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8/9/2019 RPG: JOGO E CONHECIMENTO - O Role Playing Game como mobilizador de esferas do conhecimento. (Mateus Souz
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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABAFACULDADE DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
RPG: JOGO E CONHECIMENTOORole Playing Game como mobilizador de esferas do conhecimento
Mateus Souza Rocha
PIRACICABA, SP2006
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BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Francisco Cock Fontanella.Prof. Dra. Anna Maria Lunardi Padilha.Prof. Dra. Clia Maria da Luz Rivera.Prof. Dr. Jos Maria de Paiva.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeo a Deus, simplesmente por tudo.
Agradeo a meus pais Joaquim e Rosngela, que sempre lutaram para que eu
pudesse chegar aonde cheguei. Sei que o esforo no foi pequeno, mas tive certeza de que
foram recompensados quando lgrimas de emoo brotaram dos olhos de minha me
assistindo minha defesa, lgrimas que me incentivam a alar vos mais altos. Obrigado pai e
me pela dedicao, carinho e principalmente pelas broncas dadas na hora certa. O exemplo
que me deram estar sempre comigo e tentarei ser to bom com minha pequena princesa
Nicole quanto foram comigo. Tambm quero agradecer ao meu irmo e companheiro
Vincius pelas conversas inspiradas e discusses acaloradas.
No poderia deixar de registrar minha gratido a Daniele, companheira e
amiga, quem mesmo antes do incio desta aventura, estava ao meu lado incentivando e
acreditando. Obrigado pela pacincia, pelo carinho, pelo amor, pelas coisas ditas e no ditas.
Sou muito grato ao meu orientador Prof. Dr. Francisco Cock Fontanella pela
pacincia, pelo privilgio de desfrutar de sua sabedoria e principalmente pela confiana e
constante incentivo.
Tambm no poderia deixar de agradecer aos membros da banca Prof. Dra.
Anna Maria Lunardi Padilha e Prof. Dra. Cla Maria da Luz Rivero pela disponibilidade,
pacincia, ateno e dedicao dispensadas ao meu texto, e por que no, a mim. Suas
contribuies certamente acrescentaram muito no somente para a pesquisa, mas para o
pesquisador, que vos agradece.
Quero agradecer a todos aqueles que se disponibilizaram a dispensar seu
precioso tempo comigo e com esta pesquisa, sobretudo aos jogadores entrevistados, que
tornaram possvel a realizao deste trabalho, Rafael, Claudia, sio, Fernando, Lucas,
Guilherme, Rodrigo, Felipe, Tiago Subtraff, Haroldo, Alice, Lucas Salvego, Fred,
Eduardo, Fabi Liriah, Fbio Lobo. Minha gratido especial ao Andrei Bressan, meu
irmo Vincius, Habibs, Fbio Lobo (de novo), Lucas Salvego (mais uma vez),
Craudio, Glaco, Matias e Guilherme, membros dos grupos que me permitiram
prontamente bisbilhotar suas sesses de jogo. Sou muito grato a todos e podem estar certos
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que esta pesquisa tem um pouquinho ou um poko da contribuio de todos vocs.
Meu muito obrigado a Juliana Sampaio por disponibilizar seu texto A Lenda
de Maeve e a Pedro Cndido Nascimento Filho e Fernando Augusto Prado pela
disponibilizao da histria do personagem Antonio Gomes Monteiro.
No difcil agradecer, porm julgo impossvel faz-lo sem o risco de
cometer injustias. Desta forma encerro registrando meu imenso agradecimento a todos que
compartilharam comigo a aventura da construo desta pesquisa de mestrado, porm
permito-me ir mais longe e estender minha gratido a todos aqueles que foram importantes
em minha constituio enquanto ser humano, mesmo que estes no estejam mais to
prximos quanto eu gostaria.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenao deAperfeioamento de Pessoal do Nvel Superior CAPES Brasil.
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RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo construir um conhecimento acerca do
potencial mobilizador de esferas do conhecimento encontradas nas prticas de RPG
enquanto atividade de lazer. Para alcanar tal objetivo ou ao menos aproximarmo-nos dele,foram realizadas, alm de pesquisa terica, pesquisa de campo, constituda por dezesseis
entrevistas a jogadores de RPG (Role Playing Game), observaes de sesses de jogo com
dois grupos distintos de jogadores e participao em eventos relacionados ao jogo.
Existe um movimento de apropriao do RPG pela escola, incentivado
principalmente pelo potencial motivador que o jogo pode oferecer, porm ao subordinarmos
a prtica do jogo ao modelo educacional vigorante em nossas escolas, o jogo se transforma
numa atividade pedaggica deixando de ser jogo em sua essncia, conservando do jogoapenas a sua estrutura. Desta forma, entendemos que ao transportarmos o RPGpara dentro
das salas de aula, sem antes, elaborarmos um conhecimento verdadeiro acerca das atividades
de jogo praticadas pelos jogadores em seus momentos de lazer, certamente estaremos
mutilando uma prtica que possivelmente poderia vir a ser muito mais rica se compreendida
em sua plenitude por pais, professores e pela escola.
esta a lacuna que a dissertao procura preencher, oferecendo em primeiro
lugar conhecimentos sobre o carter histrico-cultural do conceito de jogo, na medida emque apresenta a construo de um conceito de jogo moderno. Em segundo lugar, elaborando
um conhecimento verdadeiro a respeito do RPG desde sua criao at os dias atuais,
sobretudo sobre a prtica. E finalmente, apresentando as esferas de conhecimento
mobilizadas durante as prticas que envolvem o jogo de RPGpor seus jogadores, conforme
identificadas em campo.
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SUMRIO
SUMRIO 7
INTRODUO 8ORPG e seu universo: Experincia pessoal 8Definindo o problema: Traando o caminho 11Organizando a aventura: Construindo o texto 13
1.) BREVE RETOMADA HISTRICA DO CONCEITO DE JOGO 16
1.1.) O jogo na Antigidade: Romanos, gregos e astecas 161.2.) Idade mdia: O Renascimento e a frivolidade do jogo 211.3.) Romantismo: O jogo e a infncia 251.4.) O pensamento moderno e o surgimento do jogo educativo 311.5.) O jogo contemporneo 35
2.) NASCIMENTO E EVOLUO DO ROLE PLAYING GAME 402.1.) Era uma vez um jogo de guerra 412.2.) O crescimento do RPG 432.3.) Tragdias e amadurecimento 512.4.) Os super heris e o grande sistema de RPG sem nome 532.5.) Revoluo 552.6.) A Dcada de noventa 612.7.) Trs dcadas de RPG 68
3.) O CHAMADO PARA A AVENTURA 73
3.1.) RPG: Brincando de aprender 803.1.1.) Ateno e raciocnio 80
3.1.2.) Auto-confiana, auto-conhecimento, auto-controle e responsabilidade 833.1.3.) Sociabilidade e trabalho em equipe 903.1.4.) Criatividade 953.1.5.) Pesquisa e construo do conhecimento 993.1.6.) Experimentar o real pela fantasia 1053.1.7.) Expresso 1083.1.8.) Imaginao 1113.1.9.) Leitura e escrita 1133.1.10.) Pacincia e tolerncia 118
4.) CONSIDERAES FINAIS 123
ANEXOS 126
Anexo I 126Anexo II 127Anexo III 128Anexo IV 132Anexo V 133Anexo VII 142
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 143
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jogadores, renem-se ao redor de uma mesa ou mesmo sentados no cho formando um
crculo, o mestre d inicio narrao, descrevendo a cena e introduzindo os personagens dos
participantes na mesma. A partir desde momento, os jogadores comeam a brincar com seus
personagens, interpretando suas falas e reaes diante da cena descrita pelo mestre. O mestre
ento avana com a narrao, algumas vezes valendo-se de testes aleatrios realizados,
geralmente, com o auxlio de dados, assim o jogo progride e todos os participantes acabam por
construir uma histria em conjunto, alguns jogadores, inclusive, costumam manter anotaes
como se fossem dirios de seus personagens, constituindo verdadeiras obras de fico. Alguns
jogadores costumam recorrer a material extra para enriquecer a experincia de jogo com
efeitos sonoros, ilustraes e adereos.
Uma sesso de jogo tpica costuma durar de duas a quatro horas, enquanto uma
crnica completa pode durar meses ou at mesmo anos, sendo composta por muitas sesses.
Ao contrrio dos jogos tradicionais, os jogadores so encorajados a trabalharem em equipe,
com algumas raras excees, no existe objetivo de vencer uns aos outros, pelo contrrio, na
maioria das vezes, somente com a cooperao de todo grupo os objetivos so alcanados.
Meu contato com o jogo se deu em 1991. Quando cursava a stima srie,
chegou s minhas mos uma revista contendo informaes sobre um livro-jogo recm
publicado, novidade que logo despertou meu interesse. Procurei-o nas livrarias de Piracicaba e
no o encontrei, depois de muita procura e frustrao, consegui encomend-lo, esperei ansioso
pela chegada do livro, quando finalmente coloquei os olhos em suas pginas compreendi por
que aquele livro fazia tanto sucesso. Adquiri vrios volumes da coleo e confesso que
algumas vezes, durante as aulas, eu ficava imaginando histrias. Com o passar do tempo
arrisquei escrever minha prpria aventura, a qual foi jogada por dois ou trs colegas da classe
na sala de aula.
Algum tempo depois, a mesma coleo trouxe um volume introdutrio aoRPG,
at ento desconhecido por mim: um jogo parecido com os livros-jogo, porm para ser
praticado em grupo, em que um dos jogadores fazia o papel de mestre, o condutor da
aventura. Li o livro rapidamente, ansioso para jogar com meus amigos. Com as regras simples
do livro, logo estvamos criando nossas prprias aventuras e nos reunindo para jogar todos os
finais de semana, passando horas brincando de contar histrias.
Com o passar do tempo, as regras bsicas deixaram de dar conta das situaes
que imaginvamos durante os jogos, procurvamos outros cenrios, regras que permitissem a
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criao de outros ambientes de jogo. Foi quando conhecemos um grupo de jogadores mais
experientes, que ensinava novatos a jogarRPG, em uma livraria, com o recm publicado
GURPS Generic Universal Role Play System, ou seja, Sistema Genrico Universal deRole
Playing Game, que como o prprio nome indica um sistema genrico deRPG que oferece
regras para criar aventuras em qualquer poca ou cenrio, jogar em momentos histricos ou
em reinos de fantasia, viajar no tempo, enfrentar drages, aliengenas, pilotar naves espaciais
ou participar de duelos no velho oeste. Passamos a freqentar assiduamente a livraria: todos os
sbados de manh aguardvamos ansiosos a continuao de cada sesso de jogo. Sem acesso
ao livro para jogar nossas prprias aventuras, voltvamos para casa, relembrando as regras que
havamos utilizado para construir personagens e escrevamos, meu irmo, um colega e eu,
criando um sistema bem rudimentar baseado nas regras que utilizvamos nos encontros aos
sbados. Logo depois, muitos colegas da vizinhana se juntaram ao nosso grupo e passamos a
jogar com o nosso prprio sistema de regras, que com o tempo tambm passou a ser
insuficiente para nossas aventuras. Foi ento que adquiri o GURPS. Na poca era difcil
encontrar o livro no interior de So Paulo e, aproveitando que uma tia morava na capital, fui
com minha me at a livraria Devir, loja da mesma editora, onde adquiri o livro. Lembro-me de
que na viagem de volta li as 260 pginas do livro. Quando cheguei a Piracicaba estava ansioso
para comear a jogar.
Com o passar dos anos acompanhei os lanamentos, participei de eventos de
RPG, fiz muitas novas amizades, li muitos livros e tomei conhecimento de muitos assuntos, aos
quais tive acesso por influncia do RPG, seja atravs das prprias recomendaes de leituras
contidas nos jogos, por influncia de outros jogadores ou at mesmo quando julgava
interessante ler ou pesquisar, enriquecendo assim meus personagens e aventuras.
Muitos livros eram encontrados apenas em ingls (este problema persiste at os
dias de hoje), lembro-me de tentar ler as pginas em ingls com o auxlio de um dicionrio, me
interessando pelo idioma, que me possibilitaria ter mais acesso a material para o jogo e passei a
estudar ingls. Viajei para vrias cidades onde participei de live actions com at 80 jogadores
de vrias regies do pas, trabalhei na organizao de uma crnica de RPG em Piracicaba,
ainda desenvolvendo atividades como Diretor Nacional de Comunicao do Brazil By Night,
um projeto que faz parte de um conjunto mundial de crnicas de live action, o The One World
By Night.
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Definindo o problema: Traando o caminho
Mais de dez anos praticando RPG e meu crescente interesse pela educao,
somados a algumas iniciativas pioneiras de utilizar oRPG dentro das salas de aula me levaram
a refletir sobre as influncias que o RPG exerceu em minha formao. Algumas destas
influncias so evidentes como as muitas amizades que fiz com pessoas de quase todas as
regies do pas e inclusive de outros pases, amizades estas que certamente me possibilitaram
adquirir novos conhecimentos ou ainda conhecer novas culturas. Meu interesse pela lngua
inglesa, como j citei, foi despertado pela possibilidade de ter acesso a material ainda no
impresso no Brasil; ou ainda aspectos menos bvios, como o amor pela leitura, gosto pela
escrita, tolerncia, pacincia, entre outros.
Sempre pratiquei o RPG como uma forma sadia de lazer, uma forma de
encontrar com amigos, conversar, trocar experincias e contar histrias, enfim, passar algumas
horas agradveis ao mesmo tempo em que me desligava das preocupaes e ocupaes do
dia-a-dia. Ao refletir sobre minha experincia com oRPG, compreendi que apesar de nunca ter
me preocupado com o que aprendia durante o jogo, adquiri muitos conhecimentos ao jogar
RPG, mesmo sem pretenso alguma de o fazer. Grande parte destes conhecimentos no me
ajudariam a tirar uma boa nota numa prova ou passar no vestibular, mas so teis para a vida,
para refletir, me tornar uma pessoa mais consciente daquilo que acontece a minha volta. Afinal
um jogo de RPG imita a vida, com exageros e fantasia que tornam o jogo divertido,
certamente, mas no deixa de ser cheio de variveis e situaes inesperadas e acima de tudo
proporciona a interao com outros seres humanos a todo instante, exatamente como fazemos
no cotidiano.
Um exemplo esclarecedor, sobretudo para aqueles que ainda no conhecem o
RPG: Ao atravessar uma rua movimentada estamos nos expondo a centenas, seno milhares de
variveis, o cho escorregadio, o vento forte, uma pessoa correndo em nossa direo, a
distrao com um pssaro, um carro em alta velocidade, uma conversa, um amigo que se
aproxima, enfim, para realizar uma tarefa simples e comum da vida diria, mesmo que
inconscientes, realizamos centenas de consideraes a respeito, pensamos nas conseqncias
de nossas aes, tanto para nossas vidas quanto para as de outrem. Numa situao de jogo
apresentada numa aventura de RPG, da mesma forma, muitas variveis so propostas aos
jogadores, muda-se apenas o contexto, seu personagem pode precisar argumentar com um
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nobre a respeito de algum assunto importante para o reino e os jogadores devem decidir qual o
membro do grupo mais apto a faz-lo, qual a melhor forma de abordar o nobre, qual
linguagem utilizar, qual tipo de trajes vestir, no carregar uma arma pode ser considerado um
insulto em algumas culturas, enquanto outras podem considerar uma ameaa port-la. Como
podemos ver, ambas as situaes envolvem pensamento, raciocnio, escolhas que trazem
conseqncias, porm, a primeira situao real, portanto trar conseqncias reais para a
vida, uma escolha errada e podemos no ter a chance de errar novamente. Por outro lado, as
situaes em jogo se tratam de faz-de-conta, o resultado das escolhas no jogo no trazem
conseqncias para a vida real, desta forma tornam-se uma excelente oportunidade de
experimentar situaes que, de outra forma, acarretariam srias conseqncias para a vida real.
A partir destas constataes, a principal hiptese da presente pesquisa
comeava a se formar, esse aprendizado, essa mobilizao de vrias esferas do conhecimento
acontecia com outros jogadores de RPG? Existem de fato possibilidades de aprender atravs
do jogo, mesmo que os jogadores no se preocupem com isso? Pretendo ento responder,
comprovar ou no atravs das falas de outros jogadores e da observao em campo se, de fato,
o RPG, enquanto prtica de lazer, encerra possibilidades de mobilizao de esferas do
conhecimento. Em caso positivo, proponho-me a tentar identific-las, ao menos as mais
representativas num ponto de vista geral.
Para alcanar ou me aproximar do esclarecimento desta hiptese, optei pela
metodologia da observao participante que, segundo Lakatos, Consiste na participao real
do pesquisador com a comunidade ou grupo. Ele se incorpora ao grupo, confunde-se com
ele. Fica to prximo quanto um membro do grupo que est estudando e participa das
atividades normais deste (LAKATOS, 2001, p. 194). Opo determinada pela j participao
do pesquisador no grupo pesquisado, conhecendo seus smbolos, linguagem e hbitos, fator
determinante para a aproximao ao objeto de estudo.
Adotando esta metodologia, participei de trs grandes eventos relacionados ao
RPG, o primeiro deles em maio de 2004, o XII Encontro Internacional de RPG, num galpo
de eventos no Mart Center em So Paulo. Conversei com jogadores, observando-os nas
sesses de jogos e diversas apresentaes culturais realizadas, entre elas concursos de desenho
e de fantasias, estandes de arco e flecha e demonstraes de forja de armas medievais. Logo
depois, estive presente no Sampa RPG, um evento de menor escala realizado no salo de uma
instituio assistencial em So Paulo, onde havia feira de livros usados, sesses de jogos de
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RPG e cartas, demonstrao de jogos de estratgia, palestras e live action. Finalmente, em
novembro de 2004, participei do III Simpsio de RPG & Educao, onde pesquisadores,
professores e jogadores de RPG apresentaram projetos e pesquisas sobre o tema. A
participao neste evento foi de suma importncia para entender como o RPG vem sendo
relacionado com a educao e conhecer as atividades desenvolvidas no Brasil em relao ao
jogo como, por exemplo, a utilizao doRPG em museus para atrair crianas e adolescentes,
atividades de RPG com detentos e recuperao de dependentes qumicos ou ainda em
tratamentos psicolgicos, principalmente em relao a fobias. Para enriquecer o material de
anlise foram realizadas observaes de sesses de jogo com dois grupos de jogadores em
Piracicaba, respectivamente compostos por quatro e cinco jogadores, que permitiram ser
observados enquanto desenvolviam algumas sesses de jogo.
Tambm foram realizadas 16 entrevistas semi-estruturadas, atravs daInternet,
a fim de ampliar a diversidade de entrevistados, possibilitando a superao de barreiras
geogrficas, que versaram sobre a relao do jogador com o RPG, como eles percebem a
influncia do RPG em suas vidas, como conheceram o jogo, como costumam jogar, se
sofreram preconceito, se notaram alguma contribuio positiva ou negativa doRPG para suas
vidas, como costumam construir os personagens e aventuras, entre outras questes, buscando
identificar nas falas dos jogadores e nas observaes, a confirmao ou no da hiptese de que
oRPG enquanto prtica de lazer, livre de controles externos e interesses pedaggicos, oferece
oportunidades de aprendizagem aos seus praticantes. As entrevistas foram realizadas com
jogadores de diversos locais do pas, idades, nveis de escolaridade e condies
scio-econmicas.
Organizando a aventura: Construindo o texto
O texto dividido em quatro partes. A primeira parte apresenta as minhas
experincias particulares enquanto jogador de RPG e os motivos que me impulsionaram a
realizar a presente pesquisa. Trata ainda da hiptese e da composio do texto. Na segunda
parte realizada uma rpida retomada histrica do conceito de jogo, buscando apresentar um
conhecimento alm do senso comum, importante para entendermos as transformaes que este
conceito sofreu com o passar do tempo constituindo-se no conceito de jogo que adotamos
atualmente. Esta retomada realizada atravs de pesquisa terica com base em trs autores
chave: Philip Aris, Gilles Brougre e Johan Huizinga.
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Aris nos oferece, atravs de seus escritos, oportunidades de conhecer pelo
olhar de um historiador os jogos e representaes da criana, sobretudo no perodo medieval,
se tratando de uma importante contribuio para a construo de um conhecimento acerca do
carter histrico e cultural do conceito de jogo, assim como a respeito das mudanas da
representao da criana atravs do tempo, as quais tornaram possvel a separao do jogo em
duas esferas distintas, o jogo adulto e o jogo infantil possibilitando, como poderemos
compreender mais adiante, a associao entre o jogo e a educao.
Gilles Brougre se concentra no estudo de jogos e brincadeiras, autor dos
livros Jogo e Educao e Brinquedo e Cultura e apresenta um interessante quadro a respeito
de como se pensa o jogo e a educao, como o prprio conceito de jogo se transforma quando
relacionado com o aprender. Brougre nos oferece uma anlise das diferentes formas de pensar
a relao jogo e educao, atravs de estudos de autores de diversos campos como filosofia,
sociologia, histria, pedagogia e psicologia, construindo um conhecimento bastante consistente
sobre a relao entre os dois conceitos.
Johan Huizinga se concentra em analisar o jogo enquanto parte da cultura, sua
contribuio para a presente pesquisa se concentra principalmente na elaborao de um
conhecimento moderno a respeito de jogo, nos permitindo pensar o jogo alm do senso
comum. Finalmente, podemos destacar que os trs autores citados tratam a questo do jogo
enquanto elemento social e cultural.
Na terceira parte procuramos esclarecer como se deu o surgimento doRPG e
suas transformaes, para que possamos entender o que o RPG atualmente. Como se trata
de uma prtica pouco conhecida, importante dedicarmos um captulo para este fim, o qual
elaborado atravs de pesquisa terica em publicaes e websites especializados, alm do
dilogo com os autores deRPGs nacionais, Carlos Klimick e Marcelo Del Debbio. Diante das
iniciativas de utilizar oRPG enquanto atividade educacional dentro das salas de aula, julgo que
seja importante estruturarmos e edificarmos um conhecimento verdadeiro, ou ao menos o mais
prximo disto, sobre o RPG, que praticado por milhares de jovens e adultos em todo o
Brasil.
A quarta parte se trata da anlise do material de campo e onde julgo ser
apresentada a maior contribuio desta pesquisa. As esferas de conhecimento que foram
encontradas durante a realizao das entrevistas so exploradas com base nos conhecimentos
edificados nos captulos anteriores, buscando construir um conhecimento que permita
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confirmar ou negar a hiptese de que oRPG, enquanto prtica de lazer, encerra possibilidades
de mobilizao de esferas do conhecimento. Para a realizao das anlises buscamos apoio
principalmente em textos das autoras Andra Pavo e Snia Rodrigues, respectivamente
autoras dos livros A aventura da leitura e da escrita entre mestres de RolePlaying Game
(RPG) eRoleplaying Game e a Pedagogia da Imaginao no Brasil.
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1.) BREVE RETOMADA HISTRICA DO CONCEITO DE JOGO
Para que possamos analisar o RPG enquanto jogo, prtica de lazer, se faz
necessria a construo de um conceito de jogo com o qual trabalharemos. Para tanto julgo
importante realizar uma retomada histrica do conceito, demonstrando que se trata de um
conceito histrico e cultural que sofreu muitas transformaes no decorrer do tempo,
chegando modernidade carregado de marcas deixadas por noes do passado, que so,
muitas vezes, difceis de ser superadas.
O jogo sempre se manteve distante da seriedade? Esteve sempre ligado ao
brincar ou criana? Como foi construda a noo de jogo que adotamos atualmente? Estas
so algumas das questes que o presente captulo procura responder, fazendo uma rpidaretomada do conceito de jogo desde a Antigidade at a Modernidade, ao mesmo tempo em
que elabora o conceito de jogo que guiar as anlises da presente pesquisa.
1.1.) O jogo na Antigidade: Romanos, gregos e astecas
A palavra jogo, que freqentemente associada ao ldico, derivando de ludus,
designa tambm a escola, porm, a noo de jogo atual tende muito mais para as atividades
banais, fteis, em oposio s atividades escolares, que so associadas utilidade e seriedade e
geralmente falta de prazer. Como podemos observar, em algum tempo passado deve ter
existido um ponto comum, quando o termo ludus servia tanto para designar uma atividade
espontnea e livre de controles externos, o jogo, e a atividade dirigida e imposta, a escolar.
De acordo com Cortella (2002), escola tem sua raiz no grego Skhol, palavra
que servia para designar cio, lazer, ou alguma atividade realizada no tempo do descanso.
Muito diferente da noo de escola que utilizamos atualmente.
Segundo Brougre (1998), o termo ludus tambm era usado para designar um
treinamento, uma tcnica. As escolas de gladiadores eram designadas pelo mesmo termo.
Aparece assim um sentido de treinamento e de exerccio, que nos oferece subsdios para
comear a pensar em escola.
O sentido do verbo ludere exercer, ou seja, fazer uma simulao de uma
atividade real e objetiva, como uma caada, ou ainda realizar uma srie de gestos da vida
prtica, porm sem nenhum outro objetivo que no seja realiz-los da melhor forma possvel,
dedicando-se apenas a mostrar suas qualidades. A dana serve como um timo exemplo deste
aspecto de simulao que o verbo ludere sugere.
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Desta forma, entendemos como um nico termo podia evocar a noo de
treinamento, exerccio e simulao, permitindo ser associado tanto ao jogo, uma atividade
espontnea e desinteressada, quanto atividade escolar, uma atividade dirigida com objetivos
definidos.
Partindo desta anlise das palavras, seguimos para a anlise das atividades
praticadas pela civilizao romana. Os costumes romanos em relao aos jogos so muito
diferentes dos costumes da civilizao grega. Os romanos estavam muito mais propensos aos
esportes de combate. Viam os jogos como espetculos a serem olhados e no praticados; no
existia a participao no jogo assumindo a posio de jogador, mas sim a de espectador.
Brougre (1998) nos leva a compreender que o jogo romano era de grande importncia para a
manuteno do poder de Roma, se tratava de uma encenao do mundo, em que podiam ser
representadas todas as realidades romanas, toda a diversidade do grande imprio. Os atores
dos jogos de cena ou os atletas dos jogos de circo eram provenientes das massas de escravos,
desprezados pelos cidados, pois se assemelhavam a prostitutas, ofereciam seus corpos para o
deleite dos espectadores, porm, em alguns casos, se conseguissem xito em suas
apresentaes nos jogos, chegavam a conquistar a fama.
Existiam dois tipos de jogos, ludi scaenici e ludi circenses. Os ludi scaenici se
constituam de teatro, dana, mmica.
(...) Insere-se no contexto dos jogos, ludi. Os romanos o conheciam como ludiscaenici, jogos de palco. Como espetculo (spec-, olhar atentamente, observar,examinar) para ser visto. Se um espetculo ldico, deve ser examinado sobeste aspecto. Precisa ser explicado segundo o contexto dos jogos, incluso comootium, lazer, mas tambm como marca de uma civilizao (MONTAGNER,2002, p. 01).
Os ludi circences,por outro lado, se constituam de combates, corridas de
bigas, caadas e jogos atlticos, ainda eram espetculos, mas nesses podemos observar quepredominavam as atividades fsicas.
Estes jogos pertencem ao mundo do faz-de-conta, do fingimento, tanto os jogos
de teatro quanto os de circo. Atualmente, essa caracterstica de fingimento pelo jogo
dificilmente encontrada nos jogos praticados pelas sociedades modernas, talvez ainda
possamos encontr-los em sociedades selvagens, onde existe ainda um lugar para a
conservao das tradies. Essa perda do carter de fingimento atribudo ao jogo praticado no
imprio romano d-se principalmente pelo desinteresse em manter vivas as tradies, emrepresentar atravs do jogo fatos da vida cotidiana. No imprio romano, a corrida de bigas
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continuava a acontecer, mesmo com as bigas j no sendo mais utilizadas na guerra. Apenas
representavam uma situao de guerra, que j no existia mais na vida real; os gladiadores
travavam combates como se participassem de uma guerra, embora essa guerra no estivesse
acontecendo fora da arena; ela existia apenas dentro dos limites de espao e tempo do jogo.
Essa limitao de espao e tempo uma das caractersticas principais do jogo para Huizinga,
que afirma:
O jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duraoque ocupa. esta a terceira de suas caractersticas principais: o isolamento, alimitao. jogado at o fim dentro de certos limites de tempo e de espao(HUIZINGA, 1993, p. 12).
Quanto limitao de tempo, qual o jogo est sujeito, coloca que: O jogoinicia-se e, em determinado momento, acabou. Joga-se at que se chegue a um certo fim.
Enquanto est decorrendo tudo movimento, mudana, alternncia, sucesso, associao,
separao (HUIZINGA, 1993, p. 12).
Em relao ao espao afirma ainda:
A arena, a mesa de jogo, o crculo mgico, o templo, o palco, a tela, o campode tnis, o tribunal etc., tm todos a forma e a funo de terrenos de jogo, isto, lugares proibidos, isolados, fechados, sagrados, em cujo interior se
respeitam determinadas regras. Todos eles so mundos temporrios dentro domundo habitual, dedicados prtica de uma atividade especial (HUIZINGA,1993, p. 13).
Como foi dito anteriormente, o pblico, composto por cidados romanos, no
descia arena, mas ainda assim desempenhava um papel central nos jogos. Ia-se a um
espetculo para apreciar; antes de procurar vencer a qualquer custo, o gladiador devia agradar
ao pblico, que exigia a morte do perdedor, a menos que este tivesse agradado o suficiente
para ganhar a simpatia dos espectadores. A morte era resultado de uma escolha do pblico e
no o resultado do combate, no era determinada pelo resultado de uma competio. Mais
importante que o compromisso com o real era a encenao dramtica do combate, o
espetculo, (...) pois a essncia dessa forma de espetculo insere-se na civilizao romana
como jogos, adjetivados de cnicos (MONTAGNER, 2002, p. 07).
Os jogos romanos se tratavam, portanto, de encenaes que no implicavam em
conseqncias para aqueles que eram considerados cidados de Roma, na medida em que estes
participavam dos jogos apenas enquanto espectadores, por outro lado aqueles que no tinham
esse privilgio, os escravos, pagavam um alto preo.
Os combatentes no eram os verdadeiros soldados do exrcito romano, as bigas
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davam voltas numa arena preparada para a encenao, retornando ao ponto de origem, o
imperador era representado pelo patrocinador dos jogos, no se tratava do verdadeiro
imperador. Os jogos eram ofertados aos deuses como presentes, o que conferia a eles um
carter religioso. Conseqentemente, os mesmos eram realizados com grande respeito,
principalmente no que se refere s regras; caso fossem infligidas, os jogos deviam ser
imediatamente interrompidos e recomeados. Os cidados romanos eram espectadores, assim
como os deuses, portanto, ocupavam um lugar de grande importncia nos jogos, mesmo sem a
participao direta no jogo propriamente dito, participao esta reservada aos escravos, que
eram usados como instrumentos a fim de propiciar estas experincias aos cidados que se
mantinham em segurana. O patrocinador dos jogos adquiria grande prestgio, ao permitir a
realizao dos jogos, proporcionando aos homens e aos deuses alegria e relaxamento.
Como podemos concluir, o jogo romano no era marcado pelo carter de
competio, mas de encenao, do espetculo, o que possibilitava ao cidado romano
experimentar emoes que no poderia de outra forma; assassinatos, combates, traies, ao
mesmo tempo em que auxiliava na construo de certos conhecimentos necessrios para
compreender e dominar o vasto imprio romano, marcado por uma grande variedade de
culturas, raas e credos. O jogo uma atividade que permite a dominao sem riscos, oferece
a possibilidade de realizar descobertas e revelaes, apropriar novos significados, que s
seriam apropriadas pela experincia vivida, o que muitas vezes significa correr riscos.
Exatamente neste ponto, onde o jogo permite a apropriao de novos significados e
oportunidades de construo de conhecimentos, podemos entender a relao do faz-de-conta,
do no srio, com o lugar do aprender, a escola.
Na Grcia antiga, o jogo era tratado como exerccio. Embora ainda se tratando
de exerccios de guerra, certamente auxiliando no treinamento militar, no passava de
exerccio. Difere do jogo romano pela noo explcita de fingimento, no sentido de que a
realizao dos exerccios propostos pelo jogo grego no passa de uma imitao dos
movimentos realizados em outros contextos, com objetivos definidos. Atletas gregos no
travavam combates at a morte numa arena, como os gladiadores romanos faziam;
arremessavam o dardo para atingir um alvo e no um adversrio, faziam isto apenas para
demonstrar quem era o atleta mais bem preparado, que detinha a maior fora, agilidade e
destreza. No jogo romano se trata do espetculo, que era proporcionado aos homens e aos
deuses, enquanto no jogo grego se trata da competio. A importncia est no ato de competir
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e no na platia que observa, no no espetculo. O atleta grego no precisava cativar a platia
para alcanar fama e notoriedade, precisava vencer a competio. Nossa noo de jogo atual
certamente vai ao encontro dessas duas idias de jogo: tanto o espetculo quanto a competio
esto presentes e so facilmente observados nos jogos televisionados, como por exemplo os
grandes espetculos olmpicos e a copa do mundo de futebol. Brougre destaca a diferena
entre os jogos gregos e romanos e demonstra um ponto comum entre os dois, a simulao, que
tambm observamos na noo moderna de jogo:
O jogo um universo especfico, distinto em particular da guerra (plemos).So certamente exerccios guerreiros, mas so justamente apenas exerccios(fingimento). O dardo ainda lanado, mesmo que tenha sido abandonado peloexrcito; o mesmo ocorre com a biga. H um aspecto de simulao que o
ponto comum com o jogo romano, talvez tambm com o nosso jogo e com tudoque podemos traduzir por este vocbulo (BROUGRE, 1998, p. 40).
De um lado, o jogo grego est ligado ao no srio, ao intil, por opor-se ao
real, e ao trabalho, como Aristteles definia. Observava-o como um complemento ao trabalho,
na medida em que o lazer, assim como o trabalho, so indispensveis para o homem. O
trabalho gera fadiga e o jogo pode ser usado como um remdio que produz o relaxamento e
repouso.
O trabalho acarreta sempre esforo e fadiga. Eis por que preciso, quando serecorre aos prazeres, espreitar o momento favorvel para deles fazer uso, como
se s se quisesse empreg-los a ttulo de remdio. O movimento que o exercciocomunica ao esprito liberta-o e descansa-o pelo prazer que lhe proporciona(ARISTTELES, 1969, p. 204).
Outra semelhana entre o jogo romano e o jogo grego est ligada seriedade
do rito religioso. A corrida a p, praticada pelos gregos, atravs dos abalos no solo,
desempenhava o papel de reanimar as energias vegetais. Os jogos olmpicos permitiam a
reanimao da natureza. Essa associao entre jogo e religio demonstra que na Antigidade ojogo e sua futilidade so aceitos como atividades constituintes de outras atividades srias, o
que fica evidente nos jogos realizados pelos astecas.
Segundo Brougre (1998), a civilizao Asteca tambm praticava jogos que
tomavam parte em rituais religiosos. O jogo de bola pr-sacrificial era um jogo que no se
tratava apenas de uma encenao, com um resultado conhecido de antemo; havia a
competio, porm, aqueles que seriam sacrificados no eram necessariamente aqueles que
perdiam no jogo, podiam ser todos os participantes ou apenas os vencedores, no haviarelao direta com o resultado do mesmo. No se tratava de um desperdcio de energia, mas
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sim, do gasto dela a fim de proporcionar a sua renovao. Os sacrifcios eram realizados com o
objetivo de renovar as energias csmicas e perpetuar o ciclo das estaes. Alm do jogo de
bola ( tlachtli), havia todo um conjunto de jogos pr-sacrificias, que funcionavam como uma
forma de ofertar energia atravs de competies, de dana, de teatro. Verificamos claramente a
importncia dos jogos, sobretudo em relao aos ritos religiosos. Todas estas manifestaes
das atividades de jogo praticadas pelos astecas se caracterizam por se tratarem de diferentes
formas de fazer-de-conta, que Huizinga coloca como uma outra caracterstica essencial do
jogo, referindo-se a ela da seguinte forma:
(...) o jogo no vida corrente nem vida real. Pelo contrrio, trata-se deuma evaso da vida real para uma esfera temporria de atividade com
orientao prpria. Toda criana sabe perfeitamente quanto est s fazendode conta ou quando est s brincando (HUIZINGA, 1993, p. 11).
A demonstrao de algumas das representaes do jogo em trs diferentes
sociedades da Antigidade nos deixa claro que o jogo estava intimamente ligado esfera
social, poltica e, sobretudo cultural de cada uma dessas sociedades, assumindo principalmente
a forma de espetculos, como pudemos observar na sociedade romana, de competies, como
o arremesso de dardo ou nos torneios de injrias na sociedade grega e finalmente sob a forma
de rituais religiosos, observados no jogo praticado pelos astecas, que encenavam o movimentocsmico atravs da movimentao da bola em jogo.
Tratando-se claramente de uma representao histrica e cultural, o que se
confirmar neste captulo, as representaes que as civilizaes citadas mantinham do jogo
sofreram incontveis transformaes atravs do tempo, o que nos leva a pensar, inclusive, que
muitas representaes do jogo podem nunca chegar a nosso conhecimento, ficando perdidas
no passado.
1.2.) Idade mdia: O Renascimento e a frivolidade do jogo
Na Idade Mdia, o jogo ainda mantinha contato com as atividades religiosas,
porm, de modo diferente da Antigidade. Segundo Brougre (1998), os jogos
encontravam-se margem dos ritos oficiais atravs, por exemplo, das comemoraes de
carnaval, que faziam parte do calendrio cristo, ou ainda nos jogos de fertilidade praticados
pelos pagos. Se por um lado o carnaval no associado, pelo senso comum, ao jogo,
certamente ele abriga muitos elementos do jogo, atravs da presena da recreao, dodivertimento, que geralmente se alcanava por meio da realizao de jogos de competio e
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destreza. As festividades de carnaval estavam associadas ao fingimento, ao faz-de-conta;
tinham, portanto, um tempo para comear e acabar, alm de espaos prprios para suas
realizaes.
Como podemos observar, o jogo se distancia da seriedade, o que verificamos
nas prticas de jogo antigas. Na medida em que as sociedades evoluem, alteram-se as suas
representaes do jogo, parece-me que aumentam as distncias entre as atividades de jogo e as
atividades srias, chegando a ser tratadas, muitas vezes, como atividades completamente
opostas. Este fato perceptvel principalmente quando observamos que nas sociedades
selvagens no existe separao entre o trabalho e o lazer; os jogos so parte integrante da vida
social e participam, muitas vezes, das atividades de produo dessas sociedades, como nas
grandes caadas aos bfalos, que algumas tribos indgenas norte americanas executavam,
abrigando lado a lado elementos do jogo, do lazer e do trabalho, produo. Ao contrrio, na
sociedade moderna, marcada pela organizao do trabalho, a seriedade se ope frivolidade e
a recusa, o jogo no realiza produo e no mais a atividade determinante para a integrao
da comunidade, o trabalho cumpre esse papel e estreita os laos coletivos, papel que cabia em
grande parte ao jogo. Podemos verificar, hoje em dia, que em algumas sociedades rurais,
semelhantes s sociedades antigas e medievais, os jogos exercem um papel importante na
socializao, garantindo uma (...) participao importante na comunidade ou no grupo:
jogava-se em famlia, entre vizinhos, entre classes de idade, entre parquias (ARIS, 1986,
p. 199).
Na sociedade antiga, o trabalho no ocupava tanto tempo do dia, nem tinhatanta importncia na opinio comum: no tinha o valor existencial que lheatribumos h pouco mais de um sculo. Mal podemos dizer que tivesse omesmo sentido. Por outro lado, os jogos e os divertimentos estendiam-se muitoalm dos momentos furtivos que lhe dedicamos: formavam um dos principaismeios de que dispunha uma sociedade para estreitar seus laos coletivos, para
se sentir unida. (ARIS, 1986, p. 94).
O jogo passa do srio ao frvolo, migra da esfera pblica para a privada, mas
isso no indica que com a proximidade da modernidade os homens deixam de jogar. A
reconstruo de detalhes da infncia de Lus XIII, realizado por Aris, atravs do dirio
deixado pelo mdico Heroard, nos mostra como os jogos estavam presentes nas atividades
sociais de crianas e adultos no incio do sculo XVII.
Ao mesmo tempo em que brincava com bonecas, esse menino de quatro a cincoanos praticava o arco, jogava cartas, xadrez (aos seis anos) e participava de
jogos de adultos, como o jogo de raquetes e inmeros jogos de salo. Aos trsanos, o menino j participava de um jogo de rimas, que era comum s crianas
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e aos jovens. Com os pajens dos aposentos do Rei, mais velhos do que ele,brincava de a companhia vos agrada?. Algumas vezes era o mestre (o lderda brincadeira), e quando no sabia o que devia dizer, perguntava; participavadessas brincadeiras, como a de acender uma vela com os olhos vendados, como
se tivesse 15 anos. Quando ele no est brincando com os pajens, est
brincando com os soldados: Ele brincava com os soldados de diversasbrincadeiras, como de bater palmas e de esconder. Aos seis anos, joga o jogodos ofcios e brinca de mmica, jogos de salo que consistiam em adivinhar as
profisses e as histrias que eram representadas por mmica. Essasbrincadeiras tambm eram brincadeiras de adolescentes e de adultos (ARIS,1986, p. 86).
Por outro lado, os jogos deixaram de ter uma representao que permitisse que
continuassem a ser praticados como atividades srias; o jogo, mais do que nunca, havia se
tornado uma atividade subordinada ao trabalho existindo apenas em funo deste. O jogo era,
portanto, utilizado como Aristteles o concebia. Aris faz referncia a um texto que tratava da
reforma da Universidade de Paris em 1452 e deixa esta questo bastante clara:
Os mestres (dos colgios) no permitiro que seus alunos, nas festas dasprofisses ou em outras, participem de danas imorais e desonestas ou usemtrajes indecentes e leigos (trajes curtos). Devero permitir, porm, que joguemde maneira honesta e agradvel, para o alvio do trabalho e o justo repouso(ARIS, 1986, p. 111).
Observamos que o jogo no era visto como uma atividade sria, nem to pouco
como um fim em si mesmo. Estava claramente subordinado ao trabalho, s existindo com oobjetivo de proporcionar alguns momentos necessrios de descanso, para que o homem se
restabelecesse e desempenhasse bem suas obrigaes.
O jogo no recusado, mas subsumido numa atividade sria. A Idade Mdia
certamente foi um perodo muito rico em jogos, e estes estavam presentes em todas as esferas
da sociedade, fossem os jogos populares com elementos pagos, jogos de cavalaria ou ainda os
jogos de salo, como podemos observar atravs de Aris, que ao analisar a imagem da famlia
em documentos medievais, nos fornece um quadro bastante interessante da variedade de jogospraticados nesse perodo:
O calendrio do livro de horas de Adelade de Savoie compe-seessencialmente de uma descrio dos mais diversos jogos, jogos de salo, jogosde fora e de habilidade, jogos tradicionais: a festa de Reis, a dana de maio,a luta, o hquei, as disputas entre dois homens armados de varas em duasbarcas, as guerras de neve. (ARIS, 1986, p. 198).
Durante o Renascimento, os jogos de azar se popularizam e invadem o
discurso, modificando profundamente as representaes do jogo. Nesse momento, segundoBrougre:
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Instala-se o sistema de representao que herdamos, marcado pela futilidade,pela frivolidade e at mesmo pela nocividade do jogo na medida em que aexperincia dominante que nutre a noo aquela do jogo a dinheiro,especialmente proporo que o sculo XVIII avana (BROUGRE, 1998, p.
45).
Aris nos demonstra que os jogos detinham grande importncia no sculo XVII,
sobretudo no que se refere socializao, abria portas para que se pudesse freqentar os
lugares certos. Refora as palavras de Brougre, no que se refere importncia dos jogos de
azar como determinante para a noo de jogo da poca:
(...) Seria difcil conquistar uma boa reputao sem ingressar na altasociedade, e o jogo uma forma fcil de abrir suas portas. mesmo um meio
garantido de se estar freqentemente em boa companhia sem dizer nada,sobretudo quando se joga como um homem galante, ou seja, evitando aesquisitice, o capricho e a superstio (ARIS, 1986, p. 106-107).
No sculo XVII, o jogo de azar era livremente praticado e incentivado,
inclusive entre as crianas, como j pudemos observar nos relatos das prticas de jogo de Lus
XIII. No se sentia nenhuma repugnncia em deixar as crianas jogar, assim que se
tornavam capazes, jogos de cartas e de azar, e a dinheiro (ARIS, 1986, p. 92).
Pela importncia que o jogo de azar assumia na sociedade da poca, Brougre
(1998) sugere que a representao do jogo passaria a ser marcada pela representao do jogo
de azar, um vcio temvel, responsvel por arruinar famlias e destruir fortunas. O jogo passou,
ento, a ser definido, no incio do sculo XVIII, pelo jogo de azar, que alm de estar ligado
frivolidade, passa a ser marcado tambm pelas apostas. Nessa poca, o conceito de jogo no
evoca a criana, que era representada como um pequeno adulto de razo frgil ou inexistente,
crianas tomavam parte em muitos dos jogos realizados por adultos, no havia a separao que
observamos hoje, que surgiria de forma representativa apenas com o Romantismo. Defensores
da ordem moral classificavam os jogos entre as atividades semicriminosas, como a
embriaguez e a prostituio, que quando muito podiam ser toleradas, mas que convinha
proibir ao menor sinal de excesso (ARIS, 1986, p. 112).
O jogo era analisado como uma atividade social do universo adulto; como
observamos, as crianas jogavam com os adultos, exatamente por no existir ainda uma noo
de separao, no havia um limite claro entre a idade adulta e a infncia como a concebemos
hoje, mas de forma alguma podemos pressupor que as crianas no praticavam jogos infantis,
s no eram importantes o suficiente para que algum se interesse por suas atividades. O jogo
era definido pelo jogo de azar devido a seu importante papel naquela sociedade, naquele
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perodo. Qualquer reflexo realizada acerca do jogo tinha como base o paradigma do jogo a
dinheiro.
Podemos inferir que durante o perodo medieval e o renascimento o jogo foi
caracterizado como uma atividade de relaxamento, subordinada ao trabalho, muitas vezes
responsvel por trazer mais prejuzos do que ganhos sociedade, principalmente pela
representao do jogo de azar. Somente com uma nova viso da infncia seria possvel
modificar essa noo de jogo, sustentando-a em novas bases.
1.3.) Romantismo: O jogo e a infncia
Com a retomada histrica do conceito de jogo, evocamos a importncia
atribuda ao paradigma nascido da oposio entre o jogo e seriedade. Assim, podemos
compreender a dificuldade da associao entre o jogo e a educao, considerando-se o jogo
uma atividade frvola, e a educao, uma atividade sria.
Antes de o pensamento romntico abrir as portas para a associao do jogo
educao, trazendo uma profunda e decisiva mudana na representao da criana, como
veremos adiante, j existiam, segundo Brougre, trs formas de se estabelecer relaes entre o
jogo e a educao. Primeiro, o jogo como atividade recreativa:
(...) o jogo o relaxamento indispensvel ao esforo em geral, o esforo fsicoem Aristteles, em seguida esforo intelectual e, enfim muito especialmente, oesforo escolar. O jogo contribui indiretamente educao, permitindo aoaluno relaxado ser mais eficiente em seus exerccios e em sua ateno(BROUGRE, 1998, p. 54).
Nota-se que se trata da primeira incluso do jogo no espao escolar,
caracterizado como recreao, relao que subsiste at os dias de hoje. O recreio o momento
em que a escola no est se dedicando educao propriamente dita, mas est garantindo o
descanso e o repouso necessrio para a retomada da atividade escolar. Os prprios alunos
carregam essa dicotomia entre o trabalho educativo, o momento da aula, e a brincadeira, o
momento no qual podem se dedicar a uma atividade divertida. Atualmente e com o passar dos
anos, vem se alterando gradualmente esta situao; hoje em dia existe espao para o ldico
dentro das salas de aulas, encontramos em muitos educadores esforo em proporcionar o
aprendizado aliado a atividades prazerosas para os alunos, demonstrando que a seriedade no
precisa ser o oposto do prazer. Porm, esta no uma mudana de perspectiva fcil e ainda
hoje em dia encontra resistncias. Basta observarmos qual a hora mais esperada pelos alunos
dentro de uma classe, ou quantos operrios do seu primeiro sorriso verdadeiro do dia:
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somente no momento de bater o carto, quando chega a hora de deixarem as fbricas? Aula e
trabalho so, na maioria das vezes, associados falta de prazer, tdio, repetio, cansao;
muitas pessoas ainda encontram dificuldade em associ-los ao prazer, novidade, excitao,
desejo, curiosidade, todas estas prontamente associadas ao jogo. As primeiras fazem parte do
domnio da seriedade, enquanto as outras do domnio do jogo. Porm, esta separao j
demonstra que no to slida quanto parece.
A oposio entre o tempo de aula e o tempo de recreao representa
exatamente a oposio entre o jogo e a seriedade. O educador no se preocupa com o
contedo da recreao, apenas estabelece algumas regras para evitar qualquer desvio de
comportamento que possa resultar em problemas, mas deixa as crianas com liberdade, para
que determinem o que faro nesse perodo, sendo considerado sem importncia, sem valor
principalmente por seu carter ftil. Surge da uma grande barreira a ser quebrada, quando se
trata de encarar o potencial educativo do jogo, segundo Brougre (1998), o modelo da
recreao.
Em segundo lugar, o interesse que a criana manifesta espontaneamente pelo
jogo pode ser aproveitado pela escola, sendo desta forma utilizado para algo til: possvel
dar o aspecto de jogo a exerccios escolares, o jogo como artifcio pedaggico
(BROUGRE, 1998, p. 54).
O jogo funciona como uma atividade com poder para seduzir a criana
levando-a ao estudo. Atividades srias como a aprendizagem da leitura e da escrita so
mascaradas com jogos. A criana se imagina participando de um jogo, a atividade de estudar
deve se parecer com um jogo, mas no jogo. Percebemos que o jogo ainda no traz nenhum
valor em si, apenas se utiliza o seu potencial para motivar a criana; no se trata de uma
atividade fim, mas de uma ferramenta motivacional, os estudos evocam os jogos. Assim
comea a surgir uma idia que vai se fortalecer cada vez mais com o passar do tempo, a
ligao entre o jogo e a educao na infncia.
O jogo j faz parte da educao, mas ainda se trata de um artifcio pedaggico.
o trabalho do educador controlar o seu contedo, fazer com que o jogo proporcione
criana a possibilidade de adquirir conhecimentos relevantes, que no seriam adquiridos no
jogo praticado sem o seu controle direto. O educador deve transformar o contedo em jogo,
oferec-lo de forma que a criana possa envolver-se com o mesmo, imaginando-se participante
de um jogo e no de uma atividade escolar. Essa apropriao do jogo pela educao
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praticada at os dias de hoje e, durante as observaes realizadas noIII Simpsio de RPG &
Educao, pude constatar que o RPG, quando levado para a sala de aula, cumpre exatamente
esta funo, se trata de uma prtica utilizada a fim de mascarar uma atividade escolar, agindo,
sobretudo, como um motivador. Embora o jogo no encerre valor em si, tratando-se de um
meio e no de um fim, surge desse interesse na motivao que esta atividade desperta na
criana um caminho para uma nova viso do jogo, tendo em vista que o educador, mesmo
vendo-o ainda com receio e desconfiana, enxerga na disposio da criana para o jogo algo
digno de ser levado em conta, se passa a observar com ateno as atividades espontneas da
criana, preparando o caminho para a noo de separao entre o jogo adulto e o infantil.
Finalmente, em terceiro lugar, o jogo permite ao educador observar a natureza
de seus alunos, a personalidade infantil, e adaptar a esta o ensino e a orientao que seus
alunos recebero individualmente. Nesta terceira forma de relacionar o jogo e a educao, o
jogo no considerado formador, mas revelador. A criana em suas atividades de jogo age
espontaneamente, demonstrando as suas aptides naturais.
As crianas so exercitadas para os jogos que assim permitem a expresso dostalentos e dos dons naturais, sobretudo nos jogos entre crianas, onde, em
geral, nada h de artificial, mas onde tudo ocorre de modo espontneo, poisqualquer emulao leva ao surgimento e manifestao das aptides,
exatamente como uma erva, planta ou fruto revelam seu aroma e sua virtudenatural quando aquecidos (VIVS apud BROUGRE, 1998, p. 57).
Verifica-se nas palavras de Vivs um interesse importante pela espontaneidade
que o jogo encerra, embora o mesmo permanea ainda margem da atividade educativa,
servindo apenas como uma forma de mostrar a verdadeira natureza das crianas. Nota-se uma
percepo positiva na futilidade do jogo. Alm dessa observao positiva, na medida em que
os educadores passam a observar e conhecer o jogo praticado pelas crianas, surgem
possibilidades de novos olhares, permitindo que o maior conhecimento das atividades de jogopraticadas pelas crianas proporcione a quebra de preconceitos.
O jogo, ao ser relacionado to intimamente com a infncia, passa a ter sua
significao atrelada representao da criana. Desta forma, o papel do jogo passa a
depender das representaes que a sociedade faz da criana. Entre o perodo medieval e o
incio do sculo XVIII, existiram vrias representaes da criana, porm podemos considerar
que em sua maioria marcavam a criana com uma viso negativa, uma viso herdada do
pensamento cristo, uma criana caracterizada pelo pecado original, sua natureza estando,desta forma, associada ao mal. No existia ainda a noo de infncia, (ARIS, 1998) as
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crianas raramente eram representadas em pinturas medievais. Quando apareciam, eram
caracterizadas como adultos em tamanho menor; essa representao seguiria com poucas
mudanas, at o incio do sculo XVIII, sugerindo que no se enxergava a especificidade da
infncia.
Uma miniatura otoniana do sculo XI nos d uma idia impressionante dadeformao que o artista impunha ento aos corpos das crianas, num sentidoque nos parece muito distante do nosso sentimento e de nossa viso. O tema acena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a Ele as criancinhas,
sendo o texto latino claro: parvuli . Ora, o miniaturista agrupou em torno deJesus oito verdadeiros homens, sem nenhuma das caractersticas da infncia:eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor. Apenas seutamanho os distingue dos adultos (ARIS, 1986, p. 50).
Ainda no sculo XVI, os retratos de famlia comearam a se organizar em torno
da criana, que pouco a pouco passou a ocupar o centro das composies. Antes disso,
raramente apareciam, e quando o faziam eram utilizadas apenas como complemento das cenas,
personagens secundrios. Somente no sculo XVII os retratos de crianas sozinhas se
popularizaram.
A educao que surge apoiada nesse pensamento trata de corrigir o mal, aplicar
regras ao comportamento das crianas para que superem o mal natural ao qual esto
submetidas desde o nascimento, como demonstra Brougre, ao se referir educao praticada
nesse momento histrico: Educar romper com o mundo e suas manifestaes espontneas
da infncia (BROUGRE, 1998, p.59).
Essa tradio crist encontra apoio em Descartes e em todas as correntes que
evidenciam a fragilidade da razo nas crianas. (...) quase impossvel que nossos juzos
sejam to puros ou to firmes como seriam se pudssemos utilizar totalmente a nossa razo
desde o nascimento e se no tivssemos sido guiados seno por ela (DESCARTES, 1999, p.
45). No se pode confiar em sua espontaneidade, so obras do mal. Santo Agostinho tambm
aponta esta fragilidade: Assim, a debilidade dos membros infantis inocente, mas no a
alma das crianas (AGOSTINHO, 1999, p.45).
A falta de capacidade de discernimento entre o bem e o mal faz com a que as
crianas ajam sem limites, buscando apenas saciar seus desejos, entregues a suas paixes, que
invariavelmente tendem para o mal. Essa forma de ver a criana exige que a mesma seja
desviada de seu caminho natural; no tendo razo, no pode distinguir o bem do mal, por estar
marcada pelo pecado, conseqentemente, nada que seja espontneo na criana pode ser bom.
Cabe ao educador conduzi-la, para que siga pelo caminho do bem. Deve haver controle em
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todas as atividades das crianas, inclusive os jogos e a recreao, tudo deve ser voltado para a
educao. Desta forma, o jogo visto como um meio de desviar a criana do caminho natural.
Se a criana tem um interesse natural no jogo, cabe ao educador utilizar esse interesse de
forma construtiva, tornar instrutivo o que por si s no o . O jogo ainda um meio para
atingir outros fins.
Ainda no sculo XVIII, tem incio uma grande mudana na representao da
criana, comparando-as aos selvagens de forma positiva. Uma crtica artificialidade da
sociedade civilizada provoca uma valorizao do selvagem, que assim como a criana est em
comunho com a natureza, encarna a ingenuidade, espontaneidade, no est corrompido pela
civilizao. Rousseau clama pelo retorno natureza, que no pode de forma alguma ser
maligna. A educao que prope trata de proteger a natureza dos vcios da civilizao. O
nico hbito que se deve deixar a criana adquirir o de no contrair nenhum
(ROUSSEAU, 1968, p. 43).
A criana deve ser livre para desenvolver-se na medida exata em que a natureza
lhe permitir. O pensamento de Rousseau d incio ao movimento que vai culminar na revoluo
romntica, porm, ao mesmo tempo em que prescreve uma educao pela natureza, seu
pessimismo em relao artificialidade da civilizao no permitia a liberdade da criana, que a
todo momento deveria ser controlada, mesmo que ainda no tomasse conhecimento deste
controle. Seu preceptor deveria manipular e interpretar o ambiente para garantir uma educao
de acordo com a natureza, j que o amadurecimento da criana ainda no lhe havia preparado
para realizar uma interpretao acertada do ambiente sua volta. Esse controle ininterrupto
necessrio, tendo em vista que no possvel de maneira nenhuma isolar a criana das ms
influncias da civilizao, que poderiam pr todo o trabalho educativo a perder. Dessa forma,
todas as atividades da criana devem ser transformadas em oportunidades de aprendizado, os
jogos espontneos continuam sem valor para a educao propriamente dita, somente quando
controlados podem permitir uma educao de acordo com a natureza. Nota-se que existe uma
valorizao da criana, mas ainda assim permanece a separao entre o srio e o frvolo,
persiste o controle mascarado, se oferece uma liberdade ilusria, sempre manipulada pelo
educador. A estreita relao entre o jogo e a criana ainda no permite que o jogo seja
representado com um valor real, porm j se observa que a criana trata suas atividades de
jogo com seriedade.
No o espetculo dessa idade, um espetculo encantador e suave, ver umacriana bonita, de olho vivo e alegre, com um ar de contentamento e
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serenidade, com uma fisionomia aberta e sorridente, fazer brincando as coisasmais srias, ou profundamente ocupada com os divertimentos mais frvolos?
(ROUSSEAU, 1968, p. 169).
Em 1807, Jean Paul Richter demonstra uma mudana significativa na
representao da criana com a publicao de La Levana, no qual o autor apresenta a maneira
de se considerar a criana e sua vida. Para ele, a criana j no mais to passiva de ser
moldada como a representavam; detm resistncias, age com autonomia. Essa nova
representao torna possvel a valorizao do jogo. Num de seus textos, citado por Brougre,
essa nova imagem possvel do jogo torna-se bastante clara:
Afasto-me totalmente destes mestres-escola que pensam que no quarto de
crianas s se joga, sem nada aprender para o futuro. As horas de jogo nopassam das mais livres horas de estudo, e os jogos de crianas so croquis,cpias das srias ocupaes a que se dedicam os adultos, uma vez deixado oquarto infantil e os sapatinhos (RICHTER apud BROUGRE, 1998, p.63).
Percebe-se que o jogo praticado pelas crianas sem o controle de adultos, para
o autor, consta de momentos de aprendizado livres e teis, tratando-se principalmente de
simulaes das atividades realizadas pelos adultos, uma experimentao do real atravs da
fantasia do faz-de-conta, uma espcie de treino. O jogo praticado pelas crianas tratado
como uma atividade sria, rompendo com a idia de futilidade, que at ento estava
estreitamente ligada ao jogo. Essa valorizao permitir a futura associao entre o jogo e a
educao. Richter atribui ao jogo infantil um carter prprio e exclusivo, permite desta forma a
separao explcita entre o jogo praticado pelo adulto e o jogo da criana, o jogo infantil. Essa
distino entre o jogo adulto e infantil importante na medida em que o jogo praticado pela
criana era visto com desconfiana pelo estigma do jogo de azar. Essa forma de pensar abre
espao para a autonomia do jogo na infncia, permitindo o surgimento de uma teoria prpria,
alheia ao jogo praticado pelos adultos. A espontaneidade e pureza da criana passam a fazerparte da representao de seus jogos no mais estigmatizados pelo negativismo atribudo aos
jogos de azar.
A partir desta abordagem, o jogo no est mais subordinado a outra atividade,
no se trata de controlar a recreao das crianas para que este possa ser um momento de
aprendizado, to pouco permitido jogar apenas pelo objetivo de proporcionar descanso e,
finalmente, no se trata de uma mscara de jogo colocada sobre atividades srias a fim de atrair
o interesse da criana; pelo contrrio, esta abordagem admite que o jogo contm valoreducativo em si mesmo, o jogo por si s permite o desenvolvimento de habilidades
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importantes, passa a ser pensado no como uma atividade meio, mas a partir de ento, uma
atividade fim. Percebemos o incio de uma nova noo de jogo. Richter realizou uma
verdadeira mudana na concepo do jogo infantil: Uma nova viso do jogo pode ser
enunciada pela primeira vez na histria intelectual de nossa civilizao (BROUGRE,
1998, p. 65).
Brougre (1998) sugere que a prtica no acompanhou a teoria de Richter.
Acrescenta que de fato o pensamento dele causou poucas mudanas nas prticas educativas da
poca, porm a teoria proposta pelos seus textos abriu as portas para uma nova viso de
criana e nos mostra como essa mudana na representao da criana permitiu a mudana na
concepo do jogo. Com Jean Paul, observamos como o romantismo, pensando a criana de
outro modo, pde pensar diferentemente o jogo e plantar os germes de novas concepes que
sustentam nossa modernidade (BROUGRE, 1998, p. 65-66).
Por outro lado, observamos que Froebel exerceu grande influncia na educao,
sobretudo na prtica educativa, trazendo mudanas reais. Seus mtodos colocam o jogo e os
brinquedos no centro da educao, tendo sido aplicados em vrios pases, principalmente na
Alemanha, onde foi responsvel pela instituio do primeiro jardim da infncia. Na casa que
existe sobre a bodega de Blankenburgo, se pode ver uma placa comemorativa com a seguinte
inscrio: Em 28 de junho de 1840, Federico Froebel instituiu aqui o primeiro Jardim da
Infncia (PRFER, 1940, p. 109-110, (traduo minha)).
Froebel dava especial ateno ao papel da mulher na educao infantil e atribuiu
grande importncia ao jogo. Discpulo de Rousseau, considera que a natureza acima de tudo
boa; e os jogos da infncia, surgindo nas crianas de forma natural, tambm o so. Se o
homem chegasse a ouvir tudo o que a natureza lhe ensina em sua linguagem muda no
imporia s crianas desde o princpio, forma e destino contra sua prpria natureza
(PRFER, 1940, p. 58, (traduo minha)).
O jogo da criana nada mais do que a expresso de sua natureza interior.
Froebel reconhece valores positivos nas atividades espontneas praticadas pelas crianas: (...)
a educao na primeira infncia deve ser conseqncia (limitando-se s em vigiar e
proteger) sem prescrever, determinar nem intervir (PRFER, 1940, p. 57, (traduo
minha)).
Sua proposta pedaggica oferece um meio de praticar uma educao pelo jogo,
sugere o uso de materiais de jogo que estimulem as crianas. O adulto deve oferecer esse
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material criana, para que ela possa criar seus jogos com liberdade, mas no deve influenciar
na escolha dos jogos; cabe criana decidir como aquele material ser utilizado. Froebel
elaborou uma proposta concreta na qual o jogo ocupa a posio central na educao infantil.
Com a ruptura proporcionada pelo pensamento romntico, rompeu-se a
associao entre o jogo e a frivolidade, tornou-se possvel enxergar o jogo enquanto atividade
com poder de proporcionar aprendizado. Porm, esse movimento no proporcionou um
retorno seriedade da Antigidade, na qual os jogos faziam parte da vida religiosa, poltica,
desempenhando um importante papel social nas sociedades antigas, mas possibilitou que eles
assumissem um novo e importante papel relacionado principalmente educao.
1.4.) O pensamento moderno e o surgimento do jogo educativoPodemos inferir que a nova representao da criana permitiu o
desenvolvimento de uma psicologia da infncia (Brougre, 1998) e as pesquisas realizadas
nesse campo demonstraram que, mesmo ainda havendo reservas quanto ao papel educativo do
jogo, no se poderia negar sua contribuio na formao da personalidade. Essa viso permitiu
que as crianas pudessem se dedicar a seus jogos pelo menos em algumas horas do dia, no
mais como artifcio, no mais como recreao subordinada atividade escolar, e nem to
pouco como uma forma de levar a criana ao estudo, mas admitindo-se que o jogo em si, pela
sua forte ligao com o prazer e a criatividade, encerra valores prprios e contribui na
construo da personalidade.
Essa mudana histrica na representao da criana deu incio a um movimento
que se caracteriza pela preocupao com a educao de crianas ainda muito novas, na
primeira infncia, ou seja, crianas de dois a sete anos j deveriam receber uma educao
pr-escolar, preparando-se para a aquisio futura das letras. Na Frana, essa concepo de
educao fica bastante clara atravs da criao, em 1833, das salas de asilo, espaos destinados
a cuidar e principalmente educar crianas de dois a sete anos, enquanto seus pais trabalhavam.
Embora o nome sala de asilo sugira um espao de caridade - o que no deixa de ser verdade,
pois estavam destinadas a famlias carentes - havia uma evidente preocupao com a educao,
principalmente no que se refere educao moral e intelectual. Brougre confirma esta
preocupao com a educao, refletida na ateno dedicada ao mtodo adotado nas salas de
asilo, citando uma circular de 1845, destinada aos diretores das mesmas:
Para que as salas de asilo conservem seu verdadeiro carter, para que nodegenerem e se transformem em depsitos de crianas, essencial que as
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prescries do decreto real sejam rigorosamente seguidas; essencialsobretudo que o mtodo seja rigorosamente aplicado. Sem isso, no haveriamais unidade, e cada supervisor, conforme seu capricho ou sua preguia,
submeteria as crianas a exerccios sem finalidade e sem motivos, ou asabandonaria completamente s suas inclinaes (LAmi de lEnfance apud
BROUGRE, 1998, p.105).
O mtodo utilizado nas salas de asilo era fundamental para manter o carter
educativo das mesmas, no se transformando em locais estritamente destinados a manter as
crianas sob cuidados, enquanto os pais desempenhavam suas atividades profissionais. Em
relao a nossa retomada das representaes do jogo, essa preocupao educativa com
crianas de dois a sete anos claramente pressupe uma educao ldica, que nessa idade seria
realizada principalmente por meio de jogos e brincadeiras, mesmo que ainda fossem marcadas
pela utilizao do jogo como recreao ou artifcio para transformar o trabalho em
brincadeiras, como podemos observar numa circular de 09 de abril de 1836:
A inteligncia das crianas, to frgil ainda, dever ser gradualmentedesenvolvida sem que jamais seja fatigada por uma aplicao demasiadointensa. Chegar-se- a isso, entremeando seu trabalho com muita recreao,dando algumas vezes ao prprio trabalho a forma de entretenimento(JEAN-NOL LUC apud BROUGRE, 1998, p.107).
Nessa perspectiva, o jogo permanece sem valor prprio, a no ser quando
subordinado a atividades srias, embora a representao da criana j permitisse que a mesma
fosse digna de uma educao especfica, dentro dos limites que sua idade lhe permitia, como
era sugerido por Rousseau ao indicar que a criana deveria ser submetida educao de
acordo com os limites que a prpria natureza lhe impunha.
De acordo com Brougre, em 1881, um decreto, procurando distanciar de vez a
sala de asilo da idia de creche, principalmente por no se tratar de um espao apenas onde se
fazia caridade, mas principalmente se educava, substitui o nome imprprio, adotando a
denominao de Escolas Maternais. Logo, em 1882, uma resoluo tratava de fornecer
elementos detalhados quanto ao programa nacional de ensino estruturado prprio de uma
escola. A partir de ento, as atividades destinadas a crianas de dois a quatro anos eram
diferenciadas das atividades das crianas de cinco a sete. Essa mudana trouxe consigo o
surgimento do jogo como prioridade do programa, porm o jogo parece mais presente quando
se trata da educao de crianas de classes mais abastadas da sociedade francesa, enquanto a
casa de asilo recrutava crianas principalmente por sua ao referente caridade. Os jardins da
infncia, destinados a atender crianas das classes abastadas, usavam o jogo como atrativo;
tratava-se de um argumento promocional, enfatizando que os jogos praticados nas escolas
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exercitavam a ateno, desenvolviam a docilidade, acionando todas as faculdades do esprito e
do carter. O jogo passa a deter um papel fundamental na educao, inclusive enquanto
publicidade.
Em 1911, Jeanne Girard, inspetora das escolas maternais, analisa o jogo
realizado dentro da escola como uma forma de aproximar o dever educativo da mesma com a
vocao natural da criana para o jogo. Prope assim o jogo educativo, uma forma de conciliar
a criana e as atividades srias desenvolvidas na escola sem, no entanto, renegar nenhum dos
lados. Aceita o jogo da criana como anlogo ao trabalho do adulto. Atravs deste termo,
unem-se duas noes que haviam se separado h muito tempo: jogo e seriedade.
Na prtica no existe mudana na forma como o jogo era utilizado, a novidade
o respeito e a forma de enxergar o jogo enquanto atividade sria da criana. O jogo
educativo estava fortemente ligado idia de aliar a inclinao natural da criana para o jogo
aos jogos controlados pelos educadores, a fim de garantir que o aprender estivesse presente
nas prticas de jogo das crianas: Trata-se de conciliar a criana e a educao, sem renegar
um dos termos, como o fariam respectivamente uma escola maternal limitada a uma creche
ou alinhada escola primria (BROUGRE, 1998, p. 122).
Para a criana, o jogo a atividade final completa em si mesma, seu produto se
faz enquanto se realiza, no existe um produto separado do ato de fazer. Por outro lado, para
o educador, o jogo consiste numa ferramenta a ser utilizada; o jogo, quando controlado por
ele, oferece criana a oportunidade de aprender, mesmo sem dar-se conta de estar realizando
uma atividade escolar, aprendendo, ou seja, no se deve deixar a criana abandonada a suas
prprias atividades, estas devem ser orientadas, para que possam adquirir algum valor
educativo. Sendo assim, o jogo educativo trata de conciliar a necessidade da criana de brincar
com o objetivo educativo. Como podemos observar, ainda estamos muito prximos da
utilizao do jogo como um artifcio. No se encontra o valor educativo nas atividades
espontneas de jogo realizadas pela criana.
O novo termo, Jogo Educativo, para inserir o jogo dentro da escola, segundo
Brougre (1998), supera um dos principais problemas que a escola maternal enfrentava:
legitimar-se enquanto escola, por ser um espao intimamente associado ao mundo infantil.
Mesmo assim, o jogo em contato com a escola maternal ganha novas conotaes, mudando
inclusive de forma para atender s exigncias pedaggicas, conservando do jogo apenas a
estrutura. Reconhece-se o jogo, sem negar que a escola maternal seja de fato um espao de
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aprender, uma escola. Por outro lado, o jogo liga-se educao; no se tratam mais de
antinomias. Porm, na medida em que a escola maternal somente alcanou ostatus de escola
atravs da legitimao do jogo, designando-o Jogo Educativo, criou-se a noo de que o
jogo em sua gratuidade no oferece possibilidades de aquisio de conhecimentos ou
desenvolvimento de habilidades e competncias relevantes, perpetuando o estigma de que o
jogo que pode oferecer oportunidades de aprendizado se trata apenas do jogo controlado pelo
adulto, enquanto todos os outros praticados espontaneamente, livres de controle, so
interessantes como descanso, entretenimento, isentos de quaisquer outros valores. Atualmente
podemos verificar no movimento de assimilao do RPG pela escola o mesmo problema,
cria-se o termo RPG Educativo, como se as outras formas de praticar o RPG,
espontaneamente, livre de interferncias estranhas ao jogo, no encerrassem valor algum,
continuando, portanto, vitimado pelo preconceito que envolve as prticas de RPG, sobretudo
no pas.
1.5.) O jogo contemporneo
Diante de tantas mudanas, avanos e retrocessos observados na retomada do
conceito de jogo, destacaremos a seguir algumas das principais caractersticas que constituem
a representao moderna do jogo. Brougre (1998), ao iniciar sua anlise, prope que a
primeira coisa a se ter em mente que, tratando-se do jogo humano, no existe jogo natural, a
criana nasce e desde o momento de seu nascimento est sujeita a interaes sociais, insere-se
no contexto social desde seu primeiro choro, desta forma, seu comportamento tambm est
todo impregnado desse contexto social. Os jogos praticados por elas so resultado das suas
relaes sociais.
O jogo pressupe uma aprendizagem social. Aprende-se a jogar. O jogo no
inato, pelo menos nas formas que assume o homem. A criana pequena iniciada no jogo pelas pessoas que se ocupam dela, particularmente sua meou o adulto que por ela responsvel. Dizer que uma criana de alguns dias oualgumas semanas joga por sua prpria iniciativa no tem sentido(BROUGRE, 1998, p. 189-190).
Levando em conta as palavras de Brougre, podemos abandonar o mito do jogo
natural e concluir, portanto, que o jogo est intimamente ligado cultura. Podemos encontrar
jogos nos mais diversos povos e pocas, porm as formas variam tanto quanto os povos que os
praticam. O jogo ento um espao social, j que no criado por natureza, mas aps uma
aprendizagem social e supe uma significao conferida por vrios jogadores (um acordo)
(BROUGRE, 1998, p. 192).
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Devemos ficar atentos para o fato de que, mesmo se tratando de uma atividade
essencial para o homem, principalmente ao observarmos que, num grau maior ou menor e nas
mais variadas formas, encontramos atividades que denominamos jogo em todas as culturas, o
jogo no surge de forma inata. Ele est presente em todas as culturas, mas sempre influencia e
influenciado por elas. So os adultos que trazem as crianas para seus jogos, primeiramente
como espectadores e logo depois como jogadores; o jogo pressupe aprendizado, por mais
simples que este possa ser, sempre existem regras.
Outra caracterstica fundamental para que exista jogo, segundo Huizinga, que
o jogo, para constituir-se jogo, deve ser acima de tudo uma atividade voluntria. Tratando-se
de uma atividade imposta, distancia-se do jogo: podendo no mximo ser uma imitao
forada (HUIZINGA, 1996, p. 10).
Fica claro que, se o jogo praticado como pressupe o jogo educativo,
realizado dentro da escola como uma atividade imposta pelo educador, no se caracteriza mais
como jogo, conservando de jogo apenas sua estrutura, se tratando neste caso mais de uma
imitao do que jogo propriamente dito. O jogo, marcado pela participao voluntria,
praticado dentro da escola apenas nas horas dedicadas recreao sem objetivos pedaggicos,
ou fora dela, nas horas de lazer. Por outro lado, a atividade praticada dentro da escola com
objetivos pedaggicos aproxima-se do jogo apenas no que se refere ao carter ldico, pois
praticado de forma dirigida no pode ser considerado jogo. No se trata de uma atividade
espontnea, pois a iniciativa negada. Um exemplo, dado por Brougre, mostra como se dava
esse controle da atividade dentro da escola maternal:
Assim acontece com as cenas descritas do jogo de boneca: cada criana dispede seu material (boneca e acessrios); com um material idntico a professora
prope esquetes sobre a vida quotidiana (despertar da boneca, refeies, etc.),que cada criana reproduz em sua carteira (BROUGRE, 1998, p. 124).
Finalmente, quando era dada criana a oportunidade de agir
espontaneamente, dispondo de tempo para a atividade livre, ela devia reproduzir estas cenas
sob o olhar do educador que, circulando entre as carteiras, interferia quando necessrio.
Tratava-se de priorizar os jogos dirigidos e, quando livres, cabia ao educador observar e
intervir.
Outra caracterstica que o jogo uma atividade que no a vida real. O jogo
faz-de-conta, no entanto, um faz-de-conta tratado com seriedade pelo jogador, ao mesmotempo em que este tem conscincia de que est apenas fazendo-de-conta:
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(...) o jogo no vida corrente nem vida real. Pelo contrrio, trata-se deuma evaso da vida real para uma esfera temporria de atividade comorientao prpria. Toda criana sabe perfeitamente quanto est s fazendode conta ou quando est s brincando (HUIZINGA, 1993, p. 11).
Esta caracterstica tambm defendida por Brougre, que sugere que o jogo
exige um acordo comum entre os jogadores no que se refere comunicao, que permite aos
mesmos entrarem em acordo quanto forma e ao contedo do jogo, propiciando que todos
possam entender a mensagem: de que a atividade se trata de um jogo. Quando existe esse
acordo, cria-se um espao de jogo, onde as atividades assumem outros significados, outros
valores: O jogo uma mutao do sentido, da realidade: nele as coisas se tornam outras.
um espao a margem da vida comum que obedece a regras criadas pela circunstncia(BROUGRE, 1998, p. 191).
A terceira caracterstica do jogo diz respeito limitao do jogo em relao ao
tempo e espao, ou seja, seu isolamento. O jogo no faz parte da vida cotidiana, embora seja
uma atividade cotidiana, assistimos ou participamos de jogos no dia-a-dia. O jogo, enquanto
acontece, se distancia do cotidiano, por se tratar de um tempo no qual passamos a nos orientar
por suas regras prprias - assumimos outros papis, nossas aes tomam significados
diferentes daqueles que teriam no contexto da vida real. O jogo se trata de um intervalo emque se dedica a uma atividade com regras prprias, com algum grau de faz-de-conta, como,
por exemplo, no tabuleiro de xadrez, onde se desenvolvem batalhas imaginrias entre dois
exrcitos, ou mesmo num jogo de futebol, em que os jogadores se submetem a uma realidade
diferente daquela contida na vida cotidiana; existem diversas regras, marcaes, smbolos que
tratam justamente de garantir que, dentro do campo no intervalo de durao do jogo, os
jogadores so apenas os jogadores, atacantes, defensores e goleiros, disputando um jogo.
O jogo distingue-se da vida comum tanto pelo lugar quanto pela duraoque ocupa. esta a terceira de suas caractersticas principais: o isolamento, alimitao. jogado at ao fim dentro de certos limites de tempo e de espao.
Possui caminho e sentidos prprios (HUIZINGA, 1996, p. 12).
Em muitos casos esse caminho e sentidos prprios so to prprios que,
quando extrados do jogo, no existem, ou ao menos se tornam difceis de ser encontrados.
Qual o sentido de dois homens entrarem num ringue e se espancarem um ao outro?
Certamente, alm da remunerao, deve existir um sentido prprio na lgica do jogo, que leva
os jogadores a praticarem-no. Qual o sentido de entrar numa arena e enfrentar um touro dez
vezes mais pesado que um ser humano apenas com um pedao de pano vermelho? Certamente,
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para aqueles que participam do jogo, existe um sentido prprio, dentro dos limit