!ilidades o!jetivas

de livre escolha em face de maior estoque de religi;es em oferta, aumenta para o

soci<logo da religião a e%igência de se perguntar =que forma de religião> aca!a se

saindo melhor nesse processo predat<rio de =seleção cultural> a olho nu que aqui

se instalou desde as ?ltimas d*cadas d s*culo ++" (ortanto, * necessrio classi)car"

E por conta disso achei que valia a pena tra7er à !aila o velho recurso funcionalista

de classi)car as religi;es por função. (ortanto, faremos uma classicação funcional"

@ma classi)cação ?til no enfretamento analítico de um campo de forças religiosas

diversas e com desigual potencial de desenvolvimento * a que distingue entre

religiões étnicas  Areligi;es com função de preservação de su!culturas *tnicas,favorecendo a auto'identi)cação de um grupo socialB e religiões universais Aa!ertas

para a conversão de todo e qualquer indivíduo, independente de tri!o, etnia ou

nacionalidadeB"

6a de)nição de religião universal, duas ideias estão associadas: abertura e

conversão" =Celigião de conversão>, portanto, )ca sendo uma categori7ação que se

encai%a com maior propriedade no segundo grupo funcional, na medida em que

coloca no centro da =modernidade religiosa> a )gura m<vel não s< doconvertido, mas tam!*m do =convertível>, da pessoa que est desde j e sempre'

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 j convidada a se converter, melhor ainda, daquela pessoa que por mudar de

religião se individualiza, se torna mais indivíduo, um ser humano a!straído dos

vínculos herdados, desincompati!ili7ado de um passado que, vai ver, j não era l

essas coisas" conversão, posto que mudança de uma religião de origem para uma

religião de escolha, descreve um movimento propriamente dito de mobilidadesocial"

É universal a religião estruturalmente voltada para a conversão da pessoa em

indivíduo Aenunciado B"

 Fomando de empr*stimo anlises de (roc<pio Gerreira da categori7ação das

religi;es !rasileiras em *tnicas e universais, ele classi)ca um!anda como universal

e candom!l* como *tnica, mas hoje j não * mais assim, h um processo de

universali7ação das religi;es *tnicas, mesmo os candom!l*s mais =africani7ados>

 j se comportam acentuadamente, em!ora não inteiramente, como religi;es

universais" lgo que tam!*m ocorre com o !udismo, que * uma religião universal,

mas no rasil se e%pressou como uma de identi)cação e preservação da cultura

 japonesa, e o mesmo com os luteranos e alemães" (ortanto, as alteraç;es de

função no interior do campo religioso !rasileiro têm se dado sempre na mesma

direção: de religião *tnica para religião universal. 6ão mais em direção contrria

como no caso do !udismo e luteranismo"

Procura-se uma chave

@ma religião universal de)ne'se minimamente por sua =a!ertura a todos>" $as

essa de)nição mínima não d conta do pro!lema" mera ideia de a!ertura a todos

não me !asta, não me parece capa7 por si s< de captar as implicaç;es disruptivas

* isso que me interessa de uma religiosidade ativamente universalista, cujo

e%emplo mais característico se acha nas religi;es monoteístas de missão universal,

religi;es cujo dinamismo constitutivo est fundado co!re a crença em uma missãodivinamente revelada"

(ara esse tipo de religião qualquer acento posto na identidade *tnica

compartilhada, qualquer resquício de compromisso com um determinado povo ou

população torna'se um empecilho, localismo sem sentido para o universalismo da

(essoa pode ser compreendido como uma pertença a um grupo ou comunidadeque lhe proporciona acesso a algum signi)cado cultural algo signi)cante ao outro"

Hua possi!ilidade de ser est justamente no n<s" I indivíduo assume umarepresentação como partícula ?nica e independente dos demais"

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graça divina" (or isso * que o monoteísmo radical dos protestantes, de apelo

fortemente individualista, com!ina muito menos com qualquer apelo *tnico do que

o tam!*m radical monoteísmo islJmico: !em que o islã gostaria de ver o mundo

inteiro su!metendo'se a l, o Deus ?nico, s< que isso tem criado tens;es com

demandas e%clusivistas recorrentes, que o querem identi)cado com um povo emparticular, o ra!e, tal como o judaísmo o * com o povo judeu"

 Fam!*m no rasil )ca evidente que dentre as religi;es de visada e missão

universal saem'se melhor aquelas de cunho consequentemente individualista e

militantemente missionrio" Iu seja, as congregaç;es protestantes levam

vantagem numa estrutura de campos culturais que * cada ve7 mais concorrencial,

assim como se torna concorrencial a estrutura interna de cada campo, tal como

hoje ocorre com o campo religioso" Foda teoria sociol<gica est aí para nos entregar

a chave de e%plicação dessa not<ria vantagem comparativa de que go7a o

protestantismo de modo especialíssimo: o protestantismo * por e%celência, e

radicalmente, uma religião de conversão individual" (ara ele, conta menos como

validação da f* professada a herança religiosa ou =linhagem na f*> do que o

ingresso voluntrio como =born again> numa congregação de =renascidos>" I que

vale * a inscrição pessoal num meio de crentes"

esta altura me parece que estamos na pista certa de uma !oa chave e%plicativa:

produ7ir indivíduos por dissociação * condição sine qua non para correr

desimpedida a difusão de uma religião que se pretende universal" K de ser

individuali7adora a religião, se quiser coverter fora do grupo de origem do profeta,

 j que ningu*m * profeta em sua terra"

A chave: religião universal de salvação individual

6ada mais rentvel neste ensaio cujo tema * a religião como solvente, do quepinçar na o!ra de &e!er e%atamente aqueles momentos nos quais ele vai pLr o

dedo na ferida da tensão entre a religião universal de conversão individual  e a

esfera dom*stica ou familiar" &e!er di7:

9uando a profecia de salvação criou a comunidade de fundamento puramente religioso, a

primeira força com a qual entrou em conMito foi a comunidade naturalmente dada, o clã, o

qual temia sua desvalori7ação por aquela" 9uem não pode hostili7ar os mem!ros da casa, o

pai e a mãe, não pode ser discípulo de Nesus: =6ão vim tra7er a pa7, mas a espada> estdito nesse conte%to" O certo que a maioria esmagadora de todas as religi;es regulamentou

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tam!*m os laços de piedade )lial intramundana" $as, quanto mais a!rangente e

internali7adamente se conce!eu o escopo da salvação, tanto mais evidente se considerou

que o crente deve estar mais pr<%imo, antes de tudo, do salvador, do profeta, do sacerdote,

do confessor e do irmão na f* do que da parentela natural e da comunidade matrimonial

enquanto puramente tais" #om a desvalori7ação, ao menos relativa, dessas relaç;es e o

rompimento da vinculação mgica e e%clusiva ao clã, a profecia, so!retudo onde se

transformou numa religiosidade soteriol<gica congregacional, criou uma comunidade social

nova"

I que pretendo salientar nesse argumento * a l<gica implacavelmente

individuali7ante inerente ao conceito que sua sociologia da religião ela!ora de

religião congregacional de salvação" (or ra7;es de !revidades, aponto meu

comentrio diretamente para a ?ltima frase da citação, que fala da =religiosidade

soteriol<gica congregacional> como criadora de uma =comunidade social nova>"

Eis uma forma de religião especialmente disruptiva, efetivamente destrutiva" @ma

religião de salvação individual s< se apruma num primeiro momento por via

e%trativa: e%trai sistematicamente os mem!ros das outras coletividades, das quais,

antes de ouvir a =!oa nova> que interpela à apostasia, eles se pensavam estrutural

e inercialmente como parte e parcela" $as não, religião de conversão não tem a

menor consideração" Destaca partes e desata n<s, despedaça relaç;es s<ciasherdadas e desmem!ra coletividades j constituídas" #ongregacionalista, =com'

grega> indivíduos que ela pr<pria =desAaBgrega> de outros re!anhos, por secessão

ou a!dução, indivíduos que ela recruta desenrai7ando, desterritoriali7ando'os de

seus assentamentos convencionais, desviando'os de suas rotas convencionais,

desquali)cando sistematicamente outros sistemas religiosos de crença e vida

prtica, criticando ou condenando sem pedir licença outras condutas de vida e

pautas de comportamento, religiosas ou não, coletivas ou não, signi)cativas ou

não"

religião universal de salvação individual  desencalha pessoas de rotinas

comunitrias esta!elecidas e as desenreda das tramas j dadas de comunicação e

su!ordinação somente para, uma ve7 individualizadas, isto *, li!eradas e

autonomi7adas, engaj'las como indivíduos na constituição de uma comunidade

nova, que s< lhes tem a oferecer laços puramente religiosos"

D para ver por que os adv*r!ios exclusivamente ou puramente são estrat*gicos

na caracteri7ação que &e!er fa7 de uma A=comunali7ação> religiosaB, evitando

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cham'la de Acomunidade religiosaB" I que &e!er nos fa7 ver * que, de partida,

est deMagrada uma competição dos =novos laços> Aque são de fraternidade

puramente religiosa entre =irmãos de f*>B com os =antigos laços> Aque são de

fraternidade entre irmão de sangue, de cor, de localidade, de ptriaP ou de uma

religião herdada, nativa, afora depreciadaB"

Diferentemente, pois da religião totêmica à Durkheim, ei'nos diante da religião

congregacional à &e!er, que funciona em primeiro lugar como solvente" Qsso

porque o interesse principal de &e!er est na religião como uma fonte de dinJmica

de mudança social, não na religião como um reforço da esta!ilidade das

sociedades" Espero com isso tornar claro de uma ve7 por todas que, quando em

&e!er se di7 religião =de religiosidade congregacional> est se di7endo o mesmo

que religião de =conversão individual>"

  religião universal interpela as pessoas como indivíduos Aenunciado 3B"

9uer di7er, assim como a ideologia em geral,ela e%ige de si endereçar'se ao

indivíduo A=ei, vocêR>B, não ao grupo como um todo" Fampouco ao mem!ro do

grupo, pelo contrrio, pois fa!rica, do mem!ro do grupo, um indivíduo"