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Eliade - Tratado de História das Religiões
Apesar do título do livro, Eliade evita a perspectiva histórica, realizando apenas uma estudo
fenomenológico da religião. Para ele, apesar de considerar essencial estudar os fenômenos religiosos
por ângulos sociológico, econômico, linguístico, etc., importa antes estudá-los em si mesmos, naquilo
que têm de único e irredutível, ou seja, seu caráter sagrado.
Assim, ele aborda os fenômenos religiosos em si mesmos, como hierofanias: qualquer coisa que torna
manifesto tudo o que é sagrado. Eliade estabelece um estudo comparativo tipológico, uma tipologia
das hierofanias.
São dez tipologias: o Céu, símbolo da transcendência; o Sol, símbolo da soberania; Lua, símbolo dos
ritmos da vida; Águas, ponto de origem da criação, o caos primordial; Pedras, símbolo de estabilidade,
sinais de uma potência superior; Terra, símbolo de maternidade; Vegetação, símbolo de renovação,
morte e ressurreição; Agricultura, símbolo de regeneração e fertilidade; o Espaço e Tempo sagrados
que buscam sempre repetir a hierofania primordial.
Porém, antes de adentrar no estudo dessas tipologias, Eliade analisa a estrutura e morfologia do
sagrado. Delimitar o sagrado é problemático. Se quisermos defini-lo é necessário dispor de uma
quantidade conveniente de sacralidades, contudo há a heterogeneidade dos fatos sagrados que torna o
material documental imenso, sendo assim um dificuldade metodológica. Apesar disso, só esta mesma
heterogeneidade é capaz de nos revelar todas as modalidades do sagrado, visto que um símbolo ou um
mito tornam transparentes as modalidades que um rito não pode manifestar.
Precisamos nos habituar a aceitar a existência das hierofanias onde quer que seja, toda e qualquer
coisa pode se tornar uma hierofania. Essa dialética da hierofania é a manifestação do sagrado numa
coisa diferente de si mesma, ainda que eterno, absoluto e livre, se manifesta num fragmento material,
precário; ao manifestar-se o sagrado se limita, se incorpora. No entanto, embora possa se manifestar
de qualquer modo e qualquer lugar no mundo profano, e tem a capacidade de transformar todo objeto
cósmico em paradoxo por intermédio da hierofania (no sentido de que o objeto deixa de ser ele
próprio), o sagrado é qualitativamente diferente do profano.
Esta paradoxal coincidência do sagrado e do profano, do ser e do não-ser, do absoluto e do relativo, do
eterno e do devir. Um místico ou um teólogo não faz mias do que explicar para seus contemporâneos o
paradoxo da hierofania. Esta explicitação tem o sentido de uma revalorização, isto é, de uma
reintegração da hierofania em um novo sistema religioso.
Portanto, o sagrado apresenta uma ambivalência de ordem psicológica, que atrai e causa repulsa,
temor, mas também de ordem axiológica, em que o sagrado é “sagrado” e “maculado”. Quanto à
estrutura das hierofanias, estas e as cratofanias sempre nos revelam uma escolha, o que é escolhido é
implicitamente forte, eficaz, temido ou fértil, o que foi escolhido e revelado como tal torna-se
frequentemente perigoso, proibido ou poluído.
Chega-se à primeira tipologia da hierofania, o Céu. Há uma quase universalidade das crenças num ser
divino celestial, criador do universo, esses seres são dotados de uma sabedoria infinitas, as leis morais
foram por ele instauradas. Ao compreender a significação religiosa do Céu, este revela diretamente a
sua transcendência, a sua força e a sua sacralidade. O céu revela-se tal como é na realidade, infinito,
transcendente. O sagrado celeste permanece ativo na experiência religiosa pelo simbolismo da altura,
da ascensão.
Em geral, em parte nenhuma a crença em seres celestes domina a vida religiosa, elas são
incessantemente empurradas para a periferia da vida religiosa até o ponto de caírem no esquecimento,
se transforma em um Deus otiosus . Assim, o deus uraniano é gradualmente substituído por novas
formas divinas através da fusão ou substituição, é a passagem da transcendência e passividade dos
deuses celestes às formas religiosas dinâmicas, eficientes, facilmente acessíveis. Divindades uranianas
em certas religiões se transformam em figuras divinas abstratas, em conceitos personificados.
Em relação aos povos primitivos, nas religiões politeístas esses deuses apresentaram um novo
elemento, a soberania. Ser poder não se manifesta apenas pela criação cósmica e nas realidade
meteorológicas, pois se transformaram em senhores, em soberanos universais, a exemplo de Zeus,
Júpiter, Odin. Muitos deuses meteorológicos-genésicos perdem a sua soberania absoluta. Cada um
deles é acompanhado e frequentemente dominado por uma Grande Deusa. Já não são criadores
cosmogônicos, como as divindades celestes primordiais, mas fecundadores na ordem biológica. A
hierogamia torna-se sua função essencial. Os únicos deuses do céu chuvoso e fecundador que terão
conseguido manter a sua autonomia, apesar das hierogamias com as inumeráveis grandes deusas, são
aqueles que evoluíram na linha da soberania, os que conservaram o cetro, ao lado do raio fecundador,
tornando-se assim mantenedores da ordem universal, guardiões das normas e da lei.
Quanto às hierofanias solares, as figuras divinas solares são pouco frequentes. Essas figuras divinas –
deuses, heróis, etc. – não esgotam as hierofanias solares. As hierofanias solares mais acessíveis ao
ocidental moderno é o resíduo de um longo processo de erosão racionalista, resíduo que chega até nós,
sem que saibamos, pelo veículo da linguagem, do costume e da cultura. As hierofanias arcaicas do sol
revelam uma estrutura coerente e inteligível do sagrado.
Os deuses supremos mesopotâmicos acumulam frequentemente os sortilégios da fecundidade com o
seus sortilégios solares. A solarização progressiva das divindades celestes corresponde ao mesmo
processo de erosão que conduziu à transformação destas divindades celestes em deuses atmosféricos-
fecundadores.
O sol não conhece a morte (como conhece a lua), pois atravessa cada noite o império da morte e
reaparece no dia seguinte eternamente igual a si mesmo. O por do sol não é percebido como uma
morte (ao contrário da lua durante os três dias de obscuridade), mas como uma descida às regiões
inferiores, ao reino dos mortos. Portanto, ele pode levar consigo homens e, ao pôr-se, dar-lhes a morte;
mas ao mesmo tempo ele pode guiar as almas através das regiões infernais e no dia seguinte trazê-las
para a luz. Função ambivalente de psicopompo “matador” e hierofante iniciático.
Vale ressaltar a afinidade da teologia solar da descendência solar com as elites, quer se trate de
soberanos, de iniciados, de heróis ou filósofos. As hierofanias solares têm tendência de se tornarem
privilégios de círculos fechados, uma minoria de eleitos, o que tem por efeito encorajar o seu processo
de racionalização. Os últimos eleitos, os filósofos, conseguiram assim dessacralizar uma das mais
poderosas hierofanias cósmicas.
Chegando às hierofanias da Lua, enquanto o sol permanece sempre igual, a lua cresce, decresce e
desaparece, um astro cuja vida está submetida à lei universal do devir, do nascimento e morte. Durante
três noites o céu estrelado fica sem lua. Mas essa morte é seguida de um renascimento: a lua nova. Este
eterno retorno às suas formas iniciais fazem com que a lua seja, por excelências, o astro dos ritmos da
vida. Ela controla todos os planos cósmicos regidos pela lei do devir cíclico: águas, chuva, vegetação,
fertilidade. O tempo controlado e medido pelas fases da lua é um tempo “vivo”. Refere-se sempre a
uma realidade biocósmica, a chuva ou as marés, as sementeiras ou o ciclo menstrual.
É necessário insistir no caráter sintético de todo o ato religioso arcaico para evitar o risco de se
compreender analítica e cumulativamente as funções, virtudes e atributos da lua. Se procurarmos
resumir numa fórmula única a multiplicidade das hierofanias lunares, poderíamos dizer que elas
revelam a vida que se repete ritmicamente.
Não só porque estão submetidas aos ritmos (chuva, maré), mas também porque são germinativas, as
águas são comandadas pela lua. A vegetação também está submetida à mesma periodicidade orientada
pelos ritmos lunares, em quase todos os deuses da vegetação e fecundidade existem resquícios de
atributitos e poderes lunares. Também a fertilidade dos animais está submetida à lua, certos animais
tornam-se símbolos ou “presenças” da lua, porque a sua forma ou o seu modo de ser evocam o destino
da lua, por exemplo, o caracol e a serpente.
A lua apresenta uma relação com a morte, ela é o primeiro morto, durante três noites o céu fica escuro.
A morte, no entanto, não é definitiva, pois que a lua renasce. É, pois, fácil compreender o papel da lua
nas cerimônias de iniciação. Pelo simples fato de ser a senhora de todas as coisas vivas e guia dos
mortos, a lua “teceu” todos os destinos.
Nas hierofanias da Água, as águas simbolizam a substância primordial de que nascem todas as formas e
para a qual voltam, por regressão ou por cataclismo, são fonte e origem, a matriz de todas as
possibilidades de existência, receptáculo de todos os germes. A imersão na água simboliza o regresso
ao pré-formal, a regeneração total, um novo nascimento. As cosmogonias aquáticas são a tradição das
águas primordiais, onde os mundos tiveram a sua origem.
Símbolo cosmogônico, receptáculo de todos os germens, a água torna-se a substância mágica e
medicinal por excelência, ela cura, rejuvenesce, assegura a vida eterna. Na água reside a vida, o vigor e
a eternidade. A purificação pela água possui as mesmas propriedades: na água tudo se dissolve, toda
forma se desintegra, toda a “história” é abolida; nada do que anteriormente existiu subsite após uma
imersão na água. A imersão equivale, no plano humano, à morte, e no plano cósmico à catástrofe (o
dilúvio) que dissolve periodicamente o mundo no oceano primordial. As tradições de dilúvio ligam-se
quase todas as ideias de reabsorção da humanidade na água e à instauração de uma nova época, com
uma nova humanidade. A humanidade desaparece periodicamente no dilúvio por causa de seus
“pecados” ou falta ritual.
Qualquer que seja o conjunto religioso que façam parte as águas, sua função é sempre a mesma: elas
desintegram, extinguem as formas, lavam os pecados, purificando e regenerando ao mesmo tempo. O
seu destino é preceder a criação e reabsorvê-la. As águas não podem superar a condição do virtual, dos
germes, dos estados latentes. Tudo o que é forma se manifesta acima das águas.
Quanto às Pedras, a dureza, a rudeza, a permanência da matéria representam para a consciência
religiosa do primitivo uma hierofania. Nada de mais imediato e mais autônomo na plenitude de sua
força. O rochedo revela-lhe qualquer coisa que transcende a precariedade de sua condição humana: um
modo de ser absoluto. Munidas de certas virtudes sagradas devidas à sua origem ou à sua forma, elas
não eram adoradas, mas utilizadas.
Algumas pedras são consideradas fertilizantes, A ideia implicada em alguns ritos com pedras é que
certas pedras podem fecundar as mulheres estéreis, quer graças ao espírito do antepassado que aí se
encontra, quer em virtude da sua forma ou da sua origem. Já os meteoritos são sagrados ou porque
caíram do céu, ou porque revelam a presença da Grande Deusa, ou ainda porque representam o
“centro do mundo”.
As hierofanias da Terra associam-se à mulher e fecundidade. Grande número de crenças, de mitos e de
ritos respeitantes à Terra, às suas divindades, à “Grande Mãe” chegou até nós. Ela foi adorada porque
ela “era”, porque se mostrava, porque dava, produzia frutos, recebia. O casamento do céu e da Terra é
a primeira hierogamia, os deuses tratarão de repeti-la e os homens imitá-la.
Quanto à estrutura das hierofanias telúricas, a primeira valorização religiosa da Terra foi “indistinta”,
confundia numa única unidade todas as hierofanias que se tinham realizado no meio cósmico
envolvente – terra, pedras, árvores, águas, sombras, etc. A intuição primária da Terra pode ser reduzida
à formula: “cosmos-receptáculo das forças sagradas difusas”. Tudo o que está sobre a Terra está em
conjunto e constitui uma grande unidade. A Terra significa aqui tudo o que rodeia o homem, todo o
“lugar” – com as suas montanhas, águas e a sua vegetação. Até então, tudo o que se poderia chamar as
“divindades da Terra” eram mais propriamente divindades do lugar. Mais tarde, as divindades agrárias
substituem arcaicas divindades telúricas.
Uma das primeiras teofanias da Terra foi a sua “maternidade”, a sua inesgotável capacidade de dar
frutos. Antes de ser considerada Deusa-Mãe, divindade da fertilidade, a Terra impôs-se diretamente
como mãe.
Tudo o que sai da Terra é dotado de vida e tudo o que volta à Terra é de novo provido de vida. O
binômio homo-humus deve ser compreendido assim: se o homem pode ser um ente vivo é porque vem
da Terra, é porque nasceu da Terra-Mater e volta para ela. A água é portadora de germes; também a
Terra é portadora deles, mas na Terra tudo dá fruto rapidamente. Os estados latentes e os germes
ficam por vezes durante vários ciclos nas águas antes de chegarem a manifestar-se; da Terra pode-se
quase dizer que ela não tem repouso. As águas encontram-se no começo e no fim do todo
acontecimento cósmico; a Terra encontra-se no começo e no fim de toda vida. Toda manifestação se
realiza acima das águas e se reintegra no caos primordial através de um cataclismo histórico (dilúvio) ou
cósmico. Toda manifestação vital tem lugar graças à fecundidade da Terra e volta a ela para renascer.
As águas precedem toda criação e toda forma; a Terra produz formas vivas.
A partir do momento em que uma forma se destaca das águas, toda ligação orgânica imediata entre
estas e aquela se quebra: entre o pré-formal e a forma há um hiato. Esta ruptura não se verifica quando
se trata de formas geradas pela Terra e da Terra: estas permanecem solidárias com a sua matriz. A
solidariedade reconhecida entre a fecundidade do solo cultivável e da mulher constitui um dos traços
marcantes das sociedades agrícolas. É preciso distinguir nesta síntese mítico-ritual diversos elementos:
identificação da mulher e da terra arável, identificação do falo e da ferramenta de arar, identificação do
trabalho agrícola e do ato gerador. Pelo fato de ser solidária com outros centros de fecundidade
cósmica – a Terra, a Lua – a mulher adquiria o prestígio de poder influir na fertilidade e de poder
distribuí-la. É assim que se explica o papel preponderante desempenhado pela mulher no começo da
agricultura.
A Vegetação é a manifestação da realidade viva, da vida que se regenera periodicamente. a vegetação
encarna (ou significa, ou participa em) a realidade que se faz vida, que cria sem exaurir, que se regenera
manifestando-se em formas sem-número, sem nunca se esgotar.
Uma classificação dos cultos da vegetação são: a) o conjunto pedra-árvore-altar; b) a árvore-imagem
dos cosmos (Yggdrasil); c) a árvore-teofania cósmica; d) a ávore-símbolo da vida (árvore da vida semita);
e) a árvore-centro do mundo e suporte do universo (Yggdrasil); f) ligações místicas entre árvores e
homens (a árvore receptáculo da alma dos antepassados, a árvore que gera humanos); g) a árvore
símbolo da ressurreição da vegetação, da primavera e da regeneração do ano.
Podemos desde já chamar a atenção para o fato de que a árvore representa o cosmos vivo,
regenerando-se incessantemente. A árvore representa um poder. Se a árvore está carregada por forças
sagradas é porque é vertical, é porque cresce, é porque perde as folhas e as recupera, porque, por
conseguinte, se regenera inúmeras vezes, etc. todas estas validações têm a sua origem na simples
contemplação mística da árvore. Mas é só na sequência da sua subordinação a um protótipo que a
árvore sagrada adquire a sua verdadeira validade. É em virtude de seu poder, ou melhor, é porque ela
manifesta uma realidade extra-humana que uma árvore se torna sagrada. Devem seu valor ao fato de
que se impuseram à consciência religiosa, se “revelaram”.
Os mais arcaicos “lugares-sagrados” de que temos conhecimento constituem um microcosmos:
paisagem de pedras, de águas e árvores. O lugar sagrado é um microcosmos porque repete a paisagem
cósmica e porque é um reflexo do todo. A pedra representa a realidade por excelência: a
indestrutibilidade e a duração; a árvore, com sua regeneração periódica, manifestava o poder sagrado
na ordem da vida. No lugar onde as águas vinham completar esta paisagem, elas significavam os
estados latentes, os germes, a purificação. A “paisagem” microcósmica reduziu-se com o tempo a um
só de seus elementos, o mais importante: a árvore, se tornando a “habitação” da divindade.
Encontramos frequentemente nos mitos e nas lendas relativas à árvore da vida a ideia implícita de que
ela se encontra no centro do universo e liga o céu, a Terra e o inferno. Ou elemento das hierofanias
vegetais é a descendência mítica a partir de uma espécie vegetal, a árvore ou o arbusto é considerado
um antepassado mítico da tribo. O fato de uma raça descender de uma espécie vegetal pressupõe que
a fonte da vida se acha concentrada nele em estado virtual, sob a forma de germes ou sementes. Os
homens são simples projeções energéticas da mesma matriz vegetal. Ao morrer, ao abandonar a
condição humana, regressa – em estado de semente ou espírito – à árvore.
Já a agricultura revela de maneira mais dramática o mistério da regeneração vegetal. No cerimonial e
na técnica agrícola, o homem intervém diretamente; a vida vegetal e o sagrado da vegetação já não lhe
são exteriores, ele participa em ambos, manipulando-os. A agricultura é, primordialmente, um ritual.
Um dos elementos importantes da hierofania agrícola é a solidariedade com a mulher. Outro elemento
são as oferendas mágicas, toda uma série de gestos rituais se processa no começo das sementeiras, das
ceifas, os gestos preliminares constituem, no fundo, sacrifícios destinados a garantir bons resultados.
Toda a infinita variedade dos ritos e das crenças agrárias supõe o reconhecimento de uma força
manifestada na colheita, os rituais têm por finalidade estabelecer relações favoráveis entre o homem e
estes poderes e assegurar a sua regeneração periódica.
A agricultura encontra o mundo dos mortos em dois planos distintos. O primeiro é a solidariedade com
a terra: os mortos, como as sementes, são enterrados. Por outro lado, a agricultura é, por excelência,
uma técnica da fertilidade, e os mortos são particularmente atraídos por esse mistério do
renascimento. Geralmente, uma divindade da fertilidade ctônico-vegetal torna-se também uma
divindade funerária.
Quanto à sexualidade, há uma solidariedade das formas e atos da vida, a fecundidade da mulher
influencia a fecundidade dos campos, mas a opulência da vegetação, por sua vez, ajuda a mulher a
conceber. Assim, a orgia tem a função ritual de circular a energia vital e sagrada, pois a orgia
corresponde à hierogamia. Como as sementes que perdem o seu contorno na grande fusão
subterrânea, desagregando-se e tornando-se outra coisa (germinação), os homens perdem sua
individualidade na orgia, fundindo-se numa única unidade viva.
A noção de Espaço sagrado implica a ideia de repetição da hierofania primordial que consagrou um
determinado espaço transfigurando-o. Aí, nesta área, a hierofania se repete. O lugar transforma-se,
assim, numa fonte inesgotável de força e de sacralidade. Na consagração do espaço, o lugar nunca é
“escolhido” pelo homem; ele é “descoberto” por ele, ou, em outras palavras, o espaço sagrado revela-
se e o lugar é regularmente indicado por alguma coisa diferente. É certo que os espaços sagrados por
excelência – altares, santuários – são “construídos” segundo as prescrições de cânones tradicionais.
Mas essa construção baseia-se, em última análise, numa revelação primordial que desvendou in illo
tempore o arquétipo do espaço sagrado. Todas essas construções representam simbolicamente o
universo, é considerado como sendo construída no “centro do mundo”.
O simbolismo do centro do mundo se articula em três conjuntos solidários e complementares: 1º no
centro do mundo encontra-se a “montanha sagrada”, e é ai que o Céu e a Terra se encontram; 2º
qualquer templo ou palácio e qualquer cidade sagrada e residência real são assimiladas a uma
“montanha sagrada”, sendo assim elevados a centros; 3º por sua vez, sendo o templo ou a cidade
sagrada o lugar por onde passa o Axis Mundi, são por isso olhados como o ponto de junção do céu, da
Terra e do inferno.
No simbolismo do centro, este representava o acesso iniciático à sacralidade, à imortalidade, à
realidade absoluta. O acesso ao centro equivale a uma consagração, a uma iniciação. Todos os
simbolismo e assimilações que analisamos provam que o homem só pode viver num espaço sagrado. Se
poderia dizer que um grupo de tradições atesta o desejo do homem de se encontrar sem esforço no
centro do mundo, enquanto outro grupo insiste na dificuldade e no mérito que há em penetrar nele.
Isso faz ressaltar uma condição determinada do homem no cosmos a que poderíamos designar
“ nostalgia do paraíso”, o desejo experimentado pelo homem de se achar no coração do mundo, da
realidade e da sacralidade e, em suma, superar de maneira natural a condição humana e recobrar a
condição divina.
Quanto ao Tempo sagrado, este opõe-se à duração profana e apresenta tipos diferentes de estrutura,
segundo se trate de sociedades arcaicas ou de se sociedades modernas. Pode designar o tempo no qual
se coloca a celebração de um ritual e que é, por isso, um tempo sagrado. Pode também designar o
tempo mítico, ou os ritmos cósmicos – as hierofanias lunares. Assim, um momento ou uma porção de
tempo pode tornar-se, a qualquer momento, hierofânica: basta que se produza uma cratofania,
hierofania ou teofania para que ele seja transfigurado, consagrado.
A heterogeneidade do tempo, sua divisão em sagrado e profano, não implicam apenas cortes
periódicos praticados na duração profana a fim de nela se inserir o tempo sagrado, implicam também
que essas inserções do tempo sagrado sejam solidárias, contínuas. O tempo profano corre, por assim
dizer, paralelamente ao tempo sagrado que se nos revela como um continuum. Isto não impede que,
aparentemente, eles se repitam periodicamente. Na religião como na magia a periodicidade significa a
utilização indefinida de um tempo mítico tornado presente. O tempo que viu o acontecimento
comemorado ou repetido pelo ritual em questão é tornado presente. Por meio de qualquer rito e gesto
significativo – caça, pesca... – o primitivo insere-se no tempo mítico.
Assim como um “centro do mundo” que se acha, por definição, num lugar inacessível pode ser
construído em qualquer parte sem se deparar com as dificuldades de que falam os mitos e as lendas
heroicas, também o tempo sagrado pode ser realizado seja quando for e por quem quer que seja, graças
à simples repetição de um gesto arquetípico mítico.
Mas há certas festas periódicas – as mais importantes – que nos fazer entrever algo mais: o desejo de
abolir o tempo profano já passado e de instaurar um “tempo novo”. Por outras palavras, as festas
periódicas que encerram um ciclo temporal e abrem outro empreendem uma regeneração total do
tempo. Esses cerimoniais periódicos procedem todos a uma repetição simbólica da criação. Porém, o
tempo antigo, profano, histórico, pode ser abolido e o tempo mítico, novo, sagrado, pode ser
instaurado, pela repetição da cosmogonia, no próprio decurso do ano e independentemente dos ritos
coletivos.
As crenças num tempo cíclico, no eterno retorno, na destruição periódica do universo e da
humanidade, prefácio de um novo universo e humanidade regenerada, todas atestam o desejo e
esperança de uma regeneração periódica do tempo passado, da história. A esperança numa
regeneração total do tempo. Encontramos no homem o mesmo desejo de abolir o tempo profano e de
viver no tempo sagrado, de poder viver – humanamente, historicamente – na eternidade. Esta nostalgia
da eternidade é simétrica da nostalgia do Paraíso.
Tendo terminado a análise das tipologias hierofânicas, Eliade investiga a morfologia e função dos mitos.
Partindo dos mitos cosmogônicos que servem de modelo arquetípico para todas as “criações”, A função
mestra é a de fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as ações humanas significativas.
Qualquer que seja a sua natureza, o mito é sempre um precedente e um exemplo, não só em relação às
ações – sagradas ou profanas – do homem, mas também em relação à sua própria condição.
Determinados mitos manifestam, por outro lado, a coincidentia oppositorum na estrutura profunda da
divindade, a qual se revela alternada ou concorrentemente benévola e terrível, criadora e destruidora.
Também, Dado que todos os atributos coexistem na divindade, é de esperar que nela coincidam os dois
sexos. A verdadeira intenção da fórmula é exprimir – em termos biológicos – a coexistência dos
contrários, dos princípios cosmológicos – macho e fêmea – no seio da divindade. Ao mito da androginia
divina – que revela o melhor possível, entre outras expressões da coincidentia oppositorum, o paradoxo
da existência divina – corresponde toda uma série de mitos e de rituais relativos à androginia humana.
Muitas tradições encaram o “homem primordial”, o antepassado, como um andrógino, e versões
míticas mais tardias falam dos “pares primordiais”.
A maioria dos mitos, pelo simples fato de enunciarem o que se passou “in illo tempore”, constituem,
eles próprios, uma história exemplar do grupo humano. Não há mito cosmogônico que não seja
também uma história, visto que conta tudo o que passou ab origine. O mito pode degenerar-se em
lenda épica, em balada ou em romance, ou então sobreviver, em forma diminuída, nas “superstições”,
hábitos, nostalgias, etc.
Quanto à Estrutura dos símbolos, Eliade afirma que o infantilismo é uma forma de degradação do
símbolo, ocorre quando um simbolismo “erudito” acaba por servir para as camadas sociais inferiores ou
o símbolo é compreendido de forma excessivamente concreta e isolada do sistema de que faz parte.
A maior parte das hierofanias são suscetíveis de se tornarem símbolos. Porém, o símbolo não é
importante apenas porque prolonga uma hierofania ou porque a substitui, mas, sobretudo, porque
pode continuar o processo de hierofanização e porque, no momento próprio, é ele próprio uma
hierofania, quer dizer, porque ele revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra
“manifestação” revela.
Todos esse mitos e rituais são coerentes, formam um sistema simbólico. Temos, pois, razões para falar
de uma “lógica do símbolo”, pois estes são sempre coerentes e sistemáticos. Por fim, o símbolo Possui
função unificadora. Todos os símbolos convergem para a abolição dos limites do “fragmento” que é o
homem no seio da sociedade e no meio do cosmos e a sua integração numa unidade mais vasta: a
sociedade, o universo.
Para concluir, Eliade reafirma a tendência da dialética hierofânica para reduzir constantemente as
zonas profanas e, no fim de contas, aboli-las. Algumas experiências religiosas superiores identificam o
sagrado ao universo inteiro. Para a ontologia arcaica o real é identificado, sobretudo, a uma “força”, a
uma “vida”, a uma fecundidade, a uma opulência, mas também ao que é estranho, singular – um modo
de existência excepcional. A sacralidade é, em primeiro lugar, real.
Neste volume evitamos estudar os fenômenos religiosos na sua perspectiva histórica, limitando-nos a
tratá-los em si mesmos, ou seja, como hierofanias. Isso não quer dizer que a “história” não tenha
nenhuma importância para a experiência religiosa em si. Pelo contrário, tudo o que se produz na vida
do homem, mesmo na vida material, tem também ressonância na sua experiência religiosa, as
transformações operadas no mundo material (agricultura, metalurgia) abrem ao espírito novos meios
de abarcar a realidade.